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1 Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas EFLCH Programa de Pós-Graduação em História Adriana Rodrigues de Jesus A política de patrimônio imaterial no Iphan: análise de bens não registrados (2000-2011) Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), na linha de pesquisa “Instituições, Vida Material e Conflito”, sob orientação do Prof. Dr. Odair da Cruz Paiva. Guarulhos/SP, 2016

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Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP

Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – EFLCH

Programa de Pós-Graduação em História

Adriana Rodrigues de Jesus

A política de patrimônio imaterial no Iphan: análise de bens não

registrados (2000-2011)

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo

(UNIFESP), na linha de pesquisa “Instituições, Vida Material e

Conflito”, sob orientação do Prof. Dr. Odair da Cruz Paiva.

Guarulhos/SP, 2016

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Jesus, Adriana Rodrigues

A política de patrimônio imaterial no Iphan: análise de bens não registrados (2000-

2011) / Adriana Rodrigues de Jesus. Guarulhos, 2016.

182 p.: il.

Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, 2014.

Orientador: Odair da Cruz Paiva

Título em inglês: The intangible heritage policy in Iphan: analysis of assets not

inscription (2000-2011)

1. História 2. Brasil - História 3. Patrimônio Cultural I. Instituto do Patrimônio

Histórico, Artístico e Cultural II. Paiva, Odair da Cruz III. Título

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Adriana Rodrigues de Jesus

A política de patrimônio imaterial no Iphan: análise de bens não

registrados (2000-2011)

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de

Pós Graduação em História da Universidade Federal de

São Paulo (UNIFESP), na linha de pesquisa “Instituições,

Vida Material e Conflito”, sob orientação do Prof. Dr. Odair

da Cruz Paiva.

Aprovada em ______________________

__________________________________________

Prof. Dr. Odair da Cruz Paiva

Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

____________________________________________

Prof. Dr. Jaime Rodrigues

Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

______________________________________________

Profa. Dra. Olga Brites

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos que fizeram parte da trajetória de conclusão deste trabalho, pesquisa em

que fui presenteada com o resultado do meu desenvolvimento e amadurecimento como

pesquisadora.

Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Odair da Cruz Paiva pela confiança em meu

projeto e pela paciência. Ao Prof. Dr. Jaime Rodrigues e à Profa. Dra. Olga Brites pelo

aceite em compor a banca examinadora e pelas honrosas contribuições. À Coordenação

de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao Programa de Pós-

Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pelo fomento e

apoio para realização da pesquisa. Agradeço ao professor Pérsio Santiago, que no ensino

médio, me fez sonhar em ser historiadora e ingressar na universidade pública.

À equipe técnica do Iphan, sendo meu agradecimento especial à Simone Sayuri

Takahashi Toji pelo apoio e acolhimento. Sempre generosa, identificou em uma

aspirante à historiadora, audaciosa em críticas ao Iphan, a pré-disposição para pesquisa

na área de patrimônio fazendo-me acreditar que seria possível ingressar na carreira

acadêmica e levar adiante minhas reflexões sobre a gestão do patrimônio cultural. Ao

lado de Simone, agradeço Angélica Lima, que no ano de 2011, me ofereceu a

oportunidade de estagiar e compor a equipe do Departamento de Patrimônio Imaterial

no Iphan/SP.

À querida amiga e não menos generosa, Patrícia Ferrone que me ofereceu a

oportunidade de ampliar meu aprendizado, estagiando ao seu lado na área de Bens

Móveis e Integrados no Iphan/SP e que, sempre prontamente, se dispôs a colaborar com

a minha pesquisa.

Ao mestre Eduardo Siufi, sempre com boas dicas de livros e me incentivando no

ingresso ao mestrado. Ao Jaelson Bitran Trindade, aberto ao diálogo, respondia minhas

curiosidades e dúvidas sobre o ofício de historiador no Iphan. Ao Marcos Rabelo pela

atenção, ao Rafael Araújo que colaborou com minha pesquisa no arquivo da

Superintendência de São Paulo.

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À equipe do Departamento de Patrimônio Imaterial na sede do Iphan que me auxiliou

na pesquisa dos processos no arquivo central em Brasília: Diana Dianovsky, Ellen

Krohn e Diego Simas.

Aos queridos amigos, sem intenção de citar todos e cometer injustiças, mas com

dedicação especial a Nelson Oliveira e Renata Inácia pela rara amizade, afeto e apoio

nos momentos mais difíceis. À Priscila Novaes pelo reencontro e irmandade. Ao Felipe

Crispim pela disposição para trocas e somas de solitários historiadores do patrimônio.

Aos que foram minha força: Núcleo Negro Unifesp Guarulhos. Aos que cuidaram do

meu espírito, da minha mente e do meu corpo, respectivamente: Yá Dofonitinha D’Osun

(Lucila da Conceição Rosa Marcelino), Babá Jorge D’Sango(Jorge Lúcio Soares), Maria

Lucia da Silva, Jussara Dias e Ana Koteban.

Às minhas irmãs, Cristina Rodrigues, Silvana Rodrigues, Cristiana Rodrigues (in

memoriam) e minha parceira inseparável Kelly Rodrigues. Às minhas queridas

sobrinhas, Débora, Gabriella e Beatriz que enfeitam a casa. Ao meu pai, José Rodrigues

de Jesus, de quem herdei minha ancestralidade e minha fé.

O meu mais sincero agradecimento a todas e todos.

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Então vamos ter o patrimônio das coisas vivas e das comunidades,

que são vivas, e o patrimônio dos nostálgicos e dos coveiros. Nós

seremos os coveiros da história, os coveiros do patrimônio no

cemitério cultural que se opõe ao espaço da cultura viva. [...] E onde

fica o Patrimônio Material, o Patrimônio Tangível nisso tudo? Fica

cada um na sua gaveta. Considero, portanto necessário repensarmos

esses conceitos, não só por razões puramente de rigor conceitual, mas

por causa das implicações que já estão começando a aparecer e que

vão simplesmente se multiplicar.

Conselheiro Ulpiano Bezerra de Menezes1

1 Ata da 50ª Reunião do Conselho Consultivo do Iphan, 9/11/2006.

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Resumo

A considerar as diretrizes estabelecidas pelas leis federais e pela prática de

reconhecimento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, que

determinam o que é patrimônio imaterial no Brasil, a pesquisa objetiva a reflexão sobre

o que o Instituto legitima como patrimônio cultural sob a perspectiva da categoria de

cultura intangível. Para tal, serão analisados pedidos de registro que tiveram sua

solicitação indeferida pelo órgão na década de atuação desta política no país (2000 –

2011). Serão analisadas dez propostas de registro apresentadas ao Iphan nesse período, a

saber: Talian – Dialeto de Cultura Italiana (2002); Sanduíche de Bauru (2004); Centro

Universitário Maria Antônia – USP; “Lugar de Memória das Lutas Sociais e Símbolo

da Resistência contra a Ditadura Militar” (2005); Tooro Nagashi (2009); Modo de

Fazer Polenta dos Descendentes de Imigrantes Italianos (2009); Festa de Atiradores

Schützenfest (2009); Tradições da Colônia Alemã em Petrópolis (2010); Tiro do Laço

(2010); Festival do Japão (2011); Box 32 no Mercado Público de Florianópolis (2011).

A análise dessas propostas abre a possibilidade de compreensão sobre: a atuação

do órgão de preservação e sua associação ao discurso de defesa da diversidade cultural;

as ações de salvaguarda do patrimônio imaterial em âmbito mundial e a disputa política

de identidades dos grupos sociais que almejam o reconhecimento no Iphan.

Palavras-chave: Patrimônio Imaterial, Iphan, Políticas públicas, Preservação

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Abstract

To consider the guidelines established by federal laws and the practical

recognition of the Heritage Institute for National Artistic - Iphan, which determine what

is intangible heritage in Brazil, the research aims to reflect on what the Institute

legitimate as cultural heritage under the perspective of intangible culture. To this end,

registration requests will be analyzed who had their request rejected by the body in the

decade of operation of this policy in the country (2000 to 2011). It will be analyzed ten

registration proposals to Iphan this period, namely: Talian - Italian Culture Dialect

(2002); Bauru Sandwich (2004); Maria Antonia University Center - USP "Memory

Place of Social Struggles and Symbol of Resistance against the Military Dictatorship"

(2005); Tooro Nagashi (2009); Method of Making Polenta of Italian Immigrants

Descendants (2009); Shooters Party Schützenfest (2009); Traditions of the German

Colony in Petropolis (2010); Bow Shot (2010); Japan Festival (2011); Box 32 in

Florianopolis Public Market (2011).

The examination of these proposals open up the possibility of understanding

about : the preservation of organ performance and its association with the defense

speech of cultural diversity; safeguard actions of intangible heritage worldwide and the

political dispute identities of social groups that aims to recognize the Iphan.

Keywords: Intangible heritage, Iphan, Public policie, Preservation

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ABREVIATURAS

ACCT – Associação dos Clubes de Caça e Tiro de Blumenau/SC

ACNBR – Associação Cultural Nipo-Brasileira da cidade de Registro/ SP

ASSAPRORATABRAS – Associação de Apresentadores de Programas de Rádio Talian

do Brasil

CDFB – Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro

CGRI – Coordenação Geral de Registro e Identificação

CNFCP – Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular

CNRC – Centro Nacional de Referências Culturais CPI – Câmara do Patrimônio

Imaterial

CUMA/USP – Centro Universitário Maria Antônia/USP

DAC – Departamento e Assuntos Culturais

DEPAM – Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização

DIR – Departamento de Identificação e Registro

DPHAN – Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

DPI – Departamento de Patrimônio Imaterial

EMI – Equipe Multidisciplinar Interdepartamental

FEPOL – Festa Estadual da Polenta

FIBRAS/RS – Federação das Associações Ítalo Brasileiras do Rio Grande do Sul

FUNARTE – Fundação Nacional de Arte

GTPI – Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial

GTDL – Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística

IBPC – Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural

INDL – Inventário Nacional da Diversidade Linguística

INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais

IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

IPOL – Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística

IBECC – Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura

KENREN – Federação das Associações de Províncias do Japão do Brasil

MES – Ministério da Educação e Saúde

MEC – Ministério da Educação e Cultura

MinC – Ministério da Cultura

ONU – Organização das Nações Unidas

PCH – Programa de Cidades Históricas

SPHAN - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

SPHAN – Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

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Sumário

Introdução.......................................................................................................................12

Capítulo 1

A instauração da política de patrimônio imaterial no Iphan.....................................15

1.1 A antropologia cultural, história cultural e patrimônio cultural.................................15

1.2 Preservação dos patrimônios além da “pedra e cal”: a preservação do passado em

meio ao futuro incerto................................................................................................19

1.3 O intangível na cultura material/imaterial: faces de um mesmo processo. ..............22

1.4 Redemocratização no Brasil: direito à cidadania e à preservação dos patrimônios. 24

1.5 Política de patrimônio imaterial: uma breve trajetória brasileira...............................28

1.6 O rito para o registro do bem cultural. .....................................................................40

1.7 A presença dos historiadores no Iphan......................................................................51

Capítulo 2

Critérios e prioridades para a confirmação do registro: análise dos pedidos de

celebrações e formas de expressão ...............................................................................56

2.1 Debates e resoluções na implantação dos critérios e prioridades na política de

patrimônio imaterial no Iphan....................................................................................56

2.2 Casos de pedidos aceitos: O registro da Arte Kusiwa - pintura corporal e arte gráfica

Wajãpie e o Jongo no Sudeste. .................................................................................62

2.3 Análise dos pedidos de registros negados..............................................................64

2.3.1 Celebrações........................................................................................................64

2.3.2 Tooro Nagashi ...................................................................................................65

2.3.3 Tradições da colônia alemã de Petrópolis/RJ .....................................................71

2.3.4 Tiro do Laço........................................................................................................75

2.3.5 Festa de Atiradores Schützenfest.........................................................................81

2.3.6 Celebrações sem registro. Uma análise das propostas. ......................................86

2.4 Formas de expressão................................................................................................91

2.4.1 Talian...................................................................................................................91

2.4.2 A sociedade civil enquanto sujeito no reconhecimento do bem imaterial. ........99

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Capítulo 3

Lugares e saberes: limites e disputas entre o antigo e o moderno na política de

patrimônio imaterial ...................................................................................................103

3.1 Lugares....................................................................................................................103

3.1.1 Centro Universitário Maria Antônia.....................................................................104

3.1.2 Festival do Japão...................................................................................................111

3.1.3 Box 32: Mercado público de Florianópolis. ........................................................114

3.1.4 Análise dos processos da categoria de lugares. ...................................................119

3.2 Saberes ...................................................................................................................125

3.2.1 Sanduíche de Bauru. ...........................................................................................125

3.2.2 Modos de Fazer Polenta dos Descendentes de Imigrantes Italianos. ..................130

3.2.3 Análise dos pedidos de saberes: o multiculturalismo e a tradição. ......................134

3.3 A Geopolítica do patrimônio...................................................................................136

3.4 Considerações Finais...............................................................................................142

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. .....................................................................149

ANEXOS

Anexo I - Bens Registrados Iphan................................................................................158

Anexo II - Artigos nº 215 e 216 da Constituição Federal ..........................................161

Anexo III - Carta de Fortaleza..... ................................................................................163

Anexo IV- Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000....................................................167

Anexo V - Resolução n° 001, de 3 de agosto de 2006...................................................170

Anexo VI - Carta de Pesquisa Histórica no Iphan.......................................................176

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Introdução

A política de patrimônio imaterial no Brasil tem como marco legal o Decreto nº

3.551, de 20002 que institui o registro como mecanismo de proteção ao patrimônio

imaterial, tendo por órgão regulador o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional – Iphan. Definiu-se que patrimônio imaterial refere-se ao conjunto de práticas,

expressões, conhecimentos e técnicas que representam os grupos formadores da

sociedade brasileira (IPHAN, 2000).

Para compreender os parâmetros que sustentam a política de patrimônio

imaterial no Brasil, é necessário debruçar-se sobre as motivações e causas que

direcionaram a institucionalização da proteção ao patrimônio intangível e resultaram no

cenário de bens reconhecidos.

Nesta dissertação serão utilizados os termos - imaterial e intangível -, pois

ambos estão inscritos na documentação consultada. A expressão imaterial foi criada

para caracterizar uma nova modalidade de preservação do patrimônio pelas políticas

públicas; ela surge como forma de distanciar as ações convencionais de preservação que

atingiam apenas monumentos, prédios, objetos, etc. (GONÇALVES, 2007, p. 217).

Contudo, compreende-se que todo patrimônio cultural é expresso a partir de alguma

forma de materialidade, embora ela não resuma os sentidos possíveis de um dado bem.

Entende-se, por isso, que a expressão imaterial pontua a investigação ao redor

daquilo que não tem consistência material. Já o termo intangível, remete à rede de

signos e significados existentes nos patrimônios culturais ausentes no mundo concreto,

refere-se àquilo que não se pode tocar, “a categoria intangibilidade, talvez esteja

relacionada a este caráter desmaterializado que assumiu a moderna noção

antropológica de cultura” (GONÇALVES, 2007, p. 114). Ou seja, o intangível se

expressa também na modalidade material. A intangibilidade (significados e símbolos) é

inerente a todos os patrimônios culturais, já a imaterialidade é um termo que designa

uma modalidade de patrimônio cultural que abrange as ações de preservação além da

pedra e cal.

Os termos reconhecimento e registro também serão utilizados, de formas

distintas. Um bem cultural imaterial pode ser reconhecido como patrimônio, para tal,

poderão ser elaborados dossiês e pesquisas com apoio do Iphan que contemplam

informações sobre a prática cultural. Porém, nem todo bem reconhecido como

2 Anexo IV, p.174.

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patrimônio imaterial será registrado. O registro é a certidão que atesta o bem cultural

como patrimônio imaterial brasileiro; ele apenas é oficializado, caso seja aprovado em

todos os critérios adotados pelo IPHAN para legitimá-lo, além disso, sobre esse bem

recaem ações e políticas públicas específicas (salvaguarda) que garantem a sua

continuidade. (Iphan, 2000)

O primeiro capítulo - “A Instauração da Política de Patrimônio Imaterial no Iphan” -,

historiciza o debate sobre patrimônio imaterial no Brasil, trazendo uma breve trajetória

da implantação da política no país. Além disso, aborda a importância da antropologia

no alargamento do conceito de patrimônio e como a ampliação do conceito de cultura

repercutiu no campo da história.

A política de preservação do patrimônio imaterial é também um reflexo de ações

lideradas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura –

UNESCO, que ocorreram em âmbito mundial, no período pós-Segunda Guerra Mundial

(1939/1945). Esse período foi marcado pelo avanço de políticas totalitárias tais como o

nazismo e fascismo que devastaram minorias étnicas. Diante desse cenário político

somado ao processo de globalização, a UNESCO promoveu ações que visam “proteger”

culturas tradicionais colocadas em risco de extinção.

O capítulo também apresenta o rito que antecede o registro do bem.

Analisaremos cada fase dos processos, sendo ela dividida em 4 (quatro) fases: 1ª –

Análise preliminar e abertura do processo; 2ª – Arquivamento ou instrução técnica; 3ª –

Parecer final e apreciação do Conselho Consultivo e 4ª – Registro. Os processos

apresentados neste trabalho se encerram na etapa de arquivamento ou elaboração do

dossiê, não havendo nenhum pedido de registro reconhecido ou apreciado até a etapa

final. E por fim, apresentaremos como o tema do patrimônio aparece entre os

historiadores, tanto no âmbito de atuação no Iphan quanto na Academia.

O segundo capítulo - “Critérios e Prioridades para a Confirmação do Registro:

Análise dos Pedidos de Celebrações e Formas de Expressão -, discorre, inicialmente,

sobre quais os parâmetros definidos para o registro do bem cultural e como se realizou

esse debate internamente no órgão de preservação. A segunda parte desse capítulo,

apresenta os processos encaminhados para inscrição no Livro de Celebrações e Formas

de Expressão que receberam pareceres negativos do Iphan, sendo eles: Tooro Nagashi -

Processo nº 01450.014349-2009-59; Tradições da Colônia Alemã – Processo nº

01450.007061/2010-42; Tiro do laço – Processo nº 01450.013532/201051; Clube do

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Tiro – Processo nº 01450.016012/2009-67 e Talian – Processo nº 01450.001255/2004 -

96.

O terceiro capítulo - Lugares e Saberes: Limites e Disputas entre o Antigo e o

Moderno na Política de Patrimônio Imaterial” -, dá sequência à análise dos processos

indeferidos nas categorias de Lugar e Saberes. São eles:Centro Universitário Maria

Antônia – Processo nº 01450.001580/2005-30; Box 32 no Mercado Público de

Florianópolis – Processo nº 01450.005626/2011-38; Festival do Japão – Processo nº

01450.015315/2005-39 – Festival do Japão; Sanduíche de Bauru – Processo nº

01450.008690/2004-41 e Modos de Fazer Polenta dos Descendentes de Imigrantes

Italianos - Processo nº 01450.016011/2009-12. O não reconhecimento desses pedidos

legitima a política de patrimônio imaterial defendida pelo Iphan e revela a compreensão

sobre o patrimônio cultural, expressa pelos preponentes do pedido (sociedade civil),

como um campo de interesses múltiplos e sem entendimento harmônico com os órgãos

de preservação.

O capítulo é finalizado apresentando a discussão geopolítica do patrimônio

cultural com o intuito de relacionar os territórios de registro do patrimônio imaterial

tanto local (Iphan) quanto global (UNESCO) como validações do discurso de

preservação da diversidade cultural, cultura popular e tradicional no mundo; e, por fim,

contextualiza o registro do patrimônio imaterial associado aos direitos culturais e acesso

à cidadania de grupos minoritários.

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CAPÍTULO 1

A instauração da política de patrimônio imaterial no Iphan

Para se compreender a instauração da política de patrimônio imaterial no Brasil, farei

algumas considerações sobre a contribuição da antropologia na constituição dos

parâmetros que definem a noção de patrimônio imaterial. O debate sobre o conceito de

cultura, sobretudo, repercutiu em várias esferas disciplinares, como a própria história

(CUCHE, 2003). Assim, neste capítulo, discutirei como a antropologia possibilitou o

alargamento do conceito de cultura, e paralelamente, influenciou na abertura do

conceito de patrimônio. Essa ampliação resultou na adoção da modalidade patrimônio

imaterial no Iphan, ultrapassando os limites que determinavam ser, o patrimônio

material e arquitetônico, alvos convencionais de proteção. (FONSECA, 2005)

Por outro lado, é necessário analisar a trajetória da política de patrimônio imaterial

brasileira e suas interfaces com o cenário político interno e externo. A redemocratização

no Brasil reverberou em avanços para conquista de direitos sociais e acesso à cidadania

de grupos “marginalizados”. Externamente, houve aproximações com as questões

colocadas pela UNESCO diante de um cenário que redefiniu estratégias políticas,

econômicas e sociais no mundo pós-Segunda Guerra Mundial (EVANGELISTA, 2001).

Assim, procuro apontar neste capítulo questões que estão no em torno do debate sobre a

cultura e suas interfaces com as trajetórias de constituição das políticas voltadas para o

patrimônio imaterial, buscando compreender, entre outras questões, as razões das

negativas para os processos que serão analisados no segundo e terceiro capítulos.

Apresento também, neste capítulo, o rito que rege a análise dos processos no

Iphan. Serão analisadas todas as etapas de apreciação do pedido de registro. A

compreensão de como se dá o rito demonstra como foram elaboradas as burocracias

para análise das solicitações encaminhadas ao Departamento de Patrimônio Imaterial.

Por fim, destaco a atuação do historiador do patrimônio dentro do Instituto e na

academia.

1.1 A antropologia cultural, história cultural e patrimônio cultural

A ampliação do conceito de cultura, a partir do século XX, serviu como esteio para

instauração de políticas de preservação da diversidade cultural de origem imaterial. A

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Antropologia surge na primeira metade do século XIX e tem como referência os estudos

de Jean-Baptiste Lamarck (1774 - 1829) que investiga o comportamento humano a

partir da evolução biológica, adotando o que se convencionou chamar de Antropologia

Física (MOURA, 2004). A obra de Charles Darwin (1809-1882), A Origem das

Espécies, publicada em 1859, determina forte influência sobre a Antropologia Física e

reforça o determinismo biológico nos estudos sociais.

À época, a cultura europeia era vista como modelo, subjugando os povos como

inferiores. Em uma perspectiva que considerava a raça branca europeia no patamar

máximo de evolução, a miscigenação passou a ser vista como um fator negativo, pois

retirava a “pureza racial” de povos mais avançados no processo biológico/cultural.

Franz Boas (1858-1942) inaugura o método etnográfico, agregando a importância da

dimensão histórica dos fenômenos culturais; inicia o estudo antropológico de culturas

“primitivas” contestando o conceito de raça oriundo do século XIX. Para Boas, são as

diferenças culturais que determinam as relações sociais em detrimento das diferenças

biológicas. Parte da premissa na qual as culturas possuem suas particularidades e são

sistemas autônomos e complexos a serem analisados. (CUCHE, 2003, p. 41)

A antropologia cultural ganha espaço e desenvolvimento nos Estados Unidos, a

partir da segunda metade do século XX, por conta da ação de uma nova geração de

antropólogos influenciados pelas ideias de Franz Boas, dentre eles Alfred Kroeber

(1876-1960); Robert Lowie (1883-1957); Ruth Benedict (1887-1948), Margatet Mead

(1901-1978). Segundo LARAIA (2001), a perspectiva antropológica, que considera

cultura um sistema simbólico, foi adotada de forma significativa, traçando o

entendimento contemporâneo de cultura.

Boas destaca-se como um dos principais nomes da antropologia estadunidense; com

ele inaugura-se a investigação das culturas pelo viés das trocas culturais ou pelo método

do difusionismo que estuda como se dão os elementos de apropriação/reelaboração dos

traços culturais entre os povos. A cultura é vista de forma não homogênea, se

construindo a partir do contato com outrem, inexistindo assim, uma cultura una e pura.

A antropologia cultural tem por foco o estudo das diferenças culturais entre os

grupos sociais, opondo-se aos pesquisadores que tinham a biologia como ferramenta

determinante e a utilizavam como meio de estabelecer uma hierarquização das raças,

atribuindo uma superioridade e/ou inferioridade intelectual natural (BOAS, 2005).

Esses elementos já evidenciavam uma quebra de paradigma do conceito de cultura.

Antes associada a uma concepção evolucionista e positivista passa a ser vista de forma

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pluralista, identificando, nas diferenças entre os sujeitos, características comuns,

abolindo, assim, patamares que sugerem ser a cultura um processo que percorre do

primitivo à civilização.

Esse movimento de estudo da cultura também influenciou o campo da História,

sendo a Antropologia uma contribuição decisiva. A história da cultura popular, do

cotidiano, das singularidades e práticas culturais ganha maior espaço entre os

historiadores; dentre eles, podemos destacar os trabalhos de Eric Hobsbawn, História

Social do Jazz (1989); Cristopher Hill, O Eleito de Deus (1988); Carlos Ginzburg, O

Queijo e os Vermes (1976); Robert Darnton, O Massacre de Gatos e outros Episódios

da História Cultural Francesa (1984). Outra referência importante foi a obra de E. P.

Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, publicada em 1963, em que o

autor investiga, pelo viés da cultura popular, a recepção dos sujeitos, a transformação de

trabalhadores do campo em uma classe operária urbana, ligada ao desenvolvimento do

capitalismo na Inglaterra. Nesse mesmo período, historiadores franceses como Jacques

Le Goff, se voltam à cultura popular e aos indivíduos, dando novo sentido ao campo de

produção historiográfica. (BURKE, 2005)

Entre os antropólogos que mais influenciaram os historiadores, nesse período, pode-

se destacar Claude Lévi-Strauss, com o estruturalismo, e Clifford Geertz, com a

observação dos simbolismos e a interpretação dos significados intrínsecos às práticas

culturais. (BURKE, 2005)

Esses debates e reformulações nas ciências sociais repercutiram no campo do

patrimônio já que, a partir do século XX, evidencia-se a cultura imaterial como fonte de

preservação da memória social e coletiva. Essa, ligada à valorização dos sujeitos e suas

práticas culturais, desencadeia a incorporação de novos elementos às práticas de

patrimonialização, superando a preservação tão somente material representada, até

então, pelo legado cultural arquitetônico.

Nesse sentido, o patrimônio não estaria subordinado à história da arte ou aos

especialistas, mas estaria sujeito aos símbolos e significados dados pelos indivíduos e

seriam esses atores os juízes do que é objeto de preservação ou não. (POULOT, 2009)

A ampliação do conceito de cultura trouxe a discussão sobre a pluralidade do vivido

dos grupos sociais nas décadas de 70/80. Nesse período, percebe-se no Brasil uma

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ampliação da ação pública ligada à preservação de bens culturais.3 Segundo CHUVA

(2009), no Brasil, houve uma expansão de redes institucionais de preservação,

aumentando seu foco de ação nas instâncias municipais e estaduais. Houve um

crescimento das associações de bairro, que começaram a ser consultadas por governos

locais para efetuar melhorias estruturais nos bairros, o que afirma a importância que

passa a ser direcionada à sociedade civil nas decisões do Estado.

O patrimônio ultrapassa os limites do monumental e do histórico, adentrando os

direitos de grupos sociais. Ao invés da defesa da identidade nacional comum,

reconhece-se a heterogeneidade das identidades e que seus interesses podem se

manifestar de maneira múltipla.

Assim sendo, a história de grupos étnicos “marginalizados” é visibilizada e

“começam a ser introduzidas nos patrimônios as produções dos esquecidos pela

história factual, mas que passaram a ser objeto principal de interesse da história das

mentalidades: são os camponeses, os operários, os imigrantes, as minorias étnicas,

etc.” (FONSECA, 2005, p. 69). As ações de preservação, diante disso, passam por uma

democratização do seu foco de atuação. O que antes era eleito para legitimar a ideia de

Estado- nação, que implica em reconhecer grandes feitos e monumentos da história das

elites econômicas, perpassa pelo debate de direitos culturais e direitos humanos. O

Estado, por isso, não seria o único agente passível de atribuir valor ao bem, mas a

sociedade civil é conclamada a ocupar o esse espaço no debate.

O cidadão é o indivíduo somado às inúmeras categorias que o compõem:

nacionalidade, classe, gênero, etnia, meio ambiente (FONSECA, 2005). Diante disso,

os direitos culturais advêm como um aspecto dos direitos humanos e é definido a partir

dos variados itens que o compõem. Se o patrimônio é redefinido com base nessas

discussões, ele se realiza socialmente como um direito cultural; e o que deve ser

protegido está além dos monumentos. Os patrimônios englobam, além dos edifícios e

monumentos, as crenças, dialetos, línguas, festas, etc.

3 Na França, em 1980, é criado o Conselho do Patrimônio Etnográfico como reflexo dos embates

causados pela noção de cultura baseada no conceito da antropologia. (CHUVA, 2009)

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1.2 Preservação dos patrimônios além da “pedra e cal”: a preservação do passado

em meio ao futuro incerto

A partir do final do século XVIII, a proteção ao patrimônio – fundamentalmente em

sua expressão material - esteve relacionada ao reconhecimento de monumentos

históricos e a estética arquitetônica, sobretudo na Europa; destaca-se como marco

significativo de ações legais para a preservação o período pós Revolução Francesa.

(POULOT, 2009).

A França e outras nações europeias utilizam o patrimônio como meio de assegurar a

história do passado, mas, sobretudo, afirmar a ruptura com o mesmo em prol de um

futuro em que se previa o progresso. Seria a preservação “um sentido de atividade

racionalmente dirigida para interesses presentes” (FONSECA, 2005, p. 62).

Estabeleceu-se a criação de museus, arquivos científicos, acervos, bibliotecas como um

processo pedagógico de “educação cívica”.

O Museu do Louvre, por exemplo, é criado como forma de salvar os objetos

confiscados da Coroa e da Igreja durante a Revolução Francesa, tendo como espaço o

antigo Palácio Real. Obras saqueadas da antiga Roma foram agregadas ao acervo do

museu por Napoleão, como forma de proteção da história da civilização ocidental,

atitude esta, justificada como uma forma de “democratizar o acesso a tesouros culturais

de uma civilização considerada bem comum a todos, salvando-os da destruição e

vandalismo”. (CHUVA, 2009, p. 49)

Com a Revolução Industrial, a noção de monumento histórico é (re)significada.

Entendia-se que era preciso preservar as marcas do passado para que a máquina

tecnológica do progresso não as aniquilasse. Edifícios antigos passam a ser tratados

como objetos museológicos; como uma forma de eternizar os laços com o passado e

resistir à nova civilização industrial.

Contudo, é no período pós-Segunda Guerra que percebe-se a relação entre

preservação do patrimônio e manutenção de uma herança cultural ameaçada mais

fortemente entrelaçados. (POULOT, 2009). A Segunda Guerra ocasionou uma corrida

pelo salvamento dos símbolos nacionais destruídos em alguns países europeus, porém

diferentemente da Revolução Francesa, traz um novo elemento: o perigo do

aniquilamento étnico.

Preservar o patrimônio nacional se tornou sinônimo de preservação da identidade

dos povos. A xenofobia e ódio às minorias étnicas propagadas pelo nazismo e fascismo

propiciaram novos esforços e uma nova configuração de anseio pela proteção dos bens

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culturais que representavam esses grupos minoritários. O futuro não era mais um

caminho de progresso como acreditavam os positivistas, ele se mostrava incerto e,

talvez, inexistente.

Paralelamente, o cenário geopolítico imposto pelo fim da Segunda Guerra Mundial,

coloca em evidência a discussão sobre alteridade/identidade, já que nesse período,

afloraram novos laços de pertencimento a novos territórios. Nota-se, ainda, a criação de

organismos transnacionais com atuação em nível mundial como forma de gerir o

contingente de milhões de pessoas no período pós-guerra (1947-80), reorganizando a

divisão internacional do trabalho, tais como a UNRRA, (United Nations Relief and

Rehabilitation Administration), IRO, (International Refugees Organization) e CIME,

(Comitê Intergovernamental para as Migrações Europeias) na Europa e Nippon Kaigai

Ijuu Renkagai e a JAMIC, (Japanese Migration and Colonization), no Japão.

Esses órgãos eram responsáveis por realocar milhões de camponeses e

refugiados de guerra, principalmente no que tange às questões étnicas e religiosas, além

de trabalhadores urbanos, ligados às indústrias. (PAIVA; SAKURAI, 2004). A criação

desses órgãos gestores demonstra a importância da realocação desses indivíduos,

tamanha a reestruturação demográfica/ social e econômica que emergia no pós-guerra.

Essa nova configuração mundial vem à tona mediante tensões e guerras em vários

locais do globo. Várias organizações foram fundadas com o intuito do diálogo e de

promoção da paz e cooperação fraternal entre as nações, como a ONU (Organização das

Nações Unidas) em 1945, e o órgão de maior relevância para esta pesquisa:

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO,

que trataremos adiante.

O período pós-Segunda Guerra criou um ambiente marcado não só pela abertura

da discussão sobre preservação do patrimônio cultural, mas também da luta pela

preservação das nossas próprias memórias no tempo presente. (HALL, 2005). Somos

corroídos pelo medo do esvaziamento cultural das nossas identidades e isso significa o

nosso próprio esvaziamento e aniquilamento. Esse sentimento de perda identitária, traz

consigo ações diversas da sociedade civil, sobretudo, em comunidades tradicionais que

se veem mais fragilizadas no processo de globalização e mercantilização cultural. Não

observam esse fenômeno de forma passiva, mas promovem recursos de resistência aos

seus feitos, tornando os órgãos de preservação um instrumento de uso.

Na contemporaneidade, outra questão informa a corrida pela preservação do

passado: o mercado econômico impulsionado pelos órgãos dos patrimônios. A ação

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desses órgãos serve como frente de expansão às grandes corporações. Os tipos de

patrimônios exigem o seu nicho mercadológico específico, isso significa lucros a

empresas de restauração de obras de arte, arquitetura, documentos, mercado turístico,

empreiteiras, eventos culturais, etc. (POULOT, 2009). O patrimônio não está imune aos

interesses do mercado, mas se sustenta deste mecanismo para sua própria sobrevivência.

A ideia de desenvolvimento sustentável e economia local são critérios de incentivo aos

bens reconhecidos como patrimônio nacional, ainda que, por vezes, essa relação seja

conflituosa, como em casos de reservas indígenas e quilombos.

O turismo como mecanismo de desenvolvimento econômico e fundo de recursos

para as políticas de preservação é um argumento defendido pela UNESCO desde o fim

da década de 60. No Brasil, em meio à degradação de conjuntos urbanos de cidades

históricas, o turismo cultural pareceu como melhor alternativa aos profissionais da área

para garantir recursos públicos que viabilizassem a conservação e restauro desses bens

culturais, (AGUIAR, 2008, p. 75)

LEITE (2001) ao estudar o Recife Antigo traz o debate de como os

tombamentos e a intervenção do estado nos espaços patrimonializados alteram o

cotidiano dos sujeitos e, ainda, como colabora para a gentrificação e “higienização”

social. O patrimônio, que tem como premissa o sentimento de pertencimento e

reconhecimento por parte da sociedade, se realiza e viabiliza tendo como base o

mercado turístico, beneficiando os comerciantes que, muitas vezes, não se identificam

afetivamente com o lugar preservado e estão vinculados àquele espaço por interesses

mercadológicos. Os moradores e mais pobres, são expulsos desses locais, tanto pela

valorização imobiliária quanto, em muitos casos, pela expropriação após o tombamento.

O patrimônio material é movido também pelo seu poder turístico e pelos interesses

econômicos que um tombamento pode proporcionar; já o patrimônio imaterial também

sofre com os interesses mercadológicos. Com a ausência de uma educação para o

patrimônio (CIAMPI, 2015), o fortalecimento da proposta de preservação identitária,

pode vir a se tornar uma manifestação espetacularizada, folclorizada e esvaziada do seu

valor simbólico.

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1.3 O intangível na cultura material/imaterial: faces de um mesmo processo

A simbologia intrínseca aos artefatos tem sido pesquisada, sobretudo na

antropologia, como meio de compreensão das culturas. Ao longo da história desta

disciplina, o estudo da cultura material teve sua abordagem reelaborada. Inicialmente,

alguns estudiosos buscaram compreender como os objetos, por exemplo, se tornaram

ferramentas de transmissão cultural e, posteriormente, como os mesmos, inseridos em

um sistema de representações coletivas, possibilitam a construção, afirmação de

identidades e (re)significação das culturas (GONÇALVES, 2007). Nessa perspectiva, o

universo intangível se faz presente e depende da materialidade para se realizar.

(MENESES, 2009). Ou seja, as modalidades - material e imaterial - são inexistentes na

prática.

MALINOWSKI (1976), ao estudar o Kula (sistema de trocas entre tribos nas Ilhas

Trobriand), se apropria de toda complexa teia simbólica que o compõe através da

permuta entre braceletes (mwali) e colares (soulava). O Kula pode ser compreendido

como uma espécie de comércio, contudo, o seu valor de troca está ligado ao universo

místico. Os objetos devem ser trocados de tempos em tempos de modo nunca pertencer

a um indivíduo. Eles fazem parte do sistema cosmológico em que essas tribos estão

inseridas e não ao sentimento de propriedade sobre tais objetos.

Como observa o autor, “possuir é dar”. As trocas ocorrem de forma ritualística,

acreditando-se que a magia é parte integrante desses objetos. Receber um presente e

doar ao outro um contra-presente, significa também, dar e receber a magia.

(MALINOWISKI, 1976). MAUSS, (2003) identificou o sistema da obrigação de trocas

de presentes entre várias sociedades arcaicas e a esse fenômeno comum denominou

“sistema de dádivas”. Segundo a concepção maori, por exemplo, os artefatos materiais

(taonga) doados e recebidos em um sistema de trocas possuem valor apenas pelo seu

espírito (hau). A troca de presentes predispõe a dissipação desse espírito; ela cumpre-se

no plano espiritual e se materializa através dos objetos. Por isso, não há a necessidade

de posse, pois a virtude que contempla as trocas está no plano imaterial.

STRAUSS (2008), ao analisar a cura xamânica, expõe uma prática dos índios Cuna

que utilizam o canto do xamã como método de ajuda nos partos difíceis. Além do canto,

o xamã utiliza madeira para esculpir imagens dos espíritos protetores que, no ritual

mágico, teriam a função de ser seus auxiliares. O parto em condições adversas ocorreria

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por conta de Muu (espírito responsável pela formação dos fetos) ter se apossado da

alma (purba) da mãe. O xamã tem a missão de ir à morada de Muu e libertar a alma da

mãe. O canto estabelece, nesse contexto, o ato essencial para a realização da cura e,

apesar de estar no plano imaterial, apenas se efetiva ao servir-se do corpo do xamã,

assim como, apenas através da madeira os espíritos protetores manifestam-se.

GEERTZ (2008) compreende serem as culturas um aglomerado de “teias de

significados”. A cultura seria por isso uma gama de fontes simbólicas em que o homem,

atribuindo significados ao mundo concreto, cria toda a sua rede de sociabilidade,

compreensão de si, do outro e da comunidade a qual pertence. A religião apenas pode

ser apreendida entre seus crentes pela via dos símbolos sagrados, como “uma cruz, um

crescente ou uma serpente de plumas” (GEERTZ, 2008, p. 93). Os objetos, assim,

apesar de não serem considerados pelo autor a única forma de representação de signos,

são importantes em um sistema religioso. Como exemplo, cita o ritual javanês chamado

wajang (sombras). O ritual consiste em um espetáculo de marionetes em que os

bonecos são reproduzidos em formas de grandes sombras. Seria uma dramatização da

mitologia religiosa javanesa em que os bonecos, o manuseador, a posição da plateia,

etc., remete à cosmovisão javanesa durante o espetáculo.4

Os limites do que seria o objeto, o indivíduo e os deuses, por muitas vezes,

confundem-se. SANSI (2013), no seu estudo sobre as otãs (pedra sagrada do

candomblé), demonstra como o orixá representado pela pedra e o próprio devoto, no

caso filhos e mães de santo, se tornam extensões um do outro. A pedra é o próprio orixá

encarnado e os seus devotos têm a obrigação de zelar pela otã, assegurando que ela

permaneça no seu assento sagrado. BITTER (2013), ao examinar a bandeira e as

máscaras utilizadas na Folia de Reis, demonstra como esses objetos são suportes

materiais que permitem todo o processo ritual. A figura dos três Reis Magos, máscara

do palhaço, o apito do mestre, o canto, a bandeira, e até mesmo a casa que acolhe a

folia, fazem mediações importantes, permitindo, simultaneamente, uma ligação entre o

mundo espiritual e o mundo material.

O pedido de reconhecimento encaminhado ao Iphan sobre o Ofício das Baianas

de Acarajé teve um de seus fundamentos amparado no legado africano em nosso país. O

acarajé foi registrado com base nas referências simbólicas do candomblé, desde o modo

de fazer a comida que deve ser preparada de forma ritualizada, com reverência aos

4 O Wajang foi considerado patrimônio imaterial da humanidade, reconhecido pela UNESCO em 2003.

Cf. <http://www.unesco.org/culture/ich/en/RL/wayang-puppettheatre-00063>.

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orixás (IPHAN, 2011). O próprio traje da baiana remete à estética trazida pelos escravos

africanos; ele tem significado ritualístico nas cerimônias. (IPHAN, 2005)

O samba do Recôncavo Baiano possui os instrumentos como pandeiro, prato e

faca e a viola como objetos de realização, além dos tocadores e do próprio corpo dos

dançantes. Realizado desde o século XVII, o samba de roda confunde-se com a história

dos negros no Brasil (IPHAN, 2004). A pintura corporal Wajãpi tem a arte como uma

função ritualística e simbólica. Os traços, as cores, remetem à simbologia mitológica

Wajãpi e ao seu universo sagrado (IPHAN, 2002). Ou seja, o patrimônio imaterial se

constitui a partir de um plano material.

O jongo também tem no corpo e no tambor os vetores materiais que possibilitam

a sua manifestação (IPHAN, 2005). Não existiriam aspectos intangíveis se não

houvesse a materialidade como intermédio de realização. Da mesma forma, o

patrimônio material está “carregado” de simbologias e significados, e remete ao

intangível para ser compreendido. O uso dessa dicotomia material/imaterial é plausível

apenas quando se focaliza a cultura sob definição antropológica, onde o simbolismo e as

relações sociais são os objetos principais e para justificar uma oposição à visão clássica

de patrimônio que consagrou os monumentos históricos (pedra e cal) (FONSECA,

2009, p. 70). Entretanto, na sua prática, ela não se realiza como campos independentes.

Segundo GONÇALVES (2007), quando a categoria intangível é utilizada como

principal referência dentro do vasto campo do patrimônio cultural, os aspectos da vida

social e cultural são mais importantes do que a relevância estética, histórica ou

arquitetônica.

1.4 Redemocratização no Brasil: direito à cidadania e à preservação dos

patrimônios

O contexto político no Brasil, nos anos 70/80, fomentou o processo de

redemocratização que contribuiu para a ampliação dos direitos sociais e acesso à

cidadania. Nesse período de transição entre o governo autoritário e a democracia, a

sociedade civil emerge como agente importante para consolidação de novas políticas

públicas.

A Constituinte de 1987/88 foi um marco para o novo modelo de democratização

no Brasil. Sobre ela, recaíram esperanças dos que viam a possibilidade de ampliar

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direitos de grupos sociais excluídos e maior participação nas decisões políticas do país.

Apesar de conquistas importantes, a abertura política se deu de forma conservadora,

dando sequência à garantia dos privilégios da elite brasileira, não havendo assim, uma

ruptura e grandes reformas no mecanismo político. Os movimentos sociais e partidos de

esquerda pressionaram os parlamentares para que houvesse avanços nos direitos da

classe trabalhadora, avanços esses conquistados em meio a conflitos e tensões.

(RODRIGUES, 1999)

Nos anos 80, países da América Latina e Leste Europeu passaram por processos

de redemocratização. O combate a governos totalitários ganhou força no mundo. A ideia

de revolução perde espaço nas linhas de ações das esquerdas, sem que os discursos

contra as injustiças sociais fossem abandonados. Segundo RODRIGUES (1999), temas

como a questão nuclear, ecologia, intervenções militares e econômicas em países do

Terceiro Mundo e direitos das minorias raciais e sexuais, ganham espaço para debate.

O conceito de cidadania é transformado de acordo com o contexto histórico. Em

países como o Brasil de discrepância econômica e social, amparadas na questão de

classe e raça, o conceito de cidadania está associado ao acesso a direitos sociais de

grupos excluídos, sendo o alcance da democracia plena, a partir da distribuição de

renda, o acesso à cidadania, aos direitos sociais, de forma inclusiva e participativa

desses grupos. Conforme DAGNINO (1994), até o conceito de direito é reformulado a

partir dos anos 90, a “nova cidadania” busca garantir o “direito a ter direitos”.

Esse novo cenário político exigia que os cidadãos fossem atores sociais na

concretização da democracia no país. Ao contrário da concepção liberal de cidadania,

que visa uma integração social e determina políticas progressistas para afirmação do

capitalismo, essa “nova cidadania” colocou os sujeitos considerados, até então, como

“não- cidadãos”, como protagonistas na decisão do que seria ou não os direitos a serem

por eles conquistados (DAGNINO, 1994). A agência desse cidadão é que determina os

rumos dessa cidadania e define o que é o sistema político democrático de forma

participativa, ao menos em tese.

Como exemplo, a Constituição de 1988 defende que os povos indígenas tenham

direito à terra (moradia, produção e preservação do meio ambiente em que vivem), aos

seus costumes, organização social, língua, religião, etc., sem que isso impeça o seu

reconhecimento como cidadãos brasileiros (D’INCAO, 2001). Essa iniciativa tardia

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demarcou uma ruptura política que perdurou por séculos e que compactua com a

negligência aos direitos dos povos indígenas no Brasil.

Os artigos n. 215 e 216 da Constituição de 1988 expressam “a necessidade de se

elaborar outras formas de acautelamento e de preservação, além do tombamento, para as

formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver” (IPHAN, 2000). Ou seja, essa

ampliação de percepção dos direitos sociais impactou igualmente, sobre a preservação

dos patrimônios, onde se previu a necessidade de criar, posteriormente, políticas de

preservação voltadas para além do patrimônio arquitetônico.

Nos anos 60, houve a primeira aproximação entre o Iphan (em tempo com a

denominação DPHAN – Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e a

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO.

Essa aproximação propiciou, na década de 70, reuniões com representantes da

UNESCO no Brasil, objetivando modernizar o órgão e alinhar o seu discurso às ações

de preservação no mundo. Foram dois encontros com governadores de todo o país,

realizados em Brasília e em Salvador. A partir disso, passou a se consolidar ações no

Iphan, que visavam a políticas patrimoniais, que agem tanto em termos econômicos

quanto em sociais.

Como resultado, a criação do Programa de Cidades Históricas – PCH, criado em

1973, teve como foco, a preservação dos bens patrimoniais em cidades carentes.

Adiante, a criação, em 1975, do Centro Nacional de Referências Culturais – CNRC

iniciou a discussão sobre a ampliação do conceito de patrimônio e, de forma mais

crítica, como aproximá-lo dos atores sociais excluídos das políticas culturais (indígenas,

negros, populações rurais e da periferia urbana) às decisões acerca dos bens

patrimonializados. (FONSECA, 1996, p. 156)

O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, em suas

primeiras décadas de existência, sob o comando de Rodrigo Melo Franco Andrade,

mapeou um passado nacional, com destaque à arquitetura colonial européia, repleto de

bens que remetem a personagens e eventos ilustres, imóveis religiosos católicos,

construindo a imagem de um país sem conflitos e contrastes (RUBINO, 1996). O

SPHAN desempenhou um papel importante de restaurar, preservar e conservar bens

culturais de valor histórico importantes. Entretanto, consagrou uma via do patrimônio,

que afirmava a presença do Estado, das instituições e classes dominantes.

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A partir da década de 80, notadamente, há um aumento de pedidos de

tombamento ao SPHAN, que partem de organismos externos ao órgão e se distanciam

de bens culturais habitualmente reconhecidos (palácios, igrejas, mansões, monumentos)

para bens culturais ligados à modernidade (fábricas, vila operária, mercados, estações

ferroviárias, escolas, faculdades, etc.), ao patrimônio natural (tombamento dos morros

do Rio de Janeiro – Corcovado, Pão de Açúcar, Urca, Morro da Babilônia, Gávea,

Dois Irmãos e Cara de Cão, em 1973 – tombamento da figueira da rua Faro, situada nas

imediações do Jardim Botânico, em 1980) e ao patrimônios “não consagrados”

(Terreiro Casa Branca, Serra da Barriga, em União dos Palmares, ambos em 1982).

Estes últimos foram os primeiros bens tombados de cultura afro-brasileira e que

despertaram grande polêmica. O tombamento foi legitimado com base no valor

histórico, simbólico e político dos bens e pela luta dos movimentos negros, intelectuais

e políticos. (LONDRES, 1996, p.160)

Na história, percebe-se que o debate sobre a memória individual e a micro-

história tornou-se fontes de pesquisa - a tradição oral e a ação dos sujeitos de classes

populares -, ampliando a discussão historiográfica com “histórias plurais”. Esse enfoque

relaciona-se com a própria noção de cidadania e obtenção de direitos sociais,

emergentes nas décadas de 70/80. A memória se torna um direito dos sujeitos, e ao

historiador não cabe um fazer profissional interpretativo e informativo da história, mas

o desloca para uma “condição dialógica” com o outro (PAOLI, 1996). A cultura popular

e seus atores sociais trazem um novo dinamismo à interpretação da história social e

política, já que as instituições passam a ser compreendidas a partir desses sujeitos e as

relações por eles estabelecidas com o Estado/instituições, relações que se mostram

de forma dialética e direcionadas por negociações ora harmônicas, ora conflituosas. A

produção histórica com enfoque na cidadania atribui importância aos saberes coletivos e

plurais insere os indivíduos na construção do passado sem atar os laços com o presente.

Segundo PAOLI (1992 apud BENJAMIN, 1987), compreender a história, a memória e o

patrimônio na dimensão da cidadania e conquista de direitos sociais e culturais, implica

no não silenciamento de outras narrativas, antes excluídas pela “história oficial” que

considera apenas os documentos e monumentos ligados aos grupos tidos como

“vencedores”. O patrimônio histórico, que considera apenas os testemunhos e a “história

oficial”, exclui os sujeitos que tiveram suas narrativas, memórias e historias

invisibilizadas.

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DECCA (1992) observa que a memória e a história possuem dimensões

contrárias. Enquanto a história, na contemporaneidade, se situa no tempo acelerado, de

mudanças e transformações, a memória coletiva busca no passado continuidade e

permanência, está atrelada aos vividos de grupos sociais que reforçam suas identidades.

Há, por isso, uma tensão permanente e paradoxal entre a história e a memória, pois o

processo de ruptura com o passado, engendrados pela história, impossibilita o resgate

das referências coletivas do passado e desconstrói identidades. A conexão entre essas

duas dimensões (memória e história) coloca os sujeitos como agentes da sua própria

história, já que cabe a cada grupo social a redefinição da sua identidade, retirando a

responsabilidade exclusiva da escrita do passado do historiador, “o dever da memória

faz cada um historiador de si”. (DECCA, 1992, p. 133)

A memória histórica, até meados do século XX, foi produzida como afirmação

do Estado Nacional e como ferramenta de legitimação de uma identidade nacional

unificada, com coesão política, étnica e social. Atualmente, a memória histórica está

associada ao acesso à cidadania. Esse deslocamento, além de dar visibilidade às

minorias que foram esquecidas pela “história oficial”, criou também conflitos e disputa

de poder entre os grupos étnicos e sociais, pois o olhar sobre o mesmo passado elabora

memórias coletivas múltiplas. Nessa nova lógica de operação, o Estado desempenha a

função de oferecer o “serviço público aos cidadãos”, atendendo políticas culturais em

conformidade com as demandas dos sujeitos históricos, garante o exercício da cidadania

cultural e adota a cultura como um direito do cidadão. (CHAUÍ, 1992, p. 43)

1.5 Política de patrimônio imaterial: uma breve trajetória brasileira

No Brasil, a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –

SPHAN, em 1937, surge como resultado da iniciativa de alguns intelectuais, como

Mário de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Oswald de Andrade. Eles já

haviam manifestado interesse na criação de um órgão protetor dos bens culturais

brasileiros inspirados em movimentos de proteção ao patrimônio que ocorriam na

Europa - em grande parte, eram integrantes do movimento modernista no Brasil

(CHUVA, 2009, p. 54). O então Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em

1936, convidou para liderar e elaborar o anteprojeto de lei, o chefe do Departamento de

Cultura da Prefeitura de São Paulo, Mário de Andrade.

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O anteprojeto previa a proteção aos bens culturais centrado em um órgão que

protegesse uma amplitude de bens (monumentos, museus, obras de arte, cultura popular,

etc.), além de defender uma concepção integrada de patrimônio (ANDRADE, 1981).

Após ser reformulado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, o anteprojeto transformou-

se no Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que funda o SPHAN (FONSECA,

2003, p. 97). O Decreto-Lei considerou parte das recomendações de Mário de Andrade

e institucionalizou meios de proteção ao patrimônio material de bens móveis e imóveis

que deveriam ser inscritos em um dos quatro livros do tombo definidos: Livro do

Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Livro do Tombo Histórico, Livro do

Tombo das Belas-Artes, Livro do Tombo das Artes Aplicadas. Desde a sua instauração,

as ações de proteção legal incidiram sobre os bens materiais arquitetônicos brasileiros

que possuíssem originalidade e a ancianidade. Dessa maneira, a proteção ao patrimônio

foi majoritariamente focada em remanescentes arquitetônicos do legado colonial

brasileiro.

No ano de 1946, o SPHAN tornou-se a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional – DPHAN, subordinado ao Ministério da Educação e Saúde - MES, e

posteriormente, ao Ministério da Educação e Cultura – MEC. Em 1970, com a

reestruturação do Ministério da Educação e Cultura, foi criado o Departamento e

Assuntos Culturais – DAC, ao qual todas as instituições culturais ficaram submetidas.

Assim, o antigo DPHAN foi alterado para Iphan - Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional. Em 1979, houve a fusão entre Iphan/CNRC e Programa de

Reconstrução de Cidades Históricas - PCH, alterando a denominação para Secretaria do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN. Em 1994, após a crise da década

de 90 e dissolução do Ministério da Cultura, criado em 1985, a SPHAN foi

transformada no Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC). Diante de várias

manifestações contrárias ao nome IBPC, a Instituição voltou a ter a denominação Iphan

no mesmo ano, se mantendo com o mesmo nome e como autarquia do Ministério da

Cultura/MinC, atualmente. (FONSECA, 2000)

Institucionalmente, antecedem a discussão sobre cultura tradicional e manifestações

culturais a Comissão Nacional de Folclore, criada em 1947, ligada ao Instituto

Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura - IBECC. Esse propiciou a Campanha de

Defesa do Folclore Brasileiro – CDFB, ligado ao Ministério de Educação e Cultura, em

1958. No ano de 1980, incorporada à Fundação Nacional de Artes -Funarte se

transforma em Instituto Nacional do Folclore. A partir dos anos 90, resulta no Centro

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Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP, subjugando suas atividades ao Iphan,

desde o ano de 2003. (IPHAN, 2000, p. 113)

O Centro Nacional de Referências Culturais - CNRC, criado em 1975 por Aloísio

Magalhães, colaborou de forma importante para a ampliação do conceito de patrimônio

no país. Influenciados pelos debates sobre a ampliação da concepção de cultura

defendidos nas Ciências Sociais, como já mencionados anteriormente, nas décadas de

70/80, os membros do CNRC questionaram a preservação tão somente dos bens de

caráter material, utilizando-se para isso de uma proposta metodológica que propunha

uma nova visão sobre patrimônio cultural.

Entre essas mudanças a expressão noção de referência cultural passou a integrar

o vocabulário das políticas públicas de preservação (IPHAN, 2000, p. 86). Ela

estabelece que o bem cultural seja analisado a partir de uma visão holística,

considerando assim, todos os possíveis significados e simbolismos para diferentes

sujeitos sociais. A noção de referência cultural, posteriormente, se tornaria o alicerce

para a institucionalização da política de patrimônio imaterial no Brasil e chave para a

construção do método de pesquisa e levantamento de bens culturais imateriais.

A incorporação do CNRC ao Iphan atribuiu novos significados ao mecanismo de

reconhecimento do patrimônio cultural; são realizados os primeiros tombamentos que

rememoram a cultura afro, como o Terreiro da Casa Branca, no ano de 1984. Contudo,

o instrumento de tombamento não atendia às novas demandas que se mostravam

presentes a partir da ampliação crescente do conceito de patrimônio, como o caso da

Fábrica de Vinho de Caju Tito e Silva, na Paraíba. A fábrica foi tombada em 1996 por

conta do modo de produção artesanal da fabricação de vinho. Ocorre que, com o passar

dos anos, o modo de produção declinou por falta de demanda, demonstrando a

incompatibilidade do tombamento. (TOJI, 2009)

Apesar da expectativa de proteção ao patrimônio defendida por Mário de Andrade

em seu anteprojeto, a política de preservação da cultura imaterial foi foco de ação

política, e instituída em concretude apenas em 2000, com a aprovação do Decreto n.º

3.551, de 2000.5 Anteriormente, houve menção ao patrimônio imaterial inscrita nos

artigos nº 215 e 216 e na Constituição de 1988.

No ano de 1997, o Iphan realizou na cidade de Fortaleza, em comemoração aos

seus 60 anos de existência, um seminário internacional sobre planos de ações voltados a

5 Anexo IV, p.174.

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preservação do patrimônio imaterial. Nesse seminário foram apresentadas experiências

brasileiras e internacionais. O mesmo originou a Carta de Fortaleza6 que se trata do

documento que reuniu sugestões de aprofundamento sobre o conceito de patrimônio

imaterial, além de recomendações e propostas para criação de instrumentos legais e

medidas administrativas com objetivo de colaborar para a proteção do patrimônio

intangível. Uma das pautas de recomendação foi a criação de comissão e grupo de

trabalho para estudo das questões relacionadas a viabilização legal de proteção ao

patrimônio imaterial.

Que seja criado um grupo de trabalho no Ministério da Cultura, sob a

coordenação do IPHAN, com a participação de suas entidades vinculadas e

de eventuais colaboradores externos, com o objetivo de desenvolver os

estudos necessários para propor a edição de instrumento legal, dispondo

sobre a criação do instituto jurídico denominado registro, voltado

especificamente para a preservação dos bens culturais de natureza imaterial;

e que o grupo de trabalho estabeleça as necessárias interfaces para que sejam

estudadas medidas voltadas para a promoção e o fomento dessas

manifestações culturais, entendidas como iniciativas complementares

indispensáveis à proteção legal propiciada pelo instituto do registro. Essas

medidas serão formuladas tendo em vista as especificidades das diferentes

manifestações culturais, e com a participação de outros agentes do poder

público e da sociedade

Carta de Fortaleza, de 14 de novembro de 1997. (IPHAN, 2000, p. 47)

Atendendo a essa recomendação o Ministro da Cultura, Francisco Weffort,

instituiu uma Comissão (Portaria nº 229, de julho de 1998) com objetivo de elaborar a

regulamentação de lei que previa a proteção aos bens imateriais. A Comissão foi

composta por Joaquim de Arruda Falcão Neto, advogado; Marcos Vilaça, advogado, e

Thomas Farkas, fotógrafo, membros do Conselho Consultivo do Iphan, e por Eduardo

Mattos Portela, presidente da Biblioteca Nacional. Simultaneamente à Comissão, foi

criado o Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial - GTPI7 composto por técnicos do

6 Anexo III, p.170. 7Marcia Sant’Anna: coordenadora (arquiteta); Célia Corsino, museóloga; Ana Claudia Lima e Alves,

historiadora; Ana Gita de Oliveira, antropóloga; Ana Maria Roland, socióloga e Sidney Fernandes Sollis,

filósofo, do Iphan; Maria Cecília Londres Fonseca, socióloga, da Secretaria de Patrimônio, Museus e

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Iphan, Funarte e do MinC, com o intuito de prestar assessoria aos membros da

Comissão. (IPHAN, 2000)

O Decreto nº 3.551 define que patrimônio imaterial refere-se ao conjunto de

práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, tendo ainda por fio

condutor o conceito de referências culturais, “são os ofícios e saberes artesanais, as

maneiras de pescar, caçar, plantar, cultivar e colher, de utilizar plantas como alimentos

e remédios, de construir moradias, dançar e as músicas, os modos de vestir e falar, os

rituais, as festas religiosas e populares, as relações sociais e familiares que revelam os

múltiplos aspectos da cultura cotidiana de uma comunidade”. (IPHAN, 2000, p. 20)

O Decreto ainda instituiu, para a inscrição dos bens culturais, quatro livros de

registro:

a) Saberes: conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das

comunidades;

b) Formas de Expressão: manifestações literárias, musicais, plásticas,

cênicas e lúdicas;

c) Celebrações: rituais e festas que marcam a vivência coletiva do

trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da

vida social;

d) Lugares: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços, onde

se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas. (art. 1º, §

1º, do Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000).

O hiato temporal, entre 1937 e 2000, não significa que as discussões e ações

públicas sobre cultura popular e patrimônio imaterial estivessem ausentes do processo

de concepção da política pública de preservação no Brasil. Tampouco, ao discorrer

sobre a instauração da política no país, cronologicamente, pretende-se afirmar que sua

concepção se deu de forma evolutiva e harmônica, como as publicações oficiais tendem

a referenciar.

O impulso para implantação da política de preservação foi determinado também por

ações externas.

Artes Plásticas, do MinC e Claudia Marcia Ferreira, museóloga do Centro Nacional de Folclore e Cultura

Popular da Funarte. (IPHAN, 2000) – Dados dos integrantes do grupo na Plataforma Lattes.

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O registro do bem cultural imaterial deve ser estimulado pela iniciativa de

organizações de movimentos populares que reclamam a legitimidade da sua

manifestação como patrimônio imaterial nacional, desconstruindo assim a ideia de que

o patrimônio é determinado por instâncias superiores, sem consulta à sociedade,

elegendo o poder público como o sujeito cultural. (IPHAN, 2006, p. 59)

Há, no reconhecimento dos bens culturais de natureza imaterial e na manutenção

desses na ambiência cultural nacional avanços, limites, disputas e (in)definições. Como

exemplo, podemos citar o caso do registro do Ofício das Baianas de Acarajé. O pedido

de registro foi conduzido pelo Centro de Folclore e Cultura Popular. A baiana deve ser

credenciada e possuir um documento institucional que a habilita para o comércio do

bem. No entanto, o neopentecostalismo vem crescendo de forma significativa,

sobretudo, entre as camadas sociais populares. Na Bahia, algumas fazedoras de acarajé

evangélicas passaram a comercializá-lo, o que desencadeou uma disputa judicial, já que

as baianas ligadas ao candomblé alegam a ilegitimidade no fazer a comida nesse grupo.

Por fim, as baianas evangélicas foram proibidas de comercializar o acarajé nas

ruas de Salvador, pois o vínculo com o universo religioso está indissociável no registro

(IPHAN, 2011, p. 35). Em meio ao cenário em que há intolerância contra religiões de

matriz africana cometida em larga escala, principalmente por adeptos do

neopentacostalismo, a decisão foi assertiva. O “Acarajé de Jesus”, como as baianas

evangélicas intitularam, nada mais é do que uma manifestação da intolerância e

perseguição incitadas pelo racismo estrutural presentes no Brasil.

Por outro lado, a trajetória da política no país dialoga com as ações internacionais

dirigidas, sobretudo pela UNESCO e está alinhada ao discurso de preservação dos bens

culturais imateriais defendidos por esse organismo. Em outros termos, a implantação da

política no país, não se refere à retomada ao anteprojeto de Mário de Andrade, mas sim,

a uma trajetória paralela aos conceitos antropológicos de cultura e embates sociais que

legitimaram a ação da UNESCO em âmbito mundial. A política de patrimônio imaterial

se instaura definitivamente, no Brasil, após uma longa trajetória em que a ideia de

diversidade, cultura e bens intangíveis estavam em formação e em debate em várias

instancias em plano mundial.

Mário de Andrade não é compreendido, nesta pesquisa, como o fundador da

política de patrimônio imaterial, mas como parte do processo que legitimou a política

em décadas posteriores. O intelectual como um dos idealizadores do SPHAN, não está à

parte de toda a discussão próprias do seu tempo. Não coincidentemente, houve uma

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aproximação do intelectual com um dos principais nomes da antropologia do século

XX, Claude Lévi-Strauss (VALENTINI, 2010). Percebemos, com isso, que quando

Mário recomenda a preservação do patrimônio imaterial e o revela como ponto

importante de proteção em seu anteprojeto, em 1936, está em completa harmonia com o

conceito de cultura antropológico e o alargamento dessa concepção, emprestado a várias

vertentes científicas da época.

Acerca desse diálogo entre Mário e a antropologia, podemos citar a criação da

Sociedade de Etnografia e Folclore, nos anos 30, com a participação direta dele. No

projeto, além de Claude Lévi-Strauss, contava com a participação de Dina Dreyfus. Os

dois estudiosos faziam parte de um intercâmbio em que ocupavam o cargo de

professores visitantes da Universidade de São Paulo. Mário presidia o Departamento de

Cultura de São Paulo, em 1935, e empenhou esforços para a criação e viabilização da

Sociedade utilizando recursos públicos.

Mário defendia a etnografia como uma forma de se aproximar do povo detentor da

cultura tradicional, e de forma mais sensibilizada catalogar e recolher a gama de

informações e objetos que possam ser utilizados para pesquisa. Via como uma ação

urgente em meio ao crescente internacionalismo e risco de desaparecimento de feitos da

cultura popular brasileira (VALENTINI, 2010, p. 50). O Departamento de Cultura

apoiou de forma conjunta a iniciativa de um curso de etnografia, ministrado por Dina

Dreyfus, que visava à profissionalização dos agentes culturais (funcionários,

professores, pesquisadores) no recolhimento de dados e pesquisa de campo junto às

comunidades tradicionais.

Essas iniciativas do Departamento de Cultura financiaram as Missões Folclóricas

(1938) que se tratava de um projeto para a catalogação de músicas tradicionais de povos

indígenas e remanescentes de matriz africana do norte e nordeste do país, e que hoje

reúne um dos mais importantes acervos fonográficos brasileiros (CARLINI, 1994).

A busca por uma nova ideia de arte perseguida pelos modernistas, o debate sobre a

brasilidade e a busca por uma “legítima” cultura e identidade nacional são inerentes à

trajetória intelectual de Mário e ao próprio Estado Novo, que almejava um modelo de

identidade nacional brasileira.8 Para esses intelectuais, o projeto de modernidade era um

retorno à tradição, em oposição ao modelo estético e imperialismo europeu. O povo do

interior paulista mineiro ou o Norte e Nordeste, onde o imperialismo cultural e o

8 Sobre a construção da identidade nacional na Era Vargas e relação com o movimento modernista, Cf.

CHUVA (2009).

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progresso ainda estavam distantes, eram locais onde se manifestava a verdadeira

identidade nacional: era a genuína cultura popular brasileira. (CHUVA, 2009, p.104)

Está em evidencia o paradoxo modernidade versus tradição de maneira

contraditória: Ser moderno não seria se aproximar do progresso e da tecnologia, ser

moderno é ser “arcaico”, é se voltar às supostas origens culturais. É a ideia de

modernidade que nega o tempo presente. A cultura universalizante também é vista em

Mário de Andrade, que defendia uma desgeografizaçãodo Brasil. Para o intelectual,

partindo da sua identidade local, seria possível se incorporar além de suas fronteiras,

integrando-se ao novo mundo, porém sem perder o seu caráter regional, “buscando

extrair do singular os elementos capazes de informar o conjunto e, dessa forma,

pertencer ao quadro internacional.” (CHUVA, 2009, p. 106)

Essas questões dão indicativos de que, tanto Mário de Andrade quanto os intelectuais

da época, que contribuíram com os primeiros anos do SPHAN, eram pensadores de seu

tempo. Os embates sobre modernidade, progresso, tradição, minorias étnicas,

universalismo se faziam presentes. Sem que se pretenda desconsiderar a importância da

recomendação de proteção ao patrimônio imaterial feita por Mário de Andrade na

fundação do Iphan, ele não se destaca (em relação à política de preservação) como um

homem à frente do seu tempo, mas como um intelectual que acompanhava os debates

filosóficos, sociais e políticos a ele contemporâneos.

A política de patrimônio imaterial se instaura definitivamente, no Brasil, após uma

longa trajetória em que a ideia de diversidade, cultura e bens intangíveis estavam em

formação e em debate no mundo. Apesar de se destacar como um doa países pioneiros a

adotar uma política cultural voltada ao patrimônio imaterial, antecedendo inclusive as

recomendações da UNESCO (2003), ele não está isolado no processo de construção e

concepção da política. Esse contexto instrumentaliza em parte a discussão sobre a

preservação do que seria o patrimônio intangível, bem como busca pontuar como se deu

a sua trajetória no Brasil e no mundo.

UNESCO: os antecedentes da política pública no Brasil

A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura) foi criada em 4 de novembro de 1946, em Paris, mediante em cenário global

em que uma nova ordem econômica estava em voga. Países imperialistas se viram

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coagidos em meio aos colonizados, já que o pós-guerra dispunha de um cenário repleto

de ondas de resistência e guerras para independência. Fato esse que desestruturou os

impérios, sendo a criação do órgão um subterfúgio para obtenção da

ordem mundial. (EVANGELISTA, 2001)

O órgão tem como plano de fundo de ação o discurso da universalidade, cooperação

mútua entre as nações e a supranacionalidade, com a proposta de utilizar a educação, a

ciência e a cultura como ferramentas de construção da paz mundial. As grandes

potências viam-se diante da necessidade de criar novos recursos de convencimento que

não fossem a guerra para manter a sua expansão e domínio econômicos.

(EVANGELISTA, 2001, p. 10). A paz garantiria a liberdade política e econômica para

a circulação de idéias e mercadorias entre as nações, o que se opõe a qualquer tipo de

governabilidade regida de forma totalitária e antidemocrática.

Por esses motivos, os Estados Partes desta Constituição, acreditando em

oportunidades plenas e iguais de educação para todos, na busca irrestrita da

verdade objetiva, e no livre intercâmbio de ideias e conhecimento, acordam

e expressam a sua determinação em desenvolver e expandir os meios de

comunicação entre os seus povos, empregando esses meios para os

propósitos do entendimento mútuo, além de um mais verdadeiro e mais

perfeito conhecimento das vidas uns dos outros;

Ato Constitutivo Unesco, 1946. (UNESCO, 2002)

A tecnologia da informação viabiliza uma rede comunicação internacional cada vez

mais rápida e eficiente, a partir da segunda metade do século XX. A UNESCO, com

isso, cria agências em várias partes do mundo, incentivando o diálogo entre vários

especialistas na área da educação, meio ambiente e cultura. Cria Conselhos de Museus,

Arquivos, Intercâmbios Literários, Filosóficos, das Ciências Humanas, aproximação

entre as Universidades, fomenta o encontro entre artistas, pintores, teatrólogos, diretores

de cinema, arquitetos, associação com ONGs, etc. (EVANGELISTA, 2001)

A cultura está sujeita a um processo de mundialização no qual as culturas locais e

globais disputam território, estando submetidas aos interesses do mercado econômico

(ORTIZ, 1994). A globalização cultural com isso estimula a obtenção de símbolos

universais de cultura que, pela hegemonia e poderio econômico de algumas nações,

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tornam os seus vividos práticas universais, como mercado fonográfico, moda, cinema,

etc. Essas linguagens, que são apropriadas pelas culturas locais, criam,

concomitantemente, meios de resistência ante o risco de desaparecimento de seus

hábitos e costumes que demarcam a sua identidade. Ou seja, há um elemento

contraditório nesse processo: ao mesmo tempo em que o poder de consumo dos

símbolos culturais universais reflete um dado “progresso” e diálogo com a

modernidade, ele promove a contestação política de movimentos sociais, que em muitas

vezes, reflete em uma busca pelo retorno à tradição.

Em 1970, a Organização realiza a primeira Conferência Intergovernamental

sobre Aspectos Institucionais, Administrativos e Financeiros das Políticas Culturais, em

Veneza. A partir dessa conferência, retoma a Declaração sobre os Princípios da

Cooperação Cultural da 14ª CG - 1966 (EVANGELISTA, 2001, p. 102), em que se

destaca, pela primeira vez, o discurso de defesa dos direitos culturais e do respeito à

diversidade de culturas. Em 1972, a Convenção para o Patrimônio Mundial, Cultural e

Natural, ocorrida em Paris, de 17 de outubro a 21 de novembro, delimita pontos

importantes sobre as ações adotadas pela Organização relacionada à proteção do

patrimônio cultural e natural em risco de extinção, assim como, percebe-se sua

concepção e discurso adotados sobre os direitos culturais, refletindo como esses direitos

ultrapassariam suas comunidades locais e se tratariam de direitos de interesse

universais. Ao que tange ao patrimônio cultural, compreende-se nesse período:

Para os fins da presente Convenção, são considerados “patrimônio cultural: -

os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais,

objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor

universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, -

os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas, que, por sua

arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm valor universal

excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência,

- os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza,

bem como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal

excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou

antropológico. (UNESCO, 1972, art. 1º)

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Nota-se que o patrimônio intangível não é ainda abordado pela UNESCO,

contudo a discussão sobre a noção de patrimônio estava cada vez mais em voga. Países

da América Latina, África e Ásia não se adequavam, confortável ou plenamente, à

noção clássica de patrimônio ligada à tradição europeia que recai sobre as

representações materiais de cultura. Nesses países, o universo intangível ligado às

práticas culturais de povos tradicionais, revela-se em larga escala. Daí surge a

problemática em como proteger, por exemplo, um ritual sagrado de uma nação indígena

ou como patrimonializar o Templo Ise, no Japão.9

Em 1989, a UNESCO em resposta a cobranças das organizações e movimentos

sociais oriundas de parte desses países que não se viam contemplados, cria a

Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular “Considerando

que a cultura tradicional e popular forma parte do patrimônio universal da

humanidade e que é um poderoso meio de aproximação entre os povos e grupos sociais

existentes e de afirmação de sua identidade cultural” (UNESCO, 1989). A declaração

sugere ações de salvaguarda aos países membros, como a implementação de meios

legais para garantir a transmissão e continuidade da cultura popular. Observa-se

expresso no documento a cultura tradicional e popular ser adotada como um elo entre os

indivíduos no mundo, reafirmando a sua perspectiva universal de valores. Em 1993,

promove o programa Tesouros Humanos Vivos, sendo esse um meio de preservar o

saber-fazer de indivíduos, como artesãos, e colaborando para a transmissão desse saber.

Em 2001, foi publicada pela UNESCO a Lista de Obras Primas do Patrimônio Oral e

Intangível da Humanidade, sendo todos bens culturais selecionados localizados na

América Latina, África e Ásia. No ano posterior, publica a Declaração Universal sobre a

Diversidade Cultural, que associa os Direitos Culturais aos Direitos Humanos. Na

declaração, percebe-se que garantir os direitos culturais/humanos é um requisito para o

desenvolvimento econômico, e ao longo do tempo, o tema se torna cada vez mais

presente no órgão sendo “entendido não somente em termos de crescimento econômico,

mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e

9 O Japão é pioneiro na instauração de um instrumento legal que comporta uma visão ampla do conceito

de patrimônio. O foco de preservação da lei criada no país, em 1950, não era o objeto, mas sim as

pessoas. O instrumento garantia a transmissão do saber às futuras gerações (SANT’ANNA, 2003). Ainda

em relação ao Japão, vale ressaltar a discussão que na Conferência de Nara, promovida pela UNESCO,

em 1994, sobre a candidatura a patrimônio mundial do templo xintoísta dedicado à deusa Ise. O mesmo é

destruído e reconstruído no mesmo local, a cada 20 anos (FONSECA, 2003). O que está totalmente em

desacordo com a prática de preservação do patrimônio material ocidental. Essas questões impulsionaram

uma reflexão que atendesse à concepção de patrimônio em outras culturas.

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espiritual satisfatória” (UNESCO, 2002) das Nações, o que reafirma seus valores

morais e éticos em sintonia com o modelo econômico, promovendo uma espécie de

humanização do capitalismo. É válido ressaltar que os direitos culturais são

direcionados a um público específico; trata-se de garantir os direitos culturais de

minorias ameaçadas:

A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do

respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os

direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das

pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode

invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos

pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance. (UNESCO, 2002,

art. 4º)

Após anos de discussão para uma definição mais ampla de patrimônio imaterial, a

Convenção Geral das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, reunida

em Paris, de 29 de setembro a 17 de outubro de 2003, chega à definição:

1. Entende-se por “património cultural imaterial” as práticas, representações,

expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objetos,

artefatos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades,

os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte

integrante do seu património cultural. Esse património cultural imaterial,

transmitido de geração em geração, é constantemente reproduzido pelas

comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interação com a

natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e de

continuidade, contribuindo, desse modo, para a promoção do respeito pela

diversidade cultural e pela criatividade humana. Para os efeitos da presente

Convenção, tomar-se-á em consideração apenas o património cultural

imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais existentes

em matéria de direitos do homem, bem como com as exigências de respeito

mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos e de desenvolvimento

sustentável. (UNESCO, 2003, art. 2, item 1)

Percebe-se que a definição está pautada no conceito antropológico de cultura e

se equipara à definição de patrimônio imaterial no Brasil. Atende ainda a uma

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orientação muito clara de que o alvo de proteção está na prática e vividos sociais nos

quais a modernidade e o progresso não são dominantes. A construção de uma sociedade

de respeito mútuo perpassa a ideia de sustentabilidade, ou seja, o órgão tem como

objetivo prático promover o combate à desigualdade e a união dos povos como meio de

manter a hegemonia política de países ocidentais, garantindo a circulação e

disseminação de ideias e mercadorias e mantendo o sistema capitalista, sob novos

parâmetros. Sem promover a guerra para conquistar poder político e econômico, o

discurso humanitário também pode ser utilizado promover os mesmos interesses, mas

com um tipo de inserção que difere da violência e luta armada. (EVANGELISTA,

2001, p. 36).

1.6 O rito para o registro do bem cultural

O processo de abertura para o pedido de registro de patrimônio imaterial teve seus

procedimentos definidos na Resolução nº 001, de 3 de agosto de 200610 do Conselho

Consultivo do Patrimônio Cultural. O documento prevê que todos os pedidos de registro

devem ser dirigidos ao Presidente do Instituto Histórico e Artístico Nacional – Iphan. O

requerimento poderá ser encaminhado diretamente ao Presidente, com endereço

destinado à sede do Iphan, em Brasília ou por intermédio das unidades estaduais do

Instituto. Poderão ser proponentes: Ministro da Cultura; Instituições vinculadas ao

Ministério da Cultura; Secretarias de Estado, Municípios e Distrito Federal e

associações da sociedade civil. O corpo documental do pedido de registro deve conter

as exigências que seguem:

I. Identificação do proponente (nome, endereço, email, etc.);

II. Justificativa do pedido;

III. Denominação e descrição sumária do bem proposto para

Registro, com indicação da participação e/ou atuação dos

10 Anexo VI, p.177.

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grupos sociais envolvidos, de onde ocorre ou se situa, do

período e da forma em que ocorre;

IV. Informações históricas básicas sobre o bem;

V. Documentação mínima disponível; adequada a natureza do

bem, tais como fotografias, desenhos, vídeos, gravações

sonoras ou filme;

VI. Referências documentais e bibliográficas disponíveis;

VII. Declaração formal de representante da comunidade

produtora do bem ou de seus membros, expressando o

interesse anuência com a instauração do processo de pedido

de registro. (Art. 4º, da Resolução 001, de 2006)

O requerimento deve ser direcionado às unidades estaduais ou à sede do

Iphan/BR. Quando o solicitante decide enviar seu pedido às unidades estaduais, essa

deve anexar ao requerimento nota técnica da superintendência, manifestando-se acerca

do pedido e solicitando que a sede dê sequência ao trâmite, efetuando a abertura do

processo. O requerimento deve conter, irrevogavelmente, uma declaração formal de um

representante da comunidade detentora do bem, havendo, assim, a certificação de que

houve anuência e se assegure a participação desses detentores do bem de forma ativa ao

longo do processo. Caso a documentação exigida seja insatisfatória, o proponente será

notificado e terá o prazo de 30 (trinta) dias para recorrer e reapresentar a documentação.

Em caso de omissão, o pedido de registro será arquivado. Após documentação aceita, o

processo de registro é aberto e encaminhado à Câmara do Patrimônio Imaterial, setor

ligado ao Conselho Consultivo - órgão de decisão máxima do Iphan – para apreciação.

Anexado ao pedido, deve haver uma avaliação técnica preliminar dos servidores da

Coordenação de Registro/DPI.

O Conselho Consultivo11 é composto por 23 conselheiros. São eles: Presidente

do Conselho (cargo ocupado pelo presidente do Iphan); 9 representantes de instituições

11 Em 2016, o quadro de conselheiros titulares do Conselho Consultivo do Iphan era composto por:

Representantes Institucionais: Kátia Bogéa - Presidente do Conselho Consultivo do Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; Carlos Eduardo Dias Comas - Representante do Ministério da

Educação; Acir Pimenta Madeira Filho - Representante do Ministério do Turismo; Cléo Alves Pinto de

Oliveira - Representante do Ministério das Cidades; Roque de Barros Laraia - Associação Brasileira de

Antropologia; Maria da Conceição Alves de Guimarães - Instituto de Arquitetos do Brasil; Carlos Roberto

Ferreira Brandão - Instituto Brasileiro de Museus; Carla Maria Casara Rodrigues - Representante do

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públicas e privadas; 13 representantes da sociedade civil, indicados pela presidência do

Instituto e designados pelo Ministro da Cultura. O mandato dos conselheiros pode ser de

quatro anos, sendo permitida a renovação do mandato (Decreto-Lei nº 6.844, de 2009).

O Conselho possui duas câmaras setoriais: Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio

Imaterial, atendendo à Portaria nº 224, de 30 de abril de 2014, que as instituiu. Cada

câmara possui 12 representantes que também compõem o Conselho Consultivo.

A Câmara do Patrimônio Imaterial - CPI tem por responsabilidade avaliar a

proposta de registro e encaminhar seu parecer ao Conselho Consultivo. O parecer não

possui caráter decisório, mas garante elementos que endossam a decisão do Conselho. A

CPI é composta por 4 conselheiros especialistas na modalidade do bem imaterial

requerido, 2 servidores do Iphan indicados pelo Presidente e ainda poderá contar com a

participação de especialistas externos e servidores. A portaria nº 226, de 30 de abril de

2014, nomeou os atuais conselheiros: Arno Wehling (historiador); Lucia Hussak Van

Velthem (antropóloga), Luiz Phelipe de Carvalho Castro Andrés (engenheiro); Maria

Cecília Londres Fonseca (socióloga); Roque de Barros Laraia (antropólogo) e Ulpiano

Toledo Bezerra de Menezes (historiador).

Apesar de ser oficializada em 2014, a Câmara já estava em funcionamento desde

a implantação da política de patrimônio imaterial, em 2000, contando com a

participação de maior parte dos conselheiros mencionados desde o princípio, sendo

outros incorporados ao longo dos anos posteriores. Caso o pedido de registro seja

considerado pertinente, a Câmara notificará o proponente e solicitará a produção da

Instrução Técnica do bem, que se trata de texto analítico e descritivo de caráter

etnográfico; fotografias em alta resolução devidamente identificadas (legenda, autor e

ano); 02 (dois) vídeos: um curta de até 15 minutos e um longa-metragem; autorizações

de uso de imagem e som dos entrevistados, filmados e fotografados; além de demais

materiais, como referências bibliográficas, CDs, DVDs, etc. Essa inventariança resultará

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis; Leonardo Barci Castriota -

Conselho Internacional de Monumentos e Sítios; Fernanda Bordin Tocchetto - Sociedade de Arqueologia

Brasileira

Representantes da Sociedade Civil: Ângela Gutierrez – Empresária, colecionadora de artes; Arno

Wehling – Historiador, prof. dr. UFRJ; Breno Bello de Almeida Neves – advogado; Ítalo Campofiorito –

arquiteto; Luiz Phelipe de Carvalho Castro Andrès – engenheiro, prof. dr. UNDB; Marcos Castrioto de

Azambuja – diplomata; Lúcia Hussak Van Velthem, museóloga; Maria Cecília Londres Fonseca –

socióloga; Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira – historiadora da arte, profa. dra. UFRJ; Nestor Goulart

Reis Filho – arquiteto prof. dr. USP; Synésio Scofano Fernandes, militar, general de divisão reformado;

Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, historiador, prof. dr. USP. Cf.

<http://portal.iphan.gov.br/membrosConselho>. [Dados de atuação profissional obtidos na Plataforma

Lattes]. 20 set. 2016

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em um dossiê da manifestação cultural (IPHAN, 2011). Caso o pedido seja negado, o

proponente será notificado e o pedido arquivado.

Há casos em que a Câmara solicita modificações e/ou pesquisa histórica mais

aprofundada para dar sequência ao processo. Esse aprofundamento da documentação

exigida deve ser supervisionado por um técnico do Iphan da unidade estadual em que se

localiza o bem candidato ao registro, podendo contar com apoio orçamentário que pode

advir de instituições públicas ou privadas, bem como do fundo orçamentário destinado

ao Programa Nacional de Patrimônio Imaterial – PNPI do Instituto.

A pesquisa resultará no Dossiê de Registro do bem cultural. A Instrução Técnica

deve ser realizada no prazo de 18 (dezoito) meses, com possibilidade de prorrogação. O

pedido de registro negado pela Câmara é notificado ao proponente e publicado no

Diário Oficial. O proponente, bem como a sociedade civil, pode manifestar-se contrário

à decisão da Câmara no prazo de 30 dias. Caso não houver pedido de reavaliação, o

processo é arquivado. Se avaliado pertinente, durante os trâmites de avaliação do pedido

de registro, o Conselho pode convocar uma consulta pública para subsidiar a avaliação

final. (RESOLUÇÃO nº 001/2006).

A finalização do Dossiê - o resultado da Instrução Técnica será apreciado pela

Coordenação Geral de Registro e Identificação/DPI que emitirá um parecer final

indicando o registro do bem. O presidente do Iphan publicará a decisão no Diário

Oficial e a sociedade civil terá 30 dias para manifestar-se.

O Departamento de Patrimônio Imaterial – DPI como último encargo, solicitará

análise e parecer jurídico à Procuradoria Federal. Por fim, toda a compilação

documentária é encaminhada para avaliação do Conselho Consultivo. Caso houver

decisão favorável ao registro, a CGRI/DPI será acionada para inscrever a prática

cultural em um dos livros de registro. Uma certidão de registro é emitida, comprovando

a inscrição no livro, assim como uma titulação em formato de diploma. Esses

documentos são distribuídos entre os envolvidos, sobretudo à comunidade detentora do

bem. O plano de salvaguarda deve ser implantado após a inscrição.

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Rito do pedido de registro***

*** Elaborado pela autora

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Departamento de Patrimônio Imaterial: funções e atribuições

O Departamento de Patrimônio Imaterial - DPI foi criado em 7 de abril de 200,

com o Decreto nº 5.040,12 na gestão do Ministro da Cultura Gilberto Gil. O

departamento é o responsável por executar e planejar o Programa Nacional de

Patrimônio Imaterial- PNPI, bem como dar suporte aos detentores do bem cultural

registrado ou o processo em andamento nas superintendências estaduais, Supervisiona e

orienta as atividades do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular - CNFCP. Assim

como prevê o art. 18, do Decreto n° 6.844, de 7 de maio de 2009, compete ao DPI:

I - Propor diretrizes e critérios e, em conjunto com as Superintendências

Estaduais, gerenciar programas, projetos e ações nas áreas de identificação,

de registro, acompanhamento e valorização do patrimônio de natureza

imaterial;

II - Implantar, acompanhar, avaliar e difundir o Inventário Nacional de

Referências Culturais, tendo em vista o reconhecimento de novos bens por

meio do Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial;

III - acompanhar a instrução técnica e apreciar as propostas de registro de

bens culturais de natureza imaterial;

IV - Desenvolver, fomentar e promover estudos e pesquisas, assim como

metodologias de inventário, que possibilitem ampliar o conhecimento sobre o

patrimônio cultural de natureza imaterial;

V - Propor, gerir e fomentar ações de salvaguarda de bens culturais de

natureza imaterial e tornar disponíveis as informações produzidas sobre estes

bens;

VI - Planejar, desenvolver, fomentar e apoiar, por intermédio do Centro

Nacional de Folclore e Cultura Popular, programas, projetos e ações de

estudo, pesquisa, documentação e difusão das expressões das culturas

populares, em nível nacional;

VII - gerenciar e executar o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial; e

VIII - supervisionar e orientar as atividades do Centro Nacional de Folclore e

Cultura Popular.

12 O Decreto nº 5.040, de 07/04/2004, foi revogado posteriormente pelo Decreto nº 6.844, de 07/05/2009,

que “aprova a estrutura regimental e o quadro demonstrativo dos cargos em comissão e das funções

gratificadas do instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan, e dá outras providências”

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O DPI possui duas subdivisões internas. São elas: Coordenação Geral de

Identificação e Registro – CGIR, responsável por desenvolver inventário, apoiar

pesquisas, acompanhar, supervisionar e avaliar os processos de registro e a

Coordenação de Salvaguarda, composta pela Coordenação de Apoio à Sustentabilidade,

sendo responsável pela execução dos planos de salvaguarda dos bens registrados assim

como está previsto no Decreto nº 6.844, de 2009.

O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP tem um papel

fundamental na execução do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial – PNPI,

atuando nacionalmente, promovendo ações de pesquisa, difusão e promoção do folclore

e culturas populares. O órgão realizou o projeto piloto no ano de 2001 utilizando o

Inventário Nacional de Referências Culturais - INRC como metodologia para atestar a

sua viabilidade e possíveis acertos (CORÁ, 2014). Coordenou os inventários do Jongo

no Sudeste, Viola de Cocho e Baianas de Acarajé de 2000 a 2006.

O CNFCP possui tradição em pesquisa relacionada à cultura popular desde 1947,

quando se denominava Comissão Nacional do Folclore – CNF, vinculada ao Instituto

Brasileiro de Educação Cultura e Ciência – IBECC (Instituto criado por recomendação

da UNESCO, em 1946). No ano de 1958, integrou-se à Campanha de Defesa do

Folclore Brasileiro - DAC/MEC, atuou como Instituto Nacional do Folclore – INF, de

1976 a 1978, até se tornar o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, ligado à

Funarte. No ano de 2003, é integrado ao Iphan, caracterizando-se como uma unidade

ligada ao Departamento de Patrimônio Imaterial, porém descentralizada. (LONDRES,

2009)

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Estrutura Organizacional atual do Iphan*

*Organograma da autora

*Organograma eleborado pela autora

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O Inventário (base metodológica INRC)

O Inventário Nacional de Referências Culturais - INRC13 corresponde a uma

metodologia de pesquisa do bem cultural que direciona a elaboração da Instrução

Técnica para a produção do Dossiê do bem cultural.14 A utilização do INRC não é

obrigatória, mas recomendada pelo Iphan. Ele é norteado pelo conceito de referência

cultural, exatamente para que o bem não seja apenas arrolado, mas sim compreendido a

partir de sua pluralidade. A metodologia confunde-se com a própria trajetória do Iphan

e as discussões internas que, ao longo dos anos, resultaram na ampliação do conceito de

patrimônio. Referência cultural tem por finalidade enfatizar os sentidos e significados

diversos que determinado bem cultural possui. É utilizada na produção acadêmica que

se fundamenta na concepção antropológica. (FONSECA, 2003)

Os bens culturais, nesses termos, devem ser definidos não apenas pelo seu valor

histórico e artístico, mas por todo o leque de sentidos e possibilidades que o cercam

(LONDRES, 2003). Como exemplo, a Cachoeira de Iauaretê, lugar sagrado dos povos

indígenas dos rios Uapés e Papuri, registrado em 2006, não foi eleito apenas pelo valor

histórico que remonta à trajetória e cultura desses povos no Brasil. Foi necessário

considerar a importância do lugar e a dimensão simbólica dele para os sujeitos, no que

tange ao seu entorno, ao meio ambiente, à relação da comunidade local com o lugar, etc.

Ou seja, devem ser considerados todos os diversos pontos de referência que se

13O INRC é composto pelas seguintes Fichas: F10 (Ficha de Identificação – Sítio); F11 (Ficha de

Identificação – Localidade), com as respectivas; FC1 (Ficha de Campo – Levantamento preliminar) e

FC2 (Ficha de Campo – Registros sonoros e audiovisuais), seguidas das fichas A1 (Anexo1:

Bibliografia); A2 (Anexo 2: Registros audiovisuais); A3 (Anexo 3: Bens culturais inventariados); A4

(Anexo 4: Contatos). Esse grupo é seguido dos instrumentos de identificação de bens culturais, a saber,

Q20 (Questionário de Identificação – Celebrações) e F20 (Ficha de Identificação – Celebrações); Q30

(Questionário de Identificação – Edificações) e F30 (Ficha de Identificação – Edificações); Q40

(Questionário de Identificação – Formas de expressão) e F40 (Ficha de Identificação – Formas de

expressão); Q50 (Questionário de Identificação – Lugares) e F50 (Ficha de Identificação – Lugares); Q60

(Questionário de Identificação – Ofícios e modos de fazer) e F60 (Ficha de Identificação – Ofícios e

modos de fazer). (MORAES; RAMASSOTE, 2015) 14 Em 1999, o antropólogo Antônio Augusto Arantes foi convidado a coordenar uma equipe de

profissionais para formular uma metodologia de identificação de referências culturais. O projeto piloto foi

realizado na área do Museu Aberto do Descobrimento (MADE), com entrevistas com atores sociais de

sete localidades, em Porto Seguro/BA e Santa Cruz Cabrália/BA (MORAES; RAMASSOTE, 2015). A

utilização do INRC no Iphan, como proposta para o registro, ocorreu nos anos de 2001 a 2006.

Coordenado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular com o nome Celebrações e Saberes da

Cultura Popular, o projeto resultou nos inventários e, consequentemente, no registro dos bens culturais:

Ofício das Baianas de Acarajé, Modo de Fazer Viola de Cocho e Jongo no Sudeste. (IPHAN, 2011, p. 29)

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entrecruzam e que juntos formam a rede de significados da Cachoeira, possibilitando a

melhor administração de interesses que são distintos.

A Instrução Técnica, que corresponde à elaboração do inventário e dossiê é

supervisionada pelos técnicos das superintendências estaduais. A etapa correspondente

ao inventário é considerada uma forma de preservação, pois documenta a manifestação

cultural. Entretanto, nem todo bem que possui inventário é registrado.

O Registro

O registro é um instrumento de reconhecimento do patrimônio imaterial análogo

ao tombamento para os bens materiais. Além de identificar o bem imaterial, ele fomenta

ações que visam à produção de conhecimento, documentação e divulgação do bem.

A certidão de registro é um atestado que garante ser o bem um patrimônio

cultural brasileiro. Trata-se do ápice do reconhecimento, levando ao comprometimento e

responsabilizando o Estado a colaborar e criar ações que asseguram a continuidade do

bem cultural.

Após aprovação do Conselho Consultivo, o bem eleito é inscrito pela

Coordenação Geral de Identificação e Registro/DPI, em um dos quatro livros de

registro, conforme definido no Decreto nº 3.551, de 2000, que instaura o Programa

Nacional de Patrimônio Imaterial - PNPI:

a) Saberes: conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das

comunidades;

b) Formas de expressão: manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas

e lúdicas;

c) Celebrações: rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da

religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;

d) Lugares: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se

concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas.

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A salvaguarda

O plano de salvaguarda caracteriza a política de patrimônio imaterial do Iphan

como diferencial. Ela não oferece apenas um título, mas aciona políticas públicas que

investem no bem reconhecido para a sua perpetuação. Representa o conjunto de ações

políticas elaboradas frente a parcerias com universidades, ONGs, instâncias

governamentais e outras esferas, para a garantia da reprodução, transmissão e

continuidade do bem imaterial reconhecido. (Decreto nº 3.551/2000). Ainda segundo as

definições do Iphan, “É um programa de fomento que busca estabelecer parcerias com

instituições dos governos federal, estadual e municipal, universidades, organizações não

governamentais, agências de desenvolvimento e organizações privadas ligadas à cultura

e à pesquisa”. (IPHAN, 2011)

Para a implementação do plano de salvaguarda, os recursos financeiros que

podem ser utilizados são: os subsídios para financiamento público, como os recursos

direcionados ao Iphan pela União; Programa Nacional de Apoio à Cultura - PRONAC;

emendas parlamentares; termos de cooperação técnica e convênios com outros entes do

governo federal, estadual e municipal. (IPHAN, 2011)

A gestão do plano de salvaguarda prevê um constante diálogo entre a sociedade e

o Estado, visa obter uma gestão descentralizada, democrática e flexível, observando

cada demanda específica do bem reconhecido e agindo sobre ela, de acordo com as suas

necessidades (IPHAN, 2011). A proposta de sustentabilidade está ligada ao incentivo

para geração de renda e ampliação do mercado com benefício direcionado

exclusivamente aos detentores do bem. A Instrução Técnica trará elementos para que se

tenha conhecimento das fragilidades do bem cultural, sugerindo, previamente, ações de

salvaguarda de curto, médio e longo prazo.

Considerando o aspecto mutável da cultura, o registro possui o prazo de dez anos.

Ao final, o bem registrado é reavaliado para que se tenha a compreensão das suas

transformações e/ou (re)construções, e se ainda continuará fazendo parte do plano de

salvaguarda.

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1.7 A presença dos historiadores no Iphan

O Iphan, desde a sua fundação, é um órgão de atuação majoritária de arquitetos.

Apenas duas décadas após a sua fundação, em 1937, é que museólogos, e mais

recentemente, historiadores e cientistas sociais foram incorporados ao quadro técnico

(FONSECA, 2009, p. 116-117). Em companhia dos arquitetos, nas primeiras décadas de

vida do órgão, estiveram os engenheiros, fotógrafos, pesquisadores, artistas plásticos,

contudo, foi o arquiteto que se consagrou como o especialista primordial e ocupa o

maior número de quadro de servidores, até os dias atuais.

Segundo o arquiteto Lúcio Costa (diretor da Divisão de Tombamento do

SPHAN, de 1937 a 1972), a profissão do historiador não se adequava às necessidades

práticas e objetivas que o SPHAN exigia para análise dos tombamentos, ele deveria

ocupar espaços destinados à produção discursiva no órgão. Segundo CHUVA (2009,

apud COSTA, 1949), o arquiteto alegava a ineficiência dos historiadores “uma vez que a

curiosidade do ofício os conduz insensivelmente a pesquisas laterais demoradas e

absorventes com prejuízo dos informes simples e precisos que interessam a repartição”.

Caso o processo de tombamento exigisse uma apreciação teórica e histórica,

seria ideal, segundo Lúcio Costa, recorrer a estudantes universitários no mês de férias ou

intelectuais de diversas categorias para auxílio, não havendo assim, a necessidade de

incorporar o historiador ao quadro de servidores. O valor histórico era entendido, nesse

período, como argumento de escala inferior se comparado ao valor estético e artístico

dos bens culturais tombados. No final da década de 70, quando houve um aumento

considerável dos profissionais no Iphan, por conta do alargamento do conceito de

patrimônio e cultura que exigiu um quadro técnico mais heterogêneo, havia 178

arquitetos, 78 museólogos e 26 historiadores. (CASTRO, 2008)

A produção acadêmica, no Brasil, adotou a investigação sobre as práticas de

preservação do patrimônio cultural, inicialmente nas disciplinas de Antropologia,

seguido da Sociologia, a partir dos anos 90. Essas práticas de preservação são

inauguradas no Brasil a partir da fundação do SPHAN. O arquiteto, historicamente, se

destacou como o profissional mais gabaritado para o reconhecimento do patrimônio

cultural. A seu lado, no decorrer dos anos, outros profissionais ganharam espaço no

Iphan, tais como o museólogo, o arqueólogo e o antropólogo, sendo este a quem foi

incumbido a gestão do patrimônio imaterial como forma de dar continuidade aos estudos

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do folclore e cultura popular iniciados desde a década de 30, mas abandonados pelo

órgão federal de preservação e retomados no final da década de 90 (CHUVA, 2008).

A noção de patrimônio bem como de identidade(s) nacional sempre estiveram

ligadas a afirmação identitária de determinados grupos e ao seu contexto histórico,

portanto, são noções que se constituíram de forma fluida, com usos sujeitos ao seu

tempo. Por exemplo, na década de 30, o conceito de identidades estava alinhado à ideia

de busca pela unidade nacional e cultural, atualmente, está alinhado à ideia de

diversidade cultural e reconhecimento das identidades heterogêneas. Isso ampliou o foco

de investigação e pesquisa que se voltaram ao cotidiano, memória individual e coletiva e

culturas populares. Ao contrário dos antropólogos, que se debruçaram sobre o tema de

forma organizada e criando um método próprio de investigação (Inventário Nacional de

Referências Culturais - INRC) a noção ampliada de patrimônio cultural foi reconhecida

como campo de atuação dos historiadores, tardiamente.15

No ano de 2003, a chapa vencedora. que compôs a Diretoria Nacional da

Associação Nacional de História – ANPUH, incluiu como pauta de compromisso “a

ampliação da participação do historiador em fóruns que tratem o patrimônio cultural”.

Observa-se ainda, no mesmo ano, a inclusão do tema “patrimônio cultural” nas

diretrizes curriculares do Ministério da Educação – MEC para a formação em História.

(CHUVA: 2008)

O “historiador-técnico” se vê entre o dilema da teoria x prática, em que a

pesquisa histórica e investigativa é suprimida pelos ritos burocráticos institucionais que

o reprimem como intelectual e pesquisador. Segundo CASTRO (2008), o Iphan possui

um rito burocrático adotado a partir da década de 70 que ocasionou um acúmulo de

processos, pois antes desse período, os tombamentos não atendiam leis e normas hoje

vigentes. Além dos pedidos pós-década de 70, todos os tombamentos anteriores

passaram por uma readequação, o que causou morosidade na análise dos processos

posteriores e acúmulo nos dias atuais.16 Isso, somado ao quadro de servidores

insuficientes comparado à quantidade de processos encaminhados. Outro ponto

destacado pelo historiador é a mudanças de prioridades que acarretou em processos

15 A História sempre esteve presente na constituição do discurso acerca dos patrimônios nacionais,

sobretudo na Europa, no século XIX, com objetivo de construir a história das nações. A disciplina,

também esteve presente desde o início do debate e na instauração da política de patrimônio cultural no

Brasil, mesmo que apropriada por profissionais de outras categorias. (FONSECA, 2008) 16 Adler Homero Fonseca de Castro é historiador, graduado pela Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, mestre em história pela Universidade Federal Fluminense, é servidor do Iphan desde 1983, atua

no Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização/Iphan/RJ, sendo especialista em história militar.

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paralisados. Atualmente, a “prioridade são os tombamentos de impacto, que possam

gerar notícias políticas”, com incidência nas regiões Norte, Centro-Oeste e alguns do

Nordeste, bens de cultura popular, principalmente, indígenas e afro-brasileiros.

(CASTRO, 2008, p. 22). Apesar de considerá-las “prioridades louváveis”, observa que o

ponto negativo são processos não-prioritários entregues ao esquecimento, gerando uma

demanda não solucionada e, consequentemente, mais burocracias.

Foi realizada no Rio de Janeiro, entre os dias 26 e 30 de novembro de 2007, a I

Oficina de Pesquisa. A pesquisa histórica no Iphan reuniu técnicos do órgão

(historiadores, historiadores da arte, cientistas sociais, arquivistas, museólogos,

arquitetos de diversas superintendências do Iphan, e historiadores e cientistas sociais

convidados de diferentes instituições (IPHAN, 2008). Foram criados Grupos de

Trabalhos e como resultado do encontro, foi produzido um documento chamado “Carta

da Pesquisa Histórica no Iphan”17 como forma de sugerir ações que aprimorem a

pesquisa histórica no órgão de preservação. Entre os pontos discutidos, destacamos:

No que diz respeito à pesquisa histórica no Iphan:

A realização da pesquisa histórica no âmbito do Iphan requer uma especialização

dos historiadores, pois estes estão vinculados a uma instância de proposição e

execução de políticas públicas e à própria constituição do campo do patrimônio,

multidisciplinar por excelência. Daí a proposição de se considerarem os

historiadores do quadro do IPHAN que realizam pesquisa histórica como

historiadores do patrimônio, ou seja, historiadores especializados na pesquisa

histórica relativa ao campo de patrimônio e comprometidos com a construção e a

gestão do patrimônio cultural brasileiro;

Pesquisadores ou empresas de pesquisa contratados devem seguir os parâmetros

indicados para a realização da pesquisa histórica no Iphan. Nessa atividade,

devem contar com orientação e participação permanente e ativa dos

historiadores do patrimônio, de maneira a reforçar o Iphan como espaço de

pesquisa e produção de conhecimento e contribuir para a formação e

especialização contínua de seus técnicos

17 Anexo VI: Carta de Pesquisa Histórica no Iphan.

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Faz-se necessário aprofundar a discussão sobre a utilização dos inventários, a

partir principalmente de seu caráter metodológica e teoricamente múltiplo e

multidisciplinar, como modelos de método de pesquisa e também de atuação da

instituição, assim como reforçar a importância da colaboração do historiador do

patrimônio nesses trabalhos.

Sobre a multidisciplinaridade e a integração de pesquisa e pesquisadores no Iphan:

A tradicional vinculação de certas formações científicas a determinadas linhas de

pesquisa e ações de preservação, como arquitetos ao DEPAM, antropólogos ao

DPI, historiadores à Copedoc, deve ser relativizada, de forma a promover e

reforçar uma crescente multidisciplinaridade na pesquisa e nos campos de

atuação do Iphan.

No que tange aos acervos arquivísticos e bibliográficos do Iphan:

É essencial debater, também, a questão da qualidade do acesso a esta

documentação e a valorização dos arquivos, isto é, sua reestruturação,

reconhecimento e fortalecimento – o que passa, inclusive, por uma melhor

definição do papel do arquivista na instituição.

Sobre a divulgação da pesquisa histórica:

Deve-se investigar a possibilidade de criação de uma publicação eletrônica ou

em papel para divulgação da pesquisa histórica do Patrimônio, caso as

publicações já existentes não possam fazê-lo;

A criação de um Conselho Editorial para as publicações do Iphan deve ser

estimulada.

No que diz respeito à Gerência de Pesquisa e Referência da Copedoc:

O contato entre a Gerência de Pesquisa e os pesquisadores das diversas unidades

deve ser reforçado por meio da articulação de pesquisas dentro da linha geral de

atuação proposta pela Copedoc, de Memória Institucional e da Preservação, na

qual se enquadram diferentes projetos em andamento, como o de Memória Oral;

o Dicionário Iphan de Patrimônio Cultural; o de revisão do Guia de Bens

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Tombados; o projeto-piloto Rotas da Alforria de inventário integrado, entre

outros.

Sobre o aprimoramento técnico das condições de trabalho dos pesquisadores:

É importante estimular o aperfeiçoamento de infraestrutura para pesquisa de

campo e em arquivos externos, através da disponibilização de meios e recursos

para deslocamento, reprodução de documentos, aquisição de material

permanente para realização de pesquisas e entrevistas (por exemplo, gravadores),

assim como reforçar a noção de que a ausência do pesquisador de seu local de

trabalho para pesquisa de campo e em arquivos também faz parte de suas

atividades de rotina;

Faz-se necessário novo concurso ampliar o quadro de historiadores do IPHAN.

O documento revela que não há desenvolvimento e incentivo à pesquisa histórica

no Iphan, fato que distancia o órgão de um espaço de produção do conhecimento e o

consolida como espaço técnico. O historiador do patrimônio não se sente incluso na

discussão dos inventários desenvolvidos pelo Instituto e defende que este construa

metodologias de pesquisa de forma mais participativa. O documento ainda revela o

afastamento do Iphan e da Academia, posto que uma das pautas é o diálogo entre o

Iphan e cursos de pós-graduação e especialização, voltados ao patrimônio cultural. A

gestão de acervos documentais não conta com a participação efetiva dos historiadores do

patrimônio, demonstrando que além do antropólogo, o historiador disputa espaço com o

arquivista. A falta de diálogo entre as áreas de atuação são expostos, sendo o trabalho

multidisciplinar uma ação não concretizada

Cabe ao historiador, adentrar as disputas de produção do conhecimento e gestão

da preservação dos patrimônios, já que ao seu ofício compete a construção de narrativas,

a compreensão do passado como elo no tempo presente, os processos de construção das

identidades e usos de acervos documentais. Atribuições que não são exclusivas do

historiador, mas se realizam como ações fundamentais que contribuem para o

enriquecimento do debate e execução das políticas públicas patrimoniais. Não há como

realizar uma política cultural de cunho democrático, interdisciplinar, em harmonia com

as questões do tempo presente, no que tange ao acesso de direitos culturais e efetivação

da cidadania, com um quadro de servidores que refletem o monopólio de profissionais

da arquitetura.

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Capítulo 2

Critérios e prioridades para a confirmação do registro: análise dos pedidos de

celebrações e formas de expressão

Neste capítulo será discutido como o Iphan definiu os parâmetros e critérios que

se tornaram ferramentas para o reconhecimento do patrimônio imaterial. As discussões

internas promovidas por especialistas e técnicos sobre a criação da lei que regulamenta a

preservação da cultura imaterial, serão apresentadas mediante a análise das atas do

Conselho Consultivo, entre os anos de 2000 a 2005. Os documentos demonstram como

a implantação da política se deu de forma pouco harmoniosa, em meio a divergências e

conceitos indefinidos sobre a noção de patrimônio imaterial. Diante disso, será possível

verificar como os pedidos negados foram analisados e sob quais critérios de rejeição se

adequaram para que o Iphan justificasse o indeferimento. Apresento, brevemente, dois

casos de sucesso baseados nos pedidos de registro aprovados, são eles: Arte Kusiwa e

Jongo no Sudeste. O objetivo é demonstrar como se dá o rito para o registro em casos de

bens que foram oficializados pelo Iphan.

Na segunda parte do capítulo, analisarei os processos de pedidos de registro

indeferidos nas duas categorias: Celebrações: Tooro Nagashi; Tradições da Colônia

Alemã; Tiro do Laço; Clube do Tiro; e Formas de Expressão: Língua Talian.

2.1 Debates e resoluções na implantação dos critérios e prioridades na política de

patrimônio imaterial no Iphan

Para ser eleito como patrimônio imaterial brasileiro, a prática cultural deve

atender à legislação vigente e dialogar com os critérios e prioridades definidos pela

política interna do Iphan. Há três tipos de critérios que, juntos, possuem o aval para

reconhecimento do patrimônio imaterial (IPHAN, 2011). A saber:

a) Critérios de admissibilidade

O pedido deve se referir a um bem cultural de natureza imaterial de espaço ou

lugar que concentre práticas culturais coletivas, e que atenda às seguintes condições

previstas no Decreto nº 3.551/2000:

1. apresente continuidade histórica há cerca de três gerações, no mínimo;

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2. relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da

sociedade brasileira.

b) Critérios de pertinência

1. Transmissão do bem de modo oral ou informal;

2. Referência cultural importante para um grupo ou grupos formadores da

nacionalidade;

3. Referências reelaboradas por diversas variantes (tradição que se reitera e

atualiza no cotidiano).

c) Critérios de priorização

1. Fragilidade ou risco de desaparecimento;

2. Localização em região historicamente pouco atendida pela ação

institucional;

3. Manifestações culturais em núcleos históricos tombados;

4. Povos indígenas, populações afro-brasileiras e populações

tradicionais;

5. Situações de multiculturalismo em contextos urbanos e

megacidades;

6. Ação potencialmente geradora de uso social do bem cultural e a

Democratização dos benefícios geradores.

Esses critérios são inter-relacionados e, após uma análise geral, o bem pode ou

não ser registrado (IPHAN, 2011). É válido ressaltar que pela ordem de critérios e

prioridades, os bens de origem indígenas e de matriz africana possuem maior peso,

sendo o fator de risco de extinção o principal critério a ser seguido. A política de

patrimônio imaterial se tornou uma ferramenta de reparação diante da situação

excludente que recai, inegavelmente, sobre esses povos. (BRITES, 1992)

O Iphan não pode ser estudado como um agente de discurso único, já que o

próprio Estado não pode ser compreendido como um poder homogêneo. Há nele

disputas e conflitos internos. A patrimonialização dos bens também está sujeita aos

posicionamentos dos intelectuais que compõem o corpo técnico e o Conselho

Consultivo. As ações do Estado são moldadas pelos indivíduos que ocupam cargos de

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decisão nas instituições. Por sua vez, esses sujeitos são representantes dos seus grupos

sociais, que advém de determinada classe, gênero e etnia. (GRAMSCI, 1982)

O Decreto nº 3.551, de 2000, foi considerado um marco na história do órgão de

preservação. A política de patrimônio imaterial foi aprovada com grande expectativa em

dispor recursos que visam o rompimento da barreira que separa o instituto (de tradições

profundamente ligadas às elites) e a sociedade civil.

É uma etapa nova no IPHAN, sobre a qual tenho refletido bastante. Posso

talvez ser repetitivo, mas entendo o trabalho do registro como um novo

momento no IPHAN, quando os nossos representantes, nas regionais e nos

museus, em seu trabalho de pesquisa, estarão mais próximos dos cidadãos. A

linguagem, dependendo da manifestação cultural em pesquisa e análise, não

poderá ser urna linguagem de intelectuais, de elite, para permitir a sua

compreensão.18

A inauguração da política no Brasil não se efetivou de forma harmônica e

pacífica dentro do Iphan; ela foi objeto de críticas, tanto em relação ao conceito de

patrimônio imaterial quanto à viabilidade da sua intervenção na sociedade brasileira.

Segundo o conselheiro Luiz Fernando Dias Duarte, o conceito de imaterialidade

associado à noção de cultura oferece uma amplitude pouco objetiva do bem passível de

registro.

Quando me foi apresentado pela primeira vez o material relativo a esse

assunto, há um ano e meio atrás, a minha primeira reação foi de muita

resistência, de muita inquietação. Afinal de contas, Patrimônio Imaterial é

cultura, toda a cultura [...] Com isso estaríamos nos propondo a 'engessar'

praticamente todas as manifestações culturais da nação, de modo a construir

urna espécie de dique contra a história, fazer com que tudo se transformasse

em tradição, a partir daquele momento [...] Além de primordial, é o

patrimônio ameaçado? É outra dimensão possível. São aquelas coisas

representativas da ideia de tradição, ou seja, alguma coisa ameaçada pela

modernidade, pela modernização, pela transformação das relações sociais e

culturais de uma nação acometida por um processo de modernização tão

18 Carlos Henrique Heck, presidente do Iphan. Ata da 26ª Reunião, em 23 de novembro de 2000, p. 3. Cf.

<http://portal.iphan.gov.br/atasConselho>.

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violento e destrutivo como o brasileiro, é isso que está em jogo? Também

não fica absolutamente claro.19

A política de patrimônio imaterial não nasceu com um formato conciso e

consolidado. Os seus idealizadores compreendiam-na como parte de um processo em

curso, que ganharia substância e definição a partir dos seus anos de execução e prática.

Acreditamos que os primeiros pedidos de registros serão os mais complexos.

Por quê? Nos primeiros registros teríamos necessidade de realizar uma

grande pesquisa, daí a importância do apoio do Programa. Por exemplo, se

um grupo do Maranhão solicitar o registro do Boi de Matraca, teríamos o

encargo de pesquisar e levantar a documentação dessa manifestação cultural,

al6m de mapear a questão do Boi, como um todo, no Maranhão e no Brasil.

Claro que, dentro de alguns anos, com as atualizações necessárias, a primeira

parte, mais geral, já estaria apontada naquela instituição, para fazer a sua

contextualização em âmbito nacional, a fim de fornecer ao Conselho

parâmetros para a sua decisão [...] Acreditamos na definição gradativa dos

critérios, como aconteceu no início dos tombamentos, na década de trinta.20

Delimitações foram incorporadas para estabelecer critérios de eleição do bem

cultural. Afinal, o que poderia ser considerado patrimônio imaterial brasileiro? Se há

objetivos a serem alcançados com a implantação de uma política pública cultural, eles

apenas são possíveis pelo uso da seleção. Os primeiros registros foram selecionados

com ausência de diretrizes sólidas e sem segurança técnica na escolha de critérios:

Uma das questões que me deixou um pouco perplexo, por considerar que há

necessidade de um valor nacional, foi o fato de já termos votado

favoravelmente a registros de bens que têm valor regional, como o Modo de

Fazer Viola-de-Cocho, ao qual concedemos o título de Patrimônio Cultural

do Brasil'. Erramos, acertamos, agimos contra o Decreto, não agimos?

19 Conselheiro Luiz Fernando Dias Duarte. Ata 26ª Reunião, em 23 de novembro de 2000, p. 12. Cf.

<http://portal.iphan.gov.br/atasConselho>. 20 CÉLIA Corsino, membro do GT .

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Posteriormente fiquei perplexo. Realmente, quando votei favoravelmente não

tinha esta dimensão.21

A primeira década do PNPI demonstra similaridades no que diz respeito à

implantação do tombamento nos anos 30. Tanto o registro como o tombamento foram

pensados como ferramentas pedagógicas. A perspectiva conscientizadora de instituições

educacionais, museus e órgãos de preservação é vista de forma depreciativa, pois

subjuga os indivíduos a fontes desprovidas de conhecimento e não consideram ser o

processo pedagógico uma construção coletiva (GONÇALVES, 2007). Essa iniciativa é

contraditória à política de patrimônio imaterial que defende os atores sociais

protagonistas em todo processo de reconhecimento. Em alguns casos, instituições

culturais, governos locais e/ou o próprio Iphan foram proponentes do pedido, como

demonstra tabela abaixo:

Ano Bem Imaterial Preponente*

2005 Viola de Cocho Centro Nacional de Folclore e

Cultura Popular/Iphan

2005 Jongo no Sudeste Centro Nacional de Folclore e

Cultura Popular/Iphan

2006 Feira de Caruaru Prefeitura de Caruaru/PE

2007 Frevo Prefeitura de Recife/PE

2007 Tambor de Crioula Prefeitura de São Luiz/MA

2008 Ofício dos Mestres de

Capoeira Iphan

(IPHAN, 2011, p. 80)

Ao contrário da expectativa inicial, alguns bens culturais reconhecidos não

foram resultado de demandas de grupos comunitários. O Iphan seguiu elegendo bens

imateriais que julgou aptos - preterindo solicitações em prol dessas priorizações.

21 Conselheiro Roque Laraia. Ata da 47ª Reunião do Conselho Consultivo, em 11/08/2005, Cf.

<http://portal.iphan.gov.br/atasConselho>.

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[...] do mesmo modo que Rodrigo Melo Franco selecionou monumentos de

alta visibilidade no início da implantação da política de tombamento, o Iphan

deveria adotar uma postura mais pró-ativa e menos reativa com relação à

política de Registro, sinalizando para a sociedade qual é seu objetivo. Para

tanto, o conselheiro propôs que fosse elaborada pelo DPI uma lista de

prioridades para Registro com 5 bens de “alta visibilidade educativa” e

“caráter nacional evidente”. Na opinião do Conselheiro, na lista dos

processos em andamento, três propostas preencheriam esses requisitos: a do

samba carioca, a do queijo artesanal de Minas e a da Feira de Caruaru.22

De acordo com o mapa abaixo, nota-se que os bens registrados estão localizados,

em maior parte, nas regiões norte e nordeste do país. O registro de manifestações de

origem indígena e afro-brasileira se destaca, na maioria, entre os 28 bens registrados

pelo Instituto até o ano de 2016. A localização geográfica dos bens registrados e não

registrados (objetos de análise desta pesquisa) demonstram como a preservação do

patrimônio imaterial está atrelada à ideia de preservação das manifestações, às

populações consideradas tradicionais. Expressões culturais de cunho imaterial

relacionadas a grupos como os imigrantes ou a práticas culturais ligadas à dinâmica do

urbano-industrial não se encaixam nos padrões que parecem ter sido estabelecidos pelo

Iphan.

22 Conselheiro Joaquim Falcão. Ata da 1ª Reunião da Câmara do Patrimônio Imaterial, 2005,

<http://portal.iphan.gov.br/atasConselho>.

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2.2 Casos de pedidos aceitos: O registro da Arte Kusiwa - pintura corporal e arte

gráfica Wajãpie e o Jongo no Sudeste

“Parece que o branco pensa que o Wajãpi tem pouco. Não é tem pouco

Wajãpi; tem muito Wajãpi. Eu entendo pouquinho o que vocês estão falando:

o Wajãpi tem pouco; pouco tempo o Wajãpi vai acabar'. Não vai acabar não;

nunca o Wajãpi vai acabar.”23

“Tava dormindo, Angoma me chamou. Disse levanta povo, Cativeiro

acabou!”

“Papai era negro da Costa, mamãe era nega banguela, papai começo gostá de

mamãe, foi e casô cum ela.” Pontos de comunidades jongueiras.”24

A arte Kusiwa foi o primeiro bem registrado no Iphan, no livro Formas de

Expressão, em 20/12/2002. A arte Kusiwa pertence aos indígenas de nação Wajãpi, do

Estado do Amapá. Trata-se de pinturas corporais e arte gráfica, que explicam a

cosmovisão da nação indígena, sendo transmitida de forma oral. Atualmente, a arte

Kusiwa é utilizada em objetos decorativos, como potes de cerâmica, para uso e para

comercialização como meio de sobrevivência. Com visível risco de extinção, a aldeia

contava com apenas 500 pessoas no ano de concessão do registro, resultado da

exploração e interferência “civilizatória” ocidental.25

O Jongo no Sudeste foi registrado no livro Formas de Expressão, em 15/12/2005.

O jongo é uma forma de expressão que integra dança coletiva, tambores e práticas de

magia. Consolidou-se em fazendas de café e cana-de-açúcar por trabalhadores negros

escravizados, no sudeste do Brasil. Atualmente, praticado em comunidades no meio

rural e em quintais das periferias dos centros urbanos, a dança possui elementos da

umbigada e referências culturais ligadas, principalmente, ao povo de língua bantu

(IPHAN/DOSSIÊ 5, p. 13). O jongo foi registrado pela sua representatividade e forma

de resistência da cultura de matriz africana no país.

23Nazar Wajãpi, líder indígena. Ata da 38ª Reunião do Conselho Consultivo, 2002. 24 Iphan/Dossiê 5, Jongo no Sudeste. 25 Ata da 38ª Reunião do Conselho Consultivo, 2002, p. 8.

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*Elaborado pela autora

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2.3 Análise dos pedidos de registros negados

Farei, a partir daqui, a análise dos processos de pedidos de registro que foram

indeferidos pelo DPI (2002-2012). Serão analisados bens representantes dos 4 (quatro)

livros de registros a saber: Celebrações, Formas de Expressão (2º capítulo), Lugares e

Saberes (3º capítulo).

A metodologia de análise dos processos obedece a lógica do rito definido pelo

Iphan, caracterizados pelas 4 (quatro) fases: 1ª – Análise preliminar e abertura do

processo; 2ª – Arquivamento ou instrução técnica 3ª – Parecer final e apreciação do

Conselho Consultivo e 4ª – Registro.Tratando-se de pedidos indeferidos, o trâmite de

análise processual possui apenas as duas fases: 1ª – Análise preliminar e abertura do

processo e 2ª (Arquivamento ou Instrução Técnica). Descrevo como se dá as duas etapas

no desenvolvimento do rito em cada processo de pedido de registro.

2.3.1 Celebrações

O Livro de Celebrações é uma das categorias de inscrição do bem cultural

imaterial para efetivação do registro. Entende-se por celebrações os ritos e festas que

caracterizam as práticas culturais de determinado grupo social e que são responsáveis

pela manutenção da cultura e memória desses sujeitos. São as vivências coletivas que se

expressam em diferentes formas de sociabilidade como atividades religiosas, trabalho,

entretenimento, folguedos, etc. (IPHAN, 2000, p. 30)

Serão analisados, na sequência, 4 processos de solicitação de registro que não

foram inscritos no livro de celebrações por serem considerados inadequados. São eles:

Tooro Nagashi - Processo nº 01450.014349-2009-59; Tradições da Colônia Alemã –

Processo nº 01450.007061/2010-42; Tiro do laço – Processo nº 01450.013532/2010-51;

Clube do Tiro – Processo nº 01450.016012/2009-67.

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2.3.2 Tooro Nagashi - Processo nº 01450.014349-2009-59

Cerimônia Tooro Nagashi, 2/11/2004. foto 189, INRC/2009. Autor: Wagner Assanuma.

O pedido de registro do Tooro Nagashi contém as etapas bem definidas e claras

(1ª – Análise preliminar e abertura do processo; 2ª – Arquivamento ou instrução técnica;

3ª – Parecer final e apreciação do Conselho Consultivo). Isso ocorre pelo fato de a

Instrução Técnica, que resultou no dossiê de pesquisa, ter sido uma etapa concluída e

supervisionada pela superintendência estadual. Houve assim, subsídios para análise

processual e compreensão do bem cultural de forma satisfatória, já que o requerimento

atende a documentação exigida no processo do Iphan. O processo reúne os seguintes

documentos:

Requerimento do proponente e autorizações;

Registro audiovisual do evento em DVD, realizado no ano de 2007, criado pela

Taiti Vídeo;

Pareceres técnicos Iphan/SP/DPI;

Registros sonoros da pesquisa de campo (entrevistas);

Registro fotográficos digitalizados em CD-Rom com 517 imagens;

Dossiê de pesquisa com 72 páginas;

Folhetos e cartazes do evento de 2008;

Mapa da 54º festa do Tooro Nagashi – 2008 (em planta e em CD-Rom).

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Análise preliminar e abertura do processo

A inscrição na categoria “Celebrações” foi solicitada pela Associação Cultural

Nipo-Brasileira, da cidade de Registro/ SP, em nome do seu então presidente, Sr.

Rubens Takeshi Shimizu, em 16 de abril de 2008. A Associação oficializou o pedido à

Superintendência Regional do Iphan em São Paulo que deu sequência aos trâmites para

abertura do processo no DPI, em Brasília.

Avaliado pela relevância da expressão cultural e tendo em vista a comemoração

do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, a Superintendência de São Paulo se

posicionou favorável ao pedido e deu início à Instrução Técnica.26 O Inventário

Nacional de Referências Culturais do Tooro Nagashi foi iniciado sob supervisão do

Iphan-SP.

Após o trabalho de pesquisa em campo, realizado sob coordenação da técnica

responsável pelo patrimônio imaterial na superintendência estadual, a antropóloga

Simone Sayuri Toji, o pedido de solicitação de registro foi encaminhado ao

Departamento de Patrimônio Imaterial, em Brasília.

O Tooro (lanterna) Nagashi (lançar) é realizado todo o dia 2 de novembro, na

cidade de Registro/SP. Como forma de rememorar os antepassados, são lançados

barquinhos em forma de lanternas no Rio Ribeira de Iguape. “Essa prática iniciou-se no

Brasil com alguns imigrantes japoneses que ocuparam os núcleos coloniais da região do

Vale do Ribeira” (IPHAN, 2008, p. 37).

O primeiro Tooro Nagashi foi realizado em 1955 por conta de um afogamento no

Rio Ribeira, que tirou a vida de seis imigrantes das famílias HajimeYoshimoto, Tomeji

Musha e TeizoAkume, como também de um viajante japonês que estava de passagem

por Registro. Um sacerdote da região adepto ao Nicherenshu (uma das vertentes do

budismo) foi contatado pela família desse viajante para realizar um culto (Tooro

Nagashi) em sua memória. Essa tradição, já ocorria em vários locais do Japão, sendo o

mais popular o da cidade de Nagasaki, realizado em homenagem aos que foram mortos

26 Nesse período, o Iphan-SP realizava um projeto de pesquisa sobre a paisagem cultural do Vale do

Ribeira com a proposta de articular o patrimônio paisagístico, material e imaterial. O conjunto

arquitetônico localizado na cidade de Iguape foi tombado em 2011, incorporando essa proposta de

integração. Nesse projeto estavam envolvidos os técnicos da área de arquitetura (Flávia Brito

Nascimento); geografia (Simoni Scifoni) e antropologia (Simone Toji). Dessa forma, houve iniciativa por

parte do Iphan-SP de realizar o INRC do Tooro Nagashi, apoiando a comunidade na solicitação do

pedido. (DPI/Nota Técnica nº 25/09)

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durante a Segunda Guerra Mundial. O Tooro ocorre em várias partes do mundo em que

houve imigração japonesa (IPHAN/DOSSIÊ, 2008). Inicialmente, ele era realizado

apenas em memória de vítimas de afogamento no Rio Ribeira, seguindo protocolo de

tradições budistas. Atualmente, o Tooro ocorre em dois dias e se tornou um evento

ecumênico que agrega várias manifestações, tais como: apresentações artísticas,

culinária, venda de artesanato, etc. (ACNBR - 9ª SR/IPHAN/SP- Protocolo nº 528/p. 5).

Para o requerente, a celebração é compreendida como um grande evento, fazendo parte

do calendário turístico oficial da cidade de Registro.

Nota-se que o proponente teve a preocupação em não caracterizar a manifestação

como uma prática isoladamente japonesa. A manifestação deve ser eleita como

patrimônio imaterial pela sua característica multicultural. No primeiro dia de realização,

ela conta com apresentações de dança alemã, portuguesas, italianas entre outras

referências da imigração. Possui características de um grande espetáculo, o que promove

o interesse cada vez maior do público:

Vale destacar que a comemoração do Tooro Nagashi reúne

públicos cada vez mais numerosos a cada edição e este ano,

em alusão a comemoração do centenário da imigração

japonesa no Brasil, a evento será reforçado com mais

apresentações a fim de satisfazer um público de diferentes

etnias e crenças religiosas vindas de várias cidades da região e

até de outros estados [...] o evento contará com apresentações

de Waidako, Yasokoi-Soran e Don Odori, além de um show

pirotécnico para abrilhantar o evento.27

O Rio Ribeira de Iguape é referenciado não apenas pelo fato de que

sua ausência implicaria a inexistência da manifestação, mas o proponente

acentua sua importância para a paisagem cultural28 da cidade.

Com o reconhecimento do Iphan, temos a certeza de que será

divulgado ainda mais, uma vez que o Tooro Nagashi de Registro,

27 Proc. nº 01450.014349-2009-59, f. 5.

28 A chancela instituída pelo Iphan, na Portaria nº 127, de 30 de abril de 2009, assim definiu a paisagem

cultural brasileira: Art. 1º: Paisagem Cultural Brasileira é uma porção peculiar do território nacional,

representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana

imprimiram marcas ou atribuíram valores.

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pelas características de localização de nossa cidade, às margens do

Rio Ribeira de Iguape, com largura de mais e 200 metros, oferece

uma paisagem ideal para evento desta natureza, que e invejado até

pelos visitantes do Japão.29

Instrução técnica: Dossiê do Tooro Nagashi

Ao contrário da solicitação do requerente, na qual há um breve histórico da

realização do Tooro, o Dossiê apresenta ampla pesquisa histórica e agrega justificativas

pautadas na legislação e na rede de significados da prática cultural; Elucida também a

trajetória da imigração japonesa no Brasil e no estado de São Paulo, no início do século

XX, com detalhes sobre as tensões políticas fundamentadas na crença da existência do

“medo amarelo”. (IPHAN/DOSSIÊ, 2008).

Apesar de muitos sinais aparecerem para contrariar a imagem dos

imigrantes japoneses enquanto seres diferentes, - quase que por natureza,

devido ao pertencimento a uma “raça” particular, e por isso, também

carregados de uma potência perigosa, - nada convencia uma perspectiva

contrária [...] Nesse debate, os imigrantes, ora eram defendidos como

condição necessária para realizar o “branqueamento”, quando a

referência era para os imigrantes europeus, ora eram combatidos como

elementos agravadores da formação racial brasileira, quando se tratava

dos imigrantes asiáticos e africanos. (IPHAN, Dossiê, 2008, p. 29)

O Tooro Nagashi surge como uma forma de integração dos imigrantes japoneses

aos brasileiros, criando a partir da prática cultural, novos sentidos e significados de

pertencimento nacional, construindo a identidade nipo-brasileira e contribuindo para a

formação da identidade brasileira.

Apesar de realizada em muitos lugares do mundo, o evento no

Brasil atinge significações muito particulares, não podendo

ser considerado como prática “importada” ou “estrangeira”.

Ao contrário, seus praticantes reivindicam por meio dele

29 Proc. nº 01450.014349-2009-59, f. 56.

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participação na vida nacional, pois, através da realização da

celebração do Tooro Nagashi, eles acreditam realizar a

integração social e simbólica, necessária para se considerarem

como brasileiros.30

Parecer final da Câmara do Patrimônio Imaterial: razões da negativa ao

pedido de registro

A nota técnica assinada por Claudia Marina Vasques,31 (Coordenadora de

Registro do CGRI/DPI) ,explicita que a Instrução Técnica não é satisfatória e requer

maiores detalhes sobre os atores envolvidos no evento, tais como os envolvidos na

fabricação do Tooro e os responsáveis pelas comidas típicas oferecidas. (NOTA

TÉCNICA/DPI nº 25/09). Considera haver uma lacuna que não permite o

aprofundamento sobre a incidência do evento em outros estados brasileiros, assim como

detalhes da sua origem no Japão, indagações que não permitem a comprovação de que o

bem cultural ultrapassa três gerações.

A nota técnica encaminhada à Câmara do Patrimônio Imaterial32 declara que o

pedido dialoga com os critérios de relevância legais para o reconhecimento. Contudo,

reforçou que ele infringe o inciso 2, do artigo1º, do Decreto 3.551/200, no que diz

respeito à continuidade histórica do bem. Propuseram que a pesquisa fosse ampliada em

território nacional, com o objetivo de verificar se a manifestação ultrapassava seus 50

anos de prática na cidade de Registro.

Existe um problema de objeto uma vez que a celebração do Tooro Nagashi

na cidade de Registro/SP não conta com os 75 anos exigidos para seu

Registro como Patrimônio Cultural do Brasil, haveria a necessidade de se

encontrar evidências de sua continuidade histórica ou, então, ponderar sobre

a possibilidade de alteração do objeto de Registro. Considerando os cem anos

da imigração japonesa no Brasil, parece haver um período de interrupção, ou

30 Iphan/Dossiê 2008, p. 38.

31 Cláudia Marina de Macedo Vasques é arquiteta formada pela Universidade de Brasília, servidora do

IPHAN desde 1983. Dados de atuação profissional obtidos na Plataforma Lattes. 32

Os participantes da CPI que apreciaram o pedido foram: Marcia Sant’Anna (arquiteta); Ulpiano T.

Bezerra de Menezes (historiador); Luís Phelipe Andrés (engenheiro); Maria Cecília Londres Fonseca

(socióloga); Arno Wehling (historiador); Cláudia Marina Vasques (arquiteta); Ana Gita de Oliveira

(antropóloga); Ana Cláudia Lima e Alves (historiadora) e Luciana Borges Luz (historiadora). Dados de

atuação profissional obtidos na Plataforma Lattes.

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lacuna, relacionada a essa celebração, sobre a qual não se tem qualquer

informação. A Câmara do Patrimônio Imaterial considerou que seria

importante ampliar a pesquisa histórica sobre o Tooro Nagashi para fora da

cidade de Registro (SP), em outras localidades do país que receberam

migrantes do Japão. Considerou-se também importante buscar informações

sobre a transplantação dessa manifestação do Japão para o Brasil.33

Assim como demonstra o parecer assinado pela diretora do Departamento de

Patrimônio Imaterial, Márcia Sant’Anna, e que foi encaminhado à Superintendência de

São Paulo a fim de informar o proponente, a causa da impossibilidade de registro seria

tão somente a falta de continuidade histórica:

De acordo com o que estabelece o 2º artigo 1º Decreto 3551 a inscrição em

um dos livros de registro será feita sempre como referência à continuidade

histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, identidade e a

formação da sociedade brasileira. No caso da celebração do Tooro Nagashi,

sua prática em território paulista data um pouco mais de cinquenta anos, não

atingindo o limite de setenta e cinco anos correspondente a uma geração.34

(GAB/ DPI/MEMORANDO nº 0732/09)

Esse quesito segue a recomendação da UNESCO que defende que

uma geração corresponde a 75 anos de existência. O conceito de

continuidade histórica recai sobre a ideia de que o bem cultural permanece

ao longo do tempo e é transmitido aos grupos sociais de geração a geração

(IPHAN, 2014). A permanência da prática cultural marcada pelo tempo

deve ser compreendida a partir das suas transformações e reelaborações.

Refuta-se, com isso, a ideia de originalidade e imutabilidade da

manifestação cultural, mas a ancianidade da prática é eleita como um

ponto determinante, seguindo a lógica do tombamento em que a

patrimonialização é orientada pela consagração do passado.

33

Ata de Reunião da CPI, em 25 de novembro de 2009. <http://portal.iphan.gov.br/atasConselho>. 34 GAB/DPI, Memorando nº 0732/09.

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2.3.3 Tradições da colônia alemã de Petrópolis/RJ - Processo nº 01450.007061/2010-42

Colonos alemães em Petrópolis, no ano de 1922. Bodas de ouro de Pedro Winter e Clara Blaeser. Acervo:

Instituto Bingen – Anexo ao Proc. 01450.007061/2010-42.

O pedido de registro das Tradições da Colônia Alemã compõe um processo com

poucos elementos para análise. O pedido foi arquivado na 2ª etapa do rito estabelecido

no Iphan (Instrução Técnica ou Arquivamento). Os argumentos para registro do bem

foram defendidos pelo proponente, que encaminhou os seguintes documentos ao DPI:

Cartas de organizações estabelecidas em Petrópolis em apoio ao Registro;

Livretos e folhetos e encartes de divulgação das atividades da imigração alemã

organizadas pelo grupo de descendentes imigrantes, prefeitura e câmara de

vereadores da cidade;

Recortes de matérias de jornais que mencionam a colônia alemã;

Imagens de colonos e festas de grupos folclóricos;

Artigos e fotos de bandas de Petrópolis.

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Análise preliminar e abertura do processo

O pedido de registro das Tradições da Colônia alemã foi solicitado em 1º de

dezembro de 2009, pelo Instituto de Preservação Ambiental e Cultural do Bingen, em

nome da sua presidente, Renata Pertot de Oliveira. O pedido foi direcionado à

Superintendência do Rio de Janeiro que se posicionou favorável ao registro

encaminhando-o para abertura de processo no DPI.

O Instituto Bingen é um órgão não governamental que tem como proposta

fomentar, preservar e estimular a cultura e meio ambiente da região do Bingen, bairro da

cidade de Petrópolis. A proposta de registro contém anexos com cartas de declarações

de apoio ao registro da Fundação de Cultura e Turismo - Prefeitura de Petrópolis/ RJ e

Mitra Diocesana de Petrópolis/RJ. (Proc. 01450.007061/2010-42, fl. 1-4)

A justificativa do proponente é respaldada na contribuição da imigração alemã

na formação da cidade de Petrópolis, com a instalação da primeira colônia, no final do

século XIX. Segundo o proponente, a inserção da primeira leva de imigrantes na região

se deu em 1837, por conta do projeto de industrialização incentivado pela Coroa,

conjuntamente ao interesse em explorar mão de obra imigrante europeia. Um navio que

levava imigrantes alemães à Austrália aportou no Rio de Janeiro por conta de suas

péssimas condições de viagem. O Major Júlio Frederico Koeller soube do ocorrido e

pediu permissão para que esses imigrantes se estabelecessem no Rio de Janeiro para

integrar-se aos trabalhadores portugueses que trabalhavam na abertura da Serra da

Estrela (PROC. 01450.007061, 2010-42, fl. 8). Posteriormente, Major Koeller contratou

mais 200 imigrantes alemães, que vieram para o Brasil com objetivo de trabalhar no

plano urbanístico da cidade. Ao fim da jornada, esses trabalhadores se deslocavam para

as montanhas próximas onde formaram um pequeno povoado. Essa vila originou a

cidade de Petrópolis. A imigração alemã, segundo a proponente, é marca da cidade de

Petrópolis, pois influenciou a vida cultural da cidade em vários aspectos.

Ao observar o nome das ruas, e os sobrenomes que aparecem nas

listas telefônicas da cidade é fácil observar quem foram os primeiros

moradores destas vilas. Além disso, a culinária as festas, as danças os

eventos religiosos e os traços da arquitetura marcam aqueles que visitam a

região. Até hoje vivem na cidade descendentes do povo que deixou seu país

em busca da “terra prometida” em pleno século XXI [...] O sobrenome de

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todas as famílias de colonos alemães que chegaram à Petrópolis está

eternizado no centro da cidade em placas cravadas no monumento do

Obelisco.35

A superintendência estadual considerou o pedido pertinente após ser avaliado

pela sua assessoria de patrimônio imaterial que indicou o pedido, em acordo com as

exigências da Resolução nº 001, de agosto de 2006.

O pedido de registro tem cabimento, e através do INRC, irá identificar na

região de Petrópolis as manifestações culturais, cultos e práticas de origem

alemã e, realizar um estudo sobre as contribuições sócio-culturais da

imigração tendo em vista sua grande importância para a formação da cidade.

O estudo investigará ainda os significados atribuídos pelos grupos sociais a

manifestações culturais, às referencias histórias e suas transformações, bem

como as ações de salvaguarda que poderão ser implementadas para valorizar

e dar continuidade à manifestação.36 (

Arquivamento do processo e parecer da Câmara do Patrimônio Imaterial:

razões da negativa do pedido ao registro

A nota técnica do DPI, assinada por Luciana Borges Luz37, relata que o pedido

está inconsistente, pois nele, não há a descrição de uma manifestação cultural específica,

mas sim “o reconhecimento das tradições”. Isso seria vasto e há necessidade de indicar,

dentro destas tradições, que tipo de manifestação deseja reconhecer. Para que haja um

mapeamento dessas tradições, a técnica sugeriu a elaboração do INRC.

Para auxiliar na delimitação dos bens culturais mais significativos desta

população descendentes de colonos alemães, recomendamos a realização de

um inventário prévio ao pedido de registro. Assim será possível identificar as

referências culturais dessa comunidade e indicar, ou não, um ou mais bens

para o registro. Sugerimos, portanto, que o proponente formalize, junto ao

DPI, um pedido de cessão da metodologia do INRC para que se possa

proceder o inventário.38

35 Proc. 01450.007061, 2010-42, f. 7.

36 (GAB/Iphan/RJ, Memorando nº 076, 2010.

37 Luciana Borges Luz é graduada em história pela Universidade de Brasília. [Dados da atuação

profissional, obtidos na Plataforma Lattes]. 38 CGRI/DPI, Nota Técnica nº 15/10.

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A não obrigatoriedade do uso do INRC é informada na nota. Todavia, a prática

de recomendá-lo é usual nas orientações dos pedidos demonstrando o INRC como

alternativa única e viável. A complexidade metodológica não pode ser desconsiderada,

o que induz os proponentes elaborar um inventário seguindo todos os conceitos do

INRC. Apesar de não ser imposto - sua metodologia, fundamentada em conceitos

próximos à antropologia, é fundamental para o registro do bem. Sem a inserção desses

conceitos, como a concepção de referência cultural, por exemplo, não há como validar a

pesquisa pelo Iphan. (RESOLUÇÃO nº 001, de agosto de 2006)

Houve uma divergência entre o entendimento da superintendência estadual e o

DPI. Aquela não considerou a premissa de que para encaminhar a solicitação de pedido

de registro, era necessário eleger uma manifestação cultural. O Iphan/RJ encaminhou o

pedido, solicitando que fosse aceito e, por isso, dado sequência ao trâmite de

reconhecimento que seria a elaboração do INRC de todas as manifestações, de forma

genérica e ampla. Isso evidencia que não havia entendimento coeso da normatização

burocrática entre as superintendências e sede.

O pedido de registro foi arquivado pela Coordenadora Geral de Identificação e

Registro, Sra. Claudia Marina Vasques, sendo considerado improcedente pela Câmara

do Patrimônio Imaterial. O parecer foi encaminhado à Superintendência do Rio de

Janeiro para ser direcionado ao proponente.

Por fim, propomos que o pedido atual seja arquivado, e que o proponente e a

superintendências, sejam notificados, orientados com relação às providencias

a serem tomadas. Destacamos que é de grande interesse do DPI dar

andamento a projetos relativos às culturas de imigração, ainda pouco

contempladas pela política de salvaguarda de bens culturais de natureza

imaterial, especialmente no que tange ao registro.39

39Proc. 01450.007061, 2010-4, f. 13.

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2.3.4 Tiro do laço – Processo nº 01450.013532/2010-51

20ª Festa campeira do Rio Grande do Sul – 2008. Foto anexada ao Proc. nº 01450.013532, 2010- 51, f. 266.

Trata-se de um processo complexo composto de 370 páginas. A abertura da

instrução administrativa no DPI/BR ocorreu após um ano da solicitação do requerente,

pois a superintendência regional do Rio Grande do Sul não aprovou o pedido por

compreendê-lo inconsistente. O processo reúne os seguintes documentos:

Requerimento do proponente Sr. Eduardo Fonseca Alves;

Manifesto denominado “Tiro do laço: esporte a patrimônio cultural”, com 173

páginas, desenvolvido pelo proponente;

Recortes de jornais, folders com a divulgação da Festa do Tiro do Laço;

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Cópias de extratos dos livros “O Povo do Pampa”, de Tau Golin; “Assuntos do

Rio Grande do Sul” e “Sobre Costumes do Rio Grande do Sul”, ambos de João

Cezambra Jacques;

Cópia de correspondências entre o proponente e as seguintes instituições: Casa

Civil do Estado do Rio Grande do Sul, OAB/RS, Departamento de História da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Instituto Histórico e Artístico do

Rio Grande do Sul.;

CDs e três DVDs com documentos, fotografias e reportagens sobre o trabalho do

proponente sobre o Tiro do Laço e filmagens de práticas do treino para

competição.

Análise preliminar e abertura do processo

O pedido de registro foi encaminhado em nome Sr. Eduardo Fonseca Alves, que

se identifica como laçador, membro da associação civil, Movimento Tradicionalista

Gaúcho – MTG, e pesquisador rio-grandense. O requerimento foi endereçado à

superintendência estadual, no dia 25 de março de 2009, sendo o processo aberto pelo

DPI, em 21 de setembro de 2010.

O Tiro do Laço ou Caçada de Boi é uma técnica de apreensão do gado utilizada

pelos gaúchos. O solicitante relata que há indícios que técnica similar era utilizada pelos

indígenas, desde o século XVII (PROC. nº 01450.013532/,2010-51, f. 72). Ao longo do

tempo, o Tiro do Laço se tornou uma competição importante no estado do Rio Grande

de Sul, ligado a tropeiros, pecuaristas e pessoas ligadas ao campo. É realizado em

eventos de Rodeios e Torneios do Laço. O requerimento possui a assinatura com o aval

de laçadores de vários municípios do Rio Grande do Sul.

O proponente manifesta o desejo de reconhecer o Tiro do Laço como um esporte

de origem gaúcha. O requerimento descreve a trajetória e empenho do Sr. Eduardo da

Fonseca em reconhecer a manifestação em um período de mais de um ano, entre a

solicitação e a resolução do pedido. A justificativa é a proteção à essência da técnica,

que deve ser ligada ao povo gaúcho, promoção e divulgação da cultura sul-rio-

grandense e reconhecimento da prática como esporte nacional.

A proposta foi compartilhada entre os demais membros do MTG que a

rejeitaram, por acreditarem que essa ação advoga contra os princípios tradicionalistas.

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Contestando a posição dos colegas, o Sr. Eduardo Fonseca Alves encaminhou o pedido

para o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore - IGTF, que, por sua vez, delegou o

requerimento à Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul. (PROC. nº 01450.013532,

2010-51, f. 191). A Secretaria não foi favorável à proposta, pois considerou que o Tiro

do Laço já é reconhecido como componente da cultura gaúcha e tem sua prática

garantida pela lei nº 12.527/2006 que autoriza os rodeios no país, o que dispensa outras

iniciativas nesse sentido (PROC. nº 01450.013532, 2010-5, f. 196). Por esse motivo, o

proponente recorreu ao órgão de preservação regional, Iphae – Instituto do Patrimônio

Artístico e Histórico Estadual, que orientou que fosse encaminhada a demanda ao Iphan,

pois não possuem mecanismos legais que reconheçam o patrimônio imaterial.

A superintendente do Iphan/RS, Sra. Ana Lúcia Goezer Meira, após ter a

devolutiva dos técnicos que atuam na área de patrimônio imaterial, acerca do pedido,

despachou o ofício, rejeitando o requerimento, em 27 de abril de 2009:

O reconhecimento, por meio do registro, não equivale a um selo de qualidade

e não visa um disciplinamento de práticas culturais vivas, que são dinâmicas

e se transformam pela vontade dos sujeitos sociais. Além disso o IPHAN não

tem competência para legislar sobre práticas esportivas.40

No ofício, a superintendente relata que o proponente foi orientado pelos

técnicos, por contato telefônico, que o seu pedido não respeitava os requisitos legais,

como, por exemplo, partir da comunidade detentora do bem, formalizada em associação

e não de forma individualizada. Em 23 de julho de 2009, o proponente reencaminhou o

pedido, informando que continha um aprofundamento do manifesto intitulado Tiro do

Laço: Esporte e Patrimônio Cultural.

O registro da técnica como prática predominantemente gaúcha refuta qualquer

outra forma de laço como não original, afirmando o nascimento da essência da prática

no Estado do Rio Grande do Sul (PROC. nº 01450.013532/2010-51/f. 43). O proponente

associa registro como meio que possibilita a transcrição de técnica oral. Como exemplo,

menciona a patrimonialização da Arte Kusiwa que incentivou o processo de

alfabetização dos indígenas como meio de garantir o registro escrito da prática dos

40 Ofício nº 262, 12ª SR/Iphan.

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desenhos e pinturas Wajãpi,41 técnica transmitida de forma oral. Para ele, o Tiro do Laço

se assemelha a culturas tradicionais, pois, a sua técnica é transmitida de geração a

geração de forma oral. Sobre as transformações que o bem cultural sofreu ao longo do

tempo quanto ao nome e formas de laçar, o Sr. Eduardo Fonseca faz analogia do Tiro do

Laço ao Frevo, que possui três modalidades: frevo de rua, frevo de bloco e frevo de

canção. O Tiro do Laço possui a modalidade Laço Cumprido, porém, como assegura o

proponente, as duas modalidades de competição mantêm as características rio-

grandenses salvaguardadas.

A história comprova que as transformações não alteram

essência da técnica de laçar, tendo sido elas importantes para

preservá-la, de forma que as mesmas possibilitam reiteração

do método presente.

Ainda sobre as transformações, informa-se que quando foi

desenvolvido o processo de reconhecimento do Frevo,

consideraram-se todos os aspectos relevantes para a

compreensão deste. Tendo ele sido reconhecido, fica

demonstrado que mantida a raiz que caracteriza a

manifestação, torna-se possível reconhecê-la como patrimônio

imaterial.42

Ciente da inexistência da categoria esporte nos livros de registro abertos, o

solicitante reporta-se ao Decreto nº 3.551, de 2000, que prevê a abertura de novos livros

caso a prática cultural não se enquadre em nenhum dos livros em uso. Questiona ainda

o fato de a capoeira ser considerada um esporte e ter sido reconhecida pelo Iphan como

patrimônio Imaterial.

A capoeira é considerada esporte. Segundo Leonardo José Maturana dos

Santos e Luciana de Oliveira Barros, é modalidade desportiva,

41 A arte Kusiwa – pintura corporal e arte gráfica Wajãpi, foi reconhecida como patrimônio imaterial em

2002. “A tradição gráfica, que os Wajãpi do Amapá denominam Kusiwa, aplica-se à decoração de corpos

e objetos, envolvendo técnicas e habilidades diversificadas, como o desenho, o entalhe, o trançado, a

tecelagem, etc. Sua função principal, no entanto, vai muito além desse uso decorativo, pois o manejo do

repertório de padrões gráficos é um prisma que reflete, de forma sintética e eficaz, a cosmologia desse

grupo, suas crenças religiosas e práticas xamanísticas.” (IPHAN, Dossiê Wajãpi, 2002, p.13) 42 (Eduardo Fonseca Alves. Proc. nº 01450.013532,2010-51, f. 70.

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institucionalizada em 1972, pelo Conselho Nacional de Desportos [...] Além

de esporte, como já foi visto, a capoeira também é patrimônio cultural

segundo transcrição que segue constando na relação do IPHAN como Mestre

de Capoeira e Ofício dos mestres de capoeira.

O fato é que a capoeira é esporte cultural. A forma esportiva implica uma das

manifestações culturais em que ela ocorre, resultado da recriação. Com isso,

observa-se que, visto por esse ângulo, o caso dela é o mesmo do Tiro do

Laço.43

O proponente ressalta, ao longo do documento, como a prática está ligada ao

povo gaúcho e como ela afirma essa identidade. Apesar de essa manifestação ter

migrado para outros estados, como o de Mato Grosso do Sul, o Rio Grande do Sul seria

o centro e o referencial para o pedido por ser atribuído ao estado a origem do bem

cultural.

Reconhecer o Tiro do Laço como esporte e Patrimônio Cultural Imaterial

reforçaria a cultura do Rio Grande do Sul, fazendo-se o elo entre o gaúcho, o

cavalo e a tradição pecuária do estado. Dessa maneira, é possível unir esporte

e cultura, enquadrando o Tiro do Laço como um esporte de identidade

cultural rio-grandense. Além disso, o esporte oferece s possibilidade de

disseminação mundial, transformando-se um meio de divulgação da cultura

gaúcha que estaria protegida pela condição de Patrimônio Cultural Imaterial

adquirida pelo Tiro do Laço.44

Arquivamento do processo e parecer da Câmara do Patrimônio Imaterial:

razões da negativa do pedido ao registro

Notadamente, houve insistência para que o processo fosse aberto, já que mesmo

após a informação de que o pedido era inconsistente, em março de 2009, o proponente

deu sequência à pesquisa até abertura do processo, em outubro de 2010. O manifesto

intitulado “Tiro do Laço: Esporte e Patrimônio Cultural” (documento produzido pelo

preponente e anexo ao processo) demonstra o estudo da legislação federal, sendo

finalizado em outubro de 2009. Deixa evidente que o proponente ampliou suas

43 Proc. nº 01450.013532,2010-51, f. 70.

44 Proc. nº 01450.013532/2010-51/f. 44.

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pesquisas sobre a manifestação para dar consistência aos seus argumentos no

encaminhamento dos documentos para abertura do processo do DPI.

O manifesto discorre sobre a história do Tiro do Laço e reúne pareceres emitidos

pelo Iphae, Ata do 55º Congresso Tradicionalista, com anexos de cópias de

correspondências entre o proponente e Casa Civil do Rio Grande do Sul, Departamento

de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, assinatura de laçadores que

concordam com o pedido, fotografias e reportagens.

A diretora do DPI, Márcia Sant’Anna45 emite um parecer sobre o pedido

reforçando a posição da superintendência Iphan/RS de que não seria possível dar

sequência ao pedido e o mesmo seria arquivado.

Esclareço que, apesar do pedido estar com anuência de outros laçadores,

ainda se trata de iniciativa individual, o que não está previsto em legislação

que orienta os procedimentos para registro de bens culturais de natureza

imaterial. Neste sentido, venho informar que este departamento acata o

parecer nº 38de 15 de dezembro de 2009, da superintendência do Iphan Rio

Grande do Sul que avaliou o pedido improcedente. Ressalto ademais as

considerações feitas no referido parecer, que em outras questões, explica que

o registro não tem função de proteção de um determinado bem cultural por

meio da preservação da sua essência e que o mesmo não está voltado para

reconhecimento de um bem em modalidade esportiva

O Sr. Eduardo Fonseca se opôs ao MTG, associação a qual faz parte,

caracterizando-o como um órgão que deseja “monopolizar a tradição gaúcha” (PROC.

nº 01450.013532, 2010-51, fl. l45). Isso também demonstra como a ação de reconhecer

o Tiro do Laço como patrimônio, para o proponente, está em meio a uma disputa de

narrativas, poderes e concepções sobre o que é patrimônio brasileiro. Ele não faz

intermediações entre as culturas étnicas, que fazem parte da formação do

Estado do Rio Grande do Sul e, consequentemente, da formação do Brasil. O gaúcho,

forjado pelo sentimento regionalista do proponente, é a figura central que justifica o

registro da manifestação.

45 Márcia Sant’Anna é arquiteta pela Universidade de Brasília (1980), possui mestrado e doutorado em

arquitetura pela Universidade Federal da Bahia.

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2.3.5 Festa de atiradores Schützenfest - Processo nº 01450.016012/2009-67

Festa de Rei Horst Zimdars. Década de 50. Acervo: Clube REC. Foto anexada ao Proc. nº 01450.016012, 2009-67

Trata-se de um pedido que oferece elementos escassos para análise e pouco

indícios históricos do bem cultural, razão pela qual o DPI solicitou um aprofundamento

da pesquisa. Foi solicitado pelo DPI um maior aprofundamento sobre a celebração. O

Tiro do Laço foi identificado como adequado para integrar-se o projeto que estava em

andamento denominado “Roteiros Nacionais de Imigração de Santa Catarina”,

coordenado pelo Departamento de Patrimônio Material – DEPAM. O processo reúne os

seguintes documentos:

• Requerimento;

• Duas mídias digitais;

• Cópia de fotografias do acervo dos Clubes de Caça e Tiro.

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Análise preliminar e abertura do processo

O pedido de registro da Festa de Atiradores “Schützenfest”, foi solicitado em 11

de setembro de 2009, pela Associação dos Clubes de Caça e Tiro de Blumenau/SC em

nome do presidente Sr. Moacyr Flor, em conjunto com a Procuradoria Federal do

Município de Blumenau, em nome do procurador Sr. Ricardo K. Donini. O

requerimento foi encaminhado ao DPI pelo superintendente do Estado de Santa Catarina

Iphan/SC, Sr. Ulisses Minarim, em 30/10/2009.

Os colonos alemães da atual cidade de Blumenau/SC criaram o primeiro Clube

de Caça e Tiro denominado “Schützenverein”, em 2 de dezembro de 1859. As

sociedades de tiro são heranças trazidas da Alemanha. O clube tinha a função de

recreação e interação entre os imigrantes, oferecendo uma oportunidade de reviver

aspectos culturais do Heimat (Pátria).

Nestas celebrações, além do tiro, integram-se a dança, a música, a culinária,

o bolão, a bocha, o skat (jogo de baralho), etc, tornando-se um verdadeiro

nicho cultural que continua a desenvolver-se na atualidade, quando se torna o

maior referencial identitário local dos povos desta etnia. O ápice ocorre

durante a Festa de Atiradores, celebração que se pretende levar ao registro

com o presente requerimento.46

Os clubes de tiro são comuns em localidades com forte presença de imigrantes

alemães e possui características nacionalistas. A justificativa do registro é construída

com demasiado apelo à potência turística que o reconhecimento trará à cidade.

Um planejamento focando a herança cultural local, é o mesmo que poderá

facultar atrações diferenciadas aos turistas. A identidade histórica e cultural,

aliada a conservação e valorização dos patrimônios culturais, poderá

estimular os cidadãos a resgatarem sua identidade local e seu sentimento de

pertencimento ao lugar e ainda aumentar consideravelmente a procura

turística, aumentando a renda, consequentemente proporcionando qualidade

de vida aos moradores locais. Assim através dos roteiros turísticos focados

nas tradições culturais locais, fundadas no legado deixado pelos imigrantes,

46

Proc. 01450.016012, 2009-67, f. 2.

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será fomentada a conservação e sustentabilidade não do bem cultural de

natureza imaterial cujo registro se pretende, mas também grande parte do

patrimônio material e imaterial da região.47

Arquivamento do processo e parecer da Câmara do Patrimônio

Imaterial: razões da negativa do pedido ao registro

Em 18/12/2009, a Sra. Claudia Vasques, Coordenadora de Registro, relatou que

de acordo com a última reunião da Câmara do Patrimônio Imaterial, realizada em

09/12/2009, onde discutiram os pedidos de registro do Clube do Tiro e Modos de fazer

Polenta de Descendentes Italianos, seus membros chegaram a um consenso de que

deveriam contatar o Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização–DEPAM para

verificar a possibilidade de articulação dessas práticas culturais imigrantes com o

projeto (MEMORANDO nº 0733/09).

A diretora do DPI, Sra. Marcia Sant’Anna despachou o ofício em resposta ao

pedido, em que informa a necessidade de empenhar uma pesquisa ampliada da

manifestação, para que seja melhor compreendida como passível de reconhecimento.

Para tal, se dispõe a assinar o Termo de Cooperação entre o Iphan e a Associação de

Clubes de Caça e Tiro, permitindo o acesso ao proponente à metodologia do INRC para

desenvolvimento da pesquisa.

Informamos a Vossa Senhoria que a documentação encaminhada não

possibilitou uma análise consistente do pedido, especialmente no que diz

respeito à comprovação, ou não, de que se trata de prática de natureza

cultural com densidade simbólica e enraizamento cotidiano das comunidades

que produzem e reproduzem. Acreditamos, no entanto que a realização de

um amplo inventário das práticas relacionadas às comunidades de

descendentes de imigrantes do sul do país possibilitaria uma visão mais

ampla e criteriosa a respeito de que objetos, que elementos, que referências

culturais seriam mais significativas para registro como Patrimônio Imaterial

do Brasil.

47 Ibid., f. 4.

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Nesse sentido, o processo em questão foi remetido à Coordenação de

identificação do departamento que, em articulação com o Depam –

Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan, verificaria a

possibilidade de incorporação de pesquisa específica, voltada para o

atendimento desta demanda em especial, ao projeto “Roteiros da Imigração

no Sul do Brasil” em desenvolvimento e sob responsabilidade do citado

Depam. Informo que enviaremos esforços para efetivar esta articulação tão

logo conseguirmos recursos orçamentários.48

Observa-se no ofício que havia mobilização do DEPAM para mapear o

patrimônio material imigrante, no mesmo período. Houve articulação entre os

departamentos de patrimônio material e imaterial, e o bem cultural passou a compor o

projeto “Roteiros da Imigração no Sul do Brasil”, finalizado no ano de 2011. O Tiro do

Laço é citado na publicação com mais detalhes, porém ser aprofundamento já que o

projeto tem por objetivo um mapeamento dos bens culturais materiais e imateriais.

Único folguedo popular do ano, a festa tradicional dos atiradores

(Schützenfest) coincidia com a Páscoa e era o momento em que os colonos

viam seus companheiros, parentes e vizinhos de picada. A bandeira do clube

e o uniforme dos sócios eram confeccionados na Alemanha e todos

compareciam à festa uniformizados e ostentando as medalhas ganhas nas

competições de tiro. A origem dessas sociedades “pode ser encontrada nas

corporações de tiro medievais alemães, cujas tarefas práticas – auxiliar, em

tempo de guerra, na defesa de burgos e castelos – eram aliadas aos festejos

da primavera. O caráter popular das festas dos atiradores nas zonas rurais da

Alemanha, no século XIX, se manteve nas regiões de colonização do vale do

Itajaí, outra vez aliado ao aspecto prático. Também aqui, os atiradores, de

acordo com informações obtidas nas entrevistas, formavam uma linha de

defesa da comunidade – instalada numa zona pioneira, de floresta, onde os

únicos habitantes eram os índios”.49

Sr. Ricardo K. Donini, representante da Procuradoria Federal do Município de

Blumenau, realizou reunião com representantes da colônia alemã e italiana, em

48 GAB/DPI, Ofício nº 071/10.

49 Iphan, 2011, p. 184-185.

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17/06/2010, para sanar dúvidas sobre as orientações oferecidas pela Sra. Marcia

Sant’Anna/DPI. Na reunião, estavam presentes o Sr. Moacyr Flor (Presidente da

Associação dos Clubes de Caça e Tiro de Blumenau), o Sr. Cacidio Girardi (Presidente

do CircoloTrentino de Blumenau) e a Sra Regina Baallmann. Os presentes firmaram

acordo em buscar recursos públicos e privados para a realização do inventário de

referências culturais.

A Procuradoria encaminhou um ofício aos cuidados da diretora do DPI Márcia

Sant’Anna, em 18/06/2010. O documento contém a Ata da Reunião em anexo, e solicita

a concessão da metodologia do INRC para dar início ao Inventário. (Procuradoria

Federal do Município de Blumenau, Ofício nº 1º, 1026, 2010)

O INRC, denominado “Levantamento de Bens Culturais, Imateriais das

Comunidades de Descendentes de Imigrantes e Clubes de Caça e Tiro/SC”, consta em

andamento e se encontra sob supervisão da superintendência de Santa Catarina.50

50

Cf. <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/680/>.

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2.3.6 Celebrações sem registro: análise das propostas

Os pedidos de registro de celebrações revelam a complexidade da construção do

processo identitário no Brasil, que é composto por uma multiplicidade étnica e de

particularidades regionais. O sul e sudeste do país possuem um número considerável de

imigrantes; analisar a construção da brasilidade desses grupos e como foram postas

essas trocas culturais são elementos fundamentais para se compreender a formação das

identidades no Brasil.

Segundo Lesser (2001), a formação da identidade brasileira é construída tanto pelas

elites quanto pelos grupos minoritários que, ao longo do tempo, transformam o conceito

de identidade nacional em meio a disputas e negociações.

A hierarquização de raças defendida por políticas eugenistas no Brasil, no final do

século XIX e início do século XX, dá subsídios para que se entenda o processo da

exploração da mão de obra no país e que ele se consolidou de maneiras distintas entre os

grupos sociais (SCHWARZ, 1993). Os pedidos de registro de celebrações dos

imigrantes alemães e japoneses oferecem indícios que remontam à história de inserção

dos imigrantes em solo brasileiro. Um processo, conflituoso, sobretudo, no aspecto da

negociação identitária.

Os japoneses, por exemplo, foram, por alguns, caracterizados como um grupo de

imigrantes indesejáveis por se afastarem do ideal da branquitude. Foram vistos,

sobretudo, pós-Segunda Guerra Mundial, como um grupo sem possibilidade de

integração, com forte tendência ao isolamento (IPHAN, DOSSIÊ, 2008, p. 68).

Contestando essa hipótese, uma das preocupações do proponente do pedido foi

demonstrar como os japoneses se esforçaram para se integrar aos brasileiros, sendo o

Tooro Nagashi, desde o seu início, uma ferramenta utilizada para a inserção social

desses recém-chegados. Atualmente, essa marca multiétnica tomou proporções maiores

no evento. Ela é destacada como uma qualidade positiva pelo proponente.

O primeiro dia do evento reúne diversas atividades, entre elas apresentação

de Wadaiko, Yosakoi Soran, MinyoYamatokay, além de apresentações de

danças alemãs, portuguesas, italianas e de diversas nacionalidades,

terminando com o Don Obori.51

51 ACNBR, 9ª SR/Iphan/SP, Protocolo 528, p. 2.

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Tanto no requerimento quanto na elaboração do dossiê, houve uma preocupação

em demonstrar a identidade nipo-brasileira como central. O que interessa são suas

ressignificações, a partir deste Brasil, opondo-se à ideia de haver uma manifestação que

almeja dar continuidade às tradições puramente japonesas. Apesar de ocorrer no Japão e

em outros locais com incidência da imigração japonesa, possui simbologias e

significados diversos, que são intrínsecos ao local/país onde se realiza. Nesse sentido, é

importante assinalar que essas manifestações culturais não são e não devem ser

entendidas como representações imutáveis e/ou continuidades do país de origem, mas

são reconstruídas a partir do contato com o outro. Segundo Hall (2006), as novas

diásporas marcadas pelo período pós-colonial resultaram a formação de culturas

híbridas. Ou seja, o processo migratório estimulou o encontro entre culturas,

ocasionando a construção de identidades fragmentadas e multiétnicas. Não se pode, por

isso, entender a identificação como um processo fechado, homogêneo e acabado.

O Rio Ribeira de Iguape é uma referência de extrema relevância na construção

do pedido. A importância do Rio é vislumbrada não somente pelos detentores do Tooro,

mas se mostra presente nas diversas manifestações culturais das comunidades

ribeirinhas, caiçaras e quilombolas de todo o Vale do Ribeira (NASCIMENTO;

SCIFONI, 2010, p. 34). Esse intercruzamento entre a paisagem cultural representada

pelo rio e a manifestação em si, pontua como o patrimônio cultural faz-se presente em

toda a sua totalidade. A experiência que resultou no tombamento do conjunto

arquitetônico e paisagístico na cidade de Iguape, no Vale do Ribeira, é um exemplo de

como é possível pensar o patrimônio cultural em sua amplitude. O projeto coordenado

pelo Iphan-SP propôs o tombamento integrando paisagem cultural, patrimônio material

e imaterial.

No de pedido de registro das Tradições da Colônia Alemã de Petrópolis, o

proponente constrói sua argumentação com base na perpetuação da cultura alemã em

território brasileiro, sem mencionar transformações ou contribuições advindas do Brasil.

Dá visibilidade à importância de ser Petrópolis um reduto da tradicional cultura alemã e

de haver empenho dos seus descendentes em mantê-la mediante a culinária, danças e

cultos religiosos de origem católica e protestante. (PROC. 01450.007061, 2010-42, f. 7)

Na visão do requerente, a cultura alemã por si só, justifica a importância do

reconhecimento, sem necessidade dessas mediações.

Os proponentes dos pedidos de registro de celebrações fazem parte do grupo de

imigrantes inseridos no Brasil, a partir do século XIX, incentivados pela oferta de

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trabalho em consequência da iminente industrialização no país e em substituição da mão

de obra escrava no campo (LESSER, 2001). No pedido das Tradições da Colônia

Alemã, o proponente relata brevemente a trajetória dos primeiros colonos, em meados

do século XIX que foram contratados para a abertura da Serra do Mar, para a construção

do Palácio Imperial de Verão e, posteriormente, no plano urbanístico da cidade. (PROC.

01450.007061, 2010-42, f. 12)

O processo de pedido do Clube de Caça e Tiro revela os conflitos internos

gerados pela posse da terra. Segundo o proponente, esses colonos estavam

“acostumados ao manejo de armas de fogo perante a convivência e confronto com

índios e animais selvagens” (PROC. 01450.016012, 2009-67, f.1). O trecho demonstra a

ocupação agrária e disputa nas demarcações de terras entre grupos indígenas e os

imigrantes alemães no sul do país. A concessão de terras em Santa Catarina, em grande

parte, foi instaurada com base na desapropriação territorial indígena diante de conflitos

intensos do século XVIII ao XX. (GOULART, 2009, p. 42)

Para o proponente desse pedido, a manifestação cultural é um instrumento de

reunião e coesão dos descendentes de alemães. Tem como principal função criar laços

de irmandade e solidariedade entre esses indivíduos. (PROC. 01450.016012, 2009-67, f.

5). Há tendência em manter a comunidade local no mesmo círculo social e cultural, sem

incentivo ou busca de outras intermediações culturais. Muitos imigrantes usaram a

estratégia de permanecer em comunidades fechadas no Brasil. Contudo, esses indivíduos

não deixaram de sofrer transformações de práticas culturais, a partir do contato com

outras, e, ainda que em escala menor, foram influenciados pela cultura nacional ou

majoritária (LESSER, 2001). A despeito de haver afinco em fortalecer laços entre

indivíduos da mesma origem étnica com intuito de proteger sua “tradição”, não há como

manter uma identidade cultural constante e permanente.

O pedido de registro Tiro do Laço sinaliza o regionalismo do requerente. A

manifestação cultural deve ser registrada, pois, segundo o requerente, um símbolo das

tradições gaúchas e do Estado do Rio Grande do Sul. A eleição motivará o

fortalecimento da cultura sul-rio-grandense, e o reconhecimento da manifestação

cultural posicionará o tiro do laço como um esporte genuinamente gaúcho (PROC.

01450.013532, 2010-51, f. 43). O registro é entendido como uma forma de proteger a

essência da manifestação, garantindo que mesmo disseminada, mantenha-se fidedigna à

técnica de tradição gaúcha, “salvaguardar este bem implica manter a sua originalidade”

(PROC. 01450.013532, 2010-51, f. 69). A argumentação infringe o Decreto nº 3.551, de

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2000, desde a forma como foi proposto, já que o pedido é individualizado na pessoa do

Sr. Eduardo Fonseca Alves, até os conceitos de originalidade e essência de bens

culturais por ele defendidos, que são conceitos já recusados pela noção de cultura e de

patrimônio imaterial.

O Tiro do Laço é reivindicado como esporte cultural nivelando-se ao Ofício dos

Mestres de Capoeira e Roda de Capoeira.52 Segundo a lógica de comparação, se ela é

reconhecida como esporte e patrimônio, por que o Tiro do Laço não seria? O solicitante

também compara traços que afirmam a legitimidade da candidatura do bem, utilizando a

Arte Kusiwa, transmitida de forma oral pelos povos Wajãpi, bem como ocorre com o

Tiro do Laço. (PROC. 01450.013532, 2010-51, f. 182) O gaúcho é praticamente

considerado como uma linhagem étnica. Isso posto, justifica a analogia aos bens de

matriz africana e indígenas que são representados pela capoeira e a Arte Kusiwa. Isso

demonstra que o proponente desconhece que a política não se limita a conceder um

título, mas também atua como ferramenta de acesso ao direito à memória e história de

grupos excluídos socialmente. (BRITES, 1992)

O Decreto nº 3.551, de 2000, determina a continuidade histórica (3 gerações de

perpetuação ou 75 anos) como um dos critérios para o registro. A exigência mostra que

apenas o tempo distante pode determinar o caráter nacional de um bem. Ele estabelece

um paradoxo na política, já que defende os atores sociais como protagonistas, mas

subjuga o sentimento de pertencimento dos sujeitos e desejo de perpetuação da

manifestação cultural a um limite pré-determinado de tempo. Não obstante defender a

ação do poder público de forma descentralizada, flexível e predominantemente

mediadora, a política se apóia em uma referência que dialoga com um mito fundacional,

que define ser verdadeira apenas a história da nação que reside em um passado

longínquo. (HALL, 2006)

Todos os pedidos de registro foram justificados pelo incentivo à promoção do

turismo nas cidades em que o bem cultural está localizado. A assimilação que os

proponentes fazem com o mercado cultural é significativa, uma vez que, em alguns

casos, o fomento à economia turística é a principal razão em contatar o Iphan.

A visão de inserção do patrimônio cultural no mercado turístico não é descartada

pelo Iphan. Ao contrário disso, o órgão incentiva esse diálogo entre o patrimônio

52 A Roda de Capoeira é registrada no livro Formas de Expressão, e o Ofício dos Mestres de Capoeira, no

Livro de Saberes, ambos no ano de 2008. Cf. <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/228. Acesso

em: 20 mar. 2016.

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cultural e o turismo. O plano de salvaguarda dos bens de natureza imaterial tem como

um dos objetos o apoio à sustentabilidade que, por sua vez, são iniciativas que permitem

a geração de renda aos atores sociais envolvidos. (DECRETO nº 6. 844, de 2009)

As tradições “arcaicas” se tornaram um nicho de atuação da economia de

consumo e uma fonte recente de alimentação do sistema capitalista. O mercado turístico

necessita dialogar entre as possibilidades tecnológicas que a modernidade oferece e

explorar culturas “primitivas” e “exóticas” com variadas opções de entretenimento ao

público consumidor. Segundo Canclini (1983), é preciso mostrar que o primitivo tem

lugar na vida atual. A indústria do turismo comprova com essas intervenções que o

antigo e o moderno podem coexistir.

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2.4 As Formas de Expressão

O livro de registro de formas de expressão está associado a diversas formas de

manifestações artísticas. São formas de comunicação estabelecidas por grupos sociais e

que determinam aspectos importantes da sua cultura e identidade. Pode-se citar como

formas de expressão as manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas.

(IPHAN, 2011)

Talian – Processo nº 01450.001255/2004 -96

Imigrantes italianos. Capa do Projeto Piloto “Inventário Talian” Universidade de Caxias do Sul,2011

O conjunto documental do pedido de registro da língua Talian é o processo

complexo que esteve em tramitação por 13 anos no Iphan. A solicitação de registro se

deu no ano subsequente à aprovação do Decreto nº 3.551/2000, que determina o

reconhecimento dos bens imateriais. Em um momento em que a política estava em

formação, sem que houvesse definições objetivas do que seria reconhecido, tampouco

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pensados os ritos de reconhecimento, o Talian surge como um elemento surpresa ao

Iphan.

Não havia na política de patrimônio imaterial uma ferramenta específica que

previsse o registro de línguas, porém a política em si não nega o fato de que a língua se

enquadraria na definição de patrimônio imaterial. O processo reúne os seguintes

documentos:

Requerimento de registro pelo Sr. Honório Tonial, presidente da Associação

dos Apresentadores de Programa de Rádio Talian do Brasil –

ASSAPRORATABRAS;

Requerimento de inclusão no Inventário Nacional da Diversidade Linguística

– INDL, Sr. Paulo Massolini, presidente da Federação das Associações Ítalo

Brasileiras do Rio Grande do Sul – FIBRA/RS;

Apostila de curso de ensino do Talian; jornais e periódicos (O Serrafinense,

Comunitá Italiana, Correio Riograndense, Serafina Correa);

Livros, revistas, publicações e artigos diversos sobre o Talian e/ou escritos

em talian;

Fitas VHS contendo documentários, festivais de músicas e CDs gravados de

Músicas em talian;

Memorandos nº 0030/04, 003/01, 001/01, 005/01, 004/04;

Ofício nº481/2001/12º SR/Iphan;

Dossiê de estudos R-02/2001;

Projeto Inventário da Diversidade Cultural da Imigração Italiana: o Talian e a

Culinária. Iphan/UCS. Ano 2010;

Relatório Final Projeto-piloto “Inventário Talian”. Universidade de Caxias

do Sul. Ano 2011;

Pareceres técnicos: nº 017/Iphan/RS/10, 34/2011, 43/2013;

Ata da reunião da comissão Técnica do Inventário Nacional da Diversidade

Linguística – INDL.

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Análise preliminar e abertura do processo

O primeiro pedido de registro da língua talian foi solicitado pelo presidente da

Associação de Apresentadores de Programas de Rádio Talian do Brasil –

ASSAPRORATABRAS, Sr. Honório Tonial, em 19 de março de 2001. Nesse período é

válido ressaltar que o recém criado Decreto-Lei nº 3.551, de 2000, que instaurou a

política, não previa como se daria o trâmite burocrático análise dos pedidos. Apenas no

ano de 2006, a Resolução nº 001/06 define quais as etapas do processo de registro, além

de orientar a ação em caso de rejeição. O pedido do talian é revelador, pois demonstra

como nesses primeiros anos foi construída a própria percepção do que seria o

patrimônio imaterial legitimado pelo Iphan.

Segundo a justificativa do preponente, o talian deve ser reconhecido como

patrimônio imaterial brasileiro por ser o idioma mais falado e escrito no Brasil, depois

do português, especialmente na região sul do país. (PROC. 01450.001255/2004 -96, f.

2). A língua tem sua origem nos dialetos falados nas regiões: Vêneto, Lombardia,

Trentino Alto Adige, Friuli-Venezia Giulia; Piemonte, Emilia-Romagna, Toscana e

Ligúria. Foi trazida pelos italianos, que desembarcaram no país no século XIX, sendo

difundida entre os descendentes de imigrantes italianos ainda hoje, principalmente, no

Rio Grande do Sul, Santa Catarina e parte do Mato Grosso.

Considerando que o falar dos diversos dialetos de imigrantes italianos

transformou-se numa verdadeira língua, com estrutura gramatical própria e

regras de ortografia e sintaxe; Considerando que esta língua tornou-se o

idioma mais falado e escrito no Brasil, especialmente na região sul;

Considerando que a língua é o mais genuíno patrimônio imaterial de uma

nação; [...] Considerando que o talian foi a língua utilizada e falada pelos

primeiros imigrantes e que ainda hoje se mantém viva, de modo especial, na

região sul, muito particularmente em Bento Gonçalves, Garibaldi,

Farroupilha, Veranópolis, Nova Prata. Flores da Cunha, Nova Pádua, São

Marcos, Guaporé e muitas outras [...] Considerando ser o talian um canal

eficiente para a comunicação social, cultural e comercial, respeitosamente

Requer: Nos termos do Art. 1º e 20 inciso IV e demais disposições de

decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000 o Registro do Talian como bem

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cultural de natureza imaterial, no Programa Nacional do patrimônio imaterial

[...]53

O requerimento foi encaminhado à presidência do Iphan, na sede do órgão em

Brasília. O pedido foi rejeitado e como procedimento experimental - o Iphan não havia

definido até aquele momento um procedimento para caso de rejeição - foi decidido pelo

então Departamento de Identificação e Registro que a Equipe Multidisciplinar

Interdepartamental – EMI,54 se responsabilizaria pela análise da documentação e

emitiria o parecer justificando a rejeição do pedido. Em 06/07/2001, o EMI emitiu

parecer indicando a necessidade de uma pesquisa antropológica e linguística

aprofundada, e especificando ao preponente que língua não se enquadra em nenhuma

das categorias de livros abertos para registro.

O pedido ficou paralisado por quase três anos, da data da sua abertura até abril

de 2004, quando o Departamento de Patrimônio Imaterial – DPI foi criado. A

paralisação se deu pelo fato de não haver nenhuma norma que contemplasse pedidos

rejeitados. Em julho de 2004, a gerente do DPI, Sra. Ciane Gualberto Feitosa Soares,55

emitiu nota técnica solicitando que o pedido de registro fosse arquivado, pois, após a

superintendência regional solicitar complemento ao dossiê de estudos, conforme

orientações do EMI, não obtiveram retorno do preponente. (Proc. 01450.001255/2004 -

96, f. 32).

Após 3 anos de insistência de grupos ligados à língua talian, os técnicos do Iphan

tiveram que ampliar a discussão e criar novas ferramentas que legitimassem a língua

como uma categoria passível de reconhecimento. O talian deu início ao debate sobre a

preservação de línguas no país e colocou à mostra as fragilidades da política de

patrimônio imaterial que, ao atribuir valor e responsabilidade de reconhecimento à

sociedade civil, teve que estabelecer diálogo e propor estratégias às demandas que não

se harmonizam com a sua proposta de reconhecimento. No ano de 2014, o talian foi

reconhecido ao lado de seis línguas indígenas como patrimônio cultural brasileiro,

porém, em uma nova proposta de reconhecimento, que recai especificamente sobre as

línguas.

53 Honório Tonial, Presidente ASSAPRORATABRAS. Proc. nº 01450.001255/2004 -96, f. 2. 54 A EMI foi formada pelos técnicos: Yeda Virgínia Belo Pires Barbosa (arquiteta); José Fernando Costa

Madeira (arquiteto); Claudia Lima e Alves; Ana Gita de Oliveira (antropóloga); Claudia Marina Vasques

(historiadora) e José Tadeu Gonçalves. 55Ciane Gualberto Feitosa Soares é arquiteta formada na Universidade Federal do Paraná (1977),

especialista em estudos africanos e mestre em arquitetura e urbanismo pela Universidade de Brasília.

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Arquivamento do processo e criação do Inventário Nacional da Diversidade

Linguística

A justificativa para a rejeição do pedido se deu pelo entendimento de que o talian

se realiza como uma manifestação restrita ao grupo de imigrantes italianos e não possui,

por isso, abrangência nacional, não se adequando ao requisito de ser uma expressão que

contribui para a formação da identidade nacional brasileira. No parecer emitido em

11/07/01 pela Equipe Multidisciplinar Interdepartamental – EMI ressalta ainda que pelo

fato de o Livro de Registro de Expressões ser voltado para manifestações literárias,

musicais, plásticas, cênicas e lúdicas, não inclui manifestações linguísticas.

Vale observar que a língua como categoria patrimonial, não está prevista em

qualquer dos livros de registro. Isto se deve, por um lado, à dificuldade de

compreensão, dada a sua complexidade e autonomia como campo de estudo,

e por outro lado, à insuficiência dos instrumentos de descrição e

documentação técnica disponíveis no momento. O Livro de Formas de

Expressão trata de linguagens, isto é, das expressões da cultura que atestam a

comunicação e circulação dos produtos culturais em territórios específicos e

sua difusão para fora dos grupos sociais de origem, à contextos sociais de

abrangência nacional. 56

A partir do ano de 2005, começa a haver uma mobilização social intensa dos

detentores da língua talian que não acataram o arquivamento do pedido e, encabeçados

pela Federação dos Vênetos do Rio Grande do Sul, passaram a encaminhar diversas

solicitações de pedido de registro ao Iphan, como forma de pressionar o Instituto. Os

requerentes, nesse período, foram: da Associação de Municípios do Alto Uruguai; da

Associação dos Municípios da Encosta Superior do Nordeste; da Universidade Federal

de Santa Maria, no Rio Grande do Sul; do prefeito do Município da Lapa, no Paraná, Sr.

Miguel Batista; do Gabinete do Governador do Estado do Rio Grande do Sul, à época,

Sr. Germano Rigotto; do então Governador do Estado do Espírito Santo, Sr. Paulo César

Hartung Gomes; da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, por meio

do deputado estadual Ruy Pauletti, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB -

56 Parecer EMI. Proc. 01450.001255/2004 -96, f. 28.

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RS); e do então deputado federal Francisco Turra, do Partido Progressista (PP - RS).

(CARDOSO, 2010, p. 41)

No ano de 2006, foi realizado o Seminário Legislativo, que contou com a

organização do Instituto Vêneto – Associação Cultural e Educacional de Vêneto que

reuniu seis representantes de línguas (talian, nheengatu, guarani-mybyá, gira da

tabatinga e libras), acadêmicos, especialistas em políticas linguísticas, parlamentares

interessados no assunto e representantes do Iphan/MinC e do Ministério da Educação

para debater a abertura do livro de registro de línguas, já que o Decreto nº 3.551 abre

essa possibilidade, caso o bem imaterial não se enquadre nos livros abertos

(CARDOSO, 2010, p. 44). O seminário deu origem à criação do Grupo de Trabalho da

Diversidade Linguística – GTDL, que sob a coordenação do DPI/Iphan, teve como

objetivo analisar a situação linguística brasileira e propor estratégias de valorização e

preservação por meio de políticas públicas educacionais e culturais. Durante a discussão

de possíveis critérios para a seleção da língua, o GTLD entrou em consenso de que a

função do registro, caso aprovado, incidirá de forma prioritária e com conotação de

reparação histórica sobre grupos minoritários, que durante o processo histórico

brasileiro sofreram opressão contra sua língua materna, o que engloba grupos indígenas,

afro-descendentes e imigrantes (CARDOSO, 2010, p.76).

O GTLD, após atuar entre os anos de 2006 a 2010, teve como resultado a

formulação do Decreto nº 7.387/2010, que estabeleceu o Inventário Nacional da

Diversidade Linguística – INDL como proposta de ferramenta metodológica para a

preservação de línguas no Brasil e incentivo de ações de valorização e promoção, por

parte do poder público, que deve desenvolver, tanto no âmbito federal quanto no

regional, políticas públicas de preservação.

Art. 1º: Fica instituído o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, sob

gestão do Ministério da Cultura, como instrumento de identificação,

documentação, reconhecimento e valorização das línguas portadoras de

referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores

da sociedade brasileira.

Parágrafo único: O Inventário Nacional da Diversidade Linguística será

dotado de sistema informatizado de documentação e informação gerenciado,

mantido e atualizado pelo Ministério da Cultura, de acordo com as regras por

ele disciplinadas.

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Art. 2º: As línguas inventariadas deverão ter relevância para a memória, a

história e a identidade dos grupos que compõem a sociedade brasileira.

Art. 3º: A língua incluída no Inventário Nacional da Diversidade Linguística

receberá o título de "Referência Cultural Brasileira", expedido pelo

Ministério da Cultura.

Art. 4º: O Inventário Nacional da Diversidade Linguística deverá mapear,

caracterizar e diagnosticar as diferentes situações relacionadas à pluralidade

linguística brasileira, sistematizando esses dados em formulário específico.

Art. 5º: As línguas inventariadas farão jus a ações de valorização e promoção

por parte do poder público.

Art. 6º: Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios serão informados pelo

Ministério da Cultura, em caso de inventário de alguma língua em seu

território, para que possam promover políticas públicas de reconhecimento e

valorização.57

O inventário tem a função de mapear as línguas existentes no país e foi defendido como

melhor ferramenta de reconhecimento, valorização e preservação das línguas,

principalmente por Maria Cecília Londres da Fonseca, diretora do D.P.I, membro do

Conselho Consultivo do Iphan e integrante do GTLD. A criação do Livro de Registro de

Línguas foi postergada e pensada como uma ação posterior, pois os especialistas do

GTLD não chegaram ao consenso de que a língua é passível de registro. (CARDOSO,

2010, p. 57)

Os diversos debates que se desenvolveram chegaram à conclusão que o

problema em registrar línguas como patrimônio imaterial estava no processo

de seleção dos símbolos da memória nacional que subjaz a pratica da

patrimonialização. Para os atores que participaram desta discussão, não era

possível, dentro do quadro destas línguas minoritárias, elencar quais seriam

mais representativas, pois todas possuem as mesmas possibilidades de

construção identitária. Assim desenhou-se uma política de identificação e

reconhecimento de línguas como Referência Cultural Brasileira, a partir da

realização do Inventário Nacional da Diversidade Linguística – INDL,

conforme estipulado no decreto 7837/2010.58

57 Decreto nº 7.387, de 9 de dezembro de 2010. 58 Paulo Moura Peters, técnico/antropólogo Iphan. Nota Técnica, Proc. 01450.001255/2004 -96, f. 78.

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Por intermédio de um convênio entre o Iphan e o Instituto Venêto, além de

parcerias com a Universidade Caxias do Sul - UCS e a Federação das Associações Ítalo

Brasileiras do Rio Grande do Sul – FIBRA/RS, o talian foi um dos projetos-piloto

selecionados para a criação do Inventário Nacional da Diversidade Linguística - INDL,

ao lado de sete línguas indígenas. O projeto visava promover um estudo sobre o talian e

a culinária da imigração italiana, a fim de solicitar um possível registro como patrimônio

imaterial de ambos os bens. O valor total foi estipulado em R$ 275.000,00, sendo

destinado aos estudos do talian o valor de R$ 187.0000,00 (Proc. 01450.001255/2004 -

96, f. 76). Teve início em 2009 e finalização em 2010.

O último pedido de registro encaminhado para o reconhecimento da língua talian

teve como preponente o Sr. Paulo Massolini, presidente da FIBRA-RS, em parceria com

o Estado do Rio Grande do Sul, em 16 de janeiro de 2011, que solicitou a inclusão do

Talian no INRL. O pedido foi acatado pelo órgão, e o talian foi reconhecido como

patrimônio cultural brasileiro, sendo incluso no Inventário Nacional da Diversidade

Linguística – INDL, em 5 de dezembro de 2014.

O preponente do primeiro pedido de registro, no ano de 2001, Sr. Honório

Tonial, presidente da ASSAPRORATABRAS, relata em documento encaminhado ao

Iphan em 26 de julho de 2011 que abandonou a solicitação por falta de recursos

financeiros. Soube que o Instituto Vêneto retomou o pedido de registro no ano de 2009,

pois foi contactado para colaborar com a pesquisa do projeto piloto em curso. Relata no

documento que o Iphan não demonstrou interesse na época em promover parcerias para

encaminhar a pesquisa. A ASSAPRORATABRAS colaborou com o IRDL, porém não

acompanhou o processo do inventário e não teve acesso aos resultados. (PROC.

01450.001255/2004-96, f. 90). Isso demonstra que o pedido apenas ganhou uma

proporção relevante no Iphan quando representantes políticos e intelectuais integraram o

grupo de solicitantes.

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2.4 A sociedade civil enquanto sujeito no reconhecimento do bem imaterial

O talian não foi registrado como patrimônio imaterial de acordo com a lei instituída

pelo Decreto 3.551, de 2000. Contudo, a pressão e articulação de órgãos da sociedade

civil obrigaram o Iphan a pensar uma estratégia de inclusão dessa demanda.

No ano de 2005, o Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política

Linguística (IPOL), em articulação com o deputado federal e falante de talian, Carlos

Abicalil, do Partido dos Trabalhadores (PT-MT) e membro da Comissão de Educação e

Cultura da Câmara dos Deputados, questionam o arquivamento do pedido e

encaminham uma solicitação de abertura de uma nova categoria para registro de

línguas. A partir dessa articulação, a solicitação ganha peso político e fortalece outras

solicitações que foram encaminhadas por entidades governamentais e setores

organizados da sociedade civil. (CARDOSO, 2010, p. 41-43.)

O Seminário Legislativo realizado no ano de 2006 foi decisivo para que houvesse

um reconhecimento da legitimidade da demanda. Os representantes da língua talian

estavam melhor organizados, apresentando dados e estudos, além de reivindicar o

registro sob a justificativa de a proposta dar início ao acesso de direitos linguísticos de

minorias, no Brasil. Diante desse argumento, colocaram-se ao lado de línguas indígenas

que são negligenciadas pelo Estado que, oficialmente, reconhece apenas o português.

(CARDOSO, 2010). Essa argumentação não pôde ser ignorada pelo Iphan, já que a

própria política de patrimônio imaterial nasce e dialoga de acordo com a percepção de

dar acesso aos direitos sociais de grupos excluídos e/ou minoritários.

O registro de línguas movimentou um debate interno no Iphan, em relação à própria

política de patrimônio imaterial. Afinal, quais seriam os critérios adotados para se

registrar uma língua, partindo do princípio de que a seleção é um ato indissociável do

registro? O dilema enfrentado sobre qual patrimônio imaterial pode ser registrado, e/ou

as indagações se “tudo é patrimônio imaterial?” e/ou “o que é digno de preservação?” se

voltaram ao campo da linguística. Todas as línguas faladas em solo brasileiro devem ser

registradas?

Técnicos do Iphan participantes do seminário como Maria Cecília Londres, em

época, diretora do Patrimônio Imaterial/Iphan, defenderam que o registro de línguas se

trata de um objeto mais delicado de reconhecimento do que um determinado bem

imaterial, pois a língua confere um grau maior de ligação identitária dos sujeitos. A

diretora considera precipitado criar um novo livro de registro e propõe inventariar as

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línguas faladas no Brasil para que se pudesse, antes de promover uma política de

preservação, ter um olhar sobre o cenário de atuação do estado. (CARDOSO, 2010,

p.70-75)

Durante a reunião do Conselho Consultivo em que se discutiu o arquivamento do

pedido de registro, o conselheiro Prof. Dr. Ulpiano Bezerra de Menezes se coloca em

posição contrária ao registro de línguas, pois a considera como um elemento difuso e de

caráter abstrato, definindo-a como uma manifestação integralmente imaterial. Para ele,

os bens imateriais registrados utilizam suportes materiais que propiciam a sua

preservação e é sobre esses suportes materiais que o Estado intervém para assegurar a

sua continuidade.

[...] Mas a questão básica é da confusão que nós ainda fazemos entre suportes

de bens imateriais e a natureza imaterial de certos bens. No caso da língua

isso fica evidente, porque a língua, como tal, é uma ficção de conhecimento,

a língua não existe, é abstração pura. O que existe são as falas e enunciados,

a partir dos quais se monta essa abstração, que é a língua. 0corre entretanto

que na atual sistemática, ainda muito próxima da sistemática do patrimônio

de suporte físico inerente, se pensa no Registro como sendo o principal

veículo de atuação no campo; não é e não deve ser. De maneira que nessa

analogia não se pode tombar a língua, porque seria necessário tombar as

falas, e tombar as falas é inviável sob todos os aspectos. No entanto, é

preciso reconhecer a possibilidade da existência de comunidades que tenham

expressões diferentes da língua dominante. É na linha do registro que

devemos pensar em ações de valorização, antes de mais nada na identificação

e na documentação, muitíssimo mais importantes do que a preservação. No

caso de patrimônio imaterial se preservam os suportes, não é possível

preservar aquilo que não seja empírico; não se preservam práticas, se

preservam certas condições materiais pelas quais certas práticas podem

continuar a ter sentido.59

(Ata da 47ª da Reunião Conselho Consultivo, 11/08/2005)

Os preponentes do pedido de registro, aliados aos estudiosos do IPOL, como o

diretor do instituto e professor de linguística da Universidade Federal de Santa Catarina,

Gilvan Muller de Oliveira, trazem um embasamento teórico sobre o tema e, a partir do

59 Ata da 47ª da Reunião Conselho Consultivo, 11/08/2005.

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Seminário sobre a criação do livro de línguas, reivindicam o pedido, fundamentados na

concepção de direitos linguísticos e reconhecimento da diversidade cultural, utilizando,

inclusive, as sugestões de salvaguarda das línguas promovida pela UNESCO.60 Essa

manobra na justificativa da proposta do pedido foi positiva e promoveu a discussão,

lideradas pelos próprios preponentes do talian, de como o Estado intervém na

preservação da diversidade de línguas no Brasil, como por exemplo, as centenas de

línguas indígenas existentes. Não coincidentemente, o projeto de inventários-piloto,

inclui, além do talian, mais sete línguas indígenas. Isso demonstra que os preponentes

do talian percebem que apenas teriam chances de registro caso se apropriassem da

política de patrimônio imaterial como mecanismo de acesso aos direitos culturais, não

restringindo-se ao título de patrimônio imaterial brasileiro, mas justificando os motivos

da necessidade de incidir sobre o talian uma política pública de preservação.

Segundo OLIVEIRA (2003), a integração do índio, negro e imigrante em território

brasileiro se deu a partir da imposição da cultura luso-brasileira, tendo como premissa a

destruição da cultura e língua desses grupos. A Constituição de 88 reconhece os direitos

culturais dos indígenas e afro-brasileiros no país. Diante disso, houve processo de

mobilização do Estado ao incentivo de escolas de educação indígenas com caráter

intercultural e bilíngues. Porém, aos descendentes de imigrantes não foram concedidos

direitos linguísticos e culturais, havendo uma “continuidade da política integracionista”

a esses grupos.

O talian passa a ser considerado, nesse contexto, como uma manifestação de

resistência, vinculada a um grupo que foi duramente oprimido pela ditadura varguista

(1937-1945) e que, em época da solicitação, ainda possuíam seus direitos linguísticos

negados pelo Estado. O projeto de integração nacional reprimiu grupos imigrantes que,

arbitrariamente, f oram impedidos de falar e aprender sua língua materna. (OLIVEIRA,

2003, p.11)

Está explicito nesse processo como o Iphan se torna, em alguns momentos, o seu

próprio vilão e não é capaz de desatar as amarras que criou pelos meios legais. A relação

entre o Estado e grupos sociais é dialética e conflituosa, no que tange à negociação de

interesses entre a interferência/dominação do Estado e a concessão de direitos culturais e

60Desde o ano de 1993, a UNESCO promove o Programa das Línguas e Multilinguismo, que visa sugerir

políticas de preservação de línguas com risco de desaparecimento. No ano de 1994, realiza a Conferência

Mundial dos Direitos Linguísticos, em Barcelona, Espanha, que resulta na Declaração Universal dos

Direitos Linguísticos. Cf. <http://www.unesco.org/new/en/culture/themes/cultural-diversity/languages-

and-multilingualism/>. Acesso em: 1º jul. 2016.

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sociais (THOMPSON, 1998, p. 152). O pedido revela o quanto diretrizes criadas pelo

Iphan possuem espaços em aberto que podem ser apropriados pelos grupos que não

fazem parte do foco de preservação do Instituto. Isso coloca em evidência a

complexidade de se determinar o que seria o patrimônio imaterial pelo viés identitário.

Se a cultura indígena e de matriz africana faz parte da formação da identidade nacional,

os grupos imigrantes também o fazem.

Na sua prática, a política se realiza como uma ferramenta de reparação histórica,

porém, por vias legais, opta por criar uma atmosfera harmônica e com caráter

democrático, e possibilita com isso, uma ampliação de possibilidades de registro. O

Iphan não poderia reconhecer uma língua de um grupo imigrante sem considerar que

haveria questionamentos quanto à omissão das línguas indígenas com risco de

desaparecimento. Ao lado do talian, em setembro de 2014, são reconhecidas com o

título de “Referência Cultural Brasileira”, as línguas indígenas Asurini do Trocará e

Guarani Mbya.

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CAPÍTULO 3

Lugares e Saberes: limites e disputas entre o antigo e o moderno na política de

patrimônio imaterial

Neste capítulo apresento os pedidos de registro indeferidos em duas categorias:

Lugares: Centro Universitário Maria Antônia, Box 32; Festa do Japão; e Saberes:

Sanduíche de Bauru e Modos de Fazer Polenta dos Descendentes de Imigrantes

Italianos.

O capítulo abordará a geopolítica do patrimônio cultural, associando os territórios

que abrigam os bens culturais registrados ao discurso de preservação da diversidade

cultural, cultura popular e tradicional no Brasil (IPHAN) e no mundo (UNESCO)

Observo ainda como esse debate aparece internamente no Iphan, e como a política é

moldada diante da prioridade em proteger a cultura popular e tradicional e o

acolhimento de novas demandas que não se enquadram aos critérios institucionais. Por

fim, destaco como a política de patrimônio imaterial dialoga com os esforços para a

democratização dos direitos sociais de grupos excluídos historicamente e como ela se

consolida, além do debate sobre a formação da(s) identidade(s) nacional, mas se baseia

em oferecer visibilidade política a grupos sociais com características que lhe conferem

prioridades para a conquista do registro.

3.1 Lugares

O Livro de Registro de Lugares corresponde a locais como mercados, sítios,

espaços urbanos, paisagísticos, natural, feiras, santuários, praças onde se realizam

práticas culturais coletivas. Esses lugares possuem sentido cultural diferenciado para a

população local, onde são realizadas práticas e atividades diversas que fazem parte do

cotidiano de grupos sociais. “Podem ser conceituados como lugares focais da vida social

de uma localidade, cujos atributos são reconhecidos e tematizados em representações

simbólicas e narrativas, participando da construção dos sentidos de pertencimento,

memória e identidade.” (IPHAN, 2000)

Na categoria de lugares, serão analisados os processos: n.º 01450.001580/2005-

30 – Edifícios Rio Barbosa e Joaquim; n.º 01450.015315/2005-39 - Festival do Japão e

n.º 01450.005626/2011-38 – Box 32 no Mercado Público de Florianópolis.

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3.1.1Centro Universitário Maria Antônia/Edifícios Rio Barbosa e Joaquim Nabuco

– Processo nº 01450.001580/2005-30

Protestos após a morte de estudante na Rua Maria Antônia, 1968.

Arquivo Público do Estado de São Paulo. Acervo Iconográfico digitalizado. Autor: Sucursal de São

Paulo, Ref. ICO_001_007078.

O processo foi aberto tanto pelo DPI quanto pelo Depam. Inicialmente, foi

destinado ao DPI, como solicitação de registro, cujo número de protocolo é nº

01450.001580/2005-30. Posteriormente, avaliado como inadequado para o registro, o

pedido foi encaminhado pelo DPI/BR à Superintendência Regional de Iphan, em São

Paulo, com a sugestão de alteração para uma solicitação de tombamento, cujo número

do processo aberto é 1.524-T-05. Trata-se de uma documentação inacabada que se

encontra em andamento, atualmente. Após ser arquivado no ano de 2005, o processo foi

reaberto no ano de 2011. Compõe a documentação:

Pedido de registro requerente, pelo Sr. Lorenzo Mammi – Diretor do

Centro Universitário Maria Antônia/USP;

Informação técnica 002/2001 - 9ª Superintendência – Iphan/SP;

Resolução relativa ao tombamento do Edifício Rui Barbosa pelo

Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e

Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat);

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Decretos do governo do Estado de São Paulo que autorizam o uso dos

edifícios;

Ofícios do Condephaat e do Departamento do Patrimônio Histórico do

Município de São Paulo (DPH) que aprovam o projeto de reforma e

restauro dos edifícios;

Portarias do Ministério da Cultura que aprovam a renúncia fiscal para a

execução do projeto de restauro dos edifícios no âmbito do

Pronac/Mecenato;

Memorial de Reforma e Restauro dos Edifícios Rui Barbosa e Joaquim

Nabuco;

Pareceres e notas técnicas/IPHAN;

Artigo do Jornal O Estado de S. Paulo, de 18 de julho de 2005, sob o

título “Maria Antônia, Espírito Preservado”, fornecido pela 9ª SR/Iphan.

Análise preliminar e abertura do processo

O pedido foi encaminhado ao DPI/BR, no dia 25 de fevereiro de 2005 pelo Sr.

Diretor do Centro Universitário Maria Antônia/USP, Lorenzo Mammi. O pedido de

registro de lugar é justificado pelo espaço que abrigam os edifícios Rui Barbosa e

Joaquim Nabuco, situados na Rua Maria Antônia, nº 258, 294, Vila Buarque, São

Paulo/SP, terem sido palco da luta do movimento estudantil da Universidade de São

Paulo, contra a ditadura militar nos anos 60, além de ser símbolo do legado intelectual

do país. Os edifícios foram desativados no ano de 1968, quando forças repressivas de

caça aos comunistas invadiram o local e provocaram o embate entre estudantes da USP

e Mackenzie, resultando na morte de um estudante secundarista. Segundo o preponente,

o pedido de registro foi encaminhado por sugestão do professor Antônio Arantes Neto,

presidente do Iphan.

Os espaços do Maria Antônia hospedaram a Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências da Universidade de São Paulo de 1949 a 1968, num período de

grande efervescência intelectual. Nela lecionaram os professores Antônio

Cândido, Florestan Fernandes, Aziz Ab’Saber, José Arthur Giannotti, entre

outros. Berço do movimento estudantil na década de 60, foi palco de um dos

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episódios mais conhecidos da repressão política no país: a invasão de seus

espaços em 1968, por grupos ligados a comandos de caça aos comunistas

provocou uma violenta batalha e a morte de um estudante [...] O registro do

lugar a nível nacional seria mais um passo do reconhecimento do valor

histórico de um espaço que exerceu uma importante função tanto na

formação intelectual quanto na consciência histórica do país.61

Em 25 de julho de 2005, Márcia Sant’Anna, diretora do DPI, emitiu parecer

contrário ao registro, pois alegou que o Decreto 3.551/2000 não prevê o registro de lugar

na maneira que está posto a justificativa do requerente. O registro não se trata de

preservar um lugar, materialmente, e sim as práticas e vividos daquele local que devem

permanecer em vigência, com características similares ao passado, o que não

corresponde ao CUMA/USP, já que se tornou um centro de pesquisa e estudos sem o

caráter de embate político e práticas acadêmicas da década de 60.

As informações e depoimentos não deixam dúvida, portanto, que a rua Maria

Antônia, com suas faculdades e atividades intelectuais e estudantis,

constituiu, de fato, um lugar equivalente a categoria que, no decreto nº

3551/2000, identifica como bem cultural de natureza imaterial “os mercados,

feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem

práticas culturais coletivas.” Mostram contudo, e de forma cabal que, embora

os remanescentes desses espaços tenham hoje, em parte, um uso ou destino

cultural, não configuram mais um lugar de práticas acadêmicas e estudantis

equivalentes àquelas que a rua Maria Antônia abrigava na década de 60 e que

são carinhosa e saudosamente recordadas.62

Desde 1999, o CUMA/USP atua como um órgão da Pró-Reitoria de Cultura e

Extensão da USP, promovendo exposições de arte moderna e contemporânea, cursos na

área de ciências humanas e artes, palestras, seminários e debates de pesquisadores

ligados à USP e instituições parceiras. Os edifícios foram tombados pelo Condephaat,

no ano de 1985, e teve como principal argumento a sua importância histórica relativa ao

movimento cultural e político da FFLCH/USP, na década de 60.

61 Lourenzo Mammi, diretor CPC/USP. PROC. nº 01450.001580/2005-30, f. 2. 62 Proc. nº 01450.001580/2005-30, f. 7.

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Para o Iphan, a continuidade da prática cultural é um dos requisitos para o

registro, e segundo Márcia Sant’Anna, quando os prédios foram desocupados em 1968 e

deslocados para um campus distante, ele deixa de ser um pólo de atividades estudantis e

culturais para a cidade de São Paulo. Não se pode registrar um lugar que existiu. Nesse

âmbito de preservação da memória do passado, a ferramenta apropriada é o tombamento

(PROC. nº 01450.001580/2005-30, f. 2). Recomenda, por fim, que a solicitação seja

encaminhada ao Departamento de Patrimônio Material – Depam.

Parecer do Depam e reabertura do processo de pedido de registro: um

novo olhar sob a categoria de lugar

O pedido de tombamento foi encaminhado e o processo foi aberto pelo Depam,

em 09/11/2005. Redirecionado à superintendência regional para acompanhamento e

parecer técnico, o processo foi analisado pelo técnico Carlos Gutierrez Cerqueira,63 em

31 de julho de 2007. Esse ressalta que, pelo valor estético, não seria possível tombar os

edifícios, pois não existe valor arquitetônico, restando a análise do valor histórico como

argumentação válida. Contudo, o técnico aponta divergências na justificativa amparada

no interesse histórico do lugar. Para ele, o episódio que configura “A Batalha do Maria

Antônia” não está em patamar de um evento memorável para a história nacional. Houve,

segundo o historiador, vários outros episódios truculentos e violentos no país em tempos

de chumbo, não sendo o local dos edifícios um referencial único. Esse embate, apenas

demonstra o cenário de disputa ideológica de duas correntes políticas totalitárias que

almejavam a tomada do poder no país.

Assim, se alguma coisa houve de memorável naquele episódio de violência

da rua Maria Antônia, envolve alunos de duas universidades, agentes

infiltrados de organizações para-militares, militantes de partidos de esquerda,

digladiando-se com socos e pontapés, paus, pedras, bombas, motolov e tiros,

culminando na morte de um estudante secundarista, talvez saibam hoje

melhor dizer os adeptos de políticas autoritárias, antidemocráticas portanto,

ainda existentes no país, sejam de que matiz ideológica forem, quer tenham

sido (ou considerados) derrotados ou vencedores naquele episódio [...]

Foram, portanto, tão numerosos e significativos os acontecimentos que

63 Carlos Gutierrez é técnico do Iphan/SP, graduado em história pela USP em 1975. (TOJI, 2011)

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marcaram a vida política do país, que eleger um único episódio, como

merecedor de um reconhecimento maior, seria, ao nosso ver, um equívoco,

mais até: o uso inadequado, contrário mesmo, do valor que se quer atribuir

aos acontecimentos verdadeiramente memoráveis da história brasileira.64

(PROC. nº 1524-T-05, f. s/n)

Defende que mesmo diante de ações repressivas sobre a Universidade de São

Paulo, a comunidade acadêmica teve como triunfo manter a qualidade do ensino e fazer

desta uma das maiores universidades da América Latina e produtora de conhecimento

do país. A “Batalha da Maria Antônia”, segundo o técnico, colaborou para um enorme

retrocesso sobre as atividades que se desenvolviam na faculdade, sendo mais importante

que este episódio a luta travada por alguns professores, como o diretor da Faculdade de

Filosofia, Eurípedes Simões de Paula, e estudantes como Alexandre Vanucci Leme, pela

autonomia da universidade em “anos duros”. Após o regime militar, foi possível

restabelecer a vida universitária em plenitude com a convivência democrática de

posições teóricas e tendências ideológicas múltiplas (PROC. nº 1524-T-05, s/n).

Justificar o tombamento com base nesse episódio é incoerente ao próprio mecanismo de

tombamento do Iphan e, ao que parece ao técnico, os motivos que engajaram os

preponentes são exclusivamente motivações de ordem financeira. Tinham a expectativa

de pleitear, com o tombamento, recursos públicos para fomentar projetos arquitetônicos

de reforma (e não restauração, como alega o proponente), visto que os edifícios não

possuem valor estético.

Sinceramente, resisto a acreditar que por estas razões se queira tornar a

Guerra do Maria Antônia um fato memorável, pois que não passou de um

episódio entre muitos outros próprios do processo político porque passava o

país a mais particularmente a história do movimento estudantil e que, apesar

de toda mística que ainda envolve, não pode ser apontado como fator

determinante dos rumos que tomou o processo político, embora tenha

contribuído para jogar por terra todo um projeto até então bem desenvolvido

de implantação de uma universidade de qualidade.65 (PROC. nº 1524-T-05,

f. s/n)

64 Proc. nº 1524-T-05, f. s/n. 65 Proc. nº 1524-T-05, f. s/n.

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Um ponto de relevância no pedido para o historiador, e que poderia ser levado

adiante pelo preponente, por sugestão do técnico, é a importância da produção cultural e

científica da USP. Para tal, o pedido de registro no Livro de Saberes está mais adequado

do que o tombamento, e consagraria todos os seus agentes (do passado e do presente)

pela competência e excelência de sua produção acadêmica, que poderia ser

salvaguardada e assegurada em sua continuidade histórica pela via do registro.

O processo ficou paralisado até o ano de 2011, quando o atual diretor do Centro

Universitário Maria Antônia/USP, Moacyr Novaes e o diretor do Centro de Preservação

Cultural da USP/CPC/USP, entraram em contato com a superintendente do Iphan/SP,

Anna Beatriz Galvão Ayrosa, que deu sequência ao pedido de registro na categoria de

lugar, atribuindo a análise à técnica responsável pelo Departamento de Patrimônio

Imaterial, antropóloga Simone Toji.66 A técnica concordou com o parecer emitido em

2005, pela diretora do DPI, Márcia Sant’Anna e oferece sugestões para adequação do

pedido. Observa que eleger os Saberes das Práticas Acadêmicas universitárias e práticas

de mobilização política docente e estudantil em São Paulo seria um novo desafio à

política de patrimônio imaterial, já que a maioria dos bens registrados são referências de

identidade baseadas, principalmente, nas manifestações culturais populares e/ou étnicas.

(INFORMAÇÃO TÉCNICA 002/2011, IPHAN/SP)

A técnica sugere duas alternativas para continuidade do processo. A primeira de

que ele seja reavaliado por técnicos competentes na área como pedido de tombamento,

posto que o registro é inviável, como afirma a diretora Márcia Sant’Anna em seu

parecer. A segunda sugestão é que se invista no Iphan uma nova ferramenta de

reconhecimento de “lugares da memória”. Para tal, há necessidade de investimento do

preponente e reuniões entre o Iphan e instituições parceiras, como forma de criar uma

nova proposta de registro ou ferramenta de preservação. Como exemplo, cita o projeto

internacional “Sítios da Consciência” que possui convênio com instituições brasileiras.

Obtivemos conhecimento do trabalho desenvolvido pela Coligação

Internacional Sítios de Consciência, trata-se de uma rede internacional que

apóia museus, organizações institucionais e ações individuais, ligadas a

movimentos de lutas sociais em todo o mundo. A Coligação de Sítios de

Consciência tem por foco o conceito de “sítios históricos” que são

66 Simone Toji é graduada em ciências sociais pela USP, mestre em antropologia pela UFRJ e doutoranda

em antropologia social pela University of ST Andrews, Escócia. [Dados da atuação profissional obtidos

na. Plataforma Lattes].

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compreendidos como lugares onde foram travadas lutas em prol da

democracia e dos direitos humanos e que, como elementos da história,

devem ser preservados para a afirmação dos movimentos sociais que ali

ocorreram e que se elevaram para a conquista de uma política democrática

em seus países de origem. [...] No Brasil, o Memorial da Resistência, ligado

à Pinacoteca do Estado de São Paulo, e o Núcleo de Preservação de Memória

Política são membros institucionais da organização. Verificamos que o

Memorial da Resistência inicia um projeto chamado “Lugares da Memória”,

que se trata de um inventário de lugares onde ocorreram movimentos sociais

de resistência ao governo militar. O inventário conta com a participação de

pesquisadores e de cidadãos que vivenciaram a atuaram politicamente

durante esse período.67

A segunda sugestão possibilita a abertura de uma discussão no Departamento de

Patrimônio Imaterial sobre uma nova perspectiva, não apenas da categoria de lugar, mas

dos próprios critérios de reconhecimento que podem ser ampliados a partir desse

projeto. Atualmente, o processo está em andamento sob responsabilidade do Iphan/SP.

67 (Informação Técnica, 002/2011, Iphan/SP.

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3.1.2 Festival do Japão – Processo nº 01450.015315/2005-39

Festa do Japão. Acervo: Kenren. Foto anexada ao Processo nº 01450.015315/2005-39.

O pedido de registro do Festival do Japão insere-se em um limitado conjunto

documental que contém uma breve justificativa do preponente, sem a menção ao livro

que corresponde à categoria do registro almejada. O processo foi inserido dentro da

categoria Formas de Expressão por ser identificada como mais próxima da manifestação

cultural. Reuni os seguintes documentos:

Requerimento de registro da Federação das Associações de Províncias do Japão

no Brasil – Kenren;

Cópias de artigos publicados em jornais e revistas sobre o Festival do Japão;

Fotos, cartazes, folders do acervo Kenren;

Documento com informações gerais sobre o evento;

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Análise preliminar e abertura do processo

A solicitação foi encaminhada para a sede do Iphan/DF e aos cuidados do seu

então presidente, Antônio Augusto Arantes Neto, dia 12 de outubro de 2005, em nome

da Federação das Associações de Províncias do Japão no Brasil – Kenren.

O Festival do Japão é um evento promovido pelos descendentes de imigrantes

japoneses em São Paulo, desde 1998. Segundo o preponente, o festival tem por objetivo

preservar e divulgar a riqueza cultural do Japão e possui abrangência nacional. No

festival ocorrem palestras, exposições, apresentações artísticas, cursos e culinária,

durante três dias. Citando os trechos do Decreto nº 3.551/2000, que correspondem à

continuidade histórica e contribuição para a formação da identidade nacional, o

preponente alega ser o festival um representante da cultura nipo-brasileira no país.

Reforça que a comunidade japonesa no Brasil é a maior do mundo e, inegavelmente,

contribuiu para a formação da identidade brasileira. (PROC. nº 01450.015315/2005-39,

f. s/n)

O festival do Japão é um evento multimídia e pluricultural, constituindo uma

verdadeira viagem cultural ao Japão, dentro da cidade de São Paulo, sendo

composto por uma variedade de atrações de diversos segmentos culturais,

proporcionando uma completa visão da cultura japonesa, a qual já pode ser

denominada nipo-brasileira, tendo em vista sua miscigenação com a cultura

brasileira.68

O preponente tem a preocupação, durante a formulação da justificativa, em

apontar que a cultura celebrada no festival não se trata de uma reprodução da cultura

japonesa, mas da cultura nipo-brasileira, atingindo não apenas os descendentes de

imigrantes japoneses, mas o interesse do público em geral. O festival mobilizou, no ano

de 2005, cerca de 120 mil pessoas e já está integrado ao calendário turístico do Estado

de São Paulo. O pedido ratifica a importância dos imigrantes japoneses na contribuição

para a sociedade brasileira e demonstra como eles se integraram totalmente ao país.

A imigração japonesa iniciada em 1908 e prestes a completar seu centenário,

trouxe até 1970, cerca de 250.000 japoneses, os quais se integraram aos

68Proc. nº 01450.015315/2005-39, f. s/n.

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setores da vida nacional, deixando sua contribuição sócio econômica e

cultural no século XX nos diversos estados. Os museus/memorias, centros de

estudos nipo-brasileiros, as associações culturais, livrarias, locadores de

vídeos e cinemas japoneses, os símbolos orientais em locais públicos,

exposições temáticas variadas, a importante participação da nossa

agricultura, comércio, indústria e, nos últimos anos, em diversas outras

atividades, evidenciando a sua total integração ao nosso país e nossa

cultura.69

Arquivamento do processo e parecer da Câmara do Patrimônio Imaterial: razões

da negativa do pedido ao registro

Em 4 de abril de 2007, a técnica do DPI. Cláudia Marina de Macedo Vasques

emite o parecer rejeitando o pedido de registro. Apesar de reconhecer a importância de

japoneses e nipo-brasileiros para a formação da identidade brasileira, a técnica define a

manifestação como um evento esporádico, que divulga elementos da cultura japonesa, e

não como um bem cultural. Para ser registrada, a manifestação cultural deve ser

representante de referências à identidade, ação e memória de grupos formadores da

sociedade brasileira e que possui um caráter de continuidade histórica.

[...] concluímos a não pertinência do pedido, tendo em vista que o festival do

Japão, por se tratar de um evento, não se enquadra em nenhuma categoria de

bem cultural, e por extensão, em nenhum Livro de Registro criados pelo

Decreto 3551/00. Assim o Festival em tela, mesmo apresentando conteúdo

de caráter cultural não é passível de registro. [...] os bens de natureza

imaterial possuem um caráter processual, dinâmico e coletivo, e encontram-

se ancorados nas práticas cotidianas desses grupos ou comunidades. O que

não é o caso do Festival do Japão, uma atividade de caráter eventual, com

objetivo de dar visibilidade e promover aspectos e promover aspectos

materiais e imateriais da cultura japonesa e nipo-brasileira no Brasil.70

69 Proc. nº 01450.015315/2005-39, s/n.

70 Proc.01450.015315/2005-39, f. s/n.

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A técnica, por fim, recomenda ao preponente, caso seja de seu interesse, a

seleção de um bem cultural que representa a cultura nipo-brasileira para uma nova

solicitação de Registro, dando sequência ao arquivamento desse processo.

3.1.3 Box 32: Mercado Público de Florianópolis - Processo 01450.005626/2011-38

Personalidades frequentadoras do Box 32. Fotos anexadas ao Processo nº

01450.005626/2011-38.

O processo é composto por um conjunto documental com poucos elementos para a

análise. O preponente solicitou o registro na categoria de lugares, embasando-se em

aspectos de definição do patrimônio imaterial e a importância histórica do mercado

público, onde se localiza o bar. Ressalta a sua popularidade e visibilidade turística à

cidade, que a patrimonialização poderia oferecer. O processo reúne os seguintes

documentos:

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Requerimento Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura –

ABEA;

Declaração de anuência do proprietário do Box, Sr. Roberto Henrique

Barreiros Silva;

Cardápio;

Lista de Visitantes;

Fotos de clientes.

Análise preliminar e abertura do processo

O pedido de registro na Categoria de Lugar, do Box 32 do Mercado Público de

Florianópolis, foi solicitado pela Associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura –

ABEA e encaminhado à superintendência regional do Iphan/SC, em 25 de março de

2011. O pedido conta com a anuência do proprietário do estabelecimento, Sr. Roberto

Henrique Barreiros Silva. O Box 32 é um restaurante, fundado em 1984, e situado nas

dependências do Mercado Municipal de Florianópolis. O ambiente se tornou um ponto

turístico da cidade de Santa Catarina pela sua popularidade e culinária reconhecida.

Oferecendo um cardápio baseado em petiscos e frutos do mar, sua cozinha foi eleita ao

prêmio “A Melhor Cozinha do Estado”, promovido revista Veja Santa Catarina. (PROC.

nº 01450.005626/2011-38, fl. 37)

Formalizado pelos arquitetos Lilian Mendonça e Peter Widmer, o pedido contém

relatos do proprietário quanto à importância do bar e do mercado para a cidade,

reportando-se a memórias familiares e da infância. A justificativa se ampara na

importância histórica do Mercado Municipal de Florianópolis, tombado na esfera

municipal (Decreto Municipal nº 035/84), pela sua origem que retoma a construção de

barracas e quitandas pelo governo da Capitania de Santa Catarina, por volta do século

XVIII. Ainda, tenta aproximar-se de práticas que caracterizam a relação dos

frequentadores do bar com aspectos do patrimônio imaterial. A comida é defendida pelo

preponente como um elemento importante que legitima o registro, já que remete a

socialização, possui peso afetivo, simbólico, histórico, econômico e representa o modo

de comer do litoral sul brasileiro. (PROC. nº 01450.005626/2011-38, f. 06)

Utilizando as definições de patrimônio imaterial da UNESCO, o preponente

defende ser o Box 32 parte do caráter intangível do Mercado Público Municipal. O

registro, segundo ele, contribuirá para reconhecimento da diversidade cultural na cidade

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de Florianópolis e assegura a permanência do espaço como referência de memória social

e degustativa. (PROC. nº 01450.005626/2011-38, f. 8)

O preponente destaca as comidas oferecidas no mercado e prática comercial que

chama de popular e tradicional, se esforça em construir um paralelo às ações do Iphan,

que valorizam as manifestações com risco de extinção em meio ao mundo moderno e

globalizado.

Como exemplos de procedimentos, apontaríamos o cuidado a ser tomado

para valorizar o caldo de cana – para que ele resista a tornar-se mais um

revendedor da Kibon, que o comércio de panelas e utensílios de cozinha não

se transforme em outra loja de eletrodomésticos, que os croquetes de

camarão, os bolinhos de siri, a pimenta e o pirão e o amendoim torrado não

deixem de ser parte integrante e indissociável da tradicional cervejinha

gelada dos sábados pela manhã e finais de tarde de todos os dias da capital de

Santa Catarina.71

Outra justificativa que sustenta o pedido é a popularidade do Box 32 e sua

relevância como ponto turístico da cidade de Florianópolis. O pedido reafirma seu

prestígio e notoriedade com base nos seus clientes célebres, dando ênfase aos

frequentadores conhecidos do grande público e não, necessariamente, ao sentimento de

pertencimento das pessoas comuns, cidadãos catarinenses. Faz menção aos seus milhões

de frequentadores como parte da “comunidade” do Box 32, remetendo-se ao conceito

de comunidade e coletividade, defendido na Convenção para a Salvaguarda do

Patrimônio Imaterial da UNESCO. (UNESCO, 2003, p. 4)

Hoje contabilizando cerca de quatro milhões de clientes, o Box 32 é

referência nacional e internacional, parada obrigatória de artistas,

intelectuais, políticos de todos os matizes até presidentes da república e

outros notáveis que moram ou visitam a Ilha de Santa Catarina. Centro de

altas discussões e papos furados. Fornido de mais raras cachaças e do melhor

dos champanhes. Inventor do pastel com 100 gramas de camarão e do

copinho com 550 milímetros de chope. Preferido por celebridades e

71Proc. 01450.005626/2011-38, f. 11.

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ambicionado por desconhecidos. Testemunha de paixões iniciadas e

romances inacabados.72

Arquivamento do processo e parecer da Câmara do Patrimônio Imaterial: razões

da negativa do pedido ao registro

No dia 7 de julho de 2011, o pedido foi apreciado pela técnica do DPI/BR Diana

Dianovsky73 que solicitou o seu arquivamento por incompatibilidade com a política de

patrimônio imaterial. De acordo com o Decreto 3.551/2000, o registro de lugares

corresponde a espaços públicos (praças, mercados, feiras, santuários, etc.) que

reproduzem práticas culturais coletivas, o que não se enquadra no bar. Segundo a

técnica, além das “altas discussões filosóficas e tremendos papos furados” e o

apontamento das comidas comercializadas como um exemplar do modo de comer do

Litoral Sul, a justificativa oferecida pelo preponente, não avança mais do que esses

argumentos. (PROC. nº 01450.005626/2011-38, fl22)

O reconhecimento das práticas alimentares não está intrínseco tão somente à

saciação da fome, mas em como elas revelam o modo de produção, o sistema de crenças

e cosmovisão dos grupos sociais. A importância para a preservação das comidas não

está nas receitas, e sim nos significados e rituais que se fazem presentes em

determinados pratos. Quanto ao aspecto das práticas culturais vinculadas ao lugar, deve-

se compreender a importância do espaço para manifestações culturais de caráter

coletivo. Esse conceito de coletividade ou comunidade defendido pela UNESCO, não

corresponde às manifestações oriundas de um território específico - nesse caso, o bar

Box 32 -, mas sim, a identidades sociais que podem ultrapassar os limites regionais,

como é o caso das Baianas de Acarajé e/ou os Mestres de Capoeira no Brasil. (PROC. nº

01450.005626/2011-38, f. 40)

O pedido ratifica os esforços pessoais do proprietário para que o bar preservasse

suas origens e se tornasse uma referência do patrimônio imaterial da cidade. A

justificativa amparada nos esforços individuais do empresário é combatida pela técnica,

já que o registro de um bem é uma forma de valorização das expressões culturais

72 Proc. nº 01450.005626/2011-38, f. 13.

73Diana Dianovsky é graduada em ciências sociais e mestre em sociologia pela UERJ. [Dado de atuação

profissional, Cf. Plataforma Lattes].

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vinculadas à vivência de grupos sociais e não tem fundamentação no reconhecimento de

ações pessoais. (PROC. nº 01450.005626/2011-38, f. 41)

Para ser registrado, o bem deve atender a duas exigências primordiais que seria a

continuidade histórica e relevância nacional para a memória, a identidade e a formação

da sociedade brasileira, bem como define o Decreto nº 3.551/2000.

No que se refere ao primeiro ponto, a continuidade histórica da manifestação

cultural [...] deve ser vivenciado e praticado há pelo menos três gerações,

cada uma com 25 anos de duração totalizando 75 anos. O Box 32 foi

inaugurado em 1984, existindo há 27 anos, portanto não representa a

densidade histórica necessária para que se torne uma tradição reiterada e

atualizada. Quanto ao segundo ponto, não fica claro em que consta a

relevância nacional do Box 32 para a memória, a identidade e a formação da

sociedade brasileira. Unicamente o fato de existirem “ilustres anônimos” de

todos os lugares do país e do mundo visitando o bar não representa a sua

importância para a memória nacional.74

Segundo a técnica, o pedido de registro foi arquivado por ser considerado

inadequado aos critérios de seleção do Iphan, pois não possui densidade histórica, não

apresenta relações com a formação da sociedade brasileira e a inadequação do objeto de

registro.

74 Proc. nº 01450.005626/2011-38, f. 42.

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3.1.4 Análises dos processos da categoria de lugares

Para além dos critérios de seleção determinados pela legislação, se deve destacar

a figura do técnico que colabora para o êxito e tramitação do processo. Há nisso, uma

relação entre o macro – representado pelas leis de normatização do estado – e o micro –

que corresponde à formação e inclinações políticas/sociais do indivíduo atuante no

Estado. Esses especialistas são representantes de um grupo social, classe, com posições

ideológicas e políticas individuais, que podem atuar de forma conflitante com seus pares

e o próprio Estado.

O pedido de registro dos Edifícios do Centro Universitário Maria Antônia,

demonstra como o preponente, representado por um grupo de intelectuais advindos de

um local de produção do conhecimento (USP), elege uma narrativa da história do país,

uma corrente política e acadêmica como fundamentais para a formação da identidade

nacional. Em contrapartida, a análise do técnico Sr. Carlos Gutierrez do Iphan/SP,

demonstra como a construção dessa narrativa entrou em conflito com a percepção e

posição política do historiador em relação ao episódio a que chama “Guerra da Maria

Antônia.” O preponente atribui valor aos edifícios pelo o que simbolizam, não somente

quanto ao episódio de 1968 que resultou na morte de um jovem, mas como lugar que

simboliza um marco de resistência política da história do país em favor da

redemocratização e contra o golpe político de 1964. (PROC. nº 01450.001580/2005-30)

Em oposição ao preponente, o técnico do Iphan/SP define o episódio, como

lamentável ato de violência entre dois grupos com doutrinas políticas totalitárias e

antidemocráticas, não podendo ser eleito como um fato memorável da história do país.

(PROC. nº 01450.001580/2005-30). A preservação dos patrimônios não pode ser

atribuída apenas ao Iphan e/ou aos órgãos de preservação. O CUMA é um exemplo de

memória que pode ser preservada pela própria comunidade acadêmica, e o fomento para

o projeto de preservação pode ser negociado em meio a parcerias com outros setores

públicos e privados. O discurso defendido pelo preponente ignora que em outros

espaços tenha havido embates, perseguições e resistência contra o golpe, elegendo a

USP como único espaço de representatividade de luta do movimento estudantil do país.

As duas leituras opostas quanto ao significado do lugar (preponente x técnico),

demonstram a disputa de narrativas de categorias de intelectuais distintas. Segundo

Gramsci (2001), todo grupo social possui uma função na produção econômica, criando

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camadas de intelectuais (técnicos, especialistas) que reproduzem as determinações dessa

função, economicamente, politicamente e socialmente. A atuação dos intelectuais na

esfera do Estado defende interesses dos seus grupos sociais originários. Ou seja, o

reconhecimento da legitimidade de um bem cultural, além de estar associado aos

critérios normatizados pelo Estado, se confronta com os interesses de grupos sociais

e/ou indivíduos.

A negociação da identidade de imigrantes japoneses no Brasil foi construída de

maneira conflituosa, a destacar a primeira metade do século XX. Apontados como

segregacionistas e vítimas do racismo no Ocidente, a “raça amarela” era considerada

inassimilável às demais etnias, havendo como medida preventiva a desestimulação para

investimentos na mão de obra japonesa em países como EUA, Canadá, Austrália.

(MAESIMA, 2012). No Brasil, o discurso propagado sobre o “perigo amarelo” e

sentimento antinipônico estavam alicerçados nos seguintes pontos: são os japoneses

ameaças à ordem nacional pela pré-disposição à guerra e fidelidade ao Império Japonês;

discursos embasados pelo contexto nacionalista e pelas teorias eugenistas, que

defendiam uma suposta supremacia racial branca; tensões políticas e econômicas

movidas durante a I e II Guerras Mundiais. (TAKEUCHI, 2008)

Nesse contexto, chama a atenção no pedido do Festival do Japão, que a

construção da justificativa do preponente enfatiza que o registro se trata de um

reconhecimento da cultura nipo-brasileiro. Destaca em várias partes do requerimento o

fato de os japoneses e seus descendentes estarem integrados à cultura brasileira e, ao

contrário do que se reforça no imaginário coletivo, não se mantiveram isolados e

indiferentes à incorporação da cultura brasileira. Reafirma ser o festival um evento de

caráter pluricultural, em que a participação de outros grupos étnicos é recebida com

positividade. (PROC. nº 01450.015315/2005-39). Isso coloca em evidência como a

construção da identidade imigrante nipo-brasileira se constitui de forma interseccional e

em negociação com a cultura local, formando “etnicidades hifenizadas”, que apesar da

busca e diálogo com a identidade de origem, se transforma e é ressignificada. (LESSER,

2001).

O pedido de registro de lugar do Box 32 tem, para o preponente, um forte apelo

econômico no que tange ao fortalecimento turístico local e interesses comerciais. Vale

refletir, a partir do processo a relação entre os interesses turísticos, que não são

harmônicos com as definições de sustentabilidade e apoio à economia local adotados

pelo Iphan. O plano de salvaguarda do bem registrado prevê parcerias públicas e

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privadas como forma de garantir a rentabilidade e o retorno econômico aos guardiões do

bem cultural imaterial registrado, garantindo as condições materiais para a transmissão e

reprodução da sua existência e continuidade. O que não configura, necessariamente, o

fortalecimento da indústria turística. (IPHAN, 2011)

A compreensão da sociedade civil de que a patrimonialização de bens culturais

está associada ao estímulo do turismo local não é equivocada. Um bem cultural

reconhecido como patrimônio nacional pelo Iphan, indiscutivelmente, traz visibilidade

e, consequentemente, aquecimento à economia turística local. O equívoco está em

subjugar o bem cultural ao mercado turístico, esvaziando o seu significado simbólico,

histórico, social e a valorização de determinado grupo social/étnico, transformando o

bem cultural em mera alegoria de um “espetáculo vendável”. A disputa na gestão do

patrimônio, no entanto, não posiciona os sujeitos detentores do bem cultural como

passivos diante do uso e apropriação do mercado turístico. Há nessa negociação um

constante jogo de interesses com ganhos (economia voltada aos grupos locais,

visibilidade e valorização identitária) e perdas (espetacularização, busca de um

patrimônio “primitivo”). (PAIVA, 2015)

Lugares: um debate interno no Iphan

A categoria de Lugares se mostrou a mais polêmica nas discussões internas do

instituto sobre as diretrizes e critérios possíveis de serem adotados na constituição da

política de patrimônio imaterial. Sobretudo, os profissionais da arquitetura e demais

especialistas, habituados a concepção material do patrimônio, indagavam e se

posicionavam criticamente, pois, não compactuavam com a concepção de um “lugar

físico” ser eleito apenas no aspecto imaterial. O livro de Formas de Expressões, Saberes,

Celebrações, ainda que perpasse pela questão da materialidade, o Lugar é a categoria

que mais se aproxima e se confunde com o patrimônio material.

Quanto ao conceito sociológico de lugar, houve discussões se era espaço, se

era lugar, prevalecendo a última. Mas, vejam bem, se inscrevermos

procissões, celebrações religiosas, peregrinações, elas se realizam em

determinado espaço. O Livro de Registro dos Lugares destina-se a valorizar

o ambiente onde se verificam, isto é, valorizar os santuários em si. Não seria

imaterial, mas também material? Seria uma integração do imaterial com o

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material? Porque qualquer manifestação cultural - musical, literária, plástica,

lúdica - sempre irá se realizar em um determinado local. Da mesma forma

existirão bens tombados materialmente, nos quais verificaremos a existência

de manifestações imateriais. Então seria uma espécie de conjugação do

material com o imaterial. Gostaria de saber porque houve necessidade de se

criar o Livro de Registro dos Lugares. É quase uma negação do imaterial

trazer o material para compor a moldura onde ocorrem aqueles

procedimentos. Por que, em determinado momento, registraremos como

Lugar e não como Celebração? Qual é a distinção? É o ambiente? Então não

é imaterial, material. [...] fiquei um tanto perplexo com a ideia do registro de

Lugares.75

A categoria foi pensada pelo Grupo de Trabalho de Patrimônio Imaterial –

GTPI76 responsável pela criação do Decreto nº 3.551/2000, entre os anos de 1998 e

2000. Os lugares foram pensados como referências sem, necessariamente, ter valor

arquitetônico, mas que representam valor simbólico e se mantém como suportes para

realização de manifestações culturais de grupos sociais. (ATA da 51ª REUNIÃO do

CONSELHO CONSULTIVO, 2006, p. 27)

A discussão se inspirou em parte, nas recomendações da UNESCO, de 1989 -

Convenção para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular - que sugeria a

importância de espaços culturais. A UNESCO reconheceu, no ano de 2008, a Praça

Jemaa el-Fna, no Marrocos, como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. A

praça é um local onde atuam artistas variados, curandeiros e encantadores de serpentes,

etc. Em diálogo com essas ações, o Iphan criou a categoria Lugares e registrou a

Cachoeira de Iauretê e Feira de Caruaru, no ano de 2006. (IPHAN, 2006)

Em tempo, a Cachoeira de Iaurete – Lugar Sagrado de Povos indígenas dos Rios

Uapés e Papuris –, fomentou um debate, entre os Conselheiros do Iphan por conta da

fragilidade da categoria. O jurista, Sr. Paulo Affonso Leme Machado, defendeu ser o

tombamento o mecanismo mais eficaz de proteção ao lugar ao invés do registro. O local

considerado sagrado às várias etnias indígenas recompõe a cosmovisão e mitos variados

desses povos; no entanto, esse espaço sagrado está em risco pela ameaça da instalação

de hidrelétricas. O registro como ferramenta jurídica não é capaz de proteger o local da

75 Conselheiro Luiz Alcântara. Ata da 26ª Reunião, em 23 de novembro de 2000, p. 21.

<http://portal.iphan.gov.br/atasConselho>. 76 Cf. composição do GTPI na p. 33.

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devastação ambiental ou de qualquer outro meio de intervenção. (ATA 49ª REUNIÃO

do CONSELHO CONSULTIVO, 2006, p. 43)

Não vamos iludir os indígenas, não vamos deixá-los na ilusão de que o bem

está protegido. O bem está simplesmente valorizado, é uma coisa. Mas se

amanhã quiserem destruir esse local, ainda não temos jurisprudência; qual

juiz que iria conceder uma medida liminar e proibir? E essa a minha

preocupação. [...] Fazer-se o registro de algo que está em plena mutação, de

processos culturais, como por exemplo aquela dança, muito bem, é tranquilo,

se registra porque é um processo cultural em evolução. Mas quando se traia

de um elemento geomorfológico, ao meu ver, para uma sustentação mais

forte juridicamente, o instrumento adequado é o tombamento.77

Concordando com o ponto de vista do jurista, o conselheiro Ulpiano Bezerra de

Menezes acredita que o melhor instrumento de preservação seja o tombamento e não o

registro por obrigar os agentes do Estado e setores privados e não intervirem no local. O

registro concede a valorização moral do bem, mas não possui medidas jurídicas cabíveis

para a proteção do local, como é o desejo da comunidade indígena detentora do bem. O

caso da Cachoeira, sob o ponto de vista do conselheiro, expõe a fragilidade da política

de patrimônio imaterial. Segundo aponta, esse “dualismo cartesiano” entre o material e o

imaterial apenas trará mais impasses e insoluções à prática de preservação.

São várias as implicações, mas só vou me limitar a uma delas, que me parece

de extrema gravidade. Nós poderemos ter, em pouquíssimo tempo, a seguinte

dualidade: o Patrimônio Cultural Imaterial, que é o lugar dos vivos, dos

atuantes da cultura como coisa em ação, e vai ser o Patrimônio das

Comunidades; em outro compartimento, outra gaveta vamos ter o cemitério

cultural, que vai ser o Patrimônio Cultural Material, o patrimônio dos lugares

de memória.78

O Conselheiro e arquiteto Nestor Goulart Reis, colocando-se radicalmente contra

a possibilidade de tombamento da Cachoeira, pois, entende que a questão é a proteção

77 Ata da 49ª Reunião do Conselho Consultivo, 2006, p. 46. 78Ata da 50ª Reunião do Conselho Consultivo, 2006, p. 35.

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do seu aspecto mitológico e não a paisagístico, o local em si, mesmo porque o

tombamento pressupõe o “congelamento”, a impossibilidade de alterar o espaço

tombado - como congelar identidades e práticas sociais humanas? Há, entretanto,

segundo o conselheiro, a existência de um grave equívoco em acreditar que o bem

tombado é o bem material. O que se tomba é o projeto do que se pretende preservar e

isso é de cunho imaterial. A preocupação com a proteção territorial no caso da

Cachoeira de Iaurete é desnecessária, pois, o mesmo já é protegido como terra indígena,

assim já existe uma fundamentação jurídica de proteção da terra - e se posiciona

favorável ao registro, já que a preocupação do preponente seria a valorização do aspecto

do mitológico existente na Cachoeira e não seu aspecto paisagístico.

Essas discussões revelam a linha tênue entre patrimônio imaterial e material que

se mostram de forma mais contundente na categoria de Lugares e reafirmam o paradoxo

conceitual dessa dicotomia, inexistente na prática. O patrimônio imaterial como

categoria, apenas se justifica por estratégia política em conceder visibilidade a aspectos

da cultura que eram desprezados nas políticas públicas culturais e do patrimônio.

Conceitualmente, essa dualidade não se sustenta.

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Saberes:

O Livro dos Saberes é direcionado ao registro de conhecimentos e modos de

fazer enraizados no cotidiano das comunidades. Saberes podem ser definidos como

conhecimentos tradicionais salvaguardados por sujeitos detentores das técnicas de

transmissão do saber. São os ofícios e matérias-primas que identificam um grupo social

ou uma localidade. “Geralmente estão associados à produção de objetos e/ou prestação

de serviços que podem ter sentidos práticos ou rituais. Trata-se da apreensão dos saberes

e dos modos de fazer relacionados à cultura, memória e identidade de grupos sociais”.

(IPHAN, 2000)

3.2.1 Sanduíche de Bauru- Processo nº 01450.008690/2004-41

Acervo: Lanchonete Ponto Chic – Galeria Paissandu.

Foto: <http://www.pontochic.com.br/ponto-chic-restaurante/lojas/restaurante-paissandu>.

O pedido de registro do Sanduíche de Bauru tramitou no Iphan por cerca de quatro

anos (2004-2009) e gerou um debate interno sobre a possibilidade de ampliação dos

bens imateriais registrados, assim como propôs o debate sobre identidades a partir do

multiculturalismo em situação urbana. Encaminhado de forma equivocada pelo

preponente, o corpo técnico adequou o pedido, prolongou o trâmite do processo e

identificou elementos que dão legitimidade ao reconhecimento do bem no Livro de

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Saberes, havendo por essa razão uma inclinação ao diálogo entre o preponente e o

Instituto. O corpo documental reúne:

Pedido do preponente Secretaria de Negócios da cidade de Bauru;

Pedido do preponente Secretária de Cultura da Prefeitura de Bauru;

Reportagens, recortes de jornais, panfletos sobre o Bar Ponto Chic e

invenção do Sanduíche de Bauru;

Anexo: Lei Municipal nº 4.314, de 24 de junho de 1998;

Dossiê Bauru: uma História de Amor;

Ofícios, pareceres técnicos/Iphan.

Análise preliminar e abertura do processo

A primeira solicitação de pedido de registro ocorreu em 17/08/2004,

encaminhada à sede do Iphan em Brasília, pela Secretaria de Negócios da cidade de

Bauru, em nome da procuradora, Sra. Bernadette Conolavan Ulson, em que solicitava

orientações quanto ao procedimento de patrimonializar a receita do Sanduíche de Bauru

para que essa se mantivesse inalterada.Anexada ao pedido, está a lei municipal que foi

criada com o objetivo de manter a receita “original”do sanduíche e reafirmá-lo como

produzido e idealizado por um baruense. Márcia Sant’Anna, diretora do DPI,

encaminhou o Ofício nº 0030/06, informando que o registro não se trata de um

instrumento de preservação de receitas, mas de modos de fazer, que constituem

referências culturais, solicitou uma complementação da documentação, conforme

Resolução nº 001, de 3 de agosto de 2006, que estabelece normas de envio do pedido de

registro com informações sociais, históricas, local onde ocorre, descrição sumária,

grupos sociais envolvidos e justificativa.

Nas informações complementares enviadas pela Secretaria de Cultura da cidade

de Bauru, em nome do secretário, Sr. José Augusto Ribeiro Vinagre, em 10/05/2005, foi

encaminhado um dossiê com informações sobre o surgimento do Sanduíche Bauru.

Contudo, a autenticidade da receita persistiu em ser posta como alvo de preservação,

além da visibilidade que o registro traria para o turismo na cidade.

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Os documentos reunidos pelo preponente apontam informações de que o

Sanduíche de Bauru foi criado no ano de 1933, na lanchonete Ponto Chic, localizada no

largo Paissandu, centro de São Paulo. O estudante de direito da USP, Casimiro Pinto

Neto, cidadão da cidade de Bauru e assim chamado (pelo nome da cidade natal) de

forma íntima pelos colegas, era um frequentador da lanchonete que foi inaugurada em

1922. O cliente solicitou ao sanduicheiro, em determinado dia, que retirasse o miolo do

pão e acrescentasse queijo derretido, rosbife e tomate. Dessa forma, quando outros

clientes queriam o mesmo sanduíche, solicitavam: “Me dá um do Bauru!” em menção à

alcunha do jovem Casimiro. A receita do sanduíche assim ficou popularmente

conhecida. (PROC. nº 01450.008690/2004-41, f. 17-18)

O sanduíche de Bauru pode ser encontrado em bares, restaurantes em todo

país, sendo inclusive reconhecido internacionalmente. Porem a sua receita

não é a mesma em todos os lugares. Cada região desenvolveu uma receita

própria, mantendo algumas caraterísticas do tradicional lanche, mas

preservando o nome do Bauru. Na nossa própria cidade ele é confeccionado

de diversas formas. Desta forma temos o interesse em preservar a história ea

receita original do sanduíche de Bauru. Registrando o produto inventado no

Ponto Chic em São Paulo pelo baruense Cassemiro Pinto Neto, criando

assim um selo que diferencie o lanche tradicional.79

Parecer final da Câmara do Patrimônio Imaterial: razões da negativa ao

pedido de registro

Durante a avaliação preliminar do pedido, a técnica responsável, Sra. Ciane

Gualberto Feitosa Soares, avaliou o pedido pertinente e com elementos que justificam o

registro do Sanduíche de Bauru, no livro de Saberes. A técnica defende que o sanduíche

é um bem representativo de um modo característico de grandes cidades brasileiras. O

Bauru é um concorrente nacional dos lanches de redes globalizadas, de origem

estrangeira como fast-foods que comercializam hot-dog - de origem alemã - e

hambúrguer - de origem estadunidense -, sem nenhuma referência às tradições da

79 Proc. nº 01450.008690/2004-4, f. s/n.

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culinária brasileira. Segundo a técnica, o retorno às comidas nacionais e tradicionais tem

sido uma tendência mundial, bem como uma forma de protesto às redes de fast-foods

americanas, principalmente após a Guerra do Iraque. Além disso, defende que o modo

artesanal do sanduíche está em risco de desaparecimento, sendo a sua receita original

pouco difundida. (PROC. nº 01450.008690/2004-41, f. s/n)

O sanduíche representa, para a especialista, um aspecto cultural da alimentação

dos grandes centros e remete ao cotidiano dos indivíduos, às memórias das relações de

amizade, condições de lazer e trabalho dos espaços urbanos que possuem ritmos e

práticas culturais específicas. Ressalta a importância do bar e restaurante Ponto Chic,

que, ainda em funcionamento no Largo Paissandu, faz parte da história de São Paulo. O

Largo abrigou cinemas na década de 40, abriga ainda hoje o Monumento à Mãe Preta e

a Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos, um lugar de memória da comunidade negra.

Frequentado por modernistas na Semana de 22, como Mário de Andrade, Oswald de

Andrade, e local de reunião para o Movimento Constitucionalista de 32. (PROC. nº

01450.008690/2004-41, f. s/n). A técnica acredita ser o registro oportuno, visto que o

ano da solicitação coincide com os 450 anos de São Paulo e 70 anos da Universidade de

São Paulo.

A sugestão da arquiteta Ciane Gualberto, é que o pedido do registro do sanduíche

inaugure uma discussão de novas possibilidades de reconhecimento e dê subsídios para

uma pesquisa sobre outros tipos de alimentações tradicionais, como os lanches

comercializados em bares de grandes cidades e que são carregados de valores

simbólicos que tecem as identidades coletivas.

Em resumo, a favor do sanduíche de Bauru pesa que embora tenha sido uma

criação de um indivíduo, foi apropriado pela população, podendo ser

considerado um dos sanduíches mais populares do país, associado pelas

pessoas que o conhecem a outras memórias de São Paulo e de Bauru, de

outras cidades e mesmo do Brasil como um todo. O sanduíche também tem

sido recriado no imaginário popular, gerando poesias, artigos de jornais,

vídeos livros, que versam sobre o tempo, lugares e pessoas do passado e do

presente, reconhecimento de um modo de fazer tradicional que possui

continuidade no presente [...]80 (PROC. nº 01450.008690/2004-4, f. s/n)

80 Proc. nº 01450.008690/2004-4, f. s/n.

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O Sanduíche de Bauru é, segundo a técnica, uma expressão do multiculturalismo

nas megacidades,81 porém, reconhece que não há nenhum bem cultural semelhante

reconhecido pelo Iphan, o que demanda uma ampliação da discussão dos critérios de

seleção entre o corpo de técnicos do DPI, antes de se chegar ao Conselho Consultivo.

A discussão interna promovida pelo processo estimulou o diálogo entre o Iphan e

a Secretaria de Cultura de Bauru, posto que essa amplitude de significados e relevância

sobre o bem a ser registrado partiu do corpo técnico e não do preponente. Este, de forma

equivocada, aspirava proteger a autenticidade da receita, o que ocasionou a negativa da

proposta.

Assim, a identificação do bem e da sua trajetória histórica, ou seja, o seu

surgimento e as transformações que vem sofrendo ao longo do tempo

deverão necessariamente, constar no processo, mas não será o objeto, nem o

objetivo de registro em si. Mais o do que o registro de uma “receita original”

o Registro de saberes e fazeres associados a culinária, à gastronomia ou à

simples produção e consumo e alimentos, tem por objetivo o papel das

comidas e das formas de comensalidade na formação das identidades, formas

de sociabilidade e de relacionamento com o meio ambiente. (PROC. nº

01450.008690/2004-41, f. 68)

O corpo técnico do DPI se mostrou interessado em orientar o preponente para

alinhar a solicitação do pedido de registro, conforme as diretrizes legais. Em 16 de

fevereiro de 2006, o DPI informa a incompatibilidade da proposta, como foi

encaminhada pelo preponente, e solicita uma reunião na Secretaria de Cultura de Bauru

para que se pudesse debater outros meios para sustentar a argumentação de registro que

não seja a receita. Em 2 de outubro de 2006, o Secretário de Cultura, Sr. José Augusto

Vinagre, manifesta seu interesse em agendar reunião para orientações de como poderia

dar sequência ao pedido. Após eleições municipais que ocasionaram a mudança de

secretaria, houve dificuldades na comunicação impossibilitando a reunião entre as

partes. Em 27/03/2009, o pedido foi arquivado por improcedência, pois, as justificativas

não foram reelaboradas, já que a receita em si não representa sistemas simbólicos e

práticas culturais coletivas, mas questões de legitimidade autoral, industrial e registro de

patente, pontos incompatíveis com a atuação do Iphan.

81 No ano de 2006, o Iphan/SP desenvolveu o Projeto Multiculturalismo em Situação Urbana: Inventário

das Referências Culturais do Bairro do Bom Retiro, projeto pioneiro com essa temática.

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3.2.2 Modos de Fazer Polenta dos Descendentes de Imigrantes Italianos -

Processo: nº 01450.016011/2009-12

Festa Estadual da Polenta. Acervo: Circolo Trentino Di Blumenau . Foto anexada ao Processo nº

01450.016011/2009-12.

O processo oferece poucos elementos para análise e possui um breve histórico da

história da colonização italiana na região do Vale do Itajaí, assim como a relação desses

imigrantes com o modo de fazer polenta. Na análise preliminar do processo, o corpo

técnico do DPI sugeriu a inclusão do pedido em um projeto do Depam, em andamento,

sobre a imigração na região sul do país. O processo reúne os documentos:

Pedido de registro encaminhado pelo Circolo Trentino di Blumenau, em nome

do seu presidente Sr. Cacildo Girardi;

Certidão de registro de pessoa jurídica CircoloTrentino di Blumenau;

Panfletos, fotografias e recortes de jornais sobre a Festa Estadual da Polenta –

FEPOL;

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Análise preliminar e abertura do processo

Encaminhado à superintendência do Iphan em Santa Catarina, pelo presidente da

Associação Circolo Trentino di Blumenau, Sr. Cacildo Girardi, em 2 de outubro de

2009, o pedido de registro do Modo de Fazer Polenta dos Descendentes de Imigrantes

Italianos remonta, segundo a solicitação, à história da imigração italiana na cidade de

Blumenau.

Segundo o preponente, a primeira onda migratória significativa se deu em 1875,

por italianos vindos, sobretudo da região do Trento, para a região do Vale do Itajaí,

Santa Catarina. Os imigrantes italianos são relembrados no pedido como

“desbravadores”, “colonizadores” e “pioneiros” que, em busca de melhores terras

brasileiras, organizaram-se em expedições e ocuparam os vales situados nos municípios

de Rodeio, Rio dos Cedros e Rio do Oeste. (PROC. nº 01450.016011/2009-12, f. 1-18).

O milho, ingrediente base da polenta, é um produto originário da América do Sul

e foi introduzido na Europa, provavelmente, no século XV, pelos colonizadores que -

cita o preponente - “o descobriram no novo mundo”. Sendo assim, ele alega ser o milho

um produto conhecido pelos imigrantes italianos quando vieram ao Brasil. Para não

perder os costumes e hábitos da sua terra natal, os imigrantes trouxeram consigo mudas

de plantas que cultivavam na região de origem, entre elas, o milho. (PROC. nº

01450.016011/2009-12, f. 2)

A justificativa do pedido se dá pela potência turística que desencadearia o

registro e pela polenta ser uma prática de socialização inerente aos descendentes de

imigrantes italianos no país.

O registro do bem cultural de natureza imaterial em tela, com adoção de

futuras ações de salvaguarda, irá gerar benefícios culturais, sociais e

econômicos etc., à população local. Em primeiro lugar o reconhecimento do

bem irá contribuir para a valorização da cultura, fortalecendo os laços de

identidade e solidariedade, como também colaborará para o turismo local da

região, gerando emprego e renda.82 (PROC. nº 01450.016011/2009-12, f. 2)

82 Proc. nº 01450.016011/2009-12, f. 2.

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O preponente cita o plano de desenvolvimento do Governo do Estado de Santa

Catarina, que enfatiza ser um dos maiores atrativos para o turismo local a herança

cultural deixada por imigrantes. A polenta é uma comida que faz parte da alimentação

de famílias de imigrantes e está presente em festas e eventos de tradição italiana. Como

destaque o preponente cita o FEPOL – Festa Estadual da Polenta, que ocorre a cada dois

anos no município do Rio do Oeste, Santa Catarina. Citando Gilberto Freire, destaca que

devemos nos preocupar com a “Sociologia da Cozinha”, uma cozinha lusitana no litoral,

e outra com forte influência italiana, alemã, polonesa e outras. (PROC. nº

01450.016011/2009-12, f. 22)

Parecer final da Câmara do Patrimônio Imaterial: razões da negativa ao

pedido de registro

Em 02/11/2009, o superintendente do Iphan/SC, Sr. Ulisses Manarim,

encaminha, mediante o memorando nº 498/09, a solicitação de pedido ao DPI/DF com o

objetivo de abrir o processo. Em 21/05/2010, a diretora do DPI, Sra. Márcia Sant’Anna,

emite o Ofício nº 070/10, informando ao preponente que a solicitação requer um maior

aprofundamento e pesquisa sobre o tema. Sugeriu a elaboração de um amplo inventário

que contemplasse as práticas culturais de descendentes no sul do país. Para tal, o DPI se

dispôs a oferecer o material que contém a metodologia do INRC para utilização na

elaboração da pesquisa. Foi pensado ainda na possibilidade de articulação entre o DPI e

Depam, este que por sua vez, direcionava o projeto em andamento chamado “Roteiros

da Imigração Sul” que mapeava o patrimônio material imigrante.

Nesse sentido, o processo em questão foi remetido à Coordenação de

identificação deste Departamento que, em articulação com o Depam –

Departamento do Patrimônio Imaterial e Fiscalização do IPHAN, verificaria

a possibilidade de incorporação de pesquisa específica, voltada para o

atendimento desta demanda em especial ao projeto “Roteiros da Imigração

Sul do Brasil” em desenvolvimento e sob responsabilidade do Depam.

Informo que enviaremos esforços para efetivar esta articulação tão logo

conseguirmos recursos orçamentários.83 (PROC. nº 01450.016011/2009-12,

f. 43)

83 Proc. nº 01450.016011/2009-12, f. 43.

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O projeto Roteiros Nacionais da Imigração: Santa Catarina, v. 1e v. 2, foi

publicado no ano de 2011, com foco no Estado de Santa Catarina, inicialmente. O

volume 2 da publicação incorporou aspectos do patrimônio imaterial dos descendentes

de imigrantes no estado, e possui o capítulo “Culinária e Hábitos Alimentares”,

dedicado ao tema. Nesse capítulo, faz breve menção à polenta como comida tradicional

dos descendentes de imigrantes italianos. (IPHAN, 2011, p. 252)

Houve articulação entre o DPI e o Depam e, como resultado, a polenta foi

integrada ao projeto que estava em andamento no mesmo ano do pedido. Contudo, não

há registros de que o preponente entrou com recursos para reabrir o processo e dar

encaminhamento ao reconhecimento do bem cultural.

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3.2.3 Análise dos pedidos de saberes: o multiculturalismo e a tradição

O diálogo entre a proposta de pedido do Sanduíche de Bauru e a política de

patrimônio imaterial foi estabelecido pelo corpo técnico do DPI, e não pelo preponente.

Dotado de perceptível desconhecimento sobre o conceito de patrimônio, o preponente

objetivou o registro da receita do sanduíche, sem se ater aos valores simbólicos e

ressaltar as práticas culturais mobilizadas pela comida. O sanduíche, como um elemento

do multiculturalismo em situação urbana, é uma justificativa associada ao requerimento

que exige, inclusive, conhecimento antropológico. Isso demonstra o quanto a agência

desses indivíduos - que possuem a função de especialistas - também determinam qual

bem cultural será ou não eleito pelo Iphan (GRAMSCI, 2001).Vale por isso, analisar o

discurso construído pelos especialistas do DPI sobre a pertinência do pedido.

Segundo HALL (2003), multicultural e multiculturalismo são termos distintos.

Multicultural é um adjetivo atribuído às sociedades de culturas heterogêneas, que

convivem juntas em um mesmo espaço e/ou Estado-nação. Multiculturalismo é um

substantivo, está vinculado ao reconhecimento dessa heterogeneidade cultural e às

variadas estratégias políticas de gestão do convívio de grupos sociais distintos. Ações

políticas que podem se realizar desde concessão aos direitos específicos de grupos

minoritários até a integração, que visa à assimilação da cultura majoritária.

Como uma prática cultural urbana, o Sanduíche de Bauru representa um dos

aspectos de uma cidade multicultural, como São Paulo que, nesse contexto da

modernidade, produz relações sociais, saberes, modos de se alimentar e uma interação

com o tempo específica. Entretanto, essas características do bem não são suficientes na

construção de um discurso pelo registro. É necessário fazer relações com os critérios de

prioridade. (IPHAN, 2011)

Foram utilizados para endossar a argumentação favorável ao pedido os critérios

prioritários “risco de desaparecimento e o modo de fazer “tradicional” do sanduíche

(PROC. nº 01450.008690/2004-4). Para ser diferenciado de lanches similares ao fast-

food, consumidos em grande proporção nos centros urbanos e de origem estrangeira,

são ressaltados o seu modo de fazer artesanal que remete a uma tradição do fazer e ao

hábito do consumo, um retorno às raízes da culinária tradicional brasileira. O modo de

fazer original do sanduíche (queijo derretido, rosbife e tomate) é evidenciado pela

tendência iminente ao desaparecimento, já que a receita é difundida e comercializada

em poucos lugares (PROC. nº 01450.008690/2004-41). Outro ponto importante é

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ressaltar o lugar em que a prática ocorre como um espaço de memória histórica e

patrimônio consagrados, representados pelos eventos políticos, exemplares

arquitetônicos reconhecidos e monumentos históricos. (CHOAY, 2001)

O processo do Modo de Fazer Polenta dos Descendentes de Imigrantes Italianos

revela como alguns grupos de imigrantes possuem um saudosismo e reverência

exacerbada ao seu país de origem. Segundo Lesser (2012), os imigrantes e seus

descendentes nascidos no Brasil, costumam utilizar sua condição como um status social,

não sendo habituados a utilizar uma identidade hifenizada (ítalo-brasileiros), mas a

identidade ligada ao país de origem (italianos). O pedido de registro aponta como o

grupo de descendentes resgata a ideia de tradição, não a partir de uma cultura ítalo-

brasileira, mas por salvaguardarem uma tradição advinda da Itália. O modo de fazer

polenta, no Brasil, passou por uma assimilação ao tipo de alimento da terra. O milho foi

introduzido na dieta italiana em substituição ao trigo. (IPHAN, 2011, p. 253). Para

defender que inclusive o milho já era utilizado na Itália, o preponente afirma ser o

produto originário da Europa, trazido e mantido pelos colonos italianos na vinda para o

sul do país.

Outro aspecto importante é a referência ao turismo promovido pela imigração,

sendo essa a justificativa principal para o registro. O patrimônio da imigração no Brasil

é composto por um conjunto diversificado desse legado cultural no país. O turismo se

tornou um agente econômico importante nas colônias existentes, intervindo em redes de

museus e roteiros turísticos rurais, que remontam à trajetória e à história imigrante,

explorando a gastronomia, artesanato, e artes variadas (PAIVA, 2015).

Para a política de patrimônio imaterial, o turismo não é justificativa que

fundamenta um registro. Um bem cultural é eleito como patrimônio exclusivamente pela

sua representatividade na formação da sociedade brasileira e contribuição para a

construção da(s) identidade(s) nacional no país (IPHAN, 2000). O turismo pode se

tornar um instrumento para a concretização do plano de salvaguarda, que mediante

linhas de ações com diferentes frentes, incentiva o fortalecimento da geração de renda e

ampliação de mercado dos grupos detentores dos bens culturais. O que viabiliza,

diretamente, o crescimento turístico em locais em que houve o reconhecimento.

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136

3.3 A Geopolítica do patrimônio

Em 1946, as conferências de reunião e criação da UNESCO já apontavam para

as “crises demográficas” impulsionadas pelo fim da Segunda Guerra Mundial e crises

econômicas recentes. As tensões entre grupos raciais movidos pelas diferenças de

costumes, ideologias e novos rearranjos identitários, que esses grandes deslocamentos

resultaram, eram pontos de preocupação na criação do órgão (BRANCO, 2015). A

circulação da força de trabalho excedente é um dos mecanismos do capitalismo na

contemporaneidade. Os contingentes imigratórios desencadeiam novos ajustes espaciais

e novas formas de exploração e divisão do trabalho. (HARVEY, 2005)

Com a expansão dos mercados culturais, houve a preocupação de que os países

centrais, líderes econômicos que se beneficiam da circulação do capital, além das

fronteiras, pólos de produção simbólica (EUA e União Européia), submetessem países

pólos consumidores (América Latina, Ásia e África) à homogeneização cultural

(ALVES, 2010). Nesse cenário, a diversidade cultural adentra como meio de resistência

à mundialização da cultura, adjunto à pressão sofrida por países consumidores em adotar

políticas de defesa das identidades locais.

Os territórios, antes definidos pelos Estados-nações, após o fenômeno da

globalização, passaram a ser constituídos também, por instituições transnacionais que

atuam na legitimação dos discursos geopolíticos no globo. Intervindo diretamente na

política sociocultural dos países, a UNESCO faz-se compreender como um governo

paralelo aos Estados e possui a legitimidade de interferir nas políticas públicas em nome

dos direitos universais e do interesse público (MELO, 2015). Acompanhando as

transformações da noção de patrimônio, a proteção dos bens culturais sugeridas pela

UNESCO insere nos seus propósitos a ampliação de bens culturais de interesse

universal, chamando atenção ao patrimônio natural e biodiversidade no mundo. Nessa

perspectiva, o patrimônio mundial ultrapassa as barreiras territoriais e é transposto ao

patamar de bem cultural da humanidade, além das fronteiras geográficas que a eles

competem. No ano de 1972, a UNESCO realizou a Convenção para o Patrimônio

Mundial, Cultural e Natural, em Paris, inaugurando, entre suas propostas de atuação, o

tema Patrimônio Mundial.

Constatando que o património cultural e o património natural estão cada vez

mais ameaçados de destruição, não apenas pelas causas tradicionais de

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degradação, mastambém pela evolução da vida social e económica que as

agrava através e fenómenos de alteração ou de destruição ainda mais

importantes;

Considerando que a degradação ou o desaparecimento de um bem do

património cultural e natural constitui um empobrecimento efetivo do

património de todos os povos do mundo. (UNESCO, 1972)

A Convenção de 1972 deu início à normatização e institucionalização do

patrimônio cultural mundial a partir de uma concepção de preservação e de patrimônio

ligados ao Ocidente, articulando políticas locais e globais às leis e normas estabelecidas,

assim como aos critérios de quais bens seriam eleitos com “Valor Universal

Excepcional”.

O patrimônio cultural reconhecido pela UNESCO revela a hegemonia ocidental

representada pelos membros vindos majoritariamente de países desse círculo.

(EVANGELISTA, 2001). Essa hegemonia política se expressa na concepção dos

patrimônios a serem salvaguardados. Nota-se, por exemplo, que 52% do patrimônio

material (representações arquitetônicas e monumentos) reconhecidos no mundo está

localizado na Europa e América do Norte, bem como 65% do patrimônio intangível

mundial está localizado na Ásia, África, América Latina e Estados Árabes. A atuação

geográfica da UNESCO coloca em evidência como a concepção de patrimônio cultural

está associada ao mundo ocidental e europeu. Ao fazer uma aproximação com a política

de patrimônio imaterial no Brasil, a lógica de reconhecimento recai também em regiões

menos desenvolvidas economicamente e/ou que sobrevivem em locais adversos,

contudo, mantendo vivas práticas definidas como tradicionais que perpetuaram sem

interferências culturais presentes no mundo globalizado.

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Patrimônio cultural reconhecido pela UNESCO até 03/2016 Quantidade de bens culturais reconhecidos por região*

* Gráficos elaborados pela autora. [Dados obtidos em:

<http://whc.unesco.org/en/list/statem> 20 mar. 2016]

Patrimônio Imaterial Patrimônio Material

28 África

57 Europa e América

do Norte

62 Leste

Europeu

48 América Latina

123 Asia

26 Estados Árabes

420

Europa e América do

Norte

73 Estados Árabes

168 Ásia

48 África

93 América Latina

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Localização geográfica do patrimônio imaterial registrado pela UNESCO *

*Mapa elaborado pela autora. [Dados obtidos em: <http://www.unesco.org> 20 mar. 2016]

344 bensimateria s reg

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140

<[[[

28 bens registrados até o ano de 2016

5

9

4

8

*2

Norte Nordeste Centro oeste

Sudeste Nacional Sul

* * Gráfico e mapa elaborados pela autora. [Dados obtidos em < http://portal.iphan.gov.br IPHAN> 20 mar. 2016]

*Os bens de categoria nacional são os bens com incidência em todos os estados. O Iphan

registrou, em âmbito nacional, a Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira.

Localização geográfica do patrimônio imaterial registrado – Iphan**

*0

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Segundo ORTIZ (1994), está em curso “a existência de processos globais que

transcendem grupos, classes sociais e nações”. Esse fenômeno contemporâneo,

desterritorializa diversas questões de cunho social, econômico e político ao patamar de

objetos de interesse mundial, promovendo uma tensão frequente entre o local e o global.

Reflete sobre o cotidiano dos sujeitos, elementos que reorganizam as sociedades atuais e

as aproximam em processos de padronização cultural, como hábitos alimentares,

vestimentas, filmes e um conjunto de bens de serviço e consumo comuns,

desencadeando a mundialização da cultura84 e expansão do sistema capitalista.

Em tempos em que a globalização e a mundialização estão em fluxo, a

diversidade cultural é posta como um valor determinante para a continuidade das

identidades e nacionalidades múltiplas do globo. Essa diversidade está intrinsicamente

associada às culturas que resistem aos processos de mundialização. No ano de 2005, a

UNESCO realizou a Conferência Geral sobre Diversidade das Expressões Culturais, em

Paris, onde foram produzidos documentos de normatização com entendimento de que a

diversidade cultural se trata de um “patrimônio comum da humanidade” e está sob risco

de desaparecimento. A conferência contou com 154 países, sendo que os EUA e Israel

se posicionaram contra o texto da declaração. Os discursos da UNESCO defendem a

defesa da diversidade cultural no mundo como uma ação contra a indústria cultural e o

fundamentalismo religioso. Nesse sentido, a cultura popular e tradicional se tornou o

patrimônio imaterial a ser salvaguardado. São os saberes ligados aos povos

compreendidos como tradicionais que mantém culturas ainda não atingidas pelos

processos de mundialização que devem ser protegidas. São esses povos os guardiões da

diversidade.

Constatando que os processos de globalização, facilitado pela rápida

evolução das tecnologias de comunicação e informação, apesar de

proporcionarem condições inéditas para que se intensifique a interação entre

culturas, constituem também um desafio para a diversidade cultural,

especialmente no que diz respeito aos riscos de desequilíbrios entre países

ricos e pobres. (UNESCO, 2005, p. 2)

84 O autor define os conceitos de globalização, internacionalização e mundialização como distintos entre

si. Enquanto os dois primeiros são de ordem estritamente econômica, o terceiro é compreendido como

um processo globalizante incidente sobre a cultura. (ORTIZ, 1994)

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Outro fator importante da declaração é o reconhecimento da sociedade civil

como protagonista nas decisões acerca da salvaguarda dos bens e das políticas culturais,

incentivando a participação ativa dos sujeitos na defesa da diversidade nos seus países

de origem e o exercício da democracia.

Considerações Finais

Os bens culturais selecionados no início do programa de patrimônio imaterial

no Brasil estão localizados no Norte e Nordeste, territórios pretensamente relacionados

à cultura tradicional. Nota-se ainda que a maioria dos bens imateriais brasileiros,

localizados nessas duas regiões, permitem retomar um discurso regionalista defendido

por um grupo de intelectuais no início do século XX, no qual o Nordeste seria a região

da tradição, da pureza cultural ainda não modificada pelo capitalismo e, por isso,

verdadeiramente brasileira, opondo-se ao Sul/Sudeste de costumes ocidentais europeus.

Modernistas, como Mário e Oswaldo de Andrade, viam o Nordeste como um reduto da

cultura brasileira (ALBUQUERQUE, 2011, p.121). Não foi coincidência Mário de

Andrade empenhar esforços nas missões folclóricas exatamente nessa região,

objetivando descobrir as “verdadeiras” raízes nacionais para preservá-las e mantê-las

vivas.

O ideal de construção da brasilidade entre os movimentos literários do

modernismo paulista e o regionalismo nordestino, na década de 20 do século passado,

trouxe este paradoxo entre a “tradição local” x “tradição nacional” e a busca da

unicidade nacional entre essas dicotomias. Enquanto os modernistas buscavam

compreender as raízes do Brasil, representadas pelas culturas populares e tradicionais

como expressões de escala nacional, os regionalistas – que tiveram na figura de Gilberto

Freyre um líder – destacavam o Nordeste como lugar da tradição e originalidade

cultural, centralizando a região como pólo cultural em detrimento da ideia de unidade

nacional e desterritorialização cultural, criando assim uma oposição conceitual entre o

nacional e regional (BARBATO, 1996).

Na década de 30, o Governo Vargas institucionalizou a necessidade da busca

pela unidade, pois, apenas a partir disso, o país poderia acessar o mundo moderno, o que

incorporou os modernistas, em certa medida, ao plano de governo tornando esses

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intelectuais construtores da ponte de acesso do país ao futuro e responsáveis pela busca

da(s) identidade(s) nacional. (CHUVA, 2000)

Expor essas disputas colabora na historicização da construção da(s) identidade(s)

nacional e, como o resultado da patrimonialização de bens, faz parte de um processo

histórico que, invariavelmente, relaciona-se ao projeto modernista no início do século

XX e criação do Iphan. Fato que não pretende legitimar Mário de Andrade como o

patrono da política de patrimônio imaterial e/ou reforçar que ela nasceu nos anos 2000

(apenas e tão somente) com a retomada do seu anteprojeto. Ao contrário, demonstra

como a política de patrimônio imaterial é resultado de um processo longo e complexo

que se estabelece a partir de várias intervenções e debates internos e externos.

Os discursos de preservação da UNESCO são similares e se constroem,

concomitantemente, com os discursos de preservação do patrimônio imaterial, no

Brasil. A cultura popular e tradicional é, prioritariamente, o alvo das políticas públicas

preservacionistas no Iphan, bem como há nesses discursos, tanto em âmbito global

(UNESCO) quanto local (Iphan), a constituição de lugares da tradição, de uma

geografia do patrimônio imaterial. Se para UNESCO a cultura popular e tradicional está

salvaguardada, na Ásia, África, América Latina e países árabes, ao Iphan, a cultura

popular e tradicional está nos interiores dos grandes centros e no Norte e Nordeste do

país.

Os critérios de registro do patrimônio imaterial, como vimos, têm como

prioridades expressões de matriz africanas e indígenas e/ou expressões entendidas como

“tradicionais e populares” com risco de desaparecimento. Nos processos de pedidos de

registros são comuns os usos da noção de tradição e de equiparações às matrizes

indígenas e africanas como argumentos para o registro das manifestações culturais. Isso

demonstra como há uma constante disputa de poder entre os grupos identitários; revela

as apropriações dos critérios e prioridades estabelecidos pelo Iphan por grupos fora dos

padrões exigidos para o reconhecimento.

No processo Tiro do Laço (PROC. nº 01450.013532/201051) o preponente

atribui legitimidade do pedido, equiparando-o aos bens registrados como a Arte Kusiwa

e a Capoeira. Isso revela o desconhecimento da sociedade civil à inclinação da política

ser fortemente ligada ao reconhecimento de direitos sociais de grupos minoritários e

não, necessariamente, ao reconhecimento de identidades de forma isolada. Ao lado do

Tiro do Laço, o Talian (PROC. nº 01450.001255/2004-96) é um requerimento que

expõe como os critérios adotados pelo Iphan se tornam precários e podem ser

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reelaborados para legitimar solicitações, em tese, inadequadas. Uma das bases

argumentativas do Talian, por exemplo, é o fato de ele pertencer a um grupo de

imigrantes que sofreram durante a ditadura Vargas perseguições e exclusão social, além

de ser uma manifestação cultural em risco iminente de extinção.

Os processos do Sanduíche de Bauru (nº 01450.008690/2004-41), Centro

Universitário Maria Antônia (nº 01450.001580/2005-30) e Box 32 no Mercado Público

de Florianópolis (nº 01450.005626/2011-38) demonstram como o debate interno no

Iphan se realiza de forma contraditória, conflituosa e inacabada sobre como e qual

manifestação cultural o Iphan deve atuar. Além disso, revela como a figura do técnico

interfere no andamento e validação de determinados pedidos. O sanduíche Bauru, por

exemplo, é destacado pelo corpo técnico como uma representante do multiculturalismo

em situação urbana, o que valorizou o pedido em bases argumentativas que dialogam

com as propostas de reconhecimento do Iphan.

A história de constituição identitária no Brasil está enraizada profundamente nas

questões de raça e negritude (LESSER, 2014), fazendo com que os grupos de

imigrantes e descendentes não utilizem habitualmente identidades hifenizadas (ítalo-

brasileiros, nipo-brasileiros), mas reivindiquem suas identidades do país de origem

como forma de manter o status social e aproximação do branqueamento valorizado no

Brasil.

A identidade alemã- brasileira, por exemplo, se constrói a partir de uma forte

concepção de resgate e proteção à identidade germânica. Os processos de pedidos de

registro das Tradições da Colônia Alemã, em Petrópolis (nº 01450.007061/2010-42) e

Festa de Atiradores¨- Schützenfest (nº 01450.016012/2009-67) demonstram como ainda

está imbrincado o orgulho germânico na construção da argumentação para o registro

sem que se reflita na necessidade de pontuar que a identidade dos imigrantes e seus

descendentes passam por hibridizações no Brasil, portanto, não são identidades

puramente alemãs.

Conquanto, não se defende a desvalorização da contribuição dos imigrantes à

formação da(s) identidade(s) nacional. Segundo LESSER (2015), para se compreender

o Brasil é preciso sair da tríade racial negros, brancos (portugueses) e índios que cria o

mito das três raças fundadoras da nação e incorporar os imigrantes de diásporas

contemporâneas na discussão da formação da(s) identidade(s) nacional. Entretanto, a

política de patrimônio imaterial não se resume ao reconhecimento das identidades

múltiplas de uma nação, trata-se de uma política pública que assegura os direitos

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culturais de grupos sociais vulneráveis. O processo histórico no país permitiu a

ascensão econômica e social de grupos imigrantes85 e deu continuidade à exclusão de

indígenas e afro-brasileiros.

As identidades são fluidas, fragmentadas, se constroem em fronteiras, se

constituem de forma híbrida, sem que se possa conceber a existência de cultura legítima

e/ou autêntica. No entanto, o resgate à cultura tradicional se consolida, nos dias atuais,

como resistência à dissolução identitária promovida pelos processos globalizantes que

afirmam o poder econômico de algumas nações sobre outras.

A relativização das identidades culturais pode gerar nas políticas culturais um

esvaziamento conceitual que impede ações práticas em diálogo com a situação sócio

econômica de grupos minoritários. O patrimônio cultural é indissociável aos conflitos e

disputas entre classes sociais e grupos étnicos. Relativizar as identidades nas políticas

culturais é relativizar a disputa em vigência de grupos dominantes e subalternos e,

consequentemente, negar as desigualdades sociais que incidem sobre grupos

minoritários que não estão no mesmo patamar econômico/social de grupos sociais

hegemônicos. Não há com isso um entendimento dual e simplista entre classe

hegemônica x subalterna. Ao contrário, entende-se que é preciso compreender essas

dualidades em suas contradições e relações de dominação complexas estabelecidas entre

os subgrupos que se constroem entre esses dois pólos (CANCLINI, 1997). Considera-se

também que as negociações entre as classes sociais e o Estado de forma dialética, não

compreendendo o Estado e/ou as classes dominantes como únicos agentes definidores

das políticas públicas e os grupos sociais como agentes passivos. (THOMPSON, 2002)

A dimensão imaterial como categoria desmembrada do campo do patrimônio é

inexistente. Ela se realiza apenas no campo estratégico político. Assim como aponta

MENESES (2009) a dualidade imaterial x material não são dimensões separadas. Toda

imaterialidade parte materialidade para se realizar, bem como todo o objeto material

possui uma rede de símbolos e significados imateriais. As dicotomias material e

imaterial são concebíveis apenas no campo político como forma de trazer à tona os

silêncios da política de patrimônio cultural na preservação das culturas populares e

tradicionais e como forma de obrigar as políticas culturais a atuar sobre grupos sociais

excluídos historicamente.

85 Considerem-se os grupos imigratórios a partir do século XIX (LESSER, 2015), sem menção aos grupos

imigrantes do final de século XX e início do XXI, com número expressivo de bolivianos e africanos.

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Há ainda que se considerar os riscos de fetichização e folclorização que tal

dualidade proporciona. Ao registrar como marcos referenciais a cultura popular e

tradicional, pode indevidamente, demarcar essas manifestações como meras ilustrações

do passado. O cenário de registro de bens imateriais, sem a devida reflexão e debate –

sobretudo de como o acesso a cidadania e direitos culturais se consolidaram nesses

grupos a partir do registro – afirma serem indígenas e afro-brasileiros os “fundadores da

cultura nacional”, negando com isso a heterogeneidade cultural brasileira na

contemporaneidade e as identidades como processos inacabados munidos da

dinamização cultural, inclusive desses dois grupos étnicos.

Os processos pesquisados também evidenciam a tensão entre os conceitos de

cultura “tradicional (arcaico pertencente ao passado)” e “moderna” (designado a

manifestações contemporâneas) na política de patrimônio. Segundo CANCLINI (1997),

os órgãos de preservação no mundo, sobretudo na América Latina, sofrem críticas por

colocarem a “tradição” vinculada às culturas populares, como as indígenas, de forma

essencialista e como meio de legitimar suas identidades nacionais, negando como essas

mesmas “tradições” estão em constante diálogo com o mundo contemporâneo, são

transformadas e estão vivas por conta desse intercruzamento. O autor cita que a

importância de determinados bens culturais, historicamente, foi definida por ideologias

de setores oligárquicos que determinaram quais memórias e artes seriam preservadas.

Desde os centros históricos, coleções de artes, música clássica e, posteriormente,

agregado a esse grupo de símbolos que definem a nação parte de bens da cultura

popular entendidos como folclore, desenvolvendo uma prática de preservação aliada ao

“tradicionalismo substancialista”. A escolha de bens culturais a partir da visão desses

grupos hegemônicos originou um patrimônio que celebra “acontecimentos fundadores,

os heróis que os protagonizaram e os objetos fetichizados que os evocam”, promovendo

a teatralizalização do patrimônio em que os espetáculos são representados por festas

cívicas e religiosas e os palcos são os lugares históricos, praças e palácios, igrejas.

(CANCLINI, 1997, 163). O patrimônio cultural construído, a partir do tradicionalismo

substancialista, impede que se construa conceitos de patrimônio de forma autônoma e

descentralizada do Estado.

Segundo CANCLINI (1997, apud WILLIAMS, 1980), o ideal seria as políticas

culturais abolirem a dicotomia entre o tradicional e o moderno, e se organizar entre os

conceitos de arcaico (o que é pertencente ao passado), o residual (tem sua formação no

passado, porém se constitui elemento vivo no tempo presente) e emergente (novas

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práticas culturais). Ao contrário das suas ações habituais que apenas consideram o

arcaico, devem incorporar aos seus discursos a compreensão de que são os bens

culturais fenômenos ligados a processos históricos e que as tradições se reproduzem e se

transformam. A partir disso, o emergente é destacado como manifestação relevante e

não é mais ignorado. Essa concepção de patrimônio abrangente está relacionada a

concepção ampliada de cultura e de identidade que foram adotadas na

contemporaneidade. (FONSECA, 2003)

A política de patrimônio imaterial, como dito anteriormente, tem como

prioridade, assegurar os direitos culturais de grupos sociais excluídos, e não o

reconhecimento das múltiplas identidades e manifestações que, inegavelmente, fazem

parte da formação da(s) identidade(s) nacional. Contudo, o Iphan não defende esse

posicionamento de forma explícita e adotou estratégias que postergam demandas

excludentes, amparando-se nas burocracias exigidas em atendimento ao rito de análise.

A exigência de pesquisa aprofundada e o uso do INRC são habitualmente solicitados,

mesmo quando está previsto que o pedido não será registrado por estar fora das

prioridades e critérios exigidos. A prática, provavelmente, atende ao discurso de ser a

política de patrimônio imaterial um conjunto de ações democráticas. Diante disso, um

posicionamento mais objetivo tende a ser interpretado como arbitrariedade pelos grupos

sociais excluídos. Essas contradições poderão ocasionar, ao longo dos anos, um volume

de requerimentos e processos que causarão morosidade e acúmulo.

A ação do Estado em patrimonializar bens culturais está vinculada, em certa

medida, à “legitimação de identidades” de determinados grupos sociais. Ainda que a

noção de patrimônio e cultura seja historicamente transformado e ressignificado, e

considerando que a ideia de autenticidade cultural seja um conceito inexistente

(CANCLINI, 97), a política de patrimonialização desenvolvida pelo Iphan constrói um

discurso sobre as identidades no Brasil, há quase 80 anos. O reconhecimento dessas

identidades eleva determinados grupos ao status de serem lembrados e inseridos na

memória coletiva construída pelo Estado. Isso significa além de visibilidade, fazer parte

do processo pedagógico de formação identitária do país (escolas, livros didáticos,

museus, centros históricos, monumentos, instituições culturais, etc.), provocando

disputa de poder entre os grupos sociais.

Ciente desses percalços, o Iphan, ao que analisamos, oferece os inventários

como alternativa de inclusão da heterogeneidade identitária, incorporando

manifestações de grupos imigrantes na elaboração de dossiês - como o caso do Tooro

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Nagashi/SP e Clubes do Tiro/SC e Modos de Fazer Polenta dos Descendentes de

Imigrantes Italianos -, e mantém, de forma assertiva, a opção de registrar e implantar a

política de salvaguarda (inerente ao registro) sob culturas de matriz africanas e

indígenas que, historicamente, são pertencentes aos grupos em que a desigualdade

social, discriminação étnica e genocídio continuam em percurso. Apenas no ano de

2003, por exemplo, criou-se a Lei nº 10.639, que insere nos currículos escolares o

ensino da cultura afro-brasileira e africana, sendo reformulada em 2008, sob a Lei nº

11.645, que inclui o ensino da cultura indígena e amplia a obrigatoriedade do currículo

às escolas particulares. Sendo a escola, ao lado do Iphan, um dos organismos estatais

que incidem sobre o processo pedagógico de formação das identidades no Brasil – sem

afirmar que os órgãos oficiais sejam os únicos agentes desse processo – conclui-se a

partir dessa medida tardia, como houve negligencia e invisibilidade desses grupos

étnicos na história do país.

O Iphan não deve ser responsabilizado como único meio de preservar e proteger

os patrimônios culturais. As produções acadêmicas e registros variados de memórias

produzidos também fora da Academia, as ações de movimentos sociais, grupos e

associações são meios de preservação. Porém, sobre o órgão federal recai o peso

político que pode mobilizar efetivamente políticas públicas em situações emergenciais,

como a intervenção nos patrimônios pelos interesses de mercado, liderados por grupos

hegemônicos detentores do capital e/ou a ausência da concepção de cidadania e direitos

humanos (temas cada vez mais urgentes no Brasil) que atingem culturas pertencentes a

grupos socialmente vulneráveis. Diante disso, a política de patrimônio imaterial emerge

como uma ferramenta que pode colaborar para a manutenção da garantia de direitos

sociais e culturais.

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Iphan/SP

Documentos protocolados:

ACNBR – Associação Cultural Nipo Brasileira de Registro - 9ª SR/Iphan/SP-

Protocolo nº 528, p. 5;

Memorandos:

GAB/ DPI/ Memorando nº 0732/09;

Atas de reuniões digitalizadas da Câmara de Patrimônio Imaterial em Brasília

de Brasília de 2005 a 2007;

Atas de reuniões e informação técnica do Departamento de Patrimônio

Imaterial de São Paulo – 2006-2012.

Processos consultados no Arquivo Central do Iphan/BR:

Tooro Nagashi - Processo nº 01450.014349-2009-59;

Tradições da Colônia alemã – Processo nº 01450.007061/2010-42;

Tiro do laço – Processo nº 01450.013532/201051;

Clube do Tiro – Processo nº 01450.016012/2009-67;

Talian – Processo nº 01450.001255/2004 -96;

Centro Universitário Maria Antônia – Processo nº 01450.001580/2005-30;

Box 32 no Mercado Público Florianópolis – Processo nº 01450.005626/2011-38;

Festival do Japão – Processo nº 01450.015315/2005-39;

Sanduíche de Bauru – Processo nº 01450.008690/2004-41;

Modos de Fazer Polenta dos Descendentes de Imigrantes Italianos - Processo nº

01450.016011/2009-12.

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ANEXO I

BENS REGISTRADOS

Patrimônio imaterial registrado pelo Iphan até 27/03/2016*

Bem Categoria Estado Data de registro

Arte Kusiwa – Pintura Corporal e

Arte Wajápi

Formas de

Expressão

AP 20/12/2002

Ofício das Paneleiras de

Goiabeiras

Saberes ES 20/12/2002

Samba de Roda do Recôncavo

Baiano

Formas de

Expressão

BA 14/01/2004

Círio de Nossa Senhora de

Nazaré

Celebrações PA 09/10/2004

Modo de Fazer Viola de

Cocho

Saberes MT/MS 14/01/2005

Ofício das Baianas de Acarajé Saberes BA 14/01/2005

Jongo no Sudeste Formas de

Expressão

SP/RJ/ES/MG 15/12/2005

Cachoeira de Iaurete – Lugar

sagrado de povos indígenas dos

Rios Uapés

e Papuri

Lugares AM 10/08/2006

Feira de Caruaru Lugares PE 20/12/2006

Formas de

Fxpressão

PE 28/02/2007 Frevo

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159

Matrizes do Samba do Rio de

Janeiro: partido alto, samba de

terreiro e samba enrede

Formas de

Expressão

RJ 20/11/2007

Tambor de Crioula Formas de

Expressão

MA 20/11/2007

Modos de Fazer

Queijo Minas

Saberes MG 13/06/2008

Oficio dos Mestres de Capoeira Saberes BR 21/10/2008

Roda de Capoeira Formas de

Expressão

BR 21/10/2008

Modos de Fazer Renda Irlandesa Saberes SE 28/01/2009

Toques dos Sinos em Minas

Gerais

Formas de

Expressão

MG 03/12/2009

Ofício de Sineiro Saberes MG 03/12/2009

Festa do Divino Espírito Santo de

Pirenópolis

Celebrações GO 13/05/2010

Ritual Yaokwa do povo indígena Celebrações MT 05/10/2010

Festa de Santana de Caicó Celebrações RN 10/12/2010

Sistema Agrícola Tradicional do

Rio Negro

Saberes AM 05/11/2010

Complexo Cultural Bumba

Meu Boi

Celebrações MA 30/08/2011

Ritxôko: expressão artística e

cosmológica do povo Karajá

Saberes TO/GO 25/01/2012

Saberes e Práticas Associadas ao

Modo de Fazer Bonecas Karajá

Saberes TO/GO 25/01/2012

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Fandango Caiçara Formas de

Expressão

SP/PR 29/11/2012

Festo do Divino de Paraty Celebrações RJ 03/04/2013

Festa do Bom Jesus Bonfim Celebrações BA 05/06/2013

* [Dados obtidos em

<http://portal.iphan.gov.br/> 20 mar.

2016]

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ANEXO II

ARTIGOS 215 E 216 DA CONSTITUIÇÃO

FEDERAL - SEÇÃO II: DA CULTURA

Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos

culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a

valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,

indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do

processo civilizatório nacional. §

2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta

significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores

de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira, nas quais se incluem: I .as formas de

expressão;

I - os modos de criar, fazer e viver;

II - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

III - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços

destinados às manifestações artístico-culturais;

IV - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,

artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e

protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,

registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de

acautelamento e preservação.

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§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da

documentação governamental e as providências para franquear sua

consulta a quantos dela necessitem.

§ 3 - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de

bens e valores culturais.

§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma

da lei.

§ 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de

reminiscências históricas dos antigos quilombos.

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ANEXO III

CARTA DE FORTALEZA

Em comemoração aos seus 60 anos de criação, o Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional promoveu em Fortaleza, de 10 a 14 de novembro de

1997, o Seminário Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas de Proteção, para o qual

foram convidados e estiveram presentes, representantes de diversas instituições públicas

e privadas, da Unesco e da sociedade, todos signatários deste documento.

O objetivo do Seminário foi recolher subsídios que permitissem a elaboração de

diretrizes e a criação de instrumentos legais e administrativos visando a identificar,

proteger, promover e fomentar os processos e bens portadores de referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

(Artigo 216 da Constituição), considerados em toda a sua complexidade, diversidade e

dinâmica, particularmente, as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as

criações científicas, artísticas e tecnológicas, com especial atenção àquelas referentes à

cultura popular.

O plenário, considerando:

1. A crescente demanda social pelo reconhecimento e preservação do amplo e

diversificado patrimônio cultural brasileiro, encaminhada pelos poderes públicos e

pelos segmentos sociais organizados;

2. Que, em nível nacional, cabe ao Iphan identificar, documentar, proteger,

fiscalizar, preservar e promover o patrimônio cultural brasileiro;

3. Que o patrimônio cultural brasileiro é constituído por bens de natureza material

e imaterial conforme determina a Constituição Federal;

4. Que os bens de natureza imaterial devem ser objeto de proteção específica;

5. Que os institutos de proteção legal em vigor no âmbito federal não se têm

mostrado adequados à proteção do patrimônio cultural de natureza imaterial;

propõe e recomenda:

1. Que o Iphan promova o aprofundamento da reflexão sobre o conceito de

bem cultural de natureza imaterial, com a colaboração de consultores do

meio universitário e instituições de pesquisa;

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2. Que o Iphan, através de seu Departamento de Identificação e Documentação,

promova, juntamente com outras unidades vinculadas ao Ministério da

Cultura, a realização do inventário desses bens culturais em âmbito nacional,

em parceria com Instituições estaduais e municipais de cultura, órgãos de

pesquisa, meios de comunicação e outros;

3. Que o Ministério da Cultura viabilize a integração do referido inventário ao

Sistema Nacional de Informações Culturais;

4. Que seja criado um grupo de trabalho no Ministério da Cultura, sob a

coordenação do Iphan, com a participação de suas entidades vinculadas e de

eventuais colaboradores externos, com o objetivo de desenvolver os estudos

necessários para propor a edição de instrumento legal, dispondo sobre a

criação do instituto jurídico denominado registro, voltado especificamente

para a preservação dos bens culturais de natureza imaterial;

5. Que o grupo de trabalho estabeleça as necessárias interfaces para que sejam

estudadas medidas voltadas para a promoção e fomento dessas manifestações

culturais, entendidas como iniciativas complementares indispensáveis à

proteção legal propiciada pelo instituto do registro. Essas medidas serão

formuladas tendo em vista as especificidades das diferentes manifestações

culturais, e com a participação de outros agentes do poder público e da

sociedade.

O plenário ainda recomenda:

6. Que a preservação do patrimônio seja abordada de maneira global, buscando

valorizar as formas de produção simbólica e cognitiva;

7. Que seja constituído um banco de dados acerca das manifestações culturais

passíveis de proteção, tornando a difusão e o intercâmbio das informações ágil e

acessível;

8. Que sejam buscadas parcerias com entidades públicas e privadas com o objetivo

de conhecer as manifestações culturais de natureza imaterial sobre as quais já

existam informações disponíveis;

9. Que, relativamente aos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e Relatórios de

Impacto Ambiental (RIMA), o Iphan encaminhe ao Conselho Nacional do Meio

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Ambiente (Conama) proposta de regulamentação do item relativo ao patrimônio

cultural, de modo a contemplá-lo em toda sua amplitude;

10. Que seja desenvolvido um Programa Nacional de Educação Patrimonial,

a partir da experiência do Iphan, considerando sua importância no processo de

preservação do patrimônio cultural brasileiro;

11. Que seja estabelecida uma Política Nacional de Preservação do

Patrimônio Cultural com objetivos e metas claramente definidos;

12. Que o Ministério da Cultura procure influir no processo de elaboração

das políticas públicas, no sentido de que sejam levados em consideração os valores

culturais na sua formulação e implementação.

O plenário encaminhou as seguintes moções:

1. Moção de defesa da legislação de preservação:

Em defesa do reconhecimento, eficácia, atualidade e excelência jurídica do

Decreto-Lei n.º 25/37, em vigor, que organiza a proteção do patrimônio histórico e

artístico nacional, cujas disposições foram recepcionadas pela Constituição Federal de

1988. Em defesa da criação de instrumentos legais complementares com o objetivo de

regulamentar as outras formas de acautelamento e preservação mencionadas no

parágrafo primeiro do artigo 216 da Constituição Federal.

2. Moção de apoio ao Iphan:

Pelo repúdio a qualquer tipo de medida que venha a reduzir a capacidade

operacional do Iphan, já bastante defasada em relação às suas atribuições legais e

administrativas, inclusive no que concerne à extinção de cargos efetivos, comissionados

e funções, e consequente desligamento de servidores não estáveis.

Pela garantia de sobrevivência do Iphan e de toda a suas conquistas nas áreas de

Identificação, documentação, proteção, preservação e promoção do patrimônio cultural

brasileiro. Pelo reconhecimento das atividades exercidas pelo Iphan como função típica

de Estado, através da criação de uma carreira especial.

3. Moção de apoio ao Ministério da Cultura:

Pelo repúdio a qualquer tipo de medida que venha a reduzir a capacidade

operacional do Ministério da Cultura e demais entidades vinculadas, de modo a não

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comprometer suas atribuições institucionais, inclusive no que concerne a extinção de

cargos efetivos e o consequente desligamento de servidores não estáveis.

4. Moção de defesa à Lei de Incentivo à Cultura

Pela manutenção dos benefícios previstos na Lei de Incentivo à Cultura, que

Estimulem a parceria entre Estado e sociedade na tarefa de preservar e promover

o patrimônio cultural brasileiro.

5. Moção de apoio às expressões culturais dos povos ameríndios:

Pelo reconhecimento da cultura indígena como integrante do patrimônio cultural

brasileiro, devendo, a exemplo de outras etnias, ser objeto de atenção dos órgãos do

Ministério da Cultura.

6. Moção de congratulações à 4a Coordenação Regional do Iphan

Pelo reconhecimento da importância da realização do Seminário Patrimônio

Imaterial: estratégias e formas de proteção. e da excelência de sua organização.

Fortaleza, 14 de novembro de 1997

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ANEXO IV

DECRETO Nº 3.551, DE 4 DE AGOSTO DE 2000

Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem

patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá

outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o

art. 84, inciso IV, e tendo em vista o disposto no art. 14 da Lei nº 9.649, de 27 de maio

de 1998, DECRETA:

Art. 1º - Fica instituído o registro de bens culturais de natureza imaterial que

constituem patrimônio cultural brasileiro. § 1º Esse registro se fará em um dos seguintes

livros:

I. Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos

de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;

II. Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que

marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de

outras práticas da vida social;

III. Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas

manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;

IV. Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras,

santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais

coletivas.

§ 2º - A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a

continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e

a formação da sociedade brasileira.

§ 3º - Outros livros de registro poderão ser abertos para a inscrição de bens

culturais de natureza imaterial que constituam patrimônio cultural brasileiro e não se

enquadrem nos livros definidos no parágrafo primeiro deste artigo.

Art.2º - São partes legítimas para provocar a instauração do processo de registro:

I. O Ministro de Estado da Cultura;

II. Instituições vinculadas ao Ministério da Cultura;

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II. Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal; IV sociedades ou

associações civis.

Art. 3º - As propostas para registro, acompanhadas de sua documentação técnica,

serão dirigidas ao Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -

Iphan, que as submeterá ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

§ 1º - A instrução dos processos de registro será supervisionada pelo Iphan.

§ 2º - A instrução constará de descrição pormenorizada do bem a ser registrado,

acompanhada da documentação correspondente, e deverá mencionar todos os elementos

que lhe sejam culturalmente relevantes.

§ 3º - A instrução dos processos poderá ser feita por outros órgãos do Ministério

da Cultura, pelas unidades do Iphan ou por entidade, pública ou privada, que detenha

conhecimentos específicos sobre a matéria, nos termos do regulamento a ser expedido

pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

§ 4º - Ultimada a instrução, o Iphan emitirá parecer acerca da proposta de

registro e enviará o processo ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, para

deliberação.

§ 5º - O parecer de que trata o parágrafo anterior será publicado no Diário

Oficial da União, para eventuais manifestações sobre o registro, que deverão ser

apresentadas ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural no prazo de até trinta dias,

contados da data de publicação do parecer.

Art. 4º - O processo de registro, já instruído com as eventuais manifestações

apresentadas, será levado à decisão do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

Art.5º - Em caso de decisão favorável do Conselho Consultivo do Patrimônio

Cultural, o bem será inscrito no livro correspondente e receberá o título de Patrimônio

Cultural do Brasil.

Parágrafo único -. Caberá ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural

determinar a abertura, quando for o caso, de novo Livro de Registro, em atendimento ao

disposto nos termos do § 3º do art. 1º deste Decreto.

Art. 6º - Ao Ministério da Cultura cabe assegurar ao bem registrado:

I. Documentação por todos os meios técnicos admitidos, cabendo ao Iphan

manter banco de dados com o material produzido durante a instrução do

processo.

II. Ampla divulgação e promoção.

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Art.7º - O Iphan fará a reavaliação dos bens culturais registrados, pelo menos a

cada dez anos, e a encaminhará ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural para

decidir sobre a revalidação do título de Patrimônio Cultural do Brasil.

Parágrafo único. Negada a revalidação, será mantido apenas o registro, como

referência cultural de seu tempo.

Art.8º - Fica instituído, no âmbito do Ministério da Cultura, o Programa

Nacional do Patrimônio Imaterial, visando à implementação de política específica de

inventário, referenciamento e valorização desse patrimônio.

Parágrafo único. O Ministério da Cultura estabelecerá, no prazo de noventa dias,

as bases para o desenvolvimento do Programa de que trata este artigo.

Art. 9º - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 4 de agosto de 2000;

179º da Independência e 112º da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Francisco Weffort

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ANEXO V

RESOLUÇÃO n° 001, de 03 de agosto de 2006

O PRESIDENTE do INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E

ARTÍSTICO NACIONAL. IPHAN, na qualidade de Presidente do Conselho Consultivo

do Patrimônio Cultural, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo art. 6°

combinadocom o art. 21, inciso V, do Anexo I ao Decreto nº 5.040, de 7 de abril de

2004,

CONSIDERANDO as disposições contidas no Decreto nº 3.551, de 04 de

agosto de 2000;

CONSIDERANDO que se entende por bem cultural de natureza imaterial as

criações culturais de caráter dinâmico e processual, fundadas na tradição e manifestadas

por indivíduos ou grupos de indivíduos como expressão de sua identidade cultural e

social; CONSIDERANDO que, para os efeitos desta Resolução, toma-se tradição no

seu sentido etimológico de .dizer através do tempo., significando práticas produtivas,

rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas,

mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com o seu passado;

CONSIDERANDO que a instituição do Registro de Bens Culturais de Natureza

Imaterial, além de contribuir para a continuidade dessas manifestações, abre novas e

mais amplas possibilidades de reconhecimento da contribuição dos diversos grupos

formadores da sociedade brasileira;

CONSIDERANDO o disposto no § 3º do art. 3º do Decreto n° 3.551, de 04 de

agosto de 2000, e de acordo com decisão do Conselho Consultivo do Patrimônio

Cultural, em sua 49ª reunião, realizada em 03 de agosto de 2006, RESOLVE:

Art. 1º - Determinar os procedimentos a serem observados na instauração e

instrução do processo de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial.

Art. 2º - O requerimento para instauração do processo de Registro poderá ser

apresentado pelo Ministro de Estado da Cultura, pelas instituições vinculadas ao

Ministério da Cultura, pelas Secretarias Estaduais, Municipais e do Distrito Federal e

por associações da sociedade civil.

Art. 3º - O requerimento para instauração do processo de Registro será sempre

dirigido ao Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Iphan,

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podendo ser encaminhado diretamente a este ou por intermédio das demais Unidades da

instituição.

Art. 4º - O requerimento será apresentado em documento original, datado e

assinado, acompanhado das seguintes informações e documentos:

I - identificação do proponente (nome, endereço, telefone, e-mail etc.);

II - justificativa do pedido;

III - denominação e descrição sumária do bem proposto para Registro, com

indicação da participação e/ou atuação dos grupos sociais envolvidos, de onde ocorre ou

se situa, do período e da forma em que ocorre;

IV - informações históricas básicas sobre o bem;

V - documentação mínima disponível, adequada à natureza do bem, tais

como fotografias, desenhos, vídeos, gravações sonoras ou filme;

VI - referências documentais e bibliográficas disponíveis;

VII - declaração formal de representante de comunidade produtora do bem ou

de seus membros, expressando o interesse e anuência com a instauração do processo

de Registro. Parágrafo único. Caso o requerimento não contenha a documentação

mínima necessária, o Iphan oficiará ao proponente para que a complemente no prazo de

30 (trinta) dias, prorrogável mediante solicitação justificada, sob pena de arquivamento

do pedido.

Art. 5º - Criar, no âmbito do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, a

Câmara do Patrimônio Imaterial, com caráter permanente e as seguintes atribuições: I -

colaborar com o Iphan na formulação e implantação da política de salvaguarda da

dimensão imaterial do patrimônio cultural;

II - colaborar com o Iphan no exame preliminar da pertinência dos pedidos

de Registro;

III - colaborar com o Iphan na indicação de instituições públicas ou privadas

capacitadas a realizar a instrução técnica de processos de Registro;

IV - manifestar-se sobre a abertura de novos Livros de Registro;

V - colaborar com o Iphan na formulação de critérios para a reavaliação

decenal dos bens registrados.

§ 1º - A Câmara do Patrimônio Imaterial será composta por 4 (quatro)

Conselheiros cuja área de conhecimento e atuação seja relacionada ao patrimônio

cultural de natureza imaterial.

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§ 2º - A Câmara do Patrimônio Imaterial será assistida por dois servidores do

Iphan da área técnica afim, nomeados pelo Presidente da instituição.

§ 3º - A Câmara do Patrimônio Imaterial poderá convidar especialistas externos

e servidores do Iphan para discutir assuntos específicos.

Art. 6º - O processo de Registro, acompanhado de avaliação técnica preliminar

do Iphan e indicação da instituição externa ou da Unidade do Iphan que poderá instruí-

lo,será submetido à Câmara do Patrimônio Imaterial para apreciação quanto à

pertinência do pedido e quanto à indicação encaminhada.

§ 1º - No caso do pedido ser julgado pertinente, a Câmara do Patrimônio

Imaterial dará conhecimento ao Conselho Consultivo, e o Iphan informará e notificará o

proponente para que proceda à instrução do processo.

§ 2 º - No caso do pedido ser julgado improcedente, a Câmara do Patrimônio

Imaterial submeterá seu entendimento ao Conselho Consultivo, cuja deliberação será

encaminhada ao Iphan para as devidas providências.

Art. 7° - A instrução técnica do processo de Registro é de responsabilidade do

DPI, podendo ser delegada:.

I. Ao proponente, desde que tenha competência técnica para tanto; II - A

uma ou mais instituições públicas ou privadas, desde que detenham

competência para tanto.

§ 1º - A delegação será feita mediante ato formal, ouvida previamente a Câmara

do Patrimônio Imaterial.

§ 2° - Caso o proponente não tenha condições financeiras para realizar a

instrução técnica, o Iphan poderá, dentro de suas possibilidades orçamentárias, destinar

recursos para esta ação e/ou envidar esforços para obtê-los por meio do Programa

Nacional do Patrimônio Imaterial/PNPI ou junto a outras instituições públicas ou

privadas.

Art. 8º - A instrução técnica do processo de Registro será sempre acompanhada e

supervisionada pelo Iphan, que solicitará sua complementação ou a complementará, no

que couber.

Art. 9º - A instrução técnica do processo de Registro consiste, além da

documentação mencionada no art. 4º, na produção e sistematização de conhecimentos e

documentação sobre o bem cultural e deve, obrigatoriamente, abranger:

I. descrição pormenorizada do bem que possibilite a apreensão de sua

complexidade e contemple a identificação de atores e significados atribuídos ao

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bem; processos de produção, circulação e consumo; contexto cultural específico

e outras informações pertinentes;

II. referências à formação e continuidade histórica do bem, assim como às

transformações ocorridas ao longo do tempo;

III. referências bibliográficas e documentais pertinentes;

IV. produção de registros audiovisuais de caráter etnográfico que contemplem os

aspectos culturalmente relevantes do bem, a exemplo dos mencionados nos itens

I e II deste artigo;

V. reunião de publicações, registros audiovisuais existentes, materiais

informativos em diferentes mídias e outros produtos que complementem a

instrução e ampliem o conhecimento sobre o bem;

VI. avaliação das condições em que o bem se encontra, com descrição e

análise de riscos potenciais e efetivos à sua continuidade;

VII. proposição de ações para a salvaguarda do bem.

Parágrafo único - A instrução técnica deverá ser realizada em até 18 (dezoito)

meses a partir da avaliação da pertinência do pedido pela Câmara do Patrimônio

Imaterial, podendo ser prorrogada por prazo determinado, mediante justificativa.

Art. 10 - Conforme estabelecido no Decreto n° 3.551/ 2000, para assegurar ao

bem proposto para Registro ampla divulgação e promoção, a instituição responsável

pela instrução técnica do processo de Registro deverá:

I. ceder gratuitamente ao Iphan os direitos autorais para fins de promoção,

divulgação e comercialização sem fins lucrativos; e o direito de uso e

reprodução, sob qualquer forma, dos produtos e subprodutos resultantes do

trabalho de instrução técnica, resguardado o crédito de autor;

II. - colher todas as autorizações que permitam ao Iphan o uso de imagens,

sons e falas registrados durante a instrução do processo.

Art. 11 - Finalizada a fase de pesquisa e documentação, o material produzido na

instrução do processo de Registro será sistematizado na forma de um dossiê que

apresente o bem, composto de:

I. texto, impresso e em meio digital, contendo a descrição e

contextualização do bem, aspectos históricos e culturais relevantes,

justificativa do Registro, recomendações para sua salvaguarda e referências

bibliográficas;

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II. produção de vídeo que sintetize os aspectos culturalmente relevantes do

bem por meio da edição dos registros audiovisuais realizados e/ou coletados;

III - fotos e outros documentos pertinentes.

§ 1º - O dossiê é parte integrante do processo de Registro.

§ 2º - O dossiê de Registro, juntamente com o material produzido durante a

instrução técnica do processo, será examinado pelo Iphan, que emitirá parecer técnico.

Art. 12 - Após a conclusão da instrução técnica do processo de Registro e do seu

exame pela Procuradoria Federal, o Presidente do Iphan determinará a publicação, na

imprensa oficial, de Aviso contendo o extrato do parecer técnico do Iphan e demais

informações pertinentes, para que a sociedade se manifeste no prazo de 30 (trinta) dias,

a contar da data de publicação.

§ 1º - O extrato do parecer técnico e demais informações pertinentes deverão ser

amplamente divulgadas pelo Iphan no limite de suas possibilidades orçamentárias

e, obrigatoriamente, na página da instituição na Internet.

§ 2º - As manifestações formais da sociedade serão dirigidas ao Presidente do

Iphan e juntadas ao processo para exame técnico.

Art. 13 - O processo de Registro, devidamente instruído, será levado pelo

Presidente do Iphan à apreciação e decisão do Conselho Consultivo. Parágrafo único -

O Presidente do Iphan designará um Conselheiro para relatar o processo, podendo o

Conselho Consultivo decidir acerca da realização de audiência pública, caso tenham

ocorrido manifestações em contrário por parte da sociedade, durante o prazo

determinado no artigo 12.

Art. 14 - A decisão do Conselho Consultivo será expressa, no ato, em

documento declaratório próprio, firmado por todos os Conselheiros presentes à reunião,

e juntado ao processo de Registro.

§ 1º - Se a decisão do Conselho Consultivo for favorável, o Iphan procederá à

inscrição do bem no Livro de Registro correspondente, conforme o estabelecido no

Decreto n° 3.551/ 2000, e emitirá Certidão de Registro.

§ 2º - Em decorrência da inscrição em qualquer um dos Livros de Registro, o

Presidente do Conselho Consultivo conferirá ao bem, em documento próprio, o

título de Patrimônio Cultural do Brasil.

§ 3º - Se a decisão do Conselho Consultivo for contrária ao Registro, o Iphan

arquivará o processo e comunicará o ato formalmente ao proponente.

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§ 4º - Qualquer que seja a decisão do Conselho Consultivo, esta será publicada,

mediante Aviso, na imprensa oficial.

Art. 15 - Para atender a demanda específica e com base em parecer

circunstanciado da Câmara do Patrimônio Imaterial, o Conselho Consultivo poderá

determinar a abertura de outros livros para a inscrição de Bens Culturais de Natureza

Imaterial que não se enquadrem em qualquer um daqueles previstos no Decreto nº

3.551/2000.

Parágrafo único. A abertura de outros livros será precedida por Resolução

específica do Conselho Consultivo, contendo a justificativa e a especificação das

categorias correspondentes.

Art. 16 - O Iphan promoverá as ações necessárias à conservação, guarda e acesso

à documentação produzida nos processos de Registro.

Art. 17 - No máximo a cada dez anos, conforme disposto do Decreto n° 3.551/

2000, o Iphan procederá à reavaliação dos bens culturais registrados, emitindo parecer

técnico que demonstre a permanência ou não dos valores que justificaram o Registro.

Parágrafo Único - O parecer de reavaliação será enviado ao proponente e

demais participantes do processo, que terão15 (quinze) dias para se manifestar por

escrito.

Art. 18 - O processo de Registro, acompanhado do parecer de reavaliação e da

manifestação dos participantes do processo, será encaminhado ao Presidente do Iphan,

que o submeterá ao Conselho Consultivo para decisão sobre a revalidação ou não do

título de Patrimônio Cultural do Brasil., conferido ao bem anteriormente.

§ 1º - A decisão do Conselho Consultivo de revalidar ou não o título será averbada pelo

Iphan à margem da inscrição do bem no Livro de Registro correspondente.

§ 2º - Negada a revalidação do título pelo Conselho Consultivo, o Registro do bem será

mantido como referência cultural de seu tempo.

§ 3º - A decisão do Conselho Consultivo deverá ser publicada, mediante Aviso,

na imprensa oficial.

Art. 19 - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, suprimindo,

assim, revogadas as disposições em contrário Brasília, 03 de agosto de 2006.

LUIZ FERNANDO DE ALMEIDA

PRESIDENTE

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ANEXO VI

CARTA DA PESQUISA HISTÓRICA NO IPHAN

Resultado das discussões dos Grupos de Trabalho da I Oficina de Pesquisa:a

Pesquisa Histórica no IPHAN, organizada pela Gerência de Pesquisa e Referência da

Copedoc, realizou-se no Rio de Janeiro entre 26 e 30 de novembro de 2007. O encontro

contou com a presença de técnicos, entre historiadores, historiadores da arte, cientistas

sociais,arquivistas, museólogos, arquitetos, das diversas unidades do IPHAN – museus,

superintendências regionais e unidades da área central, como o DEPAM, o DPI, a

Cogeprom e a própria Copedoc –, além de historiadores e cientistas sociais convidados

de diferentes instituições.

O encontro teve por objetivo refletir sobre a prática da pesquisa histórica na

Instituição e consolidar o foco da área de pesquisa e referência da Copedoc na produção

de uma memória institucional e da preservação, por meio de estudos sobre a gestão do

patrimônio no Brasil. A participação de técnicos de outras áreas de formação

possibilitou debates mais abrangentes também sobre as ações de pesquisa na Instituição,

além de promover uma maior interação entre os pesquisadores da casa. Nesse sentido,

foram organizados Grupos de Trabalho em que discutimos e defendemos os seguintes

pontos, apresentados abaixo como resultado do encontro:

1) No que diz respeito à pesquisa histórica no IPHAN:

1.1) A pesquisa histórica no IPHAN deve caracterizar-se por uma abordagem

processual, com uso de fontes e de referências historiográficas e metodológicas

clássicas e atualizadas, sobre as mais diferentes temáticas; uma abordagem que, no

campo do patrimônio, propicia a análise contextualizada de bens e práticas culturais e

das ações institucionais, a partir de valores e sentidos próprios de seu tempo. A pesquisa

histórica desse modo possibilita também a compreensão dos processos pelos quais tais

bens passaram ao longo do tempo até a construção do seu sentido, forma e valor

contemporâneos. A pesquisa histórica também deve ser vista como uma ação de

preservação em si mesma, na medida em que, ao levantar, problematizar, organizar e

analisar as informações sobre determinado bem ou ação institucional, atribui

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significados, constrói memórias e, especialmente, produz uma documentação que

configura novo suporte material da preservação desses valores culturais, sendo que é

também uma ação de preservação da memória e dos significados desse bem ou da

trajetória do próprio IPHAN. A pesquisa histórica não deve, portanto, limitar-se a

subsidiar ações de proteção dos bens tombados, apresentada muitas vezes como

cronologias ou resumos informativos sobre determinado bem;

1.2) A realização da pesquisa histórica no âmbito do IPHAN requer uma

especialização dos historiadores, pois estes estão vinculados a uma instância de

proposição e execução de políticas públicas e à própria constituição do campo do

patrimônio, multidisciplinar por excelência. Daí a proposição de se considerarem os

historiadores do quadro do IPHAN que realizam pesquisa histórica como historiadores

do patrimônio, ou seja, historiadores especializados na pesquisa histórica relativa ao

campo de patrimônio e comprometidos com a construção e a gestão do patrimônio

cultural brasileiro;

1.3) Entre as ações dos historiadores do patrimônio, deve constar a difusão do

sentido, natureza e especificidade da pesquisa e das atividades do historiador do

patrimônio no âmbito da Instituição, assim como a consolidação do espaço institucional

da pesquisa histórica;

1.4) Pesquisadores ou empresas de pesquisa contratados devem seguir os

parâmetros indicados para a realização da pesquisa histórica no IPHAN. Nessa

atividade, devem contar com orientação e participação permanente e ativa dos

historiadores do patrimônio, de maneira a reforçar o IPHAN como espaço de pesquisa e

produção de conhecimento e contribuir para a formação e especialização contínua de

seus técnicos;

1.5) Também é necessário reforçar a participação dos historiadores do

patrimônio na gestão dos acervos da Instituição;

1.6) É importante que haja maior envolvimento do historiador do patrimônio no

planejamento, seleção, elaboração, gestão e acompanhamento dos projetos e ações nas

unidades do IPHAN;

1.7) A participação dos historiadores do patrimônio em encontros internos

promovidos pelo IPHAN deve ser reivindicada entre o corpo técnico e pelos dirigentes;

1.8) Com vistas a uma maior participação e ingerência do IPHAN nos espaços

de discussão sobre o patrimônio, a participação dos historiadores do patrimônio em

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encontros promovidos por outras instituições, como ABA, ANPOCS, ANPUH,

ANPUR, SAB, deve ser estimulada;

1.9) Da mesma forma, o diálogo do IPHAN com cursos de especialização e pós-

graduação em patrimônio e áreas afins, por meio de encontros promovidos pela

Instituição para o público externo, editais de pesquisa voltados para o público

acadêmico, estímulo ao aperfeiçoamento acadêmico de seus técnicos, entre outros, deve

ser reforçado, de modo a sublinhar o papel da instituição como referência nesse campo

do conhecimento;

1.10) Faz-se necessário aprofundar a discussão sobre a utilização dos

inventários, a partir principalmente de seu caráter metodológica e teoricamente múltiplo

e multidisciplinar, como modelos de método de pesquisa e também de atuação da

instituição, assim como reforçar a importância da colaboração do historiador do

patrimônio nesses trabalhos.

2. Sobre a multidisciplinaridade e a integração de pesquisa e pesquisadores

no IPHAN

2.1) A tradicional vinculação de certas formações científicas a determinadas

linhas de pesquisa e ações de preservação, como arquitetos ao DEPAM, antropólogos

ao DPI, historiadores à Copedoc, deve ser relativizada, de forma a promover e reforçar

uma crescente multidisciplinaridade na pesquisa e nos campos de atuação do IPHAN;

2.2) Novas oficinas de pesquisa devem ser realizadas, de forma a estimular a

discussão sobre a pesquisa no âmbito da Instituição, contribuir para a consolidação de

seu espaço, promover a interação e contribuições entre os técnicos, assim como criar

uma rede eficaz de troca de informações sobre as pesquisas em andamento no IPHAN;

2.3) O intercâmbio entre as Superintendências Regionais, área central e museus

pode ser promovido por meio da aproximação de temas de pesquisa ou ações de

preservação;

2.4) Faz-se necessário promover espaços de interseção entre as linhas de

trabalho e ação em conjunto no interior da unidades, com profissionais de variadas áreas

de formação;

2.5) O contato entre pesquisadores das unidades, museus e da área central pode

ser estimulado por meio de Grupos de Trabalho, correspondência oficial ou grupo

permanente de e-mail.

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3) No que tange aos acervos arquivísticos e bibliográficos do IPHAN:

3.1) Faz-se necessário debater, junto com os historiadores do patrimônio e

outros técnicos da instituição, a questão dos níveis e formas de acessibilidade à

documentação pública produzida pela instituição;

3.2) É essencial debater, também, a questão da qualidade do acesso a esta

documentação e a valorização dos arquivos, isto é, sua reestruturação, reconhecimento e

fortalecimento – o que passa, inclusive, por uma melhor definição do papel do

arquivista na instituição;

3.3) A integração dos arquivos do IPHAN deve ser um dos objetivos dos

técnicos e prioridade da instituição;

3.4) É fundamental estimular e viabilizar a pesquisa no Arquivo Central e nos

arquivos das unidades para levantamento e intercâmbio de documentos referentes às

regionais;

3.5) Semelhantemente, é importante que a pesquisa em arquivos públicos e

privados externos à instituição seja estimulada e viabilizada, com vistas à ampliação e

complementação dos acervos das unidades;

3.6) Faz-se essencial um extenso detalhamento do conteúdo dos arquivos,

visando à publicidade destes e a um fiel diagnóstico que propicie ações de ampliação e

complementação dos acervos;

3.7) Com vistas à microfilmagem e digitalização dos acervos do IPHAN, é

interessante promover o contato com instituições especializadas em reprodução de

documentos;

3.8) A divulgação ampla dos acervos protegido pelo IPHAN deve ser objetivo

dos técnicos responsáveis por eles e da instituição como um todo, reforçando, assim,

junto à sociedade, tanto o significado público dos documentos como o compromisso da

Instituição com a cidadania.

4) Sobre a divulgação da pesquisa histórica:

4.1) Visando à divulgação da pesquisa histórica realizada no âmbito da

instituição, é interessante que se forme um grupo de trabalho com historiadores do

patrimônio e demais técnicos da Casa, junto à Cogeprom, para o estabelecimento de

regras objetivas e procedimentos institucionalizados para a apresentação de trabalhos

para concorrência nos espaços editoriais do IPHAN, como a Revista doPatrimônio, a

Revista Eletrônica, dentro outros;

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4.2) Deve-se investigar a possibilidade de criação de uma publicação eletrônica

ou em papel para divulgação da pesquisa histórica do Patrimônio, caso as publicações já

existentes não possam fazê-lo;

4.3) A criação de um Conselho Editorial para as publicações do IPHAN deve ser

estimulada.

5) No que diz respeito à Gerência de Pesquisa e Referência da Copedoc:

5.1) Ficou evidente, entre os participantes da oficina, a importância do

fortalecimento da Gerência de Pesquisa e Referência, com vistas a fortalecer também o

espaço da pesquisa nas unidades e na área central do IPHAN;

5.2) O contato entre a Gerência de Pesquisa e os pesquisadores das diversas

unidades deve ser reforçado por meio da articulação de pesquisas dentro da linha geral

de atuação proposta pela Copedoc, de Memória Institucional e da Preservação, na qual

se enquadram diferentes projetos em andamento, como o de Memória Oral; o

Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural; o de revisão do Guia de Bens Tombados; o

projeto-piloto Rotas da Alforria de inventário integrado, entre outros.

6) Sobre o aprimoramento técnico das condições de trabalho dos

pesquisadores:

6.1) É importante estimular o aperfeiçoamento de infra-estrutura para pesquisa

de campo e em arquivo externos, através da disponibilização de meios e recursos para

deslocamento, reprodução de documentos, aquisição de material permanente para

realização de pesquisas e entrevistas (p. ex., gravadores), assim como reforçar a noção

de que a ausência do pesquisador de seu local de trabalho para pesquisa de campo e em

arquivos também faz parte de suas atividades de rotina;

6.2) Faz-se necessário novo concurso ampliar o quadro de historiadores do

IPHAN. Sem mais, subscrevemo-nos,

Palácio Gustavo Capanema, 30 de novembro de 2007.

Adler Homero Fonseca de Castro – Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização

(DEPAM) no Rio de Janeiro

Alessandra Spitz Guedes Alcoforado Lourenço – Sub-regional do IPHAN em Roraima

Ana Stela de Negreiros Oliveira – Escritório Técnico I do IPHAN no Piauí

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Analucia Thompson – Coordenação-geral de Pesquisa, Documentação e Referência

(Copedoc) no Rio de Janeiro

André Bazzanella – Superintendência do IPHAN no Amazonas

Bartolomeu Homem d'El-Rei Pinto – Superintendência do IPHAN no Rio de Janeiro

Beatriz Landau – Copedoc no Rio de Janeiro

Celma de Souza Pinto – DEPAM no Distrito Federal

Claudia Feierabend Baeta Leal – Copedoc no Rio de Janeiro

Cláudio Quoos Conte – Sub-regional do IPHAN no Mato Grosso

Evandro Domingues – Superintendência do IPHAN em Alagoas

Flávia Brito do Nascimento – Superintendência do IPHAN em São Paulo

Giorge Patrick Bessoni e Silva - Superintendência do IPHAN no Distrito Federal

Hilário Figueiredo Pereira Filho – Superintendência do IPHAN em Sergipe

Ítala Byanca Morais da Silva – Superintendência do IPHAN no Pará

Ivana Medeiros Pacheco Cavalcante – Superintendência do IPHAN em Goiás

Ivanirce Gomes Wolf – Superintendência do IPHAN na Bahia

Juliana Sorgine – Copedoc no Rio de Janeiro

Juliano Martins Doberstein – Superintendência do IPHAN no Paraná

Karla Adriana de Aquino – Superintendência do IPHAN no Rio de Janeiro

Kleber de Souza Mateus – Copedoc no Distrito Federal

Luciano dos Santos Teixeira – Copedoc no Rio de Janeiro

Maíra Torres Corrêa – Superintendência do IPHAN no Mato Grosso do Sul

Márcia Chuva – Copedoc no Rio de Janeiro

Marcos Monteiro Rabelo – Superintendência do IPHAN em Santa Catarina

Maria Helena de Macedo Versiani – Museu da República/Rio de Janeiro

Maria Tarcila Ferreira Guedes – Copedoc no Distrito Federal

MôniaSilvestrin – Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI)/ Distrito Federal

Mônica Castro de Oliveira – Sub-regional do IPHAN em Rondônia

Paula Silveira de Paoli – Superintendência do IPHAN na Bahia

Pedro Henrique Belchior Rodrigues – Museu Villa-Lobos/Rio de Janeiro

Ricardo Augusto Pereira – Superintendência do IPHAN no Piauí

Silvia Oliveira Campos de Pinho – Museu da República/Rio de Janeiro