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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2848. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE JEAN BAUDRILLARD O HOMEM QUE NUNCA EXISTIU Rebecca Fanuele

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 10 de Maio de 2013

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PARTE inTEgRAnTE DO HOJE MACAU nº 2848. nÃO PODE SER VEnDiDO SEPARADAMEnTE

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Técnicas em exTinção FoTograFias de Jean Baudrillard

O Instituto Cultural da RAEM (que não existe) , em conjunto com o Consulado-Geral de Fran-ça em Hong Kong e Macau e a Alliance Française de Macau (que também não existem), apresenta a exposição “Técnicas em Extinção – Fotografia de Jean Baudrillard”. A mostra abre hoje, dia 10 de Maio, pelas 18:30 horas, na Galeria Tap Seac, com cerca de 50 fotografias do pensador francês. Técnicas em Extinção é a mais com-pleta e exaustiva introdução às obras de Baudrillard desde a sua morte, tendo as fotografias que a compõem sido pessoalmente selec-cionadas pela mulher do falecido pensador, Marine Baudrillard, em colaboração com o curador sino--francês Fei Dawei. A fotografia permitiu a Baudrillard demonstrar diferentes formas de compreender o mundo, alcançando as suas obras grande impacto a nível internacio-nal. De modo a permitir ao público compreender mais a fundo a teo-ria fotográfica e o pensamento de Baudrillard, realiza-se ainda um seminário a par desta exposição, a ter lugar no dia 11 de Maio, en-tre as 14:30 e as 17:30 horas, na Galeria Tap Seac. Neste seminá-rio, dois especialistas na obra de Baudrillard, Gu Zheng e Che Hio Ieong, juntam-se ao curador da ex-posição para apresentar e discutir a vida, obra e pesquisa do teórico francês. Infelizmente, o seminário será conduzido apenas em manda-rim e cantonense. A exposição es-tará patente de 11 de Maio até 28 de Julho. Mas, para além da foto-grafia, o que escreveu Baudrillard?

Jean Baudrillard

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Carlos Morais José

Falemos do Fim. Falemos, sobretudo, do fim da His-tória e do deserto do real. Não o fim da História como o entendeu (parece que já não entende) Francis Fukyama, ce neocon, por esgotamento de alternativas ou realização utópi-ca, mas do discurso histórico, afinal o grande órfão das me-tanarrativas, a quem teima recusar ainda a eutanásia. Falemos dessa impossibilidade actual de aprisionar o acontecimento numa qualquer rede de sentido ou mesmo num qualquer sen-timento. Para entendermos a fragilidade do Real na era da sua disseminação, fractalização global e instantânea. Ou, se quisermos, ainda pré-tecnológicos, substituir os termos da proposição de Adorno: depois do 11 de Setembro, podere-mos ainda escrever História?Não existe, contudo, essa necessidade do recurso a Hegel, cujos restos ainda vamos encontrando desfeitos por sobre as mesas de trabalho dos nossos mais edipianos intelectuais. Nada. Nada para além do Matrix, só mesmo o deserto do real. E Matrix em constante reversibilidade, mutação viral, jogo de aparências num universo onde a sedução se explana no arranjo floral dos simulacros, como na mesa japonesa. E onde, como entre os nipónicos, somos os espectadores em-bevecidos do “crepúsculo do cru” (Barthes).Tudo se revela com uma visita inesperada: Umberto Eco, nos insanos anos 90, de corpo gigante assente na muralha da For-

taleza do Monte, e uma exclamação incontida, no momento em que pela primeira vez depara com as Ruínas de São Paulo: “mas... eis a pós-modernidade!”. Voilà. O pensador italiano e a sua intuição perante a fachada mais célebre da Ásia, na véspera da sua total perda de sentido. Talvez a sua última réstia se quedasse na representação do poder português em Macau, ele próprio um poder de fachada, efémero, sem con-teúdo e sem continuidade institucional. Nunca a História demonstrou de forma tão banal a sua actual vacuidade como na transferência de soberania de Portugal para a China desta cidade que já foi do Nome de Deus. A cerimónia do último solstício do milénio foi a coroa da inutilidade do aconteci-mento, do seu despojamento, da sua inanidade.Por detrás da fachada de São Paulo não há nada. Eis um mo-numento sem conteúdo, pleno de vazio, sem outro sentido que não seja a sua erecção e reprodução. Repare-se como foi fácil reproduzir as Ruínas de São Paulo, quando da EXPO 98, exactamente porque o próprio original já não existe en-quanto tal, esgotada que foi qualquer função que lhe fora atribuída. Hoje existe um fundo, um cenário, para as foto-grafias dos turistas, essa gente sem singularidade, manada acéfala que percorre os fluxos do entretenimento. Existem cópias e cópias das cópias, simulacros que percorrem o Ma-trix, decompondo-se e recompondo-se, rebatidos nas redes de consumo, como se a História e o próprio destino nunca tivessem existido.(Há uma estranha fixação das autoridades de Macau pela

erecção. Para elas, o importante é que o património se man-tenha de pé, independentemente das suas actuais funções. Esta obsessão fálica desvela um conceito ainda antigo de se-xualidade, cujo fantasma se prende, antes de mais, com a im-portância da visibilidade, que é como quem diz desse arranjo conjuntural de circunstâncias, valores, estruturas mutáveis, a que se dá o nome de face... Não perder face é manter, a todo o custo e visível, a erecção. Nem que isso denote a ausência de desejo. Viagra rex.)Se Christo tivesse embrulhado as Ruínas de São Paulo, então talvez as pudéssemos ter visto.Mas isso não aconteceu, porque nunca ninguém por aqui percebeu nada. Assim, existem as ruínas unicamente en-quanto simulacro, visitado por simulacros, numa imensa e constante procissão de clones produzidos pelas agências de viagens, basicamente todos despojados da sua singularidade, como o próprio monumento estampado nas t-shirts, logro ou definitiva ausência de sentido.Nunca por aqui houve pudor. Nunca houve contenção em homenagem a esse subtil jogo das aparências que nos asse-gura um resto de humanidade. Hoje, depois da invasão dos marcianos de Las Vegas, Macau finalmente cede e transfor-ma-se num verdadeiro entreposto para o futuro, miradouro excelso da abolição do sentido e da nulidade. Onde tudo continua a ser possível porque já não existe.As Ruínas de São Paulo não existem.Bem vindos ao deserto do real.

As RuínAs de são PAulo não existemHomenAgem A JeAn BAudRillARd

Fotografia de Nelson Ramalho (detalhe)

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A observAção do modo de vida na sociedade contem-porânea revela que o consumo é central para compreender-mos as relações e interacções sociais, já que possui um duplo carácter; é uma esfera essencial tanto para a acumulação de capital, como também para a construção da identidade cul-tural do indivíduo.Jean Baudrillard contribuiu para a compreensão das transfor-mações do capitalismo no segundo pós-guerra, ao entender que o modo de vida actual é a produção e consumo de sig-nos; e a instituição ou preservação de uma ordem hierárquica de valores, o que caracteriza o universo do consumo como uma realidade que ultrapassa a fronteira do económico. O sociólogo francês elaborou suas teorias e críticas à socie-dade de consumo no final da década de 1960 e início de 19702, justamente no período que marca o fim dos “anos dourados” do capitalismo, que Eric Hobsbawm afirma ter sido marcado pela “mais impressionante, rápida e profunda revolução nos assuntos humanos de que a história tem regis-to” 3. A constituição da sociedade de consumo em massas foi possibilitada por uma série de factores históricos na esfera económica, política, social e cultural, tornando o consumo uma força produtiva, forçada e racionalizada com outras forças, como a de trabalho, por exemplo, porque se torna central para o capital conseguir realizar valor4. O capitalismo necessita que os indivíduos sejam trabalha-dores, poupadores e consumidores, mas na sociedade do consumo a importância de que os cidadãos se transformem em consumidores é crescentemente maior, uma vez que a valorização do capital depende cada vez mais dessa esfera, principalmente após 1950. No período anterior, a sociedade capitalista se apresentava como uma imensa acumulação de mercadoria (visão de Marx). Porém, quando o desenvolvi-mento capitalista massifica as mercadorias surge o que Guy Debord chama de imensa “acumulação de espectáculos5”. Ele afirma que “[…] o espectáculo é o momento em que a merca-doria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: O mundo que se vê é o seu mundo”6.Porém, Jean Baudrillard vai além, pois diz que a sociedade

Valter Palmieri Júnior1

Capitalismo e soCiedade de Consumo na visão de Jean Baudrillard

de consumo não deve ser considerada apenas pela intensifi-cação da lógica da mercadoria, que ocupa todas as esferas da vida social, já que além disso, tudo se transforma em mode-los consumíveis (signos). É a lógica social e cultural do con-sumo, integrado com o imperativo da acumulação de capital que interessa na análise teórica de Baudrillard.Afinal, a produção de mercadorias e necessidades de con-sumo não possuem o mesmo ritmo, já que a primeira é fun-ção da tecnologia e produtividade da indústria e a segunda é função da lógica da diferenciação social, que ocorre em uma estrutura social hierarquizada por classes sociais. Esse descompasso entre o ritmo de produção e consumo de mer-cadorias foi melhor percebido nos “anos dourados” e é por esta razão que o processo de criação de novas necessidades de consumo se tornou uma força produtiva. Durante o período de desenvolvimento da grande indústria, que produzia essencialmente máquinas, grande parte dos meios de subsistência das classes trabalhadoras provinha da agricultura e da pequena produção comercial.7 O problema é que grande parte dos salários eram gastos nesses bens que não eram produzidos pelo departamento de bens de produ-ção, o que atrapalhava o processo de acumulação.8 Desse modo, as transformações de ordem tecnológica, económica e social do século XX (e principalmente após a segunda guer-ra mundial) permitiram que o quotidiano dos indivíduos e todo seu modo de vida se tornassem uma fonte de acumular capital, principalmente pela produção capitalista de bens de consumo para a sociedade.Dessa forma, a contradição da capacidade ilimitada de pro-dução/limitada de consumo9 foi atenuada, ampliando-se o consumo de uma produção infindável e sempre renovada de necessidades. Por essa razão, a busca pela criação de ne-cessidades torna-se um problema central para o capitalismo enfrentar10. Mas de que modo o capitalismo cria novas ne-cessidades? A história do capitalismo revela que a valorização do valor, lei da acumulação capitalista, necessita não apenas de ele-mentos puramente económicos. É necessária uma complexa interacção com a esfera política, social, cultural e ideológica para que sua expansão seja possível. A ampliação do merca-do e a concentração do capital para permitir a elevação da acumulação do capital somente foram possíveis por meio da

esfera política, pois a própria criação do Estado relaciona-se com a acumulação primitiva. Entretanto, o importante para nosso estudo sobre consumo é que a contradição já citada, que necessita de um processo perpétuo de criação de necessidades de consumo, é atenu-ada no período pós-guerra pela criação de novas formas de diferenciação social, que faz parte de uma “ideologia de con-sumo”.Por isso Jean Baudrillard é um autor essencial para compre-endermos a sociedade capitalista contemporânea. Ele faz a crítica à economia política, actualizando as transformações capitalistas do pós-guerra, e, ainda, analisa o consumo não apenas pela lógica da produção, pois identifica também uma lógica social11. A lógica social do consumo para Baudrillard é a lógica da produção e da manipulação dos significantes sociais, que pode ser analisado de duas formas: 1) Como processo de significação e de comunicação, inter-pretando o consumo como uma linguagem e; 2) Como processo de classificação e de diferenciação social, mas considerando que se diferenciar significa instaurar a or-dem total de diferenças dentro de uma hierarquia social12.Somente interpretando o consumo dessa forma é possível compreender de que forma ocorre um processo infinito e sempre renovado de necessidades (de consumo, do ponto de vista desse trabalho), pois a busca pela diferenciação social não tem fim13. Já a satisfação das necessidades pelo valor de uso possui um limite, que contraria a lógica de o capital rea-lizar valor. Portanto, o processo de mercantilização dos bens culturais e valores sociais por meio do consumo faz com que a mobilidade social seja as-sociada com a capacidade de manipulação dos signos. Dessa forma, a busca pelo reconhecimento social se dá por inter-médio dos signos (atributos materiais, sociais e culturais) dos objetos produzidos pela lógica do mercado.Baudrillard utiliza categorias da semiologia para compreen-der a lógica do consumo na sociedade contemporânea, já que o objecto é um veículo material, que contém uma linguagem de significações e hierarquizações sociais, além de ter uma funcionalidade prática (valor de uso) e ser um intercâmbio económico (valor de troca)14. É por meio da linguagem de significações do objecto que se compreende os mecanismos de criação de necessidades no capitalismo contemporâneo,

Jean Baudrillard

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pois as necessidades não se referem à funcionalidade prática, mas principalmente à lógica social do consumo, que é a da diferenciação social.Portanto, consumir está primeiramente relacionado à intenção do indivíduo em aderir a determinados valores. Essa escolha, no entan-to, na visão de Baudrillard, é eminentemente inconsciente, uma vez que aceita um estilo de vida de uma determinada sociedade. Dessa forma, quais são os mecanismos da produção para que haja na so-ciedade um sistema de descartabilidade das mercadorias, a fim de o consumo adquirir essa dimensão ilimitada?A linguagem do objecto é determinada pelos modelos, que são produzidos industrialmente. A criação de necessidades ocorre por intermédio da dinâmica social do modelo, que é fundamental para a reprodução do capital, pois a lógica da moda permite uma maior descartabilidade dos objectos e incita os desejos de consumo. Os défices técnicos, estéticos e de actualidade afastam a série (objecto real) do modelo (padrão ideal), estratificando e hierarquizando a sociedade.Portanto, a esfera cultural na sociedade contemporânea é submetida cada vez mais intensamente pelo processo de mercantilização e o consumo de objectos torna-se a principal forma de expressão dos va-lores sociais. O consumo de um carro, roupas, acessórios, actividade física, alimentos, hábitos culturais e artísticos e etc., demonstram status e prestígio social, pois a personalização (ou despersonaliza-ção) ocorre através do consumo desses objectos. A personalização acontece não em relação à função “essencial” do objecto consumido, mas do inessencial, pois a abundância de mercadorias consumidas no pós-guerra tornou a mercadoria por si só, pela sua função objec-tiva, algo que não personaliza. Apenas ter um carro, uma máquina de lavar, televisão e notebook não distingue mais. A diferenciação social ocorre por meio da capacidade individual de manipulação dos significantes do objecto. A diferenciação entre os indivíduos, e classes sociais e grupos não ocorre através da posse e uso dos objectos, mas deriva da repre-sentação social desses objectos15. A lógica da diferenciação para Baudrillard não se refere à necessidade de se diferenciar que os indivíduos possuem entre si, pois os indivíduos se diferenciam ao compartilhar os signos de um determinado grupo social. Quer dizer, cada grupo social partilha de um mesmo código e signos. Portanto, consumir é participar de um sistema de trocas socializadas de sig-nos. É a troca das diferenças codificadas e não as reais que constrói o grupo.16

Apenas dessa forma é possível compreender, através da obra de Baudrillard de que maneira é possível preservar a diferença social. “Só ele explica o carácter fundamental do consumo, o seu carácter ILIMITADO – dimensão inexplicável por meio de uma teoria das necessidades e da satisfação já que, se fosse calculada em balanço calórico, energético ou em valor-de-uso, depressa se atingiria o li-miar de saturação”17.A abundância de mercadorias possibilitou a falsa liberdade de esco-lhas. Na verdade, escolhas em relação a detalhes “inessenciais” dos objectos são os aspectos que passaram a identificar os indivíduos. A cor do carro, a marca da geladeira, ou matéria-prima da jaqueta (je-ans, couro ou sarja), são esses tipos de escolhas que permitem dizer sobre a posição social e características pessoais dos indivíduos. Essas escolhas estão relacionadas com a lógica produtivista do capitalis-mo, que cria um processo infindável de produção de necessidades utilizando-se da ideia de modelos (padrões ideais) que são transfe-ridos do topo para a base das hierarquias sociais. Quanto maior o poder aquisitivo e habilidade cultural de manipulação dos signos, mais competitivo é o indivíduo na sociedade da acirrada busca pela diferenciação social e, consequentemente, pela personalização.Até mesmo a crítica ao “insustentável” modo de consumir torna-se um elemento capaz de diferenciar os grupos sociais, portanto, não

representam uma crise da sociedade de consumo, pois são incorpo-rados por sua lógica. Jean Baudrillard já alertava em 1970, “assim como a sociedade da Idade média se equilibrava em Deus e no Dia-bo, assim a nossa baseia no consumo e na sua denúncia”. Portanto, as críticas apenas demonstram o poder da “ideologia do consumo”. Ideias como “consumo sustentável”, “consciente” e “ecologicamente Até mesmo a crítica ao “insustentável” modo de consumir torna-se um elemento capaz de diferenciar os grupos sociais, portanto, não representam uma crise da sociedade de consumo, pois são incorpo-rados por sua lógica. Jean Baudrillard já alertava em 1970, “assim como a sociedade da Idade média se equilibrava em Deus e no Dia-bo, assim a nossa baseia no consumo e na sua denúncia”. Portanto, as críticas apenas demonstram o poder da “ideologia do consumo”. Ideias como “consumo sustentável”, “consciente” e “ecologicamen-te correto” são produzidas e consumidas pela indústria, que tem o poder de englobar as críticas, reificando-as em seus próprios obje-tos. Dessa forma, produtos orgânicos, madeira certificada e “comida caseira” são oferecidos pela indústria com um preço adicional, mas também oferecem signos para os “consumidores conscientes”. A sociedade de consumo é analisada por determinados autores pela substituição da centralidade da produção pelo consumo18. A acei-tação dessa visão reforça o modo individualista de se resolver os problemas sociais, porque temas como a saúde e meio ambiente, por exemplo, tornam-se problemas do consumidor e nunca do “pro-dutor”, que produz alimentos de baixa qualidade nutricional ou que polui o ambiente. A responsabilização do indivíduo, não enxergan-do o capitalismo por intermédio de uma totalidade, foi um dos vá-rios propósitos da discussão suscitada neste texto.19

A cidadania, conquistada por meio de um longo processo de lu-tas por maiores direitos individuais, políticos e sociais torna-se, na sociedade contemporânea, dependente de outro direito, o do con-sumidor. Quem não possui as mercadorias da moda, que boa parte possui, torna-se um excluído social, perdendo o status de cidadão conquistado pelo processo civilizacional, já que determinados ob-jectos tornam essenciais para a sociabilidade moderna. A “abundância” e a democratização do hedonismo, através da mas-sificação do consumo, não possuem a capacidade de oferecer maior liberdade e igualdade aos indivíduos. Pelo contrário, uma vez que apenas a democratização dos desejos de consumo criados por uma produção capitalista, não permite que esses desejos se tornem rea-lidade, já que continua existindo uma elevada desigualdade em re-lação ao poder de compra. Nesse sentido, a desigualdade no plano simbólico apenas se eleva na sociedade de consumo.20

O problema se torna ainda mais grave se pensarmos nas conse-quências do desenvolvimento da sociedade de consumo nos países periféricos, onde se consome os objectos produzidos pelos países avançados, sem possuir o mínimo de capacidade autónoma de finan-ciamento e inovação, além de possuírem maior nível de desigualda-de de renda. Como sair do subdesenvolvimento quando “desenvol-vimento” na maior parte dos países avançados significa intensificar a lógica da sociedade de consumo? Afinal, o modelo de crescimento económico actualmente depende, de modo global, do consumo in-dividual, massivo, descartável e supérfluo. Como gerar renda e emprego no país sem depender do direciona-mento do investimento para elevar a capacidade produtiva de um consumo individual desenfreado? Como negar em uma democracia capitalista a democratização dos bens produzidos pelo capitalismo? O enfrentamento dos problemas da sociedade só é bem sucedido quando se conhece quais são eles, verdadeiramente, uma forma crítica. Dessa forma, este ensaio reflexivo buscou contribuir para a compreensão da sociedade capitalista contemporânea, principal-mente em relação ao consumo, para posteriormente sermos capazes de construirmos possíveis formas de enfrentamento das questões aqui levantadas.

Notas1 Doutorando em Desenvolvimento Económico no Instituto de Economia da Universidade Estadu-al de Campinas( IEUNICAMP)2 O sistema dos objectos (1969) , A sociedade de consumo (1970) e Para crítica da economia políti-ca do signo (1972).3 Eric Hobsbawm A era dos extremos: O breve século XX. São Paulo: Companhia das letras. 1995.4 Jean Baudrillard. (1970). A sociedade de consu-mo. Lisboa: Edições 70, 1995.25 Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: contraponto, 1997.6 Ibidem, p.30.7 André Granou. Consumo y produccíon en el sis-tema capitalista. Barcelona: Cuadernos Beta, 1972.8 Porém, a dinâmica do sistema é dada pelo de-partamento produtor de bens de produção, apesar de haver certa incompatibilidade entre os salários gerados pelo setor dinâmico com os gastos des-se salário, que eram basicamente para realizar os meios de subsistência.9 Essa contradição é identificada primeiramente por Andre Granou, que continua analisando a es-fera da produção e do consumo como uma totali-dade, descartando a tese do subconsumo, porém, descreve a importância do crescimento do ritmo do consumo que se modifica historicamente. 10 Baudrillard afirma que “o problema fundamental do capitalismo” contemporâneo não é a contradi-ção entre a maximização do lucro e a racionaliza-ção da produção (ao nível empresarial), mas entre a produtividade virtualmente limitada (ao nível da tecno-estrutura) e a necessidade de vender os pro-dutos. Nesta fase, é vital para o sistema controlar não só o aparelho de produção, mas a procura do consumo; não apenas os preços, mas o que se pro-curará a tal preço […]”. Jean Baudrillard (1970). A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995, p.81.11 Existe uma infinidade de critérios para se ana-lisar e classificar o consumo na sociedade contem-porânea com o objectivo de formar um sistema descritivo. Entretanto, uma análise apenas em relação à função da mercadoria (objecto) consu-mido não nos ajuda- a compreender as profundas transformações da sociedade actual. Por conta disso o trabalho se apoia na obra de Baudrillard, que analisa o consumo através dos processos pelos quais os indivíduos contraem uma relação com as mercadorias e as consequências disso. Por isso, es-tudar a sociedade de consumo é estudar o sistema de significações dos objectos. (Jean Baudrillard. (1968). O sistema dos objectos. São Paulo: Pers-pectiva, 2006.)12 Baudrillard, A sociedade…,Op. cit.413 “Não existem limites para as ‘necessidades’ do homem enquanto ser social (isto é, enquanto pro-duto de sentido e enquanto relativo aos outros em valor). A absorção quantitativa de alimentos é limi-tada, o sistema digestivo é limitado, mas o sistema cultural da alimentação revela-se como indefinido.” (Baudrillard, A sociedade…Op.cit,, p.72). 14 Idem, O sistema…, Op.cit.515 “Diferenciar-se” significa para Baudrillard ins-taurar continuamente a ordem natural das diferen-ças. A questão é que na sociedade do pós-guerra diferenciar-se apenas pelo valor de uso não ins-taura a diferença (estrutura social). Em relação ao valor de uso realmente não há desigualdade de satisfação das necessidades. “Ao nível do bife ‘va-lor de uso’, não existe proletário nem privilegiado” (Baudrillard, op.cit, p.53), entretanto no nível das significações há uma ampla desigualdade. Assim, são os signos que distinguem o indivíduo, filiando--o em um determinado grupo tomado como refe-rência ideal.16 Não é apenas na ostentação que se demonstra diferença.17 Ibidem, p.67618 Como por exemplo, Bauman e Lipovetsky.19 A questão que se coloca é a maneira como a lógica capitalista se apropria de uma característica eminentemente social, que é a necessidade da di-ferença, para elevar continuamente a realização de mais valor. Por isso, a crítica ao consumismo deve responsabilizar menos os indivíduos consumistas e mais o modo de produção capitalista actual, que torna o crescimento da renda e do emprego refém de uma lógica que despersonaliza os indivíduos.20 A democratização dos desejos de consumo em uma sociedade estruturalmente desigual implica em vários problemas sociais, além dos aqui dis-cutidos, como a crise capitalista, crise ambiental, individualismo e narcisismo exacerbados (que pre-judica a mobilização social e faz crescer as buscas individuais na solução de problemas), a violência urbana, saúde (cria-se uma indústria de “culto ao corpo”, elevando, por exemplo, o número de cirur-gias plásticas e transtornos alimentares) e etc.

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O pensamentO de Baudrillard esteve sempre associa-do a uma crítica materialista da sociedade de consumo e da cultura mediática. Se nos primeiros livros encontramos um pesquisador sóbrio e cuidadoso com os conceitos envolvidos nos estudos sobre signos e a semiologia, nas três últimas dé-cadas encontramos livros de um pensador com insólitos pa-radoxos, provocações, aforismas hiperbólicos, paroxismos.De repente Baudrillard parece ter sido tomado por um “ter-rorismo metafísico”: “Para mim a realidade do mundo foi se-duzida, e isso é o que é fundamentalmente maniqueísta no meu trabalho. Tal como os Maniqueos, não acredito na pos-sibilidade de conhecer o mundo através de algum princípio racional ou materialista  – daí a diferença entre o meu traba-lho e o processo de evocar a dúvida radical em Descartes”[1]

Desde a década de 1980 Baudrillard empreendeu uma rigo-rosa demolição, através de um cepticismo radical, de todo e qualquer referencial empírico ou real seja no pensamento científico ou na própria sociedade: a Economia se converte em ritual Potlach; a escala de necessidades humanas que jus-tificaria a sociedade de consumo jamais existiu; Guerra do Golfo ou o atentado aéreo ao WTC em 11 de Setembro de 2001 foi um “não-acontecimento”, simulacro mediático; o real foi assassinado através de um “crime perfeito”: a hege-

O CeptiCismO GnóstiCO de Jean Baudrillard

Wilson RobeRto VieiRa FeRReiRaargumentos de crítica à manipulação mediática ou da domi-nação política, acaba-se por deixar de lado conceitos de di-fícil compreensão como “reversibilidade”, “troca simbólica”, “precessão da simulação”, as subtis oposições entre o “signo” e o “simbólico”, assim como entre “simulação” e “simulacro”. Tal leitura procura fugir do aspecto mais virulento e radical da obra de Baudrillard: a influência da especulação metafísica gnóstica, principalmente de origem Maniqueísta e no cepti-cismo grego de Pirro.Virulento e radical, porque tal influência traz no seu bojo um violento e peculiar tipo de cepticismo em relação ao prima-do do racionalismo ocidental que distingue claramente real/aparência, verdade/mentira, ilusão/realidade ou, mais preci-samente, conduz à negação do próprio estatuto da repre-sentação como o fundamento de toda e qualquer teoria da linguagem ou pensamento crítico.Muitos autores pressentiram esta radicalidade no pensamen-to de Baudrillard. Morris e Foss, por exemplo, passam ao lar-go na admissão das influências gnósticas maniqueístas, mas admitem que seja a obra de um homem marcado por “raízes mágicas” e um “peculiar tipo de cepticismo”.[3]  Por outro lado Wernick, Genosko e Botting[4] perceberam o Manique-ísmo do pensamento baudrillardiano, mas negligenciaram o cepticismo radical do grego Pirro.Antes de contarmos a história de como Baudrillard se tornou no primeiro metafísico do cepticismo na moderna

sejam libertadas e a matéria seja aniquilada (Terceira Era: a separação da Luz das Trevas). É claro que as forças das Tre-vas procuram impedir esse intento por meio de uma dramá-tica luta cósmica.Aqui, a criação do mundo material ocorreu na Segunda Era, quando o anthropos foi aprisionado pelas forças das trevas. O mundo material foi criado tendo o Mal o controlo do pro-cesso. A ele Baudrillard refere-se como o “Génio do Mal da matéria”.Esse “Génio do mal” é também conhecido pelos gnósticos como o Demiurgo que deu vida a um mundo instável e de-feituoso, no qual uma porção da divindade caiu como pri-sioneira. O gnosticismo acredita que se o mundo é falhado porque foi criado de maneira falhada. O mundo não decaiu, foi imperfeito desde o começo. Foi obra de uma divindade imperfeita, o Demiurgo, uma forma híbrida de consciência emanada de um plano transcendente e harmónico (a Plero-ma) a partir do Deus original e perfeito. Ele fez a forma, mas não a vida interior do mundo. Inebriado com o poder e por acreditar ser o único deus do universo, aprisiona o homem e a sabedoria (Sophia) no interior da criação, aprisionando-os. Com a ajuda dos maliciosos Arcontes, distrai o homem ao seduzi-los com as ilusões materiais, fazendo-os renunciar a qualquer tentativa de encontrar dentro de si a fagulha de Luz que os reconduziria de volta à Pleroma.E por que é este mundo material criado pelo Demiurgo

monia do imaginário da presunção da catástrofe, mais mobi-lizador do que o imaginário do progresso.Baudrillard viu por todos os lados a “sedução da realidade do mundo” pelo Mal. É evidente nessa lógica a influência do pensamento gnóstico, principalmente de Mani como de-monstra essa outra declaração:  “O mundo não é dialético, ele tende para extremos, não para equilíbrio, tende para o antagonismo radical. Esse é também o princípio do Mal.”[2]

Portanto, vamos iniciar por uma investigação sobre as co-nexões entre o pensamento de Jean Baudrillard e o Gnosti-cismo.

“Um pecUliar tipo de cepticismo”Os textos de Baudrillard têm seduzido muitos pesquisado-res. As suas análises da cultura, media e sociedade servem de fundamento tanto para as análises de crítica de fundo marxis-ta quanto às hipóteses pós-modernas. Porém, a maioria das leituras das obras de Baudrillard, principalmente da sua fase pós-marxista, procura fugir ou ignorar seu terrorismo meta-físico e seu nihilismo gnóstico. Não é fácil para os leitores de Baudrillard compreender a insistência de uma formulação baseada em princípios tão arcaicos como o Bem e Mal.A leitura de conceitos tão caros da obra baudrillardiana como “simulacro”, “hiperrealidade”, “aparência”, “simulação” esvazia-se ao contrapô-los ao pano de fundo da tradicio-nal crítica da ideologia como mera “falsa consciência”. Ao interpretar estes conceitos como simples munição para os

filosofia ocidental, vamos traçar um breve esboço destas origens gnósticas.

Jactos contra arranha-céUs: Um pensamento maniqUeístaMani, filósofo gnóstico, que viveu no Irão no século III, sus-tentava que o cosmos é dividido em dois poderes opostos: Bem e Mal, Luzes e Trevas, Espírito e Matéria. Influenciado pelo dualismo de Zoroastro, Mani cria uma visão de alta in-tensidade dramática: a doutrina das Três Eras que é a chave para o gnosticismo de Baudrillard.No início o universo foi dividido entre deidades das Trevas (habitando os círculos materiais) e da Luz. A certa altura o mundo material atacou as regiões espirituais. Para contra--atacar, Deus criou um ser humano primordial (anthropos, uma figura cósmica não ligada a Adão ou a outros seres hu-manos, a não ser de forma indirecta) para descer ao mundo material e combater as forças das Trevas armado com cinco elementos (fogo, vento, água, luz e éter). Mas foi ostensiva-mente derrotado e aprisionado. O Rei da Luz enviou, então, um espírito para trazer esse anthropos de volta para casa. Po-rém, apenas a sua forma conseguiu retornar, deixando para trás os cinco elementos que compunham a sua alma. Para libertar essas partículas, Deus criou o cosmos com Adão e seus filhos. A cada momento, a criatura humana, um anthro-pos decadente, ouve o chamado da luz para que, ao cultivar o espírito, emancipe partes da alma até que todas as almas

imperfeito? Por que nele encontram-se inconciliáveis e, ao mesmo tempo, inseparáveis, o Bem e o Mal. Dessa forma, para cada acto bom produz um efeito perverso: a produção reverte-se em destruição, a paz produz a guerra, a realida-de a ilusão, e assim por diante. Veremos que esta convicção gnóstica no pensamento de Baudrillard é a base para a cren-ça de uma reversibilidade simbólica constitutiva do mundo, ou seja, de que a realidade foi seduzida pela ilusão nas suas origens, produzindo uma reversibilidade perversa escamote-ada pelo jogo das aparências. Dessa maneira Baudrillard vai analisar os atentados contra o World Trade Center em 2001: “O ponto crucial sobre o 11 de Setembro é o seu poder em comprovar como Bem e Mal avançam juntos, como partes de um mesmo movimento”[5]. E explica depois: “a realidade do mundo é totalmente ilusória, acompanhada pela sedução original, porque um génio maligno a criou para subjugar Deus”[6]

Na sua análise sobre os atentados de 11 de Setembro, Bau-drillard precisa ainda mais essa reversibilidade entre o Bem e o Mal:“Esse é precisamente o ponto crucial – a total incompreensão da parte da filosofia ocidental, da parte do Iluminismo, sobre a relação entre o Bem e o Mal. Ingenuamente acreditamos que o progresso do Bem, o seu avanço em todos os campos (ciências, tecnologia, democracia, direitos humanos), cor-responde à derrota do Mal. Ninguém parece entender que o Bem e o Mal avançam juntos, são partes de um mesmo

Os textOs de Baudrillard têm seduzidO muitOs

pesquisadOres. as suas análises da cultura, media

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movimento. O triunfo de um não eclipsa o outro – longe disso. Em termos metafísicos, o Mal é considerado como um infeliz contratempo, mas esse axioma, do qual todas as for-mas maniqueístas de batalhas entre o Bem o Mal derivam, é ilusório. O Bem não conquista o Mal, ou vice-versa: ambos são irredutíveis em relação ao outro, e inextrincavelmente relacionados.”[7]

Através de um jogo de aparências (simulações e simulacros), todos os sistemas (económicos, políticos, meidiáticos, so-ciais, etc.), procuram encobrir ou ignorar esta reversibilidade simbólica: o facto de que o Real e o Bem foram seduzidos pelo Mal, que o destino de cada acção no sentido do Bem (progresso, transparência, desenvolvimento, funcionalidade, racionalidade, etc.) resulta numa espécie de efeito entrópico: dissolução, regressão, opacidade.Por isso Baudrillard vê nos jactos que chocam contra as tor-res gêmeas um facto de moralidade ambígua, para além do Bem e do Mal, a “pura aparência”: uma singularidade, um momento efémero que não pode ser interpretado ou assu-mido por algum sentido ou valor. Como fato mediático, os atentados terroristas demonstram a própria reversibilidade dos sistemas de comunicação. Os jactos chocam não para a História, mas para as ondas concêntricas dos media. As câ-maras nada mais conseguem mostrar do que a opacidade de um facto que apenas aconteceu por que os medias estavam presentes (veremos mais adiante que Baudrillard vai chamar estes episódios de “não acontecimentos”). Da transparência à auto-referencialidade, a presença do Mal nos sistemas me-diáticos. Nenhuma interpretação moral ou política pode ser dada: o atentado foi uma acção sem sentido político ou es-tratégico -  não visava a tomada do Poder e, muito menos, a desestabilização do sistema político. Espectáculo puro, apa-rência pura. Mas, através de uma estratégia de simulação, os media procuram racionalizar, tentam trazer o episódio para o seu horizonte de sentido: fanatismo islâmico? Vingança de

Bin Laden? Bonapartismo Civil de Bush? Todas as alternati-vas de explicação do porquê do atentado terrorista se anulam e se equivalem numa espiral interpretativa sem fim.O objetivo gnóstico nesse drama cósmico é a purificação, isto é, destilar o Bem do Mal, Luz das Trevas, Deus do Demónio, Espírito da Matéria. Já o objetivo da gnose baudrillardiana é o de encontrar a “pura aparência” ou “o efémero momento no qual as coisas surgem antes de assumir qualquer sentido ou valor.”[8] Ela emerge do “jogo das aparências” dos sistemas, para expor a dissolução de toda racionalidade ou finalidade na ritualização, no espectáculo, no puro simbólico. “De um lado: a política, a economia, produção, o código, o sistema, simulação. Do outro: potlach, desperdício, sacrifício, morte, o feminino, a sedução e, no final, o fatal.”[9]

O cepticismO lógicO de BaudrillardBaudrillard deseja alcançar o “absoluto além”, a transcendên-cia de todos os códigos e signos que procuram eclipsar o simbólico, busca a pura aparência, até “expurgar o homem para ver o mundo na sua pureza original”[10]

Posicionando a sedução ou simulação original como o pri-meiro princípio, isto é, a sedução da realidade pela ilusão desde tempos imemoriais, como vislumbrar a pureza original do mundo para além das oposições Bem/Mal, Ilusão/Realida-de? Resposta: através de um cepticismo radical em relação à própria linguagem, de tal maneira que suspenda toda forma de juízo, interpretação ou racionalização. Para Baudrillard, a própria linguagem foi seduzida pela ilusão de sorte que ela própria foi estruturada por uma espécie de “regressão infini-ta” que impede o homem de conhecer com certeza qualquer verdade.Partindo do cepticismo grego de Pirro que fundamentará a dúvida gnóstica em relação à realidade, Baudrillard observa que um demónio confundiu e seduziu a linguagem desde o seu início através de uma regressão lógica infinita: toda afir-

mação para ser provada exige outra, que requer outra, até o infinito. Existe uma circularidade no código dos signos em todo e qualquer sistema linguístico o que impede a verifi-cação empírica de qualquer argumento. Baudrillard coloca em xeque o próprio estatuto da representação: pode o signo representar algo externo à própria linguagem ou está conde-nado à circularidade do código, tornando-se sem sentido?Um signo só pode ser pensado por meio de outro signo pré--existente, o que conduz a espiral infinita que os semióticos entendem por “semiose”. Para Baudrillard, significa afirmar que o signo precede a realidade, o modelo antecipa a própria existência do objeto. Em outras palavras, a simulação e não a representação define a natureza da linguagem:“Estamos na lógica da simulação, que já nada tem a ver com a lógica dos factos e uma ordem das razões. Simulação é ca-racterizada pela precessão do modelo, de todos modelos ao redor do mero facto – o modelo vem primeiro e a circulação orbital constitui o genuíno campo magnético dos eventos. Os factos não têm mais uma trajetória própria, nascem da intersecção de modelos ao mesmo tempo. Esta antecipação, esta precessão, este curto-circuito, esta confusão do facto com o seu modelo, é sempre ela que dá lugar a todas as in-terpretações possíveis, mesmo as mais contraditórias – todas verdadeiras, no sentido em que a sua verdade é a de se tro-carem, à semelhança dos modelos dos quais procedem, num ciclo generalizado”[11]

Baudrillard procura fundamentar seu Maniqueísmo metafísi-co ao sugerir que a reversibilidade original está estampada na circularidade lógica no interior de todos os discursos através da Regressão Infinita. Todas as hipóteses que fundamentam qualquer discurso necessitam de pressupostos anteriores que as fundamentem e que, por sua vez, necessitam de mais hipó-teses e assim ao infinito. Isso significa que todas as hipóteses contrárias são logicamente equivalentes (isto é, a Regressão flui delas mesmas) até chegar a um momento em que todos os

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discursos são intercambiáveis e reversíveis. Verdade e mentira são discursos logicamente equivalentes porque, no final, todo discurso é a precessão do modelo sobre o próprio real.Baudrillard dá o exemplo de um atentado à bomba em Itália: foi obra de um atentado de extremistas de esquerda ou uma provocação da extrema-direita? Ou uma encenação centris-ta para desconsiderar todos os extremos terroristas? Todas as hipóteses são verdadeiras e a busca de provas e mesmo da ob-jectividade dos factos só faz aumentar a espiral interpretativa.(...) O gnóstico Baudrillard chama essa anomalia lógica “o demónio maligno da comutação”[12]: a circularidade dos có-digos lingüísticos fazem todos os sistemas curvarem-se sobre sua própria superfície.Tomemos o caso do sistema político, tal qual analisado por Baudrillard em seu texto“Partidos Comunistas: o Paraíso Ar-tificial da Política”[13]. Se todo o sistema se curva sobre si mesmo, todas as posições do espectro político se equivalem. Direita, Esquerda ou Centro. Porque de facto o poder, o verdadeiro poder, já não existe mais (o que demonstram os atentados terroristas, espectáculos puros que não visam mais o poder). Foi substituído por uma complexa gestão de uma crise financeira interminavelmente simulada por um sistema global. A dissolução do Poder faz o sistema perder a refe-rência, fazendo os discursos ideológicos orbitarem em torno da sua própria simulação mediática. O sistema, assim como a linguagem dos discursos, não consegue representar algo que lhe seja externo (o Poder, a Política): o modelo passa, portanto, a preceder o fato político.  A situação simula deter uma vontade política (veja-se, por exemplo, toda a mitolo-gia criada em torno do presidente dos EUA, como se o seu assassinato resultasse, de facto, numa queda do Estado), e a esquerda simula a tomada do poder.Mas uma ameaça entrópica paira sobre o sistema: e se as pes-

o poder, o verdadeiro

poder, já não existe mais

(o que demonstram os

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espectáculos puros que

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soas descobrirem que todos os discursos se equivalem e que nada faz diferença?  Não importa qual discurso ideológico assuma o poder, será apenas um manequim posicionado à visibilidade mediática. Por isso o sistema agónico deve ser regenerado pela simulação do escândalo:“Seria demorado percorrer todo espectro da negatividade operacional, de todos estes cenários de dissuasão que, como o Watergate, tentam regenerar um princípio moribundo pelo escândalo, o fantasma, o assassínio simulados – espécie de tratamento hormonal pela negatividade e pela crise. Trata-se sempre de provar o real pelo imaginário, provar a verdade pelo escândalo, provar a lei pela transgressão (...) Tudo se metamorfoseia no seu termo inverso, para sobreviver de for-ma expurgada. Todos os poderes, todas as instituições falam de si próprios pela negativa, para tentar, por simulação de morte, escapar à sua agonia real”[14]

O escândalo é a estratégia de simulação do sistema polí-tico. A cada denúncia de corrupção, a cada assassinato, é como se salvaguardasse a integridade referencial. (...) Este modelo analítico proposto por Baudrillard pode ser aplica-do a todos os sistemas. A reversibilidade simbólica entre o Bem e o Mal constitui a estrutura e os discursos dos e sobre os sistemas. Por exemplo, a produção económica produz o seu contrário, a destruição e o desperdício. O discurso eco-nómico racionalista ocidental concebe o fenómeno econó-mico com uma dinâmica que, tendencialmente, evolui para o Bem: a satisfação de todos os valores de uso, o combate à escassez, a racionalização dos recursos da sociedade. Mas o Económico foi seduzido pelo Mal. Assim como no potlach, todo o valor de uso é volatizado na circulação das trocas. Para o valor se realizar no mercado é necessário produzir--se além do necessário para que o excedente seja queimado, destruído ou convertido em objetos descartáveis. A sedu-ção pelo espetáculo e pela ilusão (guerras, publicidade, em-balagens, design, etc.) conduz ao fascínio pela inutilida-de. O escândalo moral que o discurso ecológico mobiliza contra esse sistema é a contraparte reversível de um todo. A possibilidade de reciclagem dos restos (lixo, gás carbó-nico, árvores arrancadas e assim por diante) de um sistema obeso, simula a existência de um referencial, de um valor de uso que ainda possa ser resgatado. Da mesma maneira, a existência da fome e da pobreza não é a denúncia, mas ou-tra contraparte reversível da produção, o seu espelho: sem desigualdade social é impossível atribuir valores no merca-do[15]. Status e luxo somente podem existir em uma escassez simulada, por exemplo, na destruição de gigantescos esto-ques de alimentos em guerras e crises econômicas cíclicas.Tal raciocínio baudrillardiano demonstra essa convicção pós-marxista e anti-dialética que o aproxima do dualismo maniqueísta gnóstico: o mundo não tende para a síntese, mas para um jogo de oposições inconciliáveis e, ao mesmo tempo, inextricavelmente conectadas:“De acordo com o Maniqueísmo a realidade do mundo é uma total ilusão. Foi corrompido desde o início. Foi sedu-zido por uma espécie de princípio de irrealidade desde tem-pos imemoriais ... Todavia, deve-se reconhecer a realidade da ilusão; e entender a base dessa ilusão e do próprio poder que ela exerce. É aí que entra o elemento Maniqueo no meu trabalho. Essa é a chave de todo posicionamento: a ideia do mais fundamental e radical antagonismo, a impossibilidade da existência de uma reconciliação da ilusão do mundo com a realidade do mundo ... Para mim, a realidade do mundo foi seduzida, e isso é o realmente Maniqueo no meu traba-lho. Como os Maniqueos, não acredito na possibilidade de entender o mundo através de algum princípio racional ou materialista.”[16]

Marx estava enganado, afirma o gnóstico Baudrillard. “O mundo não é dialético, tende para extremos e não para o equilíbrio, está destinado ao radical antagonismo, não para reconciliação ou síntese”[17] Isso porque o destino humano é ser prisioneiro de um drama cósmico: “em cada acção huma-na”, explica Baudrillard, “sempre há duas divindades em luta, nunca derrotadas e o jogo não tem fim.”[18]

Uma Teoria Não-maTerialisTa da liNgUagemCom essa combinação do cepticismo grego do filósofo Pirro com a metafísica gnóstica do persa Mani, Baudrillard cria uma autêntica Teoria Não-Materialista da Linguagem. O centro desta teoria está na oposição da dupla espiral dos sig-nos e símbolos.Para Baudrillard a reversibilidade simbólica é a superação do

NOTAS

[1] Idem. The Evil Demon of Images. Sydney: Power Publications, 1987, p.46.[2] BAUDRILLARD, Jean. Las Estrategias Fatales. Barcelona : Editorial Anagrama, 1983, p.5.[3]  Cf. MORRIS, Meagan. “Room 101 or a Few Worst Things in The World” e FOSS, Paul. “Despero Ergo Sum” In: FRAKOVITS, A. (org.) Seduced and Abandoned: The Baudrillard Scene, Glebe: Stone-moss Services[4]  Cf. WERNICK, Andrew. “Post-Marx: Theological Themes in Baudrillard›s  America”, In:BERRY, Philipp and WERNICK, Andrew (Eds.), Shadow of Spirit: Postmodernism and Religion.London: Routled-ge, 1992; GENOSKO, Gary. Baudrillard and Signs: Signification Ablaze.

impasse do valor que permeia a teoria do signo na sua verten-te saussuriana. Em Saussure o signo é desinvestido de qual-quer relação simbólica, mas submetido a uma lógica social que o abstrai da relação de transitividade sujeito/objecto e o integra numa relação articulada com outros signos, produ-zindo um sistema autónomo de signos. O signo linguístico é arbitrário e imotivado por não existir uma relação natural e necessária entre significante e significado. Se fosse fechado em si mesmo, esse processo de significação (de união entre significante e significado) tornaria a linguagem uma mera nomenclatura. Por isso as palavras devem ter um valor de troca e devem ser comutáveis. Esse valor é contextual porque emana de um sistema. É, portanto, um valor puramente dis-tintivo, definido não positivamente pelo seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema.Assim, o referente torna-se uma simples miragem. O sis-tema linguístico autónomo define o que é “real” a partir da binariedade do código, do valor-signo definido pela nega-tividade das oposições: real/imaginário, verdade/mentira, verdadeiro/falso e assim por diante. A implicação dessa crítica baudrillardiana da economia do signo é que tudo o que a linguagem define como referências de uma suposta representação (valores funcionais tais como fala, uso) não passam de transcrição dessacralizada da lei moral em ter-mos de funcionalidade e do princípio de equivalência. A linguagem tende para o fetiche, ritual, magia, para a simu-lação e o simulacro, enfim, já que ela nada espelha (razão, funcionalidade, valor de uso, realidade) a não ser as oposi-ções distintivas do sistema.Dessa maneira, a binariedade do código simula a referência. Por exemplo, para Baudrillard a Disneylândia é o modelo perfeito para todos os simulacros. O princípio de realidade cria um imaginário débil e infantilizado para, através da ne-gatividade, salvaguardar a miragem do real.“O imaginário da Disneylândia não é nem verdadeiro nem falso, é uma máquina de dissuasão encenada para regene-rar no plano oposto a ficção do real. Daí a debilidade deste imaginário, a sua degenerescência infantil. O mundo quer-se infantil para fazer crer que os adultos estão noutra parte, no mundo ‘real’, e para esconder que a verdadeira infantilidade está em toda parte, e é a dos próprios adultos que vêm aqui fingir que são crianças para iludir a sua infantilidade real”[19]

Os referentes se afirmam através da sua própria negação. O efeito do real é apenas um efeito estrutural dessa disjunção dois termos distintivos e esse famoso princípio de realidade, com suas implicações repressivas e normativas, nada mais é do que a generalização deste código distintivo em todos os níveis.Contra essa binariedade do código, Baudrillard evoca a re-versibilidade simbólica: rituais de troca simbólica usando uma matriz dualística que movem os adeptos para além do princípio de realidade governado por signos dialeticamente binários. Para ele, o simbólico: “... não é nem um conceito, nem uma instância ou uma categoria, num uma ‘estrutura’, mas um acto de troca e uma relação social que põem fim ao real, que resolve o real e simultaneamente a oposição entre o real e o imaginário”[20]

O simbólico é o fatal, uma espécie de “exorcismo da rea-lidade”: potlach, desperdício, sacrifício, morte, o feminino, a sedução. Um exorcismo da realidade através do poder mágico da pura ilusão, da pura aparência. É o reino do fatal: quando uma pessoa, um evento ou acto alcança o nível da pura aparência. Uma aparência que de tal forma não possa ser decifrada ou interpretada. “O que me im-porta”, explica Baudrillard, “é a possibilidade de um puro evento que não mais possa ser manipulado, interpretado ou decifrado”[21]

Um evento impossível de ser racionalizado, pura aparência, sedução. Se os sistemas têm terror da ilusão e criam a simu-lação do efeito de realidade para o exorcizarem, a pura apa-rência é o êxtase da simulação via troca simbólica: simulação que de tão “real” explode a capacidade de racionalização do código. Por isso Baudrillard vai se referir aos ataques terro-ristas de 11 de Setembro como “a mãe de todos os eventos”. Impossível de racionalizar diante da sua “inutilidade”, diante da sua perfeita simulação de realidade com um acto absoluta-mente sem sentido. Por isso, mediaticamente, foi um evento tão sedutor.

(texto editado)

London: Routledge, 1994;  WERNICK, Andrew. “Jean Baudrillard: Se-ducing God”, in BLOND, Phillip (Ed.) Post-Secular Philosophy: Betwe-en Philosophy and Theology. London: Routledge, 1998, e BOTTING, Fred, “Bataille, Baudrillard and Postmodern Gothic”, in Southern Review, Volume 27, Number 4, December 1994.[5]  BAUDRILLARD, Jean, “The Spirit of Terrorism”, In: Le Monde, 11/11/2001[6] Idem, The Evil Demon of Images. Sydney: Power Publications, 1987, p.44.[7]  Idem,  The Spirit of Terrorism and Requiem for the  Twin  To-wers. London: Verso, 2002, p. 13.[8]  Idem, “Forget Baudrillard”, IN:  Forget Foucault. New York: Semiotext(e), 1987, p.88.[9]  Idem,  The Ecstasy of Communication.  New York: Semiotext(e), 1988, p. 79.[10] Idem, El Crimen Perfecto. Barcelona: Editorial Anagrama, 1996, p. 33.[11] Idem, Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D’Água, 1991, p. 26.[12]Idem., Ibid., p.28.[13] Idem. Partidos Comunistas: Paraísos Artificiais da Política. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.[14] Idem, Simulacros e Simulações, p. 27.[15]  Isso quando a própria pobreza e desigualdade não se convertem, elas próprias, em mercadorias como, por exemplo no caso das favelas nos morros do Rio de Janeiro. Foram incorporadas como atrações numa espécie de city tour alternativo para turistas à procura de experiências semelhantes a um safári africano.[16]  Idem.  The Evil Demon of Images, Sydney: Power Publications, 1987, p. 44-46.[17] Idem, Las Estratégias Fatales. Barcelona: Editorial Anagrama, 1984, p. 5.[18] Idem, Impossible Exchange. London: Verso, 2001, p. 100.[19] Idem. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’Água, 1991, p. 21.[20]  Idem.  A Troca Simbólica e a Morte. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 204.[21]  Idem, “Forget Baudrillard” IN:  Forget Foucault.    New York: Semiotext(e), 1987, p. 70.

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O tigre é o terceiro animal do zodíaco chinês. Ele é Laohu (老虎), o meu velho Ti-gre, com o lao (老) a ser utilizado, numa lei-tura que remonta ao inconsciente colectivo dos chineses, talvez para cativar aquele que foi uma das feras mais temidas.Dos tempos das cavernas aos nossos, li-geiramente mais civilizados, mas não mui-to mais…, alguma coisa mudou na forma como as gentes do País do Meio se relacio-nam com o tigre. Numa fábula infantil chinesa sobre o rei chinês dos felinos, que terá aprendido a arte de governar com o gato, é fornecida às crianças a explicação de como o mais cora-joso dos animais chegou ao céu zodiacal. Ele é o rei da terra, o par terrestre do rei celestial, o dragão (long 龍). O Imperador de Jade (Yu Huang Dadi 玉皇大帝) considera os reis da Terra e do Céu ao mesmo nível, já que ambos têm sob a sua jurisdição reinos. No entanto, sabe-mos que o Dragão será sempre o primeiro para os chineses, que se autonomeiam Des-cendentes do Dragão. Na linha patriarcal, o primeiro imperador mítico Fuxi (伏羲) é o Dragão Azul, cabeça humana e corpo de dragão. Na linha ma-triarcal das divindades mais importantes, a Rainha-Mãe do Oeste, Xi Wang Mu (西王母) é meio humana, meio tigre.O Dragão simboliza a energia Yang (陽), o Leste, o nascimento, a criatividade e a

vida; O Tigre, a energia Yin (陰), o Oeste, a morte e a destruição.Mas então como é possível esta força nega-tiva ser o rei da terra?A história que se conta às crianças é a se-guinte. O tigre subjugou os outros animais, a mando do Imperador de Jade, por isso re-cebeu a inscrição do caractere de rei na tes-ta na condição de pugnar pela paz na terra. Ora se numa leitura caligráfica, o rei (Wang王 ) é o que manifesta os traços de Terra, Humanidade e Céu, unidos por um ho-mem, que é filho do Céu, já na leitura na-turalista, o tigre tem inscrito no corpo o caractere por recompensa divina. Recebeu--o após ter subjugado o leão, o cavalo e o urso, advindo-lhe o quarto traço de realeza da vitória sobre um espírito demoníaco de tartaruga. Este é o representante do reino dos fantasmas por homofonia. Após a vi-tória do tigre sobre os restantes animais, o leão foi banido da China e também do zo-díaco, o cavalo foi forçado a trabalhar em prol da humanidade, o urso condenado a hibernar e os fantasmas votados à eterna e incessante perseguição por parte dos tigres.Após o poderoso tigre ter sido devidamen-te reconhecido e agraciado pelo Imperador de Jade, as famílias transformaram-no no protector das crianças, especialmente de tenra idade. Estas são enfeitadas com cha-péus, sapatinhos e outros adereços com de-senhos ou em forma de tigre para que pos-

sam crescer pujantes e ao abrigo das forças demoníacas.O tigre é o símbolo da coragem, mas, claro, que existem tigres de papel (zhi hu紙虎), ou seja, os que se dão ares de grande coragem, mas de facto são uns cobardes. A expressão tigres de papel foi utilizada pela primeira vez na novela do século XIV À Beira da Água (《水滸傳》) de Shi Nai’an (施耐庵).As quatro zonas que na Ásia se distinguem actualmente como possuindo um grande de-senvolvimento e riqueza são chamadas os qua-tro tigres asiáticos (亞洲四虎). São elas: Hong Kong, Taiwan, Coreia do Sul e Singapura. Por vezes Macau também é terra incluída entre os Tigres, mas o destaque vai para a Coreia do Sul e Taiwan, centros fertilíssimos de produ-ção tecnológica, sendo Hong Kong e Singa-pura reconhecidos centros financeiros.Advirto que a expressão quatro tigres asiáticos tem vindo a ser substituída na China por quatro pequenos dragões asiáticos (亞洲四小龍). No Ocidente é preferida a nomencla-tura felina. São os jogos de poder manifestados pe-las línguas. Até parece que recuámos aos tempos do Imperador Celestial, quando a divindade resolveu agraciar os dois animais com o título de reis só para não os ouvir mais, digo eu a brincar.Entre as divindades quem monta o tigre? Zhang Taoling (張道陵) e a Divindade da Riqueza ( Caishen財神).

À divindade da Riqueza estão ligadas duas importantes biografias. Aqui resume-se não a de Bigan (比干), o membro da família real Shang (商), condenado à morte pelo tirano Zhouxin(紂辛), mas a de Zhao Gongming (趙公明), que monta o tigre negro. Zhao Gongming, também conhe-cido por Xuan Lang (玄朗), terá sido um dos nove sóis que Houyi (後羿) abateu, ao tempo em que dez corriam pelos céus em grandes brincadeiras, que custaram peno-sos incêndios à terra e à humanidade. Quando Houyi disparou as suas flechas contra os nove sóis, eles transformaram-se em nove pássaros fantasmagóricos. Oito dos quais andavam à solta pela terra espa-lhando o mal entre as pessoas, mas um, o nono, vivia sozinho e nunca praticava qual-quer acção que pudesse ferir a humanidade. Dado o seu comportamento irrepreensível, foi transformado em homem e mais tarde em divindade da riqueza, em certas versões, por intervenção directa de Zhang Taoling (張道陵). Este deu-lhe a tomar a pílula da imortalidade quando se encontraram na Montanha Qingcheng (青城山). Por isso, a Divindade da Riqueza é muito venerada nos templos taoístas, mas não só, já que to-dos os chineses, sobretudo pela altura do Ano Novo Chinês, lhe prestam culto.O tigre montado pela divindade da rique-za, enquanto força natural guerreira, é cele-brado em muitos dos movimentos das artes

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Ecos naturalistas AnA CristinA Alves*

marciais, particularmente no Taijichuan (太極卷), que os chineses tanto apreciam praticar.Zhang Taoling viveu nos tempos da dinas-tia Han de Leste (Dong Han 東漢), entre 34 e 156. É o fundador da escola taoísta das Cinco Medidas de Arroz (五斗米道), assim conhecida nos tempos da dinastia Jin (晉). Depois passaria a chamar-se Escola dos Mestres Celestiais (Tianshi 天師) du-rante o Período das Dinastias do Norte e do Sul (南北朝) e, mais tarde, já na dinas-tia Yuan (元), seria denominada Escola Zhengyi (Zhengyi 正一), a da Realidade Completa. Este grande mestre taoísta trocou o saber livresco pela busca da imortalidade. Conse-guiu obter o segredo da produção da pílula directamente de Laozi (老子) divinizado, ou seja, do Senhor Lao (Lao Jun老君), que lhe apareceu enquanto estava recolhido na montanha Qingcheng (青城). Também Zhang Taoling monta um tigre, talvez por ter sido o iniciador de uma es-cola taoísta que teve verdadeiro poder na Terra Amarela. Nos finais da dinastia Han do Leste muitos foram os que se refugiaram na escola taoís-ta para escapar à insegurança dos tempos. Trabalhavam com afinco para a comuni-dade, realizando tarefas de relevo social, como a construção de estradas, pontes e escolas. Em troca os seguidores taoístas

eram alimentados e recompensados com vinho ritual terapêutico, sendo curados das suas maleitas, porque Zhang Taoling foi um grande médico, capaz de realizar curas milagrosas. Por último, e numa leitura possível, quem governa a terra, tem a protecção da Divin-dade da Riqueza, porque é tão corajoso e brilhante como ela. Esta surge associada ao tigre, montando o rei telúrico dos animais chineses, tendo por vezes nas mãos, sobre-tudo nas alturas festivas, lingotes ou outros objectos de ouro, como moedas. Fora do tempo de festa, é uma divindade guerreira, imensamente poderosa e capaz de subme-ter todos aqueles que se oponham ao seu governo, tal como o tigre, que além da ri-queza, simboliza a paz, embora não hesite em executar todos os movimentos de guer-ra e destruição, a fim de a obter.

Bibliografia e WebgrafiaA divindade da riqueza - http://www.grea-tchinese.com/gods/zhaogongming.htm魏亞西2013《虎。儆惡王者》香港:新雅文化事業有限公司張勇濤(編)2012《崔毅士真傳。楊派太極十三式》臺北:大展出版社有限公司

* A autora lecciona nos Mestrados de Tradução e de Língua e Cultura do Departamento de Português da Universidade de Macau

O Tigre e a DivinDaDe Da riqueza

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Já aqui se repetiu várias vezes uma evi-dência. Que há filmes a que se volta pe-riodicamente, inspirados por impulsos de vária ordem, sentimentais, sexuais, histó-ricos, científicos ou carnívoros. Por vezes esse retorno dá-se a um realizador, a um corpus autoral que se deseja revisitar. Pode ser um retorno poético a Pasolini, Olivei-ra ou Mizoguchi, a um russo insane, um retorno à angústia de Antonioni. Um re-torno às travessuras de Godard ou Buñuel ou à benevolência de Satyajit Ray (será este o mais necessário?). Eu ainda tentei, mas não consegui encontrar nenhum rea-lizador britânico suficientemente actuan-te para aqui figurar.O retorno que aqui me traz, que não indi-cia quaisquer nostalgias, é a um autor que continua, como todos os que em cima se convocam, perfeitamente actuante. Po-deria ser Oshima mas não é. É um outro, igualmente urgente e inigualavelmente humano – Fassbinder.Esta escolha não indica nenhuma falha contemporânea nem nenhum passadis-mo. Indica apenas que é preciso, periodi-camente, recordar que há qualidades que tornam certas obras de revisão obrigatória.Tentar definir que qualidades são essas seria porventura mais pedante que ambi-cioso, e mesmo que este vosso servo se sinta mais inclinado para se deixar acusar da primeira que da segunda falha, não o tentará fazer.Porque é que Chinesisches Roulette (Roleta Chinesa) continua a atrair tanto? Talvez por começar como se de um filme de Werner Schroeter se tratasse, prenhe de promessas. Seria fraudulento lembrar um qualquer filme mais famoso de Fassbin-

der, um dos últimos, mais bem apresen-tados mas menos misteriosos, os filmes de quando já o conhecemos bem e já esperamos dele o conforto de um reco-nhecimento. Chinesisches Roulette passa-se nos arredores de Munique e começa com um adultério no castelo que, em seguida, se cruza com um outro adultério. Quan-do os dois esposos se encontram cada um com o seu respectivo amante, a câmara rodopia em torno da expressão da sua so-fisticação e parece não haver mais nada a dizer. O que se diz nos filmes de Fass-binder, nos seus primeiros filmes, talvez seja hoje irrelevante mas das suas figuras projecta-se uma tensão muito real cuja re-levância constitui ainda espectáculo para os espectadores carnívoros do ódio e da recriminação.Em Chinesisches Roulette a minha figura pre-ferida é, previsivelmente, a jovem filha do casal adúltero – loura e aleijada, a última a chegar ao castelo com a sua aia muda, a instigadora diabólica dos improváveis encontros entre os esposos e do jogo de roleta chinesa – Angela. É esta outra das artes de Fassbinder, a de nos fazer aceitar a previsibilidade sem nos sentirmos inco-modados e a de nos obrigar a participar no jogo mesmo quando deste nos quere-mos apenas assumir como espectadores. Fora do castelo está aquela Baviera bela, rural e sinistra, que Fassbinder nos obri-ga a detestar na sua imobilidade e na sua incapacidade de transformação. O que se passa dentro do castelo - as relações tortuosas e aleijadas que se tecem entre todas as figuras - parece espelhar, na sua inevitabilidade, a imobilidade do campo bávaro.

Numa casa de Frankfurt, e não num cas-telo da Baviera, Fassbinder obriga-nos ao espectáculo da vida de uma senhora re-cém-viúva. É o espectáculo da recusa da resignação do passado inútil e repetitivo de uma senhora da pequena burguesia. É para isto que retornamos a Fassbinder, para nos afundarmos, mais ou menos conscientes, nestas repetições.Esta casa tem papel de parede e divisões pequenas e em torno desta senhora todos se tentam aproveitar dela ou a abando-nam – familiares, jornalistas, comunistas e anarquistas. É aos filmes mais pequenos e mais obscu-ros de Fassbinder, como este, Mutter Küs-ters’ Fahrt Zum Himmel, que se volta sempre porque os seus movimentos são mais in-compreensíveis e mais dolorosos, e quan-to mais pequenos são os filmes e estes se passam no interior destas casas e cabarets mais nos esqueceremos de pensar. Voltar a ver Fassbinder pode esconder um dese-jo de entorpecimento, um exercício de incredibilidade que não é poético, nem insane, nem travesso ou benevolente, mas sempre bestial e intrigante. Não é anor-mal sair de um filme de Fassbinder com uma impressão de culpa, quantas vezes de um arrependimento profundo.Martha é outro filme em que o habitual sentido de desconfortável intriga leva algum tempo a instalar-se mas, antes, se insinua muito gradualmente, como se de uma doença se tratasse. Tendo a ver muitos dos filmes de Fas-sbinder como uma doença, uma que parece ter por vezes momentos de retracção, momentos de melhoras so-lares que, no fim, se revelam sempre

incuráveis. É apenas uma coincidência que em Martha e Chinesisches Roulette se exibam mulheres aleijadas e essa cir-cunstância é completamente exterior à minha observação. Em Martha os sintomas mais preocupan-tes só se observam quase a meio do fil-me, contrariamente ao que acontece nos outros dois filmes anteriormente referi-dos, escolhidos perfeitamente ao acaso (desde que não excessivamente conhe-cidos e históricos como os que serviram de base nestas linhas a um texto anterior sobre Schygulla, Sukova e Zech) entre o febril conjunto de filmes que Fassbinder nos legou antes da sua morte prematura. Felizmente este não se deixou apodrecer numa longa existência. Parece-me per-feitamente natural que alguém que viveu a esta velocidade tenha morrido novo. Seria quase imperdoável que o não tives-se feito e todos o amamos mais por isso mesmo: por nos ter deixado uma vida e uma morte brutais.Intrigantemente, e verifico-o agora não sem um tremor, em qualquer destes três filmes falta um emblema quase insubsti-tuível dos filmes de Fassbinder - o corpo de Hanna Schygulla. Ao invés, é o corpo de Margit Carstensen que o substitui (de modo secundário em Mutter Küsters’ Fahrt Zum Himmel). O seu corpo magro e frá-gil, ligeiramente encorvado, com a pele queimada por uma exposição exagerada ao sol (em Martha) é o corpo ideal para que nele se recebam, impiedosamente, os golpes que Fassbinder amavelmente (sim, amavelmente) lhe dispensa. Também é perfeita coincidência que duas destas três histórias tenham nomes de mulheres.

luz de inverno Boi Luxo

RetoRno a FassbindeR

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Houve um tempo em que as bandas “goth”, “industrial”, “darkwave” e negrumes quejandos tinham, obrigatoriamente, nomes em latim. A ideia, parecia-me, era que a “língua morta” emprestasse gravidade ou, como eles diziam, “gravitas” à coisa. Hoje, com a excepção dos militantes do “death metal” e causas arredores, nas indústrias musicais, já poucos adeptos res-tam das declinações da Roma clássica ou da suposta circunspecção da língua antiga. Por exemplo: se não fosse a grafia, a expressão Plvs Vltra (a forma latina da expressão “mais além”) passava escorreita por inglesíssima. Mas com Toko Yasuda, convém prestar uma atenção “plus ultra”.

Japonesa radicada nos Estados Unidos, Ya-suda tem sido, desde os anos 1990, comparsa leal de nomes como Blonde Redhead, Enon e, mais recentemente, St. Vincent. Em 2012, lançou o primeiro disco como Plvs Vltra, “Parthenon” (outra referência à Antiguidade, desta feita ao templo que domina a Acrópole de Atenas), título que reforça a ligação a um longínquo período da história e nos impele a perguntar: o que há num nome? Tudo e nada.

“Parthenon” não tem a tal gravidade de um templo que reina sobre as ruínas do tempo. É um disco optimista e colorido. Garrido. Visu-almente, é forte. Cada música é uma vinheta desdobrável onde se revelam “polaroids” des-botadas e fotogramas de alta definição. Gravu-ra após gravura, música após música, sentimo--nos de regresso aos tempos do “shibuya-kei”, o género musical que toma emprestado o nome a um dos centros gravitacionais de Tóquio e que elevava à condição de arte o coleccionismo de discos e acções consequentes: cópia, colagem e criação. Este espírito cosmopolita vive bem na pop dançante de “Parthenon”, mesmo quan-do rodopia nas rapsódias giratórias que Yasuda por vezes acciona, remexendo um caldeirão de onde extrai uma poção que, apesar dos in-gredientes familiares, não sabe exactamente a algo que já tenhamos provado. É o que nos revela uma degustação mais demorada, isto é, uma audição mais atenta – a música que à su-perfície nos parece leve, ligeira, com estruturas convencionais (refrões e tudo), é na verdade complexa. Assim que vamos desmontando as peças da bricolage, damos com electrónicas várias, rock, hip-hop, electro e umas pitadas de experimentalismo, tudo tão retro quanto futurista. A juntar tudo, além da voz doce de Yasuda, está a sensibilidade pop que vem dos anos 1990 de Shibuya.

A qualidade fragmentária da música de Toko Yasuda tem agora um novo capítulo. “Yo-Yo Blue”, o disco deste ano, lançado no último mês de Abril, assemelha-se a uma manta de retalhos onde a pop que havia em “Parthenon” foi com-pletamente substituída pelo experimentalismo. Há colagens sobre colagens, nunca se adivi-

próximo oriente Hugo Pinto

nhando o que vem a seguir, mesmo quando os temas têm menos de um minuto de duração.

A abrir, “Lovely”, seduz-nos com Bollywood, um “affair” que dura até aos pri-meiros instantes de “あっち池”, 52 segun-dos passados no que parece ser um salão de jogos de “pachinko” subaquático. “Madame Mademoiselle” aprofunda a submersão. “Sit-cat” é Pizzicato Five “vintage” em versão “lo--fi”, minimal e com tiques dos saudosos Sukia de “Contacto Espacial Con El Tercer Sexo”. “999” começa com o que suponho ser um anúncio para adultos em japonês e, a meio, transforma-se num mambo narcótico – esta-mos em território de “exotica”, na companhia de Juan García Esquivel e Ferrante & Teicher, e alguém que, mais à frente, em “Good Night”

(o melhor tema) traz à memória Rebecca Pan enlevada numa orquestra luxuriante. Todavia, em “Yo-Yo Blue”, o que depressa surge, mais depressa desaparece. É tudo fugidio, esquivo, impossível de agarrar ou conter.

Ainda que “Yo-Yo Blue” deixe o amargo de saber a pouco, a verdade é que é isso que nos faz voltar ao disco da mesma maneira que re-gressamos às fotografias que guardam instan-tes de quem e do que já não temos – no fundo, imagens que são ecos. “A fuga abstracta do tempo”, escreveu Pessoa. “É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música, mas são saudade, no fundo absurdo da minha recorda-ção.” E que Yasuda transforma em coisas que chegam a ser música.

Coisas que Chegama ser músiCa

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Que melhor forma de celebrar a Re-volução dos Cravos que assistir a um con-certo pelos revolucionários e inovadores Brooklyn Rider? Este quarteto de cordas americano actuou no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Macau no passado dia 25 de Abril, perante um público en-tusiasta que praticamente enchia o audi-tório, apresentando um programa ecléc-tico, composto por obras suas (Seven Steps e Three Miniatures for String Quartet), de Lev Zhurbin (Culai), e pela pièce de résistance do recital, de Ludwig van Beethoven (Quar-teto de Cordas N.o 14 em Dó sustenido menor, Op. 131), obras que enformam o seu último ál-bum, intitulado “Seven Steps”.

Este recentemente formado quarte-to, constituído pelos violinistas Johnny Gandelsman e Colin Jacobsen, pelo vio-lista Nicholas Cords e pelo violoncelista Eric Jacobsen, tem sede em Nova Iorque e é sobretudo conhecido por tocar um repertório invulgar e contemporâneo e por colaborar com músicos de fora da es-fera da música clássica. Nascidos de um desejo de usar o instrumento rico que é o quarteto de cordas como veículo para comunicar através de um vasto período histórico e geografia, os Brooklyn Rider dedicam-se de igual forma à interpreta-ção da literatura existente para quarteto de cordas e à criação de obras novas.

Os músicos trabalharam com com-positores tais como Derek Bermel, Lisa Bielawa, Ljova, Philip Glass, Osval-do Golijov, Jenny Scheinman e Dmitri Yanov-Yanovsky, e apresentam também

regularmente peças escritas ou arranjadas por membros do agrupamento, como foi o caso deste concerto em Macau. Outro componente que integra o seu trabalho envolve colaborações criativas com ou-tros artistas, tais como o virtuoso chinês de pipa Wu Man, o artista visual sírio/arménio Kevork Mourad, o músico tra-dicional japonês de shakuhachi Kojiro Umezaki, o violinista irlandês tradicio-nal Martin Hayes, o trio 2 Foot Yard e as cantautoras Christina Courtin e Suzanne Vega. O amplamente divulgado álbum de Courtin, da editora Nonesuch, inclui várias faixas com o quarteto, tal como o álbum de Vega “Close Up 2: Peoples and Places”.

Como referem os músicos nas notas ao programa do concerto, estes investem bastante na música do nosso tempo, ten-do em vista tornar relevante para a actual geração de ouvintes a música para quar-teto de cordas. Apostar neste processo ao mesmo tempo que mantêm uma grande ligação com os grandes cânones do re-pertório de quarteto de cordas (como a Op. 131 de Beethoven que tocaram na segunda parte do concerto) faz deste investimento no presente algo especial-mente entusiasmante para si, uma vez que percebem que frequentemente passado e presente se informam mutuamente de forma útil e inesperada.

Tocar Beethoven é para si uma viagem inspiradora através de uma mente supe-riormente criativa. Além disso, a sua mú-sica é possuidora de uma linguagem tão

actual como qualquer obra escrita actu-almente. Referindo-se frequentemente ao quarteto de cordas como a banda por-tátil do séc. XVIII, que tocava a música do seu tempo e era popular, os Brooklyn Rider gostam de pensar que o quarteto de cordas também é uma banda viável no séc. XXI.O que está a acontecer hoje no domínio do rock, do jazz e da música experimental, onde as colaborações mu-sicais são a norma, é verdadeiramente en-tusiasmante para o agrupamento. Porque não poderá um quarteto bater-se também para criar música ao invés de contar sem-pre com a voz singular do compositor?

O processo de criar música colectiva-mente requer uma grande dose de con-fiança e os Brooklyn Rider vêem nisso como a abertura de mais um capítulo na sua evolução enquanto quarteto de cor-das. Não têm a pretensão que as suas pe-ças atinjam o mesmo nível transcendente de Beethoven, mas o que é extremamente importante para si é estarem constante-mente a ultrapassar os seus limites. Esta-rem mais próximos do processo criativo resulta não apenas na criação de músi-ca nova mas sobretudo esperam que os ajude a conseguir uma maior empatia na interpretação da música dos grandes compositores clássicos. Grande parte do desejo dos Brooklyn Rider de alargarem as fronteiras da programação do quarteto de cordas convencional provém da sua participação de longa data no Silk Road Ensemble de Yo-Yo Ma. Quando estive-ram associados ao ensemble, actuaram

em todo o mundo, gravaram três álbuns para a Sony Classical e participaram em iniciativas educativas, concertos familia-res, residências em museus e transmissões de rádio e TV.

A sua primeira gravação, “Passport”, lançada em 2008, foi seleccionada pela National Public Radio dos EUA como um dos seus melhores álbuns clássicos desse ano. Em 2008 foi também lançado um álbum resultante da sua relação de longa data com o músico Kayhan Kalhor, intérprete de kamancheh, intitulado “Si-lent City”, editada pela World Village/ Harmonia Mundi, e seleccionada pela Rhapsody.com como um dos Melhores Álbuns de Música do Mundo da Década. Lançaram “Dominant Curve” em 2010, e “A Walking Fire”, em 2011. O agrupa-mento foi escolhido pelo famoso compo-sitor americano Philip Glass para gravar os seus quartetos de cordas completos em 2011, incluindo a estreia mundial da sua Suite Bent.

Só por curiosidade, o nome do quar-teto é inspirado em parte na visão trans-disciplinar de Der Blau Reiter (The Blue Rider), uma colectiva de artistas do pré--Primeira Grande Guerra, baseada em Munique, cujos membros incluíam Vassi-ly Kandinsky, Franz Marc, Arnold Scho-enberg, e Alexander Scriabin. No espírito ecléctico de Der Blau Reiter, o agrupa-mento vai beber inspiração à explosão de culturas e energia artística encontrada no bairro de Brooklyn em Nova Iorque, um lugar a que chamam casa.

B r o o k l y n r i d e r reinventar os Grandes Cânones da MúsiCa ClássiCa

Michel Reis

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Em Istambul, Patrício estaria apenas oito meses, posto o que, em 1925, logra-ria finalmente ser nomeado para um lugar europeu como Ministro Conselheiro na Embaixada de Londres, posição que terá encarado como um trampolim para um lugar mais proeminente numa embaixa-da na Europa. Todavia, com o advento da Ditadura em 1926, em 1927, foi no-meado para a recém-criada Legação de Caracas, tendo ascendido a Chefe de Missão de 2ª classe, de que tomou posse em Agosto. Parece que terá sido um período feliz da vida de Patrício, uma vez que terá estabe-lecido as melhores relações com os vene-zuelanos. Todavia, nem um ano passado, o Ministro das Finanças e já virtual dita-dor, Salazar, encerrou a Legação a pre-texto de restrições orçamentais, fazendo--o regressar às Necessidades, à Secretaria de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Patrício terá iniciado, neste período de 1929, vários trabalhos e é já um escri-tor consagrado como mostra o facto de lhe ser dirigido o inquérito literário de João Ameal no Diário de Notícias, a que responde em 11 de abril desse ano e que tem o maior interesse. En-tre as obras que iniciou, contam-se as peças “O Auto dos Reis ou da Estrela”, curiosamente de cariz religioso, e “A Paixão de Mestre Afonso Domingues”, tendo por cenário o Mosteiro da Ba-talha. Além disso, tinha entre mãos um romance, “Teodora, Imperatriz de Bizâncio”, que mereceu de Teixeira Gomes palavras de satisfação “por ter encontrado refúgio espiritual (pois que lhe empreendeu o estudo sério), nas sumptuosas e abundantes fraldas da Imperatriz Teodora”. Prevê contudo,

inopinadamente, que a Patrício “lhe não sobre tempo e descanso para o go-zar e explorar...” .Em Março de 1930, tem a sua derradei-ra nomeação, agora para Beijing, onde se vislumbra, pelas suas palavras, algum entusiasmo, quando afirmou a Carlos Olavo, na hora da partida, que ia ver “um povo que luta e sofre pela sua liber-tação”. Todavia, tal cargo não viria a ser assumido, porque a sua viagem não che-garia desta feita a bom porto. Faleceria três meses depois da partida, ao atracar em Macau, numa paragem solicitada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros.As obras que iniciou nesta época ficaram, pois, inacabadas.No entanto, cem anos depois da primeira viagem à China, ou seja da instalação em Cantão de António Patrício, em 2013, Carlos Morais José editou uma obra constituída por 108 aforismos da autoria de Patrício, que estavam guardados por António Braz Teixeira que os endereçou a José Augusto Seabra que, por sua vez, aquando de uma das suas deslocações ao Sudeste Asiático, os trouxe para Macau, assim chegando às mãos do editor. O inspirador do título “Fragmentos po-éticos” foi mesmo José Augusto Seabra, também o autor do prefácio não datado, onde o finado Professor faz um apanha-do geral da obra do poeta, sublinhando a influência literária do decadentismo-sim-bolismo, o seu neo-romantismo e saudo-sismo que seria mais idiossincrático do que de escola, avesso como seria a qual-quer sistema, embora nos afirme, mais à frente, que ele ”se movia na área cultural da Renascença Portuguesa”, chamando à atenção ainda para o travo de exílio que perpassará o Poeta, a propensão para o aforismo característica de numerosos filósofos e por onde começou José Ma-rinho, os ecos filosóficos e o vitalismo nietzschianos, a par da Weltansschauung

saudosista de Pascoaes que Pessoa, ao que nos diz Seabra, teria designado como um “panteísmo transcendentalista”.Finalmente, Seabra encontra nos seus aforismos a “exaltação de um patriotismo universalista que se identifica com a de-manda de um Portugal mítico”, em con-traciclo à decadência nacional.A obra tem ainda, a encerrar, uma curiosa ficção sobre a derradeira noite de Patrí-cio, ocorrida em Macau, escrita pelo co-ordenador do trabalho Luís Sá Cunha.Ora estes aforismos, não datados e di-fíceis de datar na maioria, parecem o seguimento dos outros, publicados em 1910, ao encerrar “Serão Inquieto”, sob a rubrica de “Words”, notas que fariam parte de um caderno de um condiscípulo nominado C.F., como já vimos, atempa-damente, um pseudónimo, ou até heteró-nimo, ao jeito dos muitos que quase cem anos antes Kierkegaard tinha utilizado e que, dentre em pouco, Agostinho Silva também utilizaria, tal como Pessoa, este com a prolixidade que hoje se conhece…Importante é que parte destes aforismos, sejam os de “Words”, sejam os dos “Frag-mentos poéticos”, parecem memórias e indicações para a obra escrita e pensada de Patrício, alguns até plasmados em falas dos personagens dos seus dramas, tendo um significado muito especial nesse con-texto dinâmico; outros, pelo contrário parecendo mesmo a assunção da forma aforística como um tentame de expressão filosófica que, em Patrício, tal como no drama ou no conto, têm quase sempre uma expressão com algo de poética. Por isso talvez não optássemos por este título, preferíssemos juntar estes aforis-mos inéditos com os de “Words”, em um volume designado genericamente por “Aforismos”. Com toda a consideração pelo excelente trabalho feito e sabendo--se que “depois da boda feita não faltam padrinhos”…

Pedro BaPtista

ANTÓNIO PATRÍCIODA CONSCIÊNCIA DA MORTE AO SENTIDO DA VIDA -VII

DE NOVO ATRAVESSANDOOS OCEANOS

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E Eis-nos no capítulo mais literário do calendário nesta latitude do Hemisfério Norte. Maio, o dos Cânticos, o das Gestas, o das Cantigas, o dos Trovadores. Aquele instante que antecipa também «Sonhos de uma Noite de Verão». Madrigais, Jograis, Trovadores, Lirismo Provençal, Cânticos Célticos, sem nunca excluir o mais sagra-do: o Cântico dos Cânticos.

Foi no mês de Maio que Geneviève chamou para junto de si os Cavaleiros da Távola Redonda. Façamos uma visita ao «Jardim» estilístico ou literário do fecun-do mês das “cortes de amor”.

A Idade Média, romanticamente anali-sada, é a mais marcante época da civiliza-ção e cultura europeias. Ainda no séc: X o Al-Andaluz teve contacto com os poetas occitânicos do Languedoc, lembrando aqui, que a poesia árabe peninsular era das melhores do mundo civilizado: até muito tarde, pouco antes do Catolicismo ter vingado, esta civilização rezava aos seus poetas. Esta simbiose entre o Santo e o Poeta viria a entrar como marco cultural mais tardiamente, para muito mais tarde Rilke ter afirmado: todo o Anjo é terrível! Toda a saga de Cavalaria que está implí-cita na expansão cristã vai dar origem a uma literatura florescente que para nós estão impressas nas Cantigas Galaico--Portuguesas, nas Cantigas de Amigo e de Escárnio e de Maldizer, de carácter au-tócne, de raiz popular, portanto, directa-mente inspiradas na transmissão oral, nas festas dos Maios no cantar das Mais... Já o cântico de Amor de origem Provençal era mais palaciano. A Provença em Maio

é um poema, não nos será difícil imaginar a criatividade linguística inserida em tal latitude e local, com aquela luz, cor, chei-ro…..ambiente lírico e estético. O Nosso é mais cantado, mais confidenciail…mais de núpcias numa terra de festas e de cultos germinais. França exercita os mecanismos de toda a a partir dos Trovadores Occi-tanos e suas prosificações «Chansson de geste» partindo do poema para o célebre romance de Cavalaria.

Na Península há que não renegar nes-te instante Maio as «Canções de Santa Maria» de Afonso X o sábio, avô do nos-so Dinis, pois que constitui um bálsamo Primevo, escutá-las, mesmo hoje, num tempo mudado. Este Cancioneiro nos remete por vezes a um eterno e quase mítico Maio, tendo sido escritas em ga-laico-português e sendo estruturalmente também um pouco occitânico, pelo seu teor latinístico com aspectos arábicos. Neste tempo, e estamos em pleno séc: XII, os jograis árabes e cristão estavam ao mesmo nível na Corte do Rei.

Lembremos que os Romeiros tinham em Maio um fluxo máximo de peregri-nação o que fazia da linguagem um bem constante entre culturas. Junta-se-lhe a Poesia Celta Medieval de carácter pan-teísta, animista, que na «Morte de Artur assim nos dita: «E assim foi o tempo pas-

sando, desde a Candelária até à Páscoa, e chegou Maio, que é tempo de nascerem amores». E o belo poema galês do séc-XIV:« eu quero vestir-me com as verdes folhas da aveleira. Que este é o tempo de glória e de festa do mês de Maio! Oh! Deus Poderoso que tudo sabes e moras no alto, manda que o tempo, pela mão de Maria, traga o anúncio do mês de Maio!».

Toda a exegese linguística do Cântico dos Cânticos a poderíamos remeter para esta altura, no panorama bíblico. Em for-ma de diálogo, há um puro reinado da vegetação e dos pássaros, o que adensa as vozes que dialogam. Longe, muito longe ainda da narrativa confessional, e do tex-to alegórico da Idade Média.

E porque é Maio e também Lua Nova, lembro o poeta bem mais tardio, Juan de La Cruz, inspirado nos Cancioneiros este autor do Cântico Espiritual, no seu belís-simo poema «Noite Escura» uma passa-gem de testemunho para algo tão fresco, tão belo, como a mais bela manhã de Maio. Escura é a noite numa Nova Lua. A de Maio é talvez para se escutar como outrora se escutavam as “vozes” .

Literariamente estamos na grande Lírica. É na vertente lendária do doce acasalamento nos «Cantos de Esponsais» que muito do que estava cativo na lingua-gem se soltou, como a seiva da Terra.

MAIO

UMA CANÇÃO DE GESTAAméliA VieirA

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perspectivas Jorge rodrigues simão

O NOrte de África e o Médio Orien-te foram abalados pela “Primavera Ára-be”, iniciada pela designada “Revolução Jasmim”, que teve como pano de fundo a auto-imolação de Mohamed Bouazizi, vendedor de rua, a 17 de Dezembro de 2010, como protesto, pela não concessão da licença de exploração da sua activida-de de subsistência e confisco da sua mer-cadoria.

As manifestações públicas e actos de violência que se estenderam a todo o país e região, obrigaram a 14 de Janeiro de 2011, o presidente tunisino Zine El Abi-dine Ben Ali, que governou desde 1987, a renunciar ao mandato e a exilar-se na Arábia Saudita. A sua saída, ao invés de fazer diminuir o fervor revolucionário contra o Estado e as elites privilegiadas na Tunísia, cresceu e espalhou-se pelo Médio Oriente.

O presidente do Egipto, Hosni Mu-barak, que governou ditatorialmente durante trinta anos, no seguimento de idênticas revoltas, foi deposto a 11 de Fevereiro de 2011. A revolução atinge a Líbia e conduz o país a 13 de Fevereiro de 2011, a uma guerra civil motivada pe-los protestos sociais e políticos contra o ditador Muammar al-Gaddafi, que cres-cem aquando da prisão de um famoso es-critor e comentador político, bem como de diversos manifestantes e um advogado activista dos direitos humanos.

A indignação veiculada pelas “redes sociais” é apresentada como uma violação brutal e sanguinária dos direitos huma-nos pelo regime líbio. A Líbia é suspensa do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a 1 de Março de 2011, pelas cons-tantes violações dos direitos humanos ao reprimir opositores ao regime. Os con-frontos com tribos pró-Gaddafi e polícia secreta do regime, além de bombardea-mentos de cidades e as provocadas por mercenários a soldo, fazem um incontá-vel número de mortos entre os manifes-tantes e a população civil.

O Procurador-Geral do Tribunal Pe-nal Internacional, emitiu a 16 de Maio de 2011, um mandato internacional de cap-tura e prisão contra o ditador líbio Mu-ammar al-Gaddafi, pela prática de crimes contra a humanidade por parte militares líbios a seu comando, contra opositores do regime e civis nas zonas de revolta e combate. A resolução 1973 da ONU,

que previa o cessar-fogo imediato, uma zona de exclusão área e a intervenção militar para proteger a população civil, é aprovada a 17 de Março de 2011.

A intervenção na Líbia usou meios terrestres, aéreos e navais. A 21 de Agos-to de 2011, os opositores invadem Tripo-li e a 20 de Outubro de 2011 é capturado e morto o ditador líbio, que governou o país durante 42 anos. O Conselho Na-cional de Transição líbio, anunciou a 23 de Outubro de 2011, o fim da guerra civil que causou mais de 40 mil mortos e 20 mil feridos graves.

A revolta do Bahrein iniciada a 17 de Fevereiro de 2011, e que se traduziu por violentos protestos pela substituição do sistema político de monarquia constitu-cional para parlamentar e a concessão de maior liberdade politica, alargam-se à exigência pelo fim da monarquia. A 14 de Março de 2011, com o apoio de militares da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos e do Conselho de Cooperação do Golfo, foi esmagada a oposição. Até ao momento pese o facto das manifesta-ções continuarem, são apaziguadas pela repressão e tortura em que morreram muitas dezenas de pessoas, e milhares de outras foram detidas.

A revolta do Iémen que se inicia a 27 de Janeiro de 2011, com protestos a favor de alterações constitucionais e governamentais, evoluem para situações mais violentas e exigem a saída do pre-sidente Ali Abdullah Saleh. Após uma série de situações rocambolescas, que se-guiram o percurso da revolta na Tunísia, o ditador que governou o país durante 32 anos, assina a 23 de Novembro de 2011, na Arábia Saudita, o plano do Conselho de Cooperação do Golfo para a transição política.

O presidente do Iémen, sai do país a 22 de Janeiro de 2012 para tratamento nos Estados Unidos, não regressando e

encontrando-se exilado na Etiópia. As eleições presidenciais realizaram-se a 21 de Fevereiro de 2012, tenho saído vence-dor o seu ex-assessor. A revolta Síria que se inicia a 26 de Janeiro de 2011, evoluiu para uma sangrenta revolta armada a 15 de Março de 2011, em que a oposição afirma lutar pela deposição do presiden-te Bashar al-Assad e por uma democracia efectiva no país, e o presidente diz que luta contra terroristas armados que pre-tendem criar o caos.

O governo sírio instaurou o estado de emergência em 1962 e suspendeu as garantias constitucionais à maioria dos cidadãos. O pai do actual presidente governou o país durante trinta anos, e Bashar al-Assad conta com dez anos de governo ditatorial. A repressão do re-gime causou um incontável número de mortos entre os opositores e a população civil. Os civis armados e os militares que desertaram formaram no final de 2011, o Exército Livre Sírio.

A 15 de Julho de 2011, a revolta síria é considerada internacionalmente como “Guerra Civil ou Conflito Armado Não--Internacional”, dando lugar à aplicação do “Direito Humanitário” e à investiga-ção por crimes de guerra e contra a hu-manidade, da competência do “Tribunal Penal Internacional”. Segundo previsões baseadas em informações de organiza-ções não governamentais de direitos hu-manos, o número de mortos até ao final de 2012 seria superior a 75 mil pessoas, sendo mais de metade população civil; mais de 140 mil pessoas foram detidas e outras tantas, presas pelas forças de segu-rança do governo. Um número superior a um milhão de pessoas teria abandona-do o país e procurado refúgio no exte-rior, fugidas do conflito armado, tendo a maioria procurado refúgio na Turquia.

O conflito chegou a uma situação incontrolável e a ONU e outras orga-

nizações internacionais, afirmam que os crimes de guerra e contra a humanidade estão a ser praticados por todo o país, seja pelas forças militares do regime, seja pelos da oposição de forma desgoverna-da. A guerra civil e genocídio contínua sem fim à vista no meio de ofensivas e recuos de ambos os lados, mortes sem conta nem medida, e a Síria encontra-se transformada num lamaçal sangrento de desentendimento e morte, havendo sus-peitas de uso de armas químicas.

A raiz do descontentamento nesses países encontra-se no seu nível de pobre-za. A média dos cidadãos no Egipto tem um nível de rendimento de cerca de 12 por cento do auferido pelo média dos ci-dadãos nos Estados Unidos, tem uma es-perança de vida inferior em 10 anos e 20 por cento da sua população encontra-se na miséria. Ainda que tais diferenças se-jam significativas, são na realidade muito pequenas, quando comparadas com as existentes entre os Estados Unidos e os países mais pobres do mundo, como a Coreia do Norte, Serra Leoa e o Zimba-bué, onde mais de metade da população vive na miséria.

Qual a razão para o Egipto ser mui-to mais pobre que os Estados Unidos? Quais são os obstáculos que impedem os egípcios de se tornarem mais prósperos? Será a pobreza do Egipto imutável ou pode ser erradicada? Uma forma natural de começar a pensar sobre as respostas é observar o que os egípcios afirmam sobre os problemas que enfrentam e a razão pelo qual se revoltaram contra o regime de Mubarak.

O “The New York Times” na altura, apresentou uma série de notas acerca de como pensavam alguns dos manifestan-tes, e um de vinte e quatro anos, traba-lhador numa agência de publicidade no Cairo, em Tahir Square, afirmou para a multidão, que estavam a sofrer com a corrupção, a opressão e má educação. Viviam no meio de um sistema corrupto que teria de mudar. Outro, na praça, Mo-saab El Shami, de vinte e um anos, estu-dante de farmácia, concordou afirmando que esperava que até ao final desse ano (2011) tivessem um governo eleito, que as liberdades universais fossem aplicadas e pusessem termo à corrupção que tomou conta do Egipto.

Os manifestantes na Praça Tahrir fa-laram a uma só voz sobre a corrupção do governo, a sua incapacidade de fornecer serviços públicos, bem como a falta de igualdade de oportunidades no seu país. Todos, em particular, reclamaram contra a repressão e a ausência de direitos polí-ticos.

“Tunisia: repression + absence of social justice + denial of channels for peaceful change = a ticking bomb”.

Mohamed El BaradeiFormer director of the International

Atomic Energy AgencyTwitter on January 13, 2011

Corrupção, opressãoe má eduCação

maIo

uma CaNção de GesTa

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o l h o s a o a l t o

gente sagrada José simões morais

月下老人

O anciãO da Lua, Yue Lao ou em cantonense Yut Lou, era um idoso que tinha o livro onde esta-vam registados todos os casamen-tos entre pessoas. Por isso, quan-do se preparava um casamento ele aparecia para colocar um fio vermelho com que unia os torno-zelos dos noivos, ficando assim marido e a esposa a comungar o mesmo destino.A lendária história ocorreu du-rante a dinastia Tang. Certa vez estava o jovem Wei Gu na cidade Song (actual Shangqiu, província de Henan) quando, passeando à noite, viu um idoso a ler um livro à luz da Lua. Curioso, aproxi-mou-se da estranha personagem e interessado em saber sobre o que lia, ao espreitar, não conseguiu perceber nada. Intrigado com a estranha escrita, quando ele era já um estudioso e se preparava para realizar os exames imperiais, questionou o idoso que língua era aquela. A resposta escutada foi desconcertante, pois foi-lhe dito não pertencer aquele livro a este mundo, mas ser proveniente do Céu. Logo indagou sobre o que tratava e aí soube estarem nele registados os casamentos realiza-dos e por celebrar. Como Wei Gu já vinha tentando a algum tempo encontrar a sua esposa, logo ficou interessado em conhecer o seu destino e o nome da sua consorte.Após consultar o livro, Yue Lao revelou-lhe que só iria casar dali a 14 anos com uma jovem rapa-riga, que por um acaso até vivia na cidade e teria agora apenas três anos. Sugerindo que o pode-ria levar até ao lugar onde ela se encontrava, logo Wei Gu aceitou. Assim combinaram para a manhã seguinte um encontro. Juntos caminharam até ao merca-do da cidade e de longe, apontou para o meio de vegetais onde uma idosa senhora cega tinha uma criança ao colo. Não pertencen-do ao estrato social que Wei Gu sonhara para a sua esposa, ficou horrorizado com o que viu. Desa-nimado com o futuro prometido, perguntou se era possível mudar o destino, dando como exemplo o caso de ela morrer antes do tempo em que estava anunciado o casamento. Mas o ancião disse-

-lhe que tal não iria acontecer e para não se preocupar pois, iria casar-se com a rapariga, iria pas-sar nos exames imperiais e ambos em conjunto iriam ter uma vida feliz.Despediu-se do ancião e passado uns dias contratou uma pessoa a quem encomendou a morte da criança. No mercado, o assassi-no chegou junto da rapariguinha mas, ao tocar com a faca na testa, esta começou a chorar, chamando a atenção dos transeuntes. Teve de fugir sem terminar o trabalho, fazendo apenas uma pequena fe-rida no meio da testa da criança. Acreditando na palavra do assas-sino, Wei Gu ficou convencido que a criança tinha morrido. Os anos passaram e os seus so-nhos iam-se realizando. Tornara--se mandarim, mas o de casar, até então, não acontecera. Certa vez, o governador da prefeitura foi ter com ele perguntando-lhe se estava disposto a desposar a filha, o que ele logo concordou. Realizada a boda, estando a ad-mirar a beleza da sua consorte, questionou-a sobre a marca que tinha no meio da testa. Então ela contou como fora ferida por uma faca, revelando-lhe ser filha adop-tiva do governador, pois os seus pais passaram desta vida ainda era ela criança, tendo a sua ama, que era cega e vendia vegetais, toma-do conta dela. Logo os antigos acontecimentos vieram à mente de Wei Gu e começando a fazer contas, apercebeu-se estar peran-te a rapariga que lhe fora desti-nada. Revelou à sua esposa o que tinha acontecido catorze anos atrás e como Yue Lao não se tinha enganado, existindo afinal um livro divino com os registos de casamento. Quando tal história passou a ser conhecida pelo go-vernador da cidade, este ordenou que Yue Lao fosse venerado como Yue Xia Lao Ren, o ancião da Lua. Esta lenda está registada no livro Xu You Guai Lu, escrito durante a dinastia Tang por Li Fu Yan.Encontramos em Macau este deus no templo a céu aberto Sam Pa Mun no Patane, por trás do jar-dim de Camões e no templo do Bambual, na Estrada de Coelho do Amaral.

Yue Xia Lao Reno casamenteiro

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Huai NaN Zi 淮南子 O LivrO dOs Mestres de Huainan

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L e t r a s s í n i c a s

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Provín-cia de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refina-ram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

Se segues os desejos ao ponto de perderes a tua natureza essencial, nada do que fizeres será jamais certo.

Do EstaDo E Da sociEDaDE – 46

Todos procuram preparar-se para resolver problemas, mas ninguém deveras sabe como impedir que surjam problemas. É mais fácil causar problemas do que resolver problemas, mas ninguém deveras sabe lidar com isto; por isso, é im-possível falar a alguém acerca de tais artes.

* * *

Aqueles que possuem a Via conseguem responder ao inesperado sem perda e escapar a complicações quando as encontram.

* * *

Os marinheiros que se encontram perdidos, sem saber a direcção a que se dirigem, têm só de olhar para a Estrela do Norte para o descobrir. A natureza essencial é a Estrela do Norte dos seres humanos. Quando dispõem dos meios de se verem a si próprios, não sentirão falta dos sentimentos dos outros. Quando não dispõem de meios de se verem a si próprios, sentem-se agitados e debatem-se em confusão.Se segues os desejos ao ponto de perderes a tua natureza essencial, nada do que fizeres será jamais certo: a prática deste caminho conduz ao perigo; governar uma nação deste modo conduz ao caos; ir para a guerra desta maneira conduz à derrota. Assim, aqueles que não escutam a Via não têm forma de dar sustento à sua natureza essencial.

* * *

Quando aqueles que entram num país seguem os seus cos-tumes, e quando aqueles que entram numa casa observam o seu decoro, podem entrar sem quebrar as regras, entrar sem causar ofensa.

tradução de Rui cascais ilustração de Rui Rasquinho

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