h - suplemento do hoje macau #89

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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2867. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE MACAU EM VENEZA

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 7 de Julho de 2013h

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PARTE inTEgRAnTE DO HOJE MACAU nº 2867. nÃO PODE SER VEnDiDO SEPARADAMEnTE

MacaueM veneza

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O teatrO da memória

futurantepor Carlos Morais José

Carlos Marreiros eM Veneza. o que é a instalação Pato.Men que rePresentou MaCau na bienale? Duas Visões fiCaM na Mesa

A BienAle de VenezA propõe uma incursão pelos terrenos da memória, da sua catalogação e conservação. erigida em teatro ou palácio, é de uma exte-rioridade que se fala, de algo que, para além do sujeito, pretende na sua dimen-são extrema servir de depósito a todo

teres; mas de uma confrontação com os homens e as obras que pretenderam coleccionar a memória do mundo, tal qual ela foi sendo produzida pelos ho-mens. Giulio Camillo e Marino auriti, cujos sonhos servem de mote à propos-ta, incarnam de modo ajustado o carác-ter utópico e feérico destes projectos. a convocação de steve Jobs guarnece-a de contemporaneidade, agiliza as suas

o refúgio ético e estético para uma com-preensão hedónica do mundo. é por isso que, para quem conhece a sua obra, não é estranha a presença do desenho na instalação, enquanto gozo de recria-ção pessoal do mundo, processo genial e lúdico, por vezes delirante e satírico.Por outro lado, a instalação de Marrei-ros, na sua fisicalidade/proximidade e confesso desejo de entreter, ultrapassa

o conhecimento; feito a um indivíduo impossível, sobretudo no actual grau de conhecimentos. não terá sido leibniz o último homem que sabia tudo? não se trata, portanto, de um desafio para uma reflexão sobre as mnemóni-cas internas, os palácios da memória de Matteo ricci, que no século XVi aju-davam os jesuítas a decorar à primeira leitura um texto chinês de 500 carac-

eventuais interpretações, centraliza-a no permanente descarrilar do presente para o futuro.Perante estes dados, a leitura de Carlos Marreiros desdobra-se numa represen-tação contemporânea dos motes suge-ridos, emprestando-lhe o olhar globali-zado, irónico mas ainda encantado, do homem que, sujeito ao actual Maels-trom da memória, descobre na criação

um carácter meramente representativo. o ambiente esboçado, erigido em sta-tement sobre as memórias organizadas –detectadas como mito, realidade ou pesadelo – existirá totalmente quando digitado pelo público. a instalação não será um lugar, como refere Mario Perniola, onde o visitante aprecia uma obra de arte. Pelo contrá-rio, é a instalação que “sente o visitante,

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na instalação indubitavelmente emerge o próprio palácio das memórias de Car-los Marreiros, num teatro por si arqui-tectado e concebido para a exposição de Veneza. No entanto, como a memó-ria indelevelmente se infecta pela cida-de primordial, Macau constitui, quer na representação quer em filigrana, um personagem quase omnipresente neste teatro de palácios de memórias. É a simbólica desse Macau eivado de duplicidade, efeito de camadas de du-vidosa fronteira, há 500 anos traçadas em pinceladas paralelas, casualmente se tocando nesse infinito que são as pesso-as. Macau, professora do Ocidente no Oriente, mestra do Acaso, doutora em Caos e Liberdade; Macau da megalo-mania branda, do desespero da cidade cercada, da euforia de um horizonte de

o tacteia, o apalpa, que tende para ele, que o faz entrar em si mesma, o possui, o penetra e o inunda”.Estamos longe do espaço sóbrio e solene do teatro de Camillo ou do classicismo expressionista de Auriti. É a Jobs que se vai buscar a interconectividade imediata e a relação preservada, familiar. Estamos distantes da obra de arte como merca-doria susceptível de se traduzir num va-lor de troca. Ao exacerbar precisamente o seu valor de uso, através da instalação, Marreiros recupera, por meio de um fe-tichismo moderno e ritualizado, a fun-cionalidade esquecida na organicidade do ateliê e na friagem do conceito.

“Imagens que passaIs...”Se título, entrada e trajecto evidenciam uma reflexão sobre o tema da Bienale,

Um início de ciclo potencioU o aparecimento

de projectos memorialistas. tal deriva,

talvez, de Um presságio pós-apocalíptico

– não tendo o mUndo terminado, Uma nova

era se acomoda e o passado corre o risco

de se perder.

desgraça anunciado. Macau, altar dos mundos conhecidos e a conhecer.A memória de heróis, de figuras identi-tárias – que o são da tinta ou do amor, não do sangue – dilui-se nas obras que são de uma cidade, de um povo, de uma aptidão e de uma sensibilidade. São também as memórias dos ambientes e das suas singularidades (vozes, cheiros, tessituras) a entretecer a rede própria a cada identidade. Esta apropriação de índole matricial de fragmentos/micro-histórias da cidade – a sua relevância em termos identitários e a consciência de que o princípio de um ciclo é terreno propício à erosão de me-mórias – impele mesmo Carlos Marrei-ros a sugerir a criação de um exemplar da memória macaense, a que chama ca-rinhosamente Doce Cabana Enciclopé-

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dica de Macau (DOCEM), que surgiria justamente como uma tentativa ciclópi-ca, digna de um início de ciclo ( à la Ca-millo e Auriti), de recolher a memória macaense. Porque cada era produz as suas memó-rias, subordinadas a um ritmo e uma es-catologia diferentes, hoje as imagens de Macau irrompem futuradas pela tecno-logia, disseminadas de forma tão inces-sante que se subtraem ao filtro da razão, da observação, da teoria, para se dissol-verem, sem outro estatuto que o da sen-sação, no inconsciente, onde eventual-mente realizarão o seu trabalho. Final-mente, habituámo-nos a “deixar passar”, a procurar o gozo instantâneo, o efeito especial entorpecente. “Imagens que passais pela retina dos meus olhos por que não vos fixais?”, perguntava o poeta Camilo Pessa-nha, assoberbado pela constatação da efemeridade da representação e das coisas, tão contrária ao desejo ínvio de tudo em si suster. Hoje ninguém pergunta nada. Narrativa da memória contemporânea, as imagens de Macau sucedem-se como série ilógica, desir-manada, como estado de sítio de uma cidade experiente da desagregação de um mundo, talvez por isso a precisar urgentemente de organizar a sua me-mória, na exacta medida em que clama por identidade e esquecimento.

Do Sacrilégio e Do MonStroUm início de ciclo potenciou o apare-cimento de projectos memorialistas. Tal deriva, talvez, de um presságio pós--apocalíptico – não tendo o mundo terminado, uma nova era se acomoda e o passado corre o risco de se perder. Constatamos esse facto no tempo de Camillo, com o advento renascentista, como o constatamos em Auriti, com o planeta pós-nuclear. Se a proposta ca-milliana era coleccionar sabedoria e ordená-la, segundo uma divina fórmula, para lhe garantir acessibilidade; ou se pretendia, mais além de um mecanismo de consulta, criar uma metáfora poéti-ca e arquitectónica do destino humano, divinamente projectado e tragicamente interpretado, vinculado e submergido na memória colectiva, parece difícil de responder. Sob um certo olhar, há algo de sacrílego nisto tudo. Pois propor o que assemelha o homem aos deuses constitui um acto ímpio, uma herege ousadia, a remeter para o desafio de Babel. Afinal, um des-medido orgulho e uma persistente vai-dade, porque estes projectos apresen-tam dimensões, na sua visão última, que muito ultrapassam a medida humana. O carácter blasfemo do utópico e um desejo luciferino de semelhança divina assombram estas pretensões. Pelo aces-so a toda a informação, o homem seria detentor de todo o poder – eis o sonho imperial sempre revisitado de Roma à dinastia Qin, da burocracia kafkiana ao III Reich.Carlos Marreiros propõe-nos uma ini-

ciação pela Arca do patriarca Noé. Atrevidamente mutada em prancha de surf, talvez signo da sua “inocência”, nem assim desdramatiza o conteúdo apocalíptico de tábua de salvação para a memória viva da Terra. Perante a ca-tástrofe, para além da família humana, guardam-se as espécies, a diversidade da vida. Evola um cheiro a caos e a incesto.Ela por aí vem, por seu monte Ararat, que sempre se afasta do horizonte e as águas tardam em baixar. Por que baixa-riam?, perguntam os assustados passa-geiros. Dar-se–á o caso da Arca nunca ter realmente atracado e ainda balance nas águas de um irrazoável Dilúvio, sem terra firme onde aportar? Outros viajan-tes fazem do longe o seu caminho...Também o rigor divino do anfiteatro camilliano, com a sua proliferação da compartimentalidade e a possibilida-de de um único topos onde está tudo, exala de igual modo um prenúncio apocalíptico, pois há sempre algo de excessivo, de titânico, nestes fabulo-sos projectos, que lhes atribui as ca-racterísticas reconhecíveis num mons-tro. No caso de Camillo, a própria ordenação sistemática nos introduz ao registo do Deus ex machina cartesia-no, um conceito de universo mecani-cista regrado por uma razão divina ho-móloga à razão humana. O anfiteatro surge como reprodução de um mundo de ideias, muito ao gosto neo-plató-nico do seu tempo. Sob esta aparên-cia, subtilmente oculto nas formas clássicas, ruge um carácter sacrílego e monstruoso, claramente iluminada na desconstrução tríptica da utopia au-ritiana, onde Marreiros expõe as três faces escondidas do edifício, revelan-do a excessividade, carácter de utopia frágil e o perfil concentracionário da informação coleccionada.

JobS for the boySO que nenhuma civilização construiu e nenhum homem nomeou, fê-lo o final do século XX de forma colectiva. Steve Jobs tornou a internet acessível a quase todos enquanto plataforma de comu-nicação, tavola rasa ou quase, para ser preenchida de forma global. Das sete partidas do mundo caíram num ápice torrentes de informação e hoje a in-ternet – que tornou possível a globali-zação e que dela se alimentou – é um repositório de memórias mais vasto que qualquer enciclopédia. Com a diferença de ser acessível, a qualquer momento de qualquer ponto do planeta globalizado. O monstro está aí para durar.Trata-se, contudo, de um monstro sub-til. É verdade que o palácio virtual de memórias hierarquiza a informação, mas fá-lo em pressupostos bem diferen-tes do passado. Estamos longe de uma compartimentação informativa, de uma numerologia divina ou de uma arqui-tectura de referência, mas perante uma funcionalidade adaptada aos valores do mundo contemporâneo. A hierarquia na internet é todos os dias desafiada por

epifenómenos de curta duração cuja erupção constitui hoje o núcleo do pró-prio sistema e garante a sua vacuidade essencial. Subrepticiamente ou não, flu-xos de dinheiro sustêm esta virtualida-de e aí encontram a felicidade um novo espaço de reprodução. O seu consistente perigo está precisa-mente no quanto a sua existência nos fará esquecer (para além do seu papel como equalizador de identidades). Transferir a memória das pessoas para a rede, já que ela por todo o lado nos acompanha, é uma tentação que terá um efeito futuro de dimensão desco-nhecida. Quão relevante é a memória pessoal, culta e activa, para a formação de no-vas ideias, novos conceitos, novos mo-dos de resolver problemas e, sobretu-do, para uma formação ética? Até que ponto a permanência virtual do saber em local de acesso fácil não inibe nas novas gerações a necessidade de aquisi-ção pessoal de conhecimentos e de uma produção moral abrangente e consis-tente? Se, por enquanto ainda nos seus inícios, a internet continua a ser uma fortaleza de difícil controlo, certamen-te que as grandes organizações estatais e privadas criarão sistemas apropriados aos seus interesses. Por agora, do lado da informação, a propagação imediata da notícia, o ge-ral desinteresse pela credibilidade das fontes, a maximização da quantidade, a sua origem aleatória, os temperos de entretenimento, têm paulatinamente conduzido à descredibilização e à dúvi-da. Tudo e nada é verdade, porque tudo é possível e nada realmente acontece. Este pensamento nihilista e ataráxico tornou-se basicamente viral, não por ser transmitido através de ideias mas pela dissolução que estas sofrem na rede global.Excepção que Marreiros insiste admitir: os PATO.MEN, fila limitada de huma-nos, insistentes habitantes da vida para além das redes que transversalmente frequentam, guiados por uma Ética de forja incerta mas, a cada passo do cami-nho, voltada para a poesis e a beleza. Fi-nalmente, o homem que se exige ainda actor no teatro da memória e utopiza formas de corresponder ao desempe-nho prescrito, ainda que secretamente almeje reescrevê-lo ao longo do cami-nho – rebeldia que tem sido seu calvá-rio e salvação. Se domesticados, ordenados, catalo-gados, os fragmentos da memória ofe-recem a enciclopédia, a caixa-forte do saber, um novo ponto de partida, do qual só esporadicamente terá sentido olhar para trás. Ordenar a memória é também um modo subtil de esqueci-mento e o passado amiúde um inferno onde não se quer voltar, ainda que nele se aprenda, quantas vezes em elevado grau de fruição, como palmilhar as vias que a memória assim tornada futurante nos oferece. Eis o trabalho nesse ama-nhã cujo advento é contínuo motivo de espanto e celebração.

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do SerFilósoFos como Bernard Stie-gler referem-se ao estado actual do mundo como a ausência de mundo. Para Stiegler “[...] a cultura e a civilização do mundo ausente manifestam-se numa dupla dimen-são, temporal e espacial. O mundo actual foi-se exilando do tempo na medida em que tende a viver apenas no presente, que não é verdadeiramente uma dimensão de tempo, mas tão somente o ponto de in-tersecção permanente das extensões de tempo que conhecemos como passado e futuro. No entanto, a vivência actual do tempo não é a da consciência de uma pre-caridade existencial de raiz, presente no verso de Rilke que nos lembra que ‘vive-mos sobre as vagas e não temos asilo no tempo’. É antes a de uma cultura que ten-de cada vez mais a ignorar o passado (não tem consciência histórica) e vive um futu-ro incerto ou inexistente, sob permanentes ameaças, do emprego à segurança social, da “guerra infinita” à catástrofe ecológica. E que se ausentou do espaço natural e so-cial para o virtual, vivendo grande parte do seu tempo em “não-lugares” (Marc Augé), espaços homogeneizados destituídos de memória, ou naquela alienação do mundo a que Peter Sloterdijk dá o nome, muito alemão, de Weltfremdheit (alheamento do mundo), para referir a situação de algumas minorias antigas (anacoretas, místicos) e maiorias modernas (adeptos das drogas ou do virtual).”1“Diversos textos contemporâneos, situ-ados entre a filosofia e a arquitectura, de autores como Marc Augé, William Mi-tchell ou Paul Virilio, exploraram esta nova condição ágil e leve, virtual e em suspensão, do espaço contemporâneo.”2 Vivemos uma cultura do simulacro, re-sultado duma sociedade de saturação de informação e imagens, onde o próprio mundo é fotocopiado infinitamente, e que culmina no que Neil Leach designa de era da hiper-realidade, na qual a re-presentação da realidade passa a ser mais importante do que ela própria. Segundo Neil Leach, na era da hiper-realidade, a Torre Eiffel é substituída pela experi-ência Torre Eiffel, ou Notre-Dame pela experiência Notre-Dame. Assim, o mo-mento actual caracteriza-se por fazer

1 PACHECO, Carlos, et al. (2006). o estado do Mundo, Lisboa: Temas e debates, p. 85-86.

2 MONTANER, Josep Maria (2002). As Formas do Século XX, Barcelona: Gustavo Gili, SA, p. 230.

nascer entidades híbridas, entre o que é real (segundo o modo do objecto) e o que não é (segundo o modo da repre-sentação). O tempo real prevalece so-bre o espaço real, a imagem prevalece sobre o objecto e o virtual sobre o real. Tudo se reduz ao tempo. Vivemos um Mundo dos hiper-sentidos, da hiper--matéria e do hiper-espaço. Num tempo sem-tempo, o da omnipresença, onde todos estarão em todo o lado, em todos os tempos. “Depois do transporte à dis-tância pela escrita (a missiva, primeiro transporte dos signos da presença), do teletransporte em tempo real (morse, voz, imagens e sons com o audiovisu-al), assistimos à emergência de um outro regime de transporte que não é mais o dos signos da presença, mas do próprio meio de chegada, este último confun-dindo-se com o meio de partida: fenó-meno que substitui a lógica da emissão/recepção pela da divisão corporal de um mesmo sujeito em diversos lugares simultaneamente.”3 Enquanto que por “tempo real” compreendemos a quase simultaneidade na emissão e na recep-ção de um determinado registo, “espaço real” representará a invenção de um ou-tro modo de deslocação entre espaços. Passar para um outro lugar implica uma operação de reconstituição, de sínte-se de uma forma de realidade definida como virtual.“E neste mundo, só paramos quando nos aborrecemos, só paramos para nos aborrecermos. Paramos para olhar para a televisão: nova figura fluida do mun-do, espaço onde nada permanece fixo, desentediamento do tédio. Não nos de-temos para fazer amor com a rapariga que encontrámos na discoteca, não pa-ramos com ela: assim que os corpos dei-xam de estar em movimento, voltamos a aborrecer-nos, a espreitar a televisão; já não sabemos nem a cor das cortinas nem a dos olhos dela. Os próprios cor-pos perderam o sentido da arquitectura: dinâmicos e embrutecidos. Arquitectura ou mass media?”4

Os arquitectos têm a responsabilidade de pesquisar, gerar polémicas e espe-cular sobre o futuro, numa procura de antecipação do que está para acontecer. Em PATO.MEN, projecto de instalação criado por Carlos Marreiros para a Bie-

3 PARENTE, André et al (2004). Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual, São Paulo: Editora 34, p. 126.

4 FREITAG, Michel (2004). Arquitectura e Sociedade, Lisboa: Publicações Dom Quixote, p. 10.

o paradigma subjacente

a pato.men baseia-se na

imprescindibilidade de se

defender a informação, o

conhecimento e a sua partilha.

a pluralidade defendida por

carlos marreiros, fundada

no palácio enciclopédico de

marino auriti, significa uma

opção profunda de liberdade,

tanto de conhecimento, como

de expressão, como de estética.

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por Tiago Saldanha QuadroS

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nal de Veneza de 2013, somos convida-dos a iniciar uma viagem não ordenada, quase primitiva, sobre a importância de salvar conhecimento. Com efeito, o paradigma subjacente a PATO.MEN baseia-se na imprescindibilidade de se defender a informação, o conhecimento e a sua partilha. A pluralidade defendida por Carlos Marreiros, fundada no Pa-lácio Enciclopédico de Marino Auriti, significa uma opção profunda de liber-dade, tanto de conhecimento, como de expressão, como de estética. O valor do projecto, reside na riqueza dos sen-tidos testemunhados. Nesse sentido, a proposta de Carlos Marreiros tem uma dimensão eminentemente autoral que possibilita a ideia de que, no pensar, como no falar, como no escrever, somos muitos a fazê-lo. Neste jogo intersemi-ótico, Carlos Marreiros funciona como estóico escrevente de um alfabeto de ideias. PATO.MEN recebe-nos entre as ressonâncias de S. Francisco de As-sis, Padre António Vieira, Kant, Charles Fourrier, Oscar Niemeyer, Karl Popper ou Nelson Mandela; mas também de Beyoncé, Lady Gaga, Gisele Bunchen, Bruce Lee ou Luciano Pavarotti. A lista é longa e os últimos são os primeiros.“É necessário, nos momentos de crise da

os elementos que o constituem: superfí-cies e volumes, quer dizer, planos: pátio, paredes, varanda; e objectos: painéis, si-lhuetas, mesas e cadeiras. Com conten-ção, mas procurando a complexidade, tal como o próprio autor afirma.Em PATO.MEN, Carlos Marreiros tra-balhou sobre o limite, configuração do espaço a partir da posição dos objectos cuidadosamente desenhados em função do seu papel numa dramaturgia textu-al ou de imagens e também, claro está, do desenho. A sua expressividade, a sua capacidade de afectar o espectador, não procedem tanto da sua linguagem abstracta, mas da sua eficácia como peças de uma narrativa. Carlos Marrei-ros propõe – por razões óbvias, que se prendem desde logo com a sua forma-ção académica de base – uma relação natural entre a prática da arquitectura e a oficina cenográfica. Já no interior do pavilhão, a dominân-cia gráfica e a austeridade dos objectos de Carlos Marreiros não diminuem, antes potenciam, as possibilidades de leitura da sua proposta. Um dos aspec-tos igualmente interessantes está, neste ponto, no modo como o autor evoca o peso e a leveza das coisas. Com contra-placados e folhas transparentes de acrí-

socialidade e da sociedade, que nos in-terroguemos sobre a natureza da lingua-gem, do trabalho, da técnica, da ciência, da arte ou do político, e até mesmo do amor, enquanto dimensões ou momen-tos fundamentais de “ser/estar-aí”, de um “ser/estar-no-mundo humano”, do modo de ser da prática humana e da relação social com o mundo, com outrem e de si próprio consigo, na comunidade e na identidade.”5

PATO.MEN revela-se em dois momen-tos: o primeiro, respeitante à caracteriza-ção do teatro como Obra de Arte Total; o segundo, relativo à existência de uma condição autónoma da construção ce-nográfica. Carlos Marreiros questiona o “como”: o processo criativo; e o “quê”: a obra de arte. Os objectos de Carlos Marreiros manifestam o paradoxo de formas que aparentam ser autónomas, de um espaço que recebe um valor plástico e narrativo. A obra de Carlos Marreiros apresenta-se assim. Um espaço de actua-ção sem mistificações, cujos elementos se mostram tal como são. Ainda no exterior do pavilhão, Carlos Marreiros recria o espaço de chegada reduzindo ao máximo

5 FREITAG, Michel, op. cit., p. 12.

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lico, tecidos, lonas sintéticas e plás-ticos, Carlos Marreiros constrói um espaço profundamente antinaturalista, recriando um mundo pós-catástrofe, um lugar atópico de fortes tonalidades a preto e branco. “Como se se tratasse de um teatro topográfico”6, o cenário evoca um lugar de passagem que se transforma em labirinto de errâncias, capaz de revelar os mais pungentes si-mulacros de paradigmas equivocados. O palco de PATO.MEN é o lugar de confluência de ruas e percursos, de personagens em trânsito. Por entre portas, que incessantemente se abrem e fecham, irrompem os mais diversos personagens que se cruzam e atrope-lam a um ritmo alucinante, num ce-nário deliberadamente desordenado e torrencial.Carlos Marreiros observa e assiste ao desenrolar da vida e necessita de nos dizer, de se contar o antigo com o novo. E Macau ressurge nesse diá-logo como espaço repleto de vida, a tender, cada vez mais, para uma cres-cente heterogeneidade que caracteriza

6 OLIVEIRA, Maria José (26 de Janeiro de 2001). 400 personagens à espera de um olhar, in Público, suplemento y, pp. 2-18.

a vida humana nas grandes metrópoles. Entre as silhuetas erguidas levantam--se muitas questões sobre o significado dos lugares: acerca do que constituem em si mesmo, do que representam no contexto urbano e da própria alteração das vivências que estes poderão impli-car. Nesse sentido, PATO.MEN marca o momento em que o posicionamento existencial do arquitecto enquanto au-tor contraria o esquecimento das ideias que testemunham um tempo de verti-ginosa desumanização e profunda bru-talização do ser. A proposta de Carlos Marreiros revela pressupostos teóricos e metodológicos de enorme sensibili-dade, quase flutuantes, articulando-se dinamicamente com outros conheci-mentos, apropriações de diferentes modos de fazer, em constante redefini-ção dos conteúdos expressivos da pro-posição artística. Da arte interessa-me, não a janela, não a ilusão, não o espanto, não a fanta-sia, mas o esqueleto, o desenho; mais o mapa e menos o espelho (Gombri-ch). Sempre entendi o nascimento das obras, enquanto coisas, muito ao modo de Martin Heidegger, dá-se a partir e através da actividade do autor; segun-do esta perspectiva será por intermédio

da obra-proposição que se desvenda, re-velando o artista. A existência do autor é indissociável da materialidade coisifi-cante da obra, que se oferece sempre na sua totalidade perceptiva. Carlos Mar-reiros exprime e materializa, em PATO.MEN, a sua vivência, a experiência do tempo, as referências do seu espaço, da sua cultura, da sua memória, ficando assim incrustada na obra, uma teia de acontecimentos e processos que reflec-tem e caracterizam uma determinada “cartografia do ser”. Em PATO.MEN estamos na segunda década do século XXI, ou então dentro da Arca de Noé. Camillo, Auriti e Jobs apresentam-se como correios mnemó-nicos, como agentes de elite. Eles não vivem dos vestígios dos outros, ou de imagens difusas mas da partilha e trans-ferência de dados. A aventura começa, seja em Pequim ou Nova Iorque, nos Loteks ou na Torre Pharmakon. No fim, nós somos “ligados”, a transferência é concluída com sucesso e os nossos cor-pos recuperam memórias que surgem do vácuo. A torre do Palácio Enciclopédico vive e o nosso nome é Johnny, Johnny Mnemonic.O fim, em PATO.MEN, é apenas o princípio.

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Não é fácil falar do Dragão. Por muitas vezes que se retorne ao tema, ele vai to-mando novos contornos, como que a indi-car-nos o arrojo de pesquisar facetas à di-vindade mais dinâmica da cultura chinesa. Sobre ele contam-se histórias ou estórias? Tecem-se longas fábulas, estórias fantásti-cas, mitológicas e até reais.Do ponto de vista antropológico, é o to-tem (tuteng 圖騰) do povo chinês. Pos-sui uma existência mental inultrapassável. No mundo das ideias não há animal mais real do que o dragão. Ao nível do nosso mundo fenoménico ocidental e, apelan-do à tradição kantiana, há que estabelecer uma distinção entre a existência ideal, por um lado, e a empírica, por outro. Os con-ceitos sem as intuições são vazios e estas são mentalmente cegas sem a organização conceptual. Porém, no mundo ideal chinês, com muitos sonhos e mitos, reside a chave da saúde mental, existencial ou o que lhe queiram chamar. Parafraseando Pessoa, o eterno inspirador: (o mito) é o nada que é tudo.Os chineses são os descendentes do Dra-gão. Em termos práticos são os seus filhos. Na tradição chinesa, o imperador tinha vestes de dragão (longpao 龍袍), leito de dragão (long chuang 龍牀) e a impera-triz transportava no ventre o bebé dragão (longtai龍胎), que é o filho do Céu ( tianzi天子), a divindade que comanda os céus e os mares, as chuvas, as nuvens, os rios e os ventos ( zhi shui feng tiao yu shun治水,風調雨順), o imperador, que parcialmente humano, representa a maior das potências celestiais. Os primeiros imperadores eram dragões e tiveram a ajuda de outros da mesma es-pécie. Fuxi (伏羲), o Imperador Azul, tem o corpo meio humano, meio dragão, Yu, o Grande (大禹) dominou as cheias, ( Yu zhi hongshui 禹治洪水), nas versões mais esotéricas, dançando com o seu corpo serpenteado, dividido numa parte superior humana e noutra posterior de dragão.O que são as danças do dragão (wulong舞龍)? Começaram por ter cariz religioso, de uma religiosidade feita da relação íntima com a natureza. Segundo consta nos Anais da Primavera e do Outono (Chunqiu Fanlu春秋繁露) registados pelo grande teórico do Confucionismo, Dong Zhongshu (董仲舒) da dinastia Han: na Primavera dança o dragão verde (qinglong青龍) do Este, o dos novos ritmos naturais; no Verão, o dragão vermelho e amarelo do fogo (hon-glong 紅龍 ), do Sul e do amadurecimento das culturas; no Outono do dragão branco (bailong白龍) do Oeste e das colheitas e no Inverno o dragão preto (heilong 黑龍) do Norte e do descanso da natureza.

Primeiro o dragão dança para controlar a natureza, depois os seus descendentes bai-lam em acção de graças à terra-mãe e aos bons frutos que ela nos dá, solicitando a chuva e o vento ou o fim das secas para benefício das colheiras. Vai-se também ao Templo do Rei Dragão (Long Wang Miao龍王廟), queimando incenso pela manu-tenção da melhor das ordens meteorológi-cas. Dançam os descendentes do dragão, numa fase mais “adiantada” da civilização com um dragão que busca a pérola da sabedo-ria. Aqui trata-se de um ser intelectual e alquimicamente mais polido. Ele busca o fogo, a fim de realizar completude. O Dra-gão corre atrás da luz para alcançar a união originária e a perfeição. Ele próprio pode ser de fogo (huolong 火龍), como se verá quando mencionarmos a sua tipologia. Dança-se ainda a pedir felicidade e mui-ta prosperidade, nas festividades chinesas do Ano Novo (Xinnian新年節), passando pela das Lanternas (Deng Jie燈節) até à da Dança do Dragão Embriagado (Wu Zui Long 舞醉龍). Esta coincide com a festa do nascimento de Buda e, na versão budis-ta, é uma comemoração do banho celestial com que o bebé Buda foi agraciado pelos dragões do Céu, no oitavo dia do quarto mês lunar.Vem a propósito lembrar a divisão dos dra-gões em quatro tipos: os Dragões Celestiais (Tianlong 天龍 ), que nunca abandonam a zona do palácio celestial; os Dragões Divi-nos (Shenlong神龍), que auxiliam sempre que necessário na terra, tendo sido muito úteis a Yu o Grande (大禹) e ao Impera-dor Amarelo (黃帝); os Dragões Terrestres (Dilong 地龍 ), que vivem nas águas dos rios e os Dragões Subterrâneos (Fucan-glong伏藏龍), que guardam os tesouros da terra, especificamente os metais, como o ouro, a prata, o cobre e o ferro.Buda foi abençoado pelos dragões celes-tiais com um belíssimo banho, que os bu-distas ritualizam banhando a sua estátua. Os chineses da província de Cantão, em-bora possuam outras explicações para a ori-gem da Festividade do Dragão Embriagado (Wu Zui Long 舞醉龍), permitem a coe-xistência pacífica de versões entre as várias religiões.Há duas histórias muito interessantes e ab-solutamente naturalistas para a génese da Festividade do Dragão Embriagado, que fomos colher à Wikipedia em chinês, mas também devem constar nas outras línguas. A primeira conta, ligando a Festividade do Dragão Embriagado à província de Cantão, que um monge em dia do banho à estátua de Buda, estando a sofrer do calor que to-

Histórias do dragãodos nós conhecemos, se foi banhar ao rio. Nisto, saltou uma serpente enorme, que o faz temer pela sua própria vida. Então de-sembainhou a espada, cortando o animal ao meio. Entretanto, aproximou-se um pes-cador embriagado, que iniciou uma estra-nha e ébria dança com o corpo mutilado da serpente. Ele tanto rodopiou, que uniu a serpente e esta ressuscitou como dragão. Na segunda relata-se que em dia de rezas a Buda, a pedir a salvação de uma população afligida por epidemias, saltou do rio uma enorme serpente, que os aldeões se apres-saram a cortar. Os ferimentos fizeram com que a água se tingisse de sangue, inviabili-zando o seu consumo. Os aldeões conside-raram que o sucedido era obra do dragão, que desta forma impediu o consumo de água imprópria e a proliferação da epide-mia. Assim terá nascido a Festa do Dragão Embriagado.Seja qual for a versão, nota-se que é uma festividade ligada à água dos rios, onde, como sabemos, para os chineses habitam dragões. Estes albergam um poder extraor-dinário, normalmente muito positivo. Pos-suem uma capacidade de metamorfose ine-xcedível, passando de pequenos a grandes e destes até muito grandes. O movimento de dança e de alegria, como acontece na Dança do Dragão Embriagado, favorece as mutações afortunadas e auspiciosas de ser-pente em dragão.Na Enciclopédia Chinesa Online Baidu (百度百科) somos informados dos vários tipos de dragão. Há-os com corpo de serpente, sem patas, mas também os há: com esca-mas, o jiaolong (蛟龍), que pode ou não ter cornos e vive nas águas dos rios; o qiulong (虯龍), com cornos; o chilong (螭龍) sem cornos, o yinglong (應龍) com asas, e assim por diante. Os tipos de dragão são mais de cem, por isso há algumas classificações úteis, que interessa conhecer. Os pequenos são chamados jiao (蛟), os grandes long 龍. Mas um dragão muito antigo, o hui (虺), rasteja e vive na água. Após quinhentos anos de existência transforma-se em jiao (蛟) e volvidos mil anos em long (龍). Os jiao podem ou não ter cornos e na cultura tradicional chinesa simbolizam uma pes-soa cheia de talento. O dragão com cornos (jiaolong角龍) apenas os recebe após qui-nhentos anos de existência, sendo portanto mais velho. Porém, em termos de idade, não há quem bata os yinglong alados. Eles precisam de mil anos para se transforma-rem em dragões voadores. Pertencem à ca-tegoria dos dragões divinos (shenlong 神龍), que auxiliaram os imperadores da An-tiguidade chinesa. Há ainda outros dragões, bem conhecidos

do público ocidental, como o dragão de fogo (huolong 火龍), do tempo de Pangu (盤古), o titã criado pelo ovo cósmico, que separou o Céu da Terra (kai tian pi di開天闢地); o dragão das nuvens yunlong (云龍), que identificamos rodeado de nu-vens, e o dragão frontal wanglong (望龍), cuja face nos encara.O mais importante a reter é que também o dragão começa pequeno, como uma serpente. Depois vai crescendo e desen-volvendo-se ao longo do tempo. Ganha maturidade e refina-se espiritualmente, de modo a elevar-se nos ares e a voar. Caso não se consiga evoluir mantém-se oculto nas águas. Voltando às histórias da Festividade do Dragão Embriagado, e em especial à pri-meira, o ritmo, o movimento e a dança do pescador embriagado contribuíram de-cisivamente para a transformação de um dragão-serpente aquático, num verdadeiro dragão. Os chineses contam uma história cheia de sentido às suas crianças, que explica a as-censão do dragão a rei celestial. Ele era um animal telúrico. A certa altura soube pela sua amiga centopeia (wugong蜈蚣), que o Imperador de Jade (Yu Huang Dadi玉皇大帝) queria escolher o rei dos animais. Como é óbvio, o dragão desejava ser rei. Distinguia-se a nadar e até a voar, mas ti-nha pela frente um temível adversário, o ti-gre, cujos dentes afiados, garras e força lhe garantiam o domínio da terra. Então a cen-topeia e o dragão arquitectaram um plano para nivelar os dois adversários. Havia que pedir os cornos emprestados ao galo, com a promessa de serem devolvidos mal a no-meação celestial fosse realizada. Se assim não sucedesse, como castigo o dragão não voltaria a pisar a terra e a centopeia rece-beria a sua paga ao ser devorada pelo galo. Quando o tigre e o dragão se apresentaram ao Imperador Celestial, este gostou tanto de ambos, que nomeou o tigre rei da terra e o dragão, dos céus e das águas.Os reis ocuparam os respectivos reinos, mas o dragão não quis devolver os cornos ao galo, porque eram sinal de distinção e maturidade, perdendo a possibilidade de habitar na terra. Quanto à centopeia, não teve outro remédio senão passar a viver es-condida debaixo das pedras.Resumindo, o dragão está longe de ser um animal perfeito e também precisa de cres-cer, ganhar cornos e até voar. Por isso corre atrás da pérola da sabedoria, representada pela lanterna nas danças do dragão.Uma outra história relacionada com a Dan-ça do Dragão vem-nos da Enciclopédia Chinesa Online Baidu (Baidu Baike百度百

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Ecos naturalistas AnA CristinA Alves*

科). Esta situa a génese da Dança do Dra-gão em Shaoxi (苕溪) na Aldeia de Lótus ( He Hua Cun 荷花村), onde havia um lago repleto de flores de lótus, que flores-ciam abundantemente todos os verões. Na margem do Lago dos Lótus vivia um jovem casal. Ele chamava-se Cem folhas ( Bai Ye百葉), ela Flor de Lótus ( He Hua荷花). Do amor entre eles nasceu um belo menino após 999 dias de gestação. Vinha perfei-to, apenas tinha um sinal invulgar: o peito coberto de escamas luminosas. Contadas eram 999. Tratava-se de uma divindade dragão, cuja presença desafiava abertamen-te o governo da descendência do geronte da aldeia. Por isso, o governante e o seu neto planejaram ver-se livres da criança. A mãe ainda conseguiu esconder o ber-ço por baixo das folhas de lótus do lago, após o que foi raptada pelos governantes. Os raptores, com o passar do tempo, des-cobriram que a mãe ia ao lago alimentar o menino, cujo berço era transportado até ela por uma brisa suave. Numa das vezes

em que Flor de Lótus tinha ido dar arroz ao filhho, seguiram-na e o neto do che-fe precipitou-se de faca em punho para a criança, que, transformando-se em dragão, se elevou nos ares, mas ainda foi atingido na cauda. A parte cortada metamorfoseou--se numa borboleta, que voou até à restan-te cauda permitindo-lhe voar. Entretanto, o pequeno dragão emitiu um som e logo se levantou um grande vento que arrastou o agressor e acabou por matar o avô, já que ele ao tentar agarrar o neto, caiu dentro do lago, afogando-se. Depois Flor de lótus viu o seu filho-dragão desaparecer nos céus. A partir de então o episódio passou a ser recordado e come-morado pelos habitantes de Shaoxi com uma dança, na qual recorrem a um dragão construído por flores e folhas de lótus em atenção ao jovem casal e seu bebé-dragão.Indo um pouco mais além nesta história, vemos o destino real de todos os bebés--dragão. Estes ou nascem na China para reinar ou desaparecem nos céus, a fim de

voltar e auxiliar com a sua força divina sem-pre que os governantes necessitem deles.Porém nem todos os chineses apreciam re-almente os dragões. Na verdade há alguns que até os receiam, como prova a história proverbial: Ye Teme o Dragão (Ye Gong Pa Long葉公怕龍). Ye proclamava a todos os ventos a sua devoção ao rei celestial, gover-nante dos ventos e das chuvas, bem como das águas dos mares e dos rios. Por isso a sua casa era um hino decorativo ao dragão. Não havia peça de mobiliário ou de roupa que não tivesse dragões. O dragão celestial sentiu-se lisonjeado e pensou que seria de-licado visitar um crente tão fervoroso. Mal o viu, o adorador lançou-se porta fora em pânico. Para muitos de nós existe uma enorme dis-tância entre as intenções e os actos. Quan-do somos confrontados com um mundo previamente idealizado, fugimos desespe-rados. Só aí percebemos que nos estivemos a enganar a nós próprios e muitas vezes nem sequer o fizemos conscientemente.

Lições de moral à parte, o dragão é um bicho estranho, muito estranho. Compos-to pelo melhor de todos os animais. Ele é uma amálgama imaginária. A sua imagem não simboliza a beleza a olhos ocidentais. Tem cabeça de cavalo e cauda de serpen-te, cornos de veado, orelhas de bovino. Há também quem afirme que possui cabeça de camelo, olhos de coelho, pescoço de co-bra, barriga de molusco, escamas de peixe, palmas de tigre e garras de águia ou de fal-cão, como aparece descrito em Lunheng (《論衡》), uma obra de mitologia, filosofia, ciência e literatura, composta por Wang Chong (王充), em 80 d.C. (龍之象,馬首蛇尾。還有的說龍的形狀是鹿的角、牛的耳朵、駝的頭、兔的眼、蛇的頸、蜃的腹、魚的鱗、虎的掌、應的爪子。) Resta o consolo de que esta estranha cria-tura divina também sofre e tem as suas imperfeições. Deve lutar para chegar a go-vernar. Entra em competição com o tigre e rouba um pobre galo. Tem de amadure-cer e evoluir, passando pelas mesmíssimas dores de crescimento do comum dos mor-tais. Nem ao rei celestial a vida se ofere-ce de bandeja, sorrindo. A sua primazia é constantemente disputada. Deve fugir do mundo para não ser assassinado. Aguarda longos anos, quinhentos de cada vez, a fim de realizar a passagem de pequeno dragão a grande e depois a portentoso. Só após mil anos lhe é permitido voar purificado no Céu, prestando então o auxílio decretado pelo Imperador de Jade ao mundo humano, para o tornar mais próspero, auspicioso e feliz. Por isso prossegue na busca da pérola perfeita da sabedoria, que lhe conferirá a capacidade de governar em equilíbrio, har-monia e paz o mundo chinês e não só...

BibliografiaA Dança do Dragão Embriagado http://zh.wikipedia.org/wiki/%E8%88%9E%E9%86%89%E9%BE%8DOs tipos de dragão: http://baike.baidu.com/view/6392htm魏亞西2013《龍 水族的王》香港:新雅文化事業有公司A origem da Dança do Dragão: http://bai-ke.baidu.com/view/102578htmWang Suoying, Ana Cristina Alves. 2000. Contos da Terra do Dragão. Lisboa: Caminho * A autora lecciona nos Mestrados de Tradução e de Língua e Cultura do Departamento de Português da Universidade de Macau

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13 d e p r o f u n d i s

Pedro Lystmanna revolta do emir

Ler o último livro de Alan Hollinghurst, The Stranger’s Child, pode ser um exercício de masoquismo.Confesso que a minha inclinação para Hollinghurst se prende essencialmente com o seu desenho de frase, finíssimo por exemplo em The Line of Beauty. Neste seu último livro, contudo, encontro me-nos essa capacidade que admiro também tanto na minha velha preferida, a Agusti-na, um dos poucos autores que leio sem enfado. Mas esta ausência não obstou a que este livro sobre um pequeno aconte-cimento passado em 1913 exercesse em mim uma sôfrega teimosia. Mesmo que praticamente nada do que lá se passa me desperte particular entusiasmo, tornou--se necessário lê-lo até ao fim das suas 564 páginas. Inimaginável é que, apenas cerca de um ano mais tarde, tenha surgi-do uma vontade masoquista e inexorável de o reler. Para quê? Será por ser quase Verão e eu associar a história de Daphne a esta es-

tação? Será por, impensável, Wimbledon estar de novo quase ao virar da esquina? Demonstrará uma disposição patológica para a dispersão da mais absurda das esta-ções: quente, imóvel, imoral, impiedosa, seca, memorável?Tal como acontece com Brideshead Revisi-ted, de Evelyn Waugh, o livro de Hollin-ghurst gira em torno de um tempo solar, neste caso um fim de semana, quase tão solar (e ambos homossexuais e britâni-cos) como o potente Verão de Brideshead. É impossível afastar a impressão que o romance de Waugh está na base do de Hollinghurst. Cointreau é uma bebida solar? Dedicar-se-á em breve um texto a esta grave questão.É quase insuportável que tenhamos que viver grande parte do livro sob o peso das recordações de um fim de semana, e que o livro se arraste, deleitosamente, por essa arrogância. Tanto mais arrogan-te quanto a possível revelação de algum episódio secreto que nele se tenha pas-

sado, assim como alguma consequência marcante para o futuro, não desperta mais que uma mole curiosidade. “He himself felt sick of the poem, though still we-arily pleased by his connection with it; bored and embarassed by its popularity, therefore amused by its having a secret, and sadly reassured by the fact that it could never be told”.É difícil, para quem se rendeu incondi-cionalmente aos trópicos, ou aos sub--trópicos, recordar com rigor a vene-ração dispendida ao sol dos pequenos mas intensíssimos Verões da Europa Setentrional. O seu sentido de urgência, oficialmente celebrado na Noite de São João, permite um abuso a que se junta, um pouco mais tarde, inevitavelmente, o cansaço do Verão.Depois do fim de semana (em 1913) nar-rado no início de The Stranger’s Child tudo gira, de um modo deliciosamente inútil, em torno da sua memória e das dúbias qualidades poéticas de Cecil, a sua figura nuclear. É essa aridez, e várias indecên-

cias, que se celebra descomprometida-mente durante a maioria dos seus capítu-los, que o Verão inevitavelmente impõe. Indecente será esquecer Daphne e a sua longa história pessoal mas mais indecen-te seria não ceder ao capricho estival que me leva a fazê-lo. Cecil, o herói prematu-ramente morto leva-nos a lembrar que o Verão é, provavelmente, a única estação do ano que não é o início de nada, antes uma espécie de absurdo cul de sac.O que é que esta gente bebe? Na primei-ra parte, a que conta o fim de semana em que Cecil, poeta e aristocrata de gostos duvidosos, visita Two Acres, a casa do amante e colega de Cambridge, George, bebe-se principalmente clarete e cham-pagne (Pommery se bem me lembro), para além de Cointreau – uma das be-bidas que se consome nos inesquecíveis aposentos góticos de Sebastian, em Bri-deshead.A segunda parte do livro, passada nos anos 20, também se prende com uma recepção, mais exactamente um fim de semana dedicado ao falecido Cecil Teu-cer. Bebem-se Manhattans, gins limão, uísques e Gins Dubonnet.A propósito do Gin Dubonnet, a minha mestra espiritual, Victoria Moore, no seu inultrapassável livro, How to Drink, aqui citado à intoxicada exaustão, refere que a Rainha Mãe mostrava uma inclinação obscena por esta mistura, aparentemen-te próxima do intragável mas ainda hoje muito querida à família real na propor-ção, ao que consta, de 3 partes de gin para 1 de Dubonnet. Recordando as pa-lavras de um amigo, Victoria conta que a Rainha Mãe e a Princesa Margaret, em dada função, beberam quase duas garra-fas de Gin e Dubonnet antes do jantar - com consequências hilariantes para o seu desenrolar. Podemos estar em presença de uma potente poção da longevidade.Na terceira parte do livro, que recai nos anos 60, bebe-se Gin Tónico. Em todas elas, passem-se ou não no Verão, o ál-cool obriga os bebentes a passeios pelos jardins e a flirts inconsequentes. Em todas elas Hollinghurst se entretem a atrair o leitor a uma relação de cumplicidade por este se encontrar em posse de segredos e conhecimentos que várias figuras do ro-mance gostariam de partilhar. É um pou-co maroto insistir nesta armadilha mas não o é muito.No fim, parece que The Stranger’s Child aca-ba por ser uma celebração estival de uma deleitosa inconsequência. Uma sucessão de décadas, flirts, claretes, Gins Dubon-nets e uma vaga nostalgia, mal funda-mentada, pelo passado. Ainda o Verão não entrou já se sente o seu cansaço.

Fadiga do Estio

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t e r c e i r o o u v i d o

Apesar de não ter uma vida demasiado lon-ga, o “synth-pop” anda por cá há tempo sufi-ciente para ter uma história repleta de auroras e decadências, sucessos e desastres, ostracis-mos e reabilitações, desaparecimentos enver-gonhados e regressos anunciados com trom-betas e furor. Desde o final dos anos 1970 até hoje, a música pop que trocou os instrumentos “a sério” por máquinas e computadores percor-reu um caminho sinuoso, às vezes um calvá-rio, para se afirmar e ser respeitada (veja-se o exemplo dos Depeche Mode).

A reverência que os pioneiros do género – Gary Numan, Japan, John Foxx, Soft Cell –, conquistaram devido à originalidade do que fa-ziam e, claro, à capacidade de darem finalmen-te ao mundo grandes canções pop em esquele-tos andróides, nunca foi um capital à prova de ser desbaratado, o que aconteceu logo a partir da segunda metade dos anos 1980, quando o “synth-pop” começou a provar o próprio ve-neno, tornando-se vulgar com a popularidade.

Quase duas décadas depois, numa altura em que as discotecas começaram a encher--se de pessoas fartas de guitarradas e nos que lá andavam crescia o fastio das batidas ininterruptas e monótonas, o “electroclash” recuperou a ideia de usar “sunglasses at ni-ght”, os néon, as “leggings”, as camisolas de

próximo oriente Hugo Pinto

rede, a maquilhagem excessiva e, enfim, os sons e os sintetizadores do “synth-pop”, co-piando os arpejos dos baixos digitais e as poses “new wave”. A moda, estava-se a ver, ia passar rápido, mas a primeira década do segundo milénio não haveria de terminar sem que o panteão dos grandes escultores de canções tivesse lugar reservado a uns “synth-poppers” clássicos: os Junior Boys. Vem este intróito a propósito dos Wander-lust, o projecto principal de dois músicos de Tianjin, Zuo Wei e Liu Di, que se desdo-bram, ainda, pelos Carpet of Let, Echo Vein e Silentcat/Boma Coma, nomes que dão co-bertura a experiências sonoras que não estão relacionadas com o “synth-pop”, ainda que permaneçam no território das electrónicas.

Enquanto Wanderlust, Zuo Wei e Liu Di publicaram um álbum, “Green Orchestra Par-ty”, de 2011 (“synth-pop” “vintage” em que passam bem por uns Soft Cell menos subtis e uns Visage menos lisérgicos, com vocaliza-ções a cargo de humanos com tiques robóti-cos) e uma mão cheia de EP e “singles”, sendo o último de Março deste ano.

Sem a preocupação de coerência que deve encorpar discos de longa duração, o fio con-dutor que liga os diversos temas espalhados por estas edições mais recentes são a vontade

que os Wanderlust têm de refinar os vários gé-neros por onde se aventuram, desde o pulsar “blade runner” de “Unnamed New Creature” até ao “electro” espacial de “Suburb Trip”, pas-sando pelo “techno” – “ambient” e minimal, em “Hear Some Music”, ou em modo de ho-menagem a Detroit, em “Luck Choc”.

Destaque especial para o EP do final do ano passado, “Chehovian Fyodorov Go Exo-tic (...And Back)”, onde os Wanderlust in-cluem uns quantos interlúdios, “diversões mu-sicais”, precisamente, que levam o som da du-pla para outros universos, como o título diz, mais “exóticos”.

Em “Night Landing/Jungle Affair”, o “sin-gle” mais recente, editado há dois meses, ou-vimos os Wanderlust ainda mais embrenhados no exotismo experimental que, há muito tem-po, fascinou Chris & Cosey.

O caminho que os Wanderlust têm vindo a trilhar, não sendo tão acidentado quanto o do género a que se decidiram dedicar e que se resume no início deste texto, é feito de uma evolução constante. De disco para disco, de tema para tema, os Wanderlust vão definindo e alargando o território com novas e inusita-das coordenadas que tornam próximos capí-tulos imprevisíveis. A história não tem que repetir-se.

Em síntEsE

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metrópolisperspectivas Jorge rodrigues simão

A cidAde de Nogales é dividida ao meio por um muro com arame farpado, pertencendo a parte norte ao condado de Santa Cruz, estado do Arizona e a parte sul é um município do estado de Sono-ra, no México. Sendo irmãs umbilicais, a sua economia e estrutura político-social é muito diferentes, criando uma desigual-dade única na economia do Rio Grande que faz a fronteira entre os Estados Uni-dos e o México.

A cidade americana tem um rendi-mento médio anual por família de cerca de trinta mil dólares. A maioria dos ado-lescentes frequentam a escola e a maioria dos adultos completaram o ensino mé-dio.

Apesar de todas as críticas e argumen-tos levantados contra o deficiente siste-ma de saúde dos Estados Unidos, a popu-lação é relativamente saudável, com uma alta expectativa de vida para os padrões globais. Muitos dos habitantes tem idade acima dos cinco anos e acesso ao “Me-dicare” que é um sistema de seguros de saúde, cujos beneficiários são pessoas de idade igual ou superior a 65 anos, ou que tenham um determinado rendimento, ou portadores de deficiências, ou ainda em estado final de doença renal.

O “Medicare” é um dos muitos servi-ços que o governo americano presta, tal como a energia eléctrica, telefones, siste-ma de esgotos, saúde pública, rede viária que os ligam a outras cidades da região e ao resto dos Estados Unidos, bem como mantém a lei e a segurança.

A população da cidade americana pode exercer as suas actividade diárias sem ter de recear pela sua vida ou segu-rança e sem estarem continuamente an-siosas com medo de serem roubadas ou expropriadas, ou de outra qualquer situ-ação que possa comprometer os investi-mentos realizados nos seus negócios ou moradias.

Os habitantes da cidade americana, tem como dado adquirido, apesar da ocasional ineficiência e corrupção, de o governo os representar. Têm o direito de votar e substituir o presidente da muni-cipalidade, deputados e senadores, bem como exercer o mesmo direito nas elei-ções presidenciais que determina quem vai governar o país. A democracia é a sua segunda acepção ou natureza.

A poucos metros de distância a sul, a vida na cidade mexicana é muito diferen-

Estranhosna sociEdadEquE aliEnate. Os seus habitantes, ainda que vivendo num dos locais mais prósperos do Méxi-co, o rendimento médio anual por família é um terço do auferido na cidade ameri-cana. A maioria dos adultos não tem o ensino secundário completo, e muitos adolescentes não frequentam a escola.

As mães têm de se preocupar com as altas taxas de mortalidade infantil. As más condições de saúde pública não causam surpresa pelo facto dos morado-res da cidade mexicana não terem uma vida tão longa como a dos seus vizinhos americanos, assim como não têm acesso a muitos outros serviços e equipamentos públicos. As estradas estão em péssimo estado ao sul do muro.

A lei e a segurança estão em piores condições. A taxa de criminalidade é alta, e exercer uma actividade comercial é algo de arriscado, correndo os comer-ciantes não apenas o risco de serem rou-bados, mas para obterem todas as autori-zações necessárias à licença de exercício da actividade têm de “olear” muitas mãos, não sendo por consequência uma tarefa fácil.

Os habitantes da cidade mexicana, convivem diariamente com políticos cor-ruptos e ineptos, onde em contraste com os seus vizinhos do norte, a democracia é uma experiência muito recente. A cidade mexicana, assim como o resto do México esteve sob controlo do corrupto Partido Revolucionário Institucional (PRI) que deteve o poder desde 1929 até 2000.

As reformas políticas apenas surgiram após 2000, quando o candidato do PRI foi derrotado nas eleições presidenciais de 2000, por Vicente Fox Quesada, do Partido da Acção Nacional. O PRI con-quistou novamente o poder nas eleições presidenciais de 1 de Julho de 2012, com a eleição de Enrique Peña Nieto, como presidente.

A questão que se coloca é a de saber como podem as duas partes do que é es-sencialmente a mesma cidade serem tão diferentes? Não existem diferenças geo-gráficas, de clima ou de tipos de doenças predominantes na zona, uma vez que os vírus e bactérias não sofrem quaisquer restrições nos seus percursos de ida e vol-ta entre os Estados Unidos e o México.

As condições de saúde entre as duas cidades são muito diferentes, não sendo de considerar em alto grau, o factor am-biental da doença, apesar dos habitantes da cidade mexicana viverem em condi-ções sanitárias inferiores e não terem um digno sistema de cuidados de saúde.

A resposta não está no facto dos habi-

tantes de ambas as cidades serem muito diferentes, nem pelo no facto dos habi-tantes da cidade americana serem des-cendentes dos imigrantes provenientes da Europa e os habitantes da cidade me-xicana serem descendentes dos astecas.

A origem das pessoas de ambos os la-dos da fronteira é bastante semelhante. Após o México se tornar independente de Espanha em 1821, a zona ao redor das duas cidades fazia parte do estado mexicano da “Velha Califórnia” e assim permaneceu após a guerra mexicano--americana de 1846 a 1848, baseada na ideia de que a América tinha um direito natural atribuído por Deus, de alargar as suas fronteiras de costa a costa.

O resultado foi o facto dos Estados Uni-dos terem alargado o seu território em um quarto e o México perder metade da sua superfície. A compra de Gasden, em 1953, que constitui o sul dos actuais Estados de Arizona e Novo México fez estender a fronteira dos Estados Unidos a essa zona.

O belo vale das duas cidades divididas foi descoberto por mero acaso por um oficial do exército americano, quando fa-zia o levantamento da fronteira entre os Estados Unidos e o México e foram de-pois construídas as duas cidades dado ser um local privilegiado.

Os habitantes das duas cidades têm efectivamente a mesma cultura, pois têm antepassados comuns, gostam da mesma comida e música. Existe uma explicação simples para a existência de diferenças entre as duas cidades e que consiste na sua fronteira.

A cidade americana beneficia da existência das instituições económicas do país que permite aos seus habitantes escolher de forma livre a sua profissão e a ter acesso à instrução e formação. Os empregadores são incentivados a investir na melhor tecnologia disponível.

Os trabalhadores recebem melhores salários, tem acesso às instituições po-líticas, podendo participar desse modo no processo democrático, eleger os seus representantes e os substituir quando violem as regas do jogo democrático. Os políticos providenciam os serviços bási-cos, desde a saúde pública à rede viária, passando pela lei e segurança dos habi-tantes.

Os habitantes da cidade mexicana não desfrutam da mesma sorte, pois vi-vem num diferente mundo, regulado por instituições distintas, que criam estímu-los muito divergentes entre os habitantes das duas cidades e para os investidores e empresas que queiram investir.

Os incentivos criados pelas distintas instituições das duas cidades e dos países a que pertencem cada uma são a resposta para a diferença económica e político--social dos dois lados da fronteira.

Existem mais de onze milhões de imi-grantes ilegais nos Estados Unidos, dos quais 60 por cento são mexicanos, impor-tando uma despesa anual de dez mil mi-lhões de dólares, a triplicar se a situação for legalizada. A fronteira entre os Estados Unidos e o México separa o mundo rico do pobre e tem uma extensão de cinco mil quilómetros, controlado continuamente por guardas altamente treinados e sofisti-cado equipamento electrónico.

A segurança fronteiriça existente não impede que diariamente milhares de me-xicanos e outros sul-americanos tentem a sua sorte, levando a uma explosão demo-gráfica sem precedentes, pois além dos mexicanos, são multidões de pessoas de outros países que se dirigem à mesma re-gião, criando grandes locais de pobreza.

A continuar este ritmo de imigração ilegal, nos próximos 25 anos é de prever que 40 por cento da população mexica-na viva junto à fronteira com os Estados Unidos. A fronteira é um foco também de conflitos permanentes não apenas pela imigração ilegal, mas pelo tráfego de drogas, armas e branqueamento de capitais.

A prosperidade económica faz que muitos habitantes e recém chegados de toda a América do Sul à cidade mexicana de Nogales tentem passar para a cidade gémea do norte, sendo muitos mortos pela guarda e fazendeiros americanos. Um fazendeiro segundo registos oficiais, deteve três mil imigrantes ilegais em cin-co meses. À cidade americana a despesa com processos relacionados com acusa-ções, roubos e outros delitos são superio-res a 16 milhões de dólares anuais.

O êxito económico dos Estados Uni-dos que faz correr os imigrantes ilegais reside no facto das suas instituições te-rem maior capacidade para atingir tal fim e à forma como as sociedades se forma-ram no período colonial. A diferença ins-titucional que continua a existir só pode ser entendida com o estudo da fundação das colónias nas Américas.

“What, indeed, is a New Yorker? Is he Jew or Irish? Is he English or German? Is he Russian or Polish? He may be something of all these, and yet he is wholly none of them. Something has been added to him whom he had not had before. He is endowed with briskness and an invention often alien to his blood. He is quicker in his movement, less trammeled in his judgment...The change he undergoes is unmistakable, New York, indeed, resembles a magic cauldron. Those who are cast into it are born again.”

American SketchesCharles Whibley

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metrópolis Tiago Quadros*

Ao AbordArem os sistemas compu-tacionais, Eisenman e Gehry acabaram por produzir caminhos muito claras na evolução da arquitectura. No caso de Eisenman, a motivação fundou-se na ne-cessidade de encontrar um dispositivo – nomeadamente a estrutura do ADN – e partindo desse mesmo dispostivo, criar um diagrama para um edifício. A simples ideia de que o Desconstrutivismo era uma extrapolação do Cubismo não é to-talmente rigorosa. Com efeito, Eisenamn estava interessado em aplicar uma ideia de linguagem, ao criar um projecto no qual cientistas-utilizadores pudessem ler o ADN do edifício. Ao trabalhar na Uni-versidade do Ohio, Eisenmam procurou apoio no departamento de computado-res com vista à produção de iterações (processo chamado na programação de repetição de uma ou mais acções) da se-quência do ADN para criar uma planta diagramática do edifício. Os diagramas abstractos eram enviados via FedEx (no ano em que a FedEx foi criada) do Estado do Ohio para Nova Iorque, onde, no seu escritório, Eisenamn redesenhava para depois reenviar para Ohio, onde eram geradas mais iterações. A computação ajudou Eisenamn a encontrar estruturas mais profundas. O seu uso do compu-tador, enquanto técnica, consiste numa estratégia análoga ao processo através do qual ocorrem as sequências do ADN.A importância da abordagem arqueológi-ca do Canadian Centre for Architecture está bem patente em todo este processo. Eisenman insiste que a sua abordagem foi intuitiva, pragmática. Numa entrevista com Greg Lynn, o arquitecto norte-ame-ricano referiu que quando dava aulas no Ohio conheceu Chris Yessios que dava aulas de computadores. Eisenman con-fessou a Yessios o que andavam a fazer no atelier e que sonhavam poder mode-lar os objectos que queriam construir. O arquitecto desafiou o professor de com-putadores a desenvolver um programa que desenvolvesse a modelação a 3D. Na sequência deste encontro, Yessios acaba-ria por desenvolver o FormZ, que não só é usado na realização de modelação a 3D como também em animações realizadas em Hollywood.Mas o arquitecto também mudou a na-tureza da representação da arquitectura em termos de tipologias. Eisenman vê o seu uso inicial dos computadores, e em particular o concurso para o Biozentrum (o Centro de Biologia na Universidade Goethe, em Frankfurt, desenhado em

ArqueologiA do digitAl ii1987) como uma parte da evolução de um princípio fundamental da sua arqui-tectura. Foi para ele o meio para o de-senvolvimento de um determinado tipo de representação. Através do diálogo com o computador, um princípio chave organizacional, que pode ser repetido e adaptado, emergiu.Por seu lado, a utilização que Gehry faz dos computadores é muito mais radical. O

arquitecto norte-americano é o proprietá-rio de um software destinado à exploração de formas arquitectónicas através do de-senho que é descrito pelo próprio como a experiência mais próxima e genuína do desenho aplicado ao computador. Os estudos para a Lewis House, realizados entre 1985 e 1995, foram inicialmente testados por intermédio de maquetas físi-cas, mais tarde digitadas em computador.

Os ficheiros foram depois trabalhados em impressoras 3D, tendo, a partir daí, sido realizadas maquetas em materiais lami-nados. Numa fase posterior, Gehry usou o feltro, endurecendo-o com cera, para reproduzir algumas das maquetas. A se-guir digitalizou-as e tentou reconstruí-las. Todo o processo de intercâmbio entre a construção de modelos físicos, desenho e modelagem digital, significou para Gehry um potencial exploratório sem limites.Poder-se-ia dizer que, tanto Eisenamn como Gehry chegam aos computadores com o objectivo de encontrarem solução para os seus problemas. Gehry afirma que a sua motivação foi alcançar resultados que lhe permitissem resolver problemas construtivos. Depois de desenvolver pro-jectos com recurso à geometria descriti-va, Gehry ficou desapontado por desco-brir inconsistências nos resultados finais. Foi com essa noção que Frank Gehry abordou o seu colaborador Jim Glymph para trabalhar numa solução que resol-vesse o problema. Glymph trouxe até à equipa de colaboradores de Gehry o sof-tware CATIA, que estava a ser usado na indústria de aviação, e em conjunto de-senvolveram as ferramentas necessárias para que o software em questão pudesse ser tambbém usado em arquitectura.Se a associação história entre computa-ção e arquitectura (que teve origem em Cambridge e mais tarde nos Estados Unidos) consistiu numa tentativa de fa-zer afirmar a natureza científica da arqui-tectura, é irónico que Gehry, seguindo uma direcção contrária – procurando desenhar arquitectura como quem dese-nha arte – tornar-se-ia um dos mais bem sucedidos utilizadores dos computadores em arquitectura. De algum modo, a obra de Gehry aproxima-se de uma delicade-za, que provém do desenho, comum ao trabalho de artistas como Richard Serra. Contudo, o arquitecto norte-americano defende que os artistas estão a ganhar terreno em relação aos arquitectos. Com a arquitectura a não assumir a sua di-mensão escultórica, no contexto urbano, muitos têm sido os artistas convidados a intervirem nas cidades. Um desses exem-plos é a ArcelorMittal Orbit, considerada a escultura mais alta do Reino Unido, de-senhada por Anish Kapoor e Cecil Bal-mond, que Gehry vê como uma resposta política a um desafio sem sentido.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitecturapela Faculdade de Arquitectura da UniversidadeTécnica de Lisboa

estrAnhosnA sociedAdeque AlienA

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gente sagrada José simões morais

Julgando concluída a in-trodução ao deus Sin Fong, conhe-cido em mandarim por Xian Feng Yang Ye, história descrita na semana passada e incluída na rubrica Gen-te Sagrada, descobrimos aí apenas meia história.Em Macau, o nome deste deus apa-receu-nos no início escrito como Sin Fong, mas no desdobrável Macau Temple Civilization - Celebração do Templo, aí encontrámos no texto em inglês, os nomes Sin Fung e Sin Feng, sendo Feng do mandarim.Pensávamos ter o representante do deus sintonizado mas, ao comparar duas imagens existentes em dois di-ferentes templos de Macau, apare-ceu-nos a dúvida se o caminho era o caminhar, ou haveria O caminho. E nesse espelho seria o pai a represen-tar o deus, ou é o filho o deus aqui retratado?Tendo no anterior artigo referido ser o general Yang, Xian Feng Yang Ye, procuramos dar justificação à hipó-tese de o Capitão Yang Yanzhao da dinastia Song do Norte representar esse deus, o Pioneiro, o que tudo sabe em primeira mão.Filho do general Yang e de She Saihua, Yang Yanzhao era também conhecido por Yang Liulang, pois o sexto filho homem da família Yang (Liu=seis Lang=homem de apelido Yang). Esta versão da História dos Song tem em outros livros diferen-te narração, que o dão como sendo o filho mais velho do general Yang. Devido ao respeito e medo que o povo Khitan tinha a Yang Yanzhao, este tornou-se o sexto filho da estre-la, conhecido pelos Khitan por Liu-lang xing, correspondente a Sírius, estrela pertencente à constelação do Grande Cão e a mais brilhante do Céu.Yang Yanzhao, ou Yang Liulang, nasceu em Taiyuan, actual província de Shanxi, no ano de 958 e morreu em Baoding, Hebei, com 56 anos no dia 9 de Fevereiro de 1014. Ainda jovem, seguia para o campo de bata-lha com o pai, Yang JiYe, então ge-neral dos Han do Norte (951-979) presenciando muitos combates. Mais tarde, já ao serviço da dinas-tia Song, o seu pai colocou-o como capitão a comandar o grupo inicial nas batalhas, nessa altura contra os mongóis da dinastia Liao (Khitan). Como excelente guerreiro vencia sempre mas, modesto, atribuía as vi-

tórias ao seu exército e distribuía as ofertas e despojos aos soldados. Pas-sou a ser conhecido pelo Pioneiro.Porque o general Yang JiYe provo-cava um grande terror aos soldados da dinastia Liao, quando este mor-reu o imperador Song colocou Yang Yanzhao na fronteira Norte, em Baoding, Hebei. Assim conseguia manter à distância o exército Liao, pois bastava ouvir o nome Yang e um enorme receio desmoralizador se abatia sobre os soldados Liao. Es-teve assim a dinastia Song sem pro-blemas de invasão mais de 20 anos, onde em Baoding, no ano de 1014, Yang Yanzhao com 56 anos passou desta vida.Cem anos depois, em 1115, os mon-góis da dinastia Liao foram depostos pelos manchus da tribo Jurchen, que criaram a dinastia Jin (1115-1234). Em 1126, os Jin conquistaram a ca-pital Kaifeng aos Song do Norte e estes obrigados a deslocar-se para Sul, no ano seguinte estabeleceram--se em Hangzhou, criando a corte da dinastia Song do Sul.Entre 1127 a 1130, a dinastia Song do Sul construiu treze fortalezas a Norte como linha de defesa, mas com o exército Song ainda inferiori-zado pelas derrotas sofridas contra a dinastia Jin, o imperador Gaozhong resolveu colocar a imagem do capi-tão Yang em cada uma das fortale-zas, para dar força anímica aos sol-dados. Também para cada um dos grupos de militares havia uma tabui-nha com o nome do general Yang, depois transportada para as casas e usadas para proteger as famílias.A chegada ao Sul da China de um Capitão, ou General do Norte, como protector contra o invasor, permite-nos como hipótese desco-brir este deus acompanhando na fuga a corte nómada dos Song do Sul, perseguida pelos mongóis da dinastia Yuan. Após a batalha naval, quedaram-se os sobreviventes em pequenos aldeamentos nas proxi-midades e outros, num caminhar até Mong-Há, aí ficaram a viver com a ajuda da imagem do deus Sin Fong, sentindo-se assim seguros contra os invasores. No Tou Tei Miu situado no antigo Largo do Pagode do Patane, entre as ruas da Palmeira e da Pedra, existe no recinto um pavilhão dedicado ao Deus Sin Fong e é daí a imagem que acompanha hoje o texto.

Sin Fong Sano deus pioneiro先锋神

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Huai NaN Zi 淮南子 O LivrO dOs Mestres de Huainan

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2013L e t r a s s í n i c a s

Acção e repouso são as dobradiças do lucro e da perda.

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actu-al Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de en-sinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Prín-cipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Tho-mas Cleary e por si traduzida em Taoist Clas-sics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guer-ra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitula-da “Miscellaneous Schools”.

Do EstaDo E Da sociEDaDE – 49

A Via dos sábios assemelha-se a colocar uma barrica de vinho numa encruzilhada, quem passa tira mais ou menos, consoante as suas necessidades individuais.Assim, conquistar uma pessoa é a melhor forma de conquistar cem pessoas. Se as pessoas lidarem com os seus inferiores nos mesmos termos em que desejam ser tratadas pelos seus superiores, quem não se mostraria grato? Se as pessoas trabalhassem para os seus superiores nos mesmos termos do que desejam dos seus inferiores, quem não se mostraria contente?

* * *

Um antigo sábio avisou: “Sê cuidadoso com cada dia que passa, o mais cuida-

doso possível. Ninguém tropeça numa montanha, mas tropeça-se em ninhos de formigas”. O facto das pessoas não ligarem a pequenos problemas e a as-suntos subtis é a razão mesma de terem tantos arrependimentos. Preocupar-se com um problema depois de este ter acontecido é como um homem doente que procura tratamento apenas quando a sua situação se tornou crítica.

* * *

Sempre que dão início a projectos, as pessoas invariavelmente começam por usar o seu conhecimento para ponderar e aferir, só depois se atrevendo a definir uma estratégia. As coisas podem correr bem ou correr mal; tal é a diferença entre os tolos e os sábios. Claramente, é natural considerar a

sabedoria como o factor chave na questão da sobrevivência ou da des-truição, as portas da calamidade e da fortuna. São inúmeros aqueles que a tentaram usar, para depois caírem e se afogarem em dificuldades.Se soubesses como fazer aquilo que é certo, todos os projectos poderiam ser realizados.Assim, a sabedoria e a reflexão são o portão e a porta da calamidade e da fortuna, acção e repouso são as dobra-diças do lucro e da perda. A evolução das coisas e o governo das nações só se concluem depois de uma espera. Aqueles que não se afogam em dificuldades são bem sucedidos; como tal, é imperativo ser cuidadoso.

tradução de Rui cascais ilustração de Rui Rasquinho

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