h - suplemento do hoje macau #80

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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2824. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE O FUMO FATAL IMPERIALISMO BRITâNICO

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 5 de Abril de 2013

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PARTE inTEgRAnTE DO HOJE MACAU nº 2824. nÃO PODE SER VEnDiDO SEPARADAMEnTE

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Habituados a ob-servar potências eu-ropeias a escravizar e colonizar diversos espaços pelo globo, a totalitária China da dinastia Qing não estava interessa-

da em negociações com os países ocidentais. Para além de querer manter distância em ter-mos diplomáticos e relacionais, não sentia ne-cessidade de importar nenhuma manufactura ocidental, ou seja, não dependia de nenhuma importação.Vários países europeus, contudo, faziam co-mércio com a China pois tinham interesse

em produtos chineses, principalmente no chá, porcelana e seda. Estes produtos eram particularmente apreciados pelos britânicos.A atitude chinesa não era bem vista por parte da Grã-Bretanha que se exibia perante a Eu-ropa como potência hegemónica dominan-te. Uma vez que a Grã-Bretanha importava da China grandes quantidades de chá, seda e porcelana, via a sua balança comercial bas-tante desequilibrada com vantagem para os chineses. Isto aconteceu até se aperceberem de um produto altamente lucrativo plantado na sua colónia Índia que podia vir a interessar aos chineses: o ópio. Para além de lucrativo, este produto tinha também o poder de en-fraquecer em larga escala este país-continen-te que se afigurava tão interessante enquanto mercado para as potências europeias. Com a introdução e rápida propagação do ópio na

sociedade chinesa, o governo de Pequim de-cidiu proibir a comercialização do narcótico que estava a ser devastador e a constituir um dos mais graves problemas de saúde pública da história do país. Esta decisão é vista pelo governo britânico como uma afronta às suas liberdades comerciais. Após a introdução, comercialização e disseminação do ópio na China Em 1839 a Grã-Bretanha declara a Primeira Guerra do Ópio. A sua narrativa oficial recai na importância da abertura das portas da China ao comércio internacional, por uma questão de ordem, estabilidade e paz. Este ensaio pretende refutar a tese da paz pelo comércio aludindo a este contexto histórico. Quando analisada objectivamente a situação económica internacional da épo-ca, o interesse comercial da Grã-Bretanha na China era mais do que evidente. Cons-

Sara F. Costa

Ópio e Hegemonia o imperialismo britânico na cHina contemporânea

O mandatáriO Oficial para erradicaçãO dO

ópiO na china, lin Ze Xu, chegOu a pedir à rainha

Vitória que esta se encarregasse de suprimir

O cOmérciO dO ópiO nãO só na china cOmO nOs

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tituía um grande mercado e, se enfraquecido e dominado, mais uma colónia com muita mão-de-obra a explorar. Ou seja, por detrás de uma narrativa que desejava apenas uma ordem dita moderna, mundial e que, acima de tudo, conduzia à paz, existia um acen-tuado interesse material no mercado chinês que não fosse prejudicial como o era para os britânicos até à data. Para além do interesse material, o interesse soberano também esta-va presente, não estivesse ele representado naquela que viria a ser a colónia britânica de Hong Kong.

O MandatO dO Céu e O SiSteMa de CantãOO isolamento do governo de Pequim cons-tituía um modelo económico paralelo ao modelo ocidental não se coadunava com a crença generalizada na Europa do séc. XIX de que a integração numa ordem interna-cional de direito e de comércio era a única possibilidade de um estado soberano ser reconhecido como civilizado e, consequen-temente, como pacífico – já que se tornaria transparente, previsível e, segundo Palmers-ton, moderno (Palmerston, 1840).Contudo, o Império de Qing não partilha-va esta crença. Por esta altura O Mandato do Céu[i] (天命, em Pinyin: Tianming)[ii] era ainda o modelo de governação seguido. De acordo com este modelo, a diplomacia e o

comércio internacional eram formas de re-conhecimento da proeminência chinesa. O mandato não implicava obrigatoriamente uma relação bélica com os povos vizinhos. Tal como os Estados Unidos, a China acha-va ter um papel especial na ordem universal e todos eram livres de usufruir dos privilé-gios que transmitia o contacto com a sua cultura. Contudo, em antítese aos Estados Unidos, nunca manifestou desejo de disse-minar os seus valores pelo mundo: limitava--se a conseguir que os estados estrangeiros se considerassem Estados Tributários da China.O comércio internacional entre os chine-ses e os estrangeiros formou o primeiro lo-cal de encontro Sino-ocidental da era mo-derna. Ainda que o porto Xiamen em Fu-jian, tenha constituído a principal porta de trocas comerciais com o Sudeste Asiático e a costa chinesa, após 1759 Guangzhou tornara-se porta oficial para os encontros com europeus.O “Sistema de Cantão” como ficou conhe-cido no ocidente, foi organizado a partir de linhas tipicamente chinesas: o governo comissionava uma das famílias chinesas de

Lin faz um uLtimato à

Grã-Bretanha em que

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mercadores para atuarem como controlado-res das trocas comerciais com o estrangeiro. Estes mercadores formavam uma associa-ção conhecida por Cohong, que respondia ao comando de um oficial especialista no comércio de Guandong, normalmente um manchu enviado da corte imperial em Pe-quim, conhecido pelos estrangeiros como o Hoppo. Os Cohong e o Hoppo tinham a tarefa de taxar as importações dos estrangei-ros e especialmente as exportações de chá e seda.Até 1834, quando a Companhia Britânica das Índias perdeu o apoio real para monopolizar as trocas comerciais com a China, a Compa-nhia tinha-se adaptado a este particular Siste-ma de Cantão. Durante as épocas de trocas, o conselho de diretores da Companhia Britâ-nica das Índias em Londres vivia na “British Factory” (centro de comércio e residência), nos bancos do rio, fora da grande capital de Guangzhou, de Outubro a Março. Na época sem trocas de Abril a Setembro, eles retira-vam-se para o único espaço chinês conces-sionado a europeus, a cidade portuguesa de Macau.Para os chineses, a acumulação de interesse europeu na costa sudeste exigia um método eficiente para lidar com os “bárbaros do mar ocidental” como eram oficialmente designa-dos.

Habituados a observar potências europeias a es-cravizar e colonizar diversos espaços pelo glo-bo, a atitude totalitária de Qing não estava inte-ressada em grandes negociações com os “merca-dores bárbaros”. Não era autorizada a concessão de um espaço de representação estrangeira na capital – embaixadas[iii] - e raramente eram ad-mitidos à corte em Pequim representantes es-trangeiros. Quando tal acontecia, era expectá-vel que estivessem familiarizados com o ritual de prostração perante o imperador[iv].

Este ritual de prostração é um importante de-talhe na missão britânica liderada por George Macartney em 1793 a Pequim para conhecer o imperador Qianglong. O seu objetivo era pe-dir que o império Qing respeitasse aqueles que eram na altura os direitos internacionais míni-mos dos quais a Europa gozava em quase todo o resto do mundo: comércio livre, embaixadas permanentes e igualdade de soberania. Até en-tão os europeus não tiveram outra opção a não ser reduzirem-se ao papel de suplicantes na ordem tributária chinesa – o comércio com os bárbaros era considerado não mais do que um tributo ao grande Império do Meio. A Missão Macartney foi um fracasso a vários níveis, uma vez que apelando e tentando demonstrar a

superioridade técnica e científica do ociden-te, não conseguiu levar a cabo nenhuma das negociações que lhe tinham sido encomenda-das. Esta atitude chinesa era particularmente ofensiva para a Grã-Bretanha mas o PIB da China era ainda mais ou menos sete vezes o da Grã-Bretanha e daí o imperador considerar que era Londres que precisava de ajuda e não o contrário (Maddison, 2006).As potências ocidentais em ascensão não to-lerariam por muito mais tempo um mecanis-mo diplomático que se referisse a eles como “bárbaros” que pagavam tributo ou um co-mércio sazonal apertadamente regulado num único porto. Depois da missão Macartney a Grã-Bretanha do topo civilizacional do oci-dente, ficara particularmente ofendida.

uMa úniCa OrdeM Mundial – dO COMérCiO para a pazCom a balança comercial desequilibrada face ao desinteresse chinês pelas manufacturas britânicas, a insistência na importação sem restrições de ópio para a China foi a solu-ção encontrada por estes para conquistarem finalmente o mercado chinês. O ópio foi in-troduzido de forma ilícita e com o propósito claro de viciar a população chinesa no único produto que poderia apresentar lucros para a Grã-Bretanha.Quando o ópio começou a circular no país,

Pequim fez uma tentativa de regulação e ven-da do produto. Contudo, a destruição pro-gressiva das populações e os problemas de saúde pública que rapidamente se tornaram visíveis um pouco por todo o país, levaram a corte a proibir a sua comercialização. Para uma Grã-Bretanha que começava a proibir a globalização da escravatura (da qual tinha sido, paradoxalmente, percursora) de forma a afirmar a sua superioridade moral perante o resto da Europa, a comercialização do ópio provocava aos ocidentais uma certa sensa-ção de embaraço. Mas não era só do ponto de vista ocidental que a comercialização do ópio era vista como um embaraço. O man-datário oficial para erradicação do ópio na China, Lin Ze Xu, chegou a pedir à rainha Vitória que esta se encarregasse de suprimir o comércio do ópio não só na China como nos territórios indianos da Grã-Bretanha de onde os relatos de degradação profunda pro-vocada pela massificação do uso da droga se faziam já ouvir um pouco por todo o mundo (Tse-hsu, 1839). Lin faz um ultimato à Grã--Bretanha em que ameaçava acabar com a exportação dos produtos chineses caso os britânicos não acabassem com a comerciali-

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zação do ópio. Certo de que o grande império chinês não poderia sofrer retaliações de maior, a corte chinesa subestimou as capacidades mili-tares estrangeiras já bem mais desenvolvidas que as chinesas – que nunca teve que travar grandes batalhas depois da unificação do império devido a formas mais requintadas de ligar com a guer-ra, como as que podem ser estudadas no clássico Arte da Guerra de Sun Tzu. Séculos de supre-macia tinham distorcido o sentido da realidade da Corte Celestial. A pretensão de superioridade só acentuava a humilhação inevitável (Kissinger, 2011).O comissário britânico Palmerston escreve de volta para a corte chinesa e defende clara-mente o seu ponto de vista: os sistemas legais chineses tinham, de acordo com os princípios jurídicos ocidentais, caducado há muito tempo e, por isso, o próximo passo do Governo Bri-tânico era o de enviar de imediato uma armada para bloquear os principais portos chineses, tomar «todos os navios chineses que possa en-contrar» e tomar «uma parte conveniente do território chinês» até Londres obter satisfa-ção. (Palmerston, 1840). [v] Os resultados da interação entre a esmagadora força ocidental e a gestão psicológica típica da China, resul-tou em dois tratados: o Tratado de Nanjing e o Tratado de Bogue. A China tinha que pagar à Grã-Bretanha seis milhões de dólares de in-deminização, ceder Hong Kong e abrir cinco portos costeiros em que seria permitida resi-dência e comércio ocidentais (Guangzhou, Ningbo, Shanghai, Xiamen e Fuzhou).Chegara ao fim o “Sistema de Cantão”. Os britâ-nicos obtiveram ainda o direito de fazer comércio directo que não passasse por Pequim e o poder de exercer jurisdição sobre os seus nacionais resi-dentes nos portos chineses do tratado. Isto signi-ficava que os comerciantes de ópio estrangeiros estariam sujeitos às leis dos seus próprios países e não da China. Este princípio de «extraterritoria-lidade» acabou por representar o declínio do po-der imperial. A seguir às concessões permitidas à Grã-Bretanha, muitas outras potências ocidentais

quiseram vir reclamar o seu pedaço. O Mandato de Céu terminara e fora substituído pelo concei-to ocidental de Soberania.

A tese dA pAz pelo comércioA tese da paz pelo comércio defende que este reduz a probabilidade de conflitos armados en-tre estados numa lógica de interdependência em que o liberalismo comercial assume um pa-pel central na condução à paz, ultrapassando desta forma a lógica conflitual defendida pelos teóricos realistas. A organização do comércio internacional (WTO) apresenta vários argu-mentos que fundamentam o facto de que o co-mércio entre estados soberanos conduz à paz, nomeadamente defende que os comerciantes têm menos tendência para gerar conflitos com os seus clientes (World Trade Organization, 2003: 2); o segundo argumento é o de que as disputas são tratadas de forma construtiva nos procedimentos das instituições e organizações. Os adeptos da paz liberal argumentam que a interdependência reduz o conflito porque o conflito reduz as trocas comerciais. Interde-pendência económica promove a paz porque o conflito é inconsistente com laços económicos que promovam o benefício mútuo (Polachek & Xiang, 2008).A tese foi, contudo, ao longo do tempo mudando de base empírica. Num primeiro tempo em que o conceito operativo essencial se chama “vanta-gens comparativas”. É o tempo da vida econó-mica internacional que ficou conceptualizado nas teorias tradicionais do comércio internacional. Cada Estado explora as vantagens competitivas que tem no sistema internacional. Onde dantes tínhamos unidades políticas, temos agora unida-des económicas. A partir dos anos 80 esta passa a ser uma malha de relações bilaterais sendo assim a globalização a perda desta referência nacional.A guerra anglo-chinesa foi apresentada pelo go-verno britânico como um processo necessário em que os fins justificavam os meios. Apesar do uni-versalmente reconhecido fracasso ético e moral da disseminação ilícita de um narcótico com vista

à abertura forçada de um estado às legislações do comércio internacional, o pedido de desculpas oficiais pelo Reino Unido nunca foi formaliza-do, nem mesmo aquando da recuperação da so-berania de Hong Kong pela República Popular da China em 1998. A imposição de uma única ordem mundial do comércio defendia um mundo mais pacífico mas neste episódio histórico pode-mos observar que após a abertura ao comércio livre, as invasões e tentativas de colonização por parte das potências ocidentais continuaram a fo-mentar a guerra na China numa lógica de expan-são de poder e de soberania.

________________________________[i] O Mandato do Céu tem as suas origens no pensamento confuciano desenvolvido por Men-cius (372 – 289 a.C.) e foi seguido desde então como forma de justificar a legitimidade dos im-peradores.[ii] Pinym e Wade-Giles são os dois sistemas de romanização da língua chinesa utilizados neste trabalho.[iii] Exceção feita à Rússia, já que os seus avan-ços no leste representavam uma ameaça iminente para a China. Em 1715 os Qing concederam a possibilidade da instalação de uma missão orto-doxa russa em Pequim.[iv] Conhecido como Cautau, o ato de prostra-ção perante o imperador era uma forma de sauda-ção ou de veneração ao imperador que implicava tocar com a testa no chão três vezes.[v] «Lord Palmerston to the Minister of the Em-peror of China» (Londres, 20 de fevereiro de 1840) Consultado emhttp://www.chinaforeig-nrelations.net/node/247 [19 de Novembro de 2012]

A tese dA pAz pelo comércio defende que este reduz A

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NietzschiaNismos, aNtiNietzschiaNismos,pietismos e solidarismos…No entanto, há cerca de dez anos, o brasi-leiro Massaud Moises, publicou um artigo1

que, embora em título se fique pela interro-gativa, “Serão Inquieto: anti-Nietzsche?”2, no interior afirma, e peremptoriamente, que sendo o pensamento do autor de “O nascimento da Tragédia” o que considera que é, o “Serão inquieto” de Patrício será sobretudo uma obra antinietzschiana. Aventa no entanto que o terá sido sem querer, sendo que o autor pretenderia pre-cisamente o contrário, porque, embora sem dúvida contagiado pelo pensador de Röcken, ou porque a sua decisão era mera-mente tangencial ou por motivos ligados à sua filiação simbolista, teríamos tido um “acto falho”, uma vez que o pensamento de Patrício se colocaria na “contracorrente do pensamento nietzschiano”. Contudo, o então professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de S. Paulo, tanto reitera o antinietzschianismo do escritor portuense, como se desdobra em hipóteses de enten-dimento oposto em que ele próprio assu-midamente se contradiz.Do nosso ponto de vista, é indubitável a influência assumida e explícita do filósofo alemão, profusamente traduzido em fran-cês e divulgado em Portugal, na obra de Patrício, nomeadamente em todo o “Serão inquieto”, mas isso não implica de forma alguma, para mais num escritor com uma idiossincrasia como a do poeta portuense, nem uma colagem ao pensamento filosófi-co de Nietzsche para nele se ver uma de-corrência, nem tão pouco uma incapacida-de para, no zeitgeist embora, desenvolver na sua obra literária e nos aforismos filosofan-tes que estudaremos, um livre pensamento filosófico, pessoal e criativo, explícita e militantemente adverso ao horror da in-serção em qualquer “sistema”, ou “filiação”, o mesmo que dizer, em qualquer rótulo, mesmo que no da “escola” do assistemáti-co autor do “Para Além do bem e do mal”. Mal estaríamos pois se fosse impossível descortinar “contradições” entre o desen-volvimento do pensamento do escritor portuense e qualquer matriz que se queira, de forma mais ou menos arbitrária, fixar do pensamento complexíssimo e quantas vezes metafórico e ambíguo do germânico arauto de Zaratustra! Só que isto significa isto e nada mais…De forma que o aludido antinietzscianis-mo de Patrício parece uma tese insubstan-te e sobretudo infecunda.

aprofuNdaNdoa iNquietação do “serão”…Nada, todavia como continuar a mergu-lhar no âmago dos seus escritos até para clarear, se possível, este debate… Com “O Veiga”, o último conto que surge na calha deste inquieto serão…

1 Moisés, Massaud - “”Serão Inquieto’: anti-Nietzsche?”, Colóquio/Letras, 125-126. 1992

ANTÓNIO PATRÍCIODA CONSCIÊNCIA DA MORTE AO SENTIDO DA VIDA -II

Pedro Baptista

Amarfanhado pelo burocrático emprego e pelo desfazer da quimera de uma paixão fe-minina, marcado pelos pontapés do proxe-neta da galdéria, o Veiga rebela-se contra o mundo e contra o que tinha vindo a ser, virando-se para o militantismo anarquista onde pode encontra húmus para alimentar a vesânia da perseguição; revolta-se então contra a carinhosa e descoroçoada mãe, do que se viria a arrepender, decidindo-se, após a morte desta, num rompante aparen-temente psicótico, à marginalidade social. É assim que o narrador o vai encontrar uma manhã, nos campos de Nevogilde, onde aquele, sendo o autor, por certo des-ceria para o mar… O Veiga inteiramente transfigurado… dormir, não dormia por-que não tinha tempo, se por vezes se tinha deixado adormecer uma ou duas horitas ficava zangado consigo próprio pois não tinha tempo a perder, tinha-se decidido a ocupar integralmente o tempo a viver, ti-nha deixado de gastar o tempo em inutili-dades como empregos, teatros ou cafés… Apareciam pessoas que o conheciam dos outros tempos, de quando ele ainda não sabia o que era a vida e ajudavam-no com pão, nada mais precisava do que pão e fru-ta, e muitas vezes lhe davam roupa nova mas ele deixava-se roubar por outros va-gabundos porque tinha pena deles e a ele nada lhe importava andar bem vestido ou com as roupas rotas. E a verdade é que este novo Veiga guardava as migalhas para os pardais, aspirava fundo o perfume das roseiras que em certas manhãs de Outo-no lhe provocavam o choro, um autênti-co “Bêbado de Deus”, diz o narrador, tal como Espinosa. E este naturismo metafí-sico, transcendental porque se levanta da natura e ultrapassa o próprio cosmo, ou o alarga, este “delírio ambulatório” daquele esqueleto andrajoso e movente que adora as árvores, o mar e a aurora, amante da ter-ra é, na verdade, para Patrício, uma espécie de panteísmo cristalino em pureza que não quer ser tocado, nem obstaculizado, nem alienado, muito menos estragado, pelos valores ou pelos ostensórios com que a po-bre sociedade se engana, escondendo de si própria a verdadeira a vida, esquecidos do que só se hão-de lembrar nos derradei-ros instantes, já tarde, tal como o Doce Hebreu do “Diálogo com a Águia”, da vi-vência perdida da vida… E todavia, noite adentro, o Veiga, o homem sem sono, sem fome e raramente com dinheiro, ajudava quem precisava, com palavras e com atos, no caso do conto, uma operária carvoeira

despedida para as bandas de Massarelos, comprava aos ganapos um pássaro apedre-jado para que não o matassem, e foi visto a adquirir uma boneca, na Rua de Cedofeita, no saudoso “Bazar dos Três Vinténs”, para uma filhita de uma pobre que até lhe cha-mava padrinho… E mais… Para Patrício, a morte da mãe foi o seu segundo parto, vindo da dor, desta feita iniciático, donde surgiu este panteísta vagabundo da mais misericordiosa das loucuras. Tínhamos esperança que Massaud Moises tivesse pegado neste aspeto misericordio-so, por vezes, piedoso, para estender por aí a hipótese do antinietzschianismo de Patrício, pelo menos parcelar, mas não é o caso. Podia sempre sustentar-se na rutura do poeta do “Anti-Cristo”com o judaico--cristianismo e com o pietismo. Não seria suficiente até porque teríamos sempre Pa-trício a afirmar que a piedade é “um sen-timento consolador só para os eunucos”. Mas não seria bastante sobretudo, porque em lugar nenhum, o Übermensch nietzs-chiano, depois de ter rompido, na montesa solidão, com todos os valores e morais do cristianismo, é apontado como indispo-nível tanto para a sociedade como para a solidariedade.Todavia parece-nos, a partir precisamente deste conceito de solidariedade, ser possí-vel explorar a pista de uma pregnância ne-ocristã muito própria de Patrício, ultrapas-sada a própria ultrapassagem nietzschiana, porque “a vida já não tem aos ombros uma Cruz/ o madeiro de Cristo floresceu”, pro-vavelmente nos mesmos termos em que o “Doce Hebreu” confessa o seu arrepen-dimento por não ter vivido, nos últimos momento do estertor. Um cristianismo muito mais próprio, muito mais sui gene-ris, muito mais “pós-cristão”, do que meras “evidentes conotações cristãs – se bem que nem sempre inteiramente ortodoxas”3, como aventa Braz Teixeira com bonomia, que estende à presença da paixão, da res-surreição, e da santificação que marcaria a obra do escritor, em particular na peça “Pedro, o Cru” que trataremos em seguida, mas que não são elementos específicos da mitologia ou da liturgia cristãs, muito me-nos quando inseridos nos termos de recria-ção pagã, sensualista, erótica, carnal e de

3 Teixeira, António Braz - O Mito de Inês de Castro no teatro português. In Caderno-programa do espectáculo “Pedro, o crú”, de António Patrício, dirigido por Carlos Avilez. Lisboa: Teatro nacional D. Maria. 1982

pendor mais espiritista do que espiritualis-ta, como acontece com os desenhos e com as palavras de Patrício…“Serão Inquieto” termina com “Words”, 20 páginas de aforismos atribuídos a um ex-condiscípulo, C.F., certamente ficcio-nado, um heterónimo ao gosto da época, na senda da dúzia de pseudónimos criados por Søren Kierkegaard para escreverem as suas obras sobre variados temas, 70 anos antes, onde talvez possa ser exagerada-mente pomposo vislumbrar um precursor da heteronímia ultraprolixa de Fernando Pessoa, como fazem Mourão-Ferreira e José Carlos Seabra Pereira, talvez menos se for para antever a do José Kertchy Na-varro criado por Agostinho da Silva. Término um pouco inopinado em que Pa-trício parece querer deixar-nos não só as suas referências filosofantes, como ainda a indicação de que tanto a expressão literá-ria, como a dramatúrgica e a filosófica são polidiscursivas, sendo na osmose desta di-versidade das expressões que se manifesta não só o aprofundamento reflexivo como a criação literária e artística. E onde per-siste, por vezes com recorte poético, e até erótico, a presença da mulher, bem mais consoladora e “bem melhor do que Marco Aurélio”, associada à aposta em não renun-ciar à vida que não passa de “uma doença do desejo”. Não falta a reflexão sobre o donjuanismo que “em nenhum amor ma-tou a sede”, um apontamento para o futuro da sua biografia quando afirma que quando o artista chega a uma terra nova sente-se a “nascer segunda vez” ou o apontamen-to do génio como “a promessa falhada de outra espécie”. Viver intensamente porque afinal “a eternidade é a sensação de alguns instantes”… Meditando porque “meditar é viajar através de nós mesmos”. E para se fir-mar, na base, com o saudosismo portuense, de braço dado com Raúl Brandão e Pasco-aes, “O que é o mar para o meu corpo, é a dor para a minha alma”…Bem ficaríamos se, agora mesmo, encade-ássemos estas “Words” com os “Fragmen-tos poéticos”, ora publicados em Macau. Porque, não datados embora, são indiscu-tivelmente o seu prolongamento, para a frente, para trás ou nos dois sentidos. Mas porque a sua edição póstuma só agora, nos inícios de 2013, ocorreu, há ainda muito a dizer, neste ínterim, da vida, da obra e da morte de António Patrício entre o “Serão Inquieto” de 1910 e esta edição póstuma de 2013.

(continua)

o aludido

antinietzscianismo de

Patrício Parece uma tese

insubstante e sobretudo

infecunda.

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Lembro-me de que sem-pre tive um enorme fascí-nio pelo «Expressionismo» alemão, esse cadinho da poesia tão indefinida como o são as mudanças de sé-culo que ao contemplarem vertentes várias acabam

por serem sínteses de tudo. A maioria dos seus autores, oriundos de classes médias bur-guesas, irá perturbar as formas de concepção, tanto revolucionária quanto da herança her-dada, e partir em busca de um messianismo revolucionário oriundo talvez da sua origem judia, que predominava. Este modernismo andou em grande parte a par do nosso que, sendo fluído e escasso, teve a “lírica” dadaísta

e todo um propósito dado pela vanguarda dos tempos, importante para acelerar a descons-trução de uma arte que se queria ao serviço do ser e não do Homem, enquanto agente pas-sivo da história. Foi a eles a que chamámos Modernistas. A obra de Arte participa activamente na construção do modelo histórico. Ela mo-ve-se na demanda da transformação e do corte por vezes abrupto com as eras ante-cedentes, elas reflectem a inquietação da natureza humana numa dialéctica de evolu-ção permanentes ditadas muitas das vezes por situações imprevistas. Ela tende sem-pre a ultrapassar e a transpor a sua própria especificidade. A poesia é o agente literário-artístico a mol-dar toda a estrutura, ultrapassando sempre a

sua especificidade. O início do século vinte promete um modelo idiossincrático absolu-tamente apaixonante na restruturação de um novo paradigma. É lançado o Futurismo de Marinetti, são formados os grupos vorti-cistas, que darão origem a um T.S. Eliot e a um Ezra Pound o Grupo «Orfeu» e Apolli-naire no orfismo, António Machado e aque-le que viria a ganhar mais tarde o Prémio Nobel de Literatura: Juan Ramon Jimenez. Wilhelm Klemm, um poeta expressionista tem este magnífico poema:

Não queremos poesia de género algum,Queremos truques mágicos de saco,Procuramos tapar na existência um fatal buraco.E apesar de esforço insano não tapamos nenhum.

Mas que sabeis vós outros do secreto aspirar,

Dos soluços de divina histeria que em gargantas choram,Quando, plenamente absorvidos pelo haxixe da alma elementar,Beijamos o primeiro degrau, para além de cujo limiarEoneamente os deuses moram?

Estamos então num reino da desconstrução idílica do ultra-romantismo mas não no ra-surar dos mitos na sua busca da habitação dos “deuses”; está tudo lá, no local sagrado da poesia, mas revisto com as lentes pro-gressistas das eras vindouras, um pouco à maneira de: O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. E é neste acelerar de práticas, de conceitos, de viragem e novos ordens políticas que o lado visionário se completa com a criatividade poética. Vai ser preciso

escarpar nas novas pedras a Montanha de um tempo radical à escala humana. Estamos em plena Primeira Guerra Mun-dial, aquilo a que estes poetas chamariam” o declinar do dia Universal”, como agentes poéticos consagrados à vidência consegui-ram ver a derrocada burguesa ao mesmo tempo que se debatiam com a ânima perdi-da de uma época que parecia abolir a alma. Esta é portanto a Poesia da urgência da Crise, do emblemático sonho de ficarmos sempre de fora dos nossos ideais e mais comprometidos do que desejaríamos com as nossas reservas. É um momento que bem poderia exemplificar cem anos após o ciclo das coisas a posição do poeta na grande vaga dos estilhaços da desintegração mun-dial em curso. Já dizia Holderlin : Para que servem poetas em tempo de indigência? Só que não há tempos fora da indigência,

porque ela está enraizada no modelo huma-no a partir da noção moral de organização social, eles apenas vão ter o dom de cha-mar a atenção para dois tempos distintos: o passado e o futuro. Sabendo-se herdeiros dos mitos preservam a sua originalidade, na Origem, querendo-se mediúnicos ante-cipam a visão dos tempos futuros. Eles co-nhecem melhor os amanhãs. Estão limpos de excesso de presente, e sabem, que nesse Limbo onde não morrem os sonhos estão mais disponíveis para serem um presente (?) muito singular. A favor do Homem e nunca contra ele, numa vigília que denota a res-ponsabilidade que lhe é consagrada. Hoje, e porque Portugal é um país de gran-des nebulosas, as grandes questões não se levantam. Em “nichos” de coisas várias e

Estamos Então num rEino da dEsconstrução

idílica do ultra-romantismo mas não no

rasurar dos mitos na sua busca da habitação

dos “dEusEs”; Está tudo lá, no local sagrado

da poEsia, mas rEvisto com as lEntEs

progrEssistas das Eras vindouras

Amélia Vieira

A plurAl orgânicA do verbo

Murnau, Faust

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Com o triunfo da

poesia filosófiCa e a

despersonalização

do «eu» pessoano

atingimos uma

vertente até então

inusitada. pessoa

agarra em tudo e

Com tudo faz a obra.

é um Construtor de

quimeras, um grande

ser do desdobramento

da psique, alguém

que por falta de um

enredo de fundo

ambiental vai

enContrar na sua

poesia uma nação

inteira.

numa ânsia de entretenimento que mais pa-rece um acto alienado, há uma proliferação de sentimentos que resvalam num deno-minado “poema” mas que são esgares som-brios de coisas deixadas. Sem inovação não há Poema. Sem erro não há Poetas. Sem uma fissura em aberto na ordem das coi-sas elas tornam-se vãs. Não nos despertam do sono letárgico da morte, encaminhados por cantos de sereias que não têm Ulis-ses. Uma mulher precisa dos seus Heróis e ama-os por isso. As sereias são Fêmeas. Mas também o mar é outro. Por acaso neste movimento Expressionista como em outros da época dos «ismos» há poucas mulheres. Também é o tempo da descoberta da androginia como um fenó-meno biológico. Esta imensa plasticidade deu-nos Pessoas, Mário de Sá-Carneiro, Al-mada Negreiros. Deu-nos Apollinaire, Poe, Éluard, T.S. Elliot…. assim, os mais sonan-tes, mas foram eles todos indispensáveis, estes «novíssimos» assim nomeados antes da guerra que parecem ter a particularidade dos Deuses que é a de nunca envelhecer. Se nos colocarmos no lado intransigente e poetizante da vida (porque electrizante) saberemos distinguir as letras para canções da complexa e fenomenal noção poética. É preciso que deixem de cantar e escutem a “Música” que o poema por inerência oferece na partitura feliz de algo que resultou e nos faz bem. Bem por dentro, transformando os órgãos num imenso espelho saudável do Cosmos. Porque o Poeta é a criatura mais saudável do Mundo. Um mistério vivifica. Esta era a era das grandes transformações, nada existindo como realidade estática, imprimida a dinâmica cria-se a urgência, a suplantação até da forma primeira. Esta permanente inquietação faz um nível de inventividade imprescindível a toda a cria-tividade. Não é já na contemplação que ela se vai focar. Lembrei-me assim de os focar, porque me parece o tempo presente falho desta mobi-lidade de urgência. Talvez que os poetas te-nham ficado lá para trás….na memória dos homens como aqueles que pertenceram ao último baluarte humano, ou, é possível que ainda o seu tempo esteja para chegar na precisão das formas, na imanência de um ideal encarnado. Sendo uma poesia de cariz dialéctico, não rígido, é criticada por muitos movimentos marxistas que olham para a vanguarda mo-dernista com inquietação. Para eles a po-esia de carácter retórico era infinitamente mais importante. Seja o que for, encontra-ram-se neste momento as linhas de fundo da transformação ética, política e artística que viriam a mudar para sempre o mapa das nossas seguranças. Neste instante, a rede mundial do verbo que dança, pode poetizar o mundo. Mas,

para tanto, é preciso que os seres não aban-donem o código. Seria necessário saber transpor a barreira do preconceito do “dé-cor” e da “performance” porque não tarda também as línguas acabarão tal como as formas de expressão vigentes. A linguagem tenderá ao telepático, ao formal progre-dido, a uma emanação em que o aparelho fonético se dissipará como órgão gasto. Nesse instante, e por incrível que pareça, só haverá Poesia. Quando expirar o último sopro que exprimir o indizível. Com o triunfo da poesia filosófica e a des-personalização do «eu» Pessoano atingi-mos uma vertente até então inusitada. Pes-soa agarra em tudo e com tudo faz a obra. É um construtor de quimeras, um grande ser do desdobramento da psique, alguém que por falta de um enredo de fundo ambien-tal vai encontrar na sua poesia uma Nação inteira. Ainda agora, ele continua a escre-ver, a constatar pela enorme quantidade de frases que em todos os locais aparecem e lhe são atribuídas. É claro que algumas cla-ramente não são dele, mas ele é como uma síntese nacional onde tudo o que para a nação faz sentido se revê. No fundo penso que isto esclarece a falta de conhecimento dos estilos de escrita e até das obras dos autores, mas elas têm uma necessidade que alguém em quem confiam as tivesse dito. Penso que o poeta ausculta uma verdade amarga neste silêncio que é a forma de ser português, só, algo que nunca saberá ex-plicar o fará continuar. Ainda hoje, não há a observância nem a justa recompensa de um árduo trabalho. Porque, trabalho, na concepção maciça do “país dos poetas”, é o labor das funções outras, onde depositam confiança. Depois, há ainda uma velha men-talidade talvez não extinta, do S.N.I: poetas de fim-de-semana, ou reformados, para ali-mentarem não se sabe o quê de narrativa. E nestes disfarces sombrios se está neste início do séc. XXI, em que os fazedores se temem vivendo fechados nos seus efeitos sem que assumam uma atitude pública de resgate dos pilares morais e espirituais da sociedade. Em termos de inventividade também a situação é um logro! Perdidos em perfeccionismos de diáfano sentido, as suas vidas parecem uma montagem sem aquela centelha imprescin-dível de liberdade e sonho. Pessoa não morreu e era amante dos Sim-bolistas, uma espécie de Expressionismo alemão. O desintegracionismo foi uma sua corrente. A obra que os portugueses no fundo co-nhecem mal conhecem-na agora enquan-to ele escreve algures em outros mundos. Para eles, tudo é indiferenciado. Tudo e nada existe… pois buscam o efeito, nunca a causa, e pode ser que nada do que estão observando seja real. A dialéctica dos que findaram o que era preciso dizer.

Murnau, Aurora

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QualQuer ocidental cristão que observe com algum cuidado a gravura do artista tailandês Parichart Suphaphan, en-contrará sem dificuldade ecos da mensa-gem bíblica. Ecos, mas não equivalência. Primeiro, a menina não está no jardim, é ela própria o jardim, quer dizer, uma força natural imersa na terra.Segundo, ela não é tentada pela serpente, mas atacada por ela.Onde se cruzam as tradições oriental e oci-dental? Bom, a resposta parece ser: na força natural da serpente. Esta é o símbolo sexual mais forte e, por isso, nas filosofias yógicas indianas da linha tântrica, que se estendem por toda a Ásia e, em particular pelo sudeste asiático, ela é kundalini, como bem chamou a atenção C.G. Jung em The Psychology of Kundalini Yoga. Notes to a Seminar Given in 1932.Creio que a maior parte das filosofias orien-tais, sobretudo as mais telúricas e sexualiza-das, colocam a questão com toda a exacti-

dão: ou se desperta a serpente adormecida em cada um de nós, domesticando-se o bicho por via da meditação sexual, mas também ascética, ou se é irremediavelmen-te atacado por uma força natural, estranha, que vem de fora, porque foi recalcada, sen-do desconhecida de dentro.Os chineses são bem mais naturalistas do que os ocidentais? Sim e não. Eles até eram de início bastante espontâneos, tinham uma filosofia animista que evoluiu para o taoísmo popular, mas é preciso não esque-cer que também desde muito cedo, a partir de Confúcio e do estabelecimento do Con-fucionismo, e de uma maneira sistemática desde os tempos Han, que tem havido na cultura chinesa um grande esforço para se dominarem as forças naturais. Esse impulso redobrou em energia com a aceitação e vi-vências budistas, muitas distantes da linha naturalista e tântrica.Durante os tempos da última dinastia Qing, as vivências religiosas ligadas ao budismo

intensificaram-se e, como tal, o conflito en-tre as forças naturais e espirituais tornou-se manifesto, abrindo uma guerra semelhan-te à que assistimos no Cristianismo, com Eva e Adão a serem expulsos do Paraíso por causa de uma supostamente famigerada serpente. A guerra aberta entre as forças naturalis-tas e religiosas organizadas seria registada também pela literatura chinesa, numa das histórias de amor mais pungentes, intitula-da A Serpente Branca (Bái Shé Zhuàn《白蛇传》), também conhecida pelo nome dos seus protagonistas Xu Xian (许仙) e Bái Niangzi (白娘子), que atingiu o apogeu da popularidade durante a dinastia Qing. Nela os amantes são irremediavelmente perseguidos por um bonzo budista, que lhes destrói a felicidade ao insistir para que Xu Xian (许仙) se afaste da Bai Niángzi (白娘子), já que ela era uma serpente en-cantada.Omitido pelo bonzo foi o esforço de medi-

Gravura do artista tailandês Parichart Suphaphan, integrada na 1ª Trienal de Gravura de Macau, promovida pelo Instituto Cultural de Macau)

Bonio, Serpente

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Ecos naturalistas AnA CristinA Alves*

A Serpentetação que levou a serpente a transfigurar-se em forma humana. O que o bonzo budista não via, bem como muitos outros religiosos não conseguem ver, é que na face exterior do que parece ser transgressão se esconde uma força natural e espontânea estreitamente ligada à men-te de quem lida com ela. Para uma mente pura, a força natural nada tem de impuro, para uma mente turva, a força é, na versão ocidental, pecado, e na oriental força nega-tiva e demoníaca.Qualquer força natural e espontânea sem meditação é perigosa. E aqui estamos todos de acordo. Veja-se o que sucede nas guer-ras, com a quebra das regras de conduta. Saques, mortes, violações. E isso também é a consequência da força natural a actuar.A força da serpente é completa em si pró-pria. Nada há a acrescentar-lhe. A atestar a sua perfeita completude, há uma história proverbial famosa: Desenhar Pés à Serpente (Huà Shé Tian Zú畫蛇添足) , frequente-

mente encurtada na expressão Os Pés da Ser-pente (Shé Zú蛇足). Resumindo, o episódio passou-se na altura dos Reinos Combatentes (戰國), no Reino Chu (楚國), nos domínios de um senhor feudal, que resolveu recompensar os seus empregados com um jarro de vinho. Como o vinho não chegava para todas as bocas, organizou-se uma competição: desenhar uma serpente. O vencedor ficaria com o vi-nho só para si. Aquele que acabou primei-ro, porque era muito rápido, entreteve-se a desenhar pés à serpente. Posto que foi ven-cido pela argumentação irrefutável do que terminou em segundo lugar: as serpentes não têm pés. Logo, o jarro é meu.Num equivalente estilístico para Português, o vencedor tinha borrado a pintura. Numa lei-tura ontológica, nada há a acrescentar a uma força completa em si mesma. E por isso este dito é usado para mostrar alguém a fazer algo de supérfluo. Quando a serpente pretende ser outra, tem

aberto o caminho da metamorfose, seme-lhante ao do bicho-da-seda e da borboleta.Os chineses, bem conscientes do poder da Serpente (shé 蛇), o verme radicalmente outro, o bicho, a força antitética da civi-lizada, rebaptizaram-na como Pequeno Dragão (Xiao Lóng 小龙) para dar espaço a esta força natural de se cultivar e exercitar na vida espiritual, num percurso interior do corpo à mente, sem contudo perder as suas raízes telúricas. A serpente rasteja na terra, se conseguir voar como um dragão, reali-za a união das duas forças primordiais do universo, a do Céu e a da Terra, no interior do corpo humano e no exterior do corpo cósmico.

* A autora lecciona nos Mestrados de Tradução e de Língua e Cultura do Departamento de Português da Universidade de Macau

Miguel Ângelo, Genesis

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Puhdistus é um filme finlandês de 2012 realizado por Antti Jokinen. Balladen om Marie Krøyer é um filme de Bille August, também de 2012. Ve Stínu, também é deste mesmo ano e foi realizado na Re-pública Checa por David Ondricek. To-dos eles, com pequenas oscilações, são filmes muito bons. Todos eles têm uma cor própria, o checo mais insistente em tons escuros domésti-cos. O interior acanhado da casa do de-tective de polícia que é a figura central do elogio que o filme faz à sua integridade e coragem é filmado com uma segurança invulgar, as suas esquinas viradas com a desenvoltura possível dentro de uma casa pequena. Apenas uma sensibilidade apu-rada conseguiria filmá-la assim.Em Puhdistus, o mais assustador dos três, a noite e o odor a transpiração e medo são pintados num tom setentrional abra-sivo mas frio, o frio do mal que se pratica sobre duas mulheres.O filme que fala do casal Krøyer, mais variado na sua paleta, celebra alternada-mente (como tantas vezes acontece no cinema escandinavo) a explosão solar curta dos estios nórdicos de que algumas cenas de Smultronstället, de Bergman, são o paradigma perfeito, e os cinzentos longos do resto do ano e da demência de uma das suas figuras nucleares, um artista plás-tico dotado e reconhecido internacional-mente.Seria injusto ver estes filmes apenas como objectos de uma mediania luxuosa. São

mais do que isso. Conseguem, com um êxito limitado, de início, insinuar a sus-peita de que se tratam de algo mais. Mas à medida que se aproximam do seus fins percebemos que, mais uma vez, tal não acontecerá. O desconforto ou as certezas que poderiam causar falham em se insta-lar.São, além de tudo o que se disse, tramas de inegável interesse. Em Puhdistus acom-panhamos duas histórias que se relacio-nam através de uma das suas figuras. A que se prende com os anos da ocupação soviética da Estónia cria tensões que se transportam exemplarmente, sem qual-quer ruído narrativo, para a história con-temporânea brutal da exploração sexual de Zara. O filme retrata duas violências de origens muito diversas e dois tempos diferentes, mas que acabam por se con-jugar num quadro único do mal que cau-sam.Em Ve Stínu a violência tem igualmente origem numa situação política, a da in-fluência também soviética sobre a antiga Checoslováquia. David Ondricek com-bina-a perfeitamente com a trama pura-mente policial e com a trama familiar. É difícil de isolar o que é que falta a este fil-me. Não é certamente o equilíbrio entre a simpatia que a sua integridade provoca e o retrato brutal de uma sociedade to-talitária. Não será certamente a maneira como a claustrofobia que a casa inspira se transfere para a claustrofobia causada pelo sufoco da influência soviética, os jo-

gos de influência, a impotência dos que não são poderosos.O que pode acontecer é que, por vezes, a lembrança das ousadias que o cinema checo tomou durante os anos 60 crie um desejo de que estas se repitam. Tal não chega a acontecer e é a este jogo de apro-ximação do precipício, que no final se re-vela pouco perigoso, que estes filmes nos condenam.Balladen om Marie Krøyer pode ser a me-nos surpreendente destas histórias. Tal como acontece em outros filmes de Bil-le August, este é baseado num romance (Puhdistus também) e parte da sua falta de ousadia poderá estar ligada a esta depen-dência. É frequente no cinema escandina-vo contemporâneo este encontrar formas subtis de nos enganar e de nos fazer crer que estamos em presença de algo de ines-quecível (o próximo filme de August ba-seia-se num livro medíocre e banalóide, Night Train to Lisbon).Contudo, depois da operação química da análise e da aplicação do bom senso ficam 3 histórias muito convincentes e muito bem apresentadas mas, no fundo da retorta resta apenas uma porção não muito grande de cinema. Talvez porque estes filmes são demasiado próximos de fórmulas prosaicas do cinema, demasiado próximos de algo que nós vemos e sabe-mos sem que precisemos do cinema para no-lo mostrar. Mas há razões para não desmoralizar. Outros 3 (talvez 4) exemplos de filmes

recentes de larga circulação (não se fala aqui de filmes obscuros e de circulação restrita) permitem equilibrar, com estri-dente som de trombetas, a mentira em que aqueles (repito, excelentes e muito acima do lodaçal em que a maioria dos espectadores regularmente chafurda) fil-mes insistem. Tabu, de Miguel Gomes, Vous n’avez encore rien vu, de Alain Resnais, os dois de 2012, e Girimunho, um filme brasileiro de 2011, de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr., (hesito em juntar-lhes Holy Motors, de Leos Carax), distanciam-se daqueles por-que nos dão a ver histórias que apenas o cinema pode mostrar - ainda que o filme de Resnais repita, mas muito bem, vários dos seus tiques mais irritantes. Estes são portadores de um mistério que os anteriores não sustentam e junto do espectador avisado estabelecem uma relação contratual que o tempo dificil-mente quebrará. No fundo, é isto que os distingue, a capacidade de construir uma sedução que é própria ao cinema e que se liberta de outras, sejam elas literárias ou não. Tabu é aquele que mais prome-te, aquele que faz querer ver mais, aquele que repõe um elevado grau de expectativa numa ida ao cinema. É aquele que promo-ve a esperança num cinema comercial que se não instale, imóvel, numa mediania de alta qualidade que é, na minha opinião, o mais prejudicial dos cinemas, uma media-nia turística que pouco tem de ver com o risco e a aceitação da imperfeição.

luz de inverno Boi Luxo

A propósito de puhdistus e outros filmes de 2012, ou 2011

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“A case of the past catching up with the futurists”, resume, exemplarmente, o jornal in-glês The Guardian. Foi notícia na semana pas-sada: os Kraftwerk, o histórico grupo alemão de música electrónica (que, em larga medida, tal como a conhecemos hoje, foi por eles “in-ventada” no início da década de 1970), viram o ministério da Cultura da China rejeitar os pedidos de vistos para actuarem como cabeças de cartaz no festival de música “Strawberry”, agendado para o final deste mês, em Pequim e em Xangai, porque, em 1998, constavam da lista de bandas previstas participarem num concerto de angariação de fundos para a causa tibetana (“Free Tibet”), em Washington, nos Estados Unidos. Devido a uma forte tempes-tade, o espectáculo na capital norte-americana nunca chegou a realizar-se, mas isso não de-moveu os censores chineses.

A revelação de que o quarteto alemão é considerado “persona non grata” na Repúbli-ca Popular foi feita à France Press por um res-ponsável da editora de Pequim Modern Sky (organizadora do festival), que falou à agência noticiosa sob a condição de anonimato.

O Global Times, um dos jornais oficiais chineses em língua inglesa, avançou que a ban-da britânica Travis vai encabeçar o alinhamen-to do “Strawberry” em substituição dos Kraf-twerk, preteridos por “razões políticas” que o diário não especifica. No mesmo jornal, com uma franqueza de apreciar, aparece citado um executivo da Modern Sky, Zang Keyu, a dizer que “não estamos 100 por cento confiantes em ter os Travis como banda principal, mas é um facto que temos que aceitar”.

Os Kraftwerk, e o público que, em vez de-les, vai levar com os irritantes Travis, são ape-

próximo oriente Hugo Pinto

nas as mais recentes vítimas da truculência censória do regime chinês. Nesta história, o festival “Strawberry” é repetente no papel de vítima depois de, em 2011, ter sido cancela-do porque, nesse mesmo ano, na cidade de Suzhou, província de Jiangsu, nas mensagens enviadas pelo público que eram projectadas numa grande tela atrás do palco apareceu o nome de Ai Weiwei. O músico Zuoxiao Zu-zhou, responsável pela façanha que evocou o artista proibido, foi temporariamente detido.

Na China, pior do que referências osten-sivas a Ai Weiwei em público, só mesmo pro-clamar a independência do Tibete. O “inci-dente” que fez redobrar a atenção das zelosas autoridades teve como protagonista a islande-sa Björk. Em 2008, num concerto em Xangai, gritou “Tibet! Tibet!” no final da canção “De-clare Independence”. O caso mereceu um co-mentário do ministro chinês da Cultura, Cai Wu, para quem “o espectáculo político não só violou as leis e regulamentos chineses, como também magoou os sentimentos do povo chi-nês, além de ter violado o código profissional de um artista.”

Mais recentemente, depois de Elton John ter dedicado, em Novembro passado, um con-certo em Pequim a Ai Weiwei, Cai Wu voltou à carga e, de acordo com algumas fontes, terá defendido que, no futuro, apenas estrelas com cursos universitários deveriam ser autorizadas a actuar na China.

Licenciados ou não, o certo é que, na maioria, os músicos com hipóteses de toca-rem na China têm a lição bem aprendida. El-ton John que o diga. Interrogado pela polícia depois do concerto de Pequim, conta-se que as autoridades pediram ao “manager” do po-

pular artista que este assinasse uma declaração afirmando que a dedicatória do concerto a Ai Weiwei se devia apenas à admiração pela obra do chinês. Mas a paranóia continua.

Liz Tung, editora da revista Time Out Bei-jing, conta ao Guardian que os organizadores dos concertos dos canadianos Godspeed You! Black Emperor em Pequim e Xangai tiveram problemas com o facto de a banda ter a pala-vra “God” no nome.

Enquanto isso, em Março, actuaram na China sem quaisquer problemas os Gang of Four, a lendária banda do pós-punk britânico que foi buscar o nome ao “Bando dos Quatro”, o grupo considerado uma das maiores “forças contra-revolucionárias” pelo regime comunis-ta chinês. E o que dizer do concerto de John Lydon e dos seus P.I.L., no último sábado, em Pequim? Aquele que, em tempos, foi Johnny Rotten, o anarquista com jeito para o negócio que esteve à frente dos Sex Pistols, censurados na rádio britânica, passeou-se livremente pela capital chinesa sem que os inspectores mos-trassem o mínimo incómodo com o passado de agitador de massas. “It’s only rock‘n’roll”, de facto, e mais uma prova da arbitrariedade com que aplicam a censura, uma prática que apenas expõe a fragilidade de um regime pre-ocupado sobretudo em preservar as aparên-cias e esconder o quão desfasado da realidade, frágil e falível é, afinal. Como é mesmo a letra de “Showroom Dummies”?

Os Kraftwerk actuam no próximo dia 13 de Maio, em Hong Kong, no Kowloonbay International Trade & Exhibition Centre.

Problemas de exPressão

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Primeiros volumes da obra completa do padre antónio Vieira apresentados ontem O gigante da línguaOs primeirOs três volumes da obra completa do padre António Vieira foram apresentados ontem, na Universidade de Lisboa, pelo bispo do Porto, Manuel Clemente, e pelo catedrático da Universidade de São Paulo, Adolfo Hansen. A sessão, que decorreu na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, ontou igualmente com a participação do secretário de Esta-do da Cultura, Jorge Barreto Xavier.O historiador José Eduardo Franco, um dos coorde-nadores da edição, com Pedro Calafate, disse à Lusa que este “é o maior projecto da história editorial por-tuguesa”, tendo em conta que, em dois anos, vão ser publicadas 15 mil páginas, em 30 volumes, distribuí-dos por quatro tomos.O historiador realçou que, “destas 15 mil páginas, cerca de um quarto são de inéditos ou textos parcial-mente inéditos, nomeadamente de teatro e poesia, da autoria de Vieira, que até os investigadores desconhe-cem”, realçou Franco.

 Amar a quem me aborrece, é ser humano com quem o não é comigo: aborrecer a quem me ama, é ser cruel com quem mo não merece: o ser humano é ser homem; o ser cruel é ser fera: logo aborrecer a quem nos ama, tanto mais dificultoso é, quanto mais repugnante à natureza.Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma, Lisboa,

no Convento de Odivelas, 1644, § III 

***O tempo tira ao amor a novidade, a ausência tira-lhe a comunicação, a ingratidão tira-lhe o motivo.

Sermão do Mandato, Lisboa,na Igreja do Hospital Real, 1643, § V

 ***

Sabeis porque vos querem mal vossos inimigos? Ordinariamente é porque vêem em vós algum bem que eles quiseram ter, e lhes falta.Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma, Lisboa,

na Capela Real, 1649, § III 

***Nascer pequeno e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer toda a terra: para nascer, Portugal: para morrer o mundo.

Sermão de Santo António, Roma, na Igreja de Santo António dos Portugueses, 1670, § IV

 ***

A maior miséria da vida humana (outros dirão outras) eu digo que é não haver neste mundo de quem fiar.

Sermão Terceiro – Confiança, § I 

***[…] os corpos se retratam com o pincel, as almas com a pena.

Sermão Quarto – Pretendentes, § II 

O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república, são os imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos. Não há tributo mais pesado que o da morte, e contudo todos o pagam, e ninguém se queixa; porque é tributo de todos.

Sermão de Santo António, Lisboa,na Igreja das Chagas, 1642, § IV

 ***

Pinta-se o amor sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacob, nunca chega à idade de uso de razão. Usar de razão, e amar, são duas coisas que não se juntam. A alma de um menino que vem a ser? Uma vontade com afectos e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar. Tudo conquista o amor, quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. Nunca o fogo abrasou a vontade, que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração, que não houvesse fraqueza no juízo. Por isso os mesmos pintores do amor lhe vendaram os olhos.

Sermão do Mandato, Lisboa,na Capela Real, 1645, § II

 ***

Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera?

Sermão do Mandato, Lisboa,na Igreja do Hospital Real, 1643, § III

 ***

A mais poderosa inclinação, e o maior apetite do homem, é desejar ser. […] Não está o erro em desejarem os homens ser; mas está em não desejarem ser o que importa.

Sermão de Todos os Santos,no Convento de Odivelas, em 1643, § II

José Eduardo Franco afirmou que o jesuíta, que viveu entre 1608 e 1697, pode ser hoje visto como um “au-tor anti-crise”.“As soluções que ele apresentou para o país, os escri-tos dele sobre a nossa mentalidade e os nossos políti-cos [permitem] dizer que ele é um autor, uma figura histórica anticrise”, afirmou José Eduardo Franco, que acrescentou que Vieira “é mais do que um autor que ainda hoje nos ensina a bem falar, bem escrever e bem comunicar a língua portuguesa”.A apresentação dos primeiros três volumes, hoje, é se-guida de uma encenação de um sermão do padre An-tónio Vieira, pelo Teatro Éter, com António Mortágua.Na sexta-feira, os primeiros volumes da Obra Com-pleta de Vieira são apresentados às 18:30, na sala 2 da Casa da Música, no Porto.Entre estes títulos, encontra-se “a obra magna de Vieira, que morreu quando a escrevia, que se intitula ‘A Chave dos Profetas’, que corresponde a dois volu-

mes”, e o terceiro intitula-se “Cartas Diplomáticas”, disse Franco à agência Lusa.Os trinta volumes, que serão publicados de dois em dois meses, dividem-se em quatro tomos. O primeiro tomo é dedicado à “Epistografia”, o segundo, à “Pare-nética”, o terceiro, à “Profética” e o quarto reúne “Va-ria” do autor. A edição da obra, pelo Círculo de Lei-tores, é patrocinada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e inclui uma “selecta de 300 a 400 páginas dos melhores textos de Vieira, que será traduzida em mais de 10 línguas”, disse Franco.O historiador adiantou à Lusa que o plano editorial in-clui “um dicionário multimédia sobre a obra de Vieira”.A Obra Completa de Vieira é um projecto luso-bra-sileiro, liderado pela Reitoria da Universidade de Lis-boa, que envolveu 51 investigadores dos dois países, o que levou José Eduardo Franco a dizer “que, mais uma vez, o padre António Vieira é uma ponte entre os dois povos e as duas culturas”.

MáxiMas do Padre antónio Vieira

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Vasco Graça MouraPúblico

O padre António Vieira nunca foi “impe-rador da língua portuguesa”. Essa é apenas uma das muitas mistificações engendradas por Fernando Pessoa, que nem sequer per-cebeu que a língua não é um império mas sim a principal base identitária de uma co-munidade humana. De resto, se fosse real-mente reconhecido como “imperador” e o seu império fosse deste mundo, a sua obra não poderia deixar de ser estudada, e muito a sério, nas nossas escolas…Vieira foi, sim, um dos maiores escritores de todos os tempos da nossa língua, num qua-dro barroco em que soube fazê-la extravasar dos cânones e dos códigos parenéticos, te-ológicos, humanitários, oratórios, retóricos, argumentativos, políticos, diplomáticos, epistolográficos, proféticos, sociais e tan-tos outros em que a utilizava, assim como foi um mestre na maneira e no virtuosismo com que tão destramente se servia dela (e a servia) para a interpretação literal, ana-lógica, tropológica e anagógica da palavra divina e das suas caleidoscópicas refracções.Nessa razão de ser da sua longa vida, sou-be implantar uma dimensão fundamental que podemos considerar da ordem do es-tético, e que é expressiva e dinâmica, ca-paz de conjugar razão, emoção, erudição, conhecimento e mito, aproximação do real e flagrância, suspense e teatralidade, con-vicção e persuasão, chegando a estádios de um vigor estilístico, de uma energia verbal e de uma beleza retórica incomparáveis. Engendrou assim uma “estética pragmáti-ca”, posta ao serviço de Deus e apostada na conversão e salvação das almas e hoje, mes-mo para aqueles a quem não seja o reino de Cristo neste e deste mundo aquilo que propriamente mais interessa, a preocupação de Vieira com o homem e o seu destino e a sua orientação espiritual da vida prática dos cristãos a quem se dirigia para a dimen-são da escatologia em nome da qual falava, proporcionam-nos páginas em que o ver-dadeiro prazer da leitura se combina com a descoberta de análises extraordinárias da natureza e do comportamento humanos.Quando penso em Vieira, penso em Mi-guel Ângelo. E ocorre-me também que, um pouco à maneira do Deus bíblico, Vieira nos modela a nossa própria humanidade na argila da língua que falamos. Ele soube utilizar a palavra, enquanto massa estrutu-rante e fluidez sonora e semântica em mo-vimento, na genialidade de um pensamento dialéctico que é também encenação cons-tantemente transfigurada em acção, numa

Vieiraqueimadoem...“esfinge”

distribuição de volumes, equilíbrios, pontos de fuga, tensões e resoluções, em que nos restitui também um mundo enquanto arqui-tectura verbal e representação metafísica.Bastante estudado por especialistas, mas pouco lido pelo grande público e nunca editado em toda a extensão de uma obra que promete continuar a revelar inéditos e variantes numa profusão desvairada de arquivos nacionais e estrangeiros, Vieira vê chegada a hora do projecto mais ambi-cioso de edição  de tudo quanto escreveu e que envolve, como principais entidades responsáveis pela saída dos trinta volumes projectados, a Universidade de Lisboa, a Santa Casa da Misericórdia e o Círculo de Leitores, além de muitos outros apoios e co-laborações.Os objectivos desse projecto, na sua reu-nião de cartas e documentos portugueses e latinos, do sermonário, da obra italiana, da obra profética, da intervenção política e diplomática, dos dispersos, de tudo o mais que importa dar a lume e até dos apócrifos, estão bem explicitados nos textos introdu-tórios e oxalá possam ser levados a cabo com as metodologias e os calendários pre-vistos. Nas páginas de apresentação notabi-líssimas que já pude ler, seja das Cartas, seja da Chave dos Profetas, não só encontrei percursos fascinantes, quase “de romance”, da história das ideias, como apanhei tam-bém fios condutores preciosos que guiam o leitor num labirinto emaranhado de con-ceitos teológicos e situações históricas de que hoje estamos muito distantes. A escrita dos apresentadores é rigorosa, sabedora e eficaz. E consegue nunca aborrecer o leitor apesar da por vezes derrotante rarefacção da matéria. Ficamos a compreender melhor o mundo, este mundo, o de Vieira e o nos-so, o que vem dele até nós, o que passará além de nós…Esta magna edição é de saudar entusiastica-mente, mas tem um grave problema. Digo isto com a reserva de que não sou especia-lista, mas sim o tal leitor comum a quem a edição expressamente se dirige (p. 33) e é apenas nessa qualidade que falo.O grave problema está em que a edição pretende pautar-se pela norma ortográfica em vigor e afinal aplica uma norma que não está em vigor nem nunca esteve, e que é a do Acordo Ortográfico.Sabe-se bem que esta questão tem feito correr rios de tinta. Mas entidades tão cien-tífica e economicamente poderosas como as mencionadas, tão responsáveis econó-mica, cultural e socialmente, pela missão que desempenham, dispondo de estruturas institucionais que comportam faculdades, departamentos, conselhos científicos, sei

lá que mais, não poderiam e não deveriam, antes de se lançarem a este portentoso em-preendimento, pedir pareceres científicos e jurídicos abalizados na matéria?Viverão num mundo nefelibata? Ignoram a polémica e os problemas? Não sabem que há hoje três grafias divergentes a serem aplicadas no mundo da língua portugue-sa? Quem tem medo do Estado de direi-to? Quem tem medo da aplicação da Lei? Quem tem a desvergonha de, num caso destes, evitar fazê-lo, sem um escrúpulo, sem um prurido de consciência, sem uma forma, ao menos esboçada, de se isentar de responsabilidades pela opção tomada?Que autoridade científica, jurídica ou cul-tural assiste aos directores da edição para falarem, a p. 33 (vol. Cartas), numa “actua-lização linguística no quadro das normas vi-gentes do português”? Ou à dr.ª Aida Lemos para aí afirmar, a p. 35, que as grafias foram “normalizadas segunda a norma em vigor”? Se o tivessem sido, nunca poderia ser apli-cado o AO porque ele não constitui norma vigente…Vieira e a sua obra incomparável saem des-figurados dessa irresponsabilidade de lesa--cultura que mancha indelevelmente um trabalho tão digno e de tão grande enver-gadura e que se fica a dever a tantos nomes

importantes, em que sobressaem os dos di-rectores da iniciativa, professores José Edu-ardo Franco e Pedro Calafate.Estive na sessão de apresentação pública e de lançamento desse projecto ainda não há muitas semanas e regozijei-me ex corde com ele, como português, como escritor, como cidadão com algumas responsabili-dades na cultura. Confesso que nunca me ocorreu que as coisas iam ser assim.E também não me passou pela cabeça que alguns problemas de revisão tornariam re-lativamente caricata a apresentação, sendo de esperar que outros não ocorram no texto do grande jesuíta. Aponto dois, ambos do Tomo I/Volume I: a pp. 27/28 escreve-se “apesar de Teófilo Braga (…) ter despeita-do a qualidade literária dos textos oratórios de Vieira (…)”. Não me parece que o verbo “despeitar” como transitivo faça grande sen-tido nesta acepção.Mas há pior: diz-se, a p. 25, que “os estu-dantes de Coimbra, instigados pela Inquisi-ção, o tinham queimado em esfinge na pra-ça de universidade, como herege e inimigo da pátria”. Em esfinge???Ora aproveitem lá a esfinge para mudar de revisor, guilhotinar estes três volumes ini-migos da pátria e tratar da edição de Vieira como ela merece ser tratada…

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Huai NaN Zi 淮南子 O LivrO dOs Mestres de Huainan

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2013L e t r a s s í n i c a s

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

Aqueles que usam as suas capacidades para lutar pelo podercomeçam ao sol e acabam na sombra.

Do EstaDo E Da sociEDaDE – 41

Quando o prazer e a ira se formam no coração, e os desejos se tornam visíveis externamente, aqueles que desempenham cargos públicos afastam-se da rectidão e procuram obter favores dos seus superio-res; os administradores corrompem a lei e seguem as modas. As recompensas não são adequadas ao desempenho e os castigos não correspondem aos crimes. Superiores e subordinados sentem-se alienados; os soberanos e os ministros guardam ressentimento em relação uns aos outros. Assim, quando aqueles que detêm cargos políticos pro-curam o favor dos soberanos, nunca são culpados por seus erros ou punidos por seus crimes. E, como tal, a desordem se instala na governação, ao ponto de nem a sabedoria a conseguir resolver. Calúnia e elogio florescem, ao ponto de nem a inteligência os conseguir clarificar. A menos que haja uma recti-ficação de base e um regresso ao que é natural, os líderes encontrar-se-ão sob uma pressão cada vez maior e os administradores tornar-se-ão cada vez mais negligentes.

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Aqueles que usam as suas capacidades para lutar pelo poder começam ao sol e acabam na sombra. Aqueles que usam a sua inteligência para governar países começam com ordem e acabam com caos.

tradução de Rui cascais ilustração de Rui Rasquinho

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