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O FIM DE UMA ILUSÃO ARTES, LETRAS E IDEIAS h PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2617. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 25 de Maio de 2012

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O FIM DE UMA ILUSÃO

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hPARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2617. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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A RETOMA económica mundial, permitida por uma injecção colossal de despesas públi-cas no circuito económico (desde ao Estados Unidos até à China) é frágil mas real. Um só continente continua travado. Reencontrar o caminho do crescimento não é a sua prio-ridade política. A Europa comprometeu-se numa via diferente: a da luta contra os défi-ces públicos.Na União Europeia estes défices são ele-vados - 7% em média em 2010 – mas bem menor o que a exibida pelos Estados Uni-dos. Enquanto os Estados norte-americanos com um peso económico mais relevante do que o da Grécia, a Califórnia, por exemplo, estão em quase falência, os mercados finan-ceiros decidiram especular sobre as dívidas soberanas dos países europeus, muito parti-cularmente os do Sul. A Europa, de facto, está prisioneira da sua própria armadilha institucional: os Estados têm que tomar em-préstimos junto de instituições financeiras privadas que obtêm liquidez a baixo preço junto da Banco Central Europeu. Os merca-

dos têm, portanto, a chave do financiamen-to dos Estados. Neste quadro, a ausência da solidariedade europeia suscita a especula-ção. Tanto mais que as agências de notação jogam na acentuação da desconfiança.Foi necessária a degradação da notação da Grécia, em 15 de Junho, pela agência Moody’s para que os dirigentes europeus tivessem reencontrado o termo “irracionali-dade” que tanto haviam utilizado no início da crise das “subprimes”. Do mesmo modo, descobre-se agora que a Espanha está muito mais ameaçada pela fragilidade do seu mo-delo de crescimento e do seu sistema bancá-rio do que pelo nível do seu endividamento público.Para “tranquilizar os mercados” foi impro-visado um fundo de estabilização do euro, bem como foram lançados através da Euro-pa planos drásticos e muitas vezes cegos de redução das despesas públicas. Os primeiros atingidos são os funcionários, inclusivamen-te em França, onde a baixa das cotizações da reforma será uma quebra mal disfarçada

do seu salário. O número de funcionários diminui por toda a parte, ameaçando os serviços públicos. As prestações sociais, da Holanda a Portugal, passando pela França, com a actual alteração da idade da reforma, estão em vias de ser gravemente amputadas. O desemprego e a precariedade de empre-go desenvolver-se-ão necessariamente nos próximos anos. Estas medidas são irrespon-sáveis de um ponto de vista político e social, e mesmo no plano estritamente económico.Esta política, que acalmou muito provisoria-mente a especulação, teve já consequências sociais muito negativas em numerosos países europeus, particularmente entre a juventu-de, o mundo do trabalho e os mais fragiliza-dos. A termo, irá atiçar as tensões na Europa e ameaçará por isso a própria construção eu-ropeia que é bem mais do que um projecto económico. Ela supõe que economia é posta ao serviço da construção de um continen-te democrático, pacificado e unido. Em vez disso, o que emerge é uma forma de ditadura dos mercados que se impõe por toda a parte

e particularmente hoje em Portugal, na Gré-cia e em Espanha, três países que no início dos anos setenta, há pouco mais de trinta anos, eram ainda ditaduras.Quer seja interpretada como o desejo de “tranquilizar os mercados” por parte de governos amedrontados, ou como um pre-texto para impor as escolhas ditadas pela ideologia, a submissão a esta ditadura não é aceitável e já deu provas da sua ineficácia económica e do seu potencial destrutivo no plano político e social. Um verdadeiro debate democrático sobre as escolhas de política económica tem necessariamente que ser aberto em França e na Europa. A maior parte dos economistas que intervêm no debate público fazem-no para justificar ou racionalizar a submissão dos políticos às exigências dos mercados financeiros. Cer-tamente que os poderes públicos tiveram que improvisar alguns planos de recorte keynesiano e mesmo por vezes nacionali-zar temporariamente bancos. Mas querem fechar este parêntesis o mais rapidamente

ESTE ‘MANIFESTO’ É UMA INICIATIVA DE UM GRUPO DE ECONOMISTAS FRANCESES NEO-KEYNESIANOS, DE QUE SE DESTACAM ANDRÉ ORLÉAN, PRÉSIDENTE DA ASSOCIATION FRANÇAISE D’ÉCONOMIE POLITIQUE (AFEP), PHILIPPE ASKENAZY, THOMAS COUTROT E HENRI STERDYNIAK. TRADUÇÃO DE JOÃO ESTEVES DA SILVA.

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MANIFESTODOS ATERRADOS

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possível. O programa neo-liberal continua a ser o único reconhecido como legítimo, apesar dos seus patentes fracassos. Fun-dado sobre a hipótese da eficiência dos mercados financeiros, assenta na proposta de reduzir as despesas públicas, privatizar os serviços públicos, flexibilizar o merca-do de trabalho, liberalizar o comércio, os serviços financeiros e os mercados de capi-tais e aumentar a concorrência em todos o tempos e em todos os lugares…Como economistas, estamos aterrados ao vermos que estas políticas continuam na ordem do dia e que os seus fundamentos te-óricos não são postos em questão. Os argu-mentos que, desde há trinta anos, são avan-çados para orientar as escolhas das políticas económicas europeias, foram duramente atingidos pelos factos. A crise pôs a nu o ca-rácter dogmático e infundado da maior par-te das evidências repetidas à saciedade pelos decisores e pelos seus conselheiros. Quer se trate da eficiência e racionalidade dos mer-cados financeiros, da necessidade de cortar as despesas para reduzir a dívida pública, ou de reforçar “o pacto de estabilidade”, é preciso interrogar estas falsas evidências e mostrar a pluralidade de escolhas possíveis em matéria de política económica. Porque outras escolhas são possíveis e desejáveis, sob condição de que se desate o garrote im-posto pela indústria financeira às políticas públicas.Apresentamos, em seguida, uma apreciação crítica dos dez postulados que continuam a inspirar todos ao dias as decisões dos pode-res públicos por toda a parte na Europa, ape-sar dos desmentidos cortantes trazidos pela crise financeira e as suas sequelas. Trata-se de falsas evidências que inspiram medidas injustas e ineficazes face às quais apresen-tamos vinte e duas contra-propostas. Nem todas são unanimemente apoiadas entre ao signatários deste texto, mas elas devem ser tomadas a sério, para que a Europa possa sair do atoleiro em que se meteu.  FALSA EVIDÊNCIA Nº1:OS MERCADOS FINANCEIROSSÃO EFICIENTESHá hoje um facto que se impõe aos olhos de toda a gente: o papel essencial que de-sempenham os mercados financeiros no fun-cionamento da economia. Foi o resultado de uma longa evolução que começou no final dos anos setenta. Seja qual for a forma sob a qual a mensuremos, esta evolução marca uma ruptura nítida, tanto qualitativa como quantitativa, em relação aos decénios pre-cedentes. Sob a pressão dos mercados finan-ceiros, a regulação de conjunto do capitalis-mo foi profundamente transformada dando origem a uma forma inédita de capitalismo a que alguns chamaram “capitalismo patrimo-nial”, “capitalismo financeiro” ou “capitalis-mo neo-liberal”.Estas mutações encontraram a sua justifi-cação teórica na hipótese da eficiência in-formacional dos mercados financeiros. De facto, segundo esta hipótese, importa de-senvolver os mercados financeiros, fazê-los funcionar o mais livremente possível, por-que eles são o único mecanismo eficaz de alocação de capital. As políticas conduzidas com obstinação, desde há trinta anos, são conformes com esta recomendação. Trata-se de constituir um mercado financeiro mun-dialmente integrado no qual todos os ac-tores (empresas, lares, Estados, instituições financeiras) podem trocar todos os tipos de títulos (acções, obrigações, dívidas, deriva-

dos, divisas) de todas as maturidades (longo, médio ou curto prazo). Os mercados finan-ceiros começaram assim a assemelhar-se ao “mercado sem fricção” dos manuais: o dis-curso económico tornou-se capaz de criar a realidade. Sendo os mercados cada vez mais “perfeitos”, no sentido da teoria económica dominante, os analistas começaram a acre-ditar que o do sistema financeiro se havia tornado muito mais estável do que no pas-sado. A “grande moderação”, este período de crescimento económico, sem subida dos salários, que os Estados Unidos conheceram de 1990 a 2007, parecia confirmá-lo.Ainda hoje o G-20 persiste na ideia de que os mercados financeiros são o bom mecanis-mo de alocação do capital. A primazia e a integridade dos mercados financeiros con-tinuam a ser os objectivos últimos da nova regulação financeira. A crise é interpretada, não como o resultado inevitável da lógica da desregulação dos mercados, mas como o efeito da desonestidade e da irresponsa-bilidade de certos actores mal enquadrados pelos poderes públicos.Todavia, a crise veio demonstrar que os mercados não são eficientes e que não per-mitem uma alocação eficaz do capital. As consequências deste facto, em matéria de regulação e de política económica são imen-sas. A teoria da eficiência assenta na ideia de que os investidores procuram e encon-tram a informação mais fiável sobre o valor dos projectos que estão em concorrência na procura de financiamento. A acreditar nesta teoria, o preço formado no mercado reflecte o juízo dos investidores e sintetiza o conjunto da informação disponível: esse preço constitui, portanto, uma boa estima-tiva do verdadeiro valor dos títulos. Ora, é este valor que se supõe capaz de resumir toda a informação necessária para orientar a actividade económica e, assim, a vida social. Nestes termos, os capitais serão investidos nos projectos mais rentáveis abandonando os projectos menos eficazes. É esta a ideia central da teoria: a concorrência financeira produz preços justos que constituem sinais fiáveis para os investidores e orientam efi-cazmente o desenvolvimento económico.Mas a crise veio confirmar os diferentes trabalhos críticos que tinham posto em dú-vida esta teoria. A concorrência financeira não produz necessariamente preços justos. Pior: a concorrência é, muitas vezes, de-sestabilizadora e conduz a evoluções de preços excessivas e irracionais, as bolhas financeiras.O erro maior da teoria da eficiência dos mercados financeiros consiste em transpor para os mercados financeiros a teoria dos mercados dos bens comuns. Neste último caso, a concorrência é, em parte, auto-regu-ladora, em virtude do que se chama a “lei” da oferta e da procura: quando o preço de um bem aumenta, os produtores vão aumentar o volume da oferta e os compradores vão diminuir o nível da sua procura, pelo que o preço baixará até ao seu nível de equilíbrio. Dito de outro modo: quando o preço de um bem aumenta, as forças do mercado tendem a travar e depois a inverter esse curso altis-ta. A concorrência produz o que se chama “retroacções negativas”, forças compensató-rias que contrariam o choque inicial. A ideia de eficiência nasce da transposição directa deste mecanismo para o funcionamento dos mercados financeiros.Ora, em relação a estes últimos, a situa-ção é muito diferente. Quando o preço au-menta, é frequente observar não uma baixa mas uma alta da procura! Com efeito, a

subida do preço significa um rendimento acrescido para aqueles que detêm o título, por efeito da mais-valia realizada. A alta do preço atrai, portanto, novos compra-dores, o que reforça a subida inicial. As promessas de bónus levam os “traders” a amplificar ainda mais o movimento. Até ao incidente, imprevisível, mas todavia inevi-tável, que é a inversão das antecipações, na forma do crash. Este fenómeno, digno dos carneiros de Panurgio, constitui uma “retroacção positiva” que agrava os dese-quilíbrios. É o que se chama uma bolha es-peculativa: uma alta cumulativa dos preços que se alimenta a si mesma. Este tipo de processos não produz preços justos, mas, pelo contrário, preços inadequados.O lugar preponderante ocupado pelos mer-cados financeiros não pode conduzir a qual-quer forma de eficácia. Mais ainda, é uma fonte permanente de instabilidade, como mostra claramente a série ininterrupta de bolhas especulativas que conhecemos ao

longo dos últimos 20 anos: Japão, Sudeste asiático, Internet, mercados emergentes, imobiliário, titularização. A instabilidade financeira traduz-se, assim, por fortes flutua-ções das taxas de câmbio e da Bolsa, que não têm, manifestamente, a menor relação com os fundamentos da economia. Esta instabili-dade dos mercados financeiros propaga-se à economia real por numerosos mecanismos.Para reduzir a ineficiência e a instabilidade dos mercados financeiros, sugerimos quatro medidas:Medida nº 1: Separar estritamente os merca-dos financeiros e as actividades dos bancos e proibir os bancos de especular por conta própria, a fim de evitar a propagação das bo-lhas e dos crashes.Medida nº 2: Reduzir a liquidez e a especu-lação destabilizadora, através de controlos sobre os movimentos de capitais e taxas so-bre as transacções financeiras.Medida nº 3: Limitar as transacções finan-ceiras às que correspondem às necessidades da economia real (Ex: CSD, apenas para o detentores de títulos com seguro).

Medida nº 4: Estabelecer um plafond para as remunerações dos “traders”. FALSA EVIDÊNCIA Nº2:OS MERCADOS FINANCEIROS FAVORECEM O CRESCIMENTO ECONÓMICOA integração financeira levou o poder da fi-nança ao seu ponto culminante pelo facto de unificar e centralizar a propriedade ca-pitalista à escala mundial. Hoje, é ela que determina as normas de rentabilidade exigi-das pelo conjunto dos capitais. O projecto era o de que a finança mercantil e bolsista se substituísse ao financiamento bancário dos investimentos. Projecto que, aliás, fra-cassou, dado que hoje, globalmente, são as empresas que financiam os accionistas e não o contrário. Entretanto, a gestão, ou, como hoje se diz, a “governância” das empresas, foi profundamente transformada para estar a par com as normas de rentabilidade do mercado. Com a ascensão do poder dos ac-

cionistas, impôs-se uma nova concepção da empresa e da sua gestão, que foi posta intei-ramente ao serviço dos accionistas. A ideia de um interesse comum aos diferentes par-ticipantes na vida da empresa desapareceu completamente. Os dirigentes das empresas cotadas na Bolsa têm hoje por única e exclu-siva missão a satisfação do desejo de enri-quecimento dos accionistas. Em consequên-cia, deixam eles mesmos de ser assalariados. Como mostra a ascensão desenfreada das suas remunerações. Trata-se de fazer com que os interesses dos dirigentes sejam coin-cidentes com os interesses dos accionistas.O ROE (return on equity, ou rendimento dos capitais próprios) entre os 15 e os 25% é hoje a norma que o poder da finança impõe às empresas e aos assalariados. A liquidez é o instrumento deste poder, permitindo que a todo o momento o capital não satisfeito possa voar para outras paragens. Peran-te este poderio, tanto a instituição salarial como a soberania política, aparecem, pelo seu fraccionamento, em nítida posição de inferioridade. Esta situação desequilibrada

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leva a exigências de lucro completamente irrazoáveis, porque quebram o crescimento económico e conduzem ao aumento con-tinuado das desigualdades de rendimento. Por outro lado, as exigências de rentabili-dade inibem fortemente o investimento: Quanto mais elevada for a exigência de rentabilidade, mais difícil se torna encontrar projectos que possam satisfazê-la. As taxas de investimento mantêm-se historicamente fracas, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Por outro lado, tais exigências pro-vocam uma pressão constante no sentido da baixa dos salários e do poder de compra que não é favorável ao crescimento da procura. A travagem simultânea do investimento e do consumo conduz a um crescimento fraco e a um desemprego endémico. Esta tendência foi contrabalançada, nos países anglo-saxó-nicos, por um crescimento do endividamen-to das famílias e das bolhas financeiras que criam uma riqueza fictícia e permitem um crescimento do consumo sem crescimento dos salários, mas terminam em crashes.Para remediar os efeitos nefastos dos mer-cados financeiros sobre a actividade econó-mica, apresentamos para debate as seguintes medidas:Medida nº 5: Reforçar significativamente os contra-poderes no seio das empresas para obrigar as direcções a tomar em considera-ção os interesses de todas as partes envol-vidas.Medida nº 6: Aumentar significativamente a imposição fiscal sobre os muito altos rendi-mentos, a fim de desencorajar a corrida aos rendimentos insustentáveis.Medida nº 7: Reduzir a dependência das empresas face aos mercados financeiros, de-senvolvendo uma política de crédito (taxas preferenciais para as actividades prioritárias no plano social e ambiental). FALSA EVIDÊNCIA Nº 3:OS MERCADOS SÃO BONS JUÍZESDA SOLVABILIDADE DOS ESTADOSSegundo os defensores da eficiência dos mercados financeiros, os operadores de mercado tomariam em consideração a si-tuação objectiva das finanças públicas para avaliar o risco de subscrição de um emprés-timo de Estado. Tomemos o caso da dívida grega: os operadores financeiros e os deci-sores avaliam a situação apenas na base das avaliações financeiras. Assim, quando a taxa exigida à Grécia subia até um nível superior a 10 %, cada um calculou que o risco de in-cumprimento (défaut) estava próximo: se os investidores exigem um tal prémio de risco, o perigo deve ser extremo.Trata-se de um profundo equívoco se com-preendermos a verdadeira natureza da ava-liação pelos mercados financeiros. Como estes mercados não são eficientes, os preços que indicam são, muitas vezes, completa-mente desconectados dos fundamentos. Logo, é totalmente irrazoável fiarmo-nos apenas nas avaliações financeiras para julgar uma situação. Avaliar o valor de um título financeiro não é uma operação comparável à mensuração de uma grandeza objectiva, como, por exemplo, a medição do peso de um objecto. Um título financeiro é um direi-to sobre rendimentos futuros: para o avaliar é preciso prever o que será esse futuro. É um caso que tem que ver com um julgamento, não com uma medição objectiva. Porque no instante “t”, o futuro não é de forma alguma pré-determinado. Nas salas de mercado, o futuro é simplesmente aquilo que os ope-radores imaginam que será. Um preço fi-nanceiro resulta de uma crença, uma aposta

sobre o futuro: nada garante que o juízo do mercado tenha uma superioridade qualquer sobre outras formas de julgar.Sobretudo, a avaliação financeira não é neu-tra: ela influi sobre o objecto que avalia, ela compromete o futuro que imagina. Assim, os agentes de notação financeira contri-buem, em larga medida, para determinar as taxas de juro nos mercados de obrigações, atribuindo notas marcada por um elevado coeficiente de subjectividade e mesmo uma vontade de alimentar a instabilidade, fonte de ganhos especulativos. Quando elas de-gradam a notação de um Estado, aumentam o nível da taxa de juro exigida pelos actores financeiros que adquirem os títulos da dívi-da pública desse Estado, aumentando por isso mesmo o risco de incumprimento (dé-faut) que fora anunciado.A fim de reduzir o domínio da psicologia dos mercados sobre o financiamento dos Es-tados, avançamos estas duas medidas:Medida nº 8: As agências de notação finan-ceira não devem ser autorizadas a influir arbitrariamente sobre as taxas de juro dos mercados obrigacionistas, degradando a notação de um Estado: deveria regulamen-tar-se a sua actividade exigindo que a nota atribuída resulte de um cálculo económico transparente.Medida nº 8 bis: Libertar os Estados da ame-aça dos mercados financeiros, garantindo a recompra dos títulos da dívida pública pelo BCE. FALSA EVIDÊNCIA Nº 4:O ACRÉSCIMO DA DÍVIDA PÚBLICA RESULTA DE UM EXCESSODAS DESPESASMichel Pébereau, um dos “padrinhos” da banca francesa, descrevia, em 2005, num deste relatórios oficiaisad hoc, uma França afogada pela sua dívida pública e sacrifican-

do as gerações futuras, entregando-se a des-pesas sociais inconsideradas. Um Estado que se endivida como um chefe de família alco-ólico que bebe acima dos seus meios: eis a visão ordinariamente propagada pela maior parte dos editorialistas. A recente explosão da dívida pública na Europa e no mundo deveu-se, no entanto, a algo completamente diferente: aos planos de salvação da finança e sobretudo à recessão provocada pela crise bancária e financeira que começou em 2008: o deficit público médio da zona euro não ultrapassava 0,6% do PIB em 2007, mas a crise fê-lo passar a 7% em 2010. No mesmo período, a dívida pública passou de 66 % a 84 % do PIB.Todavia, o aumento da dívida pública, em França e numerosos países europeus, foi ini-cialmente moderado e anterior à recessão: ela provém largamente, não de uma tendên-cia para o acréscimo da despesas públicas – visto que, pelo contrário, elas se mantive-ram, em proporção do PIB, estáveis ou em baixa desde o começo do anos 1990 – mas pelo enfraquecimento das receitas públicas devido ao facto da fraqueza do crescimento económico no período e da contra-revolu-ção fiscal lançada pela maior parte dos go-vernos nos últimos vinte e cinco anos. Num prazo mais alargado, a contra-revolução fis-cal alimentou continuamente o aumento da dívida pública entre duas recessões. Assim, em França, um recente relatório parlamen-tar avalia em 100 biliões de euros, em 2010, o custo das baixas de impostos consentidas entre 2000 e 2010, mesmo sem incluir a exoneração das cotizações para a segurança social (30 biliões) e “outros gastos fiscais”. Na falta de uma harmonização fiscal, os Es-tados europeus lançaram-se numa furiosa concorrência fiscal, baixando os impostos sobre as sociedades, os altos rendimentos e os patrimónios. Mesmo se o peso relativo

das diferentes rubricas varia de um país para o outro, a alta quase geral dos deficits públi-cos e dos rácios da dívida pública na Euro-pa, no decurso dos últimos anos, não resulta principalmente de uma deriva culposa das despesas públicas. Um diagnóstico que abre pistas diferentes da sempiterna redução da dívida pública.Para lançar um debate público sobre a ori-gem da dívida e, portanto, sobre os meios de intervir, colocamos em debate esta pro-posição:Medida nº 10: Realizar uma auditoria públi-ca e democrática para determinar as origens da dívida pública e conhecer a identidade dos principiais detentores de títulos dessa dívida e os montantes respectivos. FALSA EVIDÊNCIA Nº 5: É PRECISO REDUZIR AS DESPESAS PARA REDUZIR A DÍVIDA PÚBLICAMesmo que o aumento da dívida públi-ca resultasse parcialmente de uma alta das despesas públicas, cortar estas despesas não contribuiria forçosamente para a solução. Porque a dinâmica da dívida pública não tem muito que ver com a de uma família: a macroeconomia não é redutível à economia doméstica. A dinâmica da dívida depende, em toda a sua generalidade, de vários facto-res: o nível dos deficits primários, mas tam-bém da margem entre a taxa de juro e a taxa de crescimento nominal da economia.Porque se o crescimento é mais fraco do que a taxa de juro, a dívida aumentará me-canicamente pelo “efeito bola de neve”: o montante dos juros explode e  deficit  to-tal (incluindo os juros da dívida) também. Assim, no princípio dos anos 1990, a polí-tica do franco forte, conduzida por Pierre Bérégovoy, e mantida apesar da recessão de 1993-94, traduziu-se por uma taxa de juro duradouramente mais elevada do que a taxa

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de crescimento, explicando o salto da dívida pública da França durante esse período. É o mesmo mecanismo que explicava o aumento da dívida na primeira metade dos anos 1980, debaixo do impacte da revolução neo-libe-ral e da política de taxas de juro elevadas, conduzida por Ronald Reagan e Margaret Thatcher.Mas a própria taxa de crescimento da eco-nomia não é independente da despesa públi-ca: a curto prazo, a existência de uma dívida pública estável limita a amplitude das reces-sões (“estabilizadores automáticos”); a longo prazo, os investimentos e as despesas públi-cas (educação, saúde, investigação, infra-es-truturas…) estimulam o crescimento. É falso afirmar que todo o deficit público aumenta a despesa pública na mesma medida ou que toda a redução do deficit permite reduzir a dívida. Se a redução dos  deficits  domina a actividade económica, a dívida aumentará ainda mais. Os comentadores liberais su-blinham que certos países (Canadá, Suécia, Israel) realizaram ajustamentos brutais das suas contas públicas nos anos 1990 e conhe-ceram logo a seguir um forte crescimento. Mas isso só é possível se o ajustamento se faz num país isolado que rapidamente re-ganha competitividade sobre o seus con-correntes. O que evidentemente esquecem os partidários do ajustamento estrutural europeu é que os países europeus têm por principais clientes e concorrentes os outros países europeus, estando a União Europeia globalmente pouco aberta para o exterior. Uma redução simultânea e massiva das des-pesas públicas do conjunto dos países eu-ropeus só pode ter por efeito uma recessão agravada e, portanto, um novo aumento da dívida pública.Para evitar que o restabelecimento das fi-nanças públicas provoque um desastre social e político, colocamos em debate estas duas medidas:Medida nº 10: Manter o nível das protec-ções sociais ou mesmo melhorá-lo (seguro de desemprego, alojamento…).Medida nº 11: Aumentar o esforço orçamen-tal em matéria de educação, de investigação e investimento na reconversão ecológica… para por em marcha as condições de um crescimento sustentável que permita uma significativa baixa do desemprego.

FALSA EVIDÊNCIA Nº 6: A DÍVIDA PÚBLICA TRANSFERE O PREÇO DOS NOSSOS EXCESSOS PARA OS NOSSOS NETOSHá uma outra afirmação falaciosa que con-funde a economia doméstica com macroe-conomia, a de que a dívida pública represen-taria uma transferência de riqueza em detri-mento das gerações futuras. A divida pública é realmente um mecanismo de transferência de riqueza mas sobretudo dos contribuintes comunas para os beneficiários de rendas.Com efeito, com base na crença raramente verificada de que baixar impostos estimula-ria o crescimento e aumentaria as receitas públicas, os Estados europeus, a partir de 1980, começaram a imitar os Estados Uni-dos numa política de desarmamento fiscal sistemático. As reduções de impostos e de cotizações foram múltiplas (sobre os lucros das sociedades, sobre o rendimento dos particulares mais favorecidos, sobre os pa-trimónios, sobre as cotizações patronais…) mas o seu impacte sobre o crescimento eco-nómico foi muito incerto. Estas políticas fiscais anti-redistributivas vieram agravar, de modo cumulativo, tanto os deficits públicos como as desigualdades sociais.

Estas políticas fiscais obrigaram as admi-nistrações públicas a endividarem-se junto dos mercados financeiros e de famílias com posses para financiar os deficits criados. É o que se pode chamar “o efeito jackpot”: com o dinheiro economizado com a baixa dos impostos, os ricos puderam adquirir títulos da dívida pública (que pagam juros) emitida para refinanciar os deficits provocados pela quebra dos impostos que deixaram de pagar. O serviço da dívida pública em França re-presenta 40 biliões de euros por ano, quase tanto como as receitas dos impostos sobre o rendimento. Tratou-se de um feito tanto mais brilhante quanto é certo que se con-seguiu criar a ideia de que e dívida deve-se ao peso dos funcionários, dos doentes e dos reformados.O aumento da dívida pública na Europa e nos Estados Unidos não foi o resultado de políticas keinesianas expansionistas nem de políticas sociais dispendiosas, mas de uma política de favorecimento das classes privi-legiadas: os “gastos fiscais” (baixas de impos-tos e de cotizações) aumentam o rendimen-to disponível daqueles que menos precisam e facilitam as suas colocações em títulos do Tesouro, remunerados com os juros pagos com os impostos pagos pela generalidade dos contribuintes. Temos como que um re-gime de redistribuição às avessas, das classes populares em favor das classes mais favore-cidas, em virtude da dívida pública cuja con-trapartida é sempre a renda privada.Afim de endireitar, de um modo equitativo, as finanças públicas na Europa e em França, avançamos para debate duas medidas:Medida nº 12: restituir à fiscalidade directa sobre os rendimentos a sua natureza redis-tributiva (supressão dos nichos, criação de novos escalões e aumento das taxas do im-posto sobre o rendimento…)Medida nº 13: suprimir as reduções consen-tidas às empresas que não tenham um efeito visível sobro o emprego. FALSA EVIDÊNCIA Nº 7: É PRECISO TRANQUILIZAR OS MERCADOS FINANCEIROS PARA PODER FINANCIAR A DÍVIDA PÚBLICAA nível mundial, o aumento das dívidas pú-blicas deve ser analisado em correlação com o processo de financiarização da economia. Durante os últimos trinta anos, em favor da completa liberalização da circulação dos ca-pitais, a finança aumentou consideravelmente o seu domínio sobre a economia. As grandes empresas recorrem cada vez menos ao cré-dito bancário e cada vez mais aos mercados financeiros. As famílias vêm uma parte cres-cente das suas poupanças ser drenada para a finança, para o financiamento das suas refor-mas, através dos diferentes produtos de co-locação ou pela via do financiamento da sua habitação (empréstimos hipotecários). Os gestores de carteiras, que procuram diversifi-car os riscos, interessam-se por títulos públi-cos como complemento dos títulos privados. Encontram-nos facilmente no mercado, já que os governos conduzem políticas que le-vam à acumulação dos deficits: taxas de juro elevadas, baixas de impostos selectivas sobre os rendimentos elevados, incitamentos mas-sivos à poupança financeira das famílias para favorecer as reformas por capitalização, etc..A nível da União Europeia (UE), a finan-ciarização da dívida pública foi inscrita nos Tratados; desde Maastricht, os Bancos centrais estão proibidos de financiar direc-tamente os Estados que têm de encontrar quem lhes empreste nos mercados financei-ros. Esta “repressão monetária” acompanha

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a “liberalização financeira” e toma o preciso contra-pé das políticas adoptadas depois da grande crise dos anos 1930, que eram de “repressão financeira” (restrições drásticas à liberdade da acção da finança) e de “libe-ralização monetária” (com o fim do padrão ouro). Trata-se de submeter os Estados, con-siderados, por natureza, demasiado gastado-res, à disciplina dos mercados financeiros, que se supõem omniscientes e eficientes.Em resultado desta escolha doutrinária, o Banco Central Europeu (BCE) não tem o di-reito de subscrever as emissões de obrigações públicas emitidas pelos Estados europeus. Privados da possibilidade de se financiarem junto do BCE, os países do Sul tornaram-se vítimas de ataques especulativos. É certo que, desde há alguns meses, o Banco central que anteriormente recusava fazer isso em nome de uma ortodoxia sem falhas, começou a comprar obrigações de Estados para acalmar as tensões nos mercados obrigacionistas eu-ropeus. Mas nada indica que isso seja sufi-ciente, se a crise vier a agravar-se e as taxas de juro começarem a disparar. Então, será muito difícil manter esta ortodoxia monetária desti-tuída de fundamento científico sério.Para remediar este problema da dívida públi-ca, apresentamos para debate duas medidas:Medida nº 14: Autorizar o BCE a financiar directamente os Estados (ou impor aos ban-cos comerciais a subscrição de obrigações públicas) a taxas de juro baixas, libertando--os do garrote que lhes é imposto pelos mer-cados financeiros.Medida nº 15: Em caso de necessidade, rees-truturar a dívida pública, estabelecendo, por exemplo, umplafond a certo nível do PIB, e operando uma discriminação entre credores segundo o volume de títulos que detenham: os grandes detentores deverão consentir num alongamento sensível do perfil da dí-vida ou mesmo anulações parciais ou totais. É preciso igualmente renegociar as taxas de juro exorbitantes dos títulos emitidos, desde a crise, pelos países em dificuldades. FALSA EVIDÊNCIA Nº 8: A UNIÃO EUROPEIA DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEUA construção europeia apresenta-se como uma experiência ambígua. Há duas visões da Europa que coexistem sem ousar afrontar-se directamente. Para os sociais-democratas, a Europa deveria ter por objectivo promover o modelo social europeu, fruto do compro-misso social do após guerra, com a sua pro-tecção social, os seus serviços públicos e as suas políticas industriais. Ela deveria consti-tuir uma barreira face à mundialização libe-ral, um meio de fazer progredir e prosperar este modelo. A Europa deveria defender uma visão específica da organização da eco-nomia mundial, uma mundialização regula-da por organismos de governação mundial. Ela deveria permitir aos países membros a manutenção de um nível elevado de despe-sas públicas e de redistribuição, protegendo a sua capacidade de os financiar, através da harmonização da fiscalidade sobre as pesso-as, as empresas e os rendimentos do capital.Todavia, a Europa não quis assumir a sua especificidade. A visão actualmente domi-nante em Bruxelas e no seio da maior parte dos governos nacionais é, pelo contrário, a de uma Europa liberal cujo objectivo é o de adaptar as sociedades europeias às exigências da mundialização: a construção europeia é a oportunidade para pôr em causa o modelo social europeu e desregular a economia. A predominância do direito da concorrência sobre as regulações nacionais e sobre os di-

reitos sociais, no Mercado Único, permite a introdução de uma maior concorrência nos mercados de produtos e serviços, diminuir a importância dos serviços públicos e organi-zar a colocação em concorrência dos traba-lhadores europeus entre si. Esta concorrência social e fiscal permitiu reduzir os impostos, designadamente sobre os rendimentos do capital e das empresas (“as bases móveis”), fazendo pressão sobre as despesas sociais. Os Tratados garantem quatro liberdades funda-mentais: a livre circulação das pessoas, das mercadorias, dos serviços e dos capitais. Mas, longe de se limitar ao mercado europeu, a li-berdade de circulação dos capitais foi alarga-da aos investidores do mundo inteiro, subme-tendo assim o tecido produtivo europeu aos constrangimentos da valorização dos capitais internacionais. A construção europeia apare-ce assim como o meio de impor aos povos europeus as reformas neo-liberais.A organização da política macroeconómica (independência do Banco Central Europeu em relação à política, Pacto de Estabilidade) é marcada pela desconfiança em relação aos go-vernos democraticamente eleitos. Trata-se de privar os países de toda a autonomia em maté-ria de política monetária, como em matéria de política orçamental. O equilíbrio orçamental tem que ser atingido, já que toda a política de relançamento foi banida, para deixar jogar apenas a “estabilização automática”. Nenhuma política conjuntural comum é executada ao ní-vel da zona euro, nenhum objectivo comum em termos de crescimento ou de emprego é definido. As diferenças de situação entre os países não são tomadas em conta, visto que o pacto não se interessa nem pelas taxas de in-flação nem pelos  deficits  externos nacionais. Os objectivos das finanças públicas não têm em conta as situações económicas nacionais.As instâncias europeias procuraram impul-sionar, com êxito desigual, algumas refor-mas estruturais (por exemplo, as Grandes orientações de políticas económicas, o Mé-todo aberto de coordenação, ou a Agenda de Lisboa). O seu modo de elaboração não foi nem democrático nem mobilizador, a sua orientação neo-liberal não correspon-dia obrigatoriamente às políticas decididas ao nível nacional, tendo em conta a relação de forças existente em cada país. Tal orien-tação não conheceu os êxitos retumbantes que pudessem legitimá-la. O movimento de liberalização económica foi posto em causa (fracasso da directiva Bolkenstein); alguns países tentaram nacionalizar as suas políti-cas industriais enquanto que a maior parte se opôs à europeização das suas políticas fiscais ou sociais. A Europa social continua a ser uma palavra vã, só a Europa da concorrência e a da finança se afirmou realmente. Para que a Europa possa promover realmen-te um modelo social europeu, pomos em de-bate duas medidas:Medida nº 16: Pôr em causa a livre circu-lação dos capitais e da mercadorias entre a União Europeia e o resto do mundo, nego-ciando os acordos bilaterais ou multilaterais que se mostrem necessários.Medida nº17: Em vez da política de concor-rência, fazer da “harmonização no progres-so” o fio director da construção europeia. Definir objectivos constrangentes comuns em matéria de progresso social e em matéria macroeconómica (GOPS – Grandes orien-tações de política social). FALSA EVIDÊNCIA Nº 9: O EUROÉ UM ESCUDO CONTRA A CRISEO euro poderia ter sido um factor de pro-tecção contra a crise financeira mundial. A

supressão de toda a incerteza sobre as taxas de câmbio entre as moedas europeias elimi-nou um grande factor de instabilidade. No entanto, nada disso aconteceu: a Europa foi mais duramente afectada pela crise do que o resto do mundo. Isso tem que ver com as próprias modalidades da construção da união monetária.Desde 1999, a zona euro conheceu um crescimento relativamente medíocre e um acréscimo das divergências entre os Esta-dos membros, em termos de crescimento, de inflação, de desemprego e de dese-quilíbrio das contas externas. O quadro da política económica da zona euro que tende a impor políticas macroeconómi-cas semelhantes para países em situações muito diferentes, alargou as disparidades de crescimento entre os Estados membros. Na maior parte dos países, em especial os maiores, a introdução do euro não provo-cou a prometida aceleração do crescimen-to. Para os outros houve crescimento mas ao preço de desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e orça-mental, reforçada pelo euro, permitiu que todo o peso do ajustamento fosse suporta-do pelo trabalho. Foi promovida a flexibi-lidade e a austeridade salarial, reduzindo a parte do trabalho no rendimento total, aumentando as desigualdades.Esta corrida para o fundo, no social, foi ganha pela Alemanha, que soube libertar enormes excedentes comerciais em detrimento dos seus concorrentes e, sobretudo, dos seus pró-prios assalariados, impondo uma baixa maior dos custos do trabalho e das prestações so-ciais, por comparação com os seus vizinhos, que não conseguiram tratar os seus trabalha-dores com tanta dureza. Os excedentes co-merciais alemães pesam sobre o crescimento dos outros países europeus. Os deficits orça-mentais e comerciais de uns são a contrapar-tida dos excedentes dos outros. Porque os di-ferentes Estados não foram capazes de definir uma estratégia coordenada.A zona euro deveria ter sido menos atingi-da pela crise financeira do que os Estados Unidos ou o Reino Unido. As famílias estão menos envolvidas nos mercados financeiros que são menos sofisticados. As finanças pú-blicas estavam em melhor situação: o defi-cit público do conjunto dos países da zona euro era de 0.6 % do PIB em 2007, contra perto de 3% nos Estados Unidos, Reino Uni-do e Japão. Mas a zona euro padecia de um cruzamento de desequilíbrios: os países do Norte (Alemanha, Áustria, Holanda, Países Escandinavos) refreavam os seus salários e a sua procura interna, acumulando excedentes no comércio externo, enquanto os países do Sul (Espanha, Grécia, Portugal) tinham um crescimento com algum vigor, com taxas de juro baixas mas acumulavam  deficits  exte-riores.Quando a crise estalou nos Estados Unidos, estes tentaram implementar uma real poli-tica de relançamento orçamental e mone-tário, iniciando um movimento de retorno à regulação financeira. A Europa, pelo con-trário, não soube comprometer-se com uma política suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental não foi além de 1,6 % do PIB na zona euro, contra 3,2 % no Reino Unido e 4,2 % no Estados Unidos. A quebra da produção devida à crise foi ní-tidamente mais forte na zona euro do que nos Estados Unidos. O crescimento dos de-ficits orçamentais na zona euro foi mais so-frido que o resultado de uma política activa.Ao mesmo tempo, a Comissão continuou a desencadear processos de  deficit  excessivo

contra os Estados membros, de tal sorte que, em 2010, praticamente a totalidade dos paí-ses europeus enfrentava um processo. A Co-missão solicitou aos Estados membros que se comprometessem a regressar, antes de 2013 ou 2015, à barra de 3% independente-mente da evolução económica de cada um. As instâncias europeias continuam a recla-mar políticas salariais restritivas e a pôr em causa os sistemas públicos de reforma e de saúde, com o risco evidente de fazer mergu-lhar o Continente numa depressão e aumen-tar as tensões entre os países. Esta ausência de coordenação e, mais fundamentalmente, a ausência de um verdadeiro orçamento eu-ropeu capaz de permitir autêntica solidarie-dade entre os Estados membros incitou os operadores financeiros a afastarem-se do euro e a especular abertamente contra ele.Para que o euro possa realmente proteger os cidadãos europeus da crise, avançamos para debate duas medidas:Medida nº 18: Garantir uma verdadeira co-ordenação das políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus.Medida nº 19: Compensar os desequilíbrios de pagamentos na Europa com um Banco de Pagamentos (organizadora dos empréstimos entre países europeus).Medida nº 20: Se a crise conduzir ao desa-parecimento do euro e, enquanto esperamos a instalação de um regime de orçamento europeu (cf. infra), estabelecer um regime monetário intra-europeu (moeda comum do tipo “bancor”) que organize a reabsorção dos desequilíbrios das balanças comerciais no seio da Europa. FALSA EVIDÊNCIA Nº 10: A CRISE GREGA PERMITIU QUE FINALMENTE SE AVANÇASSE PARA UM GOVERNO ECONÓMICO E UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIAA partir de meados de 2009, os mercados financeiros começaram a especular sobre as dívidas dos países europeus. Globalmente, o forte aumento das dívidas e dos deficits pú-blicos à escala mundial (ainda) não acarretou a alta das taxas de juro de longo prazo: os operadores financeiros pensam que os bancos centrais manterão bastante tempo as taxas de juro reais a um nível próximo de zero e que não há risco de inflação ou de incumprimento (“défaut”) por parte de um grande país. Mas os especuladores perceberam as falhas da or-ganização da zona euro. Enquanto os gover-nos dos outros países desenvolvidos podem sempre ser financiados pelos seus respectivos bancos centrais, os países da zona euro re-nunciaram a essa possibilidade, e dependem totalmente dos mercados financeiros para o financiamento dos seus  deficits. Em conse-quência, a especulação pôde desencadear-se sobre os países mais frágeis da zona euro: a Grécia, a Espanha, a Irlanda.As instâncias europeias e os governos tarda-ram em reagir, não querendo dar a impressão de que os países membros tinham direito a um apoio sem limite por parte dos seus par-ceiros e querendo sancionar a Grécia, culpa-da de haver mascarado – com a ajuda da Gol-dman Sachs – a dimensão dos seus deficits. Todavia, em Maio de 2010, o BCE e os países membros tiveram que criar, com urgência, um Fundo de estabilização para indicar aos mercados que aportariam um apoio sem limi-te aos países ameaçados. Em contrapartida, estes países foram obrigados a anunciar pro-gramas de austeridade orçamental sem pre-cedentes, que irão condená-los a um longo período de recessão. Sob pressão do F.M.I. e

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da Comissão Europeia, a Grécia teve que pri-vatizar os seus serviços públicos e a Espanha que flexibilizar o seu mercado de trabalho. Mesmo a França e a Alemanha, que não es-tão sob a ameaça da especulação, anunciaram medidas restritivas.No entanto, globalmente, a procura não é de modo algum excessiva na Europa. A situação das finanças públicas é melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, permitin-do uma ampla margem de manobra orçamen-tal. É preciso reabsorver os desequilíbrios de um modo coordenado: os países excedentários do Norte e do Centro da Europa devem levar a cabo políticas expansionistas – alta dos salá-rios e das despesas sociais – para compensar as políticas restritivas dos países do Sul. Glo-balmente, a política orçamental não deve ser restritiva na zona euro, enquanto a economia europeia não se aproxime do pleno emprego a uma velocidade satisfatória. Mas os partidários das políticas orçamentais automáticas e restritivas na Europa estão hoje, infelizmente, numa posição reforçada. A cri-se grega permite fazer esquecer as origens da crise financeira. Aqueles que aceitaram apoiar financeiramente os países do Sul querem im-por, em contrapartida, um endurecimento do Pacto de estabilidade. A Comissão e a Alema-nha querem impor a todos os países membros a inscrição do objectivo do equilíbrio orça-mental nas suas constituições e exercer uma vigilância da política orçamental por comités de peritos independentes. A Comissão quer impor a todos os países uma longa cura de aus-teridade para regressarem a uma dívida públi-ca inferior a 60 % do PIB. Se há um avanço no sentido de um governo económico europeu é um avanço para um governo que, em vez de

desapertar o garrote da finança, quer impor a austeridade e aprofundar as “reformas” estrutu-rais em detrimento das solidariedades sociais em cada país e entre todos.A crise oferece às elites financeiras e às tecno-cracias europeias a tentação de por em prática a “estratégia de choque”, aproveitando a crise para radicalizar a agenda neo-liberal. Mas esta política tem muito poucas possibilidades de êxito:- A diminuição das despesas públicas vai comprometer o esforço necessário, à escala europeia, para sustentar as despesas de futu-ro (investigação, educação, política familiar), para ajudar a indústria europeia a manter-se e a investir nos sectores de futuro (economia verde).- A crise vai permitir a imposição de fortes reduções das despesas sociais, objectivo in-cansavelmente prosseguido pelos defensores do neo-liberalismo, com o risco de compro-meter a coesão social, reduzir a procura efecti-va, levar as famílias a poupar mais - para a sua reforma e a sua saúde - junto de instituições financeiras responsáveis pela crise.  - Os governos e as instâncias europeias re-cusam-se a realizar a harmonização fiscal que permitiria a necessária elevação dos impostos sobre o sector financeiro, sobre os patrimó-nios importantes e os rendimentos elevados.- Os países europeus estão em vias de ins-taurar duradoiramente políticas orçamentais restritivas que irão pesar enormemente sobre o crescimento. As receitas fiscais vão cair. As-sim, os deficits públicos não irão melhorar, os rácios da dívida degradar-se-ão, os mercados não vão acalmar.- Os países europeus, dada a diversidade das suas culturas políticas e sociais, não têm que

vergar-se, na sua totalidade, à disciplina férrea imposta pelo Tratado de Maastricht; também não se vergarão todos ao reforço que pretende organizar-se actualmente. O perigo de desen-cadear uma dinâmica de recolhimento identi-tário generalizado é real.Para avançar no sentido de um governo eco-nómico e uma solidariedade europeia avança-mos para debate duas medidas:Medida nº 21: Desenvolver uma fiscalidade europeia (taxa de carbono, imposto sobro os lucros e as mais valias…) e um verdadeiro or-çamento europeu para facilitar a convergência das economias e tender para uma equalização das condições de acesso aos serviços públicos e sociais nos diferentes Estados membros, com base nas melhores práticas. Medida nº 22: Lançar um vasto plano europeu, financiado por subscrição junto do público, a uma taxa de juro baixa mas garantida e/ou por criação monetária do BCE, para fazer face à reconversão ecológica da economia europeia. 

CONCLUSÃO QUESTIONAR A POLÍTICA ECONÓMICA, TRAÇAR CAMINHOS PARA REFUNDAR A UNIÃO EUROPEIAA Europa tem vindo a construir-se, desde há três decénios, sobre uma base tecnocrá-tica, excluindo as populações do debate da política económica. A doutrina neo-liberal que repousa sobre a hipótese hoje indefen-sável da eficiência dos mercados financeiros tem que ser abandonada. É preciso reabrir o espaço das políticas possíveis e colocar

em debate propostas alternativas coerentes que travem o poder da finança e organizem a harmonização, no progresso, dos sistemas económicos e sociais europeus. Isto supõe a mutualização de importantes recursos orça-mentais, possibilitada pelo desenvolvimento de uma fiscalidade europeia fortemente re-distributiva. É preciso libertar os Estados do garrote dos mercados financeiros. Só assim, o projecto da construção europeia poderá reencontrar a legitimidade popular e demo-crática que hoje lhe falta.Evidentemente que não é realista imaginar que 27 países decidirão, ao mesmo tempo, uma ruptura deste tipo no método e nos objectivos da construção europeia. A Comunidade Eco-nómica Europeia começou com seis países: a refundação da União Europeia passará tam-bém, no princípio, por um começo de acor-do entre alguns países desejosos de explorar caminhos alternativos. À medida em que se forem tornando evidentes as consequências desastrosas das políticas hoje adoptadas, o de-bate sobre as alternativas começará a crescer em toda a Europa. Lutas sociais e mudanças políticas advirão em ritmo diferente, segundo os países. Governos nacionais tomarão solu-ções inovadoras. Quem realmente o desejar, poderá participar em formas de cooperação inovadoras para tomar as medidas necessárias em matéria de regulação financeira, de política fiscal ou social. Através de propostas concre-tas, estenderão a mão a outros povos para que se juntem ao movimento.Foi por isso que nos pareceu importante esbo-çar e colocar ao debate, desde já, as grandes linhas da política económica alternativa que tornarão possível esta refundação da constru-ção europeia. 

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José simões morais

A TRÊS horas de viagem de Wuhan, ca-pital de Hubei, encontra-se uma pacata cidade envolvida por terrenos agrícolas, onde muitas são as preciosidades arqueoló-gicas escondidas e outras por desenterrar. Ao atravessar a urbe, ainda cheia de céu e de um rural estar, caminhando parece que recuamos no tempo e 5000 anos tinham passado quando chegámos ao hotel, cujo nome era o da montanha Li, onde Shen Nong nasceu. Malas no quarto e telefona-mos ao sr. Han, que em Macau nos tinha apresentado Suizhou.

Mais nos tinha atraído, ao falar ser essa a terra onde nasceu Shen Nong, mas achámos estranho, já que vínhamos de uma viagem a Bao Ji, província de Shaan-xi, onde também nos afirmaram o mesmo. Ainda na praça do Senado ficámos a sa-ber que este ano, no dia 16 de Maio, ia haver uma grande festividade em honra de Yan Di em Suizhou. Que esta terra es-tava ligada ao vinho, à música, pois fora encontrado num túmulo, do período da dinastia Zhou, o maior instrumento mu-sical conhecido por bianzhong. O repto, naquela pequena feira em Macau onde as províncias chinesas se davam a conhecer, estava aceite e foi assim que chegamos a Suizhou. Quando, voltando à realidade, demos conta outra vez de nós, estávamos perante a imensa imagem em metal a re-presentar Shen Nong, no jardim de Yan Di.

A cidade é pequena e após ver as mu-ralhas, com os tijolos assinados a parecer dar a credibilidade ao monumento da di-nastia Qing, onde não falta um ribeiro a fazer de fosso, seguimos para o museu. Soubemos mais tarde que a muralha ad-mirada era uma recente produção, apesar de ainda existirem restos da verdadeira. Se em Wuhan, para conhecer a extensa cida-de, se passeia ao longo de uma tarde nos autocarros citadinos, aqui em Suizhou é o museu que nos dará as pistas para conhe-cer melhor a História da cidade.

Estarão os leitores a pensar a razão de

Para assistir às celebrações em honra de Yan Di viajámos até Suizhou, na província de Hubei, onde conhecemos a terra natal de Shen Nong, um dos Imperadores Ancestrais

EM SUIZHOU, CIDADE DA MÚSICA E DO VINHO

NA PISTA DE YAN DI

umas vezes aparecer Shen Nong e outras vezes lhe dar o nome de Yan Di. Mas não é que numa das salas de exposição havia uma questão que quase equivalia a essa. Por quê umas vezes aparecia o nome Zeng e noutras, o de Sui para falar sobre um rei-no, ou seriam dois diferentes? Se gravados nos objectos em bronze encontrados no túmulo do Marquês Yi só aparecia Zeng e nunca Sui, já nos outros registos era apenas Sui que estava escrito. Apesar de datados no mesmo local e tempo seriam o mesmo reino? Tantos eram os objectos

deslumbrantes pelo rendilhado e riqueza artística, que deixámos escapar essa res-posta.

O nosso olhar estava agora virado para o bianzhong, composto por 64 sinos de bronze cuja particularidade era cada um deles poder tocar com duas notas dife-rentes. A fina técnica de fundição e o alto nível atingido pelo seu vibrar, cuja resso-nância tinha um conjunto de duas notas, só foi desviado quando olhando para o tecto vemos projectado o mapa das 28 constelações que dão o Céu de um ano

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Solar. Numa sala ao lado escutamos o som cristalino do instrumento musical, mas quando lá chegamos, já o pequeno espec-táculo de demonstração tinha terminado.

O museu era a melhor forma de fugir ao calor do meio-dia e, segundo o que nos diziam, este começava a despontar pois faltava um dia para o aniversário de Yan Di, no meio da Primavera, quando começa o tempo a aquecer. Afirmam-nos também que aqui as quatro estações são bem definidas. Reparando agora numa sé-rie de placas escritas em chinês e inglês

com a descrição das peças acima expostas e a sua data, observamos a repetição da palavra vinho. Estamos numa zona ligada ao vinho chinês, como os habitantes de Suizhou gostam de dizer e lembrat que a maior parte dos objectos existentes no museu a ele está conectado. A nossa pri-meira recordação foi logo para o jantar do dia anterior, onde nos apresentaram o local vinho chinês “Yandi Shennong” e a que, mais ao menos por brincadeira, mais ao menos a sério, chamam o Moutai de Hubei. Com quarenta graus de teor alcoó-lico acompanhou perfeitamente os pratos de carne, com excepção do carneiro, pois a estação do frio terminara e o restauran-te já não o tinha como prato, apesar de aparecer nas fotografias da ementa. Agora os vegetais ..., esses, com um sabor pleno enriquecido pelos minerais absorvidos da terra, apresentavam uma grande variedade e todos eram deliciosos. Salientamos o de nome pau pau xin.

NO CAMINHO DE LIGAÇÃO

Suizhou encontra-se a meio caminho en-tre o vale médio do rio Amarelo (Huan-ghe) e o do rio Longo (Changjiang), mais conhecido por Yangtzé. Aqui no Neolíti-co viveu a tribo Jiang, talvez proveniente do povo Diaolongbei e liderada por Shen Nong. Esta tribo conheceu nesse período um grande desenvolvimento muito devi-do aos conhecimentos do seu chefe, tais como o ter ensinado as pessoas a semear, promovendo assim a produção agrícola e a produzir instrumentos a ela ligada, es-timulando os mercados com o fim de in-centivar as trocas comerciais dos produtos excedentários.

A técnica de fazer vinho já então exis-tia, como indicam os muitos objectos de cerâmica para esse fim encontrados na área, assim como o da tecelagem, que ele

ÀS CINCO e meia da manhã já estamos de pé, pois ainda é preciso percorrer de auto-carro um percurso de 16 km para chegar ao extenso parque Yan Di, onde se realizam as cerimónias de sacrifício ao Imperador da Terra, um dos três Ancestrais da civilização chinesa. Esperavam-se 20 mil pessoas, com todos os altos dirigentes de cada uma das prefeituras de Hubei, assim como o gover-nador desta província, tal como represen-tantes de outros locais da China. O movimento era enorme na estrada e por isso, a lentidão com que o nosso transporte percorreu o percurso, permitiu observar as inúmeras fábricas de veículos pesados que a ladeavam. Dizem-nos ser Suizhou a ca-pital dos transportes pesados, já que aqui são feitos a maioria dos camiões, haven-do muitas fábricas que os constroem para as mais variadas funções, como carros de bombeiros, até camiões betoneira. O gran-de mercado, para além da China, é o dos países de África e América do Sul.No dia anterior tínhamos sido avisados que, para assistir à cerimónia, teríamos que vestir calça escura e camisa branca e foi nesse mar branco de gente que per-corremos o longo caminho até em frente ao grande palácio onde, no interior se encontra registados todos os apelidos chineses, para além da estátua de pedra com a imagem de Yan Di em cujo regaço repousam espigas, não fosse ele também o deus da Agricultura.Com os lugares divididos em sectores, em cada um dos assentos encontra-se um saco com uma garrafa de água, uma toa-lha e uma longa tira de seda amarela para ser colocada ao pescoço.A cerimónia, transmitida em directo pela CCTV e o canal Fênix de Taiwan, vai co-meçar e todos os passos do antigo rito de sacrifício são seguidos. Com o toque do gongo e tambor cada um enorme e situa-do nas partes laterais do enorme edifício, o cortejo inicia-se, ladeado por bandeiras com todos os apelidos das famílias chine-sas. À frente o mestre da cerimónia, que vai ler o discurso em honra de Yan Di, é acom-panhado por seis pessoas, seguidos por 72 hou, que representam o número de tribos aquando da união de Yan Di a Huang Di. Depois, grupos de figurantes que transpor-tam cada um, os símbolos do contributo de Sheh Nong ao seu povo e os produtos des-

ta terra, como são os cogumelos e os potes de cerâmica. Antes das personalidades go-vernamentais que encerram o cortejo, vem o grupo de esbeltas raparigas que transpor-tam cada uma, um instrumento musical co-nhecido por ‹se›. Começa a parte mais importante da ceri-mónia, com a leitura do discurso em hon-ra de Yan Di e após este, quatro jovens, um da Universidade de Ciências e Tec-nologia de Macau e os outros de Hong Kong, Taiwan e de Hubei, cada um em-punhando uma tocha, dão início à cele-bração das oferendas e dos sacrifícios. Seguem-se as principais individualidade oficiais, com os mesmos gestos e segui-dos, sem saírem dos seus lugares, todos os que assistem à cerimónia. Depois, já com as portas abertas do Palácio e de novo to-dos sentados, dá-se início ao espectáculo.No largo pátio exterior começam a evoluir com um agitado movimento, as bandeiras, que se misturam por entre a assistência. Danças e artistas famosos chineses dão também o seu contributo às festividades.O Sol forte incomodava a inúmera assis-tência que durante as duas horas de ceri-mónia e sem poder abrir os guardas sóis, na pele comprovam o saber local que diz: «o calor em Suizhou chega a 26 do quar-to mês lunar, dia do aniversário de Shen Nong».Na despedida, o sr. Han, em jeito de nos trazer de volta a Suizhou, fala-nos do festi-val da flor Lan Hua, que irá acontecer en-tre Junho e Julho. Muitos são os coreanos que por essa altura aqui vêm para as ver e comprar, pois são verdadeiramente loucos por esta flor, cujo aroma é deslumbrante. As sementes apenas aqui nesta terra se dão. Com folhas verdes que nas extremidades passam a douradas, assim como cada uma das pétalas têm várias cores, sem ser usado nenhum corante. Quando abrem, duram um mês. Também daqui os coreanos e ja-poneses importam dois tipos de cogume-los, o ‹mu er› e o ‹xiang gu›.Voltamos à cidade de Suizhou, que é a capital de prefeitura com dois milhões de habitantes, para ir buscar a nossa baga-gem. Tínhamos daqui comboio directo para Guangzhou (Cantão), numa viagem feita à noite que demora 12 horas. Tempo mais que suficiente para descansarmos do já longo dia e chegar frescos a Macau.

FESTIVIDADES EM HONRA DE YAN DIUM RITUAL PARA TODA A CHINA

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O ARTHUR’S

Pedro Lystmanna revolta do emirestimulou e desenvol-veu. Ensinou a construir casas de barro e madei-ra, que vieram substi-tuir as cavernas onde o povo até então habitava e levou as pessoas a co-zinharem os alimentos. Entrando pela monta-nha dentro, Shen Nong, ao provar centenas de plantas, distinguiu as que o povo podia usar e as venenosas e assim a medicina apareceu. Com esse saber, ajudava a recuperar os enfermos, o que lhe valeu ficar com o nome ligado a um livro de medicina, Matéria Mé-dica de Shen Nong, escrito entre as dinastias Qin e Han. Promoveu também a cultura musical cons-truindo instrumentos como o ‘qin’ e o ‘se’.

Shen Nong (Yan Di), em conjunto com o Imperador Amarelo (Huang Di), juntando as suas tribos, criaram um único povo, os Huaxia, que são os primogénitos do povo chinês.

Já na dinastia Xia, o sexto rei, Shao Kang, em meados do século XIX a. C., criou o Esta-do Zeng e ofereceu o governo ao segundo fi-lho, o príncipe Qu Lie. Situado na área entre Suizhou e Zaoyang, era controlada já pela di-nastia Shang quando o rei Wu Ding, liderando as tropas Shang contra os Jing Chu, passou por esse corredor. Pelos ob-jectos de bronze aí en-contrados em 1977 num túmulo Shang percebe--se que também esta dinastia deu um impul-so ao desenvolvimento desta zona.

No período da dinas-tia Zhou, no inverno de 506 a.C., o rei do Estado Wu, He Lu ataca o Es-tado Chu e após o der-rotar, marcha até Ying, a capital dos Chu, onde alguns dos seus oficiais escavam o túmulo do rei Ping e o profanam. En-tão, o rei Zhao em pâni-co escapou e refugiou-se no reino Sui. Ao saber de tal, He Lu enviou para aí o seu exército e

advertiu o povo Sui com as seguintes palavras: “A maior parte dos reinos Ji, descendentes da casa real dos Zhou, que ha-bitavam a área entre os rios Longo e o Yangtzé foram subjugados pelos Chu. Por favor entre-guem o rei Chu.” Os Sui responderam: “Somos um pequeno reino vizi-nho dos Chu e eles sem-pre nos deixaram existir. Isto aconteceu porque há gerações que temos um pacto, que nunca foi quebrado.”

Baseando-se nesse pacto, recusaram entre-gar o rei Zhao que, sen-do protegido pelos Sui, ficou eternamente grato ao Marquês Yi, que go-vernava o reino. Após o Marquês Yi morrer no ano 433 a.C., o filho de Zhao, o rei Hui (488-432 a.C.) do Estado Chu foi assistir ao funeral e enviou o sino comemo-rativo Bo, como símbolo de amizade.

Os achados arque-ológicos do túmulo do Marquês Yi do reino Zeng, encontrado no verão de 1978 em Leigu-den, a 2,5 km a NW da cidade de Suizhou, for-mam a parte mais pre-ciosa do recheio do mu-seu. Quinze mil peças, que vão desde as enor-mes caixas de madeira lacada pintada com sím-bolos astronómicos que serviram de sarcófagos, instrumentos musicais, vasos rituais, armas e carros de combate e ar-maduras, tanto para os guerreiros, como para os cavalos. Finas peças de bronze, ouro, prata e jade são alguns dos muitos objectos raros expostos, não faltando o sino comemorativo Bo.

Foi também ao per-ceber que os objectos de laca encontrados no túmulo do marquês Yi perderam todo o seu brilho e cor, devido à exposição ao ar, que se achou preferível manter os novos achados arque-ológicos resguardados, em vez de os trazer para a luz do dia. Agora não há pressa em desenterrar os novos túmulos já en-contrados.

Continuação da pág. anterior

Este é um cocktail improvável mas nele en-tram o reconhecimento de uma falta, a morte de um ídolo de juventude, um bar de Kuala Lumpur e uma conclusão importante sobre os bares de Macau.

Quem sabe dizer o nome de um cocktail ale-mão? O que nos chega deste país poderoso mas, no entanto, desconhecido? Apenas o vinho e, principalmente, uma grande variedade de cer-vejas. O cocktail, se pensarmos na Alemanha de um modo tradicional, parece um distante e improvável capricho. Este país não deu ao mundo nenhuma mistura que tenha alcançado fama. Estas vêm dos ingleses, um povo que tem tido tempo e disposição para a bebida de fim de tarde (não consigo, admirativamente, deixar de pensar nos ingleses como um povo que não tem nada para fazer) ou dos americanos, cuja pro-pensão, ao invés, convival e empresarial os atrai inevitavelmente aos lugares onde se possam be-ber martinis ou cosmopolitans. Quantas decisões importantes para o mundo foram tomadas na América fundadas nos vapores do gin e de uma insinuação pedante de vermoute? Quantas deci-sões foram tomadas como resultado do abando-no deleitoso aos almoços de 3 martinis, hábito que Jimmy Carter considerou suficientemente per-nicioso para o interesse nacional a ponto de o criticar directamente numa campanha eleitoral?

Da Alemanha, que gostamos de imaginar maioritariamente protestante (mas que em rigor não o é), em matéria de bebida transparece ape-nas uma austeridade setentrional e, sim, protes-tante. Se de Portugal se celebrizou o Porto, da Escócia o uísque, da Inglaterra o gin tónico e de Manhattan o martini, da Alemanha lembramos o quê? O Kir? Alsterwasser? Por favor.

Estas considerações vêm a propósito de uma circunstância improvável - a morte, dia 18 de Maio, de um ídolo de juventude. Dietrich Fischer-Dieskau foi, sem discussão possível, o cantor de lieder mais importante e celebrado do século século XX. Este cultivou outras formas vocais que não o lieder, como a ópera ou a mú-sica religiosa, mas foi neste formato íntimo, de chambre, tantas vezes acompanhado por Gerald Moore, que, durante tantos anos, mais o apre-

ciei (a interpretar Schubert ou Schumann, mas também Mahler ou Wolf).

A morte deste ídolo, que a imprensa local previsivelmente ignorou, obrigou-me a uma be-bida celebratória e a pensar na pobreza da con-tribuição alemã nesta matéria.

Tentar descrever, mesmo que sumariamente, a sua brilhante carreira, seria fastidioso e inútil. Abandonar a compostura e entrar em sentimen-talismos pouco elegante. Hoje já não existe o culto do disco como objecto mas a música está cada vez mais disponível, sob variadíssimas for-mas, e a ideia de que poderá deixar de haver ídolos da juventude permanece impensável.

Onde encontrar um bar em Macau em que se possa celebrar a vida de Fischer-Dieskau? Difí-cil. Porque falta algo que existe noutras capitais americanas, europeias e asiáticas: o hábito de beber antes de jantar num lugar onde se tenha criado já um conforto do tempo. Não havendo em Macau nenhum bar de hotel antigo, leva-rá tempo para que se fixe a clientela essencial a uma convivência confortável e urbana. Apenas num lugar, que será certamente alvo de várias crónicas futuras, se criou um ambiente parecido: no Bar Temptations no Hotel Star World. Não me repugna prever que o tempo e a abertura de novos hotéis construam um complexo de lazer que permitam a sedimentação deste hábito ne-cessário.

Actualmente, uma das causas desta insuficiên-cia é de fácil identificação: a permanência de uma cultura pequeno-burguesa dos valores da aparên-cia profissional que obriga os clientes à fixação inútil nos escritórios e os afasta dos bares, onde a libertação das inibições promoveria a ousadia e a criatividade que tanto faltam ao território. O traço mental que inspira esta incapacidade reside numa circunstância dificilmente ultrapassável a curto prazo. A de que Macau é, estruturalmente, ainda, uma sociedade rural e sedentária.

Num país muçulmano fui encontrar, recen-temente, um estado de coisas muito diferente, mais precisamente em Kuala Lumpur. Em vários lugares se aprecia uma saudável disposição para o convívio e para a bebida, um aproveitamento dos arranha-céus (nunca a palavra foi tão apro-priada) para bares de terraço e uma diversidade imensa de conceitos.

No Arthur’s Bar and Grill do Hotel Shangri--la deparamos com uma cópia de um conceito nova-iorquino exótico a Macau e cuja celebra-ção nunca será bastante - a da casa de bifes a que se junta um bar digno desse nome. Esta ideia, associada ao famoso enclave americano, preten-de juntar os prazeres da bebida, da comida e da conversa, 3 valores essenciais que parecem an-dar, aqui, nesta pequena cidade chinesa, dema-siado separados. No Arthur’s vi gente de muitas etnias diferentes, de todas as idades e de todos os sexos, o gelo é redondo, os bifes óptimos, os empregados eficientes, as luzes baixas e os Pimm’s servidos sem pestanejar.

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T E R C E I R O O U V I D O

SENTIR A ONDA

próximo oriente Hugo Pinto

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Amanhã, dia 26 de Maio, Pequim acolhe a quarta edição do I.N.T.R.O (“Ideas Need To Reach Out”), o mais antigo e o maior festival de música electrónica da China. O espaço 751 D-Park (Designer Park), vizinho do bairro das artes “798”, volta a ser o palco do evento que serve de montra da cena da música electrónica na China.Para este ano, o cartaz do festival anuncia mais de 80 artistas, com o contingente da Acupunc-ture Records (editora de Pequim que organiza o festival) a dominar. A lista de convidados in-ternacionais é encabeçada pelo brasileiro Gui Boratto, estrela do techno minimal, o sueco Christian Smith e o francês Anthony Collins.Há sensivelmente um ano, por ocasião do terceiro I.N.T.R.O, trouxe a estas páginas as palavras da grande impulsionadora do festival, a mulher forte da Acupuncture Records, Miao Wong, que conheci em 2009, na segunda edi-ção do festival. Dizia Miao que “a cena da mú-sica electrónica é muito recente e ainda luta para sobreviver. À medida que vamos fazendo coisas vamos ficando melhores e vamos diver-sificando a nossa actividade, mas se queremos desenvolver a cena temos de ser nós a fazê-lo, até que ganhe maturidade.”O panorama não mudou muito desde então,

mas a segunda pessoa do plural na qual Miao Wong conjugava o seu pensamento é cada vez mais plural, ou seja, a comunidade que anima o movimento da música de dança electrónica em Pequim continua em crescimento.Da família cada vez mais numerosa também faz parte, agora, o projecto Metrowaves, dinamiza-do por Markus M. Schneider, alemão residente em Pequim. Com origem na capital chinesa, Metrowaves centra a acção na promoção de novos formatos de encontro e diálogo entre produtores de música electrónica e a audiência. De carácter internacional, o projecto pretende ligar os produtores chineses a produtores de outras paragens, conferindo desta forma mun-do à experiência chinesa, ainda fresca quando comparada com o que acontece na música elec-trónica noutros países, sobretudo europeus.Em cooperação com o Goethe-Institut (já por mais do que uma vez, nestes textos, salientei a actividade desempoeirada deste instituto com a missão de promover a cultura alemã no mun-do, em contraste com a tibieza de outras ins-tituições similares), Metrowaves estreou-se, na última quarta-feira, com a organização da conferência “ME:CON - Metrowaves Electro-nic Music Convention”, que termina no próxi-mo dia 26, em Pequim.

O objectivo deste evento consiste no estabe-lecimento de uma plataforma, uma rede, dedi-cada especificamente à música electrónica, ao mesmo tempo que serve para debater as situa-ções e condições locais e regionais, fazer uma avaliação das necessidades e definir desafios e estratégias possíveis para o futuro. O plano parece ambicioso, mas é necessário.Pela primeira vez, responsáveis de editoras, promotores de eventos, gestores de clubes nocturnos e de recintos de espectáculos, mú-sicos, DJ e membros dos media vão, juntos, discutir o cenário do movimento da música electrónica na China.Para situar e destacar Pequim na rede inter-nacional, ME:CON convidou pessoas que chegam à China vindas da Alemanha, Suíça, Espanha e dos Estados Unidos para partilhar experiências e, possivelmente, encetar uma sé-rie de colaborações.No entanto, nada disto faria sentido se faltasse a origem de tudo: a música. Por isso, ME:CON tem uma extensão da conferência no festival I.N.T.R.O deste ano, onde apresenta o “Me-trowaves Stage”, com vários DJ de Pequim, Xangai, Hong Kong, Taiwan e da Alemanha.Na capital chinesa, o momento, oportuno, é de tomar o pulso e sentir a onda. É tempo.

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À S U P E R F Í C I E

CAPÍTULO IDE UMA IDÉIA MIRÍFICA

 Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se hu-milhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem re-gras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios hu-manos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Es-critura contra Escritura, breviário con-tra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquan-to as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto mag-nífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápi-do, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, ar-rancou da sombra para o infinito azul.

IIENTRE DEUS E O DIABO

 Deus recolhia um ancião, quando o Dia-bo chegou ao céu. Os serafins que engri-naldavam o recém-chegado, detiveram--no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.- Que me queres tu? perguntou este.- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.- Explica-te.- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...- Sabes o que ele fez? perguntou o Se-nhor, com os olhos cheios de doçura.- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tem-po de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimula-ção... Boa ideia, não vos parece?- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

Machado de assis

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.- Vai- Quereis que venha anunciar-vos o re-mate da obra?- Não é preciso; basta que me digas des-de já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e

triunfo. Tinha alguma ideia cruel no espíri-to, algum reparo picante no alforje da me-mória, qualquer coisa que, nesse breve ins-tante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:- Só agora concluí uma observação, co-meçada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em gran-de número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá--las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor.- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção en-tre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias ne-cessárias à vida... Mas não quero parecer

A IGREJA DO DIABO

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À S U P E R F Í C I E

que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus in-terrompeu o Diabo.- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralis-tas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para reno-var um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?- Já vos disse que não.- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrá-gio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tá-bua de salvação e mergulhou na eternida-de. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.- Negas esta morte?- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...- Retórico e subtil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, con-voca todos os homens... Mas, vai! vai!Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se acha-va no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra. 

IIIA BOA NOVA AOS HOMENS

 Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele pro-metia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Dia-bo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fa-

zei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indife-rentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vie-ram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslava-da.Clamava ele que as virtudes aceitas de-viam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Home-ro; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: «Musa, canta a cólera de Aqui-les, filho de Peleu»... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do His-sope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histó-rica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ven-tre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nun-ca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pre-gou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtu-de preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.As turbas corriam atrás dele entusiasma-das. O Diabo incutia-lhes, a grandes gol-pes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Cha-mava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casu-ísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um di-reito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contradi-

tório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi--lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um pri-vilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, con-viria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e su-bia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordiali-dade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la median-te retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia rece-ber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consi-deração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solida-riedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de pró-ximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marque-sas do antigo regímen: «Leve a breca o próximo! Não há próximo!» A única hi-pótese em que ele permitia amar ao pró-ximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indiví-duo a si mesmo. E como alguns discípu-los achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um ban-co, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.  

IVFRANJAS E FRANJAS

 A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás fo-ram chegando as outras, e o tempo aben-

çoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma re-gião do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fi-éis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erá-rio restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mes-mo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.A descoberta assombrou o Diabo. Me-teu-se a conhecer mais directamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns ca-sos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que enve-nenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha ro-mana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas con-fessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse ne-nhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar--se. O Diabo mal pôde crer tamanha alei-vosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de reflectir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de co-nhecer a causa secreta de tão singular fenómeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daque-la agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

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gente sagrada José simões morais

O L H O S A O A L T O

CHENG-HUANG, O DEUS DA CIDADEDesde os meados dos anos 70 do século XX, Macau deixou de prestar homenagem a Seng Vong e poucas são as pessoas que actualmente vão ao templo situado na avenida Coro-nel Mesquita acender pivetes. Seng Vong, em mandarim Cheng--Huang, significa respectivamente “muralha da cidade” e “terra seca para o interior da muralha” que as-sim cria um fosso. Inicialmente eram dois deuses diferenciados; o deus da Muralha e a deusa do Fosso. Só nas cidades importantes eram construí-das à sua volta muralhas com fossos e por isso, só estas tinham um tem-plo a Cheng-Huang.Estes dois deuses eram importantes na Hierarquia Celestial já que as ci-dades deles dependiam para assegu-rarem a paz, o bem-estar e segurança e proteger os habitantes dos maus espíritos, de fantasmas e demónios. Terá ficado reunido num só deus no período entre a dinastia Han e dos Três Reinos, século III, quando passou a estar ligado a uma imagem personificada, que após passar no mundo dos vivos, deixou aos seus conterrâneos um tributo de grande sentido ético e de justiça. Normal-mente para lhe dar o rosto era es-colhido um mandarim, mas podia também ser uma pessoa comum que, pelas suas acções terrenas, tivesse merecido ser lembrado pelos que na Terra viviam e assim o deificavam.Mas Cheng-Huang representa uma entidade abstracta e divina com funções na Administração Celeste, que protege e toma conta das ocor-rências dos habitantes das princi-pais cidades, que eram muralhadas, normalmente capitais de províncias ou cidades estratégicas. As cidades durante a dinastia Tang multiplica-ram-se e este deus que as protegia ganhou uma maior importância. Foi durante o reinado do primeiro impe-rador da dinastia Ming que passou a estar regulado o culto a Cheng--Huang.Se no dia das suas festividades a cidade estava atacada por alguma epidemia então, a sua imagem pas-seava pelas ruas para as purificar e o

número de pessoas que transportava o andor estava de acordo com a im-portância da cidade.Na capital do país, o culto a Cheng--Huang era presidido pelo próprio Imperador.Cheng Huang tinha o conhecimen-to sobre os comportamentos dos ci-dadãos através dos relatórios envia-dos pelos deuses da terra e baseados nas informações do deus do Fogão. Controlando o que se passava nos seus domínios, Cheng Huang, como divindade celestial, ajudava os seus homólogos na Terra, os magistra-dos, a resolver processos muito di-fíceis de solucionar. Para isso, era ao templo de Cheng-Huang, que os magistrados vinham quando preci-savam de conselhos, revelados em sonho. Jejuando por um dia, purifi-cavam, oferecendo um sacrifício ao deus e à noite aí dormiam, contando com Cheng Huang, seu semelhante, mas na hierarquia Celestial, para os ajudar no veredicto.Ainda segundo Ana Maria Amaro, era ao templo de Seng Vong que, quando as pessoas perdiam a fé nos juízes terrenos ou, com a pressão de serem julgados por crimes que ocor-reram nas suas imediações, logo ali iam reportar ao deus a sua inocência. Muitos foram os que após o assassí-nio do governador de Macau, Ferrei-ra do Amaral, ali acenderam pivetes para, que pelo fumo, as suas vozes fossem ouvidas pelo deus.O deus Seng Vong era festejado em Macau no dia 21 da quinta Lua, no entanto a funcionária que toma con-ta do templo falou-nos noutra data, 13 da quinta Lua. Andando a inda-gar na biblioteca, complementamos a informação. Cada cidade com um templo a Cheng Huang tem dife-rentes datas para o festejar e no dia 25 do nono mês lunar celebrava-se o seu aniversário. Faziam-se celebra-ções a este deus também durante o Ano Novo Chinês, nas festividades solares do duplo 5 e nos dias de Lua Nova e Lua Cheia.Em Macau, desde meados dos anos 60 do século XX o culto declinou e já nos anos 70 se dava como extinto.

城隍

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L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actu-al Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensi-namentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fun-damentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambha-la: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se or-ganizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

Sem ocultação na ausência de forma, quem poderá dominar a forma?

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 6

Não é possível confiar apenas nas capacidades humanas; as artes da Via devem ser postas publicamente em prática. As leis de uma sociedade disfuncional elevam as fasquias e punem aqueles que não as ultrapassam; tornam altas as responsabilidades e penalizam aqueles que não as podem suportar; tornam perigosas as dificuldades e abatem aqueles que não as conseguem encarar.Quando as pessoas se encontram sob esta es-pécie de tensão, recorrem ao ardil de maneira a enganarem os seus dirigentes e voltam-se para o engano na esperança de escaparem. Num tempo assim, nem severas leis, nem pesados castigos conseguem prevenir o crime, pois o seu poder é insuficiente. É por isso que o provérbio diz: “Os pássaros picam quando nada mais podem fazer;

as bestas esventram quando nada mais podem fazer; os homens enganam quando nada mais podem fazer”.

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Os iluminados criticam os dirigentes quando detectam um erro, pois não os preocupa a censura. São capazes de deferência para com os sábios quando os encontram, pois o estatuto social não os preocupa. São capazes de dar a quem precisa, pois a sua própria pobreza não os preocupa.

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As pessoas em posições de honra são chamadas honradas quando são imparciais e impessoais.

São, portanto, chamadas honradas, mas, por tanto, não são chamadas sábias. Aqueles que detêm a terra são chamadas justos quando mantêm padrões de prática e nenhum esquema escondido. São, portanto, chamados justos, mas, por tanto, não são chamados inteligentes.Quando não existe brutalidade oficial para alienar a gente comum, nem qualquer acti-vismo intelectual que cause ressentimento aos demais líderes, as maneiras de todas as classes não quebram em nenhum ponto, de tal modo que os críticos nem da situação se apercebem e não nada têm a apontar. A tal se chama ocultação na ausência de forma. Sem ocultação na ausência de forma, quem poderá dominar a forma?

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

Page 16: h - Suplemento do Hoje Macau #43

O SOL, A LUA E A VIA DO FIO DE SEDA

FERNANDA DIASU m a l e i t u r a d o

YI JING

A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa