h - suplemento do hoje macau #25

12
ARTES, LETRAS E IDEIAS h PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2491. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE HONGREN BUDISMO CHAN E PINTURA

Upload: jornal-hoje-macau

Post on 19-Mar-2016

246 views

Category:

Documents


14 download

DESCRIPTION

Suplemento h - Parte integrante da edição de 11 de Novembro de 2011

TRANSCRIPT

Page 1: h - Suplemento do Hoje Macau #25

ART

ES, L

ETRA

S E

IDEI

AS

hPARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2491. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

HONGRENBUDISMO CHAN E PINTURA

Page 2: h - Suplemento do Hoje Macau #25

I D E I A S F O R T E Sh213

5 2

011

Paulo Maia e Carmo

HONGRENNADA IMPEDIA JIANG TAO DE CON-TINUAR AO SERVIÇO DO IMPÉRIO. Tudo nele correspondia aos requisitos adequados a um funcionário imperial. En-quanto jovem estudante, sob a tutoria de Wang Wuyai, estudara os Cinco Clássicos de Confúcio e passara o exame local para funcionários públicos, alcançando o grau de shengyuan. O seu carácter recto era bem conhecido e apreciado por todos, o que o tornava particularmente desejado para exercer funções no serviço público das novas autoridades da China. Mas desta vez Jiang Tao não queria ouvir. Mal ouviu a notícia da queda de Nanquim, em 1645, às mãos das tropas invasoras dos Qing, Jiang Tao fugiu da sua província natal de Anhui e correu, com o seu amigo Wang Muli (1605-1679) para o sul, para a província de Fujian. Aterrados com a possibilidade de um acor-do com as autoridades estrangeiras, recusa-ram o regresso à normalidade dos dias, ra-param a cabeça e afundaram-se num mos-teiro. Em 1646 os dois tornaram-se monges budistas. Foi então que Jiang Tao assumiu o nome monástico que o tornaria famoso, Hongren. A posteridade classificá-lo-ia en-tre os Quatro Grandes Monges Pintores do fim dos Ming (1368-1644) e início dos Qing (1644-1911). As suas características paisagens angulares tornar-se-iam o mode-lo distintivo da conhecida Escola de Anhui que floresceu na segunda metade do século XVII. O peso do seu nome pode ser de-duzido da sentença de Zhou Lianggong, o coleccionador e connoisseur que no início da dinastia Qing, decretou que o estatuto de uma família na região do baixo Chan-gjiang era determinado pela posse de pin-turas de Hongren. Quem tinha era ya, ou seja culto, quem não tinha era su, ou seja, um rústico.Tal como outros pintores da crise da tran-sição para a dinastia Qing, os Mingchao yimin, Hongren encontrou protecção num mosteiro. Tal como eles age, de modo ca-racteristicamente budista, a partir de uma recusa. Se Bada Shanren deixou de falar e se Shitao numa altura se declarou cego, Hongren não quis ouvir. O que o caso de Hongren tem de diferente é que para ele o Budismo não parece ter sido apenas um refúgio mas uma sincera vocação. Hon-gren foi inteiramente pintor e inteiramente monge. Isso se pode apreciar nos traços que foi deixando, pelo pincel nas suas pin-turas, e nas escolhas de um caminho que se dirige conscientemente para uma ausência.

O HOMEM COM NOME DE RIOHongren nasce em 1610 em Shexian, no sul da província de Anhui. E após o pro-gressivo enfraquecimento da resistência em Fujian, regressou a Shexian em 1651-52 para viver em diversos mosteiros locais. Apesar de existir um rolo horizontal pinta-do em 1639 com outros quatro artistas de

Anhui, data dessa altura o início da sua mais forte ligação à pintura. Em apenas doze anos, até à sua morte em 1664, Hongren atravessaria a História da pintura chinesa com a velocidade do pincel que descreve um círculo perfeito de tinta preta sobre o branco do papel xuan. A partir da sua terra natal e em direcção a ela. Porque não fica-ria lá sempre, como outros eruditos do seu tempo, viajava com frequência. Sabe-se de viagens que fez à província de Jiangsu em 1658, a Yangzhou, Jiangsu e Hangzhou, na província de Zhejiang em 1661. Depois esteve em 1663 de visita ao Monte Lu, na província de Jiangxi e sabe-se de estadias em Nanquim, uma das quais resultou num álbum de paisagens, o Jianjiang Shangren Shanshui Ce, datado de 1657. Mas o cená-rio do lugar do seu nascimento seria uma influência decisiva na sensibilidade do pin-tor. Porque aqui estavam reunidas muitas das razões históricas da pintura da China. Na província de Anhui estão localizadas algumas das mais celebradas paisagens da cultura chinesa, como a montanha Huan-gshan, ou Montanha Amarela. Um nome que não indica a sua cor mas ilustra uma história. Durante a primeira dinastia Qin era conhecida como Yishan, mas durante a dinastia Tang (618-906), o imperador Yuanzong toma conhecimento de uma lenda que lhe é transmitida por um alqui-mista: diz-se que o lendário Huangdi, o Imperador Amarelo, tinha por hábito vir a esta montanha recolher as ervas com que produziu o elixir da imortalidade que o levaria ao Paraíso dos Imortais. Para que a fama do lugar não desaparecesse e fazen-do jus ao carácter místico que sempre se reconheceu às grandes elevações capazes de ultrapassar as nuvens, Yuanzong mu-dou o nome da montanha em homenagem ao primeiro imperador, em 747. Mais que uma montanha, trata-se de uma cadeia montanhosa com setenta e dois picos re-conhecidos, trinta dos quais acima de mil e quinhentos metros, e natural objecto de fascínio para quem reconhece na natureza um poder sobrenatural. Hongren frequen-tou de várias formas a grande montanha. Numa pintura, Pinheiro-dragão Sobre a Montanha Huang, escreveu o poema: “En-rolado à volta de um pico montanhoso seu aspecto é soberbo/ Que idade terá? Quem poderá dizer? / Quando o Imperador Ama-relo preparava o elixir da imortalidade no início dos tempos, / As lascas estreitas (do pinheiro) e as suas garras já tinham para-do de crescer.” De forma característica a pintura fala tanto do lugar como da pessoa que a pintou. Assim, a imagem imponente (1,92 m de altura por 0,79 m de largura) representaria um letrado que, curvado, se agarra tenazmente ao seu solo natal. Desde muito cedo Hongren conviveu com estas montanhas, até que elas passaram a fazer parte de si, como num espelho ab-sorvente, e nelas saboreou a beleza e a consolação. E um dia também ele poderia dizer, parafraseando S. Paulo: “vivo mas já não sou eu quem vive, são estas montanhas

Page 3: h - Suplemento do Hoje Macau #25

I D E I A S F O R T E S h3

11 1

1 20

11

O PINTOR COMO MONGE BUDISTA

que vivem em mim”. Se não como interpre-tar o nome alternativo (hao) que elege ao mesmo tempo que escolhe Hongren: Jian-jiang, ou seja, o rio Jian um tributário do rio Xin’an que corre a sudoeste de Shexian, a sua terra natal? A ESCOLA DE ANHUIA sudoeste de Huangshan está a montanha Yixian à qual está associada uma das mais perenes lendas da cultura chinesa. Ali se si-tuaria a célebre Nascente da Flor de Pessegueiro descrita por Tao Yuanming (365-427). O paraíso aí descrito, espécie de Arcádia chi-nesa, refúgio da inocência e da felicidade, ecoava a vida de Tao Yuanming, (também conhecido por Tao Qian) funcionário me-nor da dinastia Jin do leste que, desiludido com a corrupção do governo, se retira-ra para a modesta quinta da família e no campo compusera alguns dos mais belos poemas da literatura chinesa que falam da vida simples do campo. No poema Regres-so à Natureza escreve: “No pátio interior da minha casa ninguém se pode intrometer/ Nem impedir a paz e o descanso nos meus aposentos privados/ Após longos anos de servidão abjecta/ De novo na natureza, en-contro os prazeres simples.”O próprio cenário deslumbrante põe à dis-posição dos observadores os utensílios que permitem que seja uma imagem capturada e partilhada numa pintura. A região é co-nhecida por produzir dos melhores e mais belos instrumentos necessários à pintura e a caligrafia: os chamados Quatro Tesouros do Escritório. Além do papel e do pincel Xuan, dois tesouros reclamam a autentici-dade dos lugares de proveniência: a tinta

Hui, de Huizhou uma prefeitura no sul da província, produzida a partir de velhos pi-nheiros e água pura das montanhas, e os tinteiros de pedra She, de Shezhou, actual-mente na prefeitura de Huizhou. O cami-nho de Hongren em direcção à sua voca-ção de pintor terá começado no contacto inicial com estes instrumentos, vendendo transcrições de textos antigos e obras de caligrafia.As condições estavam reunidas para o florescimento de actividades ligadas à pintura. Ricos comerciantes de Huizhou, que controlavam grande parte do co-mércio da região do baixo delta do rio Changjiang, encorajavam a produção de

Hongren também demonstrava estar atento a outras questões que ocupavam os seus contemporâneos, como a relação da mente com os fenómenos externos, que no campo da pintura se manifestava com a rejeição da representação da semelhança das formas observáveis.

Page 4: h - Suplemento do Hoje Macau #25

h411

11

2011

I D E I A S F O R T E S

obras de arte. E assim nasce no sudeste de Anhui, na transição da dinastia Ming para a Qing, um estilo de pintura que seria conhecido como a escola de Anhui (Xi-nan Pai) caracterizado maioritariamente pelo tema da paisagem. Eram paisagens geométricas, angulares, que resultavam da observação que os pintores faziam de formas similares existentes nos picos das montanhas. E eram executadas com uma singular economia de meios, com um mínimo de aguada e poucos detalhes. Não eram só pinturas ou álbuns de pin-turas do Monte Huang, o mais comum. O artista Xiao Yuncong, por exemplo, notabilizou-se por duas notáveis séries de gravuras em madeira; as ilustrações de Encontrando a Tristeza, de Qu Yuan (Li-sao Tu, de 1645) e Paisagens da Região de Taiping (Taiping Shanshui Tu).

UMA MEMÓRIA DO BUDISMO CHANNa escolha do seu nome budista, Jiang Tao, indica-nos uma intenção reconhe-cível. Hongren é uma palavra composta por dois caracteres que podem encerrar uma contradição. Ren é uma palavra-cha-ve, nomeadamente na ética confuciana, e é representada num caracter com dois elementos, um que designa o homem e outro composto por dois traços horizon-tais iguais, o número dois. Contém em uma clara e concreta intenção de repre-sentar o bem que duas pessoas fazem uma à outra. Sendo elas iguais é uma relação de simetria. Hong significa expandir, aumentar e portanto superar, ir além da bondade, o que sugere uma vontade as-simétrica. As duas ideias assim reunidas parecem corresponder, de modo muito claro, àquilo que identificamos como a tensão entre a percepção do Outro e a noção de sagrado que é comum ao senti-mento universal da religião. Mas Hongren (escrito com diferentes caracteres, mas igual expressão fonética) era também o nome do Quinto Patriar-ca do Budismo Chan, após Bodhidhar-ma (século VI), falecido em 675. Ele é o homem está na origem de uma divisão dentro do Budismo Chan da China. An-tes de morrer, teve que decidir quem lhe sucederia e para isso convidou os poten-ciais sucessores para um concurso. Cada concorrente teria que compor uma gatha, uma sentença versificada que exprimisse a sua compreensão do budismo. Des-se concurso emergiriam as duas escolas diferentes, duas maneiras de entender o Budismo Chan. De um lado estava Shen Xiu, (morreu em 706) um monge exem-plar, estudioso e consciencioso apaixo-nado pelas Escrituras que escreve a sua gatha após longas cogitações. Do outro lado Hui Neng, (637-712) homem pou-co educado mas de grande carácter e intuição para quem a noção budista do despertar não tem segredos. Será ele a receber a tigela e a túnica, símbolos dos mestres da doutrina. Hongren justifica-rá a escolha dizendo: “Quatrocentos e noventa dos meus alunos compreendem bem o budismo. Hui Neng é a única ex-cepção. É um homem que não se pode medir com os mesmos instrumentos que os outros. Por tal razão é que a túnica da fé lhe foi transmitida.” Mas Shen Xiu continuou a ser um mestre influente e

não podendo aceitar a liderança do Sexto Patriarca, juntou um grupo de seguidores e abandonou o velho centro do Budismo Chan, estabelecendo um novo mostei-ro nas distantes províncias do Norte. O principal ponto de divergência entre as duas escolas refere-se ao modo de des-pertar a natureza profunda. Na escola do Norte através de um processo gra-dual, mais próximo do espírito original indiano; na escola do sul, impregnada do pragmatismo chinês que inclui a noção do wu-wei, o não-agir agindo, por um instantâneo fluxo de intuição. Para lá da sua relevância religiosa, que na China das dinastias Ming e Qing ocupava um espaço importante do debate na vida da elite cultural, a questão da divisão das es-colas do sul e do norte adquire um lugar central a partir da sistematização da arte da pintura chinesa realizada pelo pintor e calígrafo Dong Qichang (1555-1636).Dong Qichang tomou as duas escolas di-vergentes como modelos de uma divisão que é fácil de caricaturar. De modo esque-mático: os pintores da escola do Norte fa-zem um uso meticuloso do pincel, usam a cor de forma intensa e os seus praticantes são maioritariamente pintores profissionais e é portanto inferior. A escola do Sul é pra-ticada sobretudo por eruditos amadores, usam prioritariamente a tinta preta nas suas gradações e é superior. Ao escolher o nome Hongren, o jovem Jiang Tao poderia estar a referir esse debate tão fundamental do seu tempo entre os pintores eruditos.Hongren também demonstrava estar atento a outras questões que ocupavam os seus contemporâneos, como a relação da mente com os fenómenos externos, que no campo da pintura se manifesta-va com a rejeição da representação da semelhança das formas observáveis. A pintura, em particular a pintura de pai-sagem, não se interessava por mostrar a realidade mas uma realidade cósmica e espiritual. O problema que se colocava aos pintores era de natureza irresolúvel. Como abordar a misteriosa dualidade: Buda ensinava que as formas visíveis eram ilusões às quais não deveríamos ficar presos, e no entanto a sabedoria do Dao dizia-nos que as montanhas, as rochas e as árvores eram manifestações do Real com qual nos deveríamos iden-tificar. Talvez a melhor resposta esteja

nas etéreas paisagens de pintores como Hongren que, quando olhamos para elas, parecem estar a formar-se diante dos nossos olhos, monumentais na sua espantosa fragilidade. A nossa relação com elas é a relação que mantemos com as coisas de beleza: intuímos uma miste-riosa e, muitas vezes, inexplicável afini-dade. A postura humilde é um primeiro passo para receber esse mistério. E foi a posição que Hongren adoptou relativa-mente àquele que considerava mestre an-tes de todos. Dizia: “Nunca serei capaz de dominar o seu estilo, por isso apenas sigo a sua simplicidade”. Referia-se a um mestre do século catorze, uma época de semelhante crise dinástica onde muitos dos seus contemporâneos também bus-caram inspiração.

UM PINTOR COMO HERÓI CULTURALEfectivamente quando já se pressentia o declínio moral e dinástico dos fins da dinastia Ming, a figura de Nizan (1301-1374) emerge como um símbolo de in-tegridade moral e patriotismo, ele que também viveu num tempo de ocupação estrangeira do país, então pela dinastia Yuan (1279-1368) de origem Mongol. Tinha origens sociais muito diferentes de Hongren. Este, quando era jovem, tendo o pai morrido muito cedo, tomou como sua a obrigação de prover ao sustento da mãe, o que fazia através de meios pre-cários como extracção de água ou venda de lenha. Nizan por outro lado teve uma educação de príncipe, de que falam dois factos da sua biografia. A certa altura da sua vida, nos anos de 1340, terá alcança-do a ambição de todo o homem de cul-tura ao passar os seus dias no seu estúdio favorito, o Qingbi Ge, o Pavilhão Puro e Afastado, rodeado de livros raros, pintu-ras antigas, caligrafias e flores. Quando a guerra civil se aproximava da sua mora-da também ele teve que procurar refúgio mas não foi para um mosteiro. Em vez disso foi viver para uma casa num bar-co na região do Lago Ta, um lugar com uma rede de pequenos rios ilhotas, baías, rodeado de amoreiras e plantas de água. Mas este excêntrico que gostava de viver afastado e detestava a celebridade alcan-çaria uma fama inusitada. E a razão esta-va nas suas pinturas. Dong Qichang ditara a sentença que fun-

cionava como um programa para a “escola do Sul”: “Basta seguir Wang Wei, Dong Yuan, Huang Gongwang e Nizan como guias e estarás no caminho certo.” A pin-tura de Nizan não admitia detalhes supér-fluos apresentando a natureza como um domínio puro e privilegiado. De forma surpreendente a pintura correspondia à pessoa que a pintava. Elogiado pelas suas qualidades de generosidade, integridade, sabedoria e independência, o gaoshi, o nobre recluso, inspirava o sentimento de resistência, a sensação de que seria pos-sível com parcos recursos fazer renascer forças adormecidas. Hongren recolheria a lição de Nizan desde logo por uma afinidade de carácter. Co-nhecido pelas suas qualidades de integrida-de pessoal e piedade filial as suas pinturas de paisagem angulares também se asseme-lhavam ao seu criador. Desde muito cedo a sua linguagem pictórica se assemelhou ao estilo de Nizan. Com o seu aspecto dra-mático que incluía largas áreas superiores de espaço vazio. A tinta era aplicada com um pincel molhado em pouca tinta que pa-recia escorrer leve com poucas aguadas e incluía os tradicionais traços cun, ou seja, de “texturas”.

O PERFUME DAS FLORES O Buda encontrava-se no alto do Pico do Abutre. No meio da assembleia mostrou uma flor, Mahakasyapa compreendeu e sorriu. Foi assim num silêncio absoluto que a doutrina se transmitiu do mestre ao discípulo, segundo uma obra redigida nos anos de 724-27. Uma flor abre as pétalas e o universo floresce com ela. O modo de observar uma paisagem de Hongren, na sua impressão de silêncio, tem algo de se-melhante. Há que compreender e sorrir, nem uma palavra. Em A Chegada do Ou-tono (1,24 cm de altura por 62,9 cm de largura) há um vale entre montes escarpa-dos com picos achatados e na margem de um rio que corre, uma cabana. O pintor mora aqui, nesta cabana nas Montanhas Amarelas. Na sua organização complexa, os blocos montanhosos traduzem uma profundidade que as árvores que dimi-nuem em contraste com as montanhas que crescem, não amaciam. Tudo é claro e despojado.Durante vinte anos os exércitos Manchus conduziram uma cruel guerra civil, que só terminaria em 1662 com a chegada ao poder do imperador Kangxi. Durante esse período mostraram ser hábeis guerreiros mas o poder do espírito de alguns, poucos, eruditos como Hongren provaria ser mais forte. Quando morre num mosteiro junto ao Pico Piyun, a sudoeste de Shexian, re-alizando um círculo perfeito vindo morrer onde nascera, o pintor pede para ser sepul-tado num túmulo rodeado de Ameixieiras, de onde derivaria o seu nome póstumo Meihua Guna, O Velho Monge das Flores de Ameixieira. Teria resolvido a insanável questão de se identificar com a beleza das paisagens, que por outro lado eram puras ilusões? O Buda ensinara que havia ques-tões às quais era melhor não responder, os seus discípulos contabilizaram catorze que nunca teriam resposta. Hongren provavel-mente também preferiria nada responder. O perfume das flores apenas a recordar um percurso. O resto é silêncio.

Page 5: h - Suplemento do Hoje Macau #25

h5

11 1

1 20

11

L E T R A S S Í N I C A S

Quando se fixa um dia para a batalha, se olharem a morte como um regresso a casa,

tal se deve à benevolência que sobre eles foi lançada.

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOSWEN ZI 文子

CAPÍTULO 171

Lao Tzu disse:

Aquilo que faz um país forte é o estar preparado para morrer de bom grado. Aquilo que prepara as pessoas para morrer de bom grado é a justiça. Aquilo que permite o exercício da justiça é o poder. Por isso, dirige o povo através da cultura, torna-o igual armando-o e, assim, se poderá dizer que é digno de vitória. Quando o poder e a justiça são exercidos em conjunto, a isso se pode chamar força garantida. Quando os sol-dados se lançam para a frente no calor da batalha, espadas cruzando-se e pro-jécteis chovendo, tal sucede porque as

recompensas são garantidas e os casti-gos são claros.Quando os líderes vêem os seus subor-dinados como seus próprios filhos, os subordinados trabalham para os seus líderes como para seus próprios pais. Quando os líderes vêem os seus subordi-nados como seus irmãos mais novos, os subordinados os vêem como seus irmãos mais velhos. Quando os líderes vêem os seus subordinados como suas crianças, é certo que reinarão sobre os quatro ma-res; quando os subordinados trabalham para seus líderes como para seus pais, é certo que governarão a terra. Quando os líderes vêem os seus subordinados como seus irmãos mais novos, morre-rão por eles em tempos difíceis; quando os subordinados trabalham para os seus

líderes como para irmãos mais velhos, por eles perecerão em tempos difíceis. Como tal, de nada serve ir para a batalha com um exército de pais e filhos, de ir-mãos mais velhos e mais novos.Assim, um soberano justo cultiva seu go-verno internamente para desenvolver a sua virtude e trava o mal no exterior para demonstrar o seu poder. Observa de modo a ver se o seu povo está cansado ou descansado e logo vê se está faminto ou satisfeito.Quando se fixa um dia para a batalha, se olharem a morte como um regresso a casa, tal se deve à benevolência que so-bre eles foi lançada.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mis-térios”. Este subtítulo honorífico teve origem na re-nascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sen-do muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande His-toriador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han.

A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Clas-sics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda uti-lizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.

Page 6: h - Suplemento do Hoje Macau #25

h6 C H I N A C R Ó N I C A

ANTÓNIO GRAÇA DE ABREU

11 1

1 20

11

Duas vezes, em 1983 e 1995, havia des-cido o Yangtsé e passado diante de Bai-dicheng, a histórica mas pouco conhe-cida no Ocidente cidade do Imperador Branco, na margem esquerda do rio, ain-da na província de Sichuan. Em ambas as vezes o barco não parou e ficou-me na boca e na pele um aligeirado travo a desconhecido a conhecer um dia.À terceira foi de vez. No Verão de 2011, o barco em que descia ainda e sempre o rio Yangtsé, parou durante três horas no embarcadouro da cidadezinha de Baidi-cheng.Lesto e lampeiro, deixei o pequeno navio de cruzeiros fluviais e eis-me a caminho da espectacular Baidicheng, sobranceira ao rio, engastada numa colina, hoje uma ilha com uma ponte pedonal entre águas e montanhas de pedra na entrada da gar-ganta de Qutang, a primeira das grandes Três Gargantas do rio Yangtsé.Ouvira falar pela primeira vez em Bai-dicheng nos meus velhos tempos de Pequim, por volta de 1979, quando co-mecei a ocupar os meus ócios com a tra-dução de poemas de alguns dos maiores poetas da China clássica. Li Bai, ou Li Po (701-762), de passagem pela cidade, escreveu este poema famo-síssimo em toda a China, sobretudo pelo cantar dos vocábulos, pelo encadeamen-to das rimas tonais internas, pela origi-nalidade e mestria do correr dos versos. Atributos que se perdem na minha hu-milde tradução portuguesa:

Deixo Baidicheng entre nuvens multicoresnos alvores da aurora.Desço o rio rumo a Jiangling,cem léguas num só dia.Na margem, do alto das falésias,os macacos não param de guinchar.Meu barco faz a viagemserpenteando célere entre dez mil montanhas.

Agora, no alto do templo de Baidicheng, encontro este mesmo poema gravado a estilete em três estelas de ardósia nas ca-ligrafias de Mao Zedong, Zhou Enlai e Jiang Zemin. Abençoados líderes comu-nistas afinal dados à poesia que, como alguns outros letrados e mandarins do passado, resolveram deixar a sua marca pessoal na pedra escura do lugar, recor-dando o génio intemporal de Li Bai, um dos maiores poetas da China, e do mun-do!...Existem mais setenta e duas estelas, algu-mas do século VI, com poemas, gravuras e importantes dados sobre o rio Yangtsé,

Província de Sichuan

e as insurreições camponesas que varre-ram a China nos finais do século XVI, na dinastia Ming.Este é um lugar de enigmas e brumas, de surpresas e depurados enlevos. Não se trata propriamente de uma cidade, mas de um antiquíssimo conjunto de constru-ções com telhas verdes e muros brancos -- não muitas, porque os séculos delapi-daram parte do burgo -- espalhadas pelo alto da colina, rodeadas de vegetação, de pequenos bosques. No ano 25 da nossa era, um senhor de guerra desta região chamado Gongsun Shu proclamou-se aqui o governante de uma nova dinastia,

construiu uma fortaleza e auto-intitulou--se Baidi, o “Imperador Branco”. Com o seu pequeno exército de camponeses e barqueiros pretendia descer as Três Gar-gantas, conquistar o centro do Império e finalmente assumir-se como o novo soberano da China. Baidicheng que sig-nifica “Cidade do Imperador Branco” é um lugar de difícil acesso, chega-se aqui apenas pelo rio subindo as Três Gargan-tas mas os exércitos do imperador Guan-gwu, da dinastia Han que governava a China há já duzentos anos, acabaram por chegar ao local e derrotar, e matar o Im-perador Branco. Brevíssimo foi o reinado

EM BAIDICHENG, COM OS POETAS LI BAI E DU FU

Page 7: h - Suplemento do Hoje Macau #25

h7C H I N A C R Ó N I C A

11 1

1 20

11

de Gongsun Shu, no entanto construiu--se um templo em memória do guerrei-ro e o lugar ficou para a História. No ano 223, no chamado Período dos Três Reinos – que então se digladiavam pela conquista do poder –, Liu Bei, um dos monarcas dos três reinos, veio morrer a Baidicheng. Antes de falecer entregou a educação do seu filho ao ministro Zhuge Liang, um dos mais impolutos políticos e célebres estrategas de toda a Histó-ria da China. Hoje, no alto do monte, encontramos o grande pavilhão onde, com esculturas em tamanho natural, se reconstitui a cena do encontro entre o

pai, na antecâmara da morte, o filho e Zhuge Liang. É lugar de culto para os tu-ristas chineses. Quase todos conhecem a história.Em tempos mais modernos, quer dizer, há mil e trezentos anos atrás, Baidicheng passou a estar sobretudo ligada à poesia. O lugar possui magnetismo natural, cul-tural, hormonal e tem atraído incontá-veis poetas e pintores. Logo no sopé da colina encontrei uma estátua do grande poeta Du Fu (712-770) que viveu aqui ao lado durante mais de dois anos, a cin-co quilómetros de distância numa caba-na coberta de colmo, já no dealbar da

sua atribulada passagem por este mundo e aqui escreveu 361 poemas, quase um terço do conjunto da sua obra. Chegou a Baidicheng com 58 anos de idade, no seu pequeno barco, com a mulher e os filhos, doente e pobre. Numa China caó-tica, avassalada então por uma tremenda rebelião e guerra civil que, entre 755 e 762, provocou doze milhões de mortos, num império na altura com cinquenta e seis milhões de habitantes -- os censos da época são mais que fiáveis! – no exílio de Baidicheng, Du Fu escreveu:

Nuvens negras cobrem o céu de Baidicheng,a chuva cai sobre a cidade.As águas vindas das montanhasrugem, entrechocam-se, lutam entre si,atravessam as gargantas do grande rio.Velhas árvores, ramadas verdesobscurecem o sol.Como pode um cavalo de combatesentir-se sereno e livre?Hoje, de mil famílias restam apenas cem,viúvas, na angústia, na dor,pagam pesados impostos.Através dos campos outonais,onde uma aldeia sem choros, sem lágrimas?

Nem tudo é triste na cidade do Impera-dor Branco. Ainda hoje em Baidicheng há uma grande festa anual, uma espé-cie de romaria à chinesa, vem gente de longe, tocam-se tambores, flautas e ins-trumentos aparentados com as nossas guitarras. Canta-se e dança-se. O poeta Bai Juyi (772-846) foi mandarim durante algum tempo em Baidicheng e dá-nos o testemunho de uma dessas romarias. Es-creveu na época:

Quando a névoa envolve a garganta de Qutange a lua brilha a oeste de Baidicheng,as canções enchem os ares,acompanhadas pelos gritos dos macacos e pelo gorjeio dos pássaros.

Depois da lendária e fantástica Baidi-cheng, o rio Yangtsé entra na garganta de Qutang e corre apertado entre mo-numentais blocos de pedra, rasgados a pique nas espaldas da montanha. São oito quilómetros de cortar a respiração a qualquer mortal.Ultrapassada a garganta, com Baidi-cheng já lá para trás, o rio alarga-se, as águas estendem-se palpando suavemen-te as margens mais serenas. No alto do navio, embalo-me no rumor de antiquís-simos mistérios, no engenho e subtileza da grande poesia, em fascínios de hoje e do futuro.

EM BAIDICHENG, COM OS POETAS LI BAI E DU FU

Page 8: h - Suplemento do Hoje Macau #25

P R I M E I R O B A L C Ã Oh8

luz de inverno Boi Luxo

“As espadas, hoje em dia, só servem para cortar nabos”.

13 Assasssins é o penúltimo filme de samurais de Takashi Miike. Existe já um outro, estreado em 2011, chamado Hara-kiri, Death of a Samurai. Este é um género que parece não esgotar as suas possibilidades de reinvenção. Não só nos dias de hoje continuam actuantes as questões de honra e fidelidade ao código samurai e as questões que se prendem com a sua falência, como no género se insinuam facilmente questões mais contemporâneas, prova final de que o filme de época funciona como sustento colorido possível para as colocar.Muito atraente continua, depois de tantas vezes repetida, a luta de espada e o cenário de época em que se passam estas histórias. De onde provém a frescura deste filme ?É normal, a propósito do filme de samurais, apontar que muitos deles são, já há muitos anos, expressão da decadência da era guerreira. É normal apontar que muitos se preocupam, por vezes não exactamente à superfície, com esta falência do código. Assim acontece em muitos. Takashi Miike insiste neste tópico, por demais explorado, mas não o eleva a ponto nuclear do filme, antes o toma como exemplo da necessidade de renovação e da inexorabilidade da passagem do tempo, ao mesmo tempo que continua a explorar questões de lealdade e pertença, essenciais ao funcionamento da sociedade japonesa da altura e de agora.Fá-lo de um modo limpo, sem se valer muito do efeito de choque – como acontece em alguns dos seus filmes mais conhecidos (talvez mais conhecidos por essa razão) de entre a sua vastíssima (e no geral muito mal conhecida) filmografia. Há algumas excepções ao longo do filme, alguma brutalidade na exibição dos corpos, mas apresentada com uma

coloração diferente da brutalidade que caracteriza outros dos seus filmes, mais suave e muito mais madura. O autor exibe aqui uma tal maturidade na maneira de filmar que se transformou num daqueles realizadores de quem se espera com ansiedade cada novo filme. Extraordinariamente, para lá de Hara-kiri, Death of a Samurai, Takashi tem mais dois filmes em fase de pós-produção (mesmo que ande, contudo, longe da prodigalidade de outrora).Os interiores são concebidos com precisão, sem excessos de cor e sem uma vontade expressa de dar uma atenção demasiada ao desenho – como o cinema chinês de época tem vindo a fazer ultimamente, numa vertigem quase infantil de se impor comercialmente ao público interno e ao público internacional. Dois exemplos maiores desta tendência para o dourado e para o barulho são Curse of the Golden Flower, de Zhang Yimou, ou The Banquet, de Feng Xiaogang. Este esforço tornou-se já num estilo, um estilo que uma cinematografia velha, como é actualmente a japonesa, não precisa de utilizar. O cinema japonês actual não trai grande desejo de se mostrar no exterior. Esta sua desinternacionalização, a daquela que foi a primeira cinematografia extremo-asiática a mostrar-se de forma consistente no ocidente, é parte de um processo paralizante que está muito para lá do cinema mas que atinge sectores muito diferentes da sociedade japonesa – do conservadorismo da sua cultura empresarial à inoperância aparentemente voluntária dos seus governantes, passando pela falta de proficiência em se promover. A renovação, que é o centro deste filme, tarda em chegar. Neste filme é também de um governante que se trata, Lord Naritsugu. A sua incompreensível crueldade torna-o inadequado para exercer um cargo político importante. A sua condição fidalga (filho do antigo Shogun e irmão

do actual) causa tantas dificuldades ao seu afastamento que se reúne um grupo de 13 figuras com a intenção de o assassinar. São estes os 13 assassinos que o título refere, quase todos eles samurais.Se algum excesso existe nesta história é o de não questionar o dever quando este pode interferir com a moral. Os servidores mais próximos de Naritsugu, longe de questionar a legitimidade do seu Senhor, mesmo em face do seu comportamento extremo, cumprem ao absurdo a sua condição de servos. É um pouco o que acontece num filme chinês recente, também um filme de época e também um filme de artes marciais, Wuxia, de Peter Chan (2010), em que a inflexibilidade e a teimosia de um investigador policial, que coloca a lei acima de toda a razão, o leva a quebrar uma harmonia muito esforçadamente conseguida.No fim, a arrogância e a crueldade de Naritsugu ganham um valor quase poético, semelhante a uma liberdade, independente dos tempos, que roça a loucura – como se de um Calígula se tratasse.O processo de recrutamento dos “assassinos” reproduz os de outros filmes em que este também ocupa uma parte significativa da economia do filme, mais notoriamente Seven Samurai, de Kurosawa (1954) e o conhecido filme de John Sturges naquele baseado, The Magnificent Seven (1960). No filme de Takashi Miike tudo isto é de uma limpidez impecável, a narrativa dividida em quadros bem distintos: 1. retrata-se o inimigo, Lord Naritsugu, e Shinzaemon, o samurai encarregue de montar a estrutura que deverá aniquilar a maldade daquele e que deverá prevenir o caos que a ascensão política de Naritsugu poderia causar. Algo une os dois oponentes, o fascínio pela proximidade de uma morte honrosa, prémio final da dedicação ao código que informa o sistema guerreiro, inútil numa época de paz e em que “as

espadas (…) só servem para cortar nabos” – tensão suicidária exótica ao pensar não japonês e que retirará, ao não-iniciado, grande parte da compreensão e, mais importantemente, do prazer que o filme proporcionará ao público nacional. Se em Shinzaemon esta tensão parte do desejo de se sentir guerreiro e servidor do bem público, em Naritsugu ela parte, para além do cumprimento necessário do ser samurai, de um desejo demente pela diversão e pela excitação - e este é certamente um dos brilhos mais pessoais desta história.Segue-se: 2. a revolta e o recrutamento; 3. a preparação/treino; 4. a espera pela chegada de Naritsugu ao local da emboscada; 5. o massacre final, cerca de 40 e poucos minutos dos quais 31 minutos de combates com espada (uma parte toda ela em tons escuros); 6. um pequeno epílogo.Parece simples e é. As imagens, a montagem e o modo de contar são perfeitos, um pouco arrogantes. O que se passará em Hara-kiri, Death of a Samurai ? E como se passará ?A mensagem final, para quem por isso se interessa, é de renovação e de amor. Dos dois sobreviventes do massacre, um é de longe a figura mais excêntrica ao e mais crítica do universo samurai, o anti-herói, anti-samurai Kiga Koyata, que só luta com paus e pedras. Esta figura quase demónica (um imortal?), que vive na floresta, decide voltar para Upashi, a mulher que vemos num regato da floresta a comer o seu próprio feto; o outro sobrevivente é um homem novo, Shinrokuro, o bêbedo, mulherengo e jogador, sobrinho de Shinzaemon. Admite tornar-se num bandido ou apanhar um barco para a América e fazer amor com mulheres. Estamos em meados do século XIX, a era Meiji estava ao virar da esquina, o shogunato a desaparecer, o mundo velho a acabar. Quem é que se ficou a rir no fim? Estes dois excêntricos.

11 1

1 20

11

13 ASSASSINS , TAKASHI MIIKE, 2010

Page 9: h - Suplemento do Hoje Macau #25

h9T E R C E I R O O U V I D O

próximo oriente Hugo Pinto

11 1

1 20

11

“Lyrical poetry is out for the time being, and something that is called rap or hip-hop is in.

It is still poetry, and we can’t live without it. We need language to tell us who we are,

how we feel, what we’re capable of – to explain the pains and glory of our existence.”

Maya Angelou

É difícil superar a exactidão das palavras da poeta e activista norte-americana Maya Angelou sobre a importância e significado social do Rap e do Hip-Hop. Mais de 30 anos depois destas duas formas de cultura popular terem surgido, depois de vendidos milhões e milhões de discos que tornaram universalmente aceites movimentos nascidos de comunidades isoladas em “ghettos”, continua a ser a “linguagem a dizer-nos quem somos, como nos sentimos e do que somos capazes”. Em suma, é ainda a poesia, da qual derivam o Rap e o Hip-Hop, que nos explica “as dores e a glória da nossa existência”.Foi no início dos anos 1970, nas ruas do Bronx, em Nova Iorque, que um DJ chamado Kool Herc deu início ao fenómeno que hoje abunda nas ruas de cidades de todo o mundo, já não meramente enquanto “discurso” ou música, mas sobretudo como “estilo de vida”, reflectido em códigos perceptíveis desde o vestuário às atitudes.A China começou a assistir à propagação do Hip-Hop depois da explosão do Rock

nos anos 1980 e 1990. Actualmente, encontramos esta expressão cultural confortavelmente instalada no “mainstream” dos media oficiais chineses, mas também damos conta dela resistindo nas trincheiras que separam as margens alternativas dos circuitos comerciais, onde o Rap (forma de discurso rítimico, lírica, habitualmente estruturada em rimas), ou “shuo chang” (algo como “falar cantar”), continua a cumprir o papel original de “levantar a voz” dos oprimidos pelos poderosos sistemas políticos e económicos. Não por acaso, na China, um dos primeiros artistas a usar e divulgar a linguagem do Hip-Hop foi Cui Jian, o “pai do rock chinês” e símbolo da geração que encheu a Praça de Tiananmen em 1989. Foi já na segunda metade dos anos 1990 que Cui incorporou na sua música fortes influências dos norte-americanos Public Enemy, grupo lendário que se definia como “the CNN of black America.”Para um número crescente de jovens chineses, o Hip-Hop é, actualmente, a forma privilegiada de expressarem a individualidade que o regime, a família e a escola rejeitam. Esta espécie de “culto da diferença”, apesar de estar longe de ser aprovado pelas autoridades, vai escapando ao radar dos censores remetendo-se à semi-obscuridade dos clubes de Hip-Hop que nasceram como cogumelos por toda a China. Para que a integridade subsista e a sua individualidade se faça ouvir, os jovens “rappers” chineses abdicam de

eventuais carreiras lucrativas a cantarolar sobre quão maravilhosa é a vida na República Popular. Ao invés, falam de como a corrupção domina um país que “só é um paraíso para homens velhos e ricos” e onde “bebés morrem depois de beberem leite”, como descreve Wang Li, “rapper” de Dongbei.No universo cantonense, os LMF (Lazy Mutha Fucka), de Hong Kong, cometeram a proeza de rivalizar com o sucesso do Cantopop, apesar (ou por causa...) da controvérsia que nas suas letras rima com linguagem ofensiva e descrições vívidas da realidade social das “camadas desfavorecidas”, para usar o jargão oficial.O fenómeno do “Hip-Hop de características chinesas” atraiu, entretanto, a atenção da academia norte-americana. Angela Steele, da Universidade de Stanford, passou uma temporada na China, onde estudou a forma como o Hip-Hop foi apropriado pela juventude local. Nas diversas entrevistas que realizou com “rappers” de Pequim, Xangai ou Urumqi, o sistema de ensino chinês aparece invariavelmente identificado como um elemento de controlo e indiferenciação, algo que os impele à revolta e à expressão de uma identidade própria, de um estilo pessoal que poucos géneros musicais valorizam tanto como o Hip-Hop, a escola de rua que desde o primeiro momento ensinou que a liberdade de ser é algo que também se conquista.

“GRAFFITI” NA GRANDE MURALHA

Page 10: h - Suplemento do Hoje Macau #25

h1011

11

2011 C I D A D E S I N V Í S I V E I S

NO PASSADO DIA 22 DE OUTUBRO, foi realizada a segunda sessão do ciclo de apresentação de slides de viagem, organizado pela Associação Cultural Circo das Ideias, no Palacete Pinto Leite no Porto. A noite esteve reservada à apresentação da viagem a Macau realizada em 2011 por Jorge Figueira, José Maçãs de Carvalho, Rui Xavier e Ana Vaz Milheiro no âmbito da exposição “Manuel Vicente: Trama e Emoção”. O conteúdo fotográfico foi seleccionado por Jorge Figueira a partir das suas fotografias registadas nas mais diversas circunstâncias da viagem. Da iniciativa levada a cabo pela Associação Cultural Circo das Ideias resultou o lançamento de uma colecção de livros de bolso denominada Colecção Viagens. É também sobre o livro lançado por Jorge Figueira, no âmbito da Colecção Viagens, que escrevo hoje.Jorge Figueira esteve pela primeira vez em Macau no ano de 2006. Em 2011 a oportunidade foi gerada pela exposição “Manuel Vicente: Trama e Emoção”, comissariada por João Afonso. A ideia era filmar cinco obras de Manuel Vicente. Como Jorge Figueira refere: “(…) o que encontrei em Macau em 2011 é diferente do que pude ver há cinco anos. Às vezes incrivelmente. O “Cotai Strip” faz-nos sonhar; o Grand Lisboa é uma realidade. Nos últimos anos, Macau ultrapassou as receitas de Las Vegas. É uma cidade do jogo, pujante onde o céu parece ser o limite. Refiro-me, em particular, ao céu reluzente e pré-fabricado do Grand Canal Shoppes no Venetian, um limite reiterado sem variações. Quis mostrar este universo nas imagens e comentários agora publicados. Mas também o seu contrário; aquilo que continua a ser Macau, que nunca foi puro ou virtuoso mas conturbado, denso, urbano, no seu melhor.”Com esta iniciativa a Associação Cultural Circo das Ideias procura construir um mapa afectivo de viagens singulares realizadas por personagens reconhecidas da cultura arquitectónica portuguesa, um roteiro pelos vários continentes, mas também pelo universo dos autores. Segundo a organização da iniciativa, “(…)

Tiago Quadros

MACAU2011

através desta colecção desenham-se novas cartografias, como a Veneza de Marco Polo, territórios elevados do mapa, cidades físicas transformadas em territórios do imaginário, paisagens densas apropriadas pelo poeta.”Jorge Figueira licenciou-se em arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto em 1992. Doutorou-se pela Universidade de Coimbra em 2009. É actualmente Director e Professor Auxiliar do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra e Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Comissariou várias exposições, entre as quais, “Álvaro Siza Modern Redux”. É autor de livros sobre arquitectura contemporânea, entre os quais, O Arquitecto Azul, publicado em 2010. A viagem de Jorge Figueira leva-nos para dentro das gaiolas onde o betão é sacrificado e a arquitectura vive sem forma fixa, indeterminada. A par destes ensaios processuais, Figueira vai apontando o dedo a exemplos maiores: o conjunto STDM, de Manuel Vicente, construído em 1982; o Orfanato Helen Liang, de 1966, também da autoria de Manuel Vicente; o edifício dos Bombeiros da Areia Preta, uma das obras finais de Manuel Vicente em Macau, de 1998; ou a “passagem superior pedonal” de Adalberto Tenreiro na Avenida Rodrigo Rodrigues, de 1991; ou a de Luis Sá Machado, derivação desconstrutivista, “(…) espécie de nuvem de lata com geometrias sobrepostas e dissonantes (…)” na zona de Nossa Senhora de Fátima. O percurso faz-se em torno dos casinos na Baía da Praia Grande. Entre a Baía do Patane e o recente Galaxy Macau somos levados a olhar. As imagens de Jorge Figueira mostram-nos coisas que ainda não vimos. Uma glorificação do vulgar que vive dos interstícios dos outros. Uma cidade em “tempestade gráfica” que vive a arquitectura e os seus opostos. Macau.O que vai acontecer aqui?

AquitectoMestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de

Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa

Page 11: h - Suplemento do Hoje Macau #25

h11C I D A D E S I N V Í S I V E I S

11 1

1 20

11

Que livro é este? É um livro impressionista, de viagens, mais convencional ou também quis aproveitar o seu conhecimento sobre a arquitectura local, as suas passagens anteriores a 2011 por aqui, para um livro com mais background histórico, com notas etnográficas?É um pequeno livro feito a partir de 20 fotografias seleccionadas nas várias centenas de imagens que tirei quando estive, em Macau, em Abril deste ano. Fui com o José Maçãs de Carvalho para trabalharmos no filme Learning from Macau, exibido na exposição Manuel Vicente: Trama e Emoção que está agora em itinerância aqui em Portugal. Algumas das imagens foram tiradas no decorrer das filmagens, outras, em passeio, nos intervalos, depois do trabalho. Depois da selecção escrevi um pequeno texto a acompanhar cada uma das imagens. Os temas são, em síntese, as “gaiolas” nos edifícios de Macau; algumas obras de Manuel Vicente; o Casino Lisboa e o Grand Lisboa; o Galaxy Macau em Cotai; o Venetian; o Mao Zedong; os penhores; as passagens superiores pedonais desenhadas pelo Adalberto Tenreiro e pelo Luis Sá Machado; os espaços intimistas de Macau; um passeio no Porto Interior; um dia regressando de Hong Kong; o Chi Tat e a Live Music Association; um concerto de uma banda japonesa e da banda de Chi Tat, LAVY; a

impressão causada pelos edifícios de habitação de grande escala. É, portanto, material que trata de arquitectura mas também daquilo que pude ver e vivenciar. Entro e saio da arquitectura. Tento captar aquilo que está a mudar em Macau, mas também aquilo que permanece. Uso o que conheci na minha estadia de 2006 e que depois estudei; e aquilo que entretanto mudou radicalmente. Acho que é uma visão compacta, sintética e seguramente, aqui em Portugal, surpreendente, de Macau em 2011. A minha apresentação do livro no Porto provocou esse efeito.

Como surgiu a ideia de um livro de viagens?Trata-se de um convite da Associação Cultural “Circo de Ideias” que está a organizar uma colecção dedicada a viagens de arquitectos. Saiu já outro livro de uma viagem a Marrocos dos arquitectos Alexandre Alves Costa e Álvaro Siza. Os arquitectos, em geral, viajam muito, e nessas viagens há revelações e lugares que é bonito e útil partilhar. Depois, na verdade, para mim, a ida a Macau não é bem uma viagem, mas uma visita. Uma viagem significa que não se quer ou não se pensa voltar tão depressa. Não é voyeuristico o meu olhar; seguramente não é turístico; é um olhar de aproximação não escondendo o espanto, nem a identificação com aquilo que anoto.

Porquê “viagem delirante”? Como está organizado? É uma nova

dimensão, esta de escritor ou costuma escrever sobre os lugares que vais visitando?“Delirante” é um termo dos editores, que eu aprovei, por razões mais estritamente publicitárias ou mesmo académicas: há o famoso livro de Rem Koolhaas “Delirious New York” que faz um resgate da cidade americana para a cultura e teoria da arquitectura. O “delírio” aqui tem uma conotação positiva. Nesse sentido, penso que os editores se referem as extravagâncias dos casinos que enuncio com empenho e que me esforço por analisar; as alterações “climáticas” que provocam mesmo que Macau “continental” funcione com autonomia. Aquilo que anoto é a passagem da famosa dicotomia “oriente-ocidente” para uma coabitação entre o local/intimista e o global/estridente. E essa passagem, essa nova coabitação, tem uma dimensão de delírio.

O layout do livro que aparece na promoção remete para um imaginário quase colonial, como se de um tempo passado se tratasse, onírico e, no entanto, é Macau de 2011, quase um tempo e um espaço que projectam um outro imaginário futurista, e sim, delirante. Há uma tentativa de, digamos, integrar esses dois tempos neste livro e ainda mais sendo uma obra de um português?Essa é a imagem do cartaz, o livro não tem esse grafismo retro. Pelo contrário, está bem assente

na contemporaneidade. Mas, no conjunto, tento cruzar os vários tempos que coabitam em Macau: antigo, moderno, pós-moderno, global. Esses sedimentos antigos e futurantes são anotados, textos e imagens, por um português vivo e militante.

É um livro de afectos? Ou um olhar do arquitecto, sobretudo, que predomina?Afectos e arquitectura, boa pergunta. Aquilo que eu vejo nos melhores arquitectos, não só os que “fazem” mas os que falam como tal, é um enorme afecto. É, na verdade, um afecto terrível, porque é dirigido às pedras; às portas e às janelas; às coberturas. É possível imaginar um afecto mais difícil, mais não-correspondido e mais intenso? Portanto sim, é um livro de afectos e de arquitectura. Estou a tentar amar o que às vezes não compreendo. Estou a tentar falar com o que sei não me vai responder. Por enquanto. Mas uso a ironia quando o afecto me deixa demasiado exposto.

Pensa vir a lançá-lo e apresentá-lo em Macau?Gostava muito. Seria interessante fazer uma edição bilingue, com o português e o inglês ou o cantonês. Acho que essa circulação mais global faria sentido. Tratando-se de uma visão exterior, arquitectónica e não só, podia surpreender quem, como é natural, vive o território sem distância ou qualquer forma de espanto!

Carlos Picassinos

LIVRO DE JORGE FIGUEIRA SOBRE MACAU NUMA COLECÇÃO DE VIAGENS DE ARQUITECTOS PORTUGUESES

É UM AFECTO TERRÍVEL DIRIGIDO ÀS PEDRAS

SE HÁ DIÁLOGO

EM MACAU NÃO É

DE ORIENTE PARA

OCIDENTE MAS ENTRE

O INTIMISTA E O

ESTRIDENTE, O LOCAL

E O GLOBAL, O QUE

PERMANECE E O QUE

PASSA. É A IMPRESSÃO

DE JORGE FIGUEIRA,

O ARQUITECTO

QUE TEM VINDO

A OCUPAR-SE DA

OBRA DE OUTRO

ARQUITECTO EM

MACAU, MANUEL

VICENTE, E QUE NAS

SUAS RECORRENTES

PASSAGENS PELA RAEM

FOI ESCREVENDO,

ANOTANDO,

ESTUDANDO,

DELIRANDO. COMO

SE FOSSE LAS VEGAS?

COMO SE FOSSE

COMPREENSÍVEL

SENDO SÓ

INCOMENSURÁVEL.

“NA VERDADE, É UM

AFECTO TERRÍVEL,

PORQUE É DIRIGIDO

ÀS PEDRAS; ÀS PORTAS

E ÀS JANELAS; ÀS

COBERTURAS. [...]

ESTOU A TENTAR

AMAR O QUE

ÀS VEZES NÃO

COMPREENDO”, DIZ,

NESTA ENTREVISTA,

COMO O AMADOR

DA COISA AMADA

QUE CORRENDO PARA

DENTRO DAS FORMAS

NELAS DESCOBRE UMA

BAÍA EM CHAMAS.

POR ISSO, SIM, ESTE

É UM LIVRO DE

AFECTOS RENTE À

ARQUITECTURA.

Tento cruzar os vários tempos que coabitam em Macau: antigo, moderno, pós-moderno, global. Esses sedimentos antigos e futurantes são anotados, textos e imagens, por um português vivo e militante.

Page 12: h - Suplemento do Hoje Macau #25

PUB.