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ARTES, LETRAS E IDEIAS h PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2467. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE CASINO, HIPNOSE E EXTINÇÃO ANTÓNIO JÚLIO DUARTE WHITE NOISE

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 7 de Outubro de 2011

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hPARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2467. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

CASINO, HIPNOSE E EXTINÇÃO ANTÓNIO JÚLIO DUARTE WHITE NOISE

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das mais recentes estadias do fotógrafo ocorreu em Julho de 2009 quando, no âmbito do projecto mundial “Estados Gerais” do colectivo “Kamera Photo” a que pertence, António Júlio permane-ceu uma semana na redacção do Hoje Macau acompanhando os jornalistas nos seus trabalhos diários. Foi, exactamente, a semana da eleição do actual Chefe do Executivo, Fernando Chui Sai On, foto-grafo por António Júlio cujos trabalhos

WHITE NOISE LIVRO DE FOTOGRAFIAS DE ANTÓNIO JÚLIO DUARTE NOS CASINOS DE MACAU

NOCTURNO, INERTE, HIPNÓTICO

IMAGEM DE LOBBY DE CASINO PUBLICADA EM “WHITE NOISE”

E no enésimo regresso a Macau, An-tónio Júlio Duarte publica “White

Noise”, livro de 36 fotografias a cor, em redor dos casinos, da atmosfera insone dos lobbies, dos objectos e da ausência que percorre a geografia do jogo local. Editado pela Pierre von Kleist Editions, o livro deverá estar disponível ao público no próximo mês de Dezembro.António Júlio Duarte regista o insólito dos casinos com a distância familiar própria de um antropólogo romântico em busca dos mais eloquentes vestígios de uma civiliza-ção em perda, no caso, em busca de des-pojos da humanidade anulada pelo fulgor das luzes, dos materiais e das arquitectu-ras. Trata-se de uma humanidade ausente, de corpos inertes feridos pela disciplina do espaço e daí o sentimento onírico ou labiríntico a que a promoção do livro se refere. “Durante os últimos dez anos, An-tónio Júlio Duarte tem fotografado os lo-bbies dos casinos de Macau. Em jet lag, à noite, com um flash e uma câmara de mé-dio formato, Duarte fez dos lobbies o seu território pessoal. A lúxuria destes locais, a estranheza dos seus objectos e a ausência humana criam um forte sentimento oníri-co. Como que flutuando somos guiados por um labirinto. O trabalho é, ao mesmo tempo, um importante documento sobre a pouco vista realidade dos casinos de Ma-cau nos nossos dias e uma reflexão muito pessoal sobre o Ocidente e o Oriente, so-bre como nos relacionamos com o mundo através da fotografia”. O título do livro “White Noise”, como afirma na entrevista que aqui publicamos, remete para esse barulho nocturno e in-distinto que o fotógrafo identifica com a insónia, um estado prolongado de (in)consciência materializado no universo do casino. Mais do que espaço de insónia será, antes de tudo, um espaço de desola-ção, e mais ainda, de desconsolo pessoal. Este parece ser, aliás, a fundação do edífi-cio que constitui todo o livro porque é a partir dessa angústia, ou da depressão, ou da tristeza, ou do ódio, em todo o caso, a partir de um sentimento de disconformi-dade face a este objecto, afectivamente, violento que o fótografo constrói o seu discurso. Não é, por isso, de surpreen-der a sua afinidade com os trabalhos do japonês Daido Moriyama que, embora monocromáticos, percorrem também os lados mais obscuros, intrigantes, invisí-veis ou marginais de Tóquio.

ESTADOS GERAISA presença de António Júlio Duarte em Macau tem sido recorrente e o seu tra-balho na RAEM não é estranho. Uma

É a partir da angústia, ou da depressão, ou da tristeza, ou do ódio, em todo o caso, a partir de um sentimento de disconformidade face a este

objecto, afectivamente, violento dos casinos que o fótografo constrói o seu discurso

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se reuniram, depois, aos dos outros fo-tógrafos do “Kamera Photo” que durante os mesmos sete dias de Julho estiveram espalhados em redacções de jornais em vários países do mundo. O resultado pre-tendia registar essa semana do Verão de 2009 no mundo e ser, depois, apresenta-do no Festival Internacional de Fotojor-nalismo “Visa pour le image”, em Perpig-nam, sul de França. “Todos os integrantes no projecto escolheram jornais que se preocupam com as notícias do sítio onde estão inseridos, numa abordagem local. Um pouco para comparar com o que di-fundido pelas grandes agências. E tam-bém para analisar como vimos a notícia e como o jornal em que estamos inseridos a viu”, afirmava, então, António Júlio na entrevista que concedeu a este jornal no final do projecto.Em 2008, a passagem do fotógrafo por Macau haveria ainda de produzir um tra-balho sobre um dos mais insólitos aspec-tos da cidade, patente em Espanha, em Fevereiro do ano passado, numa mostra colectiva intitulada “Montaña”, comissa-riada pelo espanhol Horácio Fernandez, na Galeria de Arte “Sonado” de Segóvia. Tratava-se da imagem do vulcão do par-que temático da Doca dos Pescadores intitulada “Vulcania. The highest man--made volcano in Southeast Asia”.

Os lobbies dos casinos como teu terri-tório pessoal, diz o texto de promoção de “White Noise”. Parece que há um sentido de fantasmagoria nessas fotos, uma encenação do desconsolo desuma-no, mas o que o leva a esses espaços, a fotografar (ou documentar?) esses espaços? A fotografia é na sua essência fantas-magórica, registo do que já não é. Uma ruptura no fluir do espaço-tempo. Mas o que é realmente fantasmagórico é o real. Não há encenação, é mais uma projec-ção do meu desconsolo, antes um des-consolo humano. Sinto muitas vezes que estou a assistir aos últimos dias de uma espécie em extinção. Sou atraído para espaços ou situações que reflectem esse meu mal-estar. Os casinos, com toda a sua estratégia de anulação temporal, tornaram-se o arquétipo de tudo isso.

“Não há encenação, é mais uma projecção do meu desconsolo, antes um desconsolo humano. Sinto muitas vezes que estou a assistir aos últimos dias de uma espécie em extinção”

Michel Foucault falava de heteroto-pias, espaços que acumulam outros espaços, outros tempos, condições desviantes. Podemos falar desta ideia neste seu trabalhos?Pode-se falar efectivamente da ideia de heterotopia, na condição de que se com-preenda que ela está presente só a um nível superficial, e que aquilo que está nos meus trabalhos é antes o meu espa-ço, o meu tempo, e as condições pre-dominantes. A norma é em si desviante. É uma heterotopia que paira sobre a hegemonia.Em que medida entende a fotografia como dispositivo de mediação/ repre-sentação do mundo? Ou, serão antes as fotos dispositivos de inscrição no mundo contrariando a ideia da fotogra-fia documental, a foto como  revelação de algo que está ali mas não se vê, que é preciso revelar?São sempre dispositivos de representa-ção do mundo e sempre dispositivos de inscrição no mundo. Por que tenho que escolher? Não gosto de pensar nas ima-gens fotográficas como reveladoras, mas como algo que se vê e faz ver.O texto também afirma que fotografa em jet lag, à noite. Procura também, de algum modo, fazer fotografia em estados de consciência alterada?Para atingir o estado a que Daido Mo-riyama chama photo mode, preciso de estar relativamente deprimido. Outras emo-ções, como a tristeza ou o ódio, quando

ANTÓNIO JÚLIO DUARTE DIZ QUE O REAL É FANTASMAGÓRICO

“PARA ATINGIR O PHOTO MODEPRECISO DE ESTAR DEPRIMIDO”

atingem um certo ponto, podem induzir este estado. Todos temos os nossos métodos, não digo para criar, mas para fazer.É também uma reflexão pessoal sobre ocidente e oriente, e em que medida? Só na medida em que os próprios termos ocidente e oriente já são clichés. Por fim, White Noise, porquê este ti-tulo para o livro?É um título aberto, até porque não remete para a imagem. Uma amiga minha, quando viu a maquete do livro, achou que white noise se referia ao ruído das slot machines. Para mim, é o som da insónia.

UM VIDRO RACHADO DE UMA MONTRA DA RUA DE SÃO BENTO. LISBOA. 27/01/2010.7

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Escrever sobre a água é um convite à re-flexão sobre um dos símbolos mais arcai-cos da nossa imaginação e pensamento. Através da água, como elemento primor-dial, exprimiu Heráclito a unidade do mundo, uma unidade movente que sem cessar se transforma e nos transforma, que nos aflige com a imagem da morte pela dissolução do mundo. Escrever so-bre a água é empreender uma viagem, imaginária como a do rei Artur moribun-do que tenha até talvez atravessado um oceano e fundado uma utopia. O tema afigura-se-nos depois tão vasto, tão es-sencial, que desde já afastamos qualquer propósito racional ou objectivo. A água é para mergulhar, para sentir no seu seio um outro peso, para permitir à imagina-ção essa viagem para lá do rio Letes. A água separa e a água une, contém em si o odor da vida e a paz da morte calma.

A IMAGINAÇÃO DA ÁGUA

É pela água, pelos seus segredos mons-truosos ou afáveis, que realizaremos a última viagem. Longe de pretender ser exaustivo ou criar teorias, simplesmente deixarei correr a escrita, à laia das ribei-ras selvagens da minha terra, por entre a sensibilidade da memória, da poesia e das lendas.A água primordial é o mar. Dele veio a vida e a ele retornará, como nas lendas da cavalaria. Espaço de medos, de imen-sas massas negras na escuridão das noites atlânticas, local habitado por monstros inconcebíveis, certamente produtos de um deus enraivecido pela ousadia dos humanos, o mar estende-se aos pés dos homens nas praias e nas falésias como um limite insuperável, infinito, sem fim visí-vel e real. A doçura da morte no mar é comparável ao carinho protector da mãe que acolhe ao seu regaço e nos pousa a mão fresca na fronte para recolher a paz um último suspiro, numa paz inexcedí-

vel. Os olhos muito abertos perante o mar, como perante a morte, porque ele é também um dos últimos segredos a de-mandar e encontrar. Uma noite muito escura, no estreito de Batangas nas Filipinas, senti muito per-to o fim. Navegava num pequeno barco em alto mar quando subitamente a noite caíu e nos deparámos rodeados de ondas enormes e negras. O mar transformou--se então num enorme abismo, numa garganta horrenda e sem fim, prestes a devorar a pequena embarcação. Esta, espancada pelas ondas, gemia e saltava, timidamente conduzida por um pesca-dor de mão experiente mas cujas preces eu entendia como um murmúrio de mau agouro. O barquito subia de lado numa vaga maior e eu via lá embaixo um ru-mor de espuma branca que se destacava na massa negra das águas. Aprendi então que o medo tem um limite a partir do qual fazemos sentido e descobrimos que

a nossa humanidade, essa capacidade de espanto e indiferença perante a morte, é capaz de uma curiosidade mórbida, de uma vontade de saber que afoga o pró-prio medo e o instinto de sobrevivência. O mar é uma lição e um limite. Perante a sua majestade perdem sentido os nossos valores, os nossos ódios, as paixões mais arrebatadas. Face à sua grandeza irracio-nal, esvaem-se ambições terrenas, erigi-mo-nos então noutro qualquer ser que desconhecíamos, que talvez temessemos encontrar em nós próprios e que surge gigante como um arrebatamento de uma consciência apenas pressentida mas ago-ra poderosa, indiferente e magnífica.

*

Homme libre, toujours tu chériras la mer!La mer est ton mirroir; tu contemples ton âme

Baudelaire

Carlos Morais José

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Sim, porque o mar é, sobretudo, uma li-ção de liberdade. Perante a visão do seu horizonte, o ho-mem descobre em si mesmo o infinito e aprende a coragem de se crer indiví-duo, não somente pela constatação da dor mas pela contemplação e sentimen-to do sublime. Face à sua diversidade, à sua riqueza, ao seu poder absoluto, compreendemos como participamos da sua natureza, dos seus mistérios, como eles nos assombram as noites de paixão lúcida, repletas de monstros e sereias. O mar é a metáfora suprema de uma certa desordem, lugar por excelência da disso-lução da matéria na matéria. O mar não é somente um líquido amniótico, mas um espaço de assombrações. Por mar se chega às ilhas dos mortos. Só estes estão condenados a navegar eternamente, sem nunca poderem atracar a nenhum porto, sem praia que os acolha e agasalhe, sem nenhum conforto tépido de carícias, sem o crepitar das lareiras, no meio da famí-lia ou, simplesmente, um riso fraterno e são numa taverna obscura de um porto pouco frequentado. Este mar será então o palco das nossas emoções solitárias, do confronto que os homens pressentem com a imortalidade dentro de si mesmos.Quem domina o mar, domina o mundo, eis a antiga crença do mare nostrum, o mar dos impérios. Mas no mar predo-mina a liberdade dos grandes espaços, o mar ensina o infinito que mais não é que a descoberta dessa mesma liberdade. O mar é repositório de vida e espaço de morte. O mar é tudo e os seus movimen-tos, calmos ou tempestuosos, são metáfo-ra do nosso espírito, das nossas vontades e desatinos. Quem domina o espírito, domina-se a si próprio e essa é a mais es-tóica e distante das virtudes.

*

Mas porque a água é o mais plástico dos elementos na nossa imaginação, não nos podemos cingir a estas concepções. No seu eterno ciclo de evaporação, chuvas e fertilização, a água passa por diversos estados, ganha aos olhos do nosso es-pírito tipos diversos de características. Se ao mar são essencialmente atribuídas características de um ser feminino, já as águas da chuva, as águas que caem dos céus, assumem um simbolismo masculino praticamente universal. Água masculina, esperma que fertiliza a terra imóvel e re-ceptiva, as chuvas desempenham no ima-ginário dos homens um papel cuja opera-cionalidade é sinónimo de sobrevivência. Sem chuva, a vegetação desvanece-se, os homens e os animais confundem-se com a terra e regressam ao pó. São incontá-veis os rituais que, em todo o mundo, os mais diversos povos praticam para exer-cer controlo sobre essa água que fertiliza o campos e garante a vida. Entre os su-mérios a mesma palavra designava água, esperma, concepção e geração. Certas tribos melanésias acreditam que uma jo-vem pode perder a virgindade se tiver contacto com a chuva. Na Europa exis-

tem também crenças segundo as quais uma mulher estéril pode tornar-se fértil se beber de uma determinada fonte sa-grada.Trata-se neste exemplo europeu de água considerada como lugar da vida e mesmo como ser vivo. Nas mitologias clássicas, cada rio e ribeira eram considerados vi-vos e dominado por um deus que habita-va nos mais profundos leitos desse mes-mo rio. Essa água que canta, que salta so-bre as pedras e se despenha em pequenas cascatas, era adorada e nem séculos de repressão cristã conseguiu anular a pro-funda impressão que os cursos de água provocam na imaginação dos homens.

*

O mundo odeia o que é claro e puro,O homem sábio oculta o seu fulgor

Na margem do rio, um velho pescador.Eu e ele regressaremos juntos

Li Bai

Já na China encontramos concepções radicalmente diferentes porque elabora-das num grau diverso e com objectivos não mágicos mas como degraus de uma sabedoria. Para os tauístas, a água é um símbolo fundamental pois a sua natureza adaptativa serve às mil maravilhas como metáfora do sábio e do pensamento. Em primeiro lugar, as águas paradas. Nelas se reflecte o mundo, tal como este se deve reflectir no pensamento do sábio. A sua claridade é uma metáfora da luminosi-dade do pensamento. Na água o mundo surge perfeitamente reflectido e assim pretende o sábio que em si se passe. Pa-rado junto ao lago, absorve as qualidades da água, medita no seu valor e no mundo. O sábio é um pescador que esgota o seu tempo na contemplação das águas, numa quietude impassível aos movimentos do mundo. A imagem do pescador percorre a poesia chinesa exprimindo exactamen-te este simbolismo. A água pode depois fluir como o pensamento e este deve ser embalado pelo seu ritmo, possuir as suas características. Nomeadamente, a sua ca-pacidade de mudar de forma consoante o recipiente em que se encontra, numa metáfora da alma huma que transita de corpo para corpo. O pensamento não pretende, deste modo, um percurso dia-lético e evolutivo, mas um ajustamento à Natureza da qual ele também faz parte. O pensamento pretende as qualidades do elemento que é considerado primordial, efectuando um retorno às origens, à laia de peregrinação às fontes, sem o contac-to enganador do mundo. Como certos gregos acreditavam que o mundo consis-tia na degradação infinita de uma unida-de original, os sábios tauístas preconizam a aproximação ao primordial.A água é também espaço de metamorfo-ses. Quem atravessa um mar ou determi-nados rios não será nunca mais o mesmo. É o caso do rio Letes que separa os vivos dos mortos. As almas atravessam para o Inferno na barca de Caronte, de óbulo na mão para pagar ao terrível barqueiro.

Não há retorno desta viagem, salvo rara excepção. As águas são um limite que ultrapassado exigem a metamorfose, a emergência de novas qualidades no via-jante. Reflectir neste simbolismo empres-ta uma outra dimensão à aventurta das descobertas portuguesas. Muito ficará aqui por dizer. Nomeada-mente sobre a simbologia de fontes como a do Nilau, que nos remete para reflexões sobre a memória e a saudade. Mas águas são, também neste sentido, símbolo de separação e esquecimento. A presença

das águas numa imaginação conturbada prenuncia o desejo de suicídio, de de-saparecimento através da dissolução na primordialidade. Não resisto assim terminar sem invocar a surpresa que a memória de um período final de um conto, que escrevi há algum tempo, de repente me provocou: Deve--se acreditar nos estrangeiros, pensei na noite seguinte, enquanto me dirigia ao rio para mergulhar suavemente nas águas negras, sulfurosas, pela última vez, à pro-cura das pérolas.

Essa água que canta, que salta sobre as pedras e se despenha em pequenas cascatas, era adorada e nem séculos de repressão cristã conseguiu anular a profunda impressão que os cursos de água provocam na imaginação dos homens.

O sábio é um pescador que esgota o seu tempo na contemplação das águas, numa quietude impassível aos movimentos do mundo. A imagem do pescador percorre a poesia chinesa exprimindo exactamente este simbolismo.

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ANTÓNIO GRAÇA DE ABREU

NÃO ME POSSO QUEIXAR DE, AO LONGO DOS ANOS, NÃO TER

SIDO BAFEJADO PELOS DEUSES COM MIL AVENTURAS E DESVENTURAS SÍNICAS. Em termos de país -- para além de in-contáveis tropeções, de dez mil desen-tendimentos e ignorâncias naturais num obtuso cidadão da pátria lusitana que há mais de trinta anos caminha, meio à de-riva, pelo Império do Meio --, a verdade é que, de quando em quando mergulho feliz, em pleno, no húmus fértil da terra chinesa.No Verão de 2004, outra vez no Verão de 2010 eis-me em 敦煌 Dunhuang, o míti-co entreposto na Rota da Seda, na pro-víncia de Gansu. Desta última vez, chego às três horas da manhã a Liuyuan, a esta-ção de caminhos de ferro mais próxima,

perdida no deserto de Gobi, a cento e vinte quilómetros do burgo. Na escuri-dão da noite, mal dormido, mal instalado no autocarro que me leva à cidade e chia por tudo quanto é junta e molas -- gasto pelos anos e pelas péssimas estradas --, saltito no banco com o subir e o descer das lombas e a queda nos buracos do de-primente e escalavrado asfalto. São duas horas e meia de viagem para esquecer. Mas em redor, com o lusco-fusco do amanhecer, começa a entrever-se o de-serto de areia e pedra solta, a magnífica solidão, a lonjura de tudo. Depois sur-gem, delapidados pelos séculos, restos da Grande Muralha aqui construída na dinastia Han (206 a.C.-220).Chego a Dunghuang com a luz do novo dia. A cidade situa-se num bonito oásis, no extremo oeste do deserto de Gobi, paredes meias com outro vasto deserto, o

Taklamakan. Aqui há água, o solo do oásis é generoso, dá quase tudo o que se lança à terra e os campos verdes estendem-se por quilómetros e quilómetros. Lugar de passagem e descanso das longas caravanas que percorriam a antiga Rota da Seda, o ponto alto de qualquer visita à região são as grutas de Mogao, Património Cultural da Humanidade pela Unesco e as altíssi-mas dunas de areia de Mingshashan, cujo nome significa exactamente “monte das areias que cantam.” Nestas dunas, faz par-te da original visita um passeio de cerca de três quilómetros, montando cada pessoa o seu próprio camelo encavalitada entre as duas bossas dos simpatiquíssimos animais. Em fila, numa extensa caravana, o turista oscila, sobe, desce pelo areal imenso, exta-siado diante da magia das dunas. Sente-se no século XIII, a viajar pela Rota da Seda. Mas de súbito, em pleno deserto, anichado

entre enormes montes de areia com mais de 200 metros de altura, aparece um lago em forma de lua, um pomar de laranjeiras, um pagode, corredores e pavilhões chineses.Muitos dos poetas da velha China tinham o bom hábito de escrever um poema sempre que, em viagem, chegavam a um qualquer lugar esplendoroso do império. Imitando--os, consciente das limitações da minha própria língua, tão diferente da chinesa, e do meu não muito engenho poético, escre-vi nas dunas de Mingshashan:

Mais de cem léguas de viagem [pelo deserto de Gobi,areia, montes de pedra, [os espaços luminosos do vazio.De súbito, um pedaço de lua caído [do céu,um lago verde onde o sol brilha [como uma bola de fogo

GANSU Magia nas dunas e grutas de Dunhuang

De súbito, em pleno deserto, anichado entre enormes montes de areia com mais de 200 metros de altura, aparece um lago em forma de lua, um pomar de laranjeiras, um pagode, corredores e pavilhões chineses.

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entre areais e o nada.A harmonia dos espaços, pavilhões, [pagodes,um pomar de brincar rodeando [o crescente da lua.Ao fundo, as dunas sobem ao encontro [do cetim azul,mudam de cor nos tons quentes [do cair da tarde,descem para os homens, cantam [como pássaros.Depois, à noite, as areias, suaves como seda,recolhem-se para descansar e, antes de adormecer,ciciam segredos às águas do lagoe ao luar.

Situadas a trinta quilómetros de Du-nhuang, sempre na aridez do deserto, as grutas de Mogao começaram a ser esca-

vadas na dinastia Wei do Norte, no sécu-lo V, no rebordo da falésia de um extenso monte de pedra calcárea. São quase qui-nhentas extraordinárias caves construí-das e decoradas em honra das divindades budistas, e os trabalhos só pararam na di-nastia Yuan, já no século XIV. Há grutas para todos os gostos, a nº. 465 foi dedi-cada aos prazeres de uma opulenta vida sexual, com desenhos bem explícitos e, por decoro, não é visitável. Mas são os motivos budistas que enchem as grutas de cor e de todos os fascínios. Escrevi também um poema sobre as fantásticas grutas de Mogao. Assim:

Balaustradas, escadarias, mil pavilhões,andares, caves sobrepostas embutidas [na falésia, alpendres, murais mágicos, estátuas, [altares,

florões da vida, discípulos de Buda, [bailarinas,música de cítaras, timbales, sinos [e tambores,acrobatas, dragões alados, macacos, tigres de fogo, elefantes flutuando [em nuvens.

As grutas adormecem no silêncio [da pedra dos séculos,dez mil budas respiram a serena poeira do tempo,cem mil figuras esvoaçam na penumbra [das paredes de jade,iluminados e deuses passeiam nos jardins [do paraíso budista,apsaras, ninfas da benevolência, abrem os braços [para a brisa.Os murais falam, contam histórias de medos, [sortilégios, alegrias:quinhentos bandidos por honra transformados [em monges,

demónios zangados, caprichosos palácios [de fadas da paz,budas de duas cabeças, evanescentes príncipes [do luar, até uma gruta escondida, de olhos semi-cerrados,foi dedicada ao amor, aos prazeres do jogo das nuvens e da chuva.

Cores cálidas de tectos e paredes, amarelos de ouro, verdes de musgo velho,vermelhos secos e carregados,azuis diluídos na névoa e na magia, castanhos de terra e mel,ocres temperados nas areias quentes do deserto.

Em Mogao, Dunhuang, há quinze séculos,a luz de Buda, o génio dos deuses,o traço sublime da passagem dos homens.

8 de Junho de 2011

GANSU Magia nas dunas e grutas de Dunhuang

De súbito, em pleno deserto, anichado entre enormes montes de areia com mais de 200 metros de altura, aparece um lago em forma de lua, um pomar de laranjeiras, um pagode, corredores e pavilhões chineses.

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luz de inverno Boi Luxo

Este é outro daqueles filmes de Herzog que se centra obsessivamente no retrato de uma figura masculina. Assim é na maioria dos seus filmes mais conhecidos, os filmes que fez até Cobra Verde, carregando muitas vezes os seus títulos esta mesma intenção : Aguirre, der Zorn Gottes, Stroszek, Nosferatu, Fitz-carraldo ou Woyzeck. É costume lembrarmos Werner Herzog como retratista de homens excessivos e enlouquecidos porque Nosfera-tu, Aguirre, der Zorn Gottes, Fitzcarraldo e Cobra Verde (todos com Klaus Kinski) são os seus filmes mais conhecidos, assim como é costume atribuir-se a Herzog algumas das qualidades egocêntricas e malévolas que se desprendem destes homens. Mas nem sem-pre assim se passa e poucas vezes isso aconte-ce nos seus muitos documentários.

Esta figura, Kaspar Hauser, é uma das fi-guras de homem bom (interpretadas por Bru-no S.), por oposição às figuras que projectam em seu redor (geralmente as que são interpre-tadas por Klaus Kinski) um individualismo maléfico com origem na cobiça, na soberba ou dem um mal inevitável (solitário) como é o mal de Nosferatu. Impossível não lembrar, a propósito da história de Kaspar Hauser, L’Enfant Sauvage, de Truffaut, estreado 4 anos antes. Tal como no filme francês, aqui se trata da tentativa de integrar socialmente uma figura que vivera durante vários anos num estado bestial. No caso do filme de Tru-

WERNER HERZOGO ENIGMA DE KASPAR HAUSER, 1974

ffaut, um rapazinho encontrado num bosque. No caso do de Herzog, Kaspar Hauser, um jovem encerrado numa cela desde a nascença até ao início da idade adulta e encontrado na rua, em 1828, sem que se saiba até hoje quem o encarcerou ou o libertou. Depois de um período de desconfiança por parte das auto-ridades, um homem bom da terra toma conta dele e, sob o seu tecto e o seu amor, tenta fa-zer dele um homem normal. É esta a história simples e comovente deste filme. Talvez que mais que o excesso e a megalomania, o que Herzog tenta filmar e dar a mostrar é a diver-sidade da estranheza e da excepcionalidade. Ver os seus documentários vem reforçar esta impressão bondosa a que geralmente não as-sociamos a sua filmografia.

Este filme, como Herz aus Glas ou Stroszek, este último feito à medida de Bruno S. numa tentativa falhada de recriar a sua in-terpretação em Kaspar Hauser, não se dirige às alturas a que outros, os mais famosos, se propõem. Antes segue uma horizontalidade quase provinciana e benigna, ao longo dos progressos que o bom selvagem vai registan-do durante os anos que vive com o seu ben-feitor. Habituados a essa planura narrativa e de intenções compreendemos melhor a vasti-dão do mundo de Herzog, os seus momentos de tranquilidade.

Os desejos excessivos que alguns dos seus retratos mais conhecidos ilustram são gran-

des como o mundo que ele, Herzog, tanto admira. Nesta admiração pelo mundo nota-mos não um elogio do mal mas uma com-preensão de que ele faz parte da beleza e da complexidade daquele.

Por isso mesmo Aguirre… e Fitzcarraldo se passam numa floresta amazónica, Cobra Verde no Brazil, no Gana e na Colômbia, e outros dos seus filmes de ficção nas Canárias, no Deserto do Sahara, nas Ilhas Skellig, num deserto australiano, no espaço, nos Estados Unidos da América (imagens que fazem lem-brar algumas imagens americanas de Wim Wenders), em Creta, nos Andes (no Cerro Torre, no filme Scream of Stone). De re-pente, a propósito deste último filme, e lem-brando Herz aus Glas, um dos meus filmes preferidos de Herzog, que contém a atmos-fera exploratória que caracteriza os anos 70 – o filme é de 1976 – penso que Herzog é o único cineasta alemão contemporâneo que continua a tradição do Bergfilm, a tradição alemã da exaltação operática da paisagem de montanha (também em, pelo menos, um dos seus documentários). Acrescente-se que a sua extensa cinematografia de documentário se serviu igualmente da sua obsessão com a viagem, passando-se estes em muitos lugares diferentes, tantos que uma enumeração se tornaria fastidiosa.

O tom operático dos filmes que se cen-tram em figuras e projectos excessivos en-

tende-se melhor se lembrarmos que Herzog se dedica igualmente à encenação de espec-táculos de ópera. Que quase metade desses projectos sejam óperas de Wagner espanta também muito pouco, e o tipo de descon-fiança que por vezes (será medo ?) é dispen-sada a estas duas figuras, Herzog e Wagner, é de uma categoria muito semelhante. Um dos seus documentários, sobre o Festival de Bayreuth, chama-se A Transformação do Mundo em Música. Pode pensar-se, sem grande exercício de imaginação, que o seu corpus fílmico é também uma tentativa de transformar o Mundo em Filme.

Abandone-se a linearidade destas consi-derações e atente-se nas imagens “espaciais” que Herzog criou para Herz aus Glas que, igualmente, mostra a vida de um homem bom, solitário e contemplativo que tem o dom de ver o futuro. No fim deste filme, pou-co conhecido e muito belo, Herzog leva-nos às Ilhas Skellig, um grupo de imagens capta-das do ar, enigmáticas como o resto do filme.

É tempo de dedicar a Herzog a atenção que ele merece e pôr de parte a reserva e a desconfiança com que tem sido apreciado, fruto da excentricidade dos caracteres que desenha e de uma suposta estetização do mal.

É legítimo temer-se que, no entanto, Her-zog, num futuro próximo, não tendo mais sítios para ir, entre num livro de Murakami Haruki, e de lá nunca mais volte.

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T E R C E I R O O U V I D O

próximo oriente Hugo Pinto

NUM MUNDO SEMPRE NOVO:“COSMIC SOUNDS MADE IN INDONESIA” (III)

Na Indonésia, os primeiros músicos a invo-car os auspícios cósmicos foram os Shark Move, que, em 1970, com o disco “Ghede Chokra’s”, inauguraram o (ainda) exótico rock progressivo “made in Jakarta”. O disco está bem cotado no excelente “progarchives.com”, que regista pouco mais de uma dezena de entradas na categoria de “bandas de rock progressivo da Indonésia”. Hoje, 40 anos depois, o “rock progressivo”, in-donésio, britânico ou mexicano, é (ainda) uma coutada exclusiva de uma fina fatia de meló-manos, permanecendo olhado com relativo desdém e apupado por falhadas manias grandi-loquentes por parte de quase todos os outros. No entanto, os caminhos da senhora música são misteriosos e, por isso, deve ser sem sur-presa que vemos, em 2011, gente como os Mjolnir, trio de Jacarta que faz o que chamam de “electrodisco funk”, reclamar inspiração dos Shark Move. Nunca, como hoje, os sons “retro” estiveram tanto na moda, sendo usados e abusados para todos os fins nos mais diversos quadrantes musicais. A tendência vem explicada no mais recente livro do jornalista inglês Simon Rey-nolds, “Retromania: Pop Culture’s Addiction

to Its Own Past” (Faber and Faber, 2011), que descreve um universo obcecado pelo passado, comemorações, reunificações de bandas, álbuns de homenagem e etc.A questão é velha e recorrente: o que fazer quando tudo parece já ter sido inventado? No mundo da música electrónica de dança a resposta vem na forma de “remixes”, “edits” e “re-edits”. Ou seja, vestir com novas roupas velhas ideias e vice-versa.A meio da década passada vulgarizou-se o termo “Nu Disco”, expressão que define tudo o que possa soar às produções dos finais dos anos 1970 e inícios dos anos 1980: “disco”, “boogie”, “cosmic”, “balearic” e o que mais houver(a). São estas, precisamente, as refe-rências que Ken Adhitya me confessa. As apresentações: assinando como Midnight Savari, Ken Adhitya (Jacarta) é talvez o mais interessante produtor da nova vaga “nu dis-co” saída da Indonésia. Com uma mão cheia de máxis originais e outra de remisturas, Mid-night Savari é presença assídua nas “playlists” de nomes como Erol Alkan, The Magician (Aeroplane) ou Chris Duckenfield (Swag).Apesar de ter produzido temas como “Pini-si” ou “Rimshots”, autênticos “floor fillers”,

cheios de “synths” espaciais e linhas de baixo gordas e pulsantes, Ken Adhitya revela que, na verdade, não é cliente habitual de disco-tecas, nem se mostra um particular entusiasta da cena DJ. Para este estudante de arquitec-tura, a inspiração “vem de tudo o que ouço e experimento”.Apesar de, na sua música, estarem identificadas todas as referências que definem o “nu disco”, Midnight Savari arrisca incursões para lá dessa zona de conforto, desvendando salutares pos-sibilidades de ruptura que não escaparam aos críticos do sítio electrónico “Resident Advisor”, rendidos a uma música que consegue ser deli-ciosamente “abrupta e brutal”.Em 2001, num artigo publicado na nova--iorquina Village Voice, a propósito da cena “underground disco” que então começava a agitar a “Big Apple”, Simon Reynolds alertava que a recusa em cortar com o passado iria impedir novos desenvolvimentos. O jornalis-ta chamava a atenção para a ténue fronteira entre prestar homenagem ao passado e viver nesse mesmo tempo pretérito. A solução? “Um pouco menos de reverência, talvez”, concluía Reynolds. Na Indonésia, a lição, pa-rece, está bem estudada.

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metrópolis Tiago Quadros*

LE CORBUSIER NÃO FOI A PRIMEIRA ESCOLHA DE JAWAHARLAL NEHRU

PARA A CONCEPÇÃO DA NOVA CAPITAL ADMINISTRATIVA, QUE SE TORNARA NECESSÁRIA PELA SECESSÃO DO PAQUISTÃO, QUE TINHA PRIVADO O PUNJABE DA SUA CAPITAL HISTÓRICA, LAHORE.

O plano director de Chandigarh foi primeiro entregue ao nova-iorquino Albert Mayer que tinha estado na Índia durante a guerra, ficando o arquitecto Matthew Nowicki encarregado de conceber o desenho do centro da cidade. Depois de Nowicki ter morrido num desastre de avião, Le Corbusier foi contratado em 1950 para executar o projecto de uma capital, que Nehru pretendia que “simbolizasse a liberdade da Índia, liberta das tradições do passado... uma expressão da fé da nação no seu futuro.”

Vers une architecture, livro publicado em 1923, assi-nala a primeira declaração teórica de Le Corbusier, onde se defende que uma casa é uma máquina para viver e por isso deve ser tão perfeita e funcionalmente eficaz como um automóvel, um avião ou um navio. Antes deste amadureci-mento teórico, que leva ao anúncio dos cinco princípios em 1927, Le Corbusier desenvolve pesquisas plásticas noutros domínios artísticos, criando então um género de pintura a que dá o nome de purismo, e que lhe soluciona alguns dos problemas que o cubismo não pode resolver por trabalhar com formas excessivamente fraccionadas. As formas puras retratadas nas naturezas mortas de Le Corbusier são trans-portadas para as casas que antecedem a Villa Savoye – o atelier Ozenfant, de 1922, ou A Villa La Roche, de 1923, interessando-lhe sobretudo a possibilidade de reduzir a ar-quitectura aos seus elementos geométricos mais simples.

Nos anos vinte, época de L’Esprit Nouveau, Le Corbu-sier propôs a superação do cubismo porque a seu ver os no-

vos tempos exigiam um espírito de exactidão que era, apa-rentemente, inalcançável através do alfabeto cubista. Nesse sentido, o arquitecto suíço lançou uma estética ainda mais radical, na qual as superfícies eram executadas por forma a resultarem completamente lisas e “puras”.

Nos anos trinta, Le Corbusier afasta-se gradualmente do purismo e os seus edifícios apresentam formas mais densas e complexas. No Pavilhão Suíço da Cidade Universitária de Paris, construído entre 1930 e 1932, o betão dos pilo-tis não é polido e pintado de branco, como nas suas obras iniciais, mas manifesta o vigor da textura resultante da co-fragem. O abandono das superfícies lisas é entendido como um sintoma de desagregação da forma pura, assinalando um momento de mudança no interior do Movimento Moderno. É neste contexto que surge Chandigarh. Pela primeira vez, Le Corbusier desenha um centro urbano que acolhe os edi-fícios governamentais, em oposição ao centro de negócios, que se apresentava como ponto focal nos seus projectos anteriores. Nesse sentido, a proposta de Le Corbusier para Chandigarh revelar-se-á inovadora. Com grandes edifícios autónomos, cujos eixos estruturam os espaços abertos, mui-tas das soluções adoptadas em Chandigarh têm origem na arquitectura local. A esse propósito, Le Corbusier refere a descoberta feita dos palácios mongóis, como o Forte Ver-melho, em Deli, nos quais o ar é arrefecido pela passagem por locais em sombra.

É na extremidade noroeste da nova capital administra-tiva que Le Corbusier ergue dois edifícios, sede do centro politico e administrativo do Punjabe indiano – o Secretaria-do (sete ministérios) e a Assembleia. Na sua concepção, o Palácio da Assembleia, projectado e construído entre 1951 e 1962, recorda o Mosteiro de La Tourette, cujo pátio foi preenchido, e pela disposição dos corpos dos edifícios na periferia, uma Villa Savoye expandida. Os três principais

componentes são o pórtico, de frente para o resto do com-plexo, e as duas salas de sessões, com coberturas diferencia-das. Estes três volumes estão rodeados por escritórios em U.

As formas usadas parecem ter diversas origens. A título de exemplo a revolucionária hiperbolóide que abriga a Câmara Baixa deriva das torres de refrigeração estudadas e desenhadas em Ahmedabad em 1951. Contudo, o jogo que estes objec-tos, a sua torre de acesso e a cobertura piramidal da Câmara Alta, projectam no telhado, recorda um estranho ritual do sol. A este propósito, Le Corbusier declara que “este chapéu vai tornar-se um verdadeiro laboratório de física, equipado para garantir o jogo de luz e sombra... Esta rolha será usada para festivais solares, lembrando os homens que uma vez por ano são filhos do Sol.” Se os dois estranhos cornos colocados no topo da hiperbolóide evocam os das vacas indianas desenha-das por Le Corbusier, a paisagem do telhado recorda os ins-trumentos astronómicos do Jantar Mantar, o observatório do século XVIII que o arquitecto suíço visitara em Deli.

À medida que Le Corbusier se ocupa de programas de grande escala e se afasta das pequenas moradias, os seus edifícios adquirem uma crescente expressividade assente nas formas e nos materiais. O acesso mais majestoso ao Pa-lácio da Assembleia, reflectido numa grande superfície de água, criando uma espécie de cubo virtual, não se alcança pela passagem que a liga ao Secretariado, mas pelo grande pórtico do outro lado da esplanada. A entrada principal é encerrada por uma porta de aço esmaltado, uma oferta da França ao Punjabe, na qual Le Corbusier figurou muitos dos motivos que na altura atravessavam a sua obra plástica, em particular Le Poème de l’angle droit (O Poema do Ângulo Recto), de 1955.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa

UMPOEMA DO ÂNGULO RECTO

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O corpo vale mais que o mundo; a justiça é mais importante que o corpo.

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOSWEN ZI 文子

L E T R A S S Í N I C A S

CAPÍTULO 166

Lao Tzu disse: Contrair é um modo de buscar expansão, dobrar é uma forma de procurar endireitar. Encolher um centí-metro para crescer um metro, ou dobrar o pequeno para endireitar o grande, são coisas que o homem superior fará.Se cem rios correrem paralelos, sem va-zarem no oceano, não se pode falar de nenhum vale; se os cursos de acção forem em direcções diferentes sem resultado, não se pode falar de liderança.As palavras sensatas são estimadas na me-dida em que possam ser postas em prática; as boas obras são estimadas na medida em que sejam humanas e justas. Os erros dos homens superiores são como eclipses so-lares e lunares, que não destroem a luz.Assim, os sábios não agem arbitrariamente

e os corajosos não matam arbitrariamente. Escolhe o que for certo e fá-lo, afere o que for adequado e executa-o. Desse modo, teus afazeres serão realizados e o teu feito será suficiente para nele se depositar con-fiança; e o teu nome será digno de elogio mesmo depois de teres morrido.Mesmo que disponhas de conhecimento e capacidade, é necessário fazer da huma-nidade e da justiça uma base, sobre a qual conhecimento e capacidade possam ser praticados em concerto. Os sábios fazem uniformemente da humanidade e da justi-ça a sua linha mestra: aqueles que seguem a linha mestra são chamados homens su-periores, aqueles que não seguem a linha mestra são chamados homens inferiores. Mesmo que os homens superiores sejam destruídos, a sua reputação não é dimi-nuída; mesmo que os homens inferiores

obtenham poder, os seus erros não serão eliminados.Nem mesmo um ignorante seguraria na sua mão esquerda um mapa do mundo cortando o seu pescoço com a direita; o corpo vale mais que o mundo. Aqueles que vão à morte em tempos de tumulto para seus líderes ou familiares vêem a morte como um regresso a casa; a justi-ça é mais importante que o corpo. Como tal, o enorme lucro a tirar do mundo é pequeno em comparação com o corpo e aquilo que é considerado importante para o corpo é menor em comparação com a humanidade e com a justiça. É por isso que humanidade e justiça são consi-deradas linhas mestras.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos qua-tro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominante-mente confucionista Dinastia Han.

A obra parece consistir de um destilar do cor-pus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan--zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a pri-meira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chi-nês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.

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