sim 69 em busca do eu perdido

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OLIBERAL BELÉM, DOMINGO, 28 DE SETEMBRO DE 2014 MAGAZINE 11 sim [email protected] VICENTE CECIM Em busca do Eu perdido Esquecer tudo. Abrir janelas. Esvaziar o quarto. O vento sopra por ele. Vemos apenar o vazio, procuramos por todos os cantos e não nos encontramos. KAFKA Magritte N ão há dias em que você se sente com se estivesse per- dido de si mesmo? E sai em busca do seu eu desapareci- do, sentindo falta dele - como em uma festa em que faltasse alguém – e esse Alguém é você mesmo? Se jamais experimentou ou não conhece a sensação, pelo menos você lembra de música de Chico Buarque de Holanda: Tem dias que a gente se sente/Como quem partiu ou morreu/ A gente estancou de repente/Ou foi o mundo então que cresceu/A gente quer ter voz ativa/No nosso destino mandar/Mas eis que chega a roda-vi- va/E carrega o destino pra lá/ Roda mundo, roda-gigante/Roda- moinho, roda pião/O tempo rodou num instante/Nas voltas do meu co- ração É a Roda Viva. E quando fez a mú- sica, Chico Buarque estava pensando, consciente ou não disso, no próprio Sansara – como o budismo chama o eterno renascer preso ao ciclo do nas- cer-viver-morrer. O que há de errado com ela? A mú- sica também diz: A gente vai contra a corrente/Até não poder resistir/Na volta do barco é que sente/O quanto deixou de cumprir Nadar contra a corrente – eis o que há de errado e nos leva a nos perder de nós mesmos – porque nós, e nada mais, é que somos a corrente a favor da qual devemos nadar. Mas voltemos ao budismo – e, es- pecificamente, ao Zen-budismo e a um dos mais interessantes guias que o Zen nos oferece – para aprendermos a nadar a favor da nossa própria cor- rente. E, nos sentindo perdidos de nós mesmos, escaparmos da roda viva do Sansara, atingirmos a serenidade de um estado de Nirvana, ainda em vida, e, enfim – através dessa Via nos reen- contrarmos. A via é o Jûgyû-no-zu/As Dez Figuras do Apascentar o Boi , mais simplesmente conhecida como À procura do boi. En- tenda-se aqui o boi como símbolo da natureza primária do homem – o nosso Ser original . Os desenhos originais e os textos que os acompanham são atribu- ídos a Kakuan Shien, um mestre Chan – o Zen chinês - do século XII. Até o Invisível O que o Zen nos revela é isso: você sempre esteve presente em si mesmo, mas como que oculto de você próprio . Isso porque o Corpo, o Ente físico que externamente somos, com sua densi- dade, tende a encobrir o Ser metafí- sico que essencialmente somos, em nossa existência sutil. A Iluminação, o despertar para a sua Presença se dá quando você liberta esse Ser e o acen- de dentro de você – um Fulgor capaz de clarear todo o mundo, por dentro e por fora. Luz para além do Visível - até o In- visível. Por que não experimenta? Descubra por si mesmo. Em busca de si mesmo I. Procurando o boi Desolado através das florestas e aterrorizado nas selvas, ele procura um boi que não encontra. Acima e abaixo, rios escuros, sem nome, em matas espessas ele percorre muitas trilhas. Cansado até os ossos, com o coração pesado, continua a buscar algo que não pode encontrar. Ao entardecer, escuta cigarras gorjeando nas árvores. II. Encontrando os rastros Viu pegadas sem número na floresta e à margem das águas. Em que distâncias vê ele a relva pisada? Mesmo as gargantas mais profundas das mais altas montanhas, não podem esconder o focinho desse boi que toca diretamente o céu. III. Primeiro vislumbre do boi Um rouxinol gorjeia num ramo, o som brilha nos salgueiros ondulantes. Ali está o boi, onde poderia esconder-se? Essa esplêndida cabeça, esses cornos majestosos, que artista poderia retratá-lo? IV. Agarrando o boi Ele precisa agarrar o laço com firmeza e não deixá-lo escapar porque o boi tem ainda tendências doentias. Ora se precipita para as montanhas, ora vagueia numa garganta nevoenta. V. Domando o boi Ele deve segurar com firmeza o cabresto e não permitir ao boi vaguear para que não se extravie por lugares lamacentos. Devidamente cuidado, torna-se limpo e gentil. Solto, segue de bom grado a seu dono. VI. Voltando para casa montado no boi Cavalgando livre como o ar, ele volta animadamente para casa através da bruma à tarde. Aonde quer que vá, produz uma brisa fresca enquanto uma profunda tranquilidade domina em seu coração. Esse boi não precisa nem de uma folha de relva. VII. O boi foi esquecido, ele está só Somente no boi poderia chegar à casa mas eis que agora o boi desapareceu E o homem se senta, sozinho e tranquilo. O rubro sol anda alto no céu enquanto ele sonha placidamente. Ao longe, sob o telhado de palma jazem seu chicote inútil e seu laço inútil. VIII. Esquecido do boi e de si mesmo O chicote, o laço, o boi e o homem pertencem igualmente ao vazio. Tão vasto e infinito é o céu azul que não pode atingi-lo, conceito de nenhuma espécie. Sobre um fogo ardente, um floco de neve não pode subsistir. Quando a mente atinge esse estado, chega finalmente à compreensão do espírito dos antigos ancestrais. IX. Voltando à fonte Ele voltou à origem, retornou à fonte, Mas foi em vão que tomou suas providências. É com se estivesse agora cego e surdo. Sentado em sua cabana, não almeja as coisas que estão fora. Os riachos serpenteiam por si mesmos, as flores vermelhas desabrocham naturalmente vermelhas. X. Entrando na praça do mercado com mãos doadoras Com o peito descoberto e descalço, ele entra na praça do mercado. Enlameado e empoeirado, como sorri mostrando os dentes! Sem recorrer a místicos poderes, faz árvores secas florescerem de repente.

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Zen da procura de si mesmo

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O LIBERALBELÉM, DOMINGO, 28 DE SETEMBRO DE 2014 MAGAZINE 11

sim [email protected] CECIM

Em busca do Eu perdidoEsquecer tudo. Abrir janelas. Esvaziaro quarto. O vento sopra por ele. Vemos apenar o vazio, procuramos portodos os cantos e não nos encontramos.KAFKA

Magritte

Não há dias em que você se sente com se estivesse per-dido de si mesmo? E sai em busca do seu eu desapareci-

do, sentindo falta dele - como em uma festa em que faltasse alguém – e esse Alguém é você mesmo?

Se jamais experimentou ou não conhece a sensação, pelo menos você lembra de música de Chico Buarque de Holanda: Tem dias que a gente se sente/Como quem partiu ou morreu/A gente estancou de repente/Ou foi o mundo então que cresceu/A gente quer ter voz ativa/No nosso destino mandar/Mas eis que chega a roda-vi-va/E carrega o destino pra lá/

Roda mundo, roda-gigante/Roda-moinho, roda pião/O tempo rodou num instante/Nas voltas do meu co-ração

É a Roda Viva. E quando fez a mú-sica, Chico Buarque estava pensando, consciente ou não disso, no próprio Sansara – como o budismo chama o eterno renascer preso ao ciclo do nas-cer-viver-morrer.

O que há de errado com ela? A mú-sica também diz: A gente vai contra a corrente/Até não poder resistir/Na volta do barco é que sente/O quanto deixou de cumprir

Nadar contra a corrente – eis o que há de errado e nos leva a nos perder de nós mesmos – porque nós, e nada mais, é que somos a corrente a favor da qual devemos nadar.

Mas voltemos ao budismo – e, es-pecificamente, ao Zen-budismo e a

um dos mais interessantes guias que o Zen nos oferece – para aprendermos a nadar a favor da nossa própria cor-rente. E, nos sentindo perdidos de nós mesmos, escaparmos da roda viva do Sansara, atingirmos a serenidade de um estado de Nirvana, ainda em vida, e, enfim – através dessa Via nos reen-contrarmos.

A via é o Jûgyû-no-zu/As Dez Figuras do Apascentar o Boi, mais simplesmente conhecida como À procura do boi. En-tenda-se aqui o boi como símbolo da natureza primária do homem – o nosso Ser original. Os desenhos originais e os textos que os acompanham são atribu-ídos a Kakuan Shien, um mestre Chan – o Zen chinês - do século XII.

Até o Invisível

O que o Zen nos revela é isso: você sempre esteve presente em si mesmo, mas como que oculto de você próprio. Isso porque o Corpo, o Ente físico que externamente somos, com sua densi-dade, tende a encobrir o Ser metafí-sico que essencialmente somos, em nossa existência sutil. A Iluminação, o despertar para a sua Presença se dá quando você liberta esse Ser e o acen-de dentro de você – um Fulgor capaz de clarear todo o mundo, por dentro e por fora.

Luz para além do Visível - até o In-visível.

Por que não experimenta? Descubra por si mesmo.

Em busca de si mesmo

I. Procurando o boiDesolado através das florestas e aterrorizado nas selvas, ele procura um boi que não encontra.Acima e abaixo, rios escuros, sem nome, em matas espessas ele percorre muitas trilhas.Cansado até os ossos, com o coração pesado, continua a buscar algo que não pode encontrar.Ao entardecer, escuta cigarras gorjeando nas árvores.

II. Encontrando os rastrosViu pegadas sem númerona floresta e à margem das águas.Em que distâncias vê ele a relva pisada?Mesmo as gargantas mais profundas das mais altas montanhas, não podem esconder o focinho desse boi que toca diretamente o céu.

III. Primeiro vislumbre do boiUm rouxinol gorjeia num ramo,o som brilha nos salgueiros ondulantes.Ali está o boi, onde poderia esconder-se?Essa esplêndida cabeça, esses cornos majestosos,que artista poderia retratá-lo?

IV. Agarrando o boiEle precisa agarrar o laço com firmeza e não deixá-lo escaparporque o boi tem ainda tendências doentias.Ora se precipita para as montanhas,ora vagueia numa garganta nevoenta.

V. Domando o boiEle deve segurar com firmeza o cabresto e não permitir ao boi vaguearpara que não se extravie por lugares lamacentos.Devidamente cuidado, torna-se limpo e gentil.Solto, segue de bom grado a seu dono.

VI. Voltando para casa montado no boiCavalgando livre como o ar, ele volta animadamente para casaatravés da bruma à tarde.Aonde quer que vá, produz uma brisa frescaenquanto uma profunda tranquilidade domina em seu coração.Esse boi não precisa nem de uma folha de relva.

VII. O boi foi esquecido, ele está sóSomente no boi poderia chegar à casa mas eis que agora o boi desapareceuE o homem se senta, sozinho e tranquilo.O rubro sol anda alto no céuenquanto ele sonha placidamente.Ao longe, sob o telhado de palmajazem seu chicote inútil e seu laço inútil.

VIII. Esquecido do boi e de si mesmoO chicote, o laço, o boi e o homem pertencem igualmente ao vazio. Tão vasto e infinito é o céu azulque não pode atingi-lo,conceito de nenhuma espécie.Sobre um fogo ardente, um floco de neve não pode subsistir.Quando a mente atinge esse estado,chega finalmente à compreensãodo espírito dos antigos ancestrais.

IX. Voltando à fonteEle voltou à origem, retornou à fonte,Mas foi em vão que tomou suas providências.É com se estivesse agora cego e surdo.Sentado em sua cabana, não almeja as coisas que estão fora.Os riachos serpenteiam por si mesmos,as flores vermelhas desabrocham naturalmente vermelhas.

X. Entrando na praça do mercado com mãos doadorasCom o peito descoberto e descalço, ele entra na praça do mercado.Enlameado e empoeirado, como sorri mostrando os dentes!Sem recorrer a místicos poderes,faz árvores secas florescerem de repente.