psicose e autismo na infância.pdf

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  • No presente artigo, discute-se que um diag-nstico diferencial da psicose e do autismo deve superar a dicoto-mia organognico/psico-gnico, introduzir a inci-dncia do discurso con-temporneo sobre o au-tismo e levar em conta a passagem do autismo para a psicose. Este diagnstico assim for-mulado ter conseqn-cias clnicas sobre a dire-o do tratamento, em especial sobre a escuta dos pais. Aposta-se que, para eles, far diferena que um psicanalista oponha resistncia ob-jetalizao da criana e "desresponsabilizao" do Outro materno: Autismo; diagnstico; psicose infantil

    PSYCHOSIS AND AU-TISM: DIAGNOSTIC PROBLEMS

    In this article, it is dis-cussed how a differential diagnosis of psychosis and autism should over-come the organogenic/ psychogenic dicotomy as well as introduce the in-cidence of the contempo-rary speech about au-tism and take into consi-deration the growth of autism into psychosis. This diagnosis will have clinical consequences as regards treatment, espe-cially when it comes to parents' listening. It is be-lieved that, for them, it will make a difference if a psychoanalyst opposes resistence to the objetifi-cation of the child and to the "de-responsibilizati-on " of the motherly Other. Psychosis, autism, di-agnosis.

    PSICOSE E AUTISMO NA

    INFNCIA: PROBLEMAS

    DIAGNSTICOS

    M. Cristina Kupfer

    Cr^s diagnsticos de psicose infantil e autismo tm uma histria recente. At o incio deste sculo, o olhar mdico ainda no os havia subtrado do grande grupo das crianas chamadas de deficientes mentais. Para a sociedade, todas as crianas daquele grande grupo estavam votadas ao cruel destino dos adultos doen te s mentais : o d iagns t ico de incurveis e o conseqente asilamento.

    Na primeira tera parte des te scu lo , porm, iniciaram-se as tentativas diagnosticas. O saber mdico deu nomes s crianas que se destacavam do grande grupo das def ic ientes mentais . Sanc te de Sanctis obse rvou que , a o lado do reba ixamento , a lgumas cr ianas apresen tavam "per turbaes graves da atividade voluntria, tais c o m o o negat iv ismo, a tendncia s aes rtmicas, a impulsividade" (citado por Postei & Qutel, 1993, p.519), e criou para elas o diagnstico de demncia precocissima. E, nesse grupo

    Psicanalista, professora livre-docente do Instituto de Psicologia da USP, diretora da Pr-Escola Teraputica Lugar de Vida.

  • recortado do das deficincias, Kanner isolou ainda o autismo, e m 1943. Para Kanner, as crianas autistas eram incapazes de estabelecer relaes; as que tinham linguagem no a usavam para comunicar - se ; possu am u m a e x c e l e n t e capac idade de memorizao decorada, reagiam com horror a rudos fortes ou objetos e m movimento, tendiam repetio, mas eram dotadas de boas potencialidades cognitivas.

    O e s t a b e l e c i m e n t o de d iagnst icos t rouxe c o n s i g o a esperana de um tratamento adequado quelas patologias. Mas o que parecia to promissor transformou-se, de fato, no incio de u m a quere la e m to rno das or igens desses males -organognese ou psicognese? - que se desdobrou e m uma inevitvel discusso sobre o grau de participao das mes na instalao dos quadros - se a origem orgnica, no so culpadas - e em um debate, mais recente e restrito ao campo da psicanlise, e m torno do diagnstico diferencial entre psicose e autismo.

    Defender-se-, no presente artigo, a posio segundo a qual necessrio, e m primeiro lugar, sustentar u m debate c o m o discurso m d i c o e m to rno da e t iologia dos distrbios de desenvolvimento, e, e m segundo lugar, sustentar o diagnstico diferencial entre psicose e autismo, justamente porque tanto a questo das "causas" c o m o a hiptese diferencial podero ter conseqnc i a s importantes na d i reo do tratamento e e m especial na escuta dos pais.

    ORGANOGNESE X PSICOGNESE: O PON-TO DE VISTA DA PSICANLISE

    No se pode negar que um b e b seja antes de mais nada um feixe de nervos. Sero bem-vindas todas as experincias que puderem avanar no conhecimento das bases neurolgicas de todas as patologias precoces do desenvolvimento. Embora absolutamente nada de conclusivo tenha surgido a partir da pesquisa neurolgica - a sndrome do X frgil, por exemplo , no assinalada como causa definitiva do autismo nem mesmo entre os neurologistas 1 - , pode-se s e m dvida falar de uma suscet ib i l idade ou de vulnerabi l idade de o r igem gen t i ca (Laznik, 1994).

    No esse, porm, o ponto decisivo do debate, j que haver patologias do desenvolvimento cuja origem nunca esteve e m uma disfuno neurolgica de qualquer natureza. O psicanalista no descarta a hiptese biolgica, mas recusa a discusso posta e m termos de uma dicotomia biolgico/psquico. A origem no est n e m e m um, n e m e m outro domnio, c o m o diz Alfredo Zenoni (1991):

    "Basta reler os Trs ensaios sobre a sexualidade, por exemplo, para constatar at que ponto Freud exclui ao mesmo tempo o fator constitucional e o fator ambiental do plano que pertinente

  • para a explicao da psicopatologia humana. Para Freud, o plano que pertinente para a causalidade da psicose, da neurose e da perverso no o plano do desenvolvimento, mas um outro, prvio ao da interao (...). Lacan chama-o s vezes de lugar do Outro, s vezes de ordem simblica. (...) Ele opera logo na entrada, desde o comeo, antes de qualquer interao com o ambiente" (Zenoni, 1991, p. 104-5).

    Tampouco a hiptese de integrar as duas determinaes - o biolgico e o psquico - pode ser aceita pela psica-nlise, a partir de uma proposta episte-molgica hbrida. A psicanlise tem demarcado claramente a irredutibilida-de do discurso mdico ao discurso psi-canaltico. Clavreul (1983), em A ordem mdica, afirma que "toda tentativa de fazer uma reconciliao superficial en-tre psich e soma no seno denegao do que instaurou a objetivao cientfi-ca: a impossibilidade de deixar um lu-gar que seja para a questo do Sujeito".

    O conceito de permeabilidade biolgica ao significante busca superar a tentativa de hibridismo, e uma tentativa de sustentar ao mesmo tempo a considerao de uma base material e sua abertura ao significante, estrutura sem a qual o corpo do beb no poder vir a organizar-se como corpo ergeno.

    "Parece-nos pertinente aqui um conceito do qual se nota a falta e que no encontramos em outro lugar. Algo que poderamos chamar de permeabi-lidade biolgica ao significante. Preci-samente, S. Freud nos demonstra que a permeabilidade variao infinita dos representantes de objeto no ser huma-no reside na ausncia de inscrio ins-tintiva prvia do objeto. O conceito que propomos aqui est no reverso desta idia freudiana. Aparece como um obs-tculo inscrio dessa variao infi-nita, porque, alm da ausncia de ins-crio gentica do objeto, se manifesta

  • uma ausncia de capacidade de regis-tro do sistema nervoso. Nas crianas autistas, encontramos causas que re-pousam nesta falta de permeabilidade (...)" (Jerusalinsky, 1989, pp.47-8).

    Considerando-se a perspectiva terica exposta at aqui, o autismo no seria nem o efeito de uma falha gentica, nem o efeito de "interaes ambientais" entendidas como o faz a psicologia americana, mas uma conseqncia da falha no estabelecimento da relao com o Outro, quer porque o Outro materno no esteve disponvel, quer porque falhou no beb a permeabilidade biolgica ao significante.

    Seja como for, o corpo de um beb jamais sair de sua condio de organismo biolgico se no houver para ele um outro que sustente o lugar de Outro Primordial e que o pilote em direo ao mundo humano, que lhe dirija os atos para alm dos reflexos, e, principalmente, que lhes d sentido.

    Dessa perspectiva, uma criana com graves problemas neurolgicos enfrentar, talvez, srias dificuldades para encontrar um piloto capaz de fazer-lhes face. Mas se ver tambm em srias dificuldades se, ainda que "s", no encontrar quem o introduza na ordem simblica.

    AUTISMO: UMA CRIAO MODERNA?

    A considerao de que o autismo seja a conseqncia de uma falha no estabelecimento da relao com o Ou-tro abre ainda uma terceira via de re-flexo, que ultrapassa a dicotomia or-gnico/psquico. Trata-se de conside-rar a dimenso da cultura e o valor de uma certa determinao discursiva em circulao no mundo contemporneo incidindo sobre o autismo. Em outras palavras, h autores para quem o autis-mo seria uma criao moderna.

  • Em um dos plos dessa polmica, h, e m primeiro lugar, aqueles autores para quem os autistas sempre existiram. Atestam-no as crianas-fada das lendas irlandesas, crianas cujas almas eram furtadas por duendes e que adquiriam os traos cuja descrio os aproxima daquilo que hoje chamamos de autistas. Na literatura, tambm fizeram aparies espordicas, de acordo com Rosenberg (1991). No se conhecem outros rastros dessas crianas, que provavelmente se confundiam c o m as dbeis, ou ento e ram submet idas , por e x e m p l o , eutansia , c o m o se fazia na Grc ia antiga com as crianas deficientes.

    No plo oposto, encontra-se, por exemplo, Volnovich (1993), para quem o autismo seria uma criao moderna s e m p r e c e d e n t e s na h i s tr ia da humanidade. Ele afirma:

    "As contradies e paradoxos da modernidade colocam a infncia num lugar de testemunha, onde seus sinto-mas, includa a loucura, falam muito menos de um avatar psicopatolgico e muito mais de uma produo confliti-va da liberdade" (p.33).

    "Produo conflitiva de liberda-de" , para Volnovich, a expresso que resume o mal-estar contemporneo. o que resulta de uma representao so-cial da infncia na sociedade moderna, marcada por uma reafirmao narcisista e por um ocul tamento do sentido da histria do sujeito por m e i o de uma pseudo-informao oferecida pela edu-cao. Assim, para ele a produo da loucura tem razes sobretudo histri-co-polticas.

    Uma terceira tese, porm, poderia resolver a aparente contradio entre as duas anteriores. Para essa ltima, o autismo ser um significante moderno que d nome a um fenmeno estrutural na constituio do sujeito, n o m e esse que o representa, porm, dentro de uma particular inflexo do discurso social

    contemporneo, e que, ao represent-lo, o recria.

    O autista de hoje no o mesmo q u e poder ia ter surgido n o m u n d o antigo, porque esse n o m e moderno , criado por Kanner, recorta e cria u m novo discurso que o situa e lhe d lugar no mundo contemporneo. Cria, c o m o poder de criao do significante, um novo autista. Que prolifera, vai mdia, aos filmes, que enternece. Significa algo para a soc i edade hoje , e po r e la significado a partir das model izaes sociais sua disposio.

    O autismo de Kanner nasceu e m estreita conexo c o m a culpabilizao das mes. Ele ousara comentar que as m e s das c r ianas pa rec iam frias e distantes, insinuando que talvez isso pudesse relacionar-se tambm c o m os p r o b l e m a s de c o n t a t o d a q u e l a s crianas. O u seja, Kanner oscilou, no t r anscu r so de s e u s t e x t o s , en t r e considerar a dimenso do orgnico na etiologia do autismo - uma sndrome gentica - e enfatizar as relaes me-beb para explic-lo.

    As o b s e r v a e s d e K a n n e r espalharam-se c o m o u m rastilho de plvora pelo mundo do ps-guerra, e mui to par t icularmente n o se io da cultura americana, na qual trabalhou. Em primeiro lugar, a palavra "fascinante" no veio toa em sua pena. O mundo j parec ia estar p reparado e m e s m o aguardando o recor te q u e K a n n e r acabara de criar. E fascinou-se . O au t i smo g a n h o u r a p i d a m e n t e as revistas, o c i n e m a e, mais tarde u m p o u c o , a literatura. A criana autista ganhou status de avis rara; atiava a curiosidade, mas era ao mesmo tempo escondida pela me.

    Mas Kanner no causou apenas fascnio. Provocou tambm o repdio das mes de autistas, que protestaram contra a idia de q u e e ram "frias". "Amamos nossos filhos", elas diziam,

  • "e n ingum tem o direito de dizer que somos culpadas pe lo autismo de nossos filhos." Organizaram-se e m associaes e puseram-se a lutar por direitos. Kanner teve de recuar, e, e m 1946, escreveu Em defesa das mes. Parecia no saber mais o que fazer c o m sua observao sobre as mes.

    Ento necessrio repor a questo, afirmando que as mes tm razo - e Kanner tambm. D e fato, preciso esclarecer: no so as mes reais, com seus sentimentos, sua devoo, sua encarnao em um papel social que exercem b e m ou mal, que esto na base da ec loso do autismo infantil p recoce . So as mes postas n o exerc c io de uma funo que d e s c o n h e c e m exercer, e na qual deveriam apostar, mas no apostam.

    Assim, as mes no so culpadas, mas responsveis pelo destino subjetivo de seus filhos. Entenda-se a a me em posio de Outro materno, atravessada pela art iculao entre a sua fantasmtica e sua posio de falada pelo discurso social, e que tem diante de si um beb que se apresenta com uma materialidade que no pode ser negada.

    Ora, as m e s ps -Kanner foram, a o contrr io d o q u e poderia sustentar o discurso da psicanlise, convenientemente "desculpabilizadas" e "desresponsabilizadas" pela sociedade de massas, interessada e m faz-las deixar seus filhos e m creches e diante da televiso para correr atrs de novos valores flicos no m u n d o do c o n s u m o . O agente da "desculpabi l izao" a psiquiatria biolgica, que atende perfeitamente b e m a esses interesses, mais ideolgicos do que cientficos.

    Isso a criao moderna. Nas histrias das crianas-fada, as m e s t inham de cuidar para q u e seus filhos n o fossem roubados. Hoje, porm, no h lugar para responsabilidades. O autista moderno da mdia e dos psiquiatras no filho de uma falha na responsabilidade de suas, mes e, no entanto, cura-se com o carinho e a dedicao delas. Ora, o remdio adotado no revela justamente a causa da doena? A sociedade moderna v no autista a denncia de sua falha, a denncia do modo c o m o est t ratando suas crias. C h o c a mais d o q u e a infncia abandonada, embora a balana numrica penda muito mais para o lado dos meninos de rua do que para o lado dos autistas.

    O autista no poder deixar de sofrer os efeitos desse lugar moderno em que est situado. Sofre os efeitos dessa significao social, carrega a excluso da linguagem e da circulao social, submetido a tcnicas de condicionamento para permanecer a, na borda, lugar em que ele, de forma surpreendente, se equilibra.

    H, portanto, uma estrutura autista reveladora de uma especial posio subjetiva na linguagem (ou quem sabe, de uma posio a-subjetiva na linguagem), mas h tambm o significante "autismo", cunhado pelo social, que recria essa estrutura, tendo efeitos sobre o modo como essa criana apresentada por seus pais, e sobre o modo c o m o tratada.

  • Assim, no basta saber que o au-tismo, falha na relao com o Outro, foi determinado gentica ou psicoge-nicamente neste ou naquele caso. Ser preciso levar em conta que os pais que o trazem tambm sofrem os efeitos do significante autismo em circulao so-cial. Mais que isso, ser preciso saber que seu filho autista ter sido objetali-zado pelo discurso mdico. As institui-es de tratamento, tambm capturadas por essa inclinao discursiva, busca-ro trein-lo, adestr-lo, fazer Teacch com eles. O psicanalista, cuja tica o leva a trabalhar para a emergncia do sujeito que no pde advir no autista, ver crescer a sua responsabilidade diante de todos esses obstculos.

    Diante do discurso mdico, o psi-canalista dever demonstrar que sen-sato o suficiente para no desconside-rar o corpo em sua dimenso de limite, e no de causa, mas precisar sustentar a posio segundo a qual no haver corpo se no houver sujeito. E precisa-r sustent-la sobretudo diante dos pais dos autistas. Assim, esse posicionamen-to terico ter conseqncias ticas no tratamento do autista.

    DIFERENCIAL PSICOSE/ AUTISMO

    Sob a rubrica "psicose e autismo infantil", que designa o diagnstico dos transtornos graves dentro do referen-cial psicanaltico, encontram-se estudos de autores como Melanie Klein (1921-45; 1932) e Frances Tustin (1984). Na esteira do pensamento de Jacques La-can, situam-se Maud Mannoni (1977; 1979; 1987), Franoise Dolto (1972; 1985), Rosine e Robert Lefort (1984). No entanto, tal profuso ainda no suficiente para que se tenha uma defi-nio precisa das diferentes manifesta-es dessas patologias. Mais do que isso, no h um consenso sobre a ne-

  • cessidade de instituir-se uma estrutura clnica, separada da ps icose infantil, para designar o autismo.

    Melan ie Klein d iagnos t icou como esquizofrnico o clebre Peque-n o Dick, quando, de acordo c o m sua descrio, ele talvez recebesse hoje o diagnstico de autismo (citado por Le-doux, 1989). Isto mostra o desacordo e m que se encontravam e ainda se en-contram os psicanalistas a respeito des-sas diferenas diagnosticas.

    "H evidentemente diferenas ra-dicais", afirma Ledoux, "entre o autis-m o infantil p r e c o c e e outras formas menos severas de psicoses. Diferenas no nvel do funcionamento mental, dos mecanismos e m jogo. Alguns hesitam em pr o autismo precoce severo sob a m e s m a rubrica estrutural que outras formas de psicose, e podemos nos per-guntar tambm se, no plano etiopato-gnico, estamos lidando com a mesma coisa, c o m os m e s m o s 'fatores'. Para outros, no h sentido e m isolar o au-tismo infantil" (p.333-4).

    R o c h a (1997) e seu grupo de trabalho preferiram abordar todas as pa to logias infantis s o b a rubrica de "autismos". Ela explica:

    "Durante muito t empo utilizva-mos, no Centro de Pesquisa e m Psica-nlise e Linguagem (CPPL), o te rmo psicose infantil p recoce eng lobando autismo e psicose simbitica. Neste tra-balho" - referindo-se aqui ao livro que o CPPL publ icou e m 1997 - "usare-mos o termo autismo para denominar estas duas patologias, na medida em que se distinguem de todas as outras pato-logias da infncia" (p . l) .

    Atualmente, os esforos dos psi-canalistas vm se concentrando na di-reo de definir dois quadros distintos para o autismo e a psicose.

    Jerusalinsky (1993) marca radical-mente a diferena, e prope que se en-tenda o autismo c o m o uma quarta es-

  • trutura clnica, ao lado das trs outras - psicose, neurose e per-verso - propostas por J . Lacan. Em entrevista concedida re-vista da Associao Psicanaltica da Porto Alegre, Jerusalinsky responde do seguinte modo quando indagado se a psicose e o autismo so ou no estruturas diferentes:

    "No que se refere lgica que articula a posio do sujeito a respeito do significante, eu diria que entre psicose e autismo no h nenhuma identidade de estrutura, porque num caso se trata da forcluso e no outro se trata da excluso. evidente que no campo lacaniano no h unanimiclade neste ponto, porque h quem considere (segundo a lgica que tome como referente) a excluso como um caso particular da forcluso, mas esse no o meu ponto de vista. A diferena entre forcluso e excluso consiste em que, no caso da forcluso, se produz uma inscrio do sujeito numa pos io tal, que esta inscrio no pode ter conseqncias na funo significante. No caso da excluso, no h inscrio do sujeito; no lugar e m que a inscrio deveria se encontrar, se encontra o Real, ou seja, a ausncia de inscrio. Esta diferena radical de estrutura conduz a efeitos cl nicos observveis" (p.63).

    A af i rmao de q u e no h inscr io se o p e radical-mente s interpretaes clssicas da psicanlise a respeito do autismo, para as quais teria havido o recuo do "sujeito" diante de experincias traumticas na relao c o m o Outro primor-dial. So as bolhas , as c o n c h a s autsticas, q u e s u p e m u m sujeito prvio, capaz de "avaliar" a hostilidade do mundo e "escolher" a fuga.

    Para a psicanlise de inspirao lacaniana, no h c o m o supor a existncia de um sujeito prvio, j que, para Lacan, o sujeito efeito da operao significante, efeito da instalao da l inguagem. A anterioridade de u m sujeito n o posta pe lo ter ico , mas o pe lo Outro materno . Essa a resposta ao aparente paradoxo de que o sujeito se faz na e pela linguagem, mas ao m e s m o tempo precisa contar c o m algo da ordem de uma estrutura subjetiva que o guie "para dentro" da estrutura da linguagem. O Outro materno supe o que no est, e antecipa a funo-sujeito como forma de faz-la funcionar antes de estar instalada, e permitir ento seu advento a partir da travessia das estruturas de linguagem.

    Assim, e m uma etapa precocissima, na qual a operao significante no se instalou ainda, no pode haver um sujeito recuando diante da hostilidade do mundo.

    A hiptese lacaniana ento a de que as marcas, as inscri-es originrias, no se alam condio de significantes c o m pleno poder de linguagem. As primeiras marcas, que deveriam passar por diferentes tempos para se constiturem como marcas eficazes e capazes de produzir o sujeito, sofrem uma espcie de aborto. Comeam a sua aventura em direo ao mundo da lin-

  • guagem, mas no chegam l, por falta de quem signifique essas marcas como marcas significantes, e de quem lhes d certa regularidade de leitura. Por isso, muitas vezes no se percebem os autis-tas nos primeiros meses. Podem surgir as imitaes, que no tm ainda valor cabal de organizao de linguagem - a criana pode dar "tchauzinho", por exemplo - , sem que isso venha a ad-quirir todo o enraizamento lingstico e de trao na relao com o Outro; en-to, desaparecem tempos depois sem deixar rastro. Eis por que se afirma que o autista est fora da linguagem: o que poderia ter sido marca de linguagem deixou de s-lo. Como diz Laznik (1997), as estereotipias - para as quais recuam algumas imitaes que no se transformaram em identificaes - so runas de antigos castelos, de significan-tes que deixaram de s-lo, e que por isso nunca o foram de fato.

    Pode-se afirmar, como o faz Vi-nheiro (1995), que "no autismo, no encontramos a primeira identificao, ao pai, e nem a segunda identificao, ao trao (...). Na psicose, j haveria essa primeirssima identificao. Alis, a psi-cose trabalha sobre essa problemtica. O psictico est, o tempo todo, refe-rindo-se a essa dimenso - a do pai. Mas a questo do trao unrio, que leva identificao secundria e abre ques-to do desejo, complexa" (p.157). Se-gundo essa autora, no se pode falar em trao unrio na psicose: se a falta de objeto condio de instalao do trao, e se na psicose o objeto no fal-ta, disto decorre que no haver insta-lao do trao.

    Isto no significa, porm, que o autista no tenha algo a dizer:

    "[O discurso analtico] o nico discurso que pode escutar o que o au-tista tem a dizer. E questionar o seu consentimento estrutura que o apri-siona. Pois a suposta passividade do

  • autista mascara a rejeio ativa do Outro que est no cerne de sua po-sio. A criana autista, excluda do Outro da palavra, goza e ainda sus-tenta, sem sab-lo, o sofrimento e a angstia de seu entorno" (Vidal & Vidal, 1995, p.117).

    A partir dessa discusso em torno do diagnstico diferencial entre a psicose e o autismo, adota-se aqui, em resumo, a seguinte posio terica, advinda de uma das direes possveis abertas pelo ensino de Lacan: o autista est fora do campo da linguagem, enquanto o psictico est na linguagem, mas fora do discurso.

    Mais do que uma afirmao de que a excluso de nada ajudar o autista, esta uma referncia terica que pode ser de grande valor na direo do tratamento do autista.

    A operao clnica consistir, nes-ses casos, em ir buscar esses restos de marcas que no se "significantizaram", para, a partir delas, buscar reintroduzir a operao significante. Como? Fazen-do exatamente o que a me, seja por que for, no fez. Supondo um sujeito. Em termos clnicos, essa operao no di-fere daquela do psicanalista "tustinia-no". Esse ltimo entende ter havido no incio um sujeito que recuou, o que o faz operar, portanto, com base na su-posio de um sujeito. Mas os funda-mentos tericos so diferentes, e as in-terpretaes tambm. O autista que balana incessantemente a cabea po-der ser interpretado por um psicana-lista "tustiniano" como um sujeito que est dizendo "no", que est se recu-sando a entrar no mundo humano. O "lacaniano" dir que esse um velho automatismo que se instalou e no sig-nifica nada. Mas buscar refazer, com a me, uma simbolizao produzida a partir de sua fantasmtica; esse "no" poder ser por ela interpretado, por exemplo, com uma observao assim

    formulada: "Nunca quis me olhar". Uma significao que venha a surgir da posio fantasmtica da me, e no da leitura do terico, ter mais chances de produzir algum tipo de inscrio. Tar-de demais? E bem possvel, se essa crian-a j tiver 10 anos. Bem animador, se ti-ver s um.

    Uma outra vantagem na diferen-ciao da psicose e do autismo est no fato de que, havendo duas estruturas, ser possvel formular a hiptese de que h passagem de uma para outra, o que explica a fenomenologia peculiar de muitos casos clnicos.

    "Uma questo se coloca - se au-tismo e psicose no so da mesma or-dem, por que a tendncia geral de situ-ar o autismo como psicose? Talvez porque a psicose seja a sada que ocor-re com maior freqncia. Lacan nos dir: 'Que se trata de fenmenos de ordem psictica, mais exatamente de fenmenos que podem terminar em psicose, isso no me parece duvidoso'" (Vinheiro, 1995, p.158).

    Eis o que a clnica faz aparecer: crianas que exibem falhas na especu-larizao ao lado de uma psicose que d provas de sua estrutura ao vir ali-cerada, por exemplo, em fenmenos elementares como a alucinao verbal. So acompanhadas de mes que tam-bm exibem a fenomnica clssica da "me do psictico", mas acabam por desvelar, para a escuta do psicanalista, uma posio inicial, ocupada nos pri-mrdios da relao me-beb, bastan-te oposta quela com a qual chegaram para o tratamento: uma posio que no lhes permitiu sustentar a especulariza-o de seus bebs. So mes que se apresentam hoje como, digamos, "ex-cessivas", que iniciaram porm seus primeiros movimentos na qualidade de mes "a menos". Na oscilao de mes "poucas" para mes "excessivas", ali-ceraram para seus filhos uma subjeti-

  • vao que partiu do autismo e rumou para a psicose. O que as levou a essa osc i lao resta a formular. O q u e se pode supor, porm, que a circulao discursiva e m torno da falta de culpa e de responsabilidade das mes no tem ajudado nem um pouco.

    Para resumir: um diagnstico di-ferencial da psicose e do autismo que supere a dicotomia organognico/psi-cognico, que introduza a incidncia do discurso contemporneo sobre o autis-m o e que leve e m conta a passagem do autismo para a psicose ter conseqn-cias clnicas sobre a direo do trata-mento, e m especial sobre a escuta dos pais. Aposta-se que, para eles, far di-ferena que um psicanalista o p o n h a resistncia objetalizao da criana e "desresponsabilizao" do Outro ma-terno, pois isto permitir que se localize com maior preciso a posio das mes, quem sabe a tempo de a reverter.

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    NOTA

    1 Cf. Schwartzman, Salomo. Autismo in-fantil. So Paulo, SP:Mennon, 1995.

    Recebido em 11/99