a importância da estatística na emergência da psiquiatria

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José Nuno Casanova Borja Santos Licenciado em Medicina. Mestre em História e Filosofia da Ciência e da Técnica A Importância da Estatística na Emergência da Psiquiatria Portuguesa do Século XIX Dissertação para obtenção do Grau de Doutor em História, Filosofia e Património das Ciências Orientador: José Luís Toivola Câmara Leme, Professor Auxiliar da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa Co-orientador: Isabel Maria da Silva Pereira Amaral, Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa Fevereiro de 2016

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  • Jos Nuno Casanova Borja Santos

    Licenciado em Medicina. Mestre em Histria e Filosofia da

    Cincia e da Tcnica

    A Importncia da Estatstica na

    Emergncia da Psiquiatria

    Portuguesa do Sculo XIX

    Dissertao para obteno do Grau de Doutor em Histria, Filosofia e

    Patrimnio das Cincias

    Orientador: Jos Lus Toivola Cmara Leme, Professor

    Auxiliar da Faculdade de Cincias e Tecnologia

    da Universidade Nova de Lisboa

    Co-orientador: Isabel Maria da Silva Pereira Amaral, Professora

    Auxiliar da Faculdade de Cincias e Tecnologia

    da Universidade Nova de Lisboa

    Fevereiro de 2016

  • Direitos de cpia

    A Importncia da Estatstica na Emergncia da Psiquiatria Portuguesa do Sculo XIX

    Jos Nuno Casanova Borja Santos

    A Faculdade de Cincias e Tecnologia e a Universidade Nova de Lisboa tm o direito,

    perptuo e sem limites geogrficos, de arquivar e publicar esta dissertao atravs de

    exemplares impressos reproduzidos em papel ou de forma digital, ou por qualquer outro meio

    conhecido ou que venha a ser inventado, e de a divulgar atravs de repositrios cientficos e

    de admitir a sua cpia e distribuio com objectivos educacionais ou de investigao, no

    comerciais, desde que seja dado crdito ao autor e editor.

  • v

    Agradecimentos

    Antes de iniciar a apresentao desta tese quero comear por agradecer a dedicao e a

    excelncia dos meus dois orientadores, o Professor Doutor Jos Lus Cmara Leme e a

    Professora Doutora Isabel Amaral, bem como ao Professor Vtor Teodoro. Igualmente quero

    dar testemunho do apoio e das facilidades concedidas pelas directoras do Servio de

    Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca que exerceram o cargo durante a feitura da mesma,

    a Dr. Alice Lus e a Professora Doutora Teresa Maia, bem como aos demais colegas pela

    ajuda profissional que me deram, durante as minha ausncias, devidas sobretudo realizao

    do trabalho de campo. Quero ainda expressar o meu agradecimento Presidente do Conselho

    de Administrao do Centro Hospitalar Psiquitrico de Lisboa, Dr. Isabel Paixo, pela

    autorizao concedida para a consulta do arquivo do Hospital de Rilhafoles. Neste aspecto,

    no posso tambm deixar de realar o dedicado apoio da ento bibliotecria deste hospital de

    Lisboa, Dr. Ana Paula Santos e do Sr. Fernando Graa, bem como dos demais funcionrios,

    incluindo da consulta externa, onde tambm se encontram partes do arquivo. No posso

    deixar ainda de manifestar o meu reconhecimento a amigos, alguns com formaes distintas

    da minha at porque a abrangncia desta tese interdisciplinar , que me ajudaram com os

    seus conselhos e sugestes, dos quais destaco o Dr. Miguel Palma, o Dr. Nicholas Meyer, o

    Dr. Guilherme Bastos Martins, o Eng. Carlos Castro, o Dr. Lus Quartim Graa e o Dr. Jos

    Antnio Barreiros. Finalmente uma palavra de agradecimento minha famlia,

    nomeadamente ao meu filho Afonso, ajuda inestimvel na feitura desta tese.

  • vii

    Resumo

    Atendendo emergncia da estatstica, como rea autnoma do conhecimento cientfico

    no sculo XIX, procuraremos avaliar a influncia desta disciplina no surgimento da

    psiquiatria portuguesa, utilizando para isso a contribuio filosfica de Ian Hacking.

    Tentaremos discutir se os marcos considerados importantes por Ian Hacking ocorreram

    igualmente no seio da psiquiatria portuguesa. Este apuramento far-se- tanto no que diz

    respeito anlise da bibliografia dos primeiros alienistas, como atravs da anlise da

    documentao dos arquivos do Hospital de Rilhafoles, o primeiro asilo psiquitrico do pas.

    Reflectiremos sobre a existncia de um eventual efeito de feedback que o pensamento

    estatstico possa ter operado sobre a produo cientfica e os relatrios daquela instituio, no

    sentido de influenciarem o desenvolvimento da psiquiatria portuguesa e a assistncia aos

    alienados no pas.

    No sendo histrica, a teoria de Hacking situa-se dentro na mesma janela temporal

    escolhida para o perodo do nosso estudo e recai principalmente sobre o aparecimento da

    estatstica em Frana, pas que data, era a mais determinante influncia cultural para o

    nosso pas. Assim, incidiremos a nossa investigao sobre a seguinte hiptese: ter-se-o os

    alienistas portugueses da poca, apetrechado em termos cientficos, de referncias estatsticas

    que, de acordo com o autor canadiano, j ento eram usadas noutros pases, sobretudo em

    Frana para, nomeadamente, aperfeioar os sistemas classificativos das doenas mentais que,

    ento, davam os primeiros passos na psiquiatria europeia?

    Com este trabalho pretende-se, alm de dar a conhecer e valorizar a importncia dos dados

    estatsticos no funcionamento do Hospital de Rilhafoles que cessou funes em 2012,

    preencher uma lacuna na histria da psiquiatria portuguesa do sculo XIX, apontando novas

    ferramentas o estudo da emergncia de novas reas disciplinares.

    Palavras-chave: Histria da Medicina, Estatstica, Portugal, Psiquiatria, Sculo XIX.

  • ix

    Abstract

    We will consider how applicable Ian Hackings theory about the evolution of statistical

    methods in Europe is to the emergence of that discipline in Portugal, with particular regard to

    the psychiatric bibliography and development of the first national asylum, the Hospital of

    Rilhafoles.

    This analysis aims to include both the bibliography of Portuguese psychiatry and the

    archives of Hospital de Rilhafoles, and intends to evaluate the existence of a potential

    feedback effect of statistical thinking upon the institutions scientific output and the scientific

    development and provision of assistance to the mentally ill in Portugal.

    Though not strictly historical, Hackings theory falls within a time frame that overlaps

    with our period of interest. Besides, it is focused mostly in France (the main cultural

    influence of Portugal at that time), at least in what concerns to statistics birth. Hence, we will

    focus on the following hypothesis: were Portuguese psychiatrists of that time equipped with

    statistical knowledge that according to Hacking was already in wide use abroad, particularly

    in France and England, to inform the recently developed system of classifying mental

    illnesses? We therefore aim to verify whether the milestones in the development of statistical

    thinking proposed by Hacking also occurred within the Portuguese psychiatry during this part

    of the nineteenth century.

    This work will acknowledge and praise the importance of the statistical method in the

    operation of the Hospital of Rilhafoles, the first hospital for the insane in Portugal that closed

    its doors in 2012, and furthermore fill the gap in the history of Portuguese psychiatry of the

    nineteenth century, showing new directions on the study of the emergence of new scientific

    disciplines.

    Key Words: History of Medicine, Statistics, Portugal, Psychiatry, 19th century.

  • xi

    ndice de matrias

    Agradecimentos ..................................................................................................................... v

    Resumo ................................................................................................................................ vii

    Abstract ................................................................................................................................ ix

    ndice de matrias ................................................................................................................ xi

    ndice de Figuras ............................................................................................................... xiii

    ndice de Tabelas ................................................................................................................. xv

    ndice de Grficos ............................................................................................................. xvii

    Prefcio .............................................................................................................................. xix

    1 A Estatstica e a Psiquiatria na Europa do sculo XIX ................................................... 1

    1.1 Introduo ................................................................................................................ 1

    1.2 O Pensamento de Ian Hacking sobre a estatstica no mundo ocidental ................... 2

    O Renascimento: um mundo no determinista encontra-se com a matemtica ............ 4

    A cincia mdica e a cincia moral ............................................................................. 12

    Repercusses na Psiquiatria e na Justia; consequncias metafsicas e polticas ....... 21

    Diferentes concepes da sociedade levam a um novo conceito de Normal .............. 29

    Em resumo .................................................................................................................. 39

    1.3 As doenas psiquitricas: histria e teorias ........................................................... 41

    2 A Importncia da Estatstica na Emergncia da Psiquiatria em Portugal ..................... 49

    2.1 Introduo .............................................................................................................. 49

    A doena mental e a assistncia aos alienados em Portugal ....................................... 49

    A bibliografia psiquitrica de oitocentos .................................................................... 53

    A obra de Miguel Bombarda ....................................................................................... 53

    A obra de Antnio de Sena ......................................................................................... 62

    A obra de Jlio de Matos ............................................................................................ 77

    A Imprensa mdica ..................................................................................................... 89

  • xii

    3 A Estatstica no Hospital de Rilhafoles (1848 a 1880) ............................................... 107

    3.1 Introduo ............................................................................................................ 107

    3.2 O Arquivo do Hospital de Rilhafoles (1848-1880) ............................................. 109

    Os livros de registo de admisses e papeletas ........................................................... 110

    Os livros de registos de ofcios expedidos ................................................................ 120

    4 Concluso .................................................................................................................... 135

    Anexos ............................................................................................................................... 143

    Anexo 1: Tabelas de Miguel Bombarda ........................................................................ 145

    Anexo 2: Livros de Registo de Admisses do Hospital de Rilhafoles (1848-1880) .... 151

    Anexo 3: Livros de Registo de Ofcios Expedidos ....................................................... 187

    Fontes e Bibliografia ......................................................................................................... 197

    Manuscritos ................................................................................................................... 197

    Actas, Relatrios e Correspondncia ............................................................................ 197

    Bases de dados .............................................................................................................. 197

    Jornais ........................................................................................................................... 198

    Revistas Cientficas ....................................................................................................... 198

    Obras de Referncia ...................................................................................................... 198

    Livros ............................................................................................................................ 199

    Artigos Cientficos ........................................................................................................ 206

    Apresentaes em Congressos Cientficos .................................................................... 215

  • xiii

    ndice de Figuras

    Figura 1 Tabela de Antnio Sena.......................................................................................... 71

    Figura 2 Classificao de Jlio de Matos ............................................................................. 82

    Figura 3 Estatstica de Esquirol (Esquirol, 1838b, grfico XXVI) ....................................... 87

    Figura 4 Tabelas de Joaquim Pedro Bizarro ......................................................................... 95

    Figura 5 Litografia de Craveiro da Silva ............................................................................ 108

    Figura 6 Registo de uma admisso no livro de internamentos ........................................... 113

    Figura 7 Fotografia dos registos de Martins Pulido ............................................................ 124

  • xv

    ndice de Tabelas

    Tabela 1 Hereditariedade dos epilpticos (Bombarda, 1896, p. 113) .................................. 147

    Tabela 2 Hereditariedade das mulheres epilpticas (Bombarda, 1896, p. 114) .................. 148

    Tabela 3 Estudos de Boudin (Bombarda, 1896, p. 121) ..................................................... 149

    Tabela 4 Circunferncia dos membros conforme a predominncia, segundo Tomasini

    (Bombarda, 1896, p. 192) ................................................................................................. 150

    Tabela 5 Energia (gramas) de flexo e extenso em 10 epilpticos nas mos direita e

    esquerda, segundo Fer (Bombarda, 1896, p. 193) ........................................................... 150

    Tabela 6 Energia (gramas) dos movimentos de flexo e extenso do p em 10 epilpticos

    (Bombarda, 1896 p. 194) .................................................................................................. 150

    Tabela 7 Frequncia de distribuio da naturalidade dos homens admitidos no Hospital . 153

    Tabela 8 Frequncia de distribuio da naturalidade das mulheres admitidas no Hospital 159

    Tabela 9 Frequncia de distribuio da residncia dos homens admitidos no Hospital .... 167

    Tabela 10 Frequncia de distribuio da residncia das mulheres admitidas no Hospital .175

    Tabela 11 Frequncia de distribuio das profisses dos homens admitidos no Hospital . 183

    Tabela 12 Frequncia de distribuio das profisses das mulheres admitidas no Hospital 184

    Tabela 13 Frequncia de distribuio dos diagnsticos efectuados no Hospital ............... 185

    Tabela 14 Frequncia de distribuio para o estado sada dos doentes admitidos no

    Hospital ............................................................................................................................. 186

    Tabela 15 Tabela das admisses dos doentes no Hospital at Setembro de 1851 Martins

    Pulido ................................................................................................................................ 189

    Tabela 16 Registos estatsticos de Martins Pulido caracterizando a populao dos alienados

    em funo da sua origem social e geogrfica (1848-1851) ............................................... 190

    Tabela 17 Registos de diagnsticos de Martins Pulido...194

    Tabela 18 Registos de cruzamentos de diagnsticos de Martins Pulido.....194

    Tabela 19 Registos de bitos de Guilherme Abranches..195

  • xvii

    ndice de Grficos

    Grfico 1 Filhos de epilpticos, segundo Echeverria. (Bombarda, 1896b, p. 111) .............. 58

    Grfico 2 Filhos de alcolicos segundo Echeverria. (Bombarda, 1896b, p. 120) ................ 60

    Grfico 3 Hereditariedade de 232 criminosos com uma nota grave. (Bombarda, 1896b, p.

    299) ..................................................................................................................................... 61

    Grfico 4 Hereditariedade de 215 criminosos com muitas notas graves (Bombarda, 1896b,

    p. 300) ................................................................................................................................. 62

    Grfico 5 Evoluo dos diagnsticos da populao de alienados admitidos no Hospital de

    Rilhafoles (1848-1880) ..................................................................................................... 118

    Grfico 6 Evoluo do estado sada dos doentes admitidos no Hospital de Rilhafoles

    (1848-1850) ....................................................................................................................... 120

  • xix

    Prefcio

    The sum of our parts

    The beat of our hearts

    Is louder than words

    Samson, Louder than words, 2014, p. 22

    Quando em 1989, aps a concluso do internato geral, escolhi a especialidade de psiquia-

    tria opo j previamente tomada durante o curso de medicina ainda deparei com a guerra

    civil interna, j famosa quase desde Pinel e reforada no incio do sculo XX, com Freud:

    mentalistas contra organicistas. No entanto, hoje e j ento em muitos pases do nosso

    continente e alm-Atlntico, a questo j quase no se coloca entre os jovens internos que

    ingressam: deixaram de se discutir as causas, apenas interessa tratar e da forma mais eficaz.

    O consenso existe. Em torno do que os nmeros da estatstica dizem ser mais eficaz e j

    no existe sequer rebuo em algum, inicialmente mais biolgico, aconselhar uma

    psicoterapia, desde que resultados estatisticamente significativos apontem nessa direco; ou

    seja, que demonstrem que naquela patologia a tcnica psicoteraputica x, a mais eficaz. A

    psicoterapia deixou, assim, de ser considerada, como no passado, holisticamente promovida

    para melhorar a pessoa e no apenas, como agora, para uma doena.

    A estatstica na medicina, que comeou com Pinel na psiquiatria, acabou agora, depois de

    a percorrer e de a desapossar do seu sentido humano, por concluir a sua tarefa na mesma

    especialidade, aquela que manteve mais renhidamente alguma exigncia daquele sentido. No

    que a medicina tenha totalmente sido expurgada desse sentido, aceitando contudo deixar de o

    exclusivamente nortear, o que, reconhea-se, tem marcado alguns avanos para as pessoas,

    que dela mais so utentes. Efectivamente, sem que tenha aumentado a quantidade de curas de

    doenas psiquitricas no decorrer destes dois sculos inegvel a evoluo dos tratamentos,

    que melhoram, pelo menos, a qualidade de vida dos pacientes e dos que os rodeiam. No

    desmente este ltimo ponto, que a inteno inicial fosse igualmente a dimenso securitria. E

    no o ainda tambm hoje? O mesmo ocorre, alis, com as doenas contagiosas: felizmente

    que preocupaes securitrias levaram a que houvesse menos contgios e, da, menos

    morbilidade. Pode-se naturalmente discutir se as intendncias securitrias no vo de par com

  • xx

    o controlo moral dos comportamentos, embora se possa por vezes pensar que o relaxamento

    daquelas medidas, tem por efeito, precisamente, extinguir quem os pratica.

    Mas aquele apaziguamento da guerra civil psiquitrica trouxe-me o interesse pela

    estatstica (e a forma como ela se gerou na nossa civilizao), forma prtica, admita-se de

    solucionar muitos problemas intelectuais mas tambm de os ultrapassar pela berma, isto ,

    excluindo o pensar metafsico acerca, neste caso, da doena mental, assim convertida em

    doena psiquitrica. Esta tese surge, pois, nesta possvel encruzilhada do acesso teorizao

    imediata com a consequente abolio da uma racionalidade que nos levaria mais longe, mas

    por caminhos mais incertos, com uma metafsica emergente sobre a mente.

    Exigindo naturalmente um enfoque multidisciplinar (tanto na sua elaborao como na

    disponibilidade do leitor) esta dissertao encontra-se dividida em trs captulos.

    O primeiro captulo, de contextualizao terica, abordar na primeira parte a teoria de

    anlise histrica de Ian Hacking sobre o desenvolvimento da estatstica no mundo ocidental,

    realando o que nela possa ser pertinente, sobre a utilizao do pensamento estatstico para a

    psiquiatria portuguesa oitocentista. Na segunda parte, sero referidos os principais passos

    dados pela psiquiatria europeia no sculo XIX, relacionados com as teses de Hacking.

    No segundo captulo, as teorias do filsofo canadiano sero confrontadas com o efectivo

    percurso histrico dessa disciplina, no nosso pas. Para isso far-se-, uma anlise da

    bibliografia publicada pelos primeiros directores dos hospitais psiquitricos do pas, Miguel

    Bombarda, Antnio Sena e Jlio de Matos. Em paralelo esboar-se- uma comparao entre

    as obras destes autores com outros colegas mdicos portugueses e estrangeiros seus

    contemporneos, ao mesmo tempo que se procurar integrar a produo cientfica dos

    primeiros alienistas, cujos nomes se associam ao cuidado assistencial nos hospitais, no

    Hospital de S. Jos e depois no Hospital de Rilhafoles.

    Num terceiro captulo procuraremos analisar os livros de registo existentes no arquivo

    deste primeiro hospital psiquitrico, entre 1848 e 1880, por forma a avaliar se estes

    apontamentos estatsticos tero contribudo para as reformas da instituio, dos seus

    administradores, mdicos e utentes, bem como da prpria especialidade, contribuindo assim

    para a sua legitimao cientfica, e assim para a emergncia da psiquiatria como nova

    disciplina no lxico das disciplinas mdicas ento existentes.

  • xxi

    Nas concluses procuraremos discutir se as asseres de Ian Hacking se aplicam

    problemtica da emergncia da psiquiatria portuguesa.

  • xxii

  • 1

    1 A Estatstica e a Psiquiatria na Europa do sculo XIX

    No podia ser! Esses horrores s se produziam na confuso

    social, no tumulto da Meia Idade! Mas numa sociedade

    burguesa, bem policiada, bem escriturada, garantida por tantas

    leis, com tanto registo de baptismo, com tanta certido de

    casamento, no podia ser! No! No estava no feitio da vida

    contempornea que duas crianas, separadas por uma loucura

    da me, depois de dormirem um instante no mesmo bero,

    cresam em terras distantes, se eduquem, descrevam as

    parbolas remotas dos seus destinos para qu? Para virem

    tornar a dormir juntas no mesmo ponto, num leito de

    concubinagem! No era possvel. Tais coisas pertencem s aos

    livros, onde vm, como invenes subtis da arte, para dar

    alma humana um terror novo

    Ea de Queiroz, Os Maias, 1936, p. 362

    1.1 Introduo

    No sentido de enquadrar teoricamente esta dissertao analisaremos neste captulo,

    subdividido em dois, a matriz sobre a qual incidir o estudo da emergncia da psiquiatria em

    Portugal no sculo XIX. Por um lado, o pensamento de Ian Hacking, que discute a

    importncia da estatstica e a sua aplicao s cincias sociais e naturais, como mote de

    desenvolvimento da sociedade contempornea. Por outro, contextualiza-se o processo de

    emergncia da psiquiatria na Europa, o modelo mais prximo do caso portugus. Neste

    contexto merece particular ateno a problematizao do conceito de doena do foro

    psiquitrico, e com ele, os pressupostos para a emergncia de uma nova rea disciplinar

    mdica no sculo XIX, para a qual a utilizao de dados estatsticos muito contribuiu.

    Este estudo, no mbito da epistemologia histrica de Ian Hacking visa fornecer assim um

    novo contributo para uma reflexo plural sobre a importncia da estatstica na emergncia da

    psiquiatria portuguesa de oitocentos.

  • 2

    1.2 O Pensamento de Ian Hacking sobre a estatstica no mundo ocidental

    No presente captulo, exporemos o essencial das teses de Ian Hacking acerca do

    desenvolvimento da estatstica no mundo ocidental e as suas inmeras repercusses, processo

    que, para o filsofo, decorreu, entre os sculos XVII e XIX. Para tal, recorreu-se

    bibliografia do prprio autor (sobretudo a obra The Taming of Chance) e os estudos de

    Michel Foucault, que influenciaram decisivamente o seu trabalho. Porm, as teses de

    Hacking sero abordadas no que se refere ao interesse que elas possam ter para a

    compreenso do desenvolvimento estatstico da psiquiatria portuguesa do sculo XIX.

    As bases filosficas do pensamento de Ian Hacking acerca da formao das teorias

    cientficas no que diz respeito estatstica podem sero apresentadas em quatro momentos.

    Num primeiro momento, Renascimento: um mundo no determinista encontra-se com a

    matemtica, descreveremos os primeiros abalos na confiana que a sociedade de ento tinha

    na explicao determinista do universo (aqui sobretudo entendido no sentido existencial do

    termo), j que constituiu, segundo Hacking, o ponto de partida para o germinar do

    pensamento estatstico-probabilstico; abordaremos tambm o facto de a matemtica e a sua

    aplicao s cincias ter contribudo para a interiorizao e regulao da noo de acaso

    como condutor dos destinos do mundo, embora no sem apontarmos posies diferentes

    noutros autores; veremos, ainda, como esta novel disciplina, veio a servir propsitos

    securitrios, devido sua aplicao no controlo populacional, lembrando, a propsito, o

    conceito de biopoltica, tambm importante para Hacking. Num segundo, A cincia mdica

    e a cincia moral, focar-nos-emos na aplicao da estatstica s cincias naturais (sobretudo

    medicina) e s cincias sociais e humanas e no que estas diferem das primeiras, embora sem

    que tal impedisse o desenvolvimento similar desse vector. Analisaremos, seguidamente, num

    terceiro momento, Repercusses na psiquiatria e na justia e consequncias metafsicas e

    polticas, as influncias que o novo sistema imprimiu na interface destas duas actividades e

    as repercusses que elas tiveram nos campos metafsico e poltico, aspecto igualmente central

    para Hacking, j que a ideia de probabilidade desalojou a de causalidade. Finalmente,

    Diferentes concepes de sociedade levam a um novo conceito de normal, analisaremos os

    desenvolvimentos que a estatstica provocou no pensamento cientfico, as contra-reaces

    que fomentou, assim como o desenvolvimento de uma noo de normalidade, com novas

    implicaes para a sociedade.

  • 3

    The Taming of Chance , prima facie, um estudo filosfico que permite compreender a

    nossa actual organizao de conceitos em dois domnios: no indeterminismo fsico e no

    desenvolvimento da informao estatstica, visando o controlo social. Apesar da sua raiz

    historiogrfica, o estudo, de acordo com Hacking, no histrico, nem no plano das ideias

    nem no da cincia, antes filosfico porque lida com a investigao e anlise de conceitos.

    Debrua-se sobre o modo como se desenvolveu um novo estilo de raciocnio, style of

    reasoning, ou seja, de atingir a veracidade ou a falsidade de teorias.

    Na perspectiva deste autor, o electro ser real porque os cientistas o usaram para produzir

    eventos reais, o que no implica que a aceitao da teoria leve necessariamente aceitao

    das entidades neste caso, o electro de que ela fala. Por outras palavras, a existncia de

    uma unidade mnima de carga elctrica no implica a de um objecto possuidor daquela. Pode

    at suceder que diferentes pessoas de uma equipa de investigao tenham ideias dspares

    acerca do conceito de electro, justamente porque cada uma o v da sua perspectiva. Nem

    sequer a interseco das vrias perspectivas constitui a teoria, pois esta no se pode formar a

    partir de uma soma de crenas partilhadas. (Hacking, 1991, p. 248)

    Coloca-se, assim, o problema da incomensurabilidade que, para Hacking, Hilary Putnam

    resolveu, com o modelo referencial do sentido, que passa pela construo de um vector

    constitudo pelos marcadores sintctico (parte do discurso) e semntico (significado dado

    pela palavra), bem como pelo estereotipo (clichs acerca da categoria natural) e pelo referente

    da palavra (a estrutura que define o objecto)1. (Hacking, 1991, pp. 248-250)

    Em suma, o estudo no pretende traar uma narrativa histrica nem sequer extrair a anlise

    filosfica medida da cronologia histrica. Recorre mais a figuras que proferiram frases

    importantes que ilustram esse desenvolvimento, do que a outras que qui foram nele mais

    destacadas, utilizando o mtodo antiestatstico de Le Play, que se abordar adiante2.

    Lanaremos assim as bases para nos captulos subsequentes apreciarmos se, sendo a

    medicina, como profere Hacking, a cincia natural que mais resistiu colonizao

    1 Putnam exemplifica com o caso da gua: o marcador sintctico a palavra concreta; o marcador

    semntico relaciona-se com o facto de se referir a um lquido natural; os esteretipos tm a ver com as suas

    caractersticas (inspida, inodora, incolor, etc.); a sua extenso revela-se por ser constituda por molculas de

    H2O (Putnam, 1975, p. 269). 2 Como afirma Boyd, Hacking utiliza a anlise histrica mais na nfase da deteco e manipulao de

    entidades tericas que na substncia das prprias. (Boyd, 1991, p. 19)

  • 4

    estatstica, tal se passou igualmente com um dos seus filhos, a psiquiatria ou, se pelo

    contrrio, este at tendeu a lev-la nessa direco.

    O Renascimento: um mundo no determinista encontra-se com a matemtica

    Fear of harm (of lightning) ought to be proportional not merely

    to the gravity of the harm but also to the probability of the

    event3

    Parisian monks, 1662 (Mayer, 2004, p. 5)

    Para Hacking, se a cincia do sculo XX descobriu que o mundo no era determinista, j

    no sculo anterior, se pressentia enfatizamos o pressentir porque mais do que uma

    doutrina cientifica estabelecida, o que Hacking mostra que, em vrios planos, desde a

    cincia at literatura passando pela administrao, h uma forma de pensar que j no

    obedece ao cnon determinista que o mundo podia ser regular sem ser sujeito a leis

    universais: um passado no implicaria inapelavelmente, isto de forma pr-determinada, um

    futuro. (Hacking, 1990a, p. 1)

    A causalidade, ncora at ento da metafsica, estava a ser abalada4. A percepo da

    sociedade ia-se tornando, em compensao, estatstica e as novas leis da natureza, relevando

    da probabilidade, espelhavam-se no sentimento da populao, pois traziam a conotao de

    normalidade (o mais frequente) e de desvio norma (o menos frequente). As duas

    transformaes, nas cincias naturais (reclamando um carcter individual para o mundo

    orgnico) e nas sociais (reivindicando o livre arbtrio), ocorreram, assim, paralelamente.

    (Hacking, 1990a, p. 1)

    3 Ter sido esta a primeira utilizao escrita da palavra probabilidade e ter ocorrido em 1662, por

    intermdio de freiras do mosteiro parisiense Port-Royal (influenciadas por Pascal). Traz consigo a noo de

    risco, como a combinao do provvel e da perda. (Mayer, 2004, p. 5; Large, 2013, p. 427) 4 Hume tinha negado a causalidade e necessidade por a primeira no se dar na natureza nem sequer sendo

    um factor dado a priori ao entendimento, mas antes um resultado da nossa forma habitual de perceber os

    fenmenos. (Hume, 2003, p. 59) Kant, por seu lado, veio dizer que havia que distinguir a sucesso subjectiva da

    apreenso, da sucesso objectiva dos fenmenos, dado esta permitir estabelecer uma regra. S esta deixa

    entender que h uma sucesso no s na apreenso, como no fenmeno, convertendo a subjectividade em

    objectividade. O que acabou de acontecer d uma indicao sobre outro estado precedente, como um correlato.

    Assim, os fenmenos tm de determinar reciprocamente as suas posies no prprio tempo, segundo uma regra

    universal, sendo que o princpio da razo suficiente o fundamento do conhecimento objectivo dos fenmenos.

    (Kant, 2001, pp. 221-225)

  • 5

    Contudo, preciso ter presente que, as cincias sociais tm um efeito de feedback sobre si,

    que as cincias naturais no tm. O facto de algum poder conformar-se norma, tentando

    mesmo pertencer-lhe, (Hacking, 1990a, p. 2) evidencia bem esse efeito de retorno que o saber

    das cincias sociais tem sobre a sociedade e sobre o prprio saber. De facto, as categorias

    tiveram de ser inventadas, para que as pessoas que nelas cassem fossem, convenientemente

    enumeradas. Em consequncia, e ilustrando o processo de making up people, que adiante

    abordaremos, com alguma ironia poltica, Hacking chega a sustentar que os relatrios oficiais

    sobre as fbricas podem ter feito mais pela conscincia de classe do proletariado, do que a

    prpria teoria marxista (que deles se socorreu). (Hacking, 1990a, p. 3) Portanto, uma das

    teses fundamentais de Ian Hacking sobre o efeito de feedback que est no mago das

    cincias sociais, e, consequentemente, o processo de auto-ajuste.

    Mas como que se chegou aqui? Para Hacking preciso recuar at ao sculo XVII, e ver

    como os jogos de sorte e azar, bem como a necessidade de criar taxas de nascimento e

    mortalidade, abriram caminho para a noo de probabilidade. Esta, j com elaborao das

    regularidades estatsticas embora a mera contagem no implicasse automaticamente a

    composio de leis haveria de estar ligada aos desvios sociais e humanos: suicdio, crime,

    vadiagem, loucura, prostituio e doena, cuja identificao e contagem tambm trouxe o seu

    controlo. (Hacking, 1990a, p. 3)

    As consequncias desta revoluo foram de quatro tipos: metafsicas (a probabilidade

    desalojou a causalidade cartesiana); epistemolgicas (a credibilidade passou a vir da

    evidncia, da anlise dos dados e experimentao que se expressam probabilisticamente);

    lgicas (a deduo de axiomas e a inferncia estatstica tornaram-se dominantes) e ticas (as

    probabilidades transformaram a atitude de escolha). (Hacking, 1990a, p. 4) Para Hacking,

    esta mudana de mentalidade, operada pelo aparecimento da ideia de probabilidade, com a

    emergncia consequente de uma nova forma de atingir a verdade ou a falsidade, constitui um

    dos eixos da sua tese. Deste modo, passou a ser a frequncia ou raridade de um fenmeno a

    ditar a sua normalidade ou anormalidade, j no a sua qualidade ou causalidade intrnsecas.

    Probability is, then, the philosophical success story of the first half of the

    twentieth century. To speak of philosophical success will seem the exaggeration

    of a scholar. Turn then to the most worldly affairs. Probability and statistics crowd

    in upon us. The statistics of our pleasures and our vices are relentlessly tabulated.

  • 6

    Sports, sex, drink, drugs, travel, sleep, friends nothing escapes. (Hacking 1990a,

    p. 4)

    Mas se o nascimento da ideia de probabilidade se deu no Renascimento, o verdadeiro

    arranque, para Hacking, de um novo estilo de raciocnio s ocorreu no sculo XIX5. Desta

    forma permitiu-se que o acaso, at ento marginalizado como superstio6, fosse recolhido no

    abrigo cientfico da lei natural e da lei social7. Porque, se a cincia do Renascimento j se

    distinguia por ser acompanhada pela medio, nova matematizao das cincias fsicas

    operada no sculo XIX, T. S. Kuhn chamaria a segunda revoluo cientfica8. Mas, para o

    nascimento da lei estatstica, de acordo com Hacking, que assim se posiciona nesta polmica,

    foram os baconianos que prepararam o terreno. Isto porque com o acrscimo de nmeros,

    5 A posio de Hacking radicada em A. Crombie, naquilo que qualifica como estilo de raciocnio

    (Hacking 1990a, p. 6) segundo alguns autores classificada de arquirracionalista. Sobre o debate em torno do

    relativismo e em que medida as boas e ms razes para proposies acerca da natureza so um produto da

    histria, ver Kusch, 2010, p. 158 173. 6 Segundo Hacking, o acaso, at ento visto como superstio das pessoas vulgares- no sentido em que

    este termo englobava tambm a irracionalidade e a mediocridade intelectual (Hacking, 1990a, p. 1) passou a

    ser, no apenas a pea central nas cincias naturais e sociais, como algo em que a intelligentsia podia acreditar

    (Hacking, 1990a, p. 10); para Daston, a teoria da probabilidade a codificao de um novo tipo de racionalidade

    ou, pelo menos, de uma mais modesta razoabilidade que resolve dilemas quotidianos na base do conhecimento

    incompleto, em contraste com a certeza demonstrativa tradicional. A racionalidade passou a abranger a

    incerteza. (Daston, 1998, pp. xi xii) 7 Pode-se ver que, ainda hoje, os jogadores das mais diversas actividades conferem possibilidade do azar

    e da sorte uma dimenso sobrenatural, usando as mais diversas formas de o tentar esconjurar (persignar-se,

    bater na madeira, pronunciar nomes variados, etc. Curiosamente, todas estas formas de coping com o acaso,

    tm em psicopatologia o nome de pensamento mgico. (Ey, 1978, p. 493) 8 todavia claro, para outros autores, que a matematizao j se dera no Renascimento, com Galileu, Kepler

    e o prprio Francis Bacon. Estes j pugnavam pela dissoluo de fronteiras entre a matemtica e a fsica, o que,

    neste campo, j os diferenciavam de Aristteles, que considerava apenas as qualidades no as quantidades

    definidoras de essncias e da estrutura do ser. (Dear, 2009, p. 7, Koyr, 1996, p. 45) O que levou a que a cincia

    antiga fosse equivocadamente tomada como uma palette de conhecimentos desordenados e at por vezes

    discrepantes. (Gil, 2000, p. 270) Todavia, em oposio s posies de Dear e Koyr, T. S. Kuhn contra-

    argumenta que ainda que houvesse medio, a ausncia do seu registo escrito (como no caso do movimento

    uniformemente acelerado no plano inclinado, de Galileu), dificultava a comparao da experincia com a de

    outros cientistas. (Kuhn, 1989, p. 240) Sustenta ainda T. S. Kuhn, que as cincias baconianas se mantiveram

    sempre separadas de uma matemtica (apesar de tudo, apontando Galileu e tambm Newton como excepes),

    cada vez mais depurada de aplicaes perifricas e ligadas a um empirismo de raiz (ao ponto de desprezar a

    formulao de teorias e manterem-se, militantemente, na pura descrio das suas experincias, no da quietude

    da natureza). No por acaso, diz-nos T. S Kuhn, que elas gozaram de maior implantao no norte da Europa,

    especialmente em Inglaterra, enquanto a onda de matematizao das cincias nasceria em Frana, nas primeiras

    dcadas do sculo XIX. A influncia do luteranismo (com o seu ethos posto na valorizao do trabalho manual)

    pode, para T. S. Kuhn, ter influenciado este desenvolvimento particular das cincias baconianas, embora a

    questo no seja, para ele, fechada. Por isso mesmo, cr que o seu balano mais positivo no abrir de novos

    campos cincia (pela profuso da experimentao), do que em relao a avanos cientficos substantivos.

    (Kuhn, 1989, pp. 74 -94)

  • 7

    mais indues foram possveis, visto mais regularidades surgirem. 9

    O que transbordaria para

    o comportamento humano. (Hacking, 1990a, p. 6263)

    Nesta perspectiva, a ideia de probabilidade do sculo XVII e a ideia de signos do

    Renascimento, representam, para este autor, duas faces da mesma moeda. (Hacking, 1990a,

    p. 96) Sem prejuzo, no entanto, de que o antigo conceito de opinio e o moderno conceito de

    conhecimento sejam incomensurveis. Isto por o primeiro se referir a crena, no passvel de

    demonstrao (resultante de reflexo e argumentao), enquanto o segundo lida com o

    provvel, no sentido de poder ser provado (ainda que no estritamente demonstrado), por

    admitir apenas a aprovao da opinio. (Hacking, 1975, pp. 21-23)

    Nos textos mdicos da Renascimento, os signos (antepassados dos factores de

    prognstico) j esto separados das causas, embora tivessem inscritos no corpo humano, no

    ambiente natural e no mundo astral. Nesta medida, o signo, para Hacking, ainda que

    ontologicamente distinto pode considerar-se o precursor da probabilidade. (Hacking, 1975,

    pp. 27-28)10

    As probabilidades objectiva (frequncia) e subjectiva (credibilidade), ou seja a

    dimenso aleatria e a epistemolgica, estavam associadas, o que s foi compreendido por

    Pascal. Pode ter sido, pois, a necessidade econmica (neste caso a organizao do estado e a

    definio dos meios de produo) a impelir a cincia a formar uma teoria das probabilidades.

    Mas esta teoria selectiva no explicar tudo, para este autor. Por volta de 1660, as pr-

    condies para a emergncia da probabilidade, constitudas pelos signos, determinaram o

    espao para a teoria. (Hacking 1975, pp. 1-5)11

    Porm, segundo Hacking, no foi apenas na

    cincia que se comeou a fazer uso da matemtica, mas tambm na organizao do estado. A

    partir do sculo XVI, alguns pases europeus comearam com censos, embora de forma

    restrita a determinados territrios e actividades. Principados italianos (inventores da moderna

    concepo de estado), Sucia (dos pastores pioneiros da contagem de nascimentos e bitos),

    Frana napolenica (dos fisiocratas e burocratas) e Inglaterra (no advento das companhias de

    9 Como determinista, Francis Bacon dizia que o acaso o nome de uma coisa inexistente e o que acaso no

    universo, tambm o no homem, incluindo os fenmenos psquicos, que deviam ser submetidos ao exame

    cientfico. (Azevedo, s.d., p. 17) 10

    Na obra, Les mots et les choses, Foucault sustenta que o signo renascentista obedece a uma economia de

    semelhanas. O signo no visa, portanto, referir diferenas e identidades como na idade clssica. por esta

    razo que o sentido transcendente do signo renascentista deu lugar, a partir de Descartes, a um instrumento de

    anlise imanente. Dito de outra forma, a anlise da ordem tomou o lugar das hierarquias analgicas e do jogo de

    similitudes indefinido que caracteriza a episteme renascentista (Foucault, 1966, pp. 4853) 11

    Para Daston, o reencontro com o cepticismo grego e as polmicas da Reforma e da Contra-Reforma

    subverteram as formas tradicionais de crena religiosa, filosfica e cientfica. Pensadores como Locke, Boyle e

    Gassendi avanaram com um novo cepticismo construtivo que reclamava estar a absoluta certeza, em

    muitas reas, fora do entendimento humano. (Daston, 1998, p. xii)

  • 8

    seguros martimos e das tabelas de mortalidade) lanaram-se nas contagens estatsticas. Mas

    j a partir do sculo XVI, alguns estados europeus comearam com censos populacionais,

    embora de forma restrita a determinados territrios e actividades. Claro que, o facto de as

    populaes alvo serem inicialmente restritas, favoreceu o incio dessa actividade12

    . (Hacking

    1990a, p. 16-17) Mas se foram os italianos a inventar o estado tal como o conhecemos hoje,

    foram os alemes que trouxeram o qualificativo de estatstico e o dotaram de uma

    burocracia nesse sentido orientada, para o que muito contribuiu o pensamento de Leibniz que

    a definiu como necessria para o conhecimento do seu prprio poder. Assim, props em 1700

    (as enumeraes oficiais na Prssia comeariam anos depois), ao Prncipe Frederico, a

    avaliao populacional atravs de 56 itens, que incluam, por exemplo, sexo, classe social,

    nmero de homens mobilizveis para o exrcito, distribuio da doena, esperana de vida,

    quantidade de nascimentos, etc. Este ltimo foi particularmente til no sentido de tentar

    unificar o Brandeburgo e a Prssia sob o mandato de um lder prussiano, pois era na Prssia

    que se registavam mais nascimentos. Nas palavras de Hacking:

    Leibniz, my favourite witness to the emergence of probability in the seventeenth

    century, was the philosophical godfather of Prussian official statistics. His

    essential premises were: that a Prussian state should be brought into existence,

    that the true measure of the power is its population, and that the state should have

    a central statistical office in order to know its power. (Hacking, 1990a, p. 18)

    Este tipo de estatstica ainda relevava da discrio, quando no mesmo do secretismo a

    reforar com isso o poder estatal no que contrastava com a estatstica do sculo XIX, que

    era j pblica e publicada. (Hacking, 1990a, pp. 1820)

    bom ter presente que esta tese de Hacking d corpo clebre tese de Michel Foucault

    sobre a biopoltica. Com efeito, Foucault denomina de biopoltica o conjunto de mecanismos

    atravs dos quais as caractersticas biolgicas da espcie humana se tornam objecto de uma

    estratgia poltica. Esta nova arte de governar, que ele situa no sculo XVIII, consiste em

    controlar e fortalecer a populao e representa uma nova estratgia geral de poder. (Foucault,

    2007, p. 16)

    12 Se bem que de forma ocasional, como em muitas naes europeias, em Portugal, os primeiros censos

    dataro de 1260-1279, com D. Afonso III e 1421-1422, com D. Joo I, visando determinar o nmero de

    besteiros. (Censos 2011, 2014)

  • 9

    Segundo Foucault, foi atravs de um dispositivo securitrio (progressivamente

    substituindo um dispositivo disciplinar, por sua vez transfigurando-se a partir de um primeiro

    de natureza jurdica) que o poder passou a controlar a populao. O primeiro modelo

    jurdico (diviso binria entre o permitido e o proibido), o segundo disciplinar (o culpado

    surge, ao mesmo tempo, dentro e fora do sistema binrio) e o terceiro securitrio. Este ltimo

    modelo implica que o crime inserido numa srie de eventos, que a reaco do poder

    obedece a uma lgica de custos e benefcios. Ao contrrio da diviso binria do modelo

    disciplinar, agora h um calcular de mdias de um dos lados e de um limar de tolerncia do

    aceitvel, do outro13

    . (Foucault, 2007, pp. 19-21) Podem-se assim apontar vrias inovaes

    ao longo do tempo. No entanto, no que diz respeito s tecnologias ligadas segurana

    preciso sublinhar que este modelo no anula os anteriores, antes multiplica os mecanismos

    ligados ao aparelho jurdico e disciplinar. (Foucault, 2007, pp. 9-12)

    Em suma, com o biopoder a populao passa a ser doravante um sujeito poltico. Um

    sujeito que no s no se esgota na dimenso jurdica que tinha no passado, como substitui a

    noo generosa de povo, do bom povo. Mas tambm a partir de aqui que preciso contar

    igualmente com o comportamento normal dos indivduos, para que eles funcionem

    apropriadamente como membros de uma populao. (Foucault, 2007, pp. 86-91)

    Mas de que forma os aparelhos de segurana normalizam? Para Foucault, o hospital

    psiquitrico um exemplo paradigmtico. O hospital passa a ser uma mquina panptica que

    conferia aos seus espaos um controlo permanente dos doentes. Exemplos disto seriam os

    pisos trreos14

    , para dar aos mdicos uma imediata visibilidade de tudo o que ocorria, a

    existncia de uma torre central com o mesmo fim15

    , o isolamento em celas e o convvio dos

    doentes para que, cada um se confronte com a irracionalidade das suas crenas. Assim, o

    doente mental veio a tomar o lugar do louco. O doente j no algum possudo,

    13 Este dispositivo releva j da ideia de probabilidade, mas tambm da transposio de saberes cientficos,

    utilizando a mensurao rotineira j esvaziada de pressupostos tericos , para a prtica de vigilncia por

    parte do Estado. (Madureira, 2003, p. 284) Como afirma J. M. Curado, (2007, p. 47) a cincia e o direito

    entraram em reas da vida privada que tinham antigamente a dignidade de no serem objectos de cincia e a

    dignidade de no serem assunto de diplomas legais dos estados. 14

    Os pisos trreos para os doentes psiquitricos tambm tm por finalidade a preveno do suicdio por

    defenestrao, o que j era praticado desde o Imprio Romano. (Trancas, Luengo, Borja Santos, Flores &

    Cardoso, 2007). 15

    Um sistema, chamado panptico, projectado por Bentham, em fins do sculo XVIII, para vigilncia de

    prisioneiros num centro penitencirio em que um vigilante os observava, a partir de um ponto central, sem que

    esses soubessem que estavam a ser vigiados. (Barton & Barton, 1993, pp. 138-162) Em 1843 este sistema

    descrito por B. A. Gomes (que, como veremos, empreendera um priplo europeu pelos principais asilos para

    alienados), em relao ao hospcio de Glasgow. (Gomes, 1999, p. 100)

  • 10

    vagueando pela comunidade, mas sim um indivduo que necessrio confinar a espaos

    prprios apartando-o da sociedade, em virtude dos seus comportamentos desviantes ,

    mas sujeito a uma visibilidade permanente. (Alves & Ferreira da Silva, 2004, p. 56)

    Foucault estuda tambm o exemplo da varola, que foi, poca, o caso mais conhecido de

    endemia de uma doena, que implicava uma taxa de mortalidade de quase um em oito. Alm

    disso, era de incio abrupto e de crises epidmicas intensas, implicando uma abordagem

    exterior prtica e teoria mdicas de ento, sendo fruto do mais puro empirismo (e assim

    permaneceu at Pasteur). Tratou-se de uma tcnica preventiva que, segundo Foucault,

    beneficiou de dois suportes: a estatstica, que permitiu a sua conceptualizao em termos do

    clculo de probabilidades e, logo, a sua racionalizao e integrao analgica com outros

    mecanismos de segurana, por exemplo aqueles que eram utilizados na poltica econmica

    em relao escassez. No caso da vacinao, no se tentava de prevenir a varola, mas sim

    inocul-la para a anular. Com o que, afinal, se podia prevenir outros ataques da doena, o que

    corresponde a um tpico mecanismo de segurana, agora integrado num clculo poltico. Tal

    procedimento tornou a prtica aceitvel, ainda que no correspondesse ao pensamento

    mdico. Alguns elementos, de acordo com Foucault, contriburam para a extenso dos

    aparelhos de segurana. Assim, para determinar a validade do procedimento, perguntava-se:

    vale mais arriscar a morrer da doena ou da inoculao? Com a introduo do clculo de

    probabilidades, a varola deixou de ser vista como o at ento eram as doenas, isto , como

    uma doena em si, mas como uma doena correspondente a uma distribuio de casos numa

    dada populao. Surgiu, por conseguinte, o conceito de caso, no individual, mas integrado

    num problema colectivo em termos de quantificao. Por outro lado, tambm pela anlise da

    distribuio de casos, era possvel identificar o risco de morbilidade e de mortalidade de

    acordo com a idade e o tipo de insero no meio. Apareceu, portanto, a noo de risco. Assim

    sendo, no existindo um risco igual para todos os indivduos, constitui-se uma nova

    percepo de perigo. E por a epidemia ter exacerbaes e desaparecimentos imprevisveis,

    surgiu a noo de crise. Perante estes novos conceitos, o objectivo das medidas disciplinares

    seria evitar o contgio (isolando os atingidos) e tratar a doena em cada paciente, embora o

    aparelho desenvolvido com a vacinao tomasse a populao como um todo, calculando-lhe

    os vrios coeficientes de risco. Mas a anlise foi mais elaborada, estudando-se as

    probabilidades em populaes especficas (consoante a idade, zona de habitao, profisso,

    etc.). Portanto, alm da distribuio normal global, havia outras distribuies mais

    especficas, reduzindo-se ainda mais os casos desviantes, porque ao se descobrir que, por

  • 11

    exemplo, um grupo etrio era mais atingido (no caso, as crianas com menos de trs anos),

    tentava-se reduzir a sua morbilidade. Assim, o interface das diferentes normalidades, que

    levou medicina preventiva, assentou na condio de que a prpria populao, j elevada a

    sujeito poltico passou a ter uma matriz probabilstica para o Estado. Em suma, o conceito de

    biopoder visa dar conta de uma nova racionalidade poltica: aquela em que a preocupao

    poltica em lidar com as variveis biolgicas da populao visa o fortalecimento do Estado e

    se materializa em polticas de sade. Pressupostos que, sendo originrios de Foucault,

    tornaram-se para Hacking, determinantes para a edificao da sua tese.

    Curiosamente, a par do Estado, tambm algumas comunidades religiosas tentaram adoptar

    a estatstica, esforando-se por provar que ela traduzia um desgnio de Deus. Por exemplo,

    para John Arbuthnot havia mais nascimentos masculinos que femininos para compensar o

    maior nmero de mortes de homens no mar e na guerra, princpio este que foi seguido por

    Boyle. O pastor Sssmilch, em 1741, foi tambm um arauto da teologia demogrfica, com a

    sua obra Divine Order (em que ligava, por exemplo a maior taxa de mortalidade nas

    cidades maior frequncia do pecado a reinante). Da que Foucault o inscrevesse na

    categoria do biopoltico por j visar o corpo social ou suas partes, como um todo merecedor

    de intervenes especficas. A ilustrar tambm a importncia do pensamento biopoltico, na

    Europa, a partir do sculo XVIII, est Malthus, que falou da dificuldade em angariar

    indefinidamente meios de subsistncia por estes crescerem em progresso aritmtica,

    enquanto a populao o faz em progresso geomtrica logo, com tendncia consequente

    privao concluindo, por isso, que os pobres devem ter poucos filhos16

    . (Hacking, 1990a,

    pp. 2122)

    Na Prssia, para a coroao de Frederico Guilherme, foi proposta em 1787 uma nova

    enumerao dos habitantes e o pretexto foi que os novos governantes conhecessem o seu real

    poder (a Prssia tinha-se expandido territorialmente para a Polnia). O novo bureau

    estatstico da Prssia destacar-se-ia pela profusa publicao dos dados.

    16 Malthus, em 1798, tomando como ponto de partida as ilhas britnicas, conclura pela impossibilidade de

    amplificao da terra arvel, que acompanhasse indefinidamente o crescimento demogrfico. Da que a nica

    forma de resolver o problema, por parte dos humanos, implicasse a voluntria restrio da descendncia,

    sobretudo no que diz respeito s classes mais desfavorecidas, para quem a demanda de subsistncia mais

    difcil. (Malthus, 1998, pp. 410) E. P. Thompson referiu o crescimento demogrfico da classe operria inglesa,

    medrando em pssimas condies ambientais, incluindo estticas, com cidades de mais de 10000 habitantes

    destinadas quela populao. Aponta ainda o aumento dos nascimentos e no da esperana de vida, como

    principal responsvel, o que tambm explica o incremento do trabalho infantil. (Thompson, 1963, pp. 231-233)

  • 12

    Contudo, at meados do sculo XIX no houve determinaes superiores para a

    centralizao dessa publicao, mas aps 1860, pela mo de Ernst Engel, instituram-se

    bureaus nas principais cidades. O territrio germnico tinha necessidades, neste campo, que

    outras naes no tinham, nomeadamente a sua partio em estados que tinham trocas

    comerciais entre eles. Da que o levantamento estatstico fosse a mais imperioso. Estava em

    marcha a criao de um novo tipo de Homem porque, como afirmou Richard Boeckh, em

    1863, a estatstica era um instrumento que se propunha acompanhar o homem desde o

    nascimento, passando pela sua escolaridade, vacinaes, servio militar, casamento (e com

    quem) at morte (e porqu). A Prssia vencedora da guerra contra Napoleo criara, no

    entanto, uma sociedade que resistia generalizao estatstica. Isto porque, apesar do

    poderoso bureau estatstico, no havia, entre os germnicos a concepo de lei estatstica

    dado que, apesar da avalanche de nmeros, a sua sociedade era colectivista, conservadora e

    holstica (que a levou ao estado social), enquanto em Frana e Inglaterra predominavam o

    liberalismo, o individualismo e o atomismo (que trouxeram a competio individual e a

    filantropia). (Hacking, 1990a, p. 36)

    Entretanto, John Sinclair, poltico escocs, fundou o Conselho da Agricultura em 1793 e,

    em 1799, completou o livro Statistical Accounts for Scotland em que recolheu respostas de

    938 procos a questionrios agrcolas (incluindo a vertente humana dos que a ela se

    dedicavam), onze anos depois de ter efectuado uma viagem pela Europa, em que visitou a

    Prssia. A principal diferena entre as recolhas britnica e prussiana de dados, residia no

    facto de no primeiro caso ela ser efectuada pelo organismo que deles necessitasse, enquanto

    no segundo ser centralizada a partir de um bureau governamental, o que pressupunha um tipo

    de conhecimento especializado para o efeito e uma postura neutra perante as partes. Contudo,

    em ambos os casos, os novos funcionrios foram escolhidos pelo seu diletantismo na causa,

    se bem que entre os germnicos tal dependesse mais de uma convocatria, que da iniciativa

    individual.

    A cincia mdica e a cincia moral

    Uma das teses mais surpreendentes de Hacking a oposio, acima referida, que

    estabelece entre o Leste e o Ocidente no que respeita forma como a lei estatstica era

    interpretada, melhor dizendo, sobre o seu estatuto. uma tese inovadora dado as ilaes

    sociais, polticas e culturais serem de grande alcance, e por Hacking parecer no s

  • 13

    simplificar como explorar, atravs de um novo vis, a famigerada oposio entre leste e

    ocidente. Neste sentido, esta oposio baseada num conflito entre colectivismo e

    individualismo, que muitos situaro no sculo XX, j radicaria, em dois diferentes

    posicionamentos culturais, para ele, evidentes pelo menos desde o sculo XVIII.

    Hacking tende a ver, tanto a Leste como a Ocidente, a lei estatstica como um produto

    social. Contudo, para o primeiro caso como representando factos culturais, no

    necessariamente como resultante de comportamentos individuais, j que paradoxalmente

    o prprio quem o admite as concepes atomistas da pessoa eram a prevalentes. J no

    segundo caso, igualmente auto qualificado de contraditrio seria a atitude holstica e

    colectivista do Leste que promoveria a ideia de lei social decorrente de comportamentos

    individuais. (Hacking, 1990a, p. 36) Em Portugal, o desenvolvimento estatstico no chegou a

    ser suficiente para concluirmos em que campo se postaria o nosso pas. Por um lado, a

    aplicao estatstica administrao civil, que na Prssia se deu a partir de 1725, apenas se

    verificou em Portugal, em 1864. (Valrio, 2001, p. 34) Por outro, a sua aplicao cincia,

    pelo menos no que toca medicina, foi igualmente muita tardia no sculo XIX (apesar de um

    discreto surto nos anos 30), como veremos no captulo seguinte.

    Do prprio, surge ento a exposio desta dissonncia, que emerge de uma lei

    probabilstica aplicada s populaes: se no deveria, por um lado, a atitude colectivista

    apelar referida lei; se no seria, por outro, a posio liberal a rejeit-la por ela no deixar

    espao liberdade individual, assentando no fatalismo estatstico. Porm, resolve o autor a

    equao, a lei estatstica produto dos actos dos indivduos. No Ocidente, a sua concepo

    radica nas mtuas influncias de franceses e ingleses quando os primeiros integraram as

    ideias de Newton (sobre a mecnica celestial e racional) e de Locke (acerca da faculdade de

    raciocnio).

    Assim, Hacking sustenta que estas novas ideias desaguaram numa concepo geral do

    homem e da sociedade que abarcava no s a mente individual, mas as relaes entre os

    vrios seres humanos, como propunha Condorcet17

    , figura central, para o autor, desta

    17 Nesta perspectiva optimista e devedora da progressiva centralizao do naturalismo no Homem, alguns

    filsofos reavaliaram a medicina na sua relao com as cincias morais e fsicas, despindo-a de valorao

    teolgica. As preocupaes eram agora a eliminao da pobreza, a instaurao do governo constitucional e a

    propagao das virtudes civis. Este ltimo aspecto radicava na assuno de que um sculo de progressos nas

    cincias racionais e experimentais podia levar a uma revoluo semelhante na vida moral e cvica. Todavia,

    autores como Cabanis e Bichat mostravam a sua oposio importao de mtodos quantitativos pela medicina,

  • 14

    impregnao das cincias sociais pelo novo estilo de raciocnio. Profetizava Condorcet, para

    essa nova cincia moral, expresso com que apenas procurava descrever os costumes um

    progresso a par do das cincias fsicas, pois deveriam seguir o mesmo mtodo, procurando

    ser igualmente precisas. Este parto da cincia moral, imagem e semelhana das cincias

    fsicas, fundamental, para a teoria de Ian Hacking18

    . De facto, acrescenta, Condorcet

    considerava tanto umas como outras serem diferentes da matemtica por permitirem aceder

    evidncia a partir de uma probabilidade matematicamente expressada. O autor chama a

    ateno para a importncia deste estatstico francs, no que respeita, por exemplo,

    composio dos jris dos tribunais (questo adiante abordada), pelo facto de que ele reala a

    importncia do rigor probabilstico na edificao da certeza do veredicto, por se tratar de uma

    escolha moral19

    .

    But without Condorcet enlightenment vision of law, of moral science and of the

    sweet despotism of reason, those number-collecting offices might merely have

    manufactured tables in the Prussian style. French numerations and social

    mathematics were instead sired by Newtonian ambitions of laws of society.

    (Hacking, 1990a, p. 46)

    Mas a cincia moral de Condorcet separava-se em dois terrenos: o da histria (em que se

    traava os progresso do esprito humano) e o da matemtica social (estatstica,

    probabilidades, teoria da deciso, economia, anlise custo-benefcio, etc...) Foi esta vertente

    numrica que originou a lei estatstica a que Condorcet atribuiu a crena, da parte dos homens

    semelhante que tm pelas leis naturais. Porm, Condorcet, nos seus ratios estatsticos tinha,

    partida, mais dados biolgicos que sociais. Como aqueles, de que so exemplos as taxas de

    nascimentos e mortes (o que no ocorria com as taxas de matrimnio), no eram atribuveis

    aos costumes, deram escasso contributo matemtica social, o que no significa que no

    pudessem ser interessantes para os governos abordarem certos problemas socioeconmicos.

    Outras escolhas humanas (alm dos casamentos, por exemplos, os divrcios) que resultam de

    (Cabanis reclamava apenas um alto grau de probabilidade e um instinto feliz) na esteira do que viria a fazer,

    mais tarde, Claude Bernard, como veremos. (Murphy, 1981, p. 301) 18

    Daston relaciona o trabalho dos demgrafos do sculo XVIII, em relao colheita numrica de dados e

    descoberta de regularidades, com o desenvolvimento das cincias sociais nos cem anos seguintes. (Daston,

    1998, p. 372) 19

    Para Daston, Condorcet no reduziu a escolha fixao da probabilidade, porque referiu a importncia de

    circunstncias particulares. Assim, dever-se-ia determinar, por exemplo, se a probabilidade de um erro num

    julgamento, era superior probabilidade de o respectivo acusado, em funo das suas caractersticas pessoais,

    ter cometido o crime, levando-se em conta os interesses que podia dele tirar. (Daston, 1998, p. 92)

  • 15

    mltiplos factores podem ser constantes, quando a amostra muito grande. Sabia-se, ento

    que os desvios (como os divrcios e os homicdios) tinham taxas fixas. As relaes sociais

    estavam dominadas pelo "doce despotismo da razo". Mas sem uma crena apriorstica em

    leis newtonianas acerca dos homens, as leis probabilsticas no teriam sido extradas da

    avalanche de nmeros.

    Como referimos, no incio deste trabalho, Hacking procura, mediante a sua anlise

    histrica, realar esforos individuais, ao invs de traar cronologicamente os movimentos

    verificados. neste sentido, que foca o trabalho de dois autores ingleses que, em seguida,

    apontamos.

    Partindo do facto de em 1840, nos peridicos europeus j abundarem leis de doena

    segundo outros ndices como sexo, local e ocupao, Hacking alude a Richard Price (1723-

    1791), pastor, estatstico e filsofo republicano que deixou uma lei de mortalidade baseada

    em registos respeitantes cidade de Northampton. Determinou a esperana de vida

    nascena em 24 anos, relacionou de forma proporcional as taxas de mortalidade e doena e

    calculou ainda que esta se situava em um dia por cada oito semanas de trabalho, at aos 32

    anos. Naturalmente, que isto constituiu uma fonte importante de informao para a

    seguradora principal de ento, a Equitable Society, e Price ficou para a histria, pelo menos

    de acordo com a viso britnica, como o promotor das bases empricas das taxas de

    mortalidade, embora o prprio Hacking admita a superioridade de um trabalho sueco.20

    (Hacking, 1990a, p. 49)

    Mas Price ligou ainda as taxas de mortalidade s taxas das doenas e estas ao absentismo

    (uma semana por ano at aos 32 anos e duas at aos 60. Parecem ainda ter tido uma

    influncia positiva na evoluo dos nmeros da sade, sobretudo no que respeita s crianas.

    Tambm proeminente, para Hacking, como autor de leis de doena foi William Farr21

    ,

    pioneiro da estatstica mdica, que criou um sistema de anlise de incidncia de nascimento,

    vida e morte, entre 1838 e 1879, que permaneceu como uma referncia mundial. A

    importncia de Farr deveu-se ao estabelecimento da durao, frequncia e perigo da doena,

    bem como da relao entre taxa de mortalidade e densidade populacional, o que ter

    20 Westergaard, tambm citado por Hacking, afirma que a Sucia foi a primeira nao a conceber a

    aritmtica poltica. (Westergaard, 1969, p. 53) 21

    Alguns autores destacam tambm o papel de Thomas Rowe Edmonds. (Eyler, 2002, p. 7)

  • 16

    permitido lanar as bases da epidemiologia e da medicina preventiva22

    , ao compreender que

    havia districts mais saudveis que outros. Baseando-se, em registos hospitalares dos ltimos

    100 anos, apurou uma nova classificao nosolgica que est na origem da actual

    Classificao Internacional de Doenas da OMS e s contagens de acordo com esta,

    chamou nosometria. Calculou o nmero de mortes causadas pelas vrias patologias, tornando

    a nova classificao inseparvel da enumerao, que segundo afirmou, permitia medicina

    um lugar entre as cincias, tornando-se, assim, mais cientfica23

    . (Hacking, 1990a, pp. 4853)

    Porm, se a avalanche de nmeros proporcionava uma maior informao casustica, no

    trazia necessariamente, como se via pela evoluo da medicina, uma evoluo

    correspondente dos tratamentos em cuidados secundrios.

    Segundo Hacking, a primeira revoluo estatstica versando tratamentos mdicos, deu-se

    em conexo com as teorias de Broussais, (Hacking, 1990a, p. 81) cuja notoriedade se deveu a

    ter pensado a doena como entidade de causa localizvel, resultante de irritao ou astenia

    dos tecidos24

    (nesta perspectiva, pensava tambm todos os eventos mentais como eventos

    cerebrais). No entanto, revelou-se grande utilizador da sangria, como mtodo teraputico,

    pois era vista como um regulador fisiolgico que permitia actuar sistemicamente em todo o

    corpo (de facto ainda que a causa fosse localizada a um rgo, era todo o sistema que estava

    doente). Balzac, alis, referido por Hacking a propsito da Physiologie du Mariage, ironiza,

    recorrendo a Broussais, nessa obra de 1829, que um marido, ao menor pretexto, para prevenir

    qualquer infidelidade da sua mulher lhe deve lanar sanguessugas para rapidamente a

    sangrar. (Balzac, 1968, p. 151) Acrescenta ainda que a escolha de um mdico, por parte de

    um marido para a sua mulher , neste aspecto, fundamental, (Balzac, 1968, p. 174) no que

    reala a ligao da medicina com a moral, at no sentido de que se existem leis para a

    natureza fsica, tambm existiro para a natureza moral. (Balzac, 1968, p. 113) Nesta linha,

    22 O progresso estatstico tornou-se depois particularmente acelerado na poca vitoriana, tendo o Oxford

    English Dictionary, pela primeira vez, contemplado, a palavra epidemiologia em 1873. Por sua vez, o mpeto

    preventivo nasceu da confrontao com a dificuldade em tratar as doenas infecciosas. (Prince, Stewart, Tamsin

    & Hotopf, 2003, p. 3) 23

    Outro tema clssico, posto que ainda hoje objecto de debate, so as repercusses sociais da revoluo

    industrial e da crescente urbanizao Com efeito, Farr chegou concluso que a cidade era menos saudvel que

    o campo e considerou a pobreza como causa de doena, tendo estabelecido, por exemplo, que o suicdio era

    mais frequente nas classes mais desfavorecidas, onde tambm haveria muitos bitos causados pela fome e por

    ms condies higinicas. (Whitehead, 2000, pp. 86-87) 24

    Recorde-se que este professor de patologia geral na Academia de Medicina concebeu a doena como

    excitaes, originadas em excessos a partir do normal. Foi o patolgico que passou a ser definido a partir de

    desvios contnuos do normal, o que ainda hoje tema de discusso na medicina e na psiquiatria. (Nesse &

    Stein, 2012) Alis, Hacking refere que pode ser atribudo a Pinel e a Bichat, o mrito de j anteriormente o

    terem admitido. (Hacking, 1990a, p. 245)

  • 17

    Comte viria igualmente a transferir este pensar fisiolgico para as leis da sociedade.

    (Canguilhem, 2009, p. 16)

    Este incremento da utilizao da sangria, por Broussais, deu-se aps as guerras

    napolenicas onde serviu como mdico militar e pode observar no s as leses do foro

    cirrgico, mas tambm vrias doenas sistmicas, em geral, infecciosas. Entretanto, houve

    quem notasse, como Miquel, que o advento da nova fisiologia trouxera um aumento das

    mortes a Paris. Outros apontaram o hospital de Broussais, como sendo o responsvel

    especfico por essa amplificao obituria na capital. Os seus defensores apontaram o facto

    de Broussais lidar com febres durante o ano inteiro, no apenas em determinadas estaes e

    de a taxa de sucesso do hospital ter melhorado entre 1815 e 1820, poca, da sua direco. O

    que foi contestado por o perodo de 1800 a 1814 ser de guerra, trazendo consequentemente

    mais mortes.

    Entretanto, a partir de 1828, Louis empreendeu vrias avaliaes estatsticas da sangria,

    julgando-a totalmente ineficiente. Broussais respondeu com apenas uma morte por clera em

    40 doentes, mas soube-se depois que dava alta a doentes ainda infectados. Broussais tornou-

    se, para Hacking, o primeiro mdico a ser destrudo pela estatstica, que, no entanto, ainda

    levava mais a retricas inflamadas, que a inferncias slidas.

    Yet in the strictly medical domain he was more crushed not by a host of scurrilous

    numbers but by a single case, a famous friend who died of cholera. (Hacking,

    1990a, p. 84)

    Outro caso que Hacking apresenta para corroborar a sua tese o caso de Civiale que, em

    1828, comparou a litotomia e a litotripsia como forma de intervencionar cirurgicamente os

    clculos vesicais25

    , concluindo que na primeira obtivera uma mortalidade de 1024, em 5443

    doentes e, na segunda, 7 em 307, trabalho que foi desvalorizado por um jri da Academia das

    Cincias, presidido por Poisson, por relevar de factos sem autenticidade, detalhe, controlo e

    valor, ou seja, no fundo, por prescindir do individual26

    27

    .

    25 Consistem, respectivamente, em intervenes via abdominal e transuretral.

    26 Alguns autores consideram como primeiro ensaio clnico registado, um estudo de 1747, efectuado por

    James Lind, em que este mdico experimentou diferentes alimentos em marinheiros afectados de escorbuto e

    verificou que s melhoravam os que tinham ingerido citrinos. (Mayer, 2004, p. 7) 27

    No houve, aparentemente, no sculo XIX portugus, pelo menos no perodo por ns estudado, quaisquer

    inquietaes semelhantes, como adiante veremos. Ainda no final do sculo, eram muito esparsas as referncias

  • 18

    Para Hacking, na aplicao da estatstica medicina, foroso perder o homem de vista,

    visto os estudos s terem valor, com massas infinitas, ao contrrio do que se passa na

    ponderao de um caso individual, onde a acumulao de dados sobre grupos de outros

    doentes, pode, para aquele, ser irrelevante. No envolve esta preposio qualquer clich

    moral e valorativo, no sentido de querer desumanizar a medicina, antes pretende constatar

    que, para raciocinar com base em grandes populaes, h que pr de lado especificidades

    individuais, para, com isso, homogeneizar amostras. No est, ainda hoje, fechado este

    debate, onde alguns resistentes medicina baseada na evidncia, apontam a necessidade de

    continuar a conferir importncia especificidade individual, no apenas na ponderao de um

    projecto teraputico como tambm no despertar de tenso essencial (Kuhn, 1989, p. 81)

    que um caso nico pode espoletar. (De Leon, 2013, pp. 205-217)

    Contudo, antes da medicina, seria a justia a deixar-se imbuir pelo esprito estatstico,

    (Hacking 1990a, p. 86) talvez por aquela dizer respeito a todos os homens e no apenas,

    como a justia, a alguns, os acusados, da marginais sociedade. Em Portugal, no sculo

    XIX, onde se perdeu rapidamente, cerca de 1850, a implementao de tribunais de jri,

    outrora criados com a revoluo liberal, (Barreiros, 1980, p. 598) a utilizao estatstica na

    medicina, teve mais a ver com intuitos administrativos do que com fins cientficos, como

    veremos nos captulos seguintes. No deixaria, porm, de ser com a ajuda da psiquiatria que a

    estatstica entraria na medicina portuguesa, onde portanto, no se verificou a ponte, referida

    por Hacking, da justia e dos suicdios, categoria esparsamente referida nos diagnsticos do

    Portugal oitocentista.

    O astrnomo Quetelet, cuja obra de capital importncia para o pensamento de Hacking

    sobre o desenvolvimento da estatstica, foi o grande terico das regularidades estatsticas no

    sculo XIX, ao notar, a partir das publicaes judiciais parisienses, a aterradora constncia

    dos vrios crimes que ocorriam. Assim, anunciou, em 1844, que alguns atributos humanos

    tm uma distribuio tal como os resultados da moeda ao ar, podendo ser transcritos para

    uma curva de erro ou curva de Gauss. No segundo caso, a distribuio binomial (cara ou

    coroa), enquanto no primeiro consiste numa distribuio de erros com uma mdia e uma

    medida de disperso que, quanto mais prxima estiver da mdia, mais esta fivel. Uma

    posio celeste medida por um instrumento uma posio real no espao. Mas Quetelet

    estatsticas nos artigos mdicos e, ainda assim, revelavam mais uma preocupao de mera contagem do que de

    qualquer tentativa de inferncia cientfica.

  • 19

    aplicou a mesma curva aos fenmenos biolgicos e sociais, ainda que aqui a mdia no seja

    uma quantidade real. Da que Quetelet falasse no homem mdio, no como um homem

    tipo, que fosse mdia da humanidade, mas num outro, representante de uma nao, povo ou

    raa.

    Esta noo de homem mdio, foi, para Hacking, meio caminho para a eugenia, que assim

    teria a sua raiz no trabalho de Quetelet, sendo o restante cumprido por polticas sociais

    destinadas a preservar ou alterar as caractersticas de uma raa. (Hacking, 1990a, p. 108) Ou

    seja, foi este conceito de homem mdio que, para o filsofo canadiano, trouxe a ideia de um

    padro normalizador no fundado numa qualidade mas num clculo matematicamente

    neutro e, consequentemente de eugenia que etimologicamente significa bem-nascido. Por

    seu turno, o novo padro levou a uma nova forma de informao e controlo populacional (o

    que corrobora a ideia de uma biopoltica) que teve o seu eplogo no holocausto.

    Com a medio de quantidades fsicas, Quetelet, juntamente com o seu erro provvel,

    criou a teoria da teoria das medidas ideais e abstractas das caractersticas de uma populao.

    Teoria que foi um passo crucial na domesticao do acaso, por transformar leis meramente

    descritivas em leis da sociedade e da natureza assentes em causas e verdades subjacentes.

    Segundo Hacking, no mesmo ano, Quetelet daria mais quatro passos importantes: a

    verificao de que a medio de uma caracterstica de um indivduo (por exemplo, a altura),

    por diversas vezes, no dar o mesmo resultado (disperso medida pelo erro provvel); que o

    mesmo efeito se passa na medio de uma quantidade astronmica; que se pode, no entanto,

    no saber se as diferentes medidas correspondem ao mesmo indivduo ou a vrios (a mesma

    tcnica usada para medir vrias vezes um homem ou uma vez vrios) o que sugere, no caso

    de as distribuies serem diferentes, uma forma de distinguir entre uma populao

    homognea definida por uma quantidade real ou populaes heterogneas; que o nmero

    obtido deixou de representar uma entidade aritmtica abstracta para passar a definir uma

    populao. Assim, para Hacking, foi fundamental para o futuro do pensamento estatstico, o

    facto de as propriedades individuais deixarem de o ser, isto , passarem a estar integradas no

    todo colectivo28

    . (Hacking, 1990a, pp. 108109)

    28 Neste sentido, Canguilhem adianta que um desvio estatstico, por si, pode no dar informao suficiente

    sobre o grau de morbidez que representa, pois s perante a estrutura individual, tal pode ser aferido, j que um

    grau de variabilidade fundamental para a adaptao. (Canguilhem, 2009, pp. 120-122)

  • 20

    Quando Quetelet leu a publicao dos permetros torcicos de soldados escoceses,

    resolveu aplicar-lhe uma distribuio estatstica, obtendo em 5738 indivduos, 1073 com 39

    polegadas e 1079 com 40, sendo o erro provvel de 33.34 mm. Afirmou ento que se fizesse

    as 5738 medies no mesmo indivduo, os resultados no seriam muito diferentes.

    Como seria possvel entender a estabilidade estatstica num universo laplaciano, em que

    uma mente informada deduziria um acontecimento futuro a partir de um momentneo estado

    presente? O prprio respondeu que a probabilidade era, em parte, produto do nosso

    conhecimento e, em parte, produto da prpria ignorncia. Contudo, a resposta pode ser dada

    com mais propriedade numa sequncia de cinco passos: 1) O facto de um lanamento de

    moeda poder dar cara ou coroa, depende tanto da mecnica newtoniana como das condies

    daquele. Estas e outas variveis podem ser consideradas causas e a nossa ignorncia de todas

    elas leva-nos probabilidade. 2) Com repetidos lanamentos, obtm-se a distribuio

    binomial. A explicao da estabilidade estatstica e da sobreposio da frequncia relativa e

    da probabilidade dada pelos resultados prvios de lanamentos e pela deduo matemtica.

    3) Quando se mede a intensidade da luz ou a posio de um objecto no se est a lanar

    moedas. Mas os erros inerentes medio so produto de causas momentneas actuando no

    prprio instrumento, no observador ou no sinal que chega a estes. Da que a curva de erro e a

    distribuio binomial possam ter a mesma forma, o que oferece uma simplificao do

    raciocnio. 4) A propsito da estabilidade estatstica das cincias morais, pode-se perguntar

    quais so as mirades de causas que actuam sobre a nossa deciso em optar pelo bem ou pelo

    mal. A medicina organizara j um numeroso rol de causas, de diversas categorias, para

    algumas patologias, como o suicdio, ponte perfeita entre esta disciplina e o crime. Aqui

    pontuava tambm o homicdio, para o qual Guerry, de uma lista de 21322, extraiu 97 motivos

    principais acrescidos de outros 4478 subsidirios. A estabilidade estatstica de Poisson era

    transferida para o crime, mas foi pela medicina que a metafsica subjacente da probabilidade,

    nomeadamente o quadro das causas momentneas, foi assimilada. 5) Quetelet assumiu

    empiricamente que os atributos humanos estavam distribudos como a lei de erros. Mas, para

    Hacking, o facto de as verdadeiras causas dos permetros torcicos serem ignoradas, levou a

    que a matemtica da probabilidade e a metafsica das causas subjacentes fossem

    amalgamadas numa compreenso ftua da estabilidade estatstica. (Hacking, 1990a, pp. 111-

    112)

    Galton viria mais tarde a insurgir-se contra a qualificao de erro provvel a propsito

    de atributos humanos (desde a cor dos olhos at propenso artstica). Mas a distribuio

  • 21

    gaussiana, com a sua assuno de pequenas causas independentes criara uma verdade

    sinttica a priori, sendo esta por si s, tudo o que podia ser. O determinismo tinha sido

    atacado pela estatstica e no havia forma coerente de entender este novo florescimento de

    ideias. (Hacking, 1990a, p. 114)

    Deste modo, segundo Hacking, na aplicao do pensamento estatstico cincia em geral,

    foi de primordial importncia o facto de as sociais terem sido equiparadas s naturais, com as

    seguintes consequncias: que aquelas tivessem adquirido um efeito de feedback sobre si

    mesmas, j que estas s em muito menor grau o possuem; que as cincias sociais passassem,

    alm disso, a ser definidas por mdias matematicamente neutras no relacionadas com

    qualquer essncia qualitativa, como sucede com as naturais, estas sim, partida devedoras de

    propriedades intrnsecas que se podem objectivar numericamente; que qualquer caracterstica

    individual do ser humano passou, como as suas contrapartes biolgicas a estar integrada no

    todo colectivo populacional; que apesar de tudo e como j referimos na introduo, foi a

    medicina a cincia natural que mais resistiu colonizao estatstica.

    Repercusses na Psiquiatria e na Justia; consequncias metafsicas e polticas

    Em relao s repercusses que o novo estilo de raciocnio teve na psiquiatria, parece,

    para Hacking, ter sido atravs da justia que a transio se deu. Como vimos, segundo o autor

    canadiano, houve alguma resistncia por parte de mdicos e matemticos em aplicar

    medicina a novel disciplina. Sucede, no entanto, que com a sua aplicao justia e devido s

    ntimas relaes desta com a psiquiatria (ambas tratam de comportamentos desviantes), a

    ponte para a medicina, ficou assim estabelecida.

    Como comportamento desviante que relevava de ambas as competncias psiquiatria e

    justia estava o suicdio. Relembre-se que, poca, os suicidas sobreviventes podiam

    responder judicialmente pelo seu acto, o que provavelmente representaria um deslocamento

    do local da resposta: da Igreja para o Estado. Recorde-se, a propsito que como refere o

    prprio Hacking j havia uma tradio anticlerical na defesa do seu direito. (Hacking, 1990a,

    p. 65)

    Entretanto, as regularidades numricas sobre doenas, cunhadas como leis, estavam a

    alargar-se ao campo das enfermidades mentais. Fazendo a ponte entre a Medicina e a Justia,

    estava a questo do suicdio.

  • 22

    O alienista Esquirol, tratou o conceito como novo, embora o termo j aparea escrito

    desde meados do sculo XVII e a razo, pode ter sido, para Hacking, a sua adopo pela

    justia. Defendeu que os mdicos tinham o direito de controlar, tratar e julgar os suicidas,

    baseando-se no facto de se constituir como forma de loucura e de esta ser do domnio da

    medicina. Incluiu-o at nas monomanias29

    e o seu desenvolvimento do conceito acompanhou

    as contagens de suicdios.

    Hacking recorda-nos que as contagens tinham comeado em Inglaterra, em 1662, com

    Graunt e as suas tabelas de mortalidade semanais, em que eram especificadas as causas da

    morte. Outros pases copiaram o modelo e, em 1813, Burrows notou que havia mais suicdios

    em Paris (141 em terra e 243 no rio) que em Londres (respectivamente 35 e 101), facto que

    foi rejeitado por Esquirol por o considerar uma caracterstica inglesa30

    , (dado como adquirido

    na poca). Esquirol, entretanto, encarregaria J. P. Falret, um dos seus alunos, de estudar o

    problema, tendo em 1822, publicado um livro, De l Hipocondrie et du Suicide, em que

    aborda a questo. Falret questionou a escolha do ano de 181331

    afirmando que, se havia mais

    alienados em Londres do que em Paris (os nmeros respeitantes capital francesa no foram

    provavelmente obtidos de forma rigorosa), tal implicava haver tambm mais suicdios32

    .

    Estes debates marcaram o incio das contagens de suicdios de uma forma que reproduzia o

    antagonismo poltico entre os dois pases, (Hacking, 1990a, p. 67) visto, em 1813, a Frana

    ainda viver sob o imprio napolenico. O debate podia marcar politicamente a discusso,

    29 A monomania, termo cunhado por Esquirol, era considerada uma forma de loucura parcial, no existindo

    um atingimento total da personalidade e da vida mental, podendo englobar os meros comportamentos

    desviantes, como a piromania ou o suicdio; os seus sucedneos nas actuais classificaes psiquitricas sero,

    por exemplo, a perturbao delirante (parania) e a perturbao obsessivo-compulsiva. O caso dos

    comportamentos desviantes, porque facilmente objectivveis, facilitou a sua captao pelo campo intersectado

    da psiquiatria e justia, sabendo-se hoje que a sua mera manifestao no condio suficiente para a incluso

    na rea psicopatolgica; tambm a ideao suicida no hoje considerada doena, sendo tomada como sintoma

    acompanhante de algumas delas, estando em aberto a discusso sobre se pode haver suicdio sem

    psicopatologia. (Ho, 2014, pp. 141-147) 30

    Os dados actuais (oficiais) revelam uma maior predominncia do suicdio em Frana que no Reino Unido

    (Causes of Death Statistics, 2015, mas curiosamente ainda h artigos comparando a frequncia nos dois pases,

    por vezes revelando resultados contraditrios. (Bolle & Flahault, 1999, p. 1364) 31

    Neste livro, Falret afirma que Burrows escolheu o ano de 1813 de forma tendenciosa j que fora uma

    poca de grandes convulses polticas em Frana e, como tal, mais tendente prtica do suicdio. (Falret, 1822,

    pp. 99-100) 32

    No h quais quer dados rigorosos acerca da prevalncia, poca, do suicdio em Portugal, embora os

    alienistas da segunda metade do sculo, afirmem que ele em nmero inferior ao de outros pases europeus. Os

    dados actuais, ainda que controversos por poder existir alguma conteno nos relatos, vo nesse sentido

    (Causes of Death Statistics, 2015, Ferreira de Castro, Pimenta & Martins, 1989, pp. 334-339). inegvel,

    porm, a existncia de bolsas suicidrias, como no caso de algumas zonas alentejanas, sendo que esta regio

    das que melhor incarna aquilo que vulgarmente conhecido como a tristeza portuguesa. Foi este sentimento,

    mas tambm, por vezes, a raiva (auto) destruidora que levou Unamuno a qualificar os portugueses como um

    povo de suicidas, no apenas literalmente, ma