trabalho imaterial - negri.pdf

20
 R EVISTA  OUTUBRO , N. 8, 2003 DEMOCRÁTICO  E POPULAR ? 27  DESAFIOS  DO S MOVIMENTOS  SOCIAIS  EM  TEMPOS  DE  GLOBALIZAÇÃO 27  A materialidade do trabalho e o “trabalho imaterial” SERGIO LESSA PROFESSOR DA U  NIVERSID ADE F EDERAL DE A LAGOAS (U FAL  ) Como deve acontece de tempos em tempo, uma nova categoria “socioló- gico-filosófica” fez sua entrada na cena acadêmica: a do “trabalho imaterial”. Tal como ocorre na maioria das vezes, por ser uma novidade, a nova catego- ria foi saudada e alguns espaços lhe foram abertos na mídia e nas editoras do país. Apresentando-se como uma tese radical de esquerda, e tendo por trás a figura de Antonio Negri a lhe conferir alguma visibilidade, o conceito de trabalho imaterial acabou sendo acriticamente empregado até mesmo por setores da esquerda brasileira. É, por isso, necessário que a examinemos mais de perto, mesmo que estejamos convencidos que suas debilidades são tantas que a nova categoria do trabalho imaterial não deverá permanecer sequer por alguns poucos anos no debate em curso. Nos parece que seu destino não será muito diferente do que ocorreu com o “marxismo analíti- co”, que tanto furor fez na década de 1990 e que, hoje, poucos sequer recor- dam do que se tratava. As teses de Maurizio Lazzarato, Antonio Negri e Michael Hardt acerca do “trabalho imaterial” têm como um de seus pilares a concepção que o “poder” teria passado por uma profunda transformação nas últimas décadas: se, antes, ele era localizado, hoje se encontraria difuso. Se, no passado, o poder era sempre o de uma nação, de uma classe, de um agente (como um capataz em uma fábrica), de um indivíduo (o burguês), de uma instituição (a política e as prisões), de um discurso (a fala autoritária como um cerimo- nial do poder); hoje ele se encontraria em difusão por todo o corpo social. De pontual a um poder em difusão: tal alteração tornou, segundo tais auto- res, não apenas completamente ultrapassada, mas absolutamente impossível qualquer ruptura revolucionária com a ordem do capital. A tese da “imaterialidade” do trabalho, portanto, é muito mais que uma interpretação

Upload: icaro-andrade

Post on 03-Nov-2015

28 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    DEMOCRTICO E POPULAR? 27DESAFIOS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS EM TEMPOS DE GLOBALIZAO 27

    A materialidadedo trabalho e otrabalho imaterial

    SERGIO LESSAPROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS (UFAL)

    Como deve acontece de tempos em tempo, uma nova categoria sociol-gico-filosfica fez sua entrada na cena acadmica: a do trabalho imaterial.Tal como ocorre na maioria das vezes, por ser uma novidade, a nova catego-ria foi saudada e alguns espaos lhe foram abertos na mdia e nas editoras dopas. Apresentando-se como uma tese radical de esquerda, e tendo por trsa figura de Antonio Negri a lhe conferir alguma visibilidade, o conceito detrabalho imaterial acabou sendo acriticamente empregado at mesmo porsetores da esquerda brasileira. , por isso, necessrio que a examinemosmais de perto, mesmo que estejamos convencidos que suas debilidades sotantas que a nova categoria do trabalho imaterial no dever permanecersequer por alguns poucos anos no debate em curso. Nos parece que seudestino no ser muito diferente do que ocorreu com o marxismo analti-co, que tanto furor fez na dcada de 1990 e que, hoje, poucos sequer recor-dam do que se tratava.

    As teses de Maurizio Lazzarato, Antonio Negri e Michael Hardt acercado trabalho imaterial tm como um de seus pilares a concepo que opoder teria passado por uma profunda transformao nas ltimas dcadas:se, antes, ele era localizado, hoje se encontraria difuso. Se, no passado, opoder era sempre o de uma nao, de uma classe, de um agente (como umcapataz em uma fbrica), de um indivduo (o burgus), de uma instituio(a poltica e as prises), de um discurso (a fala autoritria como um cerimo-nial do poder); hoje ele se encontraria em difuso por todo o corpo social.De pontual a um poder em difuso: tal alterao tornou, segundo tais auto-res, no apenas completamente ultrapassada, mas absolutamente impossvelqualquer ruptura revolucionria com a ordem do capital. A tese daimaterialidade do trabalho, portanto, muito mais que uma interpretao

  • 28 SERGIO LESSA

    REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    das novas formas de produo e de gerncia. Inclui uma concepo polticacujo cerne a proposio de um comunismo compatvel com o mercado,com o dinheiro, com a propriedade privada e o Estado. a proposta de umcomunismo sem a superao das classes sociais e com a manuteno docontrole da produo nas mos dos burgueses. Nele, o novo empresrio, oempresrio poltico, no se envolve diretamente na produo, na suaorganizao direta, mas determina suas condies,1 o empresariado con-feriria ao processo produtivo um sentido ordenado, coeso e completo.2

    Um comunismo, portanto, que mantm o controle da produo nas mosdos empresrios. Em suma, um comunismo burgus!

    sobre este aspecto diretamente poltico das teses de Negri, Lazzarato eHardt que nos deteremos neste artigo.3

    A difuso da produo e a difuso do poder

    A difuso do poder seria concomitante difuso da produo por toda asociedade. A tese central de Lazzarato, Hardt e Negri bastante simples:nos dias em que vivemos o capital teria completado sua expanso e promo-vido a identidade absoluta entre capital e sociedade, entre produo e vida.4

    A velha distino entre fbrica e o restante da sociedade teria dado lugar a

    1 Antonio Negri. O empresrio poltico. In: Giuseppe Cocco et alli (orgs.) Empresrios e empregos nosnovos territrios produtivos. Rio de Janeiro, Consrcio do Plano Estratgico da Cidade do Rio de Janeiro:DP&A, 1999, p. 61. Aproveito a primeira nota para o reconhecimento de algumas dvidas: NormaAlcntara e Cristina Paniago me apresentaram questo; Maria Augusta Tavares contribuiu para queeu compreendesse alguns aspectos fundamentais da relao entre trabalho produtivo e improdutivoem Marx; ngela Amaral fez sugestes que foram, todas elas, incorporadas ao texto final. A todas omeu agradecimento.

    2 Giuseppe Cocco. Trabalho e Cidadania. So Paulo: Cortez, 2000, p. 26.

    3 Sobre a relao entre trabalho imaterial e o conceito expandido de classe social, nos detivemos emSrgio Lessa. Trabalho imaterial: Negri, Lazzarato e Hardt Revista de Sociologia, Marlia, 2001; exami-namos a concepo da histria, a metodologia e a tica propostas pelos tericos do trabalho imaterialem Trabalho imaterial, classe expandida e revoluo passiva. Crtica Marxista, n. 15, 2002 e,abordaremos a relao entre trabalho produtivo, trabalho improdutivo e o trabalho imaterial emA fbula do trabalho imaterial, em redao.

    4 Antonio Negri. Marx beyond Marx. New York/London: Autonomedia/Pluto, 1991, p. XX-XXI, 12-13, 143. Tambm Michael Hardt e Antonio Negri. Labor of Dionysus. Minneapolis: University orMinessota Press, 1994, p. 9-10.

  • REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    A MATERIALIDADE DO TRABALHO E O TRABALHO IMATERIAL 29

    uma sociedade-fbrica na qual produo/consumo/distribuio seriam,agora, uma nica e a mesma coisa: o trabalho imaterial.5

    O trabalho imaterial, por sua vez, seria um fluxo contnuo entre osmomentos do consumo, da concepo, da gerncia e da produo, tor-nando todos os momentos da vida social igualmente produtivos. Os burgue-ses, antiga classe parasita, teriam sido substitudos pelos empresrios soci-ais. Os operrios, responsveis pela produo da riqueza no capitalismo,teriam sido ultrapassados pelos trabalhadores sociais, e o trabalho taylorizadoteria cedido lugar ao trabalho imaterial.6 Viveramos, portando, em umnovo modo de produo, o comunista, que se caracterizaria pelo fim dasociedade de classe, pelo fim da explorao do trabalho pelo capital e pelahegemonia do trabalho imaterial.7

    Ao fim e ao cabo, o que esto afirmando que a identidade absoluta entrecapital e sociedade em nossos dias teria levado ao comunismo. Analise-mos esta tese com mais cuidado:

    A identidade absoluta entre capital e humanidade , para sermos breves,uma impossibilidade ontolgica. esta impossibilidade, sem tirar nem pr, ofundamento ltimo da alienao (Entfremdung) que brota da regncia docapital. Quanto mais o capital se desenvolve, quanto mais ele penetra notecido social, mais se explicita a distncia entre a reproduo do capital e areproduo social: a sociedade se torna crescentemente desumana, aliena-da. Quanto mais desenvolvida a sociedade, mais divergentes se tornam asnecessidades autenticamente humanas e as necessidades da autovalorizaodo capital. justamente por essa razo que no h qualquer possibilidadede uma humanizao do capital ou, o que d no mesmo, de um capitalismode face humana.

    A tese de Hardt, Negri e Lazzarato se apia, portanto, em uma purafantasia: no vivemos hoje, nem poderemos jamais viver, qualquer identi-dade absoluta entre o capital e a sociedade. Pelo contrrio, o desenvolvi-mento das foras produtivas evidencia a crescente incompatibilidade en-tre capital e sociedade.

    5 Maurizio Lazzarato. Le cycle de la production immatrielle. Future Antrieur, Paris, n. 16, 1993.

    6 Idem.

    7 Antonio Negri. Marx beyond Marx. Op. cit., p. 167.

  • 30 SERGIO LESSA

    REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    Contudo, apenas para argumentar, vamos por um instante admitir quevivssemos hoje a absoluta identidade capital/sociedade. Mesmo que issofosse possvel, como seria sequer imaginvel que do capital absolutamenteuniversalizado surgisse, no o mais puro capitalismo, mas sim seu antpoda,o comunismo? Qual seria a mediao dessa converso em comunismo docapital absolutamente universalizado?

    A resposta sucinta, a se crer em Negri: no haveria qualquer media-o. A identidade capital/sociedade obriga8 a gnese repentina9 de umanova subjetividade, a comunista, que seria absolutamente autnoma,independente do capital.10 Tal subjetividade se afirmaria enquanto umaalternativa no antagnica ordem do capital. Ela constituiria um estilode vida, o comunista11, que arrancar[ia] a economia libidinal do Esta-do onvoro.12 Dos interstcios do capital universalizado13 surgiria repen-tinamente, sem qualquer mediao, uma alternativa que seria antpoda,mas no antagnica, ao capital.14

    A defesa da plausibilidade da gnese repentina do estilo de vidacomunista se apia no que Andr Gorz denominou, com propriedade, deum delrio15: a tese segundo a qual o amor para o tempo por se constituirseria o fundamento da histria moderna. Segundo Hardt, Lazzarato e Negria histria, desde o sculo XVI at os nossos dias, seria a afirmao cada vezmais intensa desse amor para o tempo. Este seria uma fora racionalizadoraque nos teria impulsionado do feudalismo at o comunismo dos nossosdias. Esse amor para o tempo teria, num primeiro momento, se explicitado

    8 Antonio Negri. La premire crise du postfordisme. Future Antrieur, Paris, n. 16, 1993, p. 15.

    9 Antonio Negri. Marx beyond Marx. Op. cit. p. 143.

    10 Idem, p. 98-101, 128,133-4,148-150.

    11 Idem, p. XVI.

    12 Idem, p. XIV.

    13 Idem, p. 34.

    14 Cf., p. ex. Antonio Negri. Marx beyond Marx. Op. cit. pp. 95, 159-65, 183-6; Michael Hardt, eAntonio Negri. Labor of Dionysus. University or Minessota Press, 1994, p.10,17; Antonio Negri. Elpoder constituyente. Madrid: Libertarias/Prodhufi, 1994, p. 392, 284, 379, 406-7; Maurizio Lazzaratoe Antonio Negri Travail immatriel et subjectivit. Future Antrieur, Paris, n. 6, 1991, p. 95.

    15 A. Gorz. Miserias del presente, riqueza de lo posible. Buenos Aires: Paidos, 1998, p.51.

  • REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    A MATERIALIDADE DO TRABALHO E O TRABALHO IMATERIAL 31

    na racionalidade revolucionria da burguesia e, no sculo XX, nas tentati-vas de controle da sociedade atravs da ao Estatal. No caso da UnioSovitica, ter-se-ia tentado garantir a liberdade16 pela hipertrofia do Esta-do, com o resultado nefasto de ter originado apenas uma nova forma decapitalismo, o capitalismo de Estado.17 No mundo ocidental, o Estado deBem-Estar teria tentado controlar o amor para o tempo atravs do pactokeynesiano-fordista que propunha um determinado patamar de consumoassociado a um determinado modo de produo.18

    Ambas as tentativas de controlar o empuxo racionalizador do amorpara o tempo atravs de intervenes estatais macias resultaram emredundantes fracassos. A irreversvel necessidade ontolgica do amorpara o tempo se afirmou iluminando de multides as praas dos imp-rios faustosos e, nas jornadas entre 1968 e 1989, destroou a UnioSovitica e o Estado de Bem-Estar, dando incio transio para o co-munismo.19

    Decisiva, para essa transio, foi a recusa por parte dos operrios domodelo fordista de produo e do modelo keynesiano de consumo. Cansa-dos do velho estilo de vida do Welfare State, os operrios gestaram um novomodo de viver e produzir. Recusaram o trabalho taylorizado, abandonaramas fbricas fordistas e, conseqentemente, o controle do capital sobre elessoobrou.20 Teria sido para se adaptar a essa recusa ao trabalho que oscapitalistas, nas ltimas dcadas, adotaram as novas tcnicas de gerncia eas novas tecnologias com um nico objetivo: manter a produo com menosfora-de-trabalho. A concepo segundo a qual a reestruturao produti-va uma forma de o capital intensificar a extrao da mais-valia, seriacompletamente errnea. A reestruturao produtiva teria sido causada nopelo capital, mas pelos operrios. Eles que, ao recusarem os postos de traba-

    16 Antonio Negri. El poder constituyente. Op. cit., p. 370.

    17 Antonio Negri. Marx beyond Marx. Op. cit. p. XXXVIII.

    18 Antonio Negri. El poder constituyente. Op. cit., p. 369-70, 372-3, 392, 407-8.

    19 Idem, p. 408.

    20 Antonio Negri. Marx beyond Marx. Op. cit. p. XXV-XVIII, 34, 149, 167; Michael Hardt, e AntonioNegri. Labor of Dionysus. Op. cit. p. 267-268, 274, 282; Antonio Negri. La premire crise dupostfordisme. Op. cit. p. 11-15.

  • 32 SERGIO LESSA

    REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    lho taylorizados/fordistas, teriam forado os burgueses a buscarem as novastecnologias e formas gerenciais.

    A imagem que mais se adequaria ao quadro traado por Negri, Hardt eLazzarato seria, no a de filas cotidianas de desempregados em busca dequalquer emprego, por mais taylorizado; mas sim a de burgueses em pnicotentando contratar a peso de ouro os poucos operrios que ainda se dispu-sessem a trabalhar em suas fbricas. Em definitivo, os tericos do trabalhoimaterial vivem em um mundo muito diferente do nosso.

    Continuemos. A plena explicitao categorial do amor para o tem-po, quando da identidade absoluta capital/sociedade, teria promovido aidentidade entre a produo e a sociedade, difundindo por todo corposocial a produo e o poder. Essa difuso, por sua vez, teria obrigado arepentina gnese da subjetividade comunista e, portanto, do comunis-mo. O projeto marxiano teria sido, ento, superado pela revoluo pas-siva21 que, sem qualquer barricada e num processo sem qualquerdramaticidade, substitui, na vida cotidiana, um estilo de vida capitalis-ta por outro: o comunista.

    Tal a moldura terico-poltica mais geral na qual se movem os partid-rios do trabalho imaterial: o terreno da reconciliao entre trabalho ecapital22, do no-antagonismo entre comunismo e capitalismo. Se, do pon-to de vista terico, temos uma composio categorial muito instvel, doponto de vista poltico temos a afirmao de uma tese que nos bastanteconhecida: Marx e suas teorias j foram soterrados pela histria e, agora,devemos conceber uma transio de uma sociedade de mercado para... umaoutra sociedade de mercado. O fato de chamarem a primeira de capitalis-mo e a segunda de comunismo em nada altera o fato de que umatransio que faz do ponto de partida o ponto de chegada. para dar umaaparncia de respeitabilidade a esse disparate que Negri, Hardt e Lazzaratorecorrem a outro absurdo a imaterialidade do trabalho. Em poucas pala-vras, o conceito de trabalho imaterial serve tambm como fundamentopara uma proposta de um comunismo compatvel com o capitalismo.

    21 Maurizio Lazzarato, e Antonio Negri Travail immatriel et subjectivit. Future Antrieur, Paris, n. 6,1991, p. 277.

    22 Giuseppe Cocco. Trabalho e cidadania. Op. cit. p. 160.

  • REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    A MATERIALIDADE DO TRABALHO E O TRABALHO IMATERIAL 33

    O que , exatamente, a imaterialidade do trabalho imaterial?

    O trabalho imaterial se caracterizaria, segundo nossos autores, pela ex-tenso anloga difuso do poder a toda a sociedade da produo a todotecido social. Denominam esta difuso de desterritorializao.23 Assim comoa identidade capital/totalidade social levou ao desaparecimento do locus dopoder, teria tambm levado ao desaparecimento do locus da produo, a fbri-ca. Tal como o poder passou a ser o poder em sociedade, a produo passou a serrealizada em todas as relaes sociais. A desterritorializao do poder irmgmea da desterritorializao da produo e, se com ela desaparece o confron-to entre distintos locus de poder (a burguesia e o proletariado, por exemplo),agora tambm desaparece a distino entre trabalho produtivo e improdutivo,entre classe produtora da riqueza e as outras classes parasitrias, etc. Todos osindivduos e todas as relaes sociais seriam igualmente produtivos.24

    Este o cerne do trabalho imaterial. A identidade absoluta capital/sociedade tornaria produtivos todos os indivduos e todas as suas atividades.Com o que, segundo eles, estaria superada a alienao. Por duas razes.Primeiro porque, superada a distino entre produo e consumo, superar-se-ia a distino entre produo e fruio. Segundo, porque, sendo tudoigualmente produtivo, no haveria mais a separao entre o trabalho inte-lectual e o trabalho manual.25

    A Terceira Itlia um caso ao qual recorrem com freqncia paraexemplificarem o que seriam os novos territrios produtivos delimitados pelotrabalho imaterial: as oficinas domsticas so integradas por redes de comu-nicao e circulao de mercadorias e projetos, de dinheiro e peas acabadasou semi-acabadas, ao redor de um eixo que articula as demandas de mercadocom a produo propriamente dita. Teramos aqui, a acreditar nos nossos au-tores, tanto uma superao da alienao como a cesso do comando da produ-

    23 Idem. p. 86.

    24 Maurizio Lazzarato Le cycle de la production immatrielle. Op. cit., p. 193.

    25 Esse conceito de alienao mereceria, por si s, um outro artigo. Para tais autores, a alienao umprocesso gnosiolgico no qual o sujeito no se reconhece no produzido. Retiram o solo ontolgico daalienao cuja essncia , hoje, o controle da produo pelo capital. Fica aqui apenas uma meno enossa expectativa que um estudo crtico aborde mais essa faceta da concepo de mundo dos tericosdo amor para o tempo.

  • 34 SERGIO LESSA

    REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    o ao trabalhador social.26 O trabalhador seria proprietrio de sua mqui-na, das matrias-primas, organizaria a produo e seria, ainda, o proprietriodo produto final. No haveria, portanto, a separao entre o produtor e osmeios de produo que caracteriza a alienao capitalista.

    Uma observao isenta, contudo, revela exatamente o oposto. Foradopela crise econmica e pelo desemprego, o trabalhador obrigado a compraruma mquina e instal-la em sua prpria casa. Seu rendimento depende,agora, imediatamente da sua produo, uma forma contempornea do velhosalrio por peas que Marx analisou em O Capital. As horas de trabalho semultiplicam. Os custos de administrao e gerncia so, em parte ao menos,assumidos pelo prprio trabalhador. Ele apenas pode ser o trabalhador parcialde um processo de trabalho que estruturado fora de sua casa e cuja lgica muito maior que a relao domstica que ele estabeleceu com a sua mquina. isso que reconhecem os autores em exame quando afirmam que o empre-srio determina as condies da produo27 ao conferir-lhe um sentidoordenado, coeso e completo.28 O produtor domstico da Terceira Itlia , naverdade, um operrio to explorado que, para poder trabalhar, deve fornecerparte do capital constante (a mquina e as instalaes de sua moradia), partedos custos administrativos (ele seu prprio capataz) e abrir mo de todaproteo social como aposentadoria, salrio desemprego, frias, etc. Alm dis-so, perde tambm o instrumento que historicamente o auxiliou na negociaocom os capitalistas: o sindicato. Fazendo curta uma longa histria, o que ima-ginam nossos autores ser o fim da alienao sua mxima potencializao.Nos novos territrios produtivos, o trabalhador operrio de si mesmo29 eincorpora como suas, pessoais, as exigncias da reproduo do capital antes aele externas. Seria sequer imaginvel uma reificao mais extrema? E issoque os partidrios do trabalho imaterial consideram como a independnciada atividade produtiva frente organizao capitalista da produo.30

    26 Michael Hardt, e Antonio Negri. Labor of Dionysus. Op. cit., p. 28,278.

    27 Antonio Negri. O empresrio poltico. Op. cit. p.61.

    28 Giuseppe Cocco. Trabalho e cidadania. Op. cit. p.21.

    29 Esta formulao nos foi sugerida por Duarte Pereira.

    30 Antonio Negri. Marx beyond Marx. Op. cit. p. 91.

  • REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    A MATERIALIDADE DO TRABALHO E O TRABALHO IMATERIAL 35

    O que temos na Terceira Itlia, em suma, uma forma mais intensa daexplorao do trabalho pelo capital. Ela repe algumas relaes querelembram as formas da manufatura pr-industrial, mas com outra funosocial, pois integradas a um circuito de valorizao do capital historicamen-te distinto daquele do sculo XVII ou XVIII. O novo territrio produtivopossibilita uma extrao de mais-valia to intensa que compensa com sobraso fato de o montante a ser retirado de cada unidade produtiva domsticaser relativamente baixo. Tal como antes, tambm na Terceira Itlia o capi-tal mantm o controle da produo, com a agravante que, nas novas condi-es, sindicatos e greves no so mais instrumentos com os quais os oper-rios, no passado, se protegiam pontualmente da explorao. A afirmao deque na Terceira Itlia o capital teria cedido o controle da produo para otrabalhador social no passa, portanto, de uma fbula.

    Isto posto, torna-se menos difcil compreender o prolixo texto de Lazzarato,Le cycle de la production immatrielle, de longe a mais precisa definioque nos oferecem de trabalho imaterial. Ele inicia por afirmar que o traba-lho imaterial inclui a produo e reproduo da comunicao e, portanto,seu contedo mais importante: a subjetividade. Daqui que a atividadeesttica deveria ser a referncia para o trabalho imaterial.31

    As categorias imanentes ao trabalho so a teleologia, a causalidade, aobjetivao, a exteriorizao (Entusserung) e, com as devidas e cuidadosasmediaes, a alienao (Entfremdung). Nada disso pode ser encontrado nadefinio de Lazzarato. Para este autor, as diferenas especficas dos momen-tos que compem o ciclo de produo do trabalho imaterial so:

    1) O trabalho imaterial se constitui sob formas imediatamente coletivase no existe por assim dizer seno sob a forma de rede e fluxo.32 Isto signi-fica que a singularidade dos atos de trabalho concreto33 se dissolve na redeque articula as formas coletivas que apenas existem enquanto fluxo.

    31 Maurizio Lazzarato Le cycle de la production immatrielle. Op. cit. pp.111,116-7.

    32 Idem, p.117.

    33 Lembrar que o antnimo de trabalho abstrato (isto , o trabalho explorado pelo capital) otrabalho emancipado. O trabalho concreto se refere singularidade de cada ato de trabalho, seja eleexplorado pelo capital ou emancipado. A distino entre o trabalho concreto de um marceneiro e deum pedreiro se mantm mesmo sob o trabalho abstrato mais reificado, etc.

  • 36 SERGIO LESSA

    REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    2) O produto ideolgico torna-se para todos os efeitos uma mercado-ria.34 As novas formas de ver, de sentir, demandam novas tecnologias e no-vas tecnologias demandam novas formas de sentir e ver.35 Como a mercado-ria tornou-se produto ideolgico, nada da metafsica do valor que distin-gue valor de troca e valor de uso, nada do fetichismo da mercadoria.

    Detenhamo-nos rapidamente sobre este ltimo argumento. Em Marxbeyond Marx, publicado alguns anos antes do texto de Lazzarato, Negri sealonga na crtica ao que denomina objetivismo de Marx. Segundo ele, oequvoco metodolgico central de Marx teria sido tomar a mais-valia, otrabalho produtivo e improdutivo, etc, como categorias econmicas. En-quanto categorias econmicas, elas se realizariam no mercado, um espaodemocrtico porque opera a troca de equivalentes.36 A troca de equivalen-tes, para nossos autores, seria uma relao democrtica porque eqitativa!Mercado e explorao so, desse modo, dissociados. a partir dessadissociao que adquire sentido a afirmao de que, ao tratarmos a mais-valia como uma categoria econmica, estaramos velando a explorao.

    Para superar tal velamento, sempre segundo eles, deveramos superar oobjetivismo marxiano e colocar a mais-valia como uma relao imediatamentepoltica. E, enquanto relao poltica, seria um confronto entre subjetivida-des. Teria sido justamente esse objetivismo de Marx que, ao velar o carterde dominao poltica de categorias como mais-valia e trabalho abstrato, teriaaberto o terreno no apenas para o economicismo da Segunda e Terceira in-ternacionais, mas tambm para o stalinismo, para a burocracia dos partidoscomunistas dos pases ocidentais e assim por diante. Esse mesmo objetivismoteria forado Marx a buscar, na essncia da mercadoria, o que eles entendemser a metafsica duplicidade entre dois valores, o de uso e o de troca.

    A crtica radical desse objetivismo, desde Marx at nossos dias, apenasseria possvel por uma postura diametralmente oposta: um subjetivismo

    34 Temos, nessa passagem, a importao de um dos dogmas do ps-modernismo: A relao defornecedores e usurios de conhecimento (...) atualmente tende, e tender cada vez mais, a assumir aforma j tomada pela relao de produtores de mercadoria e consumidores das mercadorias (...), isto, a forma de valor. Jean-Franois Lyotard. The post-modern condition. Minneapolis: University ofMinnesota Press, 1984, p. 5.

    35 Maurizio Lazzarato. Le cycle de la production immatrielle. Op. cit. p.118.

    36 Antonio Negri. Marx beyond Marx. Op. cit., p. XXVIII-XXIX.

  • REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    A MATERIALIDADE DO TRABALHO E O TRABALHO IMATERIAL 37

    que colocasse a poltica como a essncia de todas as relaes de dominaoe explorao. Com essa operao cancela-se o fundamento ontolgico-ma-terial da poltica e o poder deixa de ter nas relaes de produo sua basefundante. Perde-se, tambm, o fundamento ontolgico-material das merca-dorias que, ento, so homogeneizadas como produtos ideolgicos. Comodecorrncia, tais autores perdem a possibilidade de distinguirem entre osservios e o restante das mercadorias. A capacidade heurstica, como diriaJos Paulo Netto, de tais teorizaes vai diminuindo a cada passo.

    3) J que todas as mercadorias so, agora, ideolgicas, o pblico temuma dupla funo produtiva: a) enquanto quele a quem o produto ideo-lgico se destina e, portanto um elemento constitutivo da obra e, b)enquanto receptor da mercadoria. A recepo , ento, (...) um ato criativoe parte integrante do produto.37 A aquisio e o consumo so, assim,igualados ao ato de produo.38

    4) Se, no fordismo, era o capital que impunha as inovaes segundo asnecessidades de sua reproduo, agora a situao seria completamente ou-tra. Com o fim da alienao, a inovao tem sua gnese no desenvolvimentodos indivduos. Libertos da alienao capitalista pelo estilo de vida co-munista,39 os indivduos so agora indivduos sociais que integram, como ato da recepo, a esfera produtiva. Esta integrao se daria nos novosterritrios produtivos, na sociedade-fbrica. Nessa sociedade-fbrica, osprocessos abertos de criao substituem os processos fechados do antigomodo de produo capitalista. Organizados pela comunicao,40 tais pro-cessos abertos so portadores dos valores e [da] genealogia da inovao,as quais seriam gestadas no prprio desenvolvimento dos indivduos agoratornados sociais. Em poucas palavras, produo e fruio so agora idnti-

    37 Maurizio Lazzarato. Le cycle de la production immatrielle. Op. cit., p. 118.

    38 Curioso que, para esses autores, parece no ser problema a distino simblica, ideolgica,espacial, enfim, entre um shopping center que vende a camiseta da Benneton e o trabalhador que aproduziu em sua prpria casa e com sua prpria mquina. Temos aqui locus radicalmente apartadoscom funes epidermicamente muito distintas: se a recepo parte integrante do produto,porque o locus da produo e da recepo no seria exatamente o mesmo?

    39 Antonio Negri. Marx beyond Marx. Op. cit., p. XVI.

    40 Maurizio Lazzarato. Le cycle de la production immatrielle. Op. cit., p. 118.

  • 38 SERGIO LESSA

    REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    cas porque a recepo e a produo estariam integradas nos processos aber-tos de criao que caracterizam o trabalho imaterial.

    Com isto, Lazzarato pretende ter demonstrado a hiptese de que aquiloque produtivo o conjunto das relaes sociais (aqui representado pelarelao autor-obra-pblico).41 Nada, portanto, da distino entre trabalhoe capital, entre burgueses e operrios. Todos seriam agora sociais: traba-lhador social, capital social, indivduo social. No novo modo de pro-duo, os trabalhadores no mais so indivduos comprados pelo capitalis-ta. So antes sujeitos ativos no comando do amlgama produo/circulao/consumo.42 Nenhum espao na produo, portanto, para a velha luta declasses e os conflitos antagnicos entre proletariado e burguesia. Os confli-tos que ainda existem brotam dos resqucios das velhas ideologias que tei-mam em no desaparecer. O comando do capital s pode agora se afirmar doexterior da vida da nova sociedade, pelo domnio das tecnologias da co-municao e de informao.43 Um novo terreno de luta se abriu diante dens e a questo da subjetividade est no seu centro e a palavra de ordem,agora, dominar a comunicao.44

    O nico argumento com alguma substncia deste texto de Lazzarato que, hoje, produo e consumo seriam uma e mesma coisa porque a atitudedo consumidor determina a produo. Fora do discurso prolixo dos nossosautores, a tese evidentemente descabida: o que predominantemente de-termina qual necessidade pode ser atendida ou mesmo qual a nova neces-sidade que pode se apresentar como demanda de mercado so as possibi-lidades da capacidade produtiva j instalada (maquinrios, tecnologia, capa-citao da mo-de-obra, energia disponvel, etc.). Ou, em uma linguagemmais precisa, o desenvolvimento das foras produtivas, tal como no passado,tambm hoje o momento predominante na delimitao do horizonte daspossibilidades abertas ao desenvolvimento do consumo. Se a demanda por

    41 Idem, p.119.

    42 Michael Hardt, e Antonio Negri. Labor of Dionysus. Op. cit., p.273-4. Vale lembrar que, diferente doescravo, o trabalhador nunca foi comprado pelo capitalista, apenas a sua fora de trabalho. Deta-lhes como esse, contudo, no parecem atrapalhar nossos autores.

    43 Maurizio Lazzarato. Le cycle de la production immatrielle. Op. cit., p. 119.

    44 Idem, p.60.

  • REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    A MATERIALIDADE DO TRABALHO E O TRABALHO IMATERIAL 39

    uma camiseta amarela e no mais vermelha pode impactar rapidamente aproduo na Terceira Itlia, no porque o consumo tornou-se produti-vo, mas porque a reproduo do capital tornou necessria uma estruturaprodutiva capaz de responder s demandas do mercado mais rapidamenteque no passado. No temos aqui qualquer consumo produtivo ou qual-quer identificao entre produo e recepo, mas apenas e to somen-te uma forma mais gil de resposta s demandas postas pelo mercado. Noh nada, absolutamente nada, que justifique a tese de nossos autores.

    O texto de Lazzarato nos obriga, ainda, a uma rpida referncia a umaquesto metodolgica da maior relevncia: a do seu, digamos, exemplar esti-lo de definio ao explicar o que viria a ser o trabalho imaterial. Ao seafastarem do objetivismo de Marx, pretendem tais autores terem tambm seafastado do racionalismo e preciso (que denominam de rigidez e estreiteza)de suas definies. Nos apresentam, assim, um novo estilo de definio: nosdescrevem como funcionaria o trabalho imaterial, mas no o definem. Sabe-mos que ele funciona em rede, que um fluxo universal, que nele recep-o, circulao e produo so todos um e a mesma coisa pela mediaodos processos abertos organizados pela comunicao. Somos informadoscomo ele funciona, mas no somos ditos o que ele . No dizer de um comentador,ao recusarem o objetivismo racionalista de Marx, eles no mais definemseus conceitos, apenas divagam sobre os mesmos.45 No iremos to longe.Diremos que eles comentam, mas no definem, seus conceitos. Mesmo quan-do se trata de uma categoria to decisiva como a do trabalho imaterial, elessugerem, indicam, comentam, de tal modo que, ao final do texto, fica-se comuma vaga idia ao que eles se referem. Como essa uma opo metodolgicaconsciente, as conseqncias so as mais graves. Principalmente quando setrata da produo de cincia. Mas, sabemos, esse o preo para se transitarda tradio marxiana para o terreno da ps-modernidade.46

    45 Antonio Negri. Marx beyond Marx. Op. cit., p. XXXI.

    46 A. Sokal, e J. Bricmont. Fashionable nonsense postmodern intellectuals abuse of science. Londres:Profile, 1998. Publicado no Brasil com o ttulo de Imposturas Intelectuais, ao invs da traduo mais literalcomo Bobagens que esto na moda, nos oferece um quadro estarrecedor das conseqncias desse tipo demanipulao dos conceitos cientficos. Nos casos que analisa (de Lacan a Latour, de Deleuze e Guattaria Julia Kristeva) so inimaginveis os absurdos a que chegam ao retirarem conseqncias filosficas deproposies cientficas que no dominam e com uma metodologia que nada tem de cientfica.

  • 40 SERGIO LESSA

    REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    Para passarmos, finalmente, questo da imaterialidade do trabalho, su-mariemos nosso percurso. O trabalho teria se convertido em trabalhoimaterial:

    1) porque a mercadoria seria, agora, ideologia. Porque no haveria maisalienao e, portanto, estaria superada a separao entre produo e fruio,entre trabalho e consumo, entre produo e recepo;

    2) porque no haveria, hoje, mais qualquer atividade improdutiva ouclasse parasitria: sociedade e produo seriam idnticas; tudo e todos se-riam produtivos, pois partcipes dos processos abertos de gerao das ino-vaes das redes organizadas pela comunicao.

    Ora, por que o trabalho seria agora imaterial? Concedendo, apenas emfuno do argumento, que as teorizaes de Negri, Hardt e Lazzarato fos-sem verdadeiras, por que a generalizao da produo a toda a sociedadefaria com que o trabalho se tornasse imaterial? Por que seria imaterial otrabalho elevado sua mxima generalizao possvel? Por que, ao invs detrabalho universal (que seria uma expresso muito mais adequada paraexpressar a fuso produo/vida que, sempre segundo eles, caracterizaria ops-fordismo), optaram por trabalho imaterial? Porque, como veremos,eles compartilham da mesma concepo ontolgica da Segunda Internacio-nal e do stalinismo, a qual restringe a materialidade coisalidade natural.Como as idias no possuem massa nem so energia (como o magnetismo oua gravidade), no lhes resta seno o absurdo de afirmarem como imateriala ideologia. Perdem, assim, a possibilidade de reconhecer a ideologia comouma categoria objetiva do mundo dos homens, como um complexo que exercefora material na reproduo social.

    Uma das principais dificuldades no exame do trabalho reside no fatode ser ele sntese entre a natureza e o ser social. Enquanto tal, o traba-lho uma categoria nica. Apenas ele opera esta fuso peculiar dasrelaes e entes qumicos, fsicos e biolgicos da natureza com as rela-es e objetos exclusivamente sociais (as idias, as relaes sociais, osobjetos criados pelos homens). A fonte de algumas das maiores dificul-dades para apreender teoricamente o trabalho reside precisamente nes-sa sua caracterstica, a de ser, digamos assim, fronteirio entre a natu-reza e os homens. A esta altura do texto, no nos resta outra opo senotentar sumariar esse problema, antecipadamente solicitando a boa von-

  • REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    A MATERIALIDADE DO TRABALHO E O TRABALHO IMATERIAL 41

    tade do leitor para as inevitveis lacunas em um tratamento to resumi-do de um tema to complexo.47

    O que caracteriza a natureza uma articulao entre a esfera da vida eo mundo inorgnico. Essa relao possui duas caractersticas fundamentais:por um lado, a vida apenas existe convertendo a energia e as substnciasinorgnicas em tecidos e processos biolgicos. isto que denominamos, demodo mais geral, alimentao: a converso pelos seres vivos, do inorgnicoem vida. H aqui, portanto, uma relao de dependncia: sem o inorgnico,nada de vida. A segunda caracterstica que nenhum processo biolgico,por mais primitivo, pode ser reduzido aos processos fsicos e qumicos daesfera inorgnica. Seus processos, suas leis, os seus entes, etc no se confun-dem sequer superficialmente com o inorgnico. A vida marcada pela re-produo biolgica, um processo distinto de tudo o que ocorre na esferainorgnica.

    A relao entre o mundo inorgnico e o ser biolgico, em suma, dupla:o ser biolgico apenas pode existir tendo por base o ser inorgnico; todavia,a vida no redutvel aos processos inorgnicos.

    Do ponto de vista que nos interessa, a imaterialidade do trabalho, atotalidade da natureza possui materialidades que tm em comum um tra-o decisivo: desconhecem qualquer ente semelhante a uma idia ou aovalor de troca de uma nota de dinheiro. Ou, em outras palavras, no mundoda natureza, os entes possuem massa ou, ento, tm a forma de energia (aluz, a gravidade, o magnetismo, etc.).48 Esta a materialidade natural.

    Ao incluirmos o mundo dos homens, as coisas se alteram e secomplexificam.

    47 Aos interessados em um tratamento mais circunstanciado, cf. G. Lukcs. O trabalho, mimeo (Trad.Ivo Tonet), captulo do v. II/I de Per uma Ontologia dellEssere Sociale. Roma: Riuniti, 1976. S. Lessa.Mundo dos homens. Trabalho e ser social. So Paulo: Boitempo, 2002 e A centralidade do trabalho emLukcs. Servio Social e Sociedade, n. 56, 1996.

    48 H, aqui, um importante detalhe que apenas mencionaremos: esta constatao em nada se ope aofato de, tambm na natureza, o real operar abstraes. A relao singular/universal existe tanto nomundo dos homens quanto na natureza, o que a difere a sua distinta qualidade ontolgica quando setrata do ser social ou natural. As abstraes operadas pelo real esto, analogamente, presentes tantona natureza quanto no mundo dos homens, contudo, com determinaes ontolgicas radicalmentediversas. Sobre essa questo, cf. G. Lukcs. Os princpios ontolgicos fundamentais de Marx. So Paulo:Cincias Humanas, 1979, p. 49 e ss., que contm vrias remisses aos textos de Marx.

  • 42 SERGIO LESSA

    REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    Por um lado, porque o mundo dos homens depende da natureza paraexistir. Sem a reproduo biolgica dos humanos no h qualquer sociedadepossvel; o ser social tambm depende da natureza para sua existncia.

    Por outro lado, porque os processos sociais no so redutveis aos proces-sos naturais. Ou, dito de outro modo, o mundo dos homens se reproduz demodo inteiramente distinto da reproduo biolgica. As lutas de classe, oscomplexos ideolgicos como a arte, a assistncia social, a religio, a polti-ca, a educao, etc, para ficarmos apenas com alguns exemplos, so entesque apenas existem enquanto complexos sociais. A histria humana no ahistria da espcie Homo sapiens, mas a histria do desenvolvimento dasrelaes sociais, das sociedades humanas. Claro, sem reproduo biolgicano h qualquer reproduo social mas isto no diminui o fato de a repro-duo do mundo dos homens ser um processo histrico irredutvel repro-duo natural, para no falar dos processos inorgnicos.

    O ser social, em suma, uma esfera ontolgica distinta das esferas natu-rais. A substncia da qual feita a histria humana (as relaes sociais quese explicitam nas personalidades dos indivduos, nas instituies sociais, noscomplexos ideolgicos, nos processos de alienao,49 etc.) irredutvel substncia natural. No h como se identificar qualquer momento da exis-tncia humana (nem sequer o nascimento ou a morte) aos processos natu-rais, ainda que repetimos estes permaneam bases indispensveis exis-tncia humana.

    Portanto, j que o trabalho pertence ao ser social, a prpria concepoda imaterialidade do trabalho insustentvel. O trabalho tem por seu ndulomais decisivo a transformao do real, no h nenhum ato de trabalho queno transforme o real. Nem mesmo na concepo de Hardt, Lazzarato eNegri: tambm para eles o trabalho (mesmo o imaterial) produziriaentificaes trocadas enquanto valores de uso no mercado.50 Ora, se o tra-balho imaterial produziu algo e se essa produo possui um valor de uso e

    49 No sentido de Entfremdung.

    50 A troca de dinheiro entre proletrios valor de uso (Antonio Negri. Marx beyond Marx. Op. cit.p.138). Deixemos de lado o evidente absurdo da troca de valores de uso no mercado. A troca demercadorias sempre o intercmbio de valores de troca. Mas, para aqueles que entendem serdemocrtica (Op. cit., p. XXVIII-XIX) a troca de equivalentes no mercado, no surpreendente queno se dem conta de absurdos como esse.

  • REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    A MATERIALIDADE DO TRABALHO E O TRABALHO IMATERIAL 43

    trocada, tem necessariamente que possuir propriedades, utilidades, e, por-tanto, algum tipo de materialidade. Se o trabalho produz algo que tem exis-tncia fora da subjetividade que o criou e s desse modo pode ser trocadoentre indivduos pela mediao do mercado inegvel que esse objetopossui uma materialidade portadora de utilidade, uma materialidade queexpressa (na acepo de nossos autores) as necessidades de quem as produ-ziu. Portanto, mesmo no interior do referencial de Negri, Lazzarato e Hardt, aqualificao de imaterial que conferem ao trabalho extremamentequestionvel.

    Se abandonarmos o referencial dos tericos do trabalho imaterial, contu-do, esse absurdo torna-se ainda mais manifesto. Se o trabalho deve ser imaterial,das duas uma. Ou ele no se realiza na matria ou, segunda alternativa,mesmo se realizando na matria deve resultar em um produto imaterial. Algoimaterial , a rigor, inexistente. A no ser que nos fixemos naquelas concep-es de materialidade, tpicas do economicismo da Segunda Internacional edo stalinismo, que negam a fora material das idias e complexos ideolgicosna histria do homem. Tais concepes restringem a materialidade apenas forma especfica da materialidade da natureza. Como as idias no possuemmassa e nem so energia (como a luz, a gravidade, etc.), seriam imateriais.E a produo dos servios, aquelas mercadorias que no se separam em obje-tos autnomos de seus produtores e que no possuem, por isso, massa ouextenso, seriam do mesmo modo imateriais.

    Negri, Hardt e Lazzarato, tal como os marxistas vulgares, restringem amaterialidade coisalidade do mundo natural, desconhecendo amaterialidade especfica do mundo dos homens no interior da qual as idiaspossuem fora objetiva. por isso que, ao afirmarem que as mercadorias seconverteram em produtos ideolgicos, so levados a caracterizar a produ-o contempornea como trabalho imaterial.

    A crtica radical que tais autores pretendem ter feito ao marxismo vulgarno passa de flatus vocis. Eles, no fundo, compartilham da mesma concepoontolgica do economicismo da Segunda Internacional e do stalinismo: aimaterialidade que pretendem imputar ao trabalho contemporneo decor-rncia de uma concepo de materialidade que a identifica s formas natu-rais. Perdem, com isso, a possibilidade de reconhecerem as idias (e os com-plexos ideolgicos) como foras materiais na determinao da histria dos

  • 44 SERGIO LESSA

    REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    homens. Perdido o elo ontolgico entre a natureza e o mundo dos homens,entre a materialidade natural e a materialidade social, no lhes resta alter-nativa ao economicismo seno o idealismo. Destacam as idias do seu fun-damento material, convertem-nas no absurdo de algo imaterial e, em segui-da, proclamam que o trabalho estaria sendo abolido pelo comunismo.

    Com a observao a seguir, no desejamos sugerir que Negri, Hardt eLazzarato sejam hegelianos; efetivamente no o so. Hegel, diferente dessesautores, cultivava a preciso conceitual, o racionalismo, era metodo-logicamente aferrado categoria da totalidade. E tinha, acima de tudo, umaenorme sede de histria. O que tais autores compartilham com os jovenshegelianos de A sagrada famlia sua atitude livre face ao objeto. Em ummovimento anlogo ao dos jovens hegelianos criticados por Marx, que inver-teram a seqncia histrica (a mquina a vapor como o coroamento, e no oincio da Revoluo Industrial; as cidades fabris antes das fbricas, etc.),Negri, Hart e Lazzarato invertem causa e efeito tomando a reestruturaoprodutiva como conseqncia e no causa do fechamento de postos detrabalho. Para eles, como vimos, foram os operrios que se recusaram ao tra-balho fordista e no os capitalistas que, premidos pela crise e pela concorrn-cia mais acirrada, teriam expulsado os trabalhadores de seus postos de traba-lho. A causa do fechamento dos postos de trabalho seria os prprios operri-os, e no o processo de autovalorizao do capital. No mesmo caminhar, to-mam por comunista um territrio produtivo que nada mais que umadas formas mais intensas da explorao do trabalho pelo capital: a TerceiraItlia. E, no mesmo diapaso, substituem a acumulao primitiva pelo amorpara o tempo como fora motriz da histria moderna.

    Entre o amor para o tempo e o trabalho imaterial, portanto, h um fiocondutor. Proclama[m] histria: deves ter ocorrido de tal ou qual modo51 .Nossos autores deduzem a histria a partir de seu axiomtico ponto de parti-da, o amor para o tempo por se constituir. Postulam, ento, que viveramosa transio para o comunismo. Nessa transio, o trabalhador social e oempresrio poltico se complementariam num movimento de reconciliaodo capital com o trabalho: a sociedade sem classes promovida pela subje-tividade comunista. E, nessa substituio da histria por delrios, po-

    51 K. Marx. La sagrada familia. Op. cit. p.77-8.

  • REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    A MATERIALIDADE DO TRABALHO E O TRABALHO IMATERIAL 45

    dem falar com aparente seriedade da crtica ao economicismo stalinista pelotrabalho imaterial, da recusa ao trabalho, da transio em curso parao comunismo e da liberao humana do trabalho!

    , em suma, por um movimento de substituio da histria por seus con-ceitos imaginrios que nossos autores chegam ao trabalho imaterial.

    No difcil, agora, percebermos que, sob a fraseologia de esquerda deNegri, Hardt e Lazzarato, encontramos uma concepo de mundo bastanteconservadora. Ela nitidamente idealista. Substitui a histria pelo movi-mento de conceitos cujos fundamentos no esclarece: puros axiomas. E des-se construto puramente axiolgico deduzem o trabalho imaterial enquan-to fundado no estilo de vida comunista pelo qual o trabalhador optariaao recusar o trabalho fordista.

    Tal falsificao do real cumpre, hoje, uma funo ideolgica de no pe-quena monta: demonstra a impossibilidade da revoluo e declara, uma vezmais, a reconciliao do capital com o trabalho. E, com um diferencial deutilidade para a ideologia dominante; apresenta-se como de esquerda.52

    Fantasias existem porque h pessoas dispostas a nelas acreditarem. Qua-se sempre as fantasias que recebem maior audincia so as que servemcomo consolo para a desumanidade e os sofrimentos das nossas vidas.Outras vezes, so as que interferem na luta de classes induzindo a deter-minadas posturas e favorecendo a recusa de outras. No atual contexto,escritos como os de Paulo Coelho e fantasias como as de Negri, Lazzaratoe Hardt (ao lado de tantas outras como as do marxismo analtico, ascrenas voluntaristas na fora da solidariedade para a superao da mis-ria de milhes, o poder mgico com o qual categoria da esperana porvezes revestida, numa lista que poderia ser muito maior) talvez possam terum fundamento ltimo comum: fornecem o consolo afetivo de que as do-res de uma revoluo no seriam mais hoje necessrias porque a mera

    52 Meu artigo publicado pela Crtica Marxista, mencionado na nota 1, foi taxado de infame porafirmar que a publicao de um dos livros dos tericos do trabalho imaterial foi, no Brasil, financiadapelo grande capital. O que poderia parecer como uma deduo de nossa parte, no passa de meraconstatao de um fato. O livro Empresrios e empregos nos novos territrios produtivos, Op. cit., temcomo co-editor o Consrcio do Plano Estratgico da Cidade do Rio de Janeiro, que conta entre seusmembros a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, Bradesco, O Dia, Grupo Bozano, Simonsen, IBM, OGlobo, Unisys, Siemens, Universidade Estcio de S, entre outros.

  • 46 SERGIO LESSA

    REVISTA OUTUBRO, N. 8, 2003

    opo por um estilo de vida alternativo seria suficiente para o fim detodas as nossas misrias e infelicidades.53

    Se ningum acreditasse nas fantasias, repetimos, elas sequer existiriam.Contudo, no devemos nos iludir: fantasias e falsas esperanas no podemnos conduzir a qualquer outra parte seno manuteno da ordem do capi-tal, com todas as suas gravssimas ameaas humanidade. justamenteessa, a meu ver, a funo social da concepo de mundo proposta pelostericos do trabalho imaterial.

    53 Antonio Negri. El poder constituyente. Op. Cit,. p.XVI.