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Vacinação pelo empregador joga contra a solidariedade e o Estado Social 1 Jorge Luiz Souto Maior 2 Valdete Souto Severo 3 Certamente, a maioria de nós está bastante abalada por conta dos efeitos desastrosos da Covid19. Todos temos amiga e amigos, conhecidas e conhecidos ou parentes que sofreram com a doença; muitos perdemos pessoas próximas. A pandemia afeta os corpos de modos diversos, atinge também as crianças, leva à morte pessoas que não estão em grupos considerados de risco, provoca sequelas neurológicas mesmo naquelas e naqueles em que os sintomas são considerados leves. Trata-se, portanto, de uma situação que traz desafios constantes para a nossa sanidade física e mental. No Brasil, já passamos de 217 mil pessoas mortas e mais de 8,8 milhões de pessoas infectadas, em números oficiais que não dão conta da realidade, pois sabemos que de fato não há testagem e, portanto, muitas das pessoas contaminadas e que seguem contaminando não estão sendo contabilizadas. Um flagelo social que tem causado, inclusive, muitos efeitos colaterais que não são discutidos com a seriedade que mereciam. A ausência de transplantes, a falta de atendimento para doenças que não estão relacionadas à pandemia, em função do deslocamento dos recursos dos hospitais, que já são escassos, para o salvamento ou a manutenção da vida de pessoas infectadas por Covid-19 são efeitos que têm provocado a morte precoce de muita gente. 1 Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil. 2 Presidente da Associação Americana de Juristas (AAJ), desembargador do TRT-15 (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região Campinas e interior paulista) e professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (desde 2002). 3 Presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD), juíza do Trabalho do TRT-4 (Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região Rio Grande do Sul), doutora em Direito do Trabalho pela USP e mestre em Direitos Fundamentais pela PUC-RS.

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Page 1: Social1 - Análises de Políticas de Saúde no Brasil

Vacinação pelo empregador joga contra a solidariedade e o Estado

Social1

Jorge Luiz Souto Maior2

Valdete Souto Severo3

Certamente, a maioria de nós está bastante abalada por conta dos efeitos

desastrosos da Covid–19. Todos temos amiga e amigos, conhecidas e conhecidos

ou parentes que sofreram com a doença; muitos perdemos pessoas próximas. A

pandemia afeta os corpos de modos diversos, atinge também as crianças, leva à

morte pessoas que não estão em grupos considerados de risco, provoca sequelas

neurológicas mesmo naquelas e naqueles em que os sintomas são considerados

leves. Trata-se, portanto, de uma situação que traz desafios constantes para a

nossa sanidade física e mental.

No Brasil, já passamos de 217 mil pessoas mortas e mais de 8,8 milhões

de pessoas infectadas, em números oficiais que não dão conta da realidade, pois

sabemos que de fato não há testagem e, portanto, muitas das pessoas

contaminadas e que seguem contaminando não estão sendo contabilizadas.

Um flagelo social que tem causado, inclusive, muitos efeitos colaterais

que não são discutidos com a seriedade que mereciam. A ausência de transplantes,

a falta de atendimento para doenças que não estão relacionadas à pandemia, em

função do deslocamento dos recursos dos hospitais, que já são escassos, para o

salvamento ou a manutenção da vida de pessoas infectadas por Covid-19 são

efeitos que têm provocado a morte precoce de muita gente.

1 Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil. 2 Presidente da Associação Americana de Juristas (AAJ), desembargador do TRT-15 (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região – Campinas e interior paulista) e professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (desde 2002). 3 Presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD), juíza do Trabalho do TRT-4 (Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região – Rio Grande do Sul), doutora em Direito do Trabalho pela USP e mestre em Direitos Fundamentais pela PUC-RS.

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Em meio a tudo isso, surge a vacina, produzida em tempo recorde,

exatamente porque o mundo sabe do risco, para a continuidade da raça humana,

que representa um vírus que em alguns corpos é letal e que tem apresentado

mutações que podem vir a torná-lo ainda mais agressivo ao corpo humano.

Em nosso país, no entanto, na contramão de toda racionalidade pautada

na preservação de vidas, a possibilidade de vacinação nunca foi estimulada pelo

governo federal. Ao contrário, durante todo o ano de 2020, enquanto o presidente

da República exonerava ministros da saúde, promovia aglomerações, fazia

pronunciamentos e aparições sem utilizar máscara e até difundia informações falsas

em relação à vacina, estimulando a utilização de medicamentos preventivos sem

qualquer comprovação científica de sua eficácia, os demais poderes de estado

silenciavam. Os 61 pedidos de impeachment opostos desde o início do mandato do

atual presidente, até hoje não foram processados.

Mesmo a grande mídia, claramente crítica ao governo, nunca chegou ao

ponto de preconizar o afastamento do presidente e isto, acreditamos, conforme

demonstraremos mais adiante, tem a ver com os enormes benefícios financeiros

que o governo federal concedeu ao setor econômico, impondo sacrifícios de ganhos

e de direitos aos trabalhadores e às trabalhadoras.

O colapso do sistema de saúde no Estado do Amazonas foi a crônica de

uma tragédia anunciada, inclusive por escrito, para o Ministério da Saúde, pelo

menos desde o dia 08/1/2021. Ainda assim, no dia 11 de janeiro, o governo reforçou

a recomendação de “tratamento precoce”, sabidamente ineficaz, e inclusive criou

um aplicativo (TrateCOV) indicando esse uso. O ato provocou manifestação

expressa, embora tímida, do Conselho Federal de Medicina.

A verdade é que, em 2018, foi eleito um discurso assumidamente hostil

aos direitos sociais e ao projeto contido na Constituição de 1988 e que, agora,

demonstra de forma ainda mais clara uma de suas consequências inarredáveis, que

é o desprezo à vida. Já na campanha eleitoral, o atual presidente simulou o uso de

uma arma e exortou quem o assistia a “fuzilar a petralhada”. O descaso com a vida

não poderia, portanto, causar surpresa. Desde a chegada da Covid–19 no Brasil,

em fevereiro do ano passado, a insistência de pessoas

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diretamente ligadas ao governo em minimizar os efeitos da doença e até mesmo

em debochar das possibilidades de enfrentamento desse flagelo social por meio da

administração de vacinas tornou ainda mais exigente o enfrentamento desse

momento tão peculiar e triste da nossa história.

Ainda assim, as vacinas foram desenvolvidas e chegaram ao Brasil,

trazendo a esperança de um novo começo. Mas, em razão da falta de um mínimo

de planejamento estatal para tanto, chegaram com atraso e em número muito

inferior àquele que seria necessário.

O uso político, em seu pior sentido, que vem sendo feito da vacinação, é

apenas outra face de uma idêntica conduta perversa. Não existem campanhas de

esclarecimento ou incentivo à vacinação. Não sabemos qual a previsão de tempo

para que os grupos prioritários sejam atendidos. Mas existem eventos midiáticos,

que transformam em pantomina um momento que deveria ser de concentração e

canalização de recursos para a efetivação da prevenção.

Há estudos demonstrando que um plano de imunização, para que

funcione, precisa de tempo, de planejamento e de um número suficiente de vacinas.

Para que a vacina tenha algum efeito social, é preciso que seja ministrada em

primeiro lugar nas pessoas com maior risco de morte, especialmente quando não

há disponibilidade suficiente de doses. Dependendo de quem é vacinado de modo

prioritário, mais pessoas terão sua vida preservada.

Ao contrário, quando pessoas, cujo risco de morte é reduzido, “furam a

fila”, as mortes não são evitadas e toda a população segue convivendo com os

danos diretos, indiretos e colaterais da pandemia. Para imunização, é preciso pelo

menos duas doses da vacina. Se não houver rigor nos grupos vacinados, é evidente

o risco de que algum “furão” receba a primeira, mas não a segunda dose,

desperdiçando, portanto, um imunizante cuja correta utilização poderá significar a

diferença entre superar ou não o flagelo da pandemia.

Entretanto, quando foi anunciada a possibilidade de imunização,

começaram também a proliferar notícias espantosas, como a de que “países ricos

reservam doses e deixam países pobres sem a vacina” ou a de que na Espanha,

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membros da cúpula do Estado Maior foram vacinados, contrariando os protocolos

firmados por países da União Europeia.

No Brasil, o país que, em 2018, justificou sua escolha política com o

discurso anticorrupção, são inúmeras as denúncias de “fura fila”. Enquanto isso,

começam a se multiplicar notícias sobre a negociação de vacinas por clínicas

particulares. Muitas das mesmas pessoas que em 2018 justificaram o voto em um

discurso de violência, abertamente racista e sexista, com o argumento de que

estavam cansadas da corrupção e também muitos daqueles que denunciaram a

falácia do argumento da defesa da moralidade buscam, agora, justificativas para

criarem a sua própria lista de vacinação, dentro de uma lógica que reproduz, isto

sim, uma postura que um dos autores do presente texto, recentemente, sintetizou

com a frase “vacina pouca, meu braço primeiro” ou, de forma ainda, mais sintética

e clara: “egoísmo esclarecido”.

Em meio a um processo de vacinação sem planejamento e insuficiente,

dada a incapacidade governamental de adquirir os insumos ou mesmo o número

mínimo de doses necessárias para que haja um efeito positivo nesse processo de

combate à Covid-19, muitas pessoas estão defendendo a possibilidade de

comercialização privada das vacinas, o que, bem sabemos, atenderia apenas a

pequena parcela da população brasileira que pode prescindir do Estado, porque

tem o dinheiro necessário para garantir a sua dose de imunização.

Furar a fila para tomar a vacina ou construir o discurso de que

determinados grupos devem ser privilegiados com a imunização em detrimento das

pessoas que efetivamente estão sob risco de morte, não é apenas uma conduta

que pode ser classificada como egoísta é, em realidade, corromper as regras do

jogo, obtendo uma vantagem indevida. Implica uma tentativa desesperada (e

ineficaz, diga-se de passagem) de se blindar contra uma doença grave em

detrimento da coletividade, quando essa blindagem depende justamente da eficácia

da imunização da coletividade, cujo risco de contaminação, adoecimento e morte é

mais acentuado.

A prática de furar a fila para tomar a vacina mesmo não pertencendo a

grupo de risco revela, como disse um dos autores do

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presente texto, a incapacidade de pensar a partir da coletividade. Revela, portanto,

a ausência da humanidade que hoje é indispensável para que a raça humana

consiga ultrapassar e vencer esse momento tão ímpar da nossa história recente.

A vacinação não se justifica da perspectiva individual, nem se trata da

cura contra a Covid-19. Aliás, nós nem sabemos por quanto tempo a vacina

realmente nos imunizará. Portanto, tomá-la só faz sentido na perspectiva de nos

protegermos enquanto sociedade, e para que nós estejamos efetivamente

protegidos, é necessário que os grupos de riscos sejam imunizados antes dos

demais.

Trata-se, portanto, da necessidade de adotarmos uma postura ética

diante da vida, de compreendermos o momento presente e a gravidade do que nós

estamos enfrentando.

Mas não é apenas uma questão ética – que já seria o bastante. Trata-se,

também, de uma questão de eficiência e eficácia. Ora, se, diante do “sucesso” da

iniciativa privada, alguém que não pertence a grupo de risco tomar a vacina,

nenhum efeito de preservação de vidas, dentro da lógica coletiva, esse fato trará se

o governo, no mesmo tempo, não conseguir ministrá-la às pessoas que

efetivamente correm sérios riscos de morte e que disseminam com mais facilidade

o vírus. Por consequência, também não terá efeito algum para quem “furou a fila”,

porque essa pessoa continuará convivendo em uma sociedade na qual o

adoecimento e a contaminação estarão presentes. Lembre-se que os efeitos da

pandemia, como se está vendo, vão bem além das mortes por contágio.

Portanto, mesmo que seja possível usar a retórica de que assim se

estaria contribuindo com o processo de vacinação, não faz sentido algum criar

“listas próprias (particulares) de vacinação”, até porque, com a disseminação dessa

prática, que pode gerar a impressão aos grupos privilegiados e dominantes de que

se “safaram” do problema, anula-se a necessária pressão que deve existir sobre as

instituições públicas para que a vacinação eficaz, generalizada e republicana se

proceda o quanto antes.

Se há na sociedade brasileira uma identidade minimamente sincera

contra a corrupção, essa é a melhor hora para

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demonstrar isso, a partir de um alinhamento coletivo, para o enfrentamento dessa

chaga social. Reproduzir a mais mesquinha e inoperante forma de corrupção

representada pela vontade e pelo ato de se vacinar antes dos demais é boicotar

nossa possibilidade concreta de superação da pandemia. Se isso é grave nos casos

individuais que estão sendo denunciados em vários estados do país, torna-se ainda

mais grave quando se verifica a possibilidade de que grupos específicos da

sociedade reivindiquem para si a mesma “benesse”.

E não há qualquer possibilidade de se pensar em exceções a essa regra.

Vejamos a questão do ponto de vista das relações de trabalho.

Há quem possa imaginar, de boa-fé, que como, para algumas atividades,

o trabalho presencial não foi interrompido, seria obrigação do empregador promover

a vacinação de seus empregados e empregadas, o que poderia, inclusive, ser

estabelecido em acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Caso realmente se exija ou se acorde com o empregador, seja ele

responsável, em razão de regra introduzida em norma coletiva, por imunizar os(as)

seus/suas empregados(as), e sendo esta cláusula considerada juridicamente

válida, estar-se-ia conferindo ao empregador uma supremacia frente a todas as

demais instituições e a todos os demais cidadãos, pois para cumprir a obrigação ao

empregador seria dado o permissivo de adquirir vacinas e promover a vacinação de

algumas pessoas antes de todas as demais. Ou seja, poderia fazer o que ninguém

(ou a grande maioria da população) pode fazer, seja por uma questão jurídica, seja

por uma questão econômica. E essa aquisição de vacinas, certamente, se faria junto

ao setor privado, legitimando e incentivando a disseminação (em universo restrito)

da prática.

Ocorre que as vacinas estão sendo produzidas em conjunto e com

enorme esforço coletivo mundial, dentro de um pressuposto pacto para a

preservação de toda a humanidade e não para a consagração de um processo

genocida baseado em seleção “natural”. Então, não tem sentido lógico transformar

a vacinação em práticas isoladas e individualizadas, de modo a atingir apenas (ou

antes) os privilegiados de sempre.

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E se o número de vacinas é um só – e sabidamente ainda insuficiente,

mesmo em âmbito mundial – permitir que uma parcela (ilimitada) seja negociada

por clínicas particulares ou distribuída por empresas para os destinatários que bem

entenderem (mesmo com a contrapartida da “doação” de igual número para o setor

público) significa reduzir a quantidade de doses que poderiam ser, de modo muito

mais eficaz e eficiente, ministradas no sistema público de saúde.

Além disso, as categorias mais organizadas conseguiriam o “benefício” e

estariam, então, em situação de privilégio em detrimento de outras que atuam com

mais elevado grau de risco, como, por exemplo, a das pessoas que realizam

limpeza e conservação em hospitais ou clínicas e que estão, portanto, na linha de

frente do combate à Covid-19.

Mas mais importante que tudo isso é que a vacinação promovida pela

empresa/empregador (de seus empregados) tende a gerar a percepção subjetiva

de um ato de salvação. Uma vez ministrada a vacina, a dívida moral seria imensa,

afinal de contas aquele grupo de pessoas estaria supostamente protegido em

detrimento de todas as demais e isso se deveria à atitude benemerente do

empregador que aceitou a assunção dessa obrigação.

Ademais, como dito por um dos pais do neoliberalismo, Milton Friedman,

“não existe almoço grátis”. Fato é que, mesmo que concebida pelos trabalhadores

como um direito conquistado, a vacina não sairia de graça. A contrapartida uma

hora será exigida, até porque, de certo modo, já estaria estabelecida na base do

negócio jurídico realizado. Afinal, o que são direitos trabalhistas diante da vida

preservada? Como exigir direitos trabalhistas, que, conforme sempre reitera a

retórica empresarial, geram custos, dificultam a concorrência e promovem o

desemprego, de um empregador que se dispôs a elevar as suas despesas para

“salvar” a vida de seus empregados?

Mas há, ainda, uma consequência muito mais grave da admissão dessa

possibilidade. É que uma tal cláusula só seria possível com expressa autorização

do governo, formando-se um pacto velado entre o setor econômico beneficiado com

a medida (ainda que seja apresentada midiaticamente como um sacrifício patriótico)

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e o governo, que conseguiria o apoio necessário para contrapor as iniciativas de

impeachment.

Assim, inclusive, de forma desastrosa para os registros históricos e para

a formulação da racionalidade humana, essencial para a nossa reconstrução social,

política e cultural, restariam não só esquecidos, mas também legitimados todos os

desmandos cometidos no enfrentamento da pandemia, em total desrespeito às mais

de 217 mil vidas perdidas e nos remetendo a um futuro de submissão ao irracional,

ao individualismo egoísta, ao ódio como argumento de poder e à degradação

humana.

Vale reparar que antes do movimento de impeachment ganhar as ruas

nos dias 23 e 24 de janeiro, o governo, em 14 de janeiro, havia dito aos empresários

que a compra de vacinas por particulares seria proibida. No entanto, com o aumento

da pressão sobre o governo, a demanda de um grupo de empresas foi renovada,

em 25 de janeiro, e o governo, depois de tantos meses de inação, em menos de

24h do novo pleito autorizou a compra.

No contexto da formulação dessa mórbida aliança entre o governo

federal, o setor econômico e a grande imprensa (que, interessada ideologicamente

no tema, silencia a respeito), é que se insere a “Minuta de Decreto”, publicada no

DOU, em 21 de janeiro, com o intuito de anunciar que o governo promoverá uma

nova e ainda mais profunda “reforma” trabalhista, mas, desta feita, por meio de

Decreto (ou seja, superando até mesmo o necessário processo legislativo). No

Decreto em questão o governo apresenta sua “proposta” de alteração na regulação

trabalhista brasileira, em um texto normativo com 181 artigos, repletos de incisos e

parágrafos, e para dar a impressão de alguma regularidade “concede” o prazo, até

19 de fevereiro, para que sejam apresentadas sugestões de modificações ao quanto

proposto.

Quando boa parte da sociedade se diz unida contra os desmandos

governamentais no trato da Covid-19, chegando a pleitear o impeachment do

presidente, o governo faz o anúncio de um ato declaradamente antidemocrático e

inconstitucional, com o efeito, inclusive, de piorar ainda mais a condição de vida e

de trabalho da parcela da sociedade que mais tem sofrido

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com ausência das políticas públicas de saúde e de preservação dos empregos, que

é a classe trabalhadora, e o que a grande mídia, tão severamente crítica do governo,

diz a respeito? Nada. Absolutamente, nada!

Não é que não se queira aceitar a “ajuda” do poder econômico do setor

privado para realizar a vacinação, o que não é possível é que essa colaboração se

estabeleça nos moldes de uma aliança comprometedora da função do Estado, da

efetividade de direitos fundamentais e da própria noção de cidadania. Ao “oferecer”

16,5 milhões de doses para um governo que até agora adquiriu apenas 2 milhões

de doses e não apresenta planejamento crível para fazer novas aquisições, esse

“grupo de empresas” não apenas ajuda o Estado como o substitui, assumindo a

narrativa de maior eficiência que, em pouco tempo, se transformará em renovadas

e irresistíveis demandas de privatização, atingindo, inclusive, o próprio SUS, que foi

o verdadeiro e único (para honrar o próprio nome) ente a salvar vidas.

A omissão governamental no enfrentamento da pandemia aparece,

assim, mais como uma estratégia, cuidadosamente elucubrada, para entregar o que

resta do Estado para o setor privado e, estimulando a corrida fratricida e egoísta

pela vacina, quebrar quaisquer laços que pudessem ainda haver em torno da

moralidade e da solidariedade, do que como mera irresponsabilidade – o que já

seria, obviamente, muito grave. Cumpre verificar que o governo acaba de anunciar

uma drástica redução, no percentual de 68,9%, do valor destinado à importação de

equipamentos destinados à pesquisa científica, afetando, negativamente, as ações

do Instituto Butantan e da Fiocruz (entidades corresponsáveis pela produção de

vacinas no país).

O número de doses autorizadas para compra, 33 milhões, também gera

muitas suspeitas, pois, segundo os dados oficiais da PNAD, do IBGE, no trimestre

encerrado em setembro de 2020, havia, no Brasil, 29.366 mil empregados com

carteira assinada no setor privado e as grandes empresas, como se sabe, não são

as maiores empregadoras. Para se ter uma ideia mais precisa, conforme se extrai

dos dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), em dezembro de 2019,

eram 33.004.574 empregados com carteira assinada no setor privado e as

empresas com mais de 1.000 empregados (que parece

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ser o caso das empresas integrantes do tal grupo) eram responsáveis pela

contratação de 4.040.238 trabalhadores. Considerando que o número total de

empregos diminuiu em mais de 10% até setembro de 2020 (sendo certo que

continuou caindo), 16,5 milhões de vacinas é um número bem superior à quantidade

de empregados dessas empresas.

E um dos efeitos mais graves de tudo isso é a completa perda da noção

de cidadania, pois quando o direito à vida deixa de ser exigível do Estado, todos os

demais direitos civis perdem eficácia e daqui a pouco só serão prestados, não como

direitos, mas como obrigações fixadas em cláusulas contratuais, pelo setor

econômico, que se empodera, assim, ainda mais e avança sobre funções e

atividades que são encargos exclusivos do Estado.

Ademais, se as empresas possuem tanto dinheiro assim para gastar, ao

ponto de substituírem o Estado na função de prestação de serviços à população,

está demonstrada a incoerência e a falsidade do discurso da dificuldade econômica

e de vítima do alto custo dos direitos trabalhistas. Aliás, considerando a acumulação

da riqueza proporcionada pela recente “reforma” trabalhista, o certo é que uma parte

desse dinheiro que o grupo de empresas pretende destinar à compra das vacinas

veio, precisamente, do aumento da exploração da força de trabalho das mesmas

pessoas com relação às quais, agora, o grupo diz estar preocupado e se

disponibiliza a “salvar”. E a outra parte provém exatamente das iniciativas do

governo tomadas durante a pandemia, que, por meio da redução de salários e

suspensão de contratos de trabalho, subsidiados pelo fundo público, permitiram a

manutenção (ou até acréscimo) de suas taxas de lucro.

É bastante sintomático e revelador o fato de que as empresas precisavam

de uma redução do custo trabalhista para poderem sobreviver e lhes foi dada a

“reforma” trabalhista. Depois, durante a pandemia, requereram mais reduções, e

lhes foi concedido dinheiro público por meio das MPs 927 e 936. Agora,

apresentam-se como entidades que têm dinheiro de sobra, dispostas a cumprir o

papel que o Estado é proposital e estrategicamente ineficiente para cumprir. Ao

mesmo tempo, o governo, também como tática de preservação da estabilidade

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política, anuncia nova “reforma” trabalhista, que se fará, inclusive, por “Decreto”,

como acima mencionado.

Então, só não vê o que está acontecendo quem não quer.

Impressiona que os sindicatos e as centrais sindicais também estejam,

aparentemente, neste rol dos que não querem ver a realidade à sua volta e não só

admitem essa possibilidade, como também a assumem na perspectiva de uma

“conquista” da categoria. Talvez não percebam que com esse procedimento

passam, elas próprias, a ser “devedoras” da atitude do governo, que fez a

concessão, enfraquecendo a necessária postura crítica frente todos os descasos

com a vida pelo governo cometidos, além de transmitirem para os trabalhadores e

trabalhadoras a noção de que todas as supressões de direitos a que estes foram

submetidos, tanto na “reforma” trabalhista, quanto no correr da pandemia, estariam,

agora, compensadas pelo recebimento privilegiado da vacina, retomando-se, assim,

a lógica da época em que a exploração do trabalho, expondo-se os trabalhadores e

trabalhadoras ao estágio de extrema necessidade, se legitimava pela entrega de

alimentos (salsichas), que eram entregues, aliás, como ato de favor, ou ao período

em que a escravidão se baseava na dívida constituída pelo trabalhador perante

aquele para quem trabalhava, a escravidão por dívida.

Forma-se, assim, uma comunhão de interesses que são contrários à

responsabilização dos atos e omissões governamentais que agravaram

consideravelmente os problemas sanitários, sociais, políticos e econômicos

decorrentes da pandemia e que, ao mesmo tempo, estimulam práticas nefastas à

uma visão republicana e democrática da sociedade, como, por exemplo, a que foi

anunciada pela Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul, de se mover

para viabilizar vacinas para seus associados e os familiares destes.

Todas essas questões precisam ser pensadas, da perspectiva de que se

nós vivemos em sociedade e estamos enfrentando uma doença que gera reações

diferentes em corpos diferentes, que se dissemina de forma pandêmica, ou o nosso

enfrentamento é coletivo e solidário, ou o resultado disso será simplesmente a

criação de brechas e o recalcamento e aprofundamento da noção de captura da

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subjetividade que já está presente nas relações de troca entre capital e trabalho.

Em uma sociedade de trabalho obrigatório, em que trabalhar não é uma

escolha, mas uma condição para poder comprar alimentos, remédios, roupas, pagar

moradia, já há um tanto de captura de subjetividade que faz da assimetria objetiva

da troca uma condição a tornar trabalhadoras e trabalhadores sujeitos que se

sentem gratos pela simples existência de um posto de trabalho. Não é por razão

diversa que na linguagem jurídica brasileira, por exemplo, utilizamos a expressão

“dar emprego”. Também não é por acaso que ouvimos tantas vezes em salas de

audiência os trabalhadores e trabalhadoras pedindo desculpas por terem ajuizado

a ação ou dizendo que jamais fariam tal coisa se tivessem recebido suas verbas

rescisórias, como se o problema estivesse em exercer o direito constitucional de

demandar em juízo e não no desrespeito aos direitos fundamentais de quem

trabalha.

O que está por trás disso é justamente a ideia de gratidão pela existência

mesma de um posto de trabalho, uma espécie de reforço ao nefasto e enganoso

“mito da outorga”. Se os Sindicatos de trabalhadores embarcarem nesta narrativa e

se dedicarem a exigir dos empregadores que sejam eles a ministrar as vacinas,

inclusive adquirindo produtos de empresas privadas, não estarão apenas burlando

a campanha pública de vacinação; não estarão apenas aumentando o risco de que

essa campanha seja ineficaz para conter uma doença tão drástica como a Covid-

19; também estarão reforçando a captura da subjetividade e colocando as

trabalhadoras e os trabalhadores em uma condição de ainda maior subserviência e

de gratidão indevida, pois é do Estado a obrigação de garantir a imunização, como

decorrência dos direitos fundamentais atinentes a todo o cidadão,

independentemente de sua condição econômica e seu “status” social.