o capital do século 21

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    Sobre ns:

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel."

  • O C A P I T A L

    no sculo XXI

    T H O M A SP I K E T T Y

    TRADUO DE MONICA BAUMGARTEN DE BOLLE

  • Copyright ditions de Seuil, 2013

    TTULO ORIGINALLe capital au XXIe sicle

    ASSISTNCIA TRADUORenata Teodoro de Assis

    ADAPTAO DE CAPAJlio Moreira

    PREPARAOClarissa Peixoto

    REVISOIsabela FragaLarissa Helena

    REVISO TCNICA DE TERMINOLOGIA JURDICARegina Ly ra

    REVISO DE EPUBFernanda Neves

    GERAO DE EPUBIntrnseca

    E-ISBN978-85-8057-582-8

    Edio digital: 2014

    Todos os direitos desta edio reservados

    EDITORA INTRNSECA LTDA.Rua Marqus de So Vicente, 99 / 3o andar22451-041 GveaRio de Janeiro RJTel. / Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

  • Sumrio

    CapaFolha de rosto

    CrditosMdias sociais

    Veja como funciona seu e-bookAgradecimentos

    Introduo

    Primeira Parte: renda e capitalCaptulo 1. Renda e produo

    Captulo 2. O crescimento: iluses e realidades

    Segunda Parte: a dinmica da relao capital/rendaCaptulo 3: As metamorfoses do capital

    Captulo 4: Da velha Europa ao Novo MundoCaptulo 5: A relao capital / renda no longo prazoCaptulo 6: A diviso capital-trabalho no sculo XXI

    Terceira Parte: a estrutura da desigualdadeCaptulo 7: Desigualdade e concentrao: primeiras impresses

    Captulo 8: Os dois mundosCaptulo 9: A desigualdade da renda do trabalho

    Captulo 10: A desigualdade na apropriao do capitalCaptulo 11: Mrito e herana no longo prazo

    Captulo 12: A desigualdade mundial da riqueza no sculo XXI

    Quarta Parte: regular o capital no sculo XXICaptulo 13: Um Estado social para o sculo XXI

    Captulo 14: Repensar o imposto progressivo sobre a rendaCaptulo 15: Um imposto mundial sobre o capital

    Captulo 16: A questo da dvida pblica

    Concluso

    NotasSumrio detalhadoGrficos e tabelas

  • Sobre o autorTtulos relacionados

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    - Se estiver lendo em um aparelho com rotao automtica, desabilite-a paravisualizar melhor os grficos e tabelas.

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  • Agradecimentos

    Este livro se baseia em quinze anos de pesquisas (1998-2013) dedicadas, em suaessncia, dinmica histrica das rendas e dos patrimnios. Grande parte delasfoi realizada em colaborao com outros pesquisadores.

    Pouco tempo depois da publicao de meu livro Les hauts revenus en Franceau XXe sicle, em 2001, tive a oportunidade de receber o apoio entusiasmado deAnthony Atkinson e Emmanuel Saez. Sem eles, este modesto projeto quecomeou no mbito francs jamais teria assumido a amplitude internacional quehoje possui. Alm de ter representado um modelo para mim nos meus anos deformao, Tony foi o primeiro leitor da minha pesquisa histrica sobre asdesigualdades na Frana e imediatamente tomou para si a incumbncia deestudar o caso do Reino Unido e, mais tarde, de diversos outros pases.Organizamos juntos dois grandes volumes publicados em 2007 e 2010, quecobriram no total mais de vinte pases e formam a mais vasta base de dadosdisponvel sobre a evoluo histrica da desigualdade de renda. Com acolaborao de Emmanuel, abordamos o caso dos Estados Unidos. Trouxemos tona o crescimento vertiginoso da renda dos 1% mais ricos desde os anos 1970-1980, o que teve certa influncia sobre os debates polticos entre os americanos.Tambm realizamos juntos vrias pesquisas sobre a teoria da tributao tima darenda e do capital. Este livro deve muito a tais esforos de colaborao, quecontriburam amplamente para que ele pudesse ser publicado.

    Esta obra tambm sofreu profunda influncia do meu encontro com GillesPostel-Vinay e Jean-Laurent Rosenthal e das pesquisas histricas que realizamosnos registros parisienses de patrimnio, desde a poca da Revoluo Francesa atos dias atuais. Com isso, pude compreender de forma mais palpvel e vvida osignificado do patrimnio e do capital, e os problemas encontrados na hora demensur-los. Acima de tudo, Gilles e Jean-Laurent me permitiram apreciar asmltiplas semelhanas e tambm as diferenas entre a estrutura dapropriedade vigente na Belle poque e a do incio do sculo XXI.

    O conjunto deste trabalho deve muito a todos os doutorandos e jovenspesquisadores com os quais tive o privilgio de trabalhar ao longo dos ltimosquinze anos. Alm de sua contribuio direta para as fontes nas quais este livro sebaseia, as pesquisas e a energia dessas pessoas nutriram o clima deefervescncia intelectual em meio ao qual esta obra amadureceu. Pensoprincipalmente em Facundo Alvaredo, Laurent Bach, Antoine Bozio, ClmentCarbonnier, Fabien Dell, Gabrielle Fack, Nicolas Frmeaux, Lucie Gadenne,Julien Grenet, lise Huilery, Camille Landais, Ioana Marinescu, lodie Morival,Nancy Qian, Dorothe Rouzet, Stefanie Stantcheva, Juliana Londono Velez,Guillaume Saint-Jacques, Christoph Schinke, Aurlie Sotura, Mathieu Valdenaire,

  • Gabriel Zucman. Em particular, sem a eficincia, o rigor e o talento de FacundoAlvaredo como coordenador, a World Top Incomes Database, qual me refirocom frequncia nesta obra, no existiria. Sem o entusiasmo e a meticulosidadede Camille Landais, nosso projeto colaborativo sobre a revoluo fiscal jamaisteria surgido. Sem a minuciosidade e a impressionante capacidade de trabalho deGabriel Zucman, eu no teria concludo a pesquisa sobre a evoluo histrica darelao capital / renda nos pases ricos, que desempenha um papel central nestelivro.

    Sou grato tambm s instituies que tornaram este projeto possvel. Emprimeiro lugar, a cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, da qual soudiretor acadmico desde 2000, assim como a cole Normale Suprieure e todasas outras instituies fundadoras da cole dconomie de Paris, na qual lecionodesde sua criao e da qual fui o primeiro diretor, de 2005 a 2007. Ao aceitaremunir foras e se tornar parceiras minoritrias de um projeto maior que a soma deseus interesses particulares, essas instituies permitiram a constituio de umbem pblico modesto, que, espero, contribuir para o desenvolvimento de umaeconomia poltica multipolar no sculo XXI.

    Por fim, agradeo a Juliette, Dborah e Hlne, minhas trs filhas queridas,por todo o amor e a fora que me do. Agradeo a Julia, com quem compartilhoa minha vida e que tambm a minha melhor leitora: sua influncia e seu apoioa cada etapa deste livro foram essenciais. Sem elas, eu no teria tido a energianecessria para levar a cabo este projeto.

  • Introduo

    As distines sociais s podem se fundamentar na utilidade comum.Artigo I, Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado,Frana,1789.

    A distribuio da riqueza uma das questes mais vivas e polmicas daatualidade. Mas o que de fato sabemos sobre sua evoluo no longo prazo? Serque a dinmica da acumulao do capital privado conduz de modo inevitvel auma concentrao cada vez maior da riqueza e do poder em poucas mos, comoacreditava Marx no sculo XIX? Ou ser que as foras equilibradoras docrescimento, da concorrncia e do progresso tecnolgico levamespontaneamente a uma reduo da desigualdade e a uma organizaoharmoniosa das classes nas fases avanadas do desenvolvimento, como pensavaSimon Kuznets no sculo XX? O que realmente sabemos sobre a evoluo dadistribuio da renda e do patrimnio desde o sculo XVIII, e quais liespodemos tirar disso para o sculo XXI?

    Essas so as perguntas que procuro responder neste livro. Desde j advirto: asrespostas a que chego so imperfeitas e incompletas. No entanto, elas se baseiamem dados histricos e comparativos muito mais extensos que os de todas aspesquisas anteriores abrangendo trs sculos e mais de vinte pases e numaestrutura terica inovadora que permite compreender melhor as tendncias e osmecanismos em operao. O crescimento econmico moderno e a difuso doconhecimento tornaram possvel evitar o apocalipse marxista, mas nomodificaram as estruturas profundas do capital e da desigualdade ou pelomenos no tanto quanto se imaginava nas dcadas otimistas ps-Segunda GuerraMundial. Quando a taxa de remunerao do capital ultrapassa a taxa decrescimento da produo e da renda, como ocorreu no sculo XIX e pareceprovvel que volte a ocorrer no sculo XXI, o capitalismo produzautomaticamente desigualdades insustentveis, arbitrrias, que ameaam demaneira radical os valores de meritocracia sobre os quais se fundam nossassociedades democrticas. Existem, contudo, meios pelos quais a democraciapode retomar o controle do capitalismo e assegurar que o interesse geral dapopulao tenha precedncia sobre os interesses privados, preservando o grau deabertura econmica e repelindo retrocessos protecionistas e nacionalistas. Aolongo do livro, tento fazer proposies nesse sentido, e elas se apoiam nas liestiradas dessas experincias histricas, cuja narrativa forma a trama principaldeste texto.

  • Um debate sem fontes?

    Durante muito tempo, os debates intelectuais e polticos sobre a distribuio dariqueza se alimentaram da abundncia de preconceitos e da pobreza de fatos.

    Por certo, incorreramos em grave erro se subestimssemos a importnciados conhecimentos intuitivos que cada um desenvolve sobre a distribuio darenda e do patrimnio de sua poca, mesmo na ausncia de uma estruturaterica e de anlises estatsticas. O cinema e a literatura, em particular osromances do sculo XIX, trazem informaes extremamente precisas sobre ospadres de vida e nveis de fortuna dos diferentes grupos sociais e revelam aestrutura profunda da desigualdade, o modo como a disparidade se justifica einfluencia a vida de cada um. Os romances de Jane Austen e de Honor deBalzac nos oferecem um retrato impressionante da distribuio da riqueza noReino Unido e na Frana nos anos 1790-1830. Os dois escritores possuam umconhecimento ntimo da hierarquia da riqueza em suas sociedades. Elescompreendiam os contornos ocultos da riqueza, conheciam os seusdesdobramentos implacveis na vida desses homens e mulheres, incluindo asconsequncias para os enlaces matrimoniais, as esperanas pessoais e osinfortnios. Austen, Balzac e outros escritores da poca desnudaram os meandrosda desigualdade com um poder evocativo e uma verossimilhana que nenhumaanlise terica ou estatstica seria capaz de alcanar.

    Na verdade, a questo da distribuio da riqueza importante demais para serdeixada apenas para economistas, socilogos, historiadores e filsofos. Elainteressa a todo mundo, e melhor que seja assim mesmo. A realidade concretae orgnica da desigualdade visvel para todos os que a vivenciam e inspira,naturalmente, julgamentos polticos contundentes e contraditrios. Campons ounobre, operrio ou dono de fbrica, servente ou banqueiro: cada um, a partir deseu ponto de vista peculiar e nico, v aspectos importantes sobre as condies devida de uns e de outros, sobre as relaes de poder e de dominao entre grupossociais, e elabora sua prpria concepo do que justo e do que no . Logo,sempre haver uma dimenso subjetiva e psicolgica na questo da distribuioda riqueza, e isso inevitavelmente leva a conflitos polticos que nenhuma anliseque se pretenda cientfica saberia atenuar. A democracia jamais ser suplantadapela repblica dos especialistas o que muito positivo.

    Ainda assim, a questo da distribuio merece, tambm, ser estudada demodo sistemtico e metdico. Na falta de fontes, mtodos e conceitos bemdefinidos, possvel dizer qualquer coisa e, da mesma forma, o seu oposto. Paraalguns, a desigualdade sempre crescente e o mundo sempre mais injusto, pordefinio. Outros acreditam que a desigualdade naturalmente decrescente ouque a harmonia se d de maneira automtica e que, em todo caso, no se devefazer nada que arrisque perturbar tal equilbrio feliz. Em meio a esse dilogo de

  • surdos, em que cada lado justifica sua prpria preguia intelectual pela do ladocontrrio, existe um papel a ser desempenhado pela pesquisa sistemtica emetdica uma vez que no pode ser totalmente cientfica. A anlisequalificada jamais acabar com os violentos conflitos polticos incitados peladesigualdade. A pesquisa na rea das cincias sociais e sempre ser balbuciantee imperfeita. Ela no tem a pretenso de transformar a economia, a sociologia ea histria em cincias exatas. Contudo, ao procurar com cuidado fatos eregularidades e ao analisar de modo sbrio os mecanismos econmicos, sociais epolticos que os expliquem, ela pode tornar o debate democrtico mais beminformado e dirigir a ateno para as questes corretas. A pesquisa metdicapode ajudar a redefinir os termos do debate, desmascarando noespreconcebidas ou falsas e sujeitando todas as posturas ideolgicas ao constanteescrutnio crtico. Esse , a meu ver, o papel que podem e devem desempenharos intelectuais e, entre eles, os pesquisadores em cincias sociais, cidados comoos outros, mas que dispe de mais tempo que os demais para se dedicar ao estudo(e que so pagos para isso um privilgio considervel).

    Ora, no h como escapar constatao de que, durante muito tempo, aspesquisas dedicadas distribuio de renda se fundamentaram em poucos fatosslidos e em muitas especulaes puramente tericas. Antes de expor com maispreciso as fontes sobre as quais me debrucei e das quais tentei recolher materialpara escrever este livro, pretendo traar um breve panorama histrico dasreflexes sobre essas questes.

    Malthus, Young e a Revoluo Francesa

    Quando a economia poltica clssica nasceu, no Reino Unido e na Frana, aofinal do sculo XVIII e incio do XIX, a questo da distribuio j se encontravano centro de todas as anlises. Estava claro que transformaes radicaisentraram em curso, propelidas pelo crescimento demogrfico sustentado indito at ento e pelo incio do xodo rural e da Revoluo Industrial. Quaisseriam as consequncias dessas mudanas para a distribuio da riqueza, aestrutura social e o equilbrio poltico das sociedades europeias?

    Para Thomas Malthus, que publicou em 1798 seu Ensaio sobre o princpio dapopulao, no restava dvida: a superpopulao era a principal ameaa.1

    Embora suas fontes fossem escassas, Malthus fez o melhor que pde com asinformaes que detinha. Uma importante influncia para ele foram os relatosde viagem de Arthur Young, agrnomo ingls que percorreu toda a Frana, deCalais aos Pireneus, passando pela Bretanha e Franche-Comt, em 1787-1788, svsperas da Revoluo Francesa. Young narrou a misria que encontrou na zonarural do pas.

  • Vvida e fascinante, sua narrativa no , de modo algum, imprecisa. Napoca, a Frana era de longe o pas europeu mais populoso e constitua, portanto,um ponto de observao ideal. Por volta de 1700, o reino da Frana j contavacom mais de vinte milhes de habitantes, num momento em que o Reino Unidotinha uma populao de pouco mais de oito milhes de pessoas (e a Inglaterra,cerca de cinco milhes). A populao francesa se expandiu em ritmo constanteao longo de todo o sculo XVIII, do final do reinado de Lus XIV at o de LusXVI, aproximando-se dos trinta milhes de habitantes nos anos 1780. Tudo leva acrer que esse dinamismo demogrfico, desconhecido nos sculos anteriores, defato contribuiu para a estagnao dos salrios no setor agrcola e para o aumentodos rendimentos associados propriedade da terra nas dcadas anteriores conflagrao de 1789. Sem fazer da demografia a nica causa da RevoluoFrancesa, parece evidente que essa evoluo s fez aumentar a impopularidadecrescente da aristocracia e do regime poltico em vigor.

    Dito isso, a narrativa de Young, publicada em 1792, no esconde ospreconceitos nacionalistas e as comparaes equivocadas. O grande agrnomodeixou evidente seu desagrado com os albergues em que se hospedou edemonstrou desprezo pelos modos das moas que lhe serviam mesa. Pretendeudeduzir de suas observaes, algumas bastante triviais e anedticas,consequncias para a histria universal. Revelou, sobretudo, grande inquietaofrente s possveis turbulncias polticas e sociais que a misria generalizada porele testemunhada poderia causar. Young estava convencido de que s um sistemapoltico moda inglesa, com Cmaras separadas para aristocratas e plebeus,alm do direito de veto para a nobreza, permitiria um desenvolvimentoharmonioso e tranquilo liderado por pessoas responsveis. Estava certo de que aFrana caminhava para o fracasso ao aceitar, em 1789-1790, que membros detodas as classes sociais estivessem num mesmo Parlamento. No exagero dizerque o conjunto de sua narrativa foi contaminado pelo temor de que a RevoluoFrancesa sobreviesse. Quando se discute a distribuio da riqueza, a poltica estsempre por perto, e difcil escapar aos preconceitos e interesses de classe quepredominam em cada poca.

    Quando o reverendo Malthus publicou em 1798 seu famoso Ensaio, asconcluses foram ainda mais radicais do que as de Young. Assim como seucompatriota, Malthus estava muito preocupado com as notcias polticas vindas daFrana e, para evitar que o torvelinho vitimasse o Reino Unido, argumentou quetodas as medidas de assistncia aos pobres deveriam ser suspensas de imediato eque a taxa de natalidade deveria ser severamente controlada, com a finalidadede afastar o risco de uma catstrofe global associada superpopulao, ao caos e misria. S possvel compreender por que as previses malthusianas eram toexageradas e sombrias caso se leve em conta o medo que tomou de assalto boaparte das elites europeias nos anos 1790.

  • David Ricardo: o princpio da escassez

    Olhando em retrospectiva, fcil rir desses profetas da desgraa. Contudo, importante perceber que as transformaes econmicas e sociais em curso nofinal do sculo XVIII e no incio do sculo XIX eram bastante impressionantes,para no dizer traumticas. Na verdade, a maioria dos observadores da poca e no apenas Malthus e Young tinha uma viso um tanto sombria, apocalpticaat, da evoluo da distribuio da riqueza e da estrutura social no longo prazo.Esse era especialmente o caso de David Ricardo e de Karl Marx, sem dvida osdois economistas mais influentes do sculo XIX. Ambos defendiam a viso deque apenas um pequeno grupo social os proprietrios de terra para Ricardo, oscapitalistas industriais para Marx se apropriaria de uma parte crescente daproduo e da renda.2

    Para Ricardo, que publicou em 1817 seus Princpios de economia poltica etributao, a principal preocupao era com a evoluo, no longo prazo, do preoda terra e de sua remunerao. Assim como Malthus, ele no dispunha dequalquer fonte estatstica digna dessa nomenclatura. Entretanto, isso no oimpediu de ter conhecimento ntimo do capitalismo de sua poca. Nascido numafamlia de financistas judeus de origem portuguesa, ele parecia ter menospreconceitos polticos do que Malthus, Young ou Adam Smith. Foi influenciadopelo modelo de Malthus, mas conseguiu ir mais longe em seu raciocnio. Estava,acima de tudo, interessado no seguinte paradoxo lgico: se o crescimento dapopulao e da produo se prolonga, a terra tende a se tornar mais escassa emrelao aos outros bens. De acordo com a lei da oferta e da demanda, o preo dobem escasso a terra deveria subir de modo contnuo, bem como os aluguispagos aos proprietrios. No limite, os donos da terra receberiam uma parte cadavez mais significativa da renda nacional, e o restante da populao, uma partecada vez mais reduzida, destruindo o equilbrio social. Ricardo via como nicasada lgica e politicamente satisfatria a adoo de um imposto crescente sobrea renda territorial.

    Essa previso dramtica no se verificou: a remunerao da terra ficou altapor um longo perodo, mas, ao final, o valor das terras agrcolas em relao soutras formas de riqueza caiu medida que o peso da agricultura na rendanacional diminuiu. Escrevendo nos anos 1810, Ricardo no podia antever aimportncia que o progresso tecnolgico e o crescimento industrial teriam aolongo das dcadas seguintes para a evoluo da distribuio da renda. Assimcomo Malthus e Young, ele no era capaz de imaginar que a humanidadedeixaria de ser refm das restries alimentares e agrcolas.

    Ainda assim, sua intuio sobre o preo da terra no deixaria de serinteressante: o princpio da escassez preconiza que alguns preos podemalcanar valores altssimos ao longo de vrias dcadas. Isso pode ser o suficiente

  • para desestabilizar a poltica, a economia, os arranjos sociais, enfim, sociedadesinteiras. O sistema de preos desempenha o papel fundamental de coordenar asaes de milhes de indivduos no caso do mundo atual, de bilhes deindivduos. O problema que o sistema de preos no conhece nem limites, nemmoral.

    Seria um erro negligenciar a importncia do princpio da escassez para acompreenso da distribuio mundial da riqueza no sculo XXI para seconvencer disso, basta substituir, no modelo de David Ricardo, o preo das terrasagrcolas pelo dos imveis urbanos nas grandes capitais ou, ainda, pelo preo dopetrleo. Nos dois casos, se projetarmos para o perodo 2010-2050 ou 2010-2100a tendncia observada durante os anos 1970-2010, chegaremos a desequilbrioseconmicos, sociais e polticos de magnitude considervel no s entre pases,mas dentro de cada nao. Tais desequilbrios no deixam de evocar o apocalipsericardiano.

    Sem dvida, existe um mecanismo econmico bem simples que permiteequilibrar o processo: o mecanismo da oferta e da demanda. Se a oferta dequalquer bem for insuficiente e o preo estiver exageradamente elevado, aprocura por esse bem deve baixar, o que permitir uma reduo do preo. Emoutras palavras, se os preos dos imveis nas grandes cidades ficarem muito altose o custo do petrleo aumentar, as pessoas podem decidir morar em reas maisafastadas ou at andar de bicicleta (ou, quem sabe, os dois ao mesmo tempo). Noentanto, alm de desagradveis e complicados, tais ajustes podem levar vriasdcadas para ocorrer; nesse nterim, os proprietrios de imveis e os donos dospoos de petrleo podem acumular crditos to volumosos em relao aorestante da populao que podero facilmente vir a possuir tudo o que houverpara possuir, inclusive as terras no interior e as bicicletas.3 Como sempre, o piorcenrio sempre incerto. cedo demais para anunciar ao leitor que, em 2050,ele dever pagar seu aluguel ao emir do Catar: essa questo ser analisadaadiante, e nossa concluso ser mais matizada, embora no de todotranquilizadora. Mas importante entender desde agora que a interao entreoferta e demanda no impede que ocorra uma divergncia significativa eduradoura na distribuio da riqueza ligada a movimentos extremos de certospreos relativos. Essa a mensagem fundamental do princpio da escassezintroduzido por David Ricardo. Entretanto, nada nos obriga a jogar esses dados.

    Marx: o princpio da acumulao infinita

    Quando Marx publicou, em 1867, o primeiro tomo de O capital, exato meiosculo aps a publicao dos Princpios de Ricardo, as realidades econmicas esociais haviam mudado profundamente: no se tratava mais de saber se a

  • agricultura poderia alimentar uma populao crescente ou se o preo da terraaumentaria at chegar ao cu, mas sobretudo de entender a dinmica de umcapitalismo industrial a pleno vapor.

    O fato mais marcante da poca era a misria do proletariado industrial. Adespeito do crescimento, ou talvez em parte devido a ele, e em razo do massivoxodo rural provocado pelo aumento da populao e da produtividade agrcola,os operrios se amontoaram em cortios. As jornadas de trabalho eram longas, eos salrios, muito baixos. Uma nova misria urbana se desenvolveu, mais visvel,chocante e, sob certo aspecto, extrema do que a misria rural do Antigo Regime.Germinal, Oliver Twist e Os miserveis no brotaram apenas da imaginao deseus autores, bem como as leis que proibiram o trabalho de crianas menores deoito anos nas fbricas como na Frana em 1841 ou menores de dez anosnas minas como no Reino Unido em 1842. O Tableau de ltat physique etmoral des ouvriers employs dans les manufactures [Quadro do estado fsico emoral dos operrios empregados nas fbricas], publicado em 1840 na Franapelo Dr. Louis Ren Villerm e que inspirou a tmida legislao de 1841, descrevea mesma realidade srdida que A situao da classe trabalhadora na Inglaterra,publicado em 1845 por Engels.4

    De fato, todos os dados histricos de que dispomos hoje indicam que foipreciso esperar a segunda metade ou mesmo o ltimo tero do sculo XIXpara observar um aumento significativo do poder de compra dos salrios. Dosanos 1800-1810 aos anos 1850-1860, os salrios dos operrios estagnaram emnveis muito baixos prximos ou mesmo inferiores aos do sculo XVIII e aosdos sculos anteriores. Essa longa fase de estagnao salarial, observada tanto noReino Unido quanto na Frana, ainda mais impressionante quando se leva emconta que o crescimento econmico se acelerou nesse perodo. A participao docapital na renda nacional a definio de capital abrange lucros industriais,renda territorial, aluguis urbanos , at onde possvel estim-la com base nasfontes imperfeitas de que dispomos hoje, aumentou de modo considervel nosdois pases durante a primeira metade do sculo XIX.5 Ela diminuiu ligeiramentenas ltimas dcadas do sculo XIX, quando os salrios recuperaram parte doatraso em relao ao crescimento econmico. Os dados que coletamos indicam,entretanto, que no houve qualquer reduo estrutural da desigualdade antes daPrimeira Guerra Mundial. O que se observa nos anos 1870-1914 to somenteuma estabilizao da desigualdade em nvel extremamente elevado, e, em certoscasos, possvel identificar uma espiral de disparidade acompanhada deconcentrao progressiva da riqueza. muito difcil dizer o que teria acontecidocom essa trajetria se os choques econmicos e polticos deflagrados naPrimeira Guerra Mundial no tivessem ocorrido. Com o auxlio da anlisehistrica e do distanciamento de que dispomos hoje, pode-se afirmar que esses

  • choques foram as nicas foras munidas de peso suficiente para reduzir adesigualdade desde a Revoluo Industrial.

    O fato que o capital prosperou e os lucros industriais cresceram emcomparao com a estagnao da renda do trabalho entre os anos 1840 e 1850.Isso era bvio para todos, mesmo numa poca em que as contas nacionais e asestatsticas agregadas para os diferentes pases no existiam. Foi nesse contextoque se desenvolveram os primeiros movimentos comunistas e socialistas. Oquestionamento principal era simples: de que serve o desenvolvimento industrial,de que servem todas essas inovaes tecnolgicas, todo esse esforo, todos essesdeslocamentos populacionais, se, ao cabo de meio sculo de crescimento daindstria, a situao das massas continua to miservel quanto antes e se tudo queo Estado pode fazer proibir que crianas menores de oito anos trabalhem nasfbricas? O fracasso do sistema econmico e poltico parecia evidente. Aspessoas, portanto, se perguntavam: o que temos a dizer sobre a evoluo, nolongo prazo, de um sistema como esse?

    Foi sobre essa questo que Marx se debruou. Em 1848, s vsperas daPrimavera dos Povos, ele j havia publicado o Manifesto comunista, texto curtoe eficaz que se inicia com a clebre frase Um espectro ronda a Europa oespectro do comunismo6 e termina com a no menos clebre previsorevolucionria: O desenvolvimento da indstria moderna, portanto, enfraqueceo prprio terreno em que a burguesia assentou a produo e a apropriao deseus produtos. Assim, a burguesia produz, sobretudo, seus prprios coveiros. Suaqueda e a vitria do proletariado so igualmente inevitveis.

    Nas duas dcadas seguintes, Marx se dedicou a escrever o volumoso tratadoque justificaria essas concluses e proporia a primeira anlise cientfica docapitalismo e de seu colapso. Essa obra ficaria inacabada: o primeiro tomo de Ocapital foi publicado em 1867, mas Marx faleceu em 1883 sem ter terminado osdois tomos subsequentes. Eles foram publicados postumamente por seu amigoFriedrich Engels, a partir de fragmentos de manuscritos, por vezes obscuros, queele deixou.

    Como Ricardo, Marx baseou seu trabalho na anlise das contradies lgicasinternas do sistema capitalista. Ele procurou distinguir-se dos economistasburgueses (que viam no mercado um sistema autorregulado, capaz de alcanar oequilbrio sem qualquer interferncia externa, como a mo invisvel de AdamSmith e a lei de Jean-Baptiste Say, segundo a qual a produo cria a suaprpria demanda) e dos socialistas utpicos ou proudhonianos, que, na sua viso,se contentavam em denunciar a misria operria sem propor nenhum estudorealmente cientfico dos processos econmicos que seriam responsveis por ela.7Em suma, Marx partiu do modelo ricardiano de determinao do preo docapital e do princpio da escassez para fundamentar uma anlise mais

  • aprofundada sobre a dinmica do capitalismo num mundo onde o capital era,antes de tudo, industrial (mquinas, equipamentos, galpes de fbricas etc.), eno simplesmente a terra; assim, o acmulo do capital no teria limites. Suaconcluso principal foi o que se poderia chamar de princpio de acumulaoinfinita, isto , a tendncia inexorvel do capital de se acumular e de seconcentrar nas mos de uma parcela cada vez mais restrita da populao, semque houvesse um limite natural para esse processo. Da decorre a derrocadaapocalptica do capitalismo prevista por Marx: ou a taxa de rendimento do capitalcairia continuamente (emperrando o motor da acumulao e fomentandoconflitos violentos entre os donos do capital), ou a participao do capital narenda nacional cresceria indefinidamente (o que, mais cedo ou mais tarde,levaria a uma revolta dos trabalhadores). De um modo ou de outro, nenhumequilbrio estvel, socioeconmico ou poltico, seria possvel.

    A profecia sombria de Marx no chegou mais perto de se concretizar do que ade Ricardo. A partir do ltimo tero do sculo XIX, os salrios enfim comearama aumentar: a melhora do poder de compra dos trabalhadores se disseminou, oque mudou radicalmente a situao, ainda que a desigualdade extrema tenhapersistido e, em certos aspectos, crescido at a Primeira Guerra Mundial. Arevoluo comunista acabou acontecendo, mas eclodiu no pas mais atrasado daEuropa, onde a revoluo industrial mal havia comeado (a Rssia). Enquantoisso, os pases europeus mais avanados exploravam as vias social-democratas,para a sorte de seus cidados. Assim como os autores que o antecederam, Marxrejeitou as hipteses de que o progresso tecnolgico pudesse ser duradouro e deque a produtividade fosse capaz de crescer de modo contnuo duas foras quepoderiam, em alguma medida, se contrapor ao processo de acumulao econcentrao do capital privado. Sem dvida, faltavam-lhe dados estatsticospara refinar suas previses. Certamente Marx tambm sofreu as consequnciasde decidir expor suas concluses em 1848, antes de realizar as pesquisasnecessrias para justific-las. Escreveu tomado por grande fervor poltico, o quemuitas vezes o levou a se precipitar e a defender argumentos mal embasados,dos quais ficou refm. Por isso a necessidade de que a teoria econmica estejaenraizada nas mais completas fontes histricas; Marx cometeu o erro de noexplorar todas as possibilidades de que dispunha.8 Alm disso, no se debruousobre a espinhosa questo de como uma sociedade em que o capital privado foiabolido reorganizaria os seus sistemas poltico e econmico problema bastantecomplexo, como mostram os dramticos experimentos totalitrios dos regimesque levaram a srio a expropriao.

    Apesar dessas limitaes, a anlise marxista relevante em diversos aspectos.Em primeiro lugar, Marx partiu de uma questo essencial (o aumento indito daconcentrao de riqueza durante a Revoluo Industrial) e tentou respond-lausando os meios de que dispunha atitude exemplar, que deveria servir de

  • inspirao para muitos economistas de hoje. Em segundo, e mais importante, oprincpio de acumulao infinita proposto por ele contm uma noofundamental, to vlida para a anlise do sculo XXI como foi para a do sculoXIX, alm de ser mais preocupante do que o princpio da escassez, de Ricardo.Se as taxas de crescimento da populao e da produtividade forem relativamentebaixas, o estoque acumulado de riqueza se torna, naturalmente, mais relevantecom o passar do tempo, sobretudo quando cresce de forma desmedida e setransforma numa fonte de instabilidade. Ou seja, o crescimento fraco nopermite que o princpio marxista da acumulao infinita seja contrabalanado: oequilbrio da resultante no to apocalptico quanto o previsto por Marx,embora no deixe de ser perturbador. A acumulao cessa em algum nvel finito,mas esse nvel pode ser extremamente alto e desestabilizante. Em particular, opatamar muito elevado da riqueza privada (medido em anos da renda nacional)observado desde os anos 1970 e 1980 nos pases ricos, sobretudo na Europa e noJapo, se inscreve com perfeio na lgica marxista.

    De Marx a Kuznets: do apocalipse ao conto de fadas

    Passando das anlises de Ricardo e Marx no sculo XIX para os estudos deSimon Kuznets no sculo XX, pode-se dizer que o gosto excessivo doseconomistas pelas previses catastrficas deu lugar a uma atrao no menosexcessiva pelos contos de fadas, ou ao menos pelos happy endings. Segundo ateoria de Kuznets, a desigualdade de renda deveria diminuir de modo automticonos estgios mais avanados do desenvolvimento capitalista de um pas, adespeito das polticas adotadas ou das diferenas entre pases, at que seestabilizasse num nvel aceitvel. Elaborada em 1955, trata-se de uma teoriasobre os anos mgicos do perodo ps-guerra que na Frana ficaram conhecidoscomo os Trinta Gloriosos, o intervalo compreendido entre 1945 e 1975. ParaKuznets, bastava ter pacincia e esperar que o crescimento comeasse abeneficiar a todos.9 A filosofia da poca podia ser resumida em apenas umafrase: Growth is a rising tide that lifts all boats (O crescimento como a maralta: levanta todos os barcos). Otimismo semelhante foi proposto por RobertSolow em 1956, quando analisou as condies que levariam uma economia aalcanar a trajetria de crescimento equilibrado, isto , um crescimento emque todas as variveis macroeconmicas produo, renda, lucros, salrios,capital, cotaes de bolsa de valores e de mercado imobilirio etc. seexpandem no mesmo ritmo, de modo que cada grupo social se beneficia docrescimento nas mesmas propores, sem grandes discrepncias.10 Tal viso aanttese da espiral de desigualdade identificada por Ricardo ou Marx, bem comoo oposto das anlises apocalpticas do sculo XIX.

  • Para transmitir ao leitor a influncia considervel da teoria de Kuznets nopensamento dos anos 1980 e 1990 e, em certa medida, tambm no pensamentoatual, preciso salientar que se trata da primeira teoria sobre crescimento edesigualdade fundamentada num extenso trabalho estatstico. Foi preciso chegara meados do sculo XX para que as primeiras sries histricas sobre adistribuio de riqueza estivessem disponveis, com a publicao em 1953 daobra monumental de Kuznets, Shares of Upper Income Groups in Income andSavings [Participao dos grupos de renda alta na renda nacional e na poupana].As sries compiladas por Kuznets se referem a um nico pas, os Estados Unidos,e compreendem um perodo de 35 anos (1913-1948). Trata-se, contudo, de umacontribuio fundamental, que mobilizou duas fontes de dados totalmenteinacessveis aos autores do sculo XIX: as declaraes do imposto federal sobrea renda institudo em 1913; e as estimativas da renda nacional dos EstadosUnidos, elaboradas pelo prprio Kuznets alguns anos antes. Foi a primeiratentativa de medir a desigualdade social em escala to ambiciosa.11

    importante compreender que, sem essas duas fontes indispensveis ecomplementares, seria simplesmente impossvel medir a desigualdade dadistribuio de riqueza e a sua evoluo. As primeiras tentativas de estimar arenda nacional datam do fim do sculo XVII e do incio do sculo XVIII, tantono Reino Unido como na Frana. Houve outras ao longo do sculo XIX, masforam esforos isolados. Seria preciso esperar o sculo XX e o perodoentreguerras para que se desenvolvessem por iniciativa de pesquisadorescomo Kuznets e John W. Kendrick nos Estados Unidos, Arthur Bowley e ColinClark no Reino Unido ou L. Dug de Bernonville na Frana as primeiras sriesanuais da renda nacional. Esse tipo de srie permite mensurar a renda total deum pas. Para medir a participao do grupo de renda mais alta na rendanacional, preciso dispor das declaraes de renda. Essa segunda fonte deinformao se tornou disponvel quando todos os pases passaram a adotar atributao progressiva sobre a renda, por volta da Primeira Guerra Mundial(1913 nos Estados Unidos, 1914 na Frana, 1909 no Reino Unido, 1922 na ndia e1932 na Argentina).12

    preciso reconhecer que, ainda que no exista um imposto sobre a renda, houtras estatsticas relacionadas a ela para qualquer que seja o regime tributrioem vigor num determinado momento (h, por exemplo, impostos sobre onmero de portas e janelas de um imvel para cada departamento na Frana dosculo XIX, o que bastante curioso). Esses dados, entretanto, nada nos revelamdiretamente sobre a evoluo e a distribuio da renda. Alis, antes que aobrigao de declarar renda e impostos s autoridades fosse estabelecida por lei,as pessoas muitas vezes no sabiam qual era a renda que de fato recebiam. Omesmo se deu com o imposto de renda de pessoas jurdicas e com o impostosobre o patrimnio. A tributao no somente uma maneira de fazer com que

  • os indivduos contribuam para o financiamento dos gastos pblicos e de dividir onus disso da forma mais justa possvel; ela til, tambm, para identificarcategorias e promover o conhecimento e a transparncia democrtica.

    Em todo caso, os dados que Kuznets coletou permitiram que ele calculasse aevoluo da participao, na renda nacional americana, de cada dcimo ecentsimo mais alto da hierarquia da distribuio de renda. Eis o resultado:Kuznets constatou que uma forte reduo da desigualdade de renda haviaocorrido nos Estados Unidos entre 1913 e 1948. Mais especificamente, na dcadade 1910, o dcimo superior da distribuio, isto , os 10% mais ricos entre osamericanos, recebiam 45-50% da renda nacional anual. No final dos anos 1940,a participao na renda nacional dos 10% mais ricos havia cado para cerca de30-35%. Essa queda de mais de dez pontos percentuais da renda nacional eraconsidervel: equivalia, por exemplo, metade do que recebiam os 50% maispobres do pas.13 A reduo da desigualdade era, portanto, ntida e incontestvel,e essa revelao teve uma importncia tremenda, com enorme repercusso nosdebates econmicos do ps-guerra, tanto nas universidades quanto nasorganizaes internacionais.

    Havia dcadas que Malthus, Ricardo, Marx e tantos outros falavam dedesigualdade, mas sem citar fontes, sem apresentar metodologias quepermitissem comparar com preciso as diferentes pocas ou mesmo definir odebate a favor de uma ou outra tese concorrente. Pela primeira vez, dadosconcretos estavam disponveis para consulta e estudo e, embora no fossemperfeitos, ao menos tinham o mrito de existir. Alm disso, o trabalho decompilao das estatsticas foi muito bem documentado: o volumoso compndiopublicado por Kuznets em 1953 expunha da forma mais transparente possveltodos os detalhes sobre suas fontes e seus mtodos, de maneira que cada clculopudesse ser reproduzido. E Kuznets foi, alm de tudo, o portador de notciasauspiciosas: a desigualdade estava diminuindo.

    A curva de Kuznets: uma boa nova em tempos de Guerra Fria

    Na verdade, o prprio Kuznets estava bastante consciente do carter acidentaldessa compresso das altas rendas americanas entre 1913 e 1948. Em grandemedida, a compresso se deveu aos vrios choques desencadeados pela GrandeDepresso dos anos 1930 e pela Segunda Guerra Mundial, sem qualquer origemnum processo natural e espontneo. No livro que publicou em 1953, Kuznetsanalisa suas sries em detalhe e adverte o leitor contra generalizaesprecipitadas. Entretanto, em dezembro de 1954, na palestra que proferiu comopresidente da American Economic Association durante um encontro em Detroit,props aos colegas uma interpretao bem mais otimista dos resultados de seu

  • livro. Foi essa conferncia, publicada em 1955 sob o ttulo de Economic Growthand Income Inequality [Crescimento econmico e desigualdade de renda], quedeu origem teoria da curva de Kuznets.

    Segundo essa teoria, a desigualdade poderia ser descrita, em toda parte, poruma curva em forma de sino. Ou seja, ela cresce de incio, alcana um pico edepois entra em declnio quando os processos de industrializao e dedesenvolvimento econmico comeam a avanar. De acordo com Kuznets, huma primeira fase caracterstica das etapas iniciais da industrializao na qual adesigualdade cresce naturalmente, como ocorreu nos Estados Unidos ao longo dosculo XIX; em seguida, sobrevm uma fase de forte diminuio dadesigualdade, que para os americanos teria comeado durante a primeirametade do sculo XX.

    A leitura desse texto de 1955 reveladora. Depois de lembrar aos leitorestodas as razes para ter cautela na interpretao dos dados e de chamar aateno para a importncia inequvoca do papel dos choques exgenos nareduo da desigualdade americana, Kuznets sugere, de maneira quase ingnua,que a lgica interna do desenvolvimento econmico pode levar ao mesmoresultado, independentemente de qualquer interveno poltica ou choqueexterno. A ideia era que a desigualdade aumenta durante as primeiras fases daindustrializao, pois apenas uma minoria est em condies de se beneficiar dosganhos iniciais do processo e, mais adiante, nas etapas mais avanadas dodesenvolvimento, cai de forma automtica, ou endgena, quando uma fraocada vez maior da populao passa a desfrutar do crescimento econmico.14

    A fase avanada do desenvolvimento industrial teria comeado no final dosculo XIX ou no incio do sculo XX nos pases maduros, e a compresso dadesigualdade observada nos Estados Unidos durante os anos 1913-1948 poderiaser retratada como parte de um fenmeno mais geral. Esse fenmeno deveria,em tese, ser capaz de se reproduzir mundo afora, o que incluiria os pasessubdesenvolvidos ento assolados pela pobreza da era ps-colonial. Os fatosevidenciados por Kuznets em seu livro de 1953 se tornaram, de sbito, uma armapoltica poderosa.15 Ele estava perfeitamente consciente do carter especulativode sua teoria.16 Ao apresentar uma anlise to otimista na palestra proferida aoseconomistas americanos, muito propensos a acreditar e divulgar a novidade queseu prestigiado lder trazia, Kuznets sabia da enorme influncia que teria: nascia acurva de Kuznets. Para se assegurar de que todos tinham entendido bem doque se tratava, Kuznets preocupou-se em esclarecer que a inteno de suasprevises otimistas era simplesmente manter os pases subdesenvolvidos narbita do mundo livre.17 Em grande medida, portanto, a teoria da curva deKuznets produto da Guerra Fria.

    Todavia, para evitar mal-entendidos, quero destacar que o trabalho realizado

  • por Kuznets para a criao das primeiras contas nacionais americanas e dasprimeiras sries histricas com mtricas de desigualdade foi de sumaimportncia. Na leitura de seus livros ao contrrio do que ocorre com seusartigos , fica evidente que Kuznets tinha uma verdadeira tica cientfica. Almdo mais, as altas taxas de crescimento observadas nos pases desenvolvidosdepois da Segunda Guerra foi um acontecimento fundamental, ainda maissignificativo quando se leva em conta que todos os grupos sociais se beneficiaramdisso. compreensvel que certo otimismo tenha prevalecido em razo dosTrinta Gloriosos e que as previses apocalpticas do sculo XIX sobre a dinmicada distribuio da riqueza tenham perdido popularidade.

    Ainda assim, a teoria mgica da curva de Kuznets foi formulada, emgrande parte, pelos motivos errados, e o fundamento emprico que a sustenta reconhecidamente frgil. A forte queda da desigualdade de renda que se deu nospases ricos entre 1914 e 1945 , antes de tudo, fruto das guerras mundiais e dosviolentos choques econmicos e polticos que delas sobrevieram (especialmentepara os detentores de grandes fortunas). Ela tem pouqussima relao com oprocesso organizado de mobilidade dos fatores de produo entre setoreseconmicos descrito por Kuznets.

    Recolocando a questo distributiva no cerne da anlise econmica

    A questo importante, e no apenas por motivos histricos. Desde a dcada de1970, a desigualdade voltou a aumentar nos pases ricos, principalmente nosEstados Unidos, onde a concentrao de renda na primeira dcada do sculoXXI voltou a atingir e at excedeu o nvel recorde visto nos anos 1910-1920. , portanto, essencial compreender por que e como a desigualdadediminuiu nesse interregno. Por certo, o forte crescimento dos pases mais pobrese dos emergentes, em especial da China, foi um impulso poderoso para areduo da desigualdade no mundo, como foi o crescimento dos pases ricosentre 1945 e 1975. Mas esse processo gerou grande ansiedade entre os pasesemergentes, e mais ainda entre os pases ricos. Os vultosos desequilbrios que semanifestaram nos mercados financeiros, na cotao internacional do petrleo enos mercados imobilirios durante as ltimas dcadas puseram em xeque a ideiade convergncia inexorvel para a trajetria de crescimento equilibradodescrita por Solow e Kuznets, segundo a qual tudo passa, em dado momento, acrescer no mesmo ritmo. Ser que o mundo de 2050 ou de 2100 ser comandadopor operadores do mercado financeiro, superexecutivos e detentores de grandesfortunas? Ou estaremos nas mos dos pases produtores de petrleo, ou, ainda, doBanco da China? Quem sabe o mundo ser controlado pelos parasos fiscais queabrigam, de uma forma ou de outra, boa parte desses atores? Seria absurdo no

  • se fazer essa pergunta e supor por princpio que o crescimento naturalmenteequilibrado no longo prazo.

    De certa maneira, estamos, neste incio de sculo XXI, na mesma situaoque os observadores do sculo XIX: somos testemunhas de transformaesimpressionantes, e muito difcil saber at onde elas podem ir e qual rumo adistribuio da riqueza tomar nas prximas dcadas, tanto em escalainternacional quanto dentro de cada pas. Os economistas do sculo XIX devemser louvados. Afinal, foram eles que colocaram a questo distributiva no cerne daanlise econmica e tentaram estudar as tendncias de longo prazo. Suasrespostas no foram sempre satisfatrias mas, ao menos, eles souberam fazeras perguntas certas. No h motivo algum para acreditar que o crescimentotende a se equilibrar de forma automtica. Demoramos muito tempo pararecolocar a questo da desigualdade no centro da anlise econmica, e maisainda para resgatar os questionamentos do sculo XIX. Ao longo de vriasdcadas, o tema da distribuio da riqueza foi negligenciado pelos economistas,em parte devido s concluses otimistas de Kuznets, mas tambm em razo daatrao excessiva da profisso por modelos matemticos reducionistasconhecidos como modelos de agente representativo.18 Para trazer tona aquesto distributiva, preciso comear reunindo a base de dados histricos maiscompleta possvel a fim de compreender o passado e refletir sobre as tendnciasfuturas. Somente estabelecendo fatos e identificando padres e regularidades,para ento comparar pases e contrastar experincias, poderemos ter aesperana de revelar os mecanismos em operao e proporcionar um maioresclarecimento sobre o futuro.

    As fontes utilizadas neste livro

    Este livro se baseia em duas principais fontes de dados que, juntas, permitemestudar a dinmica histrica da distribuio de renda. So elas: sries de dadosque lidam diretamente com a desigualdade e a distribuio de renda; e sries dedados que lidam com a distribuio da riqueza e a relao entre riqueza e arenda.

    Comecemos pela renda. Em grande medida, meu trabalho consistiu emampliar os limites geogrficos e temporais do trabalho pioneiro de Kuznets namensurao da evoluo da desigualdade da renda nos Estados Unidos de 1913 a1948. Desse modo, fui capaz de colocar as descobertas de Kuznets (que sobastante precisas) num quadro mais amplo, o que me permitiu questionarradicalmente sua viso otimista da relao entre o desenvolvimento econmico ea distribuio da riqueza. O estranho que ningum tenha tentado replicar apesquisa de Kuznets de modo sistemtico antes. Sem dvida, em parte isso

  • ocorreu porque o estudo histrico e a anlise estatstica dos registros tributrioscaem numa espcie de terra de ningum acadmica, demasiado histrica paraos economistas e demasiado econmica para os historiadores. uma pena, poisapenas a perspectiva de longo prazo possibilita uma anlise correta da dinmicada desigualdade de renda, e s as fontes fiscais (os registros tributrios) permitemque se tenha essa abrangncia temporal.19

    Comecei meu estudo da questo pela aplicao dos mtodos de Kuznets aocaso da Frana, o que originou a publicao de uma primeira obra em 2001.20Depois, obtive o apoio de vrios colegas sobretudo de Anthony Atkinson eEmmanuel Saez , que me permitiram ampliar o projeto e alcanar uma escalainternacional bastante vasta. Anthony Atkinson tratou do caso do Reino Unido ede muitos outros pases, e organizamos juntos dois volumes publicados em 2007 e2010 reunindo estudos semelhantes para mais de vinte pases de todos oscontinentes.21 Com Emmanuel Saez, alongamos em meio sculo as sries deKuznets para os Estados Unidos.22 Saez usou o mtodo para estudar diversospases fundamentais, como o Canad e o Japo. Vrios pesquisadorescontriburam para a realizao desse projeto coletivo: Facundo Alvaredo, emespecial, analisou os casos da Argentina, da Espanha e de Portugal; Fabien Dell,os da Alemanha e da Sua; com Abhij it Banerjee, estudei o caso da ndia;graas a Nancy Qian, pude tratar da China, e assim por diante.23

    Para cada pas, tentamos usar os mesmos tipos de fontes, os mesmos mtodose os mesmos conceitos. Os dcimos e os centsimos das rendas mais altas foramestimados a partir dos dados tributrios retirados de declaraes de renda (apsvrios ajustes para garantir a homogeneidade temporal e geogrfica dos dados econceitos). A renda nacional e a renda mdia nos foram dadas pelas contasnacionais, que por vezes tiveram de ser esmiuadas e estendidas. De modo geral,as sries tm incio na data de criao do imposto de renda (entre 1910 e 1920para vrios pases, mas em alguns casos, como no Japo e na Alemanha,comeam entre 1880 e 1890; em outros, se iniciam mais tarde). Todas as sriesso atualizadas regularmente e hoje se estendem at o incio dos anos 2010.

    A World Top Incomes Database (WTID), fruto do trabalho conjunto de cercade trinta pesquisadores do mundo todo, a mais ampla base de dados histricosdisponvel sobre a evoluo da desigualdade de renda. Ela a fonte primria dasanlises e concluses deste livro.24

    A segunda fonte de dados que utilizei e que, na verdade, cito primeiro dizrespeito riqueza, ao patrimnio das famlias, incluindo tanto a sua distribuioquanto suas relaes com a renda. Por gerar renda, a riqueza j desempenha umpapel importante no estudo de sua evoluo. A renda consiste em doiscomponentes: os rendimentos derivados do trabalho (salrios, emolumentos,gratificaes, bnus, renda do trabalho no assalariado, alm de outras rendas

  • remuneradoras do trabalho, de acordo com os estatutos jurdicos aplicveis emcada caso) e a renda do capital (aluguis, dividendos, juros, lucros, ganhos decapital, royalties e outros rendimentos obtidos do simples fato de ser dono docapital sob a forma de terras, imveis, ativos financeiros, equipamentosindustriais etc., qualquer que seja a denominao jurdica indicada). Os dadosobtidos da WTID contm muitas informaes sobre a evoluo da renda docapital ao longo do sculo XX. , contudo, indispensvel complement-los comfontes diretamente relacionadas ao patrimnio. Podem-se distinguir trssubconjuntos de fontes histricas e abordagens metodolgicas, que socomplementares umas s outras.25

    Em primeiro lugar, da mesma forma que as declaraes de renda nospermitem estudar as alteraes no grau de desigualdade da renda, as declaraesde patrimnio provenientes de impostos sobre fortunas e heranas nos forneceminformaes sobre a evoluo da desigualdade da riqueza.26 Robert Lampmanfoi o primeiro a usar essa abordagem, em 1962, ao analisar a evoluo dadesigualdade patrimonial nos Estados Unidos de 1922 a 1956; em seguida,Anthony Atkinson e Alan Harrison fizeram o mesmo em 1978 para estudar ocaso do Reino Unido no perodo compreendido entre 1923 e 1972.27 Essestrabalhos foram atualizados recentemente, e aplicou-se a metodologia a outrospases, como a Frana e a Sucia. Infelizmente, para averiguar a evoluo dadisparidade de riqueza, dispomos de dados para um conjunto mais restrito depases do que aquele que usamos para analisar a distribuio da renda. Em algunscasos, entretanto, as sries de dados de tributos sobre a riqueza so bastantelongas, datando desde o incio do sculo XIX. A razo para isso que afiscalizao das heranas e das grandes fortunas mais antiga que a da renda.Pude reunir, em especial, os dados coletados pelo governo da Frana em vriosmomentos e, com o auxlio de Gilles Postel-Vinay e Jean-Laurent Rosenthal,compilei um vasto conjunto de declaraes individuais sobre o patrimnio.Juntando essas informaes, conseguimos construir sries homogneas sobre aconcentrao da riqueza na Frana desde a poca da Revoluo Francesa.28 Issonos permitiu avaliar a dimenso dos choques causados pela Primeira GuerraMundial a partir de uma perspectiva histrica bem mais ampla do que aproporcionada pelas sries que tratam da desigualdade de renda (essas,lamentavelmente, se iniciam quase sempre por volta de 1910-1920). Os trabalhosrealizados por Jesper Roine e Daniel Waldenstrm com fontes histricas suecastambm foram bastante reveladores e instrutivos.29

    Os dados sobre riqueza e herana tambm nos permitem estudar as mudanasna importncia relativa da riqueza herdada e da poupana para a construo dasgrandes fortunas na dinmica da desigualdade da riqueza. No caso da Frana,para a qual as fontes histricas ricas em detalhes oferecem um ponto de vista

  • nico sobre a evoluo da herana no longo prazo, conseguimos realizar essetrabalho de maneira razoavelmente completa.30 O estudo foi ampliado, emgraus variados, para outros pases, em particular para o Reino Unido, aAlemanha, a Sucia e os Estados Unidos. Todo esse conjunto de informaes temum papel central na nossa investigao, uma vez que a relevncia dadesigualdade da riqueza difere, a depender de suas origens se derivada daherana ou da poupana acumulada ao longo de uma vida. Neste livro, meu foco no s o nvel da desigualdade, como tambm, e acima de tudo, sua estrutura,isto , a origem das disparidades de renda e riqueza entre grupos sociais e asdiferentes justificativas econmicas, sociais, morais e polticas invocadaspara defend-las ou conden-las. A desigualdade no necessariamente um malem si: a questo central decidir se ela se justifica e se h razes concretas paraque ela exista.

    Por fim, tambm podemos usar dados que nos permitam mensurar o estoquetotal da riqueza nacional (incluindo a terra, os imveis, o capital industrial oufinanceiro) no longussimo prazo, medido em nmero de anos de renda nacionaldo pas avaliado. Esse tipo de estudo global da relao capital / renda umexerccio que tem seus limites sempre prefervel analisar a desigualdade dariqueza no nvel de cada indivduo e dimensionar a importncia relativa daherana e da poupana na formao do capital , mas permite, de toda forma,analisar de maneira sinttica a relevncia do capital para o conjunto de umasociedade. Alm disso, em certos casos (em especial os da Frana e do ReinoUnido) possvel coletar e comparar estimativas para diferentes perodos e,assim, alongar o escopo do estudo at o incio do sculo XVIII, o que nos fornecea viso histrica do papel da Revoluo Industrial na formao do capital. Paratanto, foram usados os dados histricos que reuni com a ajuda de GabrielZucman.31 De modo geral, essa pesquisa uma simples extenso egeneralizao do esforo de coleta de balanos patrimoniais por pas realizadopor Ray mond Goldsmith nos anos 1970-1980.32

    Em comparao com os trabalhos anteriores, uma razo para que este livro sedestaque seu esforo de reunir, na medida do possvel, as mais completas esistemticas fontes histricas para o estudo aprofundado da dinmica dadistribuio da renda e da riqueza. Para realiz-lo, desfrutei de duas vantagensem relao aos autores que me precederam: em primeiro lugar, minha pesquisapde contar com uma perspectiva histrica mais ampla do que os trabalhosanteriores (algumas mudanas de longo prazo no emergiram claramente antesque os dados dos anos 2000 estivessem disponveis, em parte porque os choquesdas duas grandes guerras foram demasiado duradouros); em segundo, avanostecnolgicos na rea da computao facilitaram muito o processamento e aanlise de grandes quantidades de dados histricos.

    Embora eu no queira exagerar o papel da tecnologia na histria das ideias,

  • alguns temas puramente tcnicos no devem ser ignorados. evidente que eramuito mais difcil trabalhar com grandes volumes de dados na poca de Kuznets e de certa forma at os anos 1980-1990 do que hoje em dia. Nos anos1970, quando Alice Hanson Jones reuniu inventrios de famlias americanas queremontavam poca colonial33 e Adeline Daumard fez o mesmo com osregistros de patrimnios na Frana do sculo XIX,34 as duas pesquisadorasprecisaram despender um tempo enorme com a tediosa tarefa de manusearfichas e arquivos. Ao reler hoje esses trabalhos notveis, ou ainda o de FranoisSimiand sobre a evoluo dos salrios no sculo XIX e o de Ernest Labroussesobre a histria dos preos e da renda no sculo XVIII, alm das pesquisas deJean Bouvier e de Franois Furet acerca dos movimentos do lucro no sculo XIX,fica evidente que os acadmicos enfrentaram enormes obstculos para coletar etratar seus dados.35 As complicaes de ordem tecnolgica absorveram boaparte da energia desses autores e, muitas vezes, se sobrepuseram anlise e interpretao, sobretudo por limitarem a realizao de comparaesinternacionais e ao longo do tempo. De forma geral, muito mais fcil estudar ahistria da distribuio da riqueza hoje do que no passado. E este livro deve muitoa essa melhoria recente das condies de trabalho do pesquisador.36

    Os principais resultados obtidos neste estudo

    Quais foram as principais concluses que pude tirar dessas fontes histricasinditas? A primeira que se deve sempre desconfiar de qualquer argumentoproveniente do determinismo econmico quando o assunto a distribuio dariqueza e da renda. A histria da distribuio da riqueza jamais deixou de serprofundamente poltica, o que impede sua restrio aos mecanismos puramenteeconmicos. Em particular, a reduo da desigualdade que ocorreu nos pasesdesenvolvidos entre 1900-1910 e 1950-1960 foi, antes de tudo, resultado dasguerras e das polticas pblicas adotadas para atenuar o impacto desses choques.Da mesma forma, a reascenso da desigualdade depois dos anos 1970-1980 sedeveu, em parte, s mudanas polticas ocorridas nas ltimas dcadas,principalmente no que tange tributao e s finanas. A histria da desigualdade moldada pela forma como os atores polticos, sociais e econmicos enxergamo que justo e o que no , assim como pela influncia relativa de cada umdesses atores e pelas escolhas coletivas que disso decorrem. Ou seja, ela frutoda combinao, do jogo de foras, de todos os atores envolvidos.

    A segunda concluso, que constitui o cerne deste livro, que a dinmica dadistribuio da riqueza revela uma engrenagem poderosa que ora tende para aconvergncia, ora para a divergncia, e no h qualquer processo natural ouespontneo para impedir que prevaleam as foras desestabilizadoras, aquelas

  • que promovem a desigualdade.Comecemos pelos mecanismos que levam convergncia, isto , que

    reduzem e comprimem a desigualdade. As principais foras que propelem aconvergncia so os processos de difuso do conhecimento e investimento naqualificao e na formao da mo de obra. A lei da oferta e da demanda, assimcomo a mobilidade do capital e do trabalho (uma variante dela), pode operar afavor da convergncia, mas de maneira menos intensa, e muitas vezes de formaambgua e contraditria. O processo de difuso de conhecimentos ecompetncias o principal instrumento para aumentar a produtividade e aomesmo tempo diminuir a desigualdade, tanto dentro de um pas quanto entrediferentes pases, como ilustra a recuperao atual das naes ricas e de boaparte das pobres e emergentes, a comear pela China. Ao adotar os mtodos deproduo e alcanar os nveis de qualificao de mo de obra dos pases maisricos, as economias emergentes conseguiram promover saltos na produtividade,aumentando a renda nacional. Esse processo de convergncia tecnolgica podeser favorecido pela abertura comercial, mas trata-se, em essncia, de umprocesso de difuso e partilha do conhecimento o bem pblico por excelncia, e no de um mecanismo de mercado.

    De um ponto de vista estritamente terico, pode haver outras foras queaumentem o grau de igualdade. possvel, por exemplo, supor que as tecnologiasde produo tendem a exigir uma capacitao crescente do trabalhador, de talmodo que a participao do trabalho na renda deveria aumentar (enquanto a docapital deveria diminuir), algo que poderamos chamar de hiptese do capitalhumano crescente. Ou seja, o progresso da racionalidade tecnolgica deveriaconduzir automaticamente ao triunfo do capital humano sobre o capitalfinanceiro e imobilirio, dos executivos mais habilidosos sobre os grandesacionistas, da competncia sobre o nepotismo. Se assim fosse, a desigualdade setornaria, por natureza, mais meritocrtica e menos esttica (embora nonecessariamente mais baixa) ao longo da histria: a racionalidade econmica,nesse caso, levaria racionalidade democrtica.

    Outra crena otimista muito difundida na atualidade a ideia de que oaumento da expectativa de vida faria com que a luta de classes fossesubstituda pela luta das geraes uma forma de conflito muito menospolarizada e aguerrida do que os conflitos de classe, pois, afinal, todos seremosjovens e velhos em algum momento de nossas vidas. Esse inexorvel fatobiolgico supostamente leva a crer que a acumulao e a distribuio da riquezano mais conduziriam a um confronto implacvel entre as dinastias de herdeirose as dinastias dos que nada possuem alm da sua fora de trabalho, mas sim auma lgica de poupana do ciclo da vida: as pessoas constroem seu patrimniodurante a juventude para que possam manter determinado padro de vida navelhice. O progresso da medicina, aliado s melhorias da qualidade de vida,

  • muitos argumentam, teria transformado por completo a prpria natureza docapital.

    Infelizmente, as duas crenas otimistas (a hiptese do capital humanocrescente e a substituio da luta de classes pela luta das geraes) so emgrande parte iluses. Transformaes desse tipo so logicamente plausveis e, emcerta medida, reais, mas sua influncia bem menor do que se gostaria deimaginar. No h evidncia de que a participao do trabalho na renda nacionaltenha aumentado de modo substancial ao longo dos anos. O que se sabe que ocapital (no humano) quase to indispensvel no sculo XXI quanto foi nossculos XVIII e XIX e que possvel que se torne ainda mais indispensvel nofuturo. Podemos tambm afirmar que, tal qual acontecia no passado, adesigualdade da riqueza ocorre, sobretudo, dentro de cada faixa etria, everemos que a riqueza herdada quase to decisiva para o padro de vida deuma famlia no sculo XXI quanto era na poca em que Balzac escreveu O paiGoriot. No longo prazo, a fora que de fato impulsiona o aumento da igualdade a difuso do conhecimento e a disseminao da educao de qualidade.

    Foras de convergncia, foras de divergncia

    Ainda que a difuso do conhecimento seja muito potente, sobretudo parapromover a convergncia entre pases, s vezes ela pode ser contrabalanada edominada por outras foras que operem no sentido contrrio as dedivergncia, isto , na direo do aumento da desigualdade. evidente que afalta de investimento adequado na capacitao da mo de obra pode excluirgrupos sociais inteiros, impedindo-os de desfrutar dos benefcios do crescimentoeconmico, ou at mesmo rebaix-los em benefcio de novos grupos sociais:vejam, por exemplo, a substituio de operrios americanos e franceses poroperrios chineses. Ou seja, a principal fora de convergncia a difuso doconhecimento s natural e espontnea em parte. Ela tambm depende muitodas polticas de educao e do acesso ao treinamento e capacitao tcnica, ede instituies que os promovam.

    Neste livro, procuro dar ateno especial a algumas das foras de divergnciamais preocupantes elas so to inquietantes porque podem existir mesmo nummundo onde haja um nvel de investimento adequado em treinamento ecapacitao da mo de obra e onde todas as condies que asseguram aeficincia dos mercados (na definio dos economistas) estejam presentes.Quais so essas foras de divergncia? So aquelas que garantem que osindivduos com os salrios mais elevados se separem do restante da populao demodo aparentemente intransponvel, ainda que por ora esse problema parea umtanto pontual e localizado. So tambm, sobretudo, um conjunto de foras de

  • divergncia atreladas ao processo de acumulao e concentrao de riqueza emum mundo caracterizado por crescimento baixo e alta remunerao do capital.Esse segundo processo potencialmente mais desestabilizador do que o primeiro,o do distanciamento dos salrios, e sem dvida representa a principal ameaapara a distribuio igualitria da riqueza no longo prazo.

    Vamos direto ao ponto: os Grficos I.1 e I.2 ilustram duas regularidades sobreas quais discorrerei a seguir, uma vez que elas evidenciam a relevncia dos doisprocessos de divergncia. Ambos mostram curvas em formato de U, isto ,momentos de queda da desigualdade seguidos de aumentos expressivos.Poderamos supor que as realidades representadas nos dois grficos seassemelham, mas isso no verdade. Os fatores que explicam cada grfico sodistintos e envolvem mecanismos econmicos, sociais e polticos bem diferentes.A primeira curva retrata a desigualdade de renda nos Estados Unidos, enquantoas representadas no Grfico I.2 dizem respeito sobretudo Europa e poderiam seaplicar tambm ao Japo. No fora de propsito acreditar que essas duasforas de divergncia venham a se juntar ao longo do sculo XXI na verdade,isso j , em parte, realidade em alguns pases e ainda se generalizar para omundo todo. Nesse caso, alcanaramos nveis de desigualdade jamais vistos,alm de nos defrontarmos com uma estrutura de desigualdade indita. At omomento, entretanto, essas duas impressionantes evolues correspondem a doisfenmenos distintos.

    A curva representada no Grfico I.1 mostra a participao do dcimo superiorda hierarquia de distribuio de renda na renda nacional americana durante operodo 1910-2010. Trata-se simplesmente da extenso das sries histricaselaboradas por Kuznets nos anos 1950. Encontramos de fato ali a fortecompresso das desigualdades observada por Kuznets entre 1913 e 1948, comuma baixa de quinze pontos na participao do dcimo mais alto, que detinhacerca de 45-50% da renda nacional entre 1910 e 1920 antes de cair para 30-35%ao final dos anos 1940. Em seguida, a desigualdade se estabilizou nesse nvel de1950 a 1970. Depois se observa um aumento muito rpido da desigualdade apartir dos anos 1970-1980, at que, quando chegamos aos anos 2000-2010,retornamos ao nvel anterior de 45-50% da renda nacional isto , voltamos aver os mais ricos se apropriarem de quase metade da renda do pas. A amplitudeda reviravolta impressionante. natural se perguntar at onde pode ir umatendncia desse tipo.

    Essa elevao espetacular da desigualdade reflete, em grande medida, aexploso sem precedentes de rendas muito altas derivadas do trabalho, umverdadeiro abismo entre os rendimentos dos executivos de grandes empresas e orestante da populao. Uma explicao possvel que tenha havido um aumentorepentino da qualificao e da produtividade desses superexecutivos, emcomparao com a de outros assalariados. Outra explicao, que me parece

  • mais plausvel e tambm mais condizente com as evidncias, que os executivosconseguem estabelecer a sua prpria remunerao, s vezes sem limite algumou mesmo sem relao clara com sua produtividade individual, que, de todomodo, muito difcil de mensurar sobretudo nas grandes corporaes. Talevoluo se observa, principalmente, nos Estados Unidos e, em menor grau, noReino Unido, o que pode ser explicado pela histria das normas sociais e fiscaisque caracteriza esses dois pases durante o sculo XX. A tendncia menosvisvel nos outros pases ricos (Japo, Alemanha, Frana e outros da Europacontinental), mas segue na mesma direo. Seria prematuro achar que essefenmeno pode alcanar em outros pases as mesmas propores a que chegounos Estados Unidos antes que se tenham submetido todos eles a uma anlisecompleta o que no to simples, levando-se em conta os limites dos dadosdisponveis.

  • A participao do dcimo superior na renda nacional americana passoude 45-50% nos anos 1910-1920 para menos de 35% nos anos 1950 (trata-se da queda documentada por Kuznets); depois voltou a subir de menos de35% nos anos 1970 para 45-50% nos anos 2000-2010.Fontes e sries: ver www.intrinseca.com.br/ocapital.Acesse o grfico no site.

    A fora fundamental da divergncia: r > g

    A segunda regularidade emprica, representada no Grfico I.2, remete a ummecanismo de divergncia que , de certa forma, mais simples e transparente esem dvida exerce uma influncia ainda maior na evoluo da distribuio darenda no longo prazo. O Grfico I.2 mostra a evoluo da riqueza privada noReino Unido, na Frana e na Alemanha (sob a forma de imveis, ativosfinanceiros e patrimnio lquido), expressa em anos da renda nacional, para operodo dos anos 1870-2010. Reparem, antes de tudo, no nvel elevadssimo dariqueza privada europeia na notvel prosperidade alcanada no fim do sculoXIX e durante a Belle poque: o valor da riqueza privada corresponde a incrveisseis ou sete anos de renda nacional, o que algo considervel. Em seguida,constata-se uma forte queda aps os choques dos anos 1914-1945: a relaocapital / renda cai para apenas dois ou trs anos. Depois se observa, a partir dosanos 1950, uma alta contnua to forte que as fortunas privadas do incio dosculo XXI parecem prestes a se igualar s das vsperas da Primeira GuerraMundial, chegando a cinco ou seis anos da renda nacional tanto no Reino Unidoquanto na Frana (o nvel atingido menor na Alemanha, uma vez que o pontode partida mais baixo; contudo, a tendncia a mesma).

  • O total da riqueza privada se situa entre seis e sete anos da renda nacionalna Europa em 1910, entre dois e trs anos em 1950 e entre quatro e seisanos em 2010.Fontes e sries: ver www.intrinseca.com.br/ocapital.Acesse o grfico no site.

    Essa curva em U corresponde a uma transformao absolutamentefundamental, assunto que revisitaremos vrias vezes ao longo do livro. Oreaparecimento das relaes elevadas entre o estoque de capital e o fluxo derenda nacional durante as ltimas dcadas se explica pela volta de um regime decrescimento relativamente lento. Nas economias que crescem pouco, a riquezaacumulada no passado naturalmente ganha uma importncia desproporcional,pois basta um pequeno fluxo de poupana para aumentar o estoque de formaconstante e substancial.

    Se, alm disso, a taxa de retorno do capital permanecer acima da taxa decrescimento por um perodo prolongado (o que mais provvel quando a taxa decrescimento baixa, embora isso no seja automtico), h um risco muito altode divergncia na distribuio de renda.

    Essa desigualdade fundamental, que denotarei como r > g, em que r a taxade remunerao do capital (isto , o que rende, em mdia, o capital durante umano, sob a forma de lucros, dividendos, juros, aluguis e outras rendas do capital,em porcentagem de seu valor) e g representa a taxa de crescimento (isto , ocrescimento anual da renda e da produo), desempenhar um papel essencialneste livro. De certa maneira, ela resume a lgica das minhas concluses.

    Quando a taxa de remunerao do capital excede substancialmente a taxa decrescimento da economia como ocorreu durante a maior parte do tempo at osculo XIX e provvel que volte a ocorrer no sculo XXI , ento, pela lgica,a riqueza herdada aumenta mais rpido do que a renda e a produo. Basta entoaos herdeiros poupar uma parte limitada da renda de seu capital para que elecresa mais rpido do que a economia como um todo. Sob essas condies, quase inevitvel que a fortuna herdada supere a riqueza constituda durante umavida de trabalho e que a concentrao do capital atinja nveis muito altos,potencialmente incompatveis com os valores meritocrticos e os princpios dejustia social que esto na base de nossas sociedades democrticas modernas.

    Essa fora de divergncia fundamental pode, alm disso, ser reforada poroutros mecanismos, como, por exemplo, se a taxa de poupana aumentar muitocom o nvel de riqueza37 ou, ainda, se a taxa mdia de retorno do capital formaior quanto mais elevada for a dotao inicial de capital de um indivduo(como parece ser cada vez mais comum). O carter imprevisvel e arbitrrio doretorno do capital, que permite que a riqueza aumente de diversas maneiras,tambm apresenta um desafio para o ideal meritocrtico. Por fim, todos esses

  • efeitos podem ser agravados pelo princpio da escassez ricardiano: as altascotaes do petrleo ou os preos elevados dos imveis podem contribuir para adivergncia estrutural.

    Em suma, os processos de acumulao e distribuio da riqueza contm em sipoderosas foras que impulsionam a divergncia, ou, ao menos, levam a umnvel de desigualdade extremamente elevado. H, tambm, foras deconvergncia, e em alguns pases ou em determinados momentos elas podempredominar; contudo, as foras de divergncia tm sempre a capacidade de serestabelecer, como parece estar acontecendo no mundo agora, neste incio dosculo XXI. A queda provvel no crescimento econmico e no ritmo deexpanso da populao ao longo das prximas dcadas torna essa tendnciaainda mais alarmante.

    Minhas concluses so menos apocalpticas do que as que resultam doprincpio de acumulao infinita e divergncia perptua articulado por Marx(cuja teoria repousa implicitamente na hiptese de crescimento nulo daprodutividade no longo prazo). No esquema proposto, a divergncia no perptua, mas apenas um dos rumos possveis para a distribuio da riqueza.Ainda assim, o quadro no animador. Em particular, importante ressaltar quea desigualdade fundamental, r > g, a principal fora de divergncia no meuestudo, no tem relao alguma com qualquer imperfeio do mercado. Aocontrrio, quanto mais perfeito (no sentido dos economistas) o mercado decapital, maior a chance de que r supere g. possvel imaginar que instituies epolticas pblicas possam contrabalanar os efeitos dessa lgica implacvel: porexemplo, a adoo de um imposto progressivo sobre o capital pode atuar sobre adesigualdade r > g, alinhando a remunerao do capital e o crescimentoeconmico. Todavia, sua aplicao iria requerer um esforo brutal decoordenao internacional. Diante disso, infelizmente, provvel que asrespostas prticas para os problemas aqui apresentados sejam demasiadomodestas e ineficazes, como, por exemplo, sob a forma de respostasnacionalistas de diversas naturezas.

    O quadro geogrfico e histrico

    Quais so as delimitaes geogrficas e temporais desta investigao? Namedida do possvel, tentarei analisar a dinmica mundial da distribuio dariqueza, tanto dentro de cada pas quanto entre pases, desde o sculo XVIII. Naprtica, contudo, as vrias limitaes dos dados disponveis me obrigaro comfrequncia a restringir bastante o campo estudado. No que concerne adistribuio da produo e da renda entre os pases, tema da Primeira Parte, aabordagem mundial possvel a partir de 1700 (graas, principalmente, s contas

  • nacionais reunidas por Angus Maddison). Quando estudarmos a dinmica darelao capital / renda e da diviso capital-trabalho, na Segunda Parte, seremosobrigados a nos limitar aos casos dos pases ricos e a proceder por extrapolaopara analisar os pases pobres e emergentes, por falta de dados histricosadequados. Quando examinarmos a evoluo da desigualdade de renda e dariqueza, na Terceira Parte, o escopo ser, tambm, fortemente restringido pelasfontes disponveis. Tentaremos levar em conta o mximo de pases pobres eemergentes, graas, sobretudo, aos dados provenientes da WTID, cujo objetivo cobrir os cinco continentes da forma mais completa possvel. bastante evidente,porm, que as tendncias de longo prazo esto mais bem documentadas nospases ricos. Concretamente, este livro se baseia, acima de tudo, na anlise daexperincia histrica dos principais pases desenvolvidos: Estados Unidos, Japo,Alemanha, Frana e Reino Unido.

    Os casos do Reino Unido e da Frana so particularmente significativos, poissuas fontes histricas so as mais extensas e completas. Tanto para o Reino Unidoquanto para a Frana, dispomos de diversas estimativas da riqueza nacional e desua estrutura, o que nos permite remontar ao incio do sculo XVIII. Esses doispases foram, alm disso, as duas principais potncias coloniais e financeiras dosculo XIX e do incio do sculo XX. , portanto, de extrema importncia que asduas experincias sejam estudadas em detalhe para elucidar a evoluo dadistribuio mundial da riqueza desde a Revoluo Industrial. Sua histria indispensvel para que possamos investigar o perodo que com frequncia chamado de primeira globalizao financeira e comercial, a dos anos 1870 a1914, poca que guarda profundas semelhanas com a segunda globalizao,em curso desde os anos 1970-1980. Trata-se de um perodo ao mesmo tempofascinante e prodigiosamente desigual. So os anos em que se inventam almpada eltrica e as viagens transatlnticas (o Titanic partiu em 1912), o cinemae o rdio, o automvel e os investimentos financeiros internacionais. Valelembrar que os pases ricos tiveram de esperar at o incio do sculo XXI pararetomar o nvel de capitalizao da bolsa de valores como do Produto InternoBruto (PIB) ou da renda nacional que se tinha em Paris e Londres nos anos1900-1910. Essa comparao muito elucidativa para a compreenso do mundode hoje.

    Certos leitores sem dvida se espantaro com a importncia que atribuo aoestudo do caso francs e podem vir a suspeitar de que se trata de uma anlisecom vis nacionalista. Ento, devo me justificar. Trata-se, em primeiro lugar, deuma questo de fontes. A Revoluo Francesa no criou uma sociedade justa eideal, mas teve, ao menos, o mrito de permitir que se observasse a estrutura dariqueza com uma notvel abundncia de detalhes: o sistema de registro dapropriedade da terra, dos imveis e dos ativos financeiros institudo nos anos1790-1800 surpreendentemente moderno e abrangente para a poca. Isso

  • explica por que os dados de herana franceses parecem ser os mais completosdo mundo.

    O segundo motivo que a Frana, por ser o pas que sofreu a transiodemogrfica mais precocemente, uma boa referncia para se refletir sobre oque o resto do mundo espera. A populao francesa aumentou durante os doisltimos sculos, mas num ritmo um tanto lento. A Frana contava com cerca detrinta milhes de habitantes na poca da Revoluo Francesa e tem, hoje, poucomais de sessenta milhes. Trata-se do mesmo pas, com uma populao cujaordem de grandeza no mudou. Os Estados Unidos, por outro lado, tinham poucomais de trs milhes de habitantes quando da Declarao de Independncia. Noincio dos anos 2010, sua populao alcanou a faixa dos trezentos milhes deindivduos. evidente que, quando um pas passa de trs para trezentos milhesde habitantes (sem falar do aumento radical da escala territorial que sobreveio daexpanso para o Oeste no sculo XIX), no se trata mais do mesmo pas.

    A dinmica e a estrutura da desigualdade so muito diferentes em um pasonde a populao foi multiplicada por cem e em outro onde ela apenas dobrou.Em particular, o peso da herana bem menor no primeiro caso emcomparao com o segundo. Foi o forte crescimento demogrfico do NovoMundo que fez com que o peso das heranas nos Estados Unidos fosse sempreinferior ao da Europa. Isso explica por que a estrutura da desigualdadeamericana to peculiar, alm de elucidar os motivos para que a estratificaosocial nos Estados Unidos seja igualmente particular. Mas isso significa, tambm,que o caso americano no passvel de generalizaes ( pouco provvel, porexemplo, que a populao mundial seja multiplicada por cem nos dois prximossculos), enquanto o caso francs mais representativo e pertinente para sepensar sobre o futuro. Estou convencido de que a anlise detalhada do caso daFrana e das diferentes trajetrias histricas observadas nos pases desenvolvidos na Europa, no Japo, na Amrica do Norte e na Oceania tem muito a nosdizer sobre a dinmica global futura. A observao vale tambm para os paseshoje denominados emergentes, como a China, o Brasil ou a ndia, que, afinal,ho de sofrer tanto os efeitos da desacelerao do crescimento demogrficoquanto da reduo no ritmo da expanso econmica.

    Por fim, o caso da Frana interessante porque a Revoluo Francesa revoluo burguesa por excelncia introduziu precocemente o ideal deigualdade jurdica em relao ao mercado. interessante avaliar como esseideal afetou a dinmica da distribuio da riqueza. Embora a Revoluo Inglesade 1688 tenha dado incio ao parlamentarismo moderno, ela conservou umadinastia real, deixou inalterada a primazia sobre a propriedade da terra para osprimognitos at os anos 1920 e manteve os privilgios polticos da nobrezahereditria at o presente (a reforma da Cmara dos Lordes est em discussoat hoje, o que , obviamente, um debate longo demais). Por outro lado, a

  • Revoluo Americana de 1776 instituiu o princpio republicano, porm deixou aescravido prosperar durante mais um sculo, alm de garantir a legalidade dadiscriminao racial durante quase dois sculos. No toa que a questo racialcontinua a influenciar, at hoje, o debate social nos Estados Unidos. A RevoluoFrancesa de 1789 foi, de certa maneira, mais ambiciosa: aboliu todos osprivilgios legais e tencionou criar uma ordem poltica e social totalmentefundada na igualdade dos direitos e das oportunidades. O Cdigo Civil garantiu aigualdade absoluta no que diz respeito ao direito de propriedade e permitiu a livrecontratao (pelo menos para os homens). No final do sculo XIX e da Bellepoque, os economistas conservadores franceses como Paul Leroy -Beaulieu utilizavam quase sempre esse argumento para explicar por que a Franarepublicana, pas de pequenos proprietrios, que se tornou igualitrio graas Revoluo Francesa, no tinha necessidade de um imposto progressivo sobre arenda ou sobre as heranas, ao contrrio do Reino Unido monrquico earistocrtico. Ora, nossos dados demonstram que a concentrao da riqueza era,nessa poca, quase to extrema na Frana quanto no Reino Unido, o que ilustraclaramente que a garantia de direitos iguais nos mercados no suficiente paraconduzir igualdade dos direitos tout court. Mais uma vez, a experincia daFrana muito relevante para o mundo de hoje, onde muitos continuam a crer, imagem de Leroy -Beaulieu, que basta garantir os direitos de propriedade e alivre operao dos mercados e enaltecer a concorrncia pura e perfeita parase chegar a uma sociedade justa, prspera e harmoniosa. A tarefa, infelizmente, mais complexa do que isso.

    O quadro terico e conceitual

    Antes de prosseguir, til descrever um pouco melhor o quadro terico econceitual que fundamenta esta pesquisa, alm de traar o itinerrio intelectualque me conduziu a esta obra.

    Perteno a uma gerao que fez dezoito anos em 1989, bicentenrio daRevoluo Francesa e, tambm, ano da queda do Muro de Berlim. Minhagerao , ainda, a que chegou idade adulta ouvindo as notcias dodesmoronamento das ditaduras comunistas e que jamais sentiu qualquer ternuraou nostalgia por esses regimes ou pela Unio Sovitica. Fui vacinado bem cedocontra os discursos anticapitalistas convencionais e preguiosos, que parecem svezes ignorar o fracasso histrico fundamental do comunismo e que se recusama se render aos argumentos intelectuais que permitiriam deixar a retrica gastapara trs. No me interessa denunciar a desigualdade ou o capitalismo enquantotal sobretudo porque a desigualdade social no um problema em si, desdeque se justifique, desde que seja fundada na utilidade comum, como proclama

  • o artigo primeiro da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789.(Embora essa definio de justia social, ainda que sedutora, seja imprecisa, estancorada na histria. Vamos adot-la por ora; voltarei a esse assunto mais tarde.)O que me interessa contribuir, pouco importa quo modestamente, para odebate sobre a organizao social, as instituies e as polticas pblicas queajudam a promover uma sociedade mais justa. Para mim, isso s tem validadese alcanado no contexto do estado de direito, com regras conhecidas eaplicveis a todos e que possam ser debatidas de maneira democrtica.

    Devo dizer que desfrutei do sonho americano aos 22 anos, quando fuicontratado para lecionar em uma universidade perto de Boston, logo aps prmeu diploma de doutorado no bolso. Essa experincia foi decisiva em mais deum sentido. Era a primeira vez que eu botava os ps nos Estados Unidos, e oreconhecimento precoce da minha pesquisa acadmica no foi desagradvel. Aestava um pas que sabia atrair os imigrantes que desejava reter! Todavia, logome dei conta de que queria voltar para a Frana e para a Europa, o que fiz aocompletar 25 anos. Desde ento no sa mais de Paris, exceto para um punhadode viagens curtas. Um dos motivos mais importantes para a minha escolha temrelao direta com este livro: no fui convencido pelo trabalho dos economistasamericanos. claro que todos eram muito inteligentes e ainda tenho vriosamigos que pertencem a esse universo. Mas havia algo de estranho: eu estavabem ciente de que no sabia nada sobre os problemas econmicos do mundo.Minha tese consistia em alguns teoremas matemticos relativamente abstratos. E,no entanto, eu era bastante admirado naquele meio. Logo me dei conta de quenenhum trabalho emprico de peso sobre a dinmica da desigualdade forarealizado desde a poca de Kuznets (foi a isso que me dediquei quando volteipara a Frana) e, ainda assim, continuavam a alinhar resultados puramentetericos, sem nem mesmo saber quais fatos explicar, e esperavam que eu fizesseo mesmo.

    Sejamos francos: a economia jamais abandonou sua paixo infantil pelamatemtica e pelas especulaes puramente tericas, quase sempre muitoideolgicas, deixando de lado a pesquisa histrica e a aproximao com as outrascincias sociais. Com frequncia, os economistas esto preocupados, acima detudo, com pequenos problemas matemticos que s interessam a eles, o que lhespermite assumir ares de cientificidade e evitar ter de responder s perguntasmais complicadas feitas pelo mundo que os cerca. Ser economista acadmico naFrana tem uma grande vantagem: ns no somos to respeitados nos meiosintelectuais e acadmicos, tampouco pelas elites polticas e financeiras. Issoobriga os economistas a abandonar o desprezo que sentem pelas outras disciplinase a pretenso absurda a uma legitimidade cientfica superior, ainda que nosaibam quase nada sobre coisa alguma. Est a, alis, o charme da disciplina edas cincias sociais em geral: parte-se do incio, bem do incio, s vezes, o que

  • permite a esperana de fazer progressos importantes. Na Frana, os economistasso, creio eu, um pouco mais incitados do que nos Estados Unidos a convencerseus colegas historiadores e socilogos sem falar no mundo fora da academia de que aquilo que esto fazendo de fato interessante (embora nem sempresejam bem-sucedidos nessa tarefa). Meu sonho quando lecionava em Boston eravoltar para a cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, uma instituio cujosexpoentes incluem Lucien Febvre, Fernand Braudel, Claude Lvi-Strauss, PierreBourdieu, Franoise Hritier, Maurice Godelier e tantos outros. Ser que devoconfessar isso, arriscando-me a parecer arrogante na minha viso das cinciassociais? Tenho talvez mais admirao por esses estudiosos do que por RobertSolow ou at mesmo por Simon Kuznets ainda que boa parte das cinciassociais tenha deixado de se interessar pela distribuio da riqueza e pela divisode classes sociais. Em contrapartida, as questes de renda, salrios, preos efortunas tinham lugar de destaque nos programas de pesquisa de histria e desociologia at os anos 1970-1980. Na verdade, eu adoraria que tanto osespecialistas, os cientistas sociais, quanto o pblico geral encontrassem algo deinteressante neste livro, a comear por todos aqueles que dizem no saber nadade economia, mas que com frequncia tm opinies muito fortes sobre adesigualdade de renda e da riqueza, o que natural.

    Na realidade, a economia jamais deveria ter tentado se separar das outrascincias sociais; no h como avanar sem saber o que se passa nas outras reas.Coletivamente, o conhecimento das cincias sociais demasiado pobre para quese perca tempo com picuinhas, pequenas disputas de territrio sobre quem deveestudar o qu. Para fazer progressos importantes nas questes fundamentais,como a dinmica histrica da distribuio da riqueza e da estrutura das classessociais, preciso proceder com pragmatismo e mobilizar mtodos e abordagensde vrias disciplina