nietzsche a filosofia (gilles deleuze)

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    NIETZSCHE E A FILOSOFIADELEUZE, G., Ed RS, PORTO, PORTUGAL, ?????

    INDICE: (numerao do arquivo)

    Capitulo IO trgico

    1. O conceito de genealogia 32. O sentido 43. Filosofia da Vontade 44. Contra a dialtica 55. O problema da tragdia 66. A evoluo de Nietzsche 77. Dionsio e Cristo 88. A essncia do Trgico 8

    9. O problema da existncia 910. Existncia e inocncia 911. O lance de dados 1112. Conseqncias para o eterno retorno 1113. Simbolismo de Nietzsche 1214. Nietzsche e Mallarm 1315. O pensamento trgico 1316. A pedra-de-toque 14

    Captulo IIAtivo e reativo

    1. O corpo 142. A distino das foras 153. Quantidade e qualidade 164. Nietzsche e a cincia 175. Primeiro aspecto do eterno retorno: 18

    como doutrina cosmolgica e fsica6. O que a vontade de poder? 197. A terminologia de Nietzsche 208. Origem e imagem invertida 21

    9. Problema da medida das foras 2210. A hierarquia 2211. Vontade de poder e sentimento de poder 2312. O devir-reativo das foras 2313. Ambivalncia do sentido e dos valores 2314. O segundo aspecto do eterno retorno: 24

    como pensamento tico e seletivo15. O problema do eterno retorno 25

    Captulo IIIA crtica

    1. Transformao das cincias do homem 252. A frmula da questo em Nietzsche 26

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    3. O mtodo de Nietzsche 264. Contra os seus predecessores 275. Contra o pessimismo e contra Schopenhauer 286. Princpios para a filosofia da vontade 287. Plano de A genealogia da Moral 298. Nietzsche e Kant do ponto de vista dos princpios 309. Realizao da crtica 3010. Nietzsche e Kant do ponto de vista das conseqncias 3111. O conceito de verdade 3112. Conhecimento, moral e religio 3213. O pensamento e a vida 3314. A arte 3315. Nova imagem do pensamento 34

    Captulo IVDo ressentimento m-conscincia

    1. Reao e ressentimento 362. Princpio do ressentimento 363. Tipologia do ressentimento 384. Caractersticas do ressentimento 385. bom? mau? 396. O paralogismo 407. Desenvolvimento do ressentimento: o sacerdote judaico 418. M conscincia e interioridade 429. O problema da dor 4210. Desenvolvimento da m conscincia: o sacerdote cristo 43

    11. A cultura encarada do ponto de vista pr-histrico 4412. A cultura encarada do ponto de vista ps-histrico 4513. A cultura encarada sob o ponto de vista histrico 4614. M conscincia, responsabilidade, culpabilidade___________ 4615. O ideal asctico e a essncia da religio_ 4716. Triunfo das foras reativas 48

    Captulo VO super-homem: contra a dialtica

    1. O niilismo 48

    2. Analise da piedade 493. Deus morreu 504. Contra o hegelianismo 515. As transformaes da dialtica 526. Nietzsche e a dialtica 527. Teoria do homem superior 538. Ser o homem essencialmente reativo? 539. Niilismo e transmutao: o ponto focal 5410. A afirmao e a negao 5511. O sentido da afirmao 5612. A dupla afirmao: Ariadne 5813. Dionsio e Zaratustra 58

    Concluso 59

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    CAPTULO I

    O TRGICO (051)

    1. O CONCEITO DE GENEALOGIA

    01. O projeto mais geral de NIETZSCHE introduzir na filosofia os conceitos de

    sentido e valor, fazendo com isso da filosofia uma crtica. Modernamente, a teoria dos valores

    engendrou um novo conformismo e novas submisses. Para NIETZSCHE, entretanto, a

    filosofia dos valores a nica maneira de realizar a crtica total. A noo de valor implica uma

    inverso crtica: por um lado, as avaliaes supem valores anteriores; por outro lado e mais

    profundamente, so os valores que supe avaliaes, donde deriva seu prprio valor. O

    problema crtico esse: o valor dos valores e, portanto, o problema da sua criao. A

    avaliao, elemento diferencial, simultaneamente crtica e criadora. As avaliaes no so

    valores, mas maneiras de ser que servem de princpio aos valores em relao aos quais julgam.

    Eis o essencial: o elevado e o baixo, o nobre e o vil no so valores, mas representam o

    elemento diferencial donde deriva o prprio valor dos valores.

    02. A filosofia crtica tem dois movimentos inseparveis: referir as coisas valores ereferir esses valores a algo que seja como a sua origem e decida sobre o seu valor.

    NIETZSCHE coloca-se portanto tanto contra os que subtraem os valores crtica (ou fazem a

    crtica em nome de valores estabelecidos e intocveis) quanto contra os que fazem a crtica

    derivar de pretensos fatos objetivos (utilitaristas), ambos nadando no elemento indiferente do

    que vale em si ou do que vale para todos. NIETZSCHE insurge-se contra a elevada idia de

    fundamento que deixa os valores indiferentes sua origem e contra a idia de uma simples

    derivao causal, indiferente, dos valores a partir de sua origem. Da o conceito novo degenealogia, que aposta no sentimento de diferena ou distncia, diferentemente do princpio

    da universalidade kantiana (ou do til).

    03. Genealogia quer dizer simultaneamente valor de origem e origem dos valores. Sua

    crtica ao mesmo tempo o elemento positivo de uma criao. Por isso a crtica no

    REAO, mas AO; a crtica ope-se vingana, ao ressentimento. a expresso ativa de

    um modo de existncia ativo, a maldade que pertence perfeio. Essa maneira de ser a do

    filsofo. Dessa genealogia NIETZSCHE espera muitas coisas: uma nova organizao dascincias, da filosofia, dos valores.

    1 Numerao original. O numero no inicio do pargrafo corresponde a paragrafao do original.

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    2. O SENTIDO (08)

    01. Encontrar o sentido de algo conhecer a fora que desse algo se apropria, ou

    explora, ou exprime-se nele. Um fenmeno um sintoma que encontra seu sentido numa fora

    atual, no uma aparncia ou apario. Da a filosofia ser uma sintomatologia e uma

    semiologia. dualidade aparncia-essncia e tambm relao causa-efeito NIETZSCHE

    substitui a correlao do fenmeno e do sentido. Qualquer fora apropriao de uma

    quantidade de realidade (mesmo a percepo). Por isso a histria de algo a sucesso das

    foras que dela se apoderaram, e a coexistncia das foras que lutam para dela se apoderar. O

    sentido , portanto, uma noo complexa. Existe sempre uma pluralidade de sentidos,

    sucessivos e tambm coexistentes, o que faz da interpretao uma arte. Qualquer subjugao,

    qualquer dominao equivale a uma interpretao nova.02. No se compreende NIETZSCHE sem levar em conta seu pluralismo essencial

    (pluralismo, alis, prprio da filosofia, nica garantidor de liberdade no esprito concreto,

    nico princpio de um violento atesmo). por isso que NIETZSCHE no acredita em

    grandes acontecimentos ruidosos, mas na pluralidade silenciosa de sentidos de cada

    acontecimento. Vemos nessa pluralidade de sentidos a conquista mais elevada da filosofia, sua

    maturidade (ao contrrio de HEGEL, que via nela uma certa ingenuidade). A noo de

    essncia no se perde a, mas toma uma nova significao: se a coisa tem tantos sentidosquanto foras dela se apoderarem, por outro lado ela no neutra, e guarda afinidade com as

    foras com que se relaciona. Chamar-se- essncia pelo contrrio aquele sentido que d

    coisa a fora que apresenta maiores afinidades com ela, a ponto de quase confundirem-se

    ambas (no se sabe quem a fora quem o objeto dominado).

    03. A interpretao revela sua complexidade se se considerar que uma nova fora s

    pode aparecer se usar, desde o incio, as mascaras das foras precedentes que j a ocupavam.

    A mscara ou a astcia so as leis da natureza, A vida, em seus incios, deve mimar a matria

    para ser apenas possvel2. A arte de interpretar deve ser uma arte de penetrar nas mscaras,

    descobrindo quem se mascara e porque, assim como porque se conserva uma mscara

    remodelando-a. A genealogia no aparece no princpio; em qualquer coisa, s os graus

    superiores importam. A diferena na origem no aparece desde a origem, e pode mesmo ter

    interesse em confundir-se com outra coisa.

    3. A FILOSOFIA DA VONTADE (12)

    2 BRGSON, A Evoluo Criadora.

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    01. Todo objeto j a expresso de uma fora; na relao de um objeto com uma fora,

    so foras que se relacionam. H relaes de afinidade do objeto com a fora que dele se

    apodera. O ser da fora o plural: seria absurdo pensar a fora no singular. Uma fora

    dominao, mas tambm o objeto sobre o qual essa dominao se exerce. Uma pluralidade

    de foras interagindo, sendo a DISTNCIA o elemento diferencial compreendido em cada

    fora e pela qual cada uma se refere a outras: esse o princpio da filosofia da natureza em

    NIETZSCHE.. A crtica do atomismo deve ser compreendida a partir da o atomismo sendo

    uma tentativa de emprestar matria uma pluralidade e uma distncia essenciais que s

    podem pertencer fora (os tomos so o indiviso, so seu nico objeto, eles s se relacionam

    consigo mesmos). O atomismo seria uma mscara para o dinamismo crescente.

    02. O conceito de fora o de uma fora que se relaciona com uma outra fora; sob esse

    aspecto, a fora chama-se uma vontade. A vontade (vontade de poder) o elementodiferencial da fora. A vontade exerce-se necessariamente sobre uma outra vontade; ela

    complexa, porque ela quem manda e tambm ela quem obedece; o verdadeiro problema

    no est na relao do querer com o involuntrio, mas na relao de uma vontade que ordena

    com uma vontade que obedece. Assim o pluralismo encontra sua confirmao imediata e seu

    terreno de eleio na filosofia da vontade. Esse o ponto preciso da ruptura entre NIETZSCHE.

    e SCHOPENHAUER:trata-se de saber se a vontade uma ou mltipla. Para NIETZSCHE.,

    conceber a vontade como una leva sua negao.03. NIETZSCHE. denuncia a alma, o eu, o egosmo, como os ltimos refgios do

    atomismo. Em qualquer querer, trata-se simplesmente de mandar e obedecer, sob a base de

    uma estrutura social de muitas almas. Quando NIETZSCHE. canta o egosmo, quer com isso

    criticar a virtude do desinteresse. Mas o egosmo, como o atomismo, uma m

    interpretao da vontade, pois ainda supe um ego. E no h um ego na origem, mas a

    diferena entre foras. A diferena na origem a HIERARQUIA (que est, portanto,

    inseparvel da genealogia, como valor de origem e origem dos valores a hierarquia o

    nosso problema, diz NIETZSCHE.). A hierarquia o fato originrio, a identidade da

    diferena e da origem. Assim, o sentido de qualquer coisa a relao dessa coisa com a fora

    que dela se apodera, e o valor de qualquer coisa est na hierarquia das foras que se exprimem

    na coisa enquanto fenmeno complexo.

    4. CONTRA A DIALTICA (15)

    01. A relao nietzschiana de uma fora com outras no nunca dialtica, pois o que

    caracteriza esta o papel do negativo na relao, no simplesmente uma relao entre o uno e

    o outro, e em NIETZSCHE. a relao de afirmao, no de negao. A dialtica o mais

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    feroz inimigo do pluralismo. O conjunto da filosofia de NIETZSCHE. dirige-se, entre outros,

    contra a dialtica, anti-hegeliana por princpio (o super-homem, por exemplo, dirigido

    contra a concepo dialtica de homem, e a transvalorao contra a dialtica da apropriao

    ou da supresso da alienao).

    02. Em NIETZSCHE. o negativo no est presente na essncia, como aquilo de que a

    fora extrai sua atividade; pelo contrrio, ele produto da existncia ativa, parte necessria

    da agressividade de uma afirmao. O que a fora quer afirmar-se em sua diferena. No se

    trata de negar a fora que obedece ou que difere da que manda. A negao apenas um

    conceito secundrio, um plido contraste nascido da prpria afirmao. nesse sentido que

    existe um empirismo em NIETZSCHE., baseado no prazer de afirmar a prpria diferena (em

    oposio ao trabalho do negativo na dialtica). Quando NIETZSCHE. pergunta o que quer

    uma vontade, no se trata de encontrar com isso motivos para ela; o que uma vontade quer afirmar sua diferena (nascido de sua relao essencial com o outro). A diferena constitui o

    objeto de uma afirmao prtica inseparvel da essncia e constitutiva da existncia.

    03. A dialtica remete um modo de existncia de foras esgotadas, que no tem a fora

    de afirmar sua diferena, perdendo a atividade e apenas reagindo s foras que a dominam; da

    fazer passar ao primeiro plano a negao em sua relao com o outro. A prpria relao do

    senhor e do escravo no , em si mesma, dialtica: o escravo quem a enxerga assim. Para o

    senhor, o escravo uma fora entre outras, e faz parte de sua prpria afirmao de si; para oescravo, ao contrrio, o senhor quem deve ser negado para que o escravo possa afirmar-se. A

    relao hegeliana entre senhor e escravo dialtica porque sob o senhor hegeliano sempre

    aparece apenas o escravo. O poder, para o escravo, diferena de NIETZSCHE, sempre

    objeto de uma recognio, matria de uma representao, o prmio de uma competio, e

    portanto algo que est na dependncia de uma simples atribuio de valores estabelecidos.

    5. O PROBLEMA DA TRAGDIA (19)

    01. Deve-se evitar dialetizar o pensamento nietzschiano, mesmo quando parecer

    propcio, como no caso da tragdia. NIETZSCHE ope a viso de mundo trgica s vises de

    mundo dialticas, crists e romnticas.

    02. Para a dialtica, o trgico vincula-se oposio (contradio fundamental entre

    sofrimento e vida, do finito e do infinito na prpria vida, etc). J em O NASCIMENTO DA

    TRAGDIA (NT), embora ainda sobre maneiras muito prximas HEGEL e

    SCHOPENHAUER, NIETZSCHE no se filia somente essa viso dialtica da tragdia.

    (embora ainda estivesse um tanto preso ela, atribuindo contradio e a sua soluo o papel

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    de princpios). Devemos seguir o movimento desse livro para compreender a nova concepo

    de trgico que NIETZSCHE instaurar posteriormente:

    03. 1 A contradio, no NT, a da unidade primitiva e da individuao, do querer

    e da aparncia e da vida e do sofrimento. Aqui a vida ainda necessita ser justificada.

    04. 2 A contradio reflete-se na oposio DIONSIO-APOLO. APOLO divinisa

    o princpio de individuao, constri a bela aparncia e liberta-se assim do sofrimento.

    DIONSIO, ao contrrio, regressa unidade primitiva, absorve o indivduo no ser original,

    resolvendo a dor da individuao num prazer superior de participar da superabundncia do ser

    nico. DIONSIO e APOLO no se ope como os termos de uma contradio, portanto, mas

    como dois modos antitticos de a resolver. DIONSIO como o fundo sobre o qual APOLO

    borda a bela aparncia. Sob APOLO DIONSIO que brama. Mas essa prpria anttese tem

    necessidade de ser resolvida.05. 3 A tragdia esta reconciliao. DIONSIO o fundo trgico (o nico

    personagem trgico DIONSIO; entram em cena suas dores), que se resolve sob uma forma

    e num mundo apolneos (e da o drama).

    6. A EVOLUO DE NIETZSCHE (21)

    01. O trgico, no NT, definido como a contradio original, sua soluo dionisaca e a

    expresso dramtica (apolnea) dessa soluo. Resolver a contradio reproduzindo-a constituio carter da cultura trgica e dos seus representantes modernos (KANT, SHOPENHAUER,

    WAGNER). Mas h vrios indcios da aproximao de uma concepo nova, que no cabe na

    acima exposta. Em primeiro lugar, dionsio est presente como deus afirmativo e afirmador,

    no se contentando em resolver a dor num prazer supra-pessoal, mas afirmando a dor e

    constituindo o prazer de algum. Afirma as dores da crena, afirma a vida (no tendo que

    justific-la ou resgat-la). O que impede esse segundo dionsio de sobrep-lo ao primeiro o

    fato de o elemento supra-pessoal sempre acompanhar o elemento afirmador. Existe a um

    pressentimento do eterno-retorno.

    02. NIETZSCHE, ao fazer sua auto-crtica, reconhece duas inovaes no NT: o carter

    afirmador de dionsio, e a descoberta da oposio dionsio-scrates, para alm da primeira

    aproximao dionsio-apolo; dionsio a afirmao da vida independentemente de

    justificao, Scrates a oposio entre idia e vida, o julgamento da vida pela idia.

    03. Mesmo a, qualquer coisa impede esse segundo tema de se desenvolver livremente.

    Para que a oposio ganhasse todo o seu valor, era necessrio libertar o elemento afirmador de

    qualquer subordinao. Isso acontece substituindo-se a pura anttese pela complementariedade

    dionsio-Ariadne, do lado afirmativo, e focalizando o crucificado como verdadeira oposio

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    dionsio (Scrates demasiado grego, meio apolneo, meio dionisaco, para representar a

    oposio).

    7. DIONSIO E CRISTO

    01. Tanto em dionsio quanto em Cristo, o mrtir o mesmo, a paixo a mesma, o

    mesmo fenmeno, mas os sentidos so opostos: por um lado, a vida que justifica o sofrimento,

    que o afirma; por outro lado, o sofrimento que acusa a vida, que faz dela algo que deve ser

    justificado. O fato de haver sofrimento na vida significa, para o cristo, que a vida no justa,

    que culpada, que deve pagar pelo sofrimento como?: com o prprio sofrimento (o que

    forma a m-conscincia). Tal define o niilismo cristo, isto , sua maneira prpria de negar

    a vida. Mesmo o amor cristo no se ope esse dio, como quer o dialtico: a alegria crist

    a alegria de resolver a dor, interiorizando-a e assim oferecendo-a Deus.02. Para dionsio a vida no tem de ser justificada: ela quem se encarrega de justificar.

    A vida essencialmente justa. Ela afirma mesmo o mais amargo sofrimento, sem resolver a

    dor ao interioriza-la, mas afirmando-a no elemento de sua exterioridade. A oposio dionsio-

    Cristo a oposio da afirmao da vida e da negao da vida. O sofrimento dionisaco (por

    superabundncia de vida) uma afirmao, sua embriaguez uma atividade, seu

    dilaceramento a prpria afirmao mltipla; o sofrimento cristo (por empobrecimento de

    vida) uma acusao vida, sua embriaguez um torpor ou convulso, sua morte a imagemda contradio e sua soluo. A oposio de dionsio Cristo no uma oposio dialtica,

    mas oposio prpria dialtica: a afirmao diferencial contra a negao dialtica.

    8. A ESSNCIA DO TRGICO

    01. A afirmao mltipla ou pluralista a essncia do trgico. necessrio encontrar,

    para cada coisa, os meios particulares pela qual ela afirmada. A tristeza e a angstia sempre

    surgem em NIETZSCHE com relao esse ponto: pode-se tornar tudo objeto de afirmao,

    de alegria? O trgico no reside nesta angstia ou tristeza, nem na nostalgia da unidade

    perdida. O trgico consiste na multiplicidade, na diversidade da afirmao como tal. O que

    define o trgico a alegria do mltiplo (nada de alegria como sublimao, compensao,

    resignao, reconciliao). Trgico designa a forma esttica da alegria, no uma forma

    medicinal. Uma lgica de afirmao mltipla, da pura afirmao, e uma tica da alegria que

    lhe corresponde, esse o sonho anti-dialtico e anti-religioso que perpassa toda a filosofia de

    NIETZSCHE. A tragdia, franca alegria dinmica.

    02. A tarefa de dionsio nos tornar leves, nos ensinar a danar, nos dar o instinto do

    jogo. Dionsio conduz ao cu Ariadne; as pedrarias da coroa de Ariadne so estrelas. Ser esse

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    o segredo de Ariadne? A constelao nascer do famoso lance de dados. dionsio quem

    lana os dados. ele quem dana e quem se metamorfoseia, que se chama Poligeto, o deus

    das mil alegrias. (30)

    03. A dialtica em geral no uma viso trgica do mundo. Todavia, entre a ideologia

    crist (que HEGEL quis utilizar como substituto tragdia) e o pensamento trgico existe um

    problema comum: o do sentido da existncia. Esta , para NIETZSCHE, a questo suprema da

    filosofia, a mais emprica e experimental, porque coloca simultaneamente o problema da

    interpretao e da avaliao. Bem compreendida, a questo significa o que justia? Mas

    desde sempre procurou-se o sentido da existncia postulando-a como algo faltoso ou culpado.

    9. O PROBLEMA DA EXISTNCIA

    01. Os gregos j se perguntavam pelo sentido da existncia, considerando-a comodesmesura, hybris ou crime (ANAXIMANDRO), enfim algo que merecia uma compensao

    (com isso, explicavam o devir). SCHOPENHAUER uma espcie de ANAXIMANDRO

    moderno.

    02. O que os faz atrativos para NIETZSCHE sua diferena em relao ao cristianismo.

    Se os gregos fazem da existncia algo de criminoso, que em geral inicia j com um crime (que

    deve ser expiado o roubo do fogo por Prometeu, etc), nem por isso a existncia culpvel e

    responsvel por isso. Esse passo s ser dado com o cristianismo, o mestre do ressentimento.Ressentimento, culpa e responsabilidade no so simples acontecimentos psicolgicos, mas

    categorias fundamentais do pensamento cristo, a nossa maneira de interpretar a existncia.

    Um novo ideal, uma outra maneira de pensar, a tarefa que NIETZSCHE se prope: dar

    irresponsabilidade um sentido positivo. Este, o mais nobre e mais belo segredo de

    NIETZSCHE.

    03. Os gregos so crianas perto dos cristos, em matria de negar a vida. Entretanto,

    para ambos a vida culpada. Em acrscimo, o cristo dir que ela responsvel por isso. A

    questo, para NIETZSCHE, no saber se a vida responsvel ou no pela culpa (admitindo-

    a, de antemo, portanto), mas saber se a existncia culpada ou inocente. Dionsio encontrou

    ento a sua verdade mltipla: a inocncia,, a inocncia da pluralidade, a inocncia do devir e

    de tudo o que .

    10. EXISTNCIA E INOCNCIA

    01. A crtica nossas acusaes e buscas de responsveis funda-se, em NIETZSCHE,

    em cinco razes, sendo a primeira que nada existe fora do todo. A ltima, mais profunda,

    que no existe o todo. A inocncia a verdade do mltiplo. Dimana diretamente dos

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    princpios da filosofia da fora e da vontade: toda fora se refere aquilo que pode, de que ela

    inseparvel; essa maneira de se relacionar, de afirmar e ser afirmado, que particularmente

    inocente. Aquilo que no se deixa avaliar por uma vontade reclama uma outra vontade, uma

    outra fora, capaz de o fazer. Mas ns preferimos salvar a interpretao que corresponde

    nossas foras, e negar a coisa que no corresponde nossa interpretao. Separamos a fora

    daquilo que ela pode, postulando-a como merecedora quando se abstm daquilo que no

    pode, e como culpada quando ela manifesta a fora que possui. Desdobramos a vontade,

    inventamos um sujeito neutro, capaz de agir e se conter. Substitumos a interpretao pela

    depreciao, inventamos a depreciao como maneira de interpretar. Somos pssimos

    jogadores! A inocncia o jogo da existncia, da fora e da vontade. A existncia afirmada e

    apreciada, a fora no separada, a vontade no desdobrada, eis a primeira aproximao

    inocncia.02. HERCLITO o pensador trgico. Para ele, a vida radicalmente inocente e justa.

    Compreende a existncia a partir de um instinto de jogo, faz da existncia um fenmeno

    esttico (no moral nem religioso). Nega a dualidade dos mundos e faz do devir uma

    afirmao. Isso quer dizer, em primeiro lugar: s existe o devir. Sem dvida, equivale a

    afirmar o devir. Mas afirma-se tambm o ser do devir, diz-se que o devir afirma o ser ou que o

    ser se afirma no devir. No existe um ser para alm do devir, um uno para alm do mltiplo,

    que ria destes iluses ou, em outro extremo, essncias. O mltiplo a afirmao do uno, odevir, a afirmao do ser. O nico deve afirmar-se na gerao e na destruio. Para

    HERCLITO, no h qualquer castigo no mltiplo ou expiao no devir, somente a dupla

    afirmao do ser e do devir, isto , a justificao do ser. Qual o ser do devir? Qual o ser

    inseparvel do que no devir? RETORNAR O SER DO QUE DEVM. Regressar o ser

    do devir, o ser que se afirma no devir. O eterno retorno como lei do devir, Justia e ser.

    03. Segue-se que a existncia nada tem de responsvel, nem mesmo de culpvel.

    HERCLITO chegou a exclamar: a luta dos inumerveis seres apenas pura justia. A

    correlao do mltiplo e do uno, do devir e do ser, forma um jogo. Afirmar o devir e o ser do

    devir so os dois tempos de um jogo, que se compe com um terceiro termo, o jogador, o

    artista ou a criana, Zeus-criana: dionsio.O jogador abandona-se temporariamente vida, o

    artista coloca-se temporariamente na obra, a criana brinca, retira-se e regressa. Esse jogo do

    devir tambm o ser do devir que brinca consigo prprio. O ser do devir, o eterno retorno, o

    segundo tempo do jogo, mas tambm o terceiro termo idntico aos dois tempos [anteriores] e

    que vlido para o conjunto. Porque o eterno retorno o regresso distinto do ir, mas tambm

    o regresso do prprio ir: simultaneamente momento e ciclo do tempo.

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    11. O LANCE DE DADOS (40)

    01. O jogo tem dois momentos, que constituem um lance de dados: os dados que se

    lana e os dados que caem. NIETZSCHE por vezes apresenta o lance de dados como se estes

    se jogassem em dois tabuleiros distintos, a terra e o cu. Mas no se trata de dois mundos, e

    sim dois momentos de um mesmo mundo, a hora em que os dados so lanados [terra], a hora

    em que caem os dados [cu]. O lance de dados afirma o devir e o ser do devir.

    02. No se trata de vrios lances de dados que, devido ao seu nmero, chegariam a

    reproduzir a mesma combinao [eterno retorno]. Pelo contrrio: trata-se de um s lance de

    dados que, devido ao nmero da combinao produzida, chega a reproduzir-se como tal. Os

    dados que so lanados uma vez so a afirmao do acaso, a combinao que formam ao cair

    a afirmao da necessidade. A necessidade afirma-se do acaso, no sentido exato em que oser se afirma do devir e o uno do mltiplo. A necessidade no suprime o acaso. A necessidade,

    o destino, so uma combinao do prprio acaso; afirma-se a necessidade do acaso, assim

    como o acaso ele prprio. Porque s existe uma combinao do acaso enquanto tal, uma

    maneira de combinar todos os membros do acaso (necessidade). por isso que basta ao

    jogador afirmar uma vez o acaso, para produzir a necessidade que reconduz o lance de dados.

    03. Saber afirmar o acaso saber jogar. O mau jogador conta com vrios lances de

    dados, dispondo da causalidade e da probabilidade para alcanar uma combinao que declaraaceitvel, e que pensada como um fim; com isso abole-se o acaso. Isso tem suas razes na

    razo, que por sua vez tem suas razes no que NIETZSCHE chama de esprito de vingana. O

    ressentimento na repetio dos lances, a m-conscincia na crena num fim. Uma certeza que

    convm ter para bem jogar a de que o universo no possui qualquer fim ou objetivo ou

    causa. Falha-se o lance de dados porque no se afirmou suficientemente o acaso numa vez,

    para que se produzisse o nmero fatal que rene necessariamente todos os fragmentos e que,

    necessariamente, conduz o lance de dados. NIETZSCHE substitui a oposio/sntese

    causalidade-finalidade pela correlao dionisaca acaso-necessidade.

    12. CONSEQUNCIAS PARA O ETERNO RETORNO

    01. Quando os dados lanados afirmam de uma vez o acaso, os dados que caem afirmam

    a necessidade que conduz o lance de dados. nesse sentido que o segundo tempo do jogo ,

    alm disso, o conjunto dos dois tempos. O eterno retorno o segundo tempo, a afirmao da

    necessidade, mas tambm o retorno do primeiro tempo, a repetio do lance de dados, a

    reafirmao do acaso. Existem fragmentos do acaso que pretendem valor por si; reclamam-se

    de sua probabilidade, solicitam vrios lances ao jogador. Mas no assim que se deve jogar:

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    deve-se, pelo contrrio, afirmar todo o acaso de uma vez, para lhe reunir todos os fragmentos

    e afirmar no o provvel, mas o fatal e necessrio (mesmo que seja preciso esperar e ferver o

    acaso na panela para alimentar-se dele somente quanto estiver convenientemente cozido 3).

    02. Combinou-se frequentemente o caos e o ciclo, o devir e o eterno retorno, como se

    eles pusessem em jogo termos opostos. Em verdade, basta afirmar o caos (acaso, e no

    causalidade) para afirmar no mesmo lance a necessidade que o conduz (necessidade irracional,

    e no finalidade). As antigas idias do eterno retorno no viam nele o ser do devir enquanto

    tal, o uno do mltiplo, isto , a necessidade procedente de todo acaso. Ao contrrio, viam nele

    a submisso do devir ao ciclo. Diante disso salienta-se a originalidade de NIETZSCHE.

    13. SIMBOLISMO DE NIETZSCHE (47)

    01. O lance de dados a afirmao do mltiplo. Todos os fragmentos, todo o acaso lanado de uma vez. Esse poder de afirmar o mltiplo de uma vez como o fogo: o fogo o

    elemento que joga. Cozinhar o acaso no aboli-lo, nem encontrar o uno por traz do

    mltiplo: a ebulio na panela o nico meio de fazer do acaso e do mltiplo uma afirmao.

    Os dados lanados formam um nmero, que o ser que se afirma do devir enquanto tal, o uno

    que se afirma do mltiplo enquanto tal, o ser que se afirma do devir enquanto tal, o destino

    que se afirma do acaso enquanto tal. A frmula do jogo : conceber uma estrela danante com

    o caos que traz consigo. A prpria escolha de Zaratustra como personagem se apia em trsrazes, uma das quais o belo acaso (Zaratustra significa estrela em outro; os outros dois

    motivos so 1) Zaratustra como profeta do eterno retorno, e 2) Zaratustra como o primeiro a

    levar a srio a moral, devendo ser, portanto, o primeiro a desmistifica-la).

    02. Esse jogo de imagens caos-fogo-constelao rene, forma todos os elementos do

    mito dionisaco. Os brinquedos de dionsio criana, a afirmao mltipla ou fragmentos de

    dionsio dilacerado; a cozedura de dionsio ou o uno afirmando-se do mltiplo; a constelao

    Ariadne no cu como estrela danante.; o retorno de dionsio como eterno retorno.

    03. Mas jamais um jogo de imagens substitui, para NIETZSCHE, um jogo mais

    profundo, o dos conceitos e do pensamento filosfico. O aforismo, como forma, um

    fragmento, que pretendo dizer e formular um sentido, sendo a forma do pensamento pluralista.

    O aforismo a interpretao e a arte de interpretar (deve, ele tambm, ser interpretado). Todo

    sentido reenvia ao elemento diferencial de onde deriva o seu valor. Tal elemento como uma

    segunda dimenso do sentido e dos valores. Desenvolvendo esse elemento que se constitui a

    interpretao e avaliao completas, a arte de pensar a ruminao. Ruminao e eterno

    3 Zaratustra, III, Da virtude que ameniza

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    retorno: dois estmagos no so demais para pensar. A segunda dimenso do aforismo (o

    valor) o retorno da primeira.

    14. NIETZSCHE E MALLARM

    01. Para MALLARM, como para NIETZSCHE, 1) Pensar fazer um lance de dados;

    2) O homem no sabe jogar; 3) O lance de dados irracional e trgico por excelncia; 4) o

    nmero obtido a obra de arte como justificao do mundo.

    02. Mas essas semelhanas so superficiais, porque MALLARM sempre concebeu a

    necessidade como a abolio do acaso. H um dualismo em MALLARM, entre o mundo do

    acaso e o da necessidade, isso podendo ser fruto tanto de uma depreciao da vida ou da

    exaltao do inteligvel; ambos, entretanto, numa perspectiva nietzschiana, so inseparveis e

    constituintes do niilismo, isto , da maneira pela qual a vida vem a ser acusada, julgada e

    condenada. Ora, o lance de dados nada quando separado de seu contexto afirmativo eapreciativo, separado da inocncia e da afirmao do acaso.

    15. O PENSAMENTO TRGICO

    01. Tal diferena no se deve uma diferena psicolgica. Um princpio do qual

    depende a filosofia nietzschiana em geral o de que o ressentimento, a m-conscincia, o

    ideal asctico, os principais tipos de niilismo (ditos, em conjunto, esprito de vingana), no se

    reduzem a determinaes psicolgicas, a acontecimentos histricos ou a estruturasmetafsicas: pelo contrrio, elas que determinam nossa psicologia, histria e metafsica. Sem

    dvida o esprito de vingana exprime-se biolgica, psicolgica, histrica e metafisicamente,

    permitindo a constituio de uma tipologia. Mas o esprito de vingana no um trao

    psicolgico, mas o princpio do qual nossa psicologia depende; toda nossa psicologia a do

    ressentimento, ele no est nela, ela que est nele. O niilismo no um acontecimento

    histrico, mas o elemento da histria, seu motor, a causa do sentido histrico. O instinto de

    vingana a fora que constitui a essncia daquilo que chamamos psicologia, histria,

    metafsica e moral, o elemento genealgico do nosso pensamento. Em verdade no sabemos

    bem o que que seria um homem destitudo de ressentimento, que no acusasse e depreciasse

    a existncia; seria ainda um homem? Ou talvez um alm-do-homem? Possuir ressentimento

    ou no: no existe maior diferena, para alm da psicologia, histria ou metafsica. a

    verdadeira diferena ou tipologia transcendental a diferena genealgica e hierrquica.

    02. O objetivo da filosofia nietzschiana libertar o pensamento do niilismo. H muito

    tempo que no cessamos de pensar em termos de ressentimento e m-conscincia. No

    possumos outro ideal alm do ideal asctico. Opusemos conhecimento e vida, para julgar e

    condenar a vida. Uma nova maneira de pensar significa um pensamento afirmativo, que

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    afirma a vida e a vontade na vida, que expulsa todo negativo, que acredita na inocncia do

    futuro e do passado, no eterno retorno. A alegre mensagem nietzschiana o pensamento

    trgico: porque o trgico no reside nas recriminaes do ressentimento, nos conflitos da m-

    conscincia ou nas contradies de uma vontade que se sente culpada; tampouco o trgico a

    luta contra ressentimento, m-conscincia e niilismo. Trgico = alegre. Ou, de outro modo:

    querer = criar. O trgico positividade pura e mltipla, alegria dinmica. Trgica a

    afirmao: porque afirma o acaso, e do acaso, a necessidade; porque afirma o devir, e do

    devir, o ser; porque afirma o mltiplo, e do mltiplo, o uno.

    16. A PEDRA-DE-TOQUE

    01. No basta a palavra trgico para identificar NIETZSCHE com PASCAL,

    KIERKGAARD, CHESTOV, por exemplo. Devemos ver quanto de ressentimento e m-conscincia perdura em seu pensamento. Se eles, por um lado, souberam, com gnio, levar a

    crtica o mais longe possvel, suspendendo a moral, invertendo a razo, foram, por outro lado,

    apanhados pelo ressentimento, extraindo ainda as suas foras do ideal asctico. O que eles

    ope moral e a razo ainda um ideal, a INTERIORIDADE, este corpo mstico em que a

    razo se enraza a aranha. Falta-lhes o sentido da afirmao, o sentido da exterioridade, a

    inocncia e o jogo. No se deve procurar apoio na infelicidade; na felicidade que preciso

    comear.02. A aposta de PASCAL no tem nada a ver com o lance de dados nietzschiano. Nela,

    no se afirma o acaso, mas, a o contrrio, se o fragmenta em probabilidades; a existncia ou

    no de Deus no posta em jogo; apenas dividida em dois modos de existncia do homem

    (com e sem Deus), para da decidir [j baseado em valores ascticos]. A Hybris, o esprito de

    vingana, o ressentimento, a m-conscincia, o ideal asctico, o niilismo, so a pedra-de-toque

    de qualquer nietzschiano. a que ele pode mostrar se compreendeu ou se desconhece o

    verdadeiro sentido do trgico.

    CAPTULO II

    ATIVO E REATIVO (61)

    01. O CORPO

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    01. ESPINOSA abriu nova via s cincias e filosofia, ao dizer que no sabemos o que

    pode um corpo. Ainda confundimos o corpo com o esprito. NIETZSCHE sabe que

    chegada a hora da modstia [a hora de avanar nesse conhecimento-criao da TERRA]. Para

    ele, a conscincia um sintoma de uma transformao mais profunda e da atividade de foras

    de uma ordem completamente diferente da espiritual. Como FREUD, NIETZSCHE pensa que

    a conscincia a regio do eu afetada pelo mundo exterior. Todavia, a conscincia

    definida menos em relao exterioridade, em termos de real, do que em relao

    SUPERIORIDADE, em termos de valor. Essa diferena essencial numa concepo geral do

    consciente e do inconsciente. Em NIETZSCHE, conscincia sempre conscincia de um

    inferior em relao ao superior ao qual se subordina ou se incorpora. A conscincia nunca

    conscincia de si, mas conscincia de um eu em relao ao eu que no consciente. No

    um senhor, mas um escravo. conscincia do escravo em relao a um senhor que no tem deser consciente. A conscincia habitualmente s aparece quando um todo quer subordinar-se a

    um todo superior... A conscincia nasce em relao a um ser de que ns poderamos ser

    funo4. assim o servilismo da conscincia: testemunha apenas a formao de um corpo

    superior.

    02. No definimos um corpo ao dizer que um campo de foras, um meio nutritivo que

    se disputa uma pluralidade de foras. De fato, no existe meio, campo de foras, quantidade

    de realidade. S h quantidades de fora em relao de tenso umas com as outras. Qualquerfora est em relao com outras, mandando ou obedecendo. O que define um corpo essa

    relao entre foras dominantes e foras dominadas. Duas foras desiguais constituem um

    corpo a partir do momento em que entrem em relao: por isso que o corpo sempre fruto

    do acaso (em sentido nietzschiano). O acaso, relao de fora com fora, alm do mais a

    essncia da fora; no nos interroguemos, portanto, como nasce um corpo vivo, j que

    qualquer corpo vive como produto arbitrrio das foras que o compe5. O corpo fenmeno

    mltiplo, sendo composto por uma pluralidade de foras irredutveis. A sua unidade a de um

    fenmeno mltiplo, unidade de dominao. Num corpo, as foras superiores ou dominantes

    so ditas ATIVAS, as inferiores ou dominadas so dotas REATIVAS. Essas so as qualidades

    originais, que exprimem a relao da fora com a fora. Porque, ao haver diferena de

    quantidade entre as foras em relao, h tambm, ao mesmo tempo, diferena de qualidade,

    que corresponde sua diferena de quantidade como tal. Chamar-se- HIERARQUIA a esta

    diferena das foras qualificadas consoante a sua quantidade: foras ativas e reativas.

    4 VP, II, 2275 Sobre o falso problema de um comeo da vida: VP, II, 66 e 68; sobre o papel do acaso: VP, II, 25 e 334

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    02. A DESTINAO DAS FORAS

    01. Ao obedecer, as foras inferiores no deixam de ser foras. Obedecer uma

    qualidade da fora, tal como ordenar. Obedecer e ordenar constituem as duas formas de um

    torneio. As foras inferiores (reativas) exercem sua quantidade de fora assegurando os

    mecanismos e as finalidades, as funes, as tarefas de conservao, adaptao, utilidade. O

    pensamento moderno detm-se apenas neste aspecto reativo da fora, cr ter feito o suficiente

    quando as compreende. Mas s podemos alcanar as foras reativas como foras (e no

    mecanismos ou finalidades, duas macro-interpretaes que valem apenas para as foras

    reativas) se as referirmos s foras que as dominam, e que no so reativas. As foras de

    ordem espontnea, agressiva, conquistadora, transformadora, criadora, tm proeminncia

    fundamental sobre as foras reativas6.

    02. difcil caracterizar essas foras ativas. Por sua natureza, elas escapam conscincia (a grande atividade principal inconsciente7). A conscincia exprime apenas a

    relao de certas foras reativas com as foras ativas que as dominam. A conscincia

    essencialmente reativa, como tambm o hbito, a memria, a nutrio, a adaptao, a

    reproduo, todas funes reativas, especializaes, expresses de tal ou tal fora reativa.

    inevitvel que a conscincia veja o organismo de seu ponto de vista reativo. O problema do

    corpo no se d entre mecanicismo e vitalismo (ambos apoiados apenas nas foras reativas),

    mas na descoberta das foras ativas, sem as quais as prprias reaes no seriam foras. Aatividade necessariamente inconsciente das foras o que faz do corpo algo superior toda

    reao. As foras ativas so o que faz do corpo um eu. A verdadeira cincia a da atividade,

    mas a cincia da atividade tambm a do inconsciente necessrio. absurdo a cincia seguir

    os caminhos da conscincia; tal idia nos remete antes de mais nada moral.

    03. O que ativo? Tender para o poder8. Apropriar-se, dominar, isto , impor formas,

    criar formas explorando as circunstncias. NIETZSCHE critica DARWIN porque este

    interpreta a evoluo, e mesmo o acaso na evoluo, de maneira reativa. LAMARCK, ao

    considerar a existncia de uma fora plstica ativa, primeira em relao adaptao, estava

    mais prximo de NIETZSCHE. O poder dionisaco de transformao a primeira definio de

    atividade. No esqueamos, porm, que a reao tambm designa um tipo de foras; elas,

    entretanto, no podem ser concebidas como foras se no s referirmos s foras ativas,

    superiores, que so precisamente de um outro modo.

    03.QUANTIDADE E QUALIDADE

    6 GM, I, 127 VP, II, 2278 VP, II, 43

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    01. NIETZSCHE sempre acreditou que as foras deviam definir-se quantitativamente.

    Entretanto, acreditava tambm que uma definio puramente quantitativa permanecia

    incompleta, abstrata, ambgua. Ao mesmo tempo que insiste na definio quantitativa,

    NIETZSCHE apresenta outras definies, como A fora reside na qualidade.

    02. No h contradio entre estes dois posicionamentos: se uma fora no separvel

    de sua quantidade, tambm no separvel das outras foras com as quais est em relao. A

    PRPRIA QUANTIDADE NO PORTANTO SEPARVEL DA DIFERENA DE

    QUANTIDADE [isto , d a qualidade]. A diferena de quantidade a essncia da fora.

    Quando NIETZSCHE critica o conceito de quantidade, a anulao das diferenas de

    quantidade que ele critica a [quando o conceito refere uma quantificao abstrata e

    genrica, por exemplo, a uma diferena puramente quantitativa9] . O que interessa

    NIETZSCHE, do ponto de vista da prpria qualidade, a irredutibilidade da diferena dequantidade igualdade. A QUALIDADE distingue-se da QUANTIDADE como aquilo que,

    na quantidade, no pode ser igualizado, isto , a diferena de quantidade que impossvel

    de anular.

    03. Com o acaso, afirmamos a relao de todas as foras; afirmarmos todo o acaso de

    uma vez no pensamento do eterno retorno. Mas o acaso o contrrio de um continuum; o

    poder das foras preenchido na relao com um pequeno nmero de foras. Os encontros de

    foras de tal e tal quantidade so portanto partes concretas do acaso, as partes afirmativas doacaso, como tal estranhas a qualquer lei. Nesse encontro, cada fora recebe a qualidade

    correspondente sua quantidade, isto , a afeco que preenche efetivamente seu poder. No

    se pode, portanto, calcular abstratamente as foras. Deve-se avaliar concretamente, em cada

    caso, a sua quantidade respectiva e o matizado desta qualidade.

    04. NIETZSCHE E A CINCIA (69)

    01. Entendeu-se a relao e o interesse de NIETZSCHE pela cincia apenas a partir da

    confirmao que esta traria (ou no) da teoria do eterno retorno, o que errado. A relao d-

    se mais em torno da afirmao da diferena, e esta, por sua vez, nos esclarecer acerca do

    eterno retorno. NIETZSCHE critica a cincia em seu manejo da quantidade, seu utilitarismo e

    igualitarismo prprios; para ele, a cincia tende a igualizar as quantidades, a compensar as

    desigualdades. por isso que toda a sua crtica se joga em trs planos: contra a identidade

    lgica, contra a igualdade matemtica, contra o equilbrio fsico CONTRA AS TRS

    FORMAS DO INDIFERENCIADO.

    9 Comparar com o Bergsonismo de Deleuze.

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    02. Essa tendncia a reduzir as diferenas de quantidade exprime a maneira pela qual a

    cincia participa do niilismo do pensamento moderno, o qual, em cincia apresenta-se como

    depreciao da existncia, promessa de morte indiferenciada (calorfica ou outra) como

    adiaforia. A cincia, por vocao, compreende os fenmenos a partir das foras reativas; o

    triunfo das foras reativas o instrumento do pensamento niilista.

    03. Tanto a afirmao mecanicista do eterno retorno quanto sua negao termodinmica

    [as duas apreenses cientficas do eterno retorno] tratam da conservao da energia,

    interpretada de tal maneira que se anulam as diferenas de quantidade de energia [ o que

    fundamental para a hiptese nietzschiana do eterno retorno]. Ambas as hipteses culminam

    num estado final ou terminal, indiferenciado, idntico a si mesmo o que completamente

    diferente do eterno retorno.

    04. O eterno retorno no um pensamento do idntico, mas um pensamento doabsolutamente diverso, que reclama para si, fora da cincia, um princpio novo, que explique a

    repetio da diferena enquanto tal. No eterno retorno no o mesmo ou o uno que regressam,

    mas o eterno retorno ele prprio o uno que se diz apenas do diverso e do que difere.

    05. PRIMEIRO ASPECTO DO ETERNO RETORNO:

    COMO DOUTRINA COSMOLGICA E FSICA

    01. O enunciado do eterno retorno supe a crtica do estado final ou de equilbrio.Afinal, se o devir fosse um processo para chegar a algo, tal objetivo j teria sido alcanado,

    uma vez que o passado no deve ter um comeo, isto , deve ser infinito, pois no poderia ter

    comeado a devir se antes disso houvesse um ser ou estado inicial. [o devir no poder ser o

    devir DE algo - um ser ou princpio- , ou um devir PARA algo um ser ou fim -, porque: 1)

    se houvesse um estado inicial (um ser ou equilbrio anterior ao devir ou passagem), ficar-se-

    ia nesse estado; porque esse ser (equilbrio) comearia a devir? No havendo estado inicial,

    o tempo daqui para traz deve ser infinito (sem comeo); como o devir ainda no alcanou

    nenhum equilbrio ou ser (prova-o o instante que passa agora) chega-se a segunda

    conseqncia: 2) o devir no tem um objetivo, no tende a um final, no um processo para

    um ser, pois se fosse j teria alcanado seu objetivo, uma vez que o tempo passado infinito] .

    Se o universo fosse capaz de permanncia, se tivesse em todo seu curso um s instante de ser

    no sentido estrito, no poderia haver devir [o universo permaneceria para sempre no estado

    de ser ou equilbrio total; o ser, como tal, exclui a possibilidade da passagem].

    02. O pensamento do puro devir funda o eterno retorno, ao fazer cessar o pensamento do

    ser como diverso do devir e fazendo pensar no ser do prprio devir. Qual o ser do devir, isto

    , o que permanece naquilo que passa e no para de passar, qual o ser do devir incessante?

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    RETORNAR O SER DO DEVIR. Dizer que tudo retorna estender ao mximo o mundo do

    devir e do ser. E mais: para que o instante passe, em proveito de outros instantes, necessrio

    que ele seja ao mesmo tempo presente e passado, presente e futuro, necessrio que ele

    coexista consigo mesmo como passado e futuro10 [seno o presente seria como o ser absoluto,

    e deixaria de devir]. O eterno retorno responde portanto ao problema da passagem. Nesse

    sentido, no deve ser interpretado como o retorno do mesmo, do ser, do uno. No o ser que

    retorna, mas o prprio retornar constitui o ser enquanto se afirma do devir. No o uno que

    retorna, mas retornar e o uno que se afirma do mltiplo. A identidade do eterno retorno no

    designa a natureza daquilo que retorna, mas, pelo contrrio, o fato de retornar para o que

    difere [o mesmo a que se retorna o puro devir ou a pura diferena] . O eterno retorno

    deve ser pensado como sntese do tempo e suas dimenses, da diferena e sua repetio, do

    devir e do ser que se afirma do devir, sntese da dupla afirmao [do ser e do devir]. O eternoretorno depende de um outro principio que no o da identidade.

    03. O mecanicismo uma interpretao do eterno retorno porque implica a falsa

    conseqncia de um estado final, idntico ao inicial, no entremeio dos quais passa-se pelas

    mesmas diferenas. Eis a hiptese cclica, to criticada por NIETZSCHE. Mas essa hiptese

    no d conta 1) da diversidade dos ciclos coexistentes e, sobretudo 2) da existncia do diverso

    no ciclo [o que o prprio cerne da concepo nietzschiana de eterno retorno]. por isso

    que s podemos compreender o eterno retorno como expresso de um princpio que constitui arazo da diferena e de sua repetio; tal princpio, NIETZSCHE chama de VONTADE DE

    PODER, entendendo-a como o carter que no se pode eliminar da ordem mecnica sem

    eliminar essa prpria ordem11.

    6. O QUE A VONTADE DE PODER?

    01. NIETZSCHE acredita que era necessrio complementar o conceito d fora com um

    querer interno, que ele chamou de VP. A VP, assim, atribuda a fora ao mesmo tempo

    como complemento e como algo de interno. Entretanto, no um predicado: no a fora que

    sujeito, no a fora quem quer, mas a VP. Ela ao mesmo tempo gentica com relao

    fora por ela brotam as diferenas de quantidade das foras em relao e diferencial, ainda

    com relao fora essas diferenas de quantidade expressam-se, na relao, como

    qualidades. A VP o princpio para a sntese das foras; nessa sntese as foras tornam a

    passar pelas mesmas diferenas, e o diverso se reproduz. A sntese , portanto, a das foras, da

    sua diferena e da sua reproduo isto , o eterno retorno; o eterno retorno a sntese de que

    10 Comparar com Bergsonismo11 VP, II, 374

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    a VP o princpio. Note-se que a VP um princpio essencialmenteplstico, que no maior

    do que aquilo que condiciona; ele se metamorfoseia com o condicionado, ele se determina em

    cada caso com o condicionado; a VP no separvel de tais e tais foras.

    02. Inseparvel, entretanto, no quer dizer idntico. Separar a VP da fora cair na

    abstrao metafsica; confundi-las recair no mecanicismo [esquecer que a diferena e a

    relao que so essenciais na fora]. As relaes da fora com a fora so relaes de

    dominao; mas essas relaes permanecem indeterminadas enquanto no se acrescenta

    fora um elemento que as determine sob o duplo aspecto da gnese recproca das diferenas

    de quantidade e da gnese absoluta de sua qualidade respectiva. A VP o elemento

    genealgico da fora e das foras. pela VP que uma fora se abate sobre outra, que uma

    fora comanda outra, e ainda por ela que uma fora obedece outra.

    03. O conceito de sntese est no centro do kantismo. Os ps-kantianos censuravam aKANT por 1) no ter apresentado um princpio que regesse a sntese sem ser apenas

    condicionante em relao aos objetos, mas verdadeiramente gentico e produtor (princpio de

    diferena ou determinao interna), e 2) do ponto de vista da reproduo dos objetos na

    prpria sntese, pedia-se ao princpio uma razo no s para a sntese, mas para a reproduo

    do diverso na sntese enquanto tal. NIETZSCHE parece ter levado a crtica kantiana adiante,

    em novas base e direo, com os conceitos de eterno retorno e VP.

    7. A TERMINOLOGIA DE NIETZSCHE (81)

    01. NIETZSCHE emprega novos termos muito precisos para novos conceitos muito

    precisos:

    1) NIETZSCHE chama VP ao elemento genealgico, isto , diferencial

    e gentico, da fora, a VP o elemento de produo das diferenas de quantidade (el.

    diferencial) e da produo da qualidade que conduz cada fora (el. gentico). A VP no

    suprime o acaso; ela apenas rene foras postas em relao pelo acaso; somente a VP afirma

    integralmente o acaso.

    2) Consoante sua diferena de quantidade, as foras so ditas

    dominantes ou dominadas; conforma sua qualidade, as foras so ditas ativas ou reativas. H

    VP em todas.

    3) As qualidades (como as quantidades) tm seus princpios na VP. Mas

    esta tambm tm qualidades: ativo e reativo designam as qualidades originais da fora, e

    afirmativo e negativo as qualidades primordiais da VP. Assim como a reao tambm uma

    qualidade da fora, a negao uma qualidade da VP. H relaes complexas entre estas

    qualidades. As qualidades da fora podem ser instrumentos ou meios da VP que afirma ou

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    nega; por outro lado, a ao e a reao necessitam das qualidades da VP para alcanar seus

    objetivos. Por fim, afirmao e negao so as QUALIDADES IMEDIATAS DO DEVIR: a

    afirmao no ao, mas o poder de se tornar ativo, o DEVIR ATIVO, assim como a

    negao, no sendo simplesmente reao, constitui um DEVIR REATIVO. Tudo se passa

    como se afirmao e negao fossem simultaneamente imanentes e transcendentes em relao

    ao e reao.

    4) Por tudo isso NIETZSCHE pode dizer: a VP no apenas o que

    interpreta, mas tambm o que avalia. Interpretar determinar a fora que d um sentido

    coisa. Avaliar determinar a VP que d coisa um valor. Nem os valores nem os sentidos se

    deixam abstrair, portanto, absolutamente. A arte da filosofia, como interpretao e avaliao,

    tanto mais complicada quanto ambos se remetem e se prolongam, mutuamente. Falar da

    nobreza dos valores em geral testemunha um pensamento interessado em esconder sua prpriabaixeza. No se deve esquecer nunca que avaliar = criar.

    8. ORIGEM E IMAGEM INVERTIDA

    01. Na origem existe a diferena das foras ativas e reativas, que no se sucedem, mas

    coexistem; da mesma forma, a cumplicidade entre as foras ativas e a afirmao, das foras

    reativas e a negao, se revela j no princpio. O negativo, de sada, j est do lado da reao,

    assim como apenas a fora ativa se afirma, afirma a sua diferena, faz da diferena um objetode alegria e afirmao. A fora reativa, mesmo quando obedece, limita a fora ativa, lhe

    impe restries. Por isso a prpria origem comporta uma imagem invertida de si,

    acompanhando-a; o que sim do ponto de vista das foras ativas torna-se no do ponto de

    vista das reativas. Assim, a genealogia encontra sua caricatura na imagem que dela d o

    evolucionismo, essencialmente reativo. O caracterstico das foras reativas negar a

    diferena que as constitui na origem, dando dela uma imagem deformada. Por isso no se

    compreendem a si mesmas como foras, preferindo voltar-se contra si mesmas

    compreender-se como tal. A mania de interpretar ou avaliar os fenmenos a partir de foras

    reativas tm sua origem nessa imagem invertida.

    02. No caso de as foras reativas apoderarem-se e neutralizarem as foras ativas,

    invertendo os valores de fato, no mais apenas na origem, elas tornam-se, por isso, ativas e

    dominadoras? No. Elas no formam no seu todo uma fora maior e ativa, pois triunfam pela

    vontade negativa, vontade de nada. Sua dominncia sobre as foras ativas no ela mesma

    ativa; o que acontece que as foras reativas dominam transformando as foras ativas em

    reativas, e no tornando-se elas mesmas ativas. A transformao das foras ativas em um tipo

    de foras reativas d-se SEPARANDO AS FORAS ATIVAS DAQUILO QUE ELAS

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    PODEM. As figuras do triunfo reativo no mundo humano o ressentimento, a m-

    conscincia, o ideal asctico mostram-no: as foras reativas no triunfam pela composio

    de uma fora superior s foras ativas, mas pela subtrao/separao/despotencializao das

    foras ativas. Em cada caso, essa separao repousa sobre uma fico ou falsificao, atravs

    da qual a fora ativa separada daquilo que ela pode.

    9. O PROBLEMA DA MEDIDA DAS FORAS

    01. por isso que no se pode medir as foras com uma unidade abstrata, nem

    determina-las tomando por critrio apenas o estado real, factual [atual?], de um sistema. As

    foras inferiores podem apoderar-se das foras fortes sem deixar de ser reativas, escravas.

    Contra DARWIN e o evolucionismo, NIETZSCHE nota que a efetividade favorece os fracos.

    No domnio da interpretao no h fatos, somente interpretaes.02. reativo tudo o que separa uma fora; reativo o estado de uma fora separada

    daquilo que pode. ativa qualquer fora que v at o limite de seu poder. [Por isso, mesmo

    quando dominam, as foras reativas no deixar de ser reativas, pois se comportam como

    reativas, a saber, no indo at o limite de sua potncia, separando as foras ativas de sua

    potncia].

    10. A HIERARQUIA (91)01. Os livre-pensadores, o positivismo moderno, continuam a posio socrtica segundo

    a qual, se as foras reativas triunfam, porque so mais fortes que as foras ativas; assim

    que o moderno se inclina perante o fato consumado [abdicando de uma crena absoluta e

    transcendente para cair num absolutismo do efetivo]. O positivismo pretende abdicar dos

    valores transcendentais apenas para reencontra-los como os fatos mais fortes que conduzem

    o mundo atual. O livre-pensador faz a crtica dos valores sem criticar sua qualidade. Mas o

    fato sempre o dos fracos contra os fortes; o fato sempre estpido. Ao livre-pensador

    NIETZSCHE ope o esprito-livre, o prprio esprito da interpretao.

    02. A palavra hierarquia vincula-se, em NIETZSCHE, duas idias: em primeiro lugar

    diferena entre as foras ativas (superiores) e as foras reativas (inferiores), e em segundo

    lugar ao triunfo das foras reativas sobre as ativas e a organizao complexa que da resulta.

    03. FRACO NO O MENOS FORTE, mas o que est separado daquilo que pode; o

    menos forte to forte quanto o forte se for at o limite do que pode. A medida das foras e

    sua qualificao NO dependem da quantidade absoluta, mas da EFETUAO RELATIVA

    das foras. No se mede a partir do sucesso ou fracasso. Apenas se julga acerca das foras

    levando em conta em primeiro lugar sua qualidade (ativa ou reativa), em segundo lugar a

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    afinidade desta qualidade com o plo correspondente da VP (afirmativo/negativo), e em

    terceiro lugar a diferena de qualidade que a fora apresenta em seu desenvolvimento, em

    relao sua afinidade com a VP.

    11. VONTADE DE PODER E SENTIMENTO DE PODER

    01. A VP se manifesta na fora como um poder de ser afetado, poder no abstrato, mas

    efetuado a cada instante pelas foras com as quais se relaciona. Assim que a VP determina a

    relao das foras entre elas, do ponto de vista de sua gnese, mas determinada por elas do

    ponto de vista da sua manifestao (isto , da manifestao da VP). Por isso o determinante

    no maior ou absoluto ou indiferenciado frente aos determinados.

    02. O poder de ser afetado no significa necessariamente passividade, mas afetividade,

    sensibilidade, sensao. Um corpo tem tanto mais fora quanto mais pode ser afetado [entrarem relao de diversas maneiras]. O elemento diferencial da fora manifesta-se como sua

    sensibilidade diferencial. Agregar, desagregar, dominar ou obedecer exprimem sempre a VP.

    Esse poder de ser afetado no comprido sem que a fora correspondente entre num devir

    sensvel.

    03. Toda a sensibilidade apenas um devir das foras. Existem vrios devires da fora,

    A VP manifesta-se, em primeiro lugar, como sensibilidade das foras; em segundo lugar,

    como devir sensvel das foras. Um estudo concreto das foras implica necessariamente umadinmica.

    12. O DEVIR-REATIVO DAS FORAS

    01. A dinmica das foras conduz a uma concluso desoladora: as foras ativas devm

    reativas [devieram at agora?]. De fato, no conhecemos outros devires. Podemos mesmo

    perguntar se existiro outros devires. Seria, talvez, necessria uma outra sensibilidade para

    poder sentir estes outros devires. O devir reativo, o niilismo, constitutivo da humanidade no

    homem.

    02. Essa condio do homem da maior importncia para o eterno retorno; parece

    contamina-lo to gravemente que o eterno retorno se torna objeto de angstia, repulso e

    mgoa. Mesmo que as foras ativas retornem, retornaro reativas, eternamente. O eterno

    retorno do homem pequeno eis o que angustiava ZARATUSTRA, [o que fazia o prprio

    retorno das foras ativas tornar-se algo como um em vo, e com isso, tenderem

    reatividade, tender a querer o fim]. Mas existe um outro devir, existe uma outra sensibilidade,

    que NIETZSCHE nomeia como super-homem.

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    13. A AMBIVALNCIA DO SENTIDO E DOS VALORES (100)

    01. As foras ativas tornam-se reativas ao serem separadas daquilo que podem pelas

    foras reativas. Inversamente, as foras reativas, sendo reativas at o limite de sua reao, no

    se tornaro ativas, dado que ir ao limite do que pode o que define a fora ativa? As foras

    reativas apenas triunfam indo at o limite das suas conseqncias, e portanto formando uma

    fora ativa.

    02. Esta uma ambivalncia cara NIETZSCHE A doena, por exemplo, se por um

    lado separa-me daquilo que posso, por outro lado empresta-me perspectivas inusitadas e

    interessantes (sobre a sade, sobre a relao do pensamento com o corpo, da mais frieza e

    crueldade ao pensamento, etc). H qualquer coisa de admirvel no devir-reativo das foras.

    03. H, certamente, diferentes formas de reatividade, conforme se desenvolva a

    afinidade com a vontade de nada; a doena pode servir sade, mas pode tambm ser uminstrumento de escravido. Do mesmo modo, o genealogista deve saber interpretar o grau de

    desenvolvimento da relao entre ao e afirmao. H foras reativas que se tornam grandes

    e fascinantes fora de seguir a vontade de nada, assim como h foras ativas que caem, por

    no saber seguir os poderes da afirmao.

    04. No basta, assim, ir at o limite do que pode para tornar-se ativo; preciso ver se h

    afirmao da prpria diferena, ou se h negao do que difere. Alm de ir at o limite do que

    pode, uma fora deve fazer daquilo que pode objeto de afirmao, para ento tornar-se ativa.

    14. O SEGUNDO ASPECTO DO ETERNO RETORNO:

    COMO PENSAMENTO TICO E SELETIVO

    01. Nem sentido nem conhecido, um devir-ativo s pode ser pensado como o produto de

    uma seleo dupla e simultnea da atividade da fora e da afirmao na vontade seleo

    cujo princpio o eterno retorno. O eterno retorno, como doutrina fsica, era a nova

    formulao da sntese especulativa kantiana. Como pensamento tico, o eterno retorno a

    nova formulao da sntese prtica, e eis a a sua primeira seleo: seja l o que quiseres,

    queira-o de tal maneira a tambm querer o seu eterno retorno. O pensamento do eterno

    retorno seleciona, fazendo do querer qualquer coisa de inteiro, fazendo do querer uma criao,

    e eliminando do querer o que no pode ser querido eternamente, isto , o que no entra no

    eterno retorno. Com isso afasta-se o pensamento mesquinho e as pequenas compensaes, que

    permitem um ato apenas porque ele feito somente uma vez.

    02. Essa primeira seleo vale para as foras reativas menores. As maiores, que no se

    deixam abdicar e entram no eterno retorno, precisam de uma segunda seleo, na qual, no e

    pelo eterno retorno, as foras reativas sero separadas da vontade de negao, fazendo a

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    negao negar as prprias foras reativas. o eterno retorno que torna esse niilismo das

    foras completo, ao operar essa auto-destruio. Essa auto-destruio uma destruio ativa

    de si; ela que exprime o devir-ativo das foras: as foras tornam-se ativas na medida em que

    as foras reativas se negam, perecendo pelo mesmo princpio que antes assegurava sua

    conservao (a negao). A negao torna-se devir-ativo, afirmao [ao ir at o limite do que

    pode, afirmando-se como negao, mas NESSA afirmao destruindo-se] A segunda seleo

    do eterno retorno produz o devir-ativo. As foras reativas no retornam. No eterno retorno, a

    negao torna-se afirmao, ao tornar-se afirmao da prpria negao. A segunda seleo faz

    entrar no ser aquilo que a no pode entrar sem mudar de natureza12.

    15. O PROBLEMA DO ETERNO RETORNO

    01. Tudo isso deve ser clarificado mais adiante. Por hora retenhamos que o eternoretorno transforma a negao em poder supremo da afirmao.

    02. O eterno retorno o ser do devir, na viso cosmolgica, mas afirma somente o devir-

    ativo desse ser, na viso da ontologia seletiva. Afinal, seria contraditrio que a vontade de

    negao e de nada quisesse seu eterno retorno; como o eterno retorno o ser do devir, a

    vontade de negao no tem ser, e no retorna.

    CAPTULO III

    A CRTICA

    01. TRANSFORMAO DAS CINCIAS DO HOMEM (111)01. Nas cincias predominam os conceitos passivos, reativos, negativos. Nas cincias do

    homem no diferente: a utilidade, a adaptao, a regulao, o esquecimento, so

    outros tantos conceitos que servem de explicao, mas que tomam as coisas somente pelo

    lado reativo. Ama-se o verdadeiro e o fato. Nunca a cincia foi to longe numa direo,

    mas tambm nunca o homem se submeteu tanto ao ideal e ordem estabelecida.

    02. O utilitarismo no uma doutrina ultrapassada, ou s o com a condio de ter

    inserido seus postulados nas doutrinas que a ultrapassam. NIETZSCHE pergunta: quemconsidera uma ao do ponto de vista de sua utilidade? No aquele que age; este no

    12 Comparar, mais uma vez, com Bergson, no Bergsonismo, de Deleuze, quanto definio de durao.

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    considera a ao, mas age. um terceiro, que no age, quem considera a ao, e

    considera exatamente porque no age. O utilitarismo, como todos os conceitos passivos, brota

    do ressentimento. Essa abstrao, que substitui as relaes reais, as atividades concretas, por

    abstraes tomadas do ponto de vista de um terceiro que no age, pertence ao gosto da cincia

    e da filosofia. Confunde-se a essncia da atividade com o benefcio de um terceiro (Deus, o

    esprito objetivo, a humanidade, a cultura, o proletariado, etc).

    03. Mas o segredo da palavra no est do lado de quem escuta, nem o segredo da

    vontade do lado de quem obedece, nem o segredo da fora do lado de quem reage. A

    lingstica ativa, por exemplo, deve procurar descobrir aquele que fala e aquele que nomeia.

    Quem que se serve de tal palavra, a que que a a aplica, com que inteno, o que quer dizer

    ao dizer. A transformao do sentido de uma palavra significa que outra fora e vontade dela

    se apoderaram.04. Uma cincia verdadeiramente ativa, exemplo dessa lingstica, uma cincia das

    foras, seria umasintomatologia (porque interpreta os fenmenos tratando-os como sintomas,

    cujo sentido dado pelas foras que o produzem), uma tipologia (porque interpreta as prprias

    foras em sua qualidade) e umagenealogia (porque avalia a origem das foras em sua nobreza

    ou baixeza). Tal concepo d unidade s cincias e mesmo relao desta com a filosofia. O

    filsofo tal sintomatogista tipologista genealogista; filsofo mdico, artista e legislador.

    02. A FRMULA DA QUESTO EM NIETZSCHE

    01. A metafsica formula a questo da essncia sob a forma: o que ...?, forma

    intimamente vinculada oposio entre essncia e aparncia, ser e devir, que tem seus

    comeos em SCRATES e PLATO.

    02. No o que , mas quem, dever-se-ia perguntar. Essa questo significa: dado

    algo, quais so as foras que dele se apoderam, qual a vontade que a possui? Quem se

    exprime, se manifesta, se esconde nele? Somos conduzidos essncia pela questo quem,

    pois A ESSNCIA APENAS O SENTIDO E O VALOR DAS COISAS. A essncia, o ser,

    uma realidade perspectivada e supe uma pluralidade. No fundo, a questo o que

    tambm significa quem?, pois quer dizer sempre o que para mim?; a mesma questo,

    mas mal-formulada. A arte pluralista no nega a essncia, apenas a faz depender em cada caso

    de uma afinidade de fenmenos e de foras. Em ltima instncia sempre a VP quem quer.

    03. O MTODO DE NIETZSCHE

    01. Dessa forma de questo deriva um mtodo: dado um conceito, sentimento ou crena,

    deve-se trata-los como sintomas de uma vontade que quer alguma coisa; trata-se de mostrar

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    que no se poderia diz-lo, senti-lo ou pens-lo se no tivesse tal vontade, tais foras. Querer

    no um ato como qualquer outro: ele a instncia simultaneamente gentica e crtica de

    todas as nossas aes, sentimentos e pensamentos.

    02. No nos iludamos: o que a vontade quer no um objeto, um fim ou um motivo;

    tudo isso so ainda sintomas. O que uma vontade quer, conforme a sua qualidade, afirmar a

    sua diferena ou negar aquilo que difere; o que uma vontade quer sempre a sua prpria

    qualidade, e a qualidade das foras correspondentes. Assim, perguntar o que quer aquele que

    pensa isso? apenas o desenvolvimento metdico da questo quem?, pois sua resposta no

    tanto uma COISA quanto a constituio de um TIPO. E um tipo se constitui pela qualidade

    da vontade de poder. S se define um tipo ao determinar o que quer a vontade nos exemplares

    desse tipo. Eis, assim constitudo, o mtodo de dramatizao, o mtodo trgico nietzschiano.

    03. Esse mtodo ultrapassa seu carter antropolgico apontando para outros tipos eoutras relaes de fora que no a do homem e suas foras reativos [isto , o homem at-

    agora]. O inumano e o sobre-humano tambm so dramatizveis, tambm expressam um tipo;

    por isso o mtodo ultrapassa o homem, encontrando nele coisas que vo alm dele.

    04. CONTRA SEUS PREDECESSORES (120)

    01. O conceito de VP existia e existiu antes e depois de NIETZSCHE, mas sempre

    querendo dizer que a vontade quer o poder, como um fim, ou que o poder seu mbil. SeNIETZSCHE pde entender que a VP , em sua teoria, um conceito original, justamente

    porque ela NO algo que quer o poder. Tal concepo implica pelo menos trs contra-

    sensos:

    02. 1: interpreta-se o poder como objeto de uma representao; qualquer poder tido

    como representado, e qualquer representao a representao do poder; o fim da vontade o

    objeto da representao, e vice-versa. Em HOBBES o homem quer ver sua superioridade

    representada, e HEGEL a conscincia quer ser reconhecida por outrem, etc; o poder sempre

    objeto de uma representao e uma recognio (comparao). Mas nos adverte NIETZSCHE:

    o escravo quem quer aparecer sempre como superior. O que nos apresentado como o poder

    ou o senhor apenas a representao que o escravo se faz do poder e do senhor. Essa

    necessidade de atingir a aristocracia o sintoma mais eloqente justamente de sua ausncia. A

    noo de representao envenena a filosofia; ela produto direto do escravo e da relao entre

    os escravos;

    03. 2: A noo do poder como representao depende

    fundamentalmente do reconhecimento ou no dessa representao, e assim submete-se a VP,

    como vontade de se fazer reconhecer, aos valores em curso numa dada sociedade. Toda a

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    concepo de VP, de HOBBES a HEGEL, pressupe a existncia de valores estabelecidos que

    as vontades apenas procuram atribuir-se. Mas essa filosofia desconhece absolutamente a VP

    como CRIAO de novos valores.

    04. 3. De HOBBES a HEGEL, os valores estabelecidos o so

    apenas ao final de uma luta, assim como toda luta trava-se em torno de valores estabelecidos:

    luta pelo poder, pelo reconhecimento ou pela vida, o esquema sempre o mesmo. Mas as

    noes de luta, guerra, rivalidade e mesmo comparao so estranhas NIETZSCHE e sua

    concepo de vontade de poder. Ele no nega a existncia da luta, mas ela parece-lhe

    destituda de criao de valores, ou cria apenas valores do escravo que triunfa. A luta no o

    princpio ou o motor da hierarquia, mas o meio atravs do qual o escravo inverte a hierarquia;

    no a expresso ativa das foras, nem expresso da VP que afirma.

    05. CONTRA O PESSIMISMO E CONTRA SCHOPENHAUER

    01. Esses trs contra-sensos davam vontade um tom lamentvel; todo aquele que dela

    se aproximava gemia. Ela parecia insustentvel e enganadora, e isso se explica facilmente: ao

    fazer da VP um desejo de dominar, via-se o infinito e o sem fim nesse desejo; fazendo do

    poder o objeto de uma representao via-se o carter irreal do poder; comprometendo a VP

    num combate, via-se a contradio na prpria vontade. Para todos os pontos de vista

    anteriores, somente uma LIMITAO racional ou contratual da vontade poderia torn-lasuportvel e resolver suas contradies.

    02. SCHOPENHAUER leva essa concepo de vontade s ultimas conseqncias. No

    se contenta com uma essncia da vontade, mas faz da vontade essncia das coisas. Ento sua

    objetivao, o que ela quer, a representao, a aparncia, e da vm a frmula do querer-

    viver: o mundo como vontade e representao, a contradio entre ambas sendo a contradio

    original13. Leva-se adiante a mistificao kantiana, que negou a distino entre dois mundos (o

    sensvel e o supra-sensvel), ao fazer da vontade a essncia das coisas, mas manteve a

    distino entre essncia e aparncia, distino essa que funcionava exatamente como

    funcionava a anterior dualidade. Fazendo dessa vontade a essncia do mundo, faz-se dele

    tambm pura iluso. Por isso no basta a SCHOPENHAUER uma limitao da vontade:

    preciso que ela se negue a si prpria, integralmente.

    06. PRINCPIOS PARA A FILOSOFIA DA VONTADE

    01. A filosofia da vontade segundo NIETZSCHE deve substituir a antiga metafsica.

    Essa filosofia possui dois princpios, que constituem a alegre mensagem: QUERER =

    13 Ver captulo sobre o Nascimento da Tragdia, no incio deste resumo

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    CRIAR, e VONTADE = ALEGRIA. Esses dois princpios, a primeira vista vagos e

    indeterminados, tornam-se precisos quando se compreende seu carter crtico, isto , a

    maneira como eles se relacionam com as anteriores concepes de vontade (como VP que

    quer a representao e a atribuio dos valores correntes atravs de uma disputa, o que resulta

    numa noo necessariamente aprisionante, ilusria e sofrida do querer). Contra esse

    aprisionamento da vontade, NIETZSCHE anuncia que o querer liberta; contra a dor da

    contradio da vontade, NIETZSCHE anuncia que a vontade alegre. Contra a imagem de

    uma vontade que aspira a fazer-se atribuir valores estabelecidos, NIETZSCHE anuncia que

    querer criarnovos valores.

    02. VP no quer dizer vontade que quer o poder; significa, ao contrrio, que o poder

    aquilo que quer na vontade. O poder na vontade o elemento gentico e diferencial. por

    isso que a VP essencialmente criadora. O que o poder quer a relao de foras, asqualidades das foras. Ele no pode ser representado, interpretado ou avaliado porque o

    que interpreta, avalia e quer. A VP essencialmente criadora e doadora: no aspira, procura

    ou deseja, mas D. O elemento criador de sentido e dos valores tambm necessariamente

    um elemento crtico. Assim como o nobre vale mais que o vil apenas porque passa pela

    prova do ER, pelo qual o vil retorna como nobre, a crtica a negao sobre uma forma

    nova>: destruio tornada ativa, agressividade profundamente ligada afirmao. A crtica a

    destruio como alegria, a agressividade do criador. O criador de valores no separvel deum destruidor, de um criminoso e de um crtico.

    07. PLANO DE A GENEALOGIA DA MORAL (131)

    01. A Genealogia da Moral tem um duplo interesse: uma chave para a interpretao

    dos aforismos e analisa em pormenor o tipo reativo. Esse duplo aspecto no casual: afinal,

    so as foras reativas que se ope arte de interpretar, genealogia, hierarquia. Os dois

    aspectos da Genealogia da Moral constituem, portanto, a crtica.

    02. Na 1. dissertao, NIETZSCHE apresenta o ressentimento como umparalogismo da

    fora separada daquilo que ela pode; na 2 dissertao, NIETZSCHE sublinha que a m-

    conscincia antinmica por natureza, exprimindo uma fora que se vira contra si; a 3.

    dissertao, sobre o ideal asctico, reenvia para a mais profunda mistificao, a do idealque

    compreende todos os outros, todas as fices da moral e do conhecimento.

    03. Eis a estrutura formal da Genealogia da Moral; se se renunciar a acreditar que seja

    fortuita, necessrio concluir que NIETZSCHE, nela, pretendia refazer a Critica da razo

    pura. Paralogismo da alma, antonmia do mundo, mistificao do ideal: para NIETZSCHE, a

    idia crtica e a filosofia so uma unidade; KANT, embora indo nessa direo, no realizou a

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    idia at o fim. A crtica em KANT esgota-se no compromisso a crtica mais conciliadora

    que j se viu, nunca nos faz superar as foras reativas que se exprimem no homem, na

    conscincia de si, na razo, na moral.

    08. NIETZSCHE E KANT DO PONTO DE VISTA DOS PRINCPIOS

    01. KANT o primeiro filsofo que compreendeu a crtica como devendo ser total (nada

    lhe deve escapar) e positiva (no restringe o poder de conhecer sem libertar outros poderes at

    a negligenciados). Mas ele no efetua isso; parece ter confundido a positividade da crtica

    com o humilde reconhecimento dos direitos do criticado. No fim, acabou somente levando

    adiante uma velha concepo da crtica, que postula a critica de todas as pretenses ao

    conhecimento, verdade e moralidade, mas no critica o conhecimento, nem a verdade, nem

    a moralidade. Os trs ideais kantianos permanecem incriticveis: o verdadeiro conhecimento(o que que posso saber?), a verdadeira moral (o que que devo fazer?), a verdadeira religio

    (o que que devo esperar?).

    02. A crtica no fez nada enquanto no se aplica prpria verdade, sobre o verdadeiro

    conhecimento, a verdadeira moral, a verdadeira religio. Para NIETZSCHE, o nico princpio

    possvel de uma crtica total seu perspectivismo. O fato de no existir fato nem fenmeno

    moral, mas sim uma interpretao moral dos fenmenos; o fato de no haver iluso no

    conhecimento, mas de o conhecimento ser uma iluso. O conhecimento um erro, umafalsificao.

    09. REALIZAO DA CRTICA

    01. O gnio de KANT foi ter concebido uma crtica imanente. A crtica no deveria ser

    da razo pelo sentimento, pela experincia ou algo exterior a ela mesma. E o criticado no

    deveria igualmente ser exterior razo: no deveria procurar na razo os erros provenientes de

    outros lugares, corpo, sentidos ou paixes. KANT concluiu assim que a crtica deveria ser da

    razo pela razo. Colocando-a, entretanto, como r e juiz de si mesma, no conseguir realizar

    a crtica: faltava-lhe um mtodo que lhe permitisse julgar a razo desde dentro, sem lhe

    confiar seu prprio julgamento. E NIETZSCHE tem esse mtodo na VP, princpio de uma

    gnese interna.

    02. O filsofo-legislador, em NIETZSCHE, aparece como o filsofo do futuro;

    legislao significa criao de valores. No que o filsofo deva comandar porque o melhor

    colocado para submeter-se a sabedoria, e assim encontrar as melhores leis o filsofo NO

    um sbio, o filsofo aquele que deixa de obedecer, que arrasa todos os velhos valores e cria

    novos. Para ele, o conhecimento criao, a sua obra consiste em legislar, sua vontade VP.

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    A idia de filosofia legisladora enquanto filosofia completa a de crtica interna enquanto

    crtica, constituindo ambas a contribuio principal do kantismo.

    03. Para KANT, entrementes, o que legislador (num domnio) sempre uma de nossas

    faculdades: a razo, o entendimento. Ns prprios somos legisladores medida que

    observamos o bom uso desta faculdade, na medida em que obedecemos a ela como a ns

    prprios. Mas o entendimento, a razo, tem uma histria: o que que obedecemos neles? A

    razo representa nossas submisses como outras tantas superioridades que nos fazem seres

    razoveis. A famosa unidade kantiana de legislador e sujeito apenas uma vitria de telogo,

    um carregar-nos com a dupla tarefa do sacerdote e do fiel, do legislador e do sujeito. Este

    legislador e este sacerdote apenas interiorizam os valores em curso.

    10. NIETZSCHE E KANT DO PONTO DE VISTA DAS CONSEQUNCIAS01. A oposio entre a concepo nietzschiana de crtica e a concepo kantiana resume-

    se a cinco pontos: 1 nada de princpios transcendentais, mas princpios genticos e

    plsticos, que dem conta do sentido e do valor das crenas, interpretaes e avaliaes; 2

    nada de um pensamento que se creia legislador enquanto obedincia razo, mas um

    pensamento que pense CONTRA a razo. um erro achar que o irracionalismo ope razo

    outra coisa que no o pensamento (como sejam a emoo, a experincia, a paixo, etc); o que

    se ope razo o prprio pensamento; o que se ope ao ser razovel o prprio pensador;3 no o legislador moda kantiana, mas o genealogista: este o verdadeiro legislador; 4

    nada de ser razovel, funcionrio dos valores em curso, simultaneamente sacerdote e fiel. Mas

    ento quem conduz a crtica? Nenhuma forma sublimada do homem, razo , esprito,

    conscincia de si, nenhum homem realizado, nenhum Deus, mas a VP, que se expressa

    nesse homem relativamente sobre-humano, o homem enquanto quer ser ultrapassado (sendo

    o super-homem o produto positivo da crtica); 5 o objetivo da crtica no so os fins do

    homem ou da razo, mas o super-homem, o homem superado, ultrapassado. Na crtica no se

    trata de justificar, mas de sentir diferentemente: uma outra sensibilidade.

    11. O CONCEITO DE VERDADE

    01. KANT o ltimo dos filsofos clssicos, pois nunca pe em questo o valor da

    verdade, nem as razes para nossa submisso ao verdadeiro. Sabe-se que o homem raramente

    procura a verdade: nossos interesses assim como nossa estupidez separam-nos do verdadeiro

    ainda mais do que nossos erros. Mas os filsofos pretendem que o pensamento enquanto tal

    procura o verdadeiro (evitando assim relacionar a verdade com uma vontade concreta, com

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    um tipo de foras, com uma qualidade da VP). NIETZSCHE no critica as falsas pretenses

    verdade, mas a prpria verdade como ideal.

    02. O conceito de verdade qualifica um mundo como verdico, este mundo supondo um

    homem verdico que como seu centro. Entretanto, claro que a vida quer o engano, que visa

    iludir, seduzir, cegar. Querer o verdadeiro querer antes de mais nada depreciar esse poder do

    falso, ao fazer da vida um erro, uma aparncia. Ope-se vida e conhecimento, ope-se o

    mundo verdico ao mundo real. O mundo verdico no separvel dessa vontade de tratar

    este mundo como aparncia. O homem verdico, que no quer enganar, quer um mundo

    melhor; com isso ele denuncia, moralmente, as aparncias. No a utilidade que o leva a

    tanto: num mundo radicalmente falso, querer ser verdadeiro que seria perigoso. Assim, a

    oposio entre o mundo verdadeiro e o mundo aparente uma oposio de origem moral.

    Essa oposio moral sintoma de uma vontade que quer voltar a vida contra a vida. Umavontade religiosa, asctica, portanto.

    03. Essa vontade asctica quer o triunfo das foras reativas. Aqui [em sua relao com a

    verdade], elas descobrem seu aliado: o niilismo, a vontade de nada. O niilismo anima todos os

    valores que se dizem superiores vida. Sob a gide de tais valores, a vida fica separada

    daquilo que ela pode (isto , fica reativa).

    04. O conhecimento, a moral e a religio; o verdadeiro, o bem e o divino; o ideal

    asctico, outro nome deste terceiro elemento, constitui o valor e o sentido dos outros dois.Est claro que o conhecimento, a cincia, a verdade a todo preo no comprometem

    seriamente o ideal asctico, que o que lhes d sentido e valor. A partir do momento que o

    esprito est em ao com seriedade, energia e probidade, torna-se absolutamente ideal... por

    essa altura que quer a verdade14.

    12. CONHECIMENTO, MORAL E RELIGIO

    01. A moral substituiu a religio como dogma, e a cincia tende cada vez mais a

    substituir a moral. A moral a continuao da religio por outros meios; o conhecimento a

    continuao da moral e da religio, mas por outros meios. sempre o ideal asctico por outros

    meios, outras foras reativas. Por isso se confunde a crtica com um ajuste entre foras

    reativas diversas.

    02. Quando NIETZSCHE diz que o cristianismo, enquanto dogma, foi destrudo por sua

    prpria moral (que se probe a mentira de crer em Deus), e que o cristianismo, enquanto

    moral, deve sucumbir vontade de verdade, no se trata de uma evoluo, no sentido de que a

    vontade de verdade deve dar um fim ao cristianismo, pois em todos esses mbitos trata-se

    14 Genealogia da Moral, III, 27

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    ainda do ideal asctico. Pelo contrrio, a vontade de verdade, expressando-se como a pergunta

    pelo significado e pelo valor da prpria vontade de verdade, quebra a srie do ideal asctico,

    quebra seu ltimo esconderijo, quebra a si prpria. Essa quebra, esse questionamento, o

    instante que antecede e preside a elevao. [o niilismo como conseqncia extrema do ideal

    asctico, mas tambm como comeo de uma outra maneira de sentir]

    13. O PENSAMENTO E A VIDA (150)

    01. NIETZSCHE censura frequentemente a pretenso do conhecimento de se opor

    vida, de medi-la e julga-la; ele, simples meio, quer erigir-se em fim. Tal sintoma de uma

    vida que quer se opor vida; o conhecimento, ao restringir a vida ao observvel, por exemplo,

    separa-a do que ela pode, tornando-a reativa; esse mesmo conhecimento constitudo j sob

    um modelo de uma vida reativa. NIETZSCHE censura tambm o pensamento quando secoloca apenas a servio dessa vida reativa.

    02. O conhecimento legislador (kantiano) significa a dupla e simultnea submisso do

    pensamento vida razovel e da vida razo. A crtica, como crtica do conhecimento, dever

    ser capaz de dar outro sentido ao pensamento: um pensamento que iria at o limite daquilo

    que a vida pode, que conduziria a vida at o limite do que ela pode. Um pensamento que

    afirmaria a vida. A vida seria a fora ativa do pensamento e o pensamento o poder afirmador

    da vida. Pensar seria descobrir, inventar novas possibilidades de vida, a vida ultrapassando oslimites que o conhecimento lhe fixa, o pensamento ultrapassando os limites que a vida lhe

    fixa. O pensador como uma bela afinidade entre pensamento e vida, instintos assentados em

    solos contrrios que, relacionados, se impulsionam mutuamente para adiante. Essa afinidade

    entre pensamento e vida tambm a essncia da arte.

    14. A ARTE

    01. A concepo nietzschiana de arte, concepo trgica, repousa sobre dois princpios:

    o primeiro diz que a arte um estimulante da VP, um excitante do querer, e no algo

    desinteressado, que sublima, suspende o desejo; tal princpio denuncia qualquer concepo

    reativa da arte.

    02. O segundo princpio diz que a arte o mais alto poder do falso; ela santifica a

    mentira, magnifica o mundo enquanto erro, faz da vontade de enganar um ideal superior,

    nico capaz de rivalizar com o ideal asctico e de se opor a ele com sucesso. A arte inventa

    precisamente mentiras que elevam o falso ao mais alto poder afirmativo. Aparncia, para o

    artista, no significa a negao do real, mas uma seleo, uma correo, um desdobramento,

    uma afirmao. Verdade significa ento efetivao do poder, [grau de intensidade]. Em