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FLORESTAN FERNANDES (Organizador) COMUNIDADE E SOCIEDADE Leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação COMPANHIA EDITORA NACIONAL EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃo PAULO

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FLORESTAN FERNANDES(Organizador)

COMUNIDADE ESOCIEDADE

Leituras sobre problemas conceituais,metodológicos e de aplicação

COMPANHIA EDITORA NACIONALEDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

SÃo PAULO

6 — Comunidade e sociedade comoentidades típico-ideais

FERDINAND TÕNNIES (*)

DETERMINAÇÃO GERALDOS CONCEITOS PRINCIPAIS

I — Relações entre as vontades humanas Comunidade e Socie-dade na linguagem. As vontades humanas se encontram em re-lações múltiplas entre si. Cada uma dessas relações é uma açãorecíproca que, enquanto exercida de um lado, é suportada ourecebida do outro. Essas ações se apresentam de tal maneira quetendem ou à conservação ou à destruição da vontade ou do seropostos: são positivas ou negativas. A presente teoria e os objetosde sua pesquisa concernirão apenas às relações reciprocamentepositivas. Cada uma dessas relações representa uma unidade napluralidade e uma pluralidade na unidade. Compõe-se de exigên-cias, compensações e ações que passam e repassam e que sãoconsideradas como expressões das vontades e de suas forças. Ogrupo formado por essa relação positiva, enquanto ser ou objetoque age de uma maneira homogênea para dentro ou para fora,chama-se uma associação.

A própria relação e, conseqüentemente, a associação, podemser compreendidas ou como uma vida real e orgânica — é entãoa essência da comunidade — ou como uma representação virtuale mecânica — é então o conceito da sociedade. O emprego daspalavras escolhidas demonstrará que elas estão fundadas num usoanálogo da língua alemã, mas, até o presente, a terminologia eru-

(*) Ferdinand Tõnnies, Communauté et sociètè (trad. do alemão para ofrancês por J. Leif), PUF, 1944, pp. 3-5, 9-11, 19-23, 39-41, 45-47, 49-53. Tradu-ção de Carlos Rizzi.

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dita as utiliza indiferentemente e confunde-as arbitrariamente. Épreciso que algumas notas preliminares coloquem a oposição comoum dado. Tudo o que é confiante, íntimo, que vive exclusiva-mente junto, é compreendido como a vida em comunidade (assimpensamos). A sociedade é o que é público, é o mundo. Ao con-trário, o homem se encontra em comunidade com os seus desdeo nascimento, unido a eles tanto no bem como no mal. Entra-sena sociedade como em terra estrangeira. Adverte-se o adolescentecontra a má sociedade, mas a expressão "má comunidade" soacomo uma contradição. Os juristas falam, é verdade, de sociedadedoméstica, mas o fato é que eles retêm apenas o conceito socialda relação. A comunidade doméstica, ao contrário, com suas açõesinfinitas sobre a alma humana, é experimentada por cada umdaqueles que participam dela. Por essa razão, os noivos sabemque entram no casamento como numa plena comunidade de vida(communio totius ifitae). Uma sociedade de vida é uma expressãocontraditória em seus próprios termos. Permanece-se em compa-nhia, mas ninguém pode permanecer em comunidade com outro.É-se admitido na comunidade religiosa; as sociedades religiosasexistem unicamente como as outras associações, em vista de umfim qualquer, para o Estado, e esse fim, na teoria, encontra-sefora delas. Existem comunidades de línguas, costumes, fé, masexistem também sociedades do trabalho, da viagem, das ciências.As sociedades comerciais são, desse ponto de vista, particular-mente significativas; mesmo devendo existir confiança e comu-nidade entre os membros, não se poderia falar, entretanto, de umacomunidade comercial. A associação dos dois nomes: comunidadede ação, seria intolerável. Entretanto, há a comunidade de pro-priedade: de campos, bosques, pastagens. A comunidade de bensentre os esposos não será chamada sociedade de bens. Por issoé que são estabelecidas muitas distinções. Em um sentido geral,poder-se-á falar de uma comunidade que engloba toda humani-dade, tal como o quer a Igreja. Mas a sociedade humana é com-preendida como uma pura justaposição de indivíduos indepen-dentes uns dos outros. Por outro lado, quando se trata, em umsentido erudito, da sociedade de um país por oposição ao Estado,pode-se aceitar esse termo, o qual encontrará então sua signifi-

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cação apenas com relação à comunidade do povo. Como coisae como nome, comunidade é velho, sociedade é novo. Um autorque estudou, de todos os pontos de vista, as disciplinas políticas,reconheceu isso sem ser necessário aprofundar-se muito: "Todaidéia de sociedade, em seu sentido social e político", diz Blunt-schli (Staatsworterbuch, IV), "encontra um fundamento naturalnos costumes e nas considerações do Terceiro Estado. Na reali-dade, não é um conceito popular, mas sempre um conceito doTerceiro Estado. A sociedade tornou-se a fonte e, ao mesmo tempo,a expressão de tendências e julgamentos gerais: onde a culturaurbana produz sempre flores e frutos, aí aparece também a socie-dade como órgão indispensável. O país, entretanto, conhece-osmuito pouco." Por outro lado, sempre se valorizou a vida docampo, porque nela a comunidade é mais forte e mais viva entreos homens: a comunidade é a vida comum, verdadeira e durável;a sociedade é somente passageira e aparente. E, numa certa me-dida, pode-se compreender a comunidade como um organismovivo, e a sociedade como um agregado mecânico e artificial (...).

TEORIA DA COMUNIDADE

I — Formas embrionárias. A teoria da comunidade se deduz,segundo as determinações da unidade completa das vontades hu-manas, de um estado primitivo e natural que, apesar de umaseparação empírica e que se conserva através desta, caracteriza-sediversamente segundo a natureza das relações necessárias e deter-minadas entre os diferentes indivíduos que dependem uns dosoutros. A fonte comum dessas relações é a vida vegetativa, quecomeça com o nascimento. É um fato que as vontades humanassão e permanecem unidas, ou assim se tornam necessariamente,na medida em que cada um corresponde a uma disposição cor-poral que resulta de sua origem ou do sexo. Esta associação, con-siderada como uma afirmação imediata e recíproca, apresenta-se,da maneira mais vigorosa, nas três espécies de relações seguintes:

1) a relação entre uma mãe e seu filho;

2) a relação entre homem e mulher, enquanto esposos, relação

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que deve ser compreendida num sentido natural ou, comu-mente, animal;

3) a relação entre irmãos e irmãs, isto é, entre filhos que sereconhecem como descendentes de uma mesma mãe.

Quando, em cada relação de descendentes de uma mesma ori-gem, o germe, ou tendência, e a força, fundamentados na vontade,puderem ser representados por uma comunidade, então esses trêscasos são os mais fortes e os mais significativos quanto às possi-bilidades de desenvolvimento do germe. Entretanto, cada um deuma maneira particular:

A) A relação maternal é a mais profunda, fundada no ins-tinto ou no prazer; nesse caso, é possível apreender a passagemde uma associação corporal e espiritual a uma associação pura-mente espiritual, e esta última leva tanto mais àquela quantomais próxima estiver de sua origem. Esta relação exige um longotempo durante o qual a mãe está encarregada da alimentação,proteção e conduta do recém-nascido até que ele seja capaz dese alimentar, proteger-se e conduzir-se por si mesmo. Mas, duranteesse tempo de progresso, a mesma relação perde em necessidadee chega a um ponto de separação cada vez mais provável; to-davia, esta última tendência pode ser suprimida ou combatidapor outros elementos, em particular pelo hábito de viver emconjunto, pela lembrança das alegrias ocorridas e, sobretudo,quando o filho reconhece a preocupação e os cuidados maternais.Mas a essas relações recíprocas e imediatas se juntam circunstân-cias gerais exteriores, que se associam a elas indiretamente: de-sejo, hábito, lembrança de objetos do círculo social inicialmenteagradáveis ou que se tornaram agradáveis, saudades de pessoasconhecidas, amáveis e serviçais, como o pai quando vive no lar,ou os irmãos e irmãs da mãe, ou do filho, etc.

B) O instinto sexual não exige, de maneira alguma, vida co-mum durável. De início, ele conduz menos facilmente para umaaliança recíproca do que para uma sujeição da mulher, a qual,devido à sua fraqueza natural, pode tornar-se objeto de uma purapossessão ou ver-se rebaixada à escravidão. É por essa razão queas relações entre esposos, consideradas como independentes dos.

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laços de parentesco e como contendo todas forças sociais, devemser conservadas pelo hábito de viver junto para transformar-senuma relação durável e num mútuo acordo. A isso se juntam,bem entendido, os outros fatores de consolidação já citados, par-ticularmente a relação para com os filhos gerados como proprie-dade comum e, em seguida, uma relação geral para com os benscomuns e para com o governo da casa.

C) Não existe, entre irmãos e irmãs, harmonia tão espontânea,tão instintiva e conhecimento íntimo tão natural como entre mãee filho, ou como entre seres unidos de sexos diferentes, ainda queeste último caso possa coincidir com o dos irmãos e irmãs, poisnão faltam razões para crer que essa harmonia se apresentounumerosas vezes, em muitas raças, numa época primitiva da hu-manidade. A esse propósito, é preciso lembrar que, naquelaépoca, a descendência era contada do lado materno e que nomee sentimento fraternais se encontravam espalhados no mesmograu que o parentesco de primos, e isso de maneira tão geralque o sentido estrito, como em muitos outros casos, só se tornouo sentido próprio a partir de uma concepção mais tardia. Entre-tanto, devido a um desenvolvimento regular nos agrupamentos dospovos mais importantes, o casamento e as relações entre irmãose irmãs e, posteriormente (na prática exótica), não a aliança e olaço de sangue, mas a aliança e o parentesco de clã, se excluemcom rigor absoluto. Assim, o amor fraternal, que se fundamentaainda no laço do sangue, pode ser apresentado como a mais hu-mana das relações entre os homens. Observa-se também, compa-rando-se as outras duas formas de relações, que onde o instintoé mais fraco, a reflexão parece cooperar mais fortemente para agênese, conservação e consolidação dos laços do coração. Pois, sefoi provado que os filhos da mesma mãe, pelo fato de vivereme permanecerem com ela e juntos, associam necessariamente emsua lembrança a pessoa e a vida dos outros a todas impressõesde acontecimentos agradáveis, com exceção das razões de hosti-lidade capazes de entravar essas tendências, então esse grupo éconstituído mais cedo, mais forte e mais estreitamente, e isso tam-bém na medida em que for ameaçado pelo exterior e pelas cir-cunstâncias que contribuem para tornar mais unida a comunidade

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de luta e de ação. Em seguida, o hábito torna essa vida aindamais fácil e atraente. De irmãos pode-se esperar, portanto, nomais alto grau possível, uniformidade de existência e de forças,da qual podem resultar, em seguida, as diferenças de inteligên-cia ou de experiência enquanto fatores puramente pessoais oumentais (...).

DIGNIDADE E ENCARGO -A DESIGUALDADE E SEUS LIMITES

Toda dignidade, enquanto liberdade e honra particulares emais amplas, deve ser considerada como um domínio determi-nado da vontade e deve provir da esfera geral e uniforme davontade da comunidade. Assim, ela tem por obrigação o encargo,enquanto liberdade e honra particulares e mais restritas. Todadignidade pode ser considerada como encargo e todo encargocomo dignidade, ao menos numa certa medida. A esfera da von-tade comum é uma massa de determinada força, poder e direito,uma soma de querer e poder enquanto obrigação e dever. É poressa razão que se apresentam a natureza e o conteúdo de todasesferas das vontades derivadas, nas quais direito e obrigação sãoos dois lados correspondentes da mesma coisa, nada mais que asmodalidades subjetivas de uma mesma substância objetiva dedireito e de força. Desse modo, existem e nascem desigualdadesreais no interior da comunidade, tanto pelas obrigações e pelosdireitos amplos e restritos, como pela própria vontade da comu-nidade. No entanto, elas podem estender-se somente até um de-terminado limite, pois além desse limite cessa a existência da o>munidade enquanto unidade das diferenças: de um lado (paracima), porque a força do direito pessoal torna-se muito grandee, conseqüentemente, sua ligação com a força do direito geraltorna-se indiferente e sem valor; de outro lado (para baixo),porque a força própria torna-se muito pequena e sua ligação,irreal e sem valor. Quanto menos os homens ficarem em contatouns com os outros, associados à mesma comunidade, mais eles secomportarão uns com relação aos outros como sujeitos livres de-pendentes de sua vontade e de seu poder próprios, E essa liber-

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dade é tanto maior quanto menos dependente, quanto menosexperimentada pela vontade pessoal previamente determinada equando, conseqüentemente, essa vontade menos depender de umavontade comunitária qualquer. Pois, para a natureza e formaçãode qualquer hábito individual ou de qualquer maneira de sen-tir, existe, enquanto fator importante e fora das forças e dastendências congênitas, alguma vontade comum, educadora e dire-triz; essa vontade pode ser, em particular, o espírito de família,ou também qualquer espírito semelhante ao espírito de famíliaou que age à sua maneira.

VONTADE COMUM - COMPREENSÃO -DIREITO NATURAL - LÍNGUA

- LÍNGUA MATERNA - CONCÓRDIA

Deve-se entender por compreensão (consensus) sentimentosrecíprocos comuns e associados, enquanto vontade própria deuma comunidade. A compreensão representa a força e a simpatiasociais particulares que associam os homens enquanto membrosde um todo. E, pelo fato de toda tendência do homem estar unidaà razão e supor as disposições da língua, a compreensão podetambém ser considerada como a significação e a razão das con-dições da língua. Conseqüentemente, entre o progenitor e seufilho, por exemplo, ela existe apenas na medida em que o filhoé dotado da língua e de uma vontade razoável. Em outras pala-vras, tudo o que pertence à significação de uma relação comuni-tária e que tem um sentido nela e para ela própria representaseu direito, isto é, é respeitado como a vontade realmente exis-tente da maioria dos associados. Portanto, na medida em quecorresponder à sua verdadeira natureza e às suas forças, na me-dida em que o gozo e o trabalho forem distintos e, sobretudo,na medida em que de um lado existir o mando e, de outro, aobediência, esse direito é um direito natural, uma regra da vidacomum que determina o domínio ou a função de cada vontade,uma soma de obrigações e de prerrogativas. A compreensão, por-tanto, baseia-se num conhecimento íntimo uns dos. outros, na

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medida em que ela é condicionada por uma participação diretade um ser na vida dos outros pela inclinação de partilhar suasalegrias e sofrimentos; ela exige essa participação ou essa incli-nação. E ela é tanto mais verdadeira quanto mais se assemelharemas constituições e as experiências, ou quanto mais o natural, ocaráter e as maneiras de pensar forem da mesma natureza, oude natureza homogênea. O verdadeiro órgão da compreensão,onde ela desenvolve e forma sua existência, é a própria língua,em sua expressão comunicativa e receptiva de gestos e de sonsque traduzem a dor e o prazer, o medo e o desejo e todos osoutros sentimentos ou emoções. Gomo se sabe, a língua não foiinventada à maneira de um objeto, nem convencionada como ummeio para se fazer compreender, mas ela é uma harmonia vivapor seu conteúdo e por sua forma. Semelhante a todos os outrosmeios de exteriorização conhecidos, sua expressão é conseqüênciainvoluntária de sentimentos profundos e de pensamentos predo-minantes, e não vem de uma intenção de se comunicar, como nocaso de um meio artificial que se baseasse numa incompreensãonatural, mesmo se a língua fosse, entre aqueles que a compreen-dem, utilizada como um simples sistema de sinais ou à maneirade outros sinais convencionais. Sem dúvida, todas essas demons-trações podem também se apresentar como manifestações de sen-timentos hostis ou benevolentes. Isto é tão verdadeiro que se étentado a formular a seguinte proposição geral: os sentimentosou inclinações hostis ou benevolentes são submetidos às mesmascondições ou a condições análogas. Mas é preciso distinguir total-mente aqui a inimizade proveniente da ruptura ou do relaxa-mento de ligações que existem naturalmente, dessa espécie deinimizade que se funda no desconhecimento, na incompreensão ena desconfiança. Todas as duas são instintivas, mas a primeira énatural da cólera, do ódio e do despeito, a segunda é naturaldo medo, da aversão, da repulsa; a primeira é aguda, a segundacrônica. Seguramente, a língua, como todas outras mediações daalma, não se originou nem de uma nem de outra inimizade, quesão apenas estados extraordinários e patológicos, mas sim da con-fiança, da profundidade do sentimento, do amor e, sobretudo,

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dessa relação profunda entre mãe e filho: a língua materna devenascer e desenvolver-se da maneira mais fácil e viva.

De fato, a unidade e a possibilidade de uma comunidade dasvontades humanas se apresentam, em primeiro lugar e de maneiramais imediata, nos laços do sangue; em segundo lugar, na aproxi-mação espacial e, finalmente, para os homens, na aproximaçãoespiritual. É nesta classificação, portanto, que devemos procuraras raízes de todas as relações (associações). Daí nós construímosas leis principais da comunidade: 1) Pais e esposos se amamreciprocamente ou se habituam facilmente uns aos outros, falame pensam juntos de bom grado e freqüentemente; da mesmaforma os vizinhos e outros amigos; 2) Entre aqueles que se amam(etc.), existe a compreensão; 3) Aqueles que se amam e se com-preendem permanecem e moram juntos, regulam sua vida co-mum. A forma geral da vontade comum determinante, tornadatão natural como a própria língua e que, em conseqüência, con-tém compreensões muito diversas, cujas formas são fixadas porsuas regras, eu chamo concórdia (concórdia: como uma aliançacordial e uma harmonia). Compreensão e concórdia, portanto, sãoa mesma coisa: vontade comum em suas formas elementares, com-preendida como compreensão em suas relações e ações particula-res, como concórdia em sua força e natureza gerais.

ESTRUTURA DAS UNIDADES NATURAIS

Resulta do que precede que a compreensão é a expressão maissimples da existência íntima e da verdade de toda vida real, ha-bitação e ação comuns. Portanto, ela é de importância geral eprimordial para a vida doméstica; visto que o princípio dessavida doméstica se encontra na aliança harmoniosa homem-mulhercom o fim de educar seus descendentes, assim o casamento tem,mais particularmente, esse sentido (de compreensão) como relaçãodurável. O acordo tácito, como também pode-se chamar, no queconcerne às obrigações e aos direitos, ao bem e ao mal, pode sercomparado a uma convenção, a um pacto, mas somente parafazer-se ressaltar com maior vigor o contraste. Pode-se dizer, da

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mesma maneira, que o sentido das palavras seja o mesmo que odos sinais convencionais e reflexos; no entanto, é o contrário. Con-venção ou pacto é uma unidade fabricada, decidida, promessarecíproca que supõe, em conseqüência, a língua assim como umavisão e aceitação recíprocas de ações futuras propostas, as quaisdevem ser expressas em conceitos claros. Tal acordo, quando aprópria ação é determinada implicitamente, pode também serimplícito, isto é, como se fosse obtido; pode então, por acidente,ser tácito. Mas, a compreensão é muda por natureza, pois seuconteúdo é inexprimível, infinito, incompreensível. Assim comoa língua não é convencionada, se bem que, por ela, numerosossistemas de sinais possam ser fixados como conceitos, assim a con-córdia não pode ser construída, embora isso seja também possívelpor meio de muitas outras espécies de convenções. Compreensãoe concórdia crescem e florescem, quando suas condições são favo-ráveis, de determinados princípios. Assim como uma planta nascede outra, uma casa (como família) descende de outra, assim tam-bém o casamento é proveniente da concórdia e dos costumes. Elessão sempre precedidos não somente de fatos semelhantes que oscondicionam e os criam, mas também de fatos gerais neles con-tidos e na maneira como se apresentam. Essa comunidade devontade existe também nos maiores grupamentos como expressãopsicológica da ligação do sangue, embora mais dissimulada e apa-recendo entre os indivíduos apenas sob a forma orgânica. Comoa generalidade de uma língua comum aproxima e une os senti-mentos humanos enquanto possibilidade real de compreensão dapalavra, da mesma forma existe um espírito comum, e mais ainda,suas manifestações mais altas, costumes e fé comuns, que penetramnos membros de um povo, símbolos de sua unidade e da con-córdia de sua vida, embora sem certeza, mas que nele e dele seestendem com crescente intensidade e alcançam plenamente todasas divisões e ramos de uma raça; e, sobretudo, de maneira maisperfeita, as famílias cujo parentesco remonta à formação primi-tiva e importante de uma associação orgânica dos seres, pelosangue ou por aliança, que a família é antes de ser a família,momento em que ela já possui uma realidade semelhante à sua.Mas, a partir desses grupos, e por cima deles, formam-se, como

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suas modificações, os complexos determinados pelo solo que nósdistinguimos segundo a seguinte classificação geral: a) o país;&) a região ou província, e a representação mais íntima dessescomplexos; c) a aldeia. A cidade se desenvolve em parte fora eem parte ao lado da aldeia, e encontra seu acabamento não nosobjetos naturais, mas num espírito comum que lhe mantém acoesão; segundo sua aparência exterior, ela é apenas uma grandealdeia, uma pluralidade de aldeias vizinhas ou uma aldeia cer-cada com muros, mas que reina como um todo sobre a regiãocircunvizinha e que forma, em associação com esta, uma novaorganização da província com uma extensão maior no país, eque transforma uma estirpe, um povo. Entretanto, no interiorda cidade se formam, como seus produtos e frutos próprios, aassociação do trabalho, a corporação ou corpo de ofício, a asso-ciação do culto, a confraria e a comunidade religiosa; esta comu-nidade religiosa é, ao mesmo tempo, a última e mais alta mani-festação da qual a idéia de comunidade é capaz. Mas também,de maneira semelhante, qualquer cidade, aldeia, povo, estirpe,geração ou família, pode ser representado ou compreendido comouma espécie particular de corporação ou de comunidade religiosa.Inversamente, todas essas diferentes formações estão contidas ouprovêm da idéia de família, enquanto expressão geral da reali-dade comunitária (...).

TEORIA E SOCIEDADE

Fundamento negativo — Igualdade de valor — O julgamentoobjetivo. Segundo a teoria da sociedade, esta é um grupo dehomens que, vivendo e permanecendo de maneira pacífica unsao lado dos outros, como na comunidade, não estão organica-mente unidos mas organicamente separados; enquanto que nacomunidade estão unidos, apesar de toda separação, na sociedadeestão separados, apesar de toda ligação. Não existem aqui ativi-dades que poderiam ser derivadas de uma unidade a priori e demaneira necessária; as quais, portanto, na medida em que sãoproduzidas pelo indivíduo, exprimem nele a vontade e o espírito

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dessa unidade, realizando-se pois para aqueles que estão associa-dos como para si mesmo. Aqui, cada um é para si e está em umestado de tensão em face de todos os outros. Os domínios daatividade e do poder estão claramente limitados uns com relaçãoaos outros, de tal maneira que cada um os defende diante dooutro, o contato e a entrada que são considerados como açãoinimiga. Tal conduta negativa é normal e é o fundamento daposição desses "sujeitos-forcas" uns com relação aos outros, ecaracteriza a sociedade no estado de paz. Ninguém fará algumacoisa para o outro, ninguém desejará conceder ou dar algumacoisa ao outro, a não ser em troca de um serviço ou de um domestimado pelo menos como equivalente ao seu. E é mesmo neces-sário que o dom ou serviço lhe sejam mais úteis que o que eledá, pois somente o recebimento de alguma coisa que lhe pareçamelhor o decidirá a fazer o bem. Mas, se cada qual tiver essavontade, é evidente que a coisa a para o sujeito B pode ser melhorque a (coisa ò; do mesmo modo, a coisa b para o sujeito A podeser melhor que a coisa a. Mas, segundo essas relações, a não podeser melhor que b, nem b melhor que a ao mesmo tempo. Assimse coloca o problema: em que sentido, em geral, pode-se falar debem ou de valor de coisas que dependem de tais relações? A issose pode responder: na representação aqui dada, todos os bens sãosupostos separados, como seus sujeitos; o que alguém possui edo qual desfruta, ele o faz de uma maneira exclusiva com relaçãoa todos os outros; na realidade, não existe aqui bem comum. Talbem pode existir por ficção dos sujeitos; entretanto, essa ficçãosó é possível pela construção de um sujeito comum com uma von-tade imaginada, ao qual deve relacionar-se esse valor comum.

Entretanto, tais ficções não são inventadas sem uma razão sufi-ciente. Essa razão já existe no simples ato da doação ou recebi-mento de um objeto, na medida em que ocorrer assim, um con-tato e a constituição de um domínio comum desejado pelos doissujeitos, domínio que persiste durante o tempo da "transação";este tempo pode ser considerado como muito curto, ou igual azero, mas pode ser também representado como prolongado àvontade. Durante esse tempo, tal parte que se destaca, por exem-plo, do domínio de A, cessou inteiramente de estar sujeita à sua

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vontade e poder; ela não começou ainda a estar inteiramentesujeita à vontade e ao poder de B: está ainda sob o domínioparcial de A e já sob o domínio parcial de B. Essa parte é de-pendente dos dois sujeitos na medida em que suas vontades esti-verem igualmente dirigidas por ela, como é o caso enquanto duraa vontade de dar e receber. Ela é um bem comum, um valorsocial. A vontade comum em relação com esse ato e que a elese encontra unida pode ser considerada agora como um todo,que exige ser completada por cada um até o término do atoduplo. Ela deve ser considerada como uma unidade enquantofor compreendida como sujeito ou enquanto se lhe atribuir umsujeito; pois é a mesma coisa pensar algo como existente ouobjeto e pensá-lo como unidade. Entretanto, devemos distinguiraqui, com cuidado, se tal ens-fictivum existe apenas para a teoria,e por quanto tempo, ou então se existe também no pensamentode seus próprios sujeitos para um determinado fim (o que supõe,aliás, o fato de eles já serem capazes de uma vontade e açãocomuns); pois é ainda outra coisa quando eles são representadoscomo participantes da causalidade de tudo que é objetivo nosentido científico (na medida em que ele é, aqui, o que todosdevem pensar nas condições dadas). Sem dúvida, é preciso com-preender que cada ato da doação e do recebimento, da maneiraindicada, deve conter implicitamente uma vontade social. Poroutro lado, essa ação não é concebível sem seu fundamento ou fim,isto é, a contrapartida suposta e conseqüentemente o recebimen-to; mas já que esta última ação está por sua vez condicionadada mesma maneira, nenhuma pode preceder a outra, elas devemcoincidir no tempo, exprimir de maneira diferente o mesmo pen-samento: o recebimento é igual ao abandono de determinadaquantidade; de modo que, a própria troca, como ato único, éo conteúdo da vontade social fictícia. Com relação a esta mesmavontade, os bens ou valores trocados são equivalentes. Seu jul-gamento é expresso pela equivalência; ele é válido para os doissujeitos na medida em que eles o fixarem em seu acordo e,conseqüentemente, é válido também unicamente enquanto durara troca. Para que ele seja, assim delimitado, objetivo ou univer-

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salmente válido, ele deve aparecer como um julgamento feito portodos. E todos devem ter essa vontade única; a vontade de trocase generaliza; todos participam do ato particular e o confirmam,e ele se torna absolutamente público. Pelo contrário, a generali-dade pode também recusar esse ato particular: ela declara queA não é igual a E, mas sim menor ou maior que B, isto é, queos objetos não são trocados segundo seu valor real. O valor realexiste com relação a todos, pensado como um bem social comum,e é constatado quando ninguém faz uma apreciação positiva ounegativa de um dos objetos com relação ao outro. Ele é razoável,justo, real, e todos estão de acordo com ele, não por acaso, masde maneira necessária; portanto, todos concordam com ele e po-dem se considerar como associados na pessoa do juiz que julga,que pesa e que sabe, que torna o julgamento objetivo. Todosdevem reconhecer esse julgamento objetivo e dirigir-se segundoele, na medida em que tiverem uma razão e um pensamentoobjetivo, empregando em conseqüência a mesma medida e pesandocom a mesma balança (...).

O CONTRATO - DIVIDA E EXIGÊNCIA -PARTILHA DA PROPRIEDADE

A vontade comum em cada troca, na medida em que esta úl-tima é considerada como um ato social, chama-se contrato. Eleé resultante de duas vontades divergentes que, num ponto, secruzam. Ele dura até o término da troca, pede e exige os doisatos que constituem essa troca, mas cada um desses atos podedecompor-se numa série de atos parciais. Como ele se relacionasempre a atos possíveis, esvazia-se de seu conteúdo e cessa assimque esses atos se esgotam ou se tornam impossíveis: o primeirocaso representa o término, o segundo a ruptura do contrato. Avontade particular que entra no contrato se relaciona ou à suaação presente e real — como na doação de mercadoria ou dedinheiro —, ou à sua ação futura ou possível, mesmo que se tratede um excedente que é pensado, em sua totalidade, como pre-

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sente, conseqüentemente como contendo algo da doação ou doresto de mercadoria ou de dinheiro, ou que toda essa ação, comseu início, seja projetada para um momento distante (o prazo);de modo que, seja para a parte, seja para o todo, a pura vontadedeva ser dada e aceita. A pura vontade pode também ser evi-dente de outras maneiras, porém somente será certa quando forexpressa em palavra. Dá-se então a palavra no lugar da coisa.Ela tem, para aquele que recebe, o valor da coisa na medidaem que a associação da palavra e da coisa é necessária, portantona medida em que para ele a reclamação desta última é certa.Ela não tem valor como "penhor", pois não se pode desfrutardela e nem vendê-la como coisa. Mas eqüivale ao abandono idealda próxima coisa; o contratante, ao qual esta coisa deve voltar,recebeu pleno direito sobre ela, o único direito que ele podeobter por sua própria vontade (e cujo poder atual eqüivaleria aofundo natural da propriedade real), precisamente pela vontadegeral social. A sociedade, incapaz de examinar cada caso, presumeno que concerne ao abandono condicionado pela troca, e a trocade objetos equivalentes. Isso significa apenas que, na sociedadebem compreendida, não somente a situação atual de cada um, mastambém cada troca e conseqüentemente cada promessa são confor-mes à vontade de todos, isto é, são consideradas como legais, por-tanto como geradoras de obrigação. Mas isso exige primeiramenteo acordo do credor, pois somente por sua vontade uma coisa quelhe pertence (unicamente segundo a base da troca) pode permane-cer em mãos de outro. Seu acordo pode ser considerado como apromessa real que ele consente que o objeto ali permaneça e deonde não retirará antes do prazo. Mas, em geral, quando cada pro-messa é considerada como uma doação futura de um objeto detroca, esta troca é então semelhante a uma doação presente, paraum tempo determinado, de uma propriedade condicionada apenaspela vontade do contrato, e que, como "dívida" do proprietáriocom relação a seu "credor", representa uma propriedade negativa,precisamente a necessidade de ceder o devido por um prazo de-terminado. A propriedade positiva, no sentido social, é, ao con-trário, a liberdade absoluta (não compromissada) de dispor de

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seu bem com relação a cada um durante tempo ilimitado. Odevido é também uma propriedade real para o devedor com re-lação a cada terceiro, mesmo após o prazo de vencimento (e nissose baseia a proteção abstrata da possessão no sistema social dodireito), e, do mesmo modo, com relação ao credor até esse prazo.É por isso que ele é limitado apenas com relação ao prazo esomente pela necessidade do pagamento, isto é, termina com esteúltimo. Do mesmo modo, a propriedade do credor sobre o mesmoobjeto, a qual, a partir do prazo, é absoluta contra todos, en-contra-se até aí negada com todas suas conseqüências pelo direitodo devedor; assim limitada ela se chama "crédito" com relaçãoao devedor, como liberdade ou direito de obrigá-lo a pagar apartir do prazo de vencimento. Conseqüentemente, ela é umapropriedade comum e partilhada durante o intervalo, enquantoque a plena possessão pertence ao credor, excetuando-se a dispo-sição provisória que pertence ao devedor (...).

A ATIVIDADE NA PROMESSA - O DIREITODE EXIGI-LA - ASSOCIAÇÃO -

DIREITO NATURAL - CONVENÇÃO

Mas, em cada troca, um objeto eventual pode ser substituídopor uma atividade. A própria atividade é dada e aceita comoum serviço. Como um objeto, ela deve ser útil ou agradávelàquele que a recebe. Então essa atividade é considerada comouma mercadoria cuja produção e consumo coincidem tempora-riamente. Enquanto um serviço não for prestado, mas somenteprometido (por oposição à coisa não dada mas somente prome-tida), a ação é feita de maneira correspondente. Ela pertence dedireito ao credor; após o prazo, ele pode obrigar legalmente opromitente a realizar o serviço, como pode obrigar legalmente odevedor ou um terceiro proprietário a entregar uma coisa devidaou tomá-la por força. Um serviço devido só pode ser obtido porobrigação. Entretanto, a promessa de um serviço pode ser tantobilateral como unilateral, e resultará daí um direito de obrigação

112 — Comunidade e sociedade

conforme. Em conseqüência, nesse sentido, várias pessoas podemse unir exteriormente por um serviço igual onde cada qual des-fruta do serviço real do outro como de uma ajuda. Finalmente,várias pessoas podem entrar em acordo para considerar sua asso-ciação como um ser existente e independente, de natureza indi-vidual semelhante à sua, e para atribuir a essa pessoa fictíciauma vontade particular e a capacidade de comércio, capacidadede concluir contratos e obrigações. Essa pessoa, como todos osoutros conteúdos possíveis de contratos, só pode entretanto serconsiderada como realmente objetiva na medida em que a socie-dade parece participar dela e, em conseqüência, confirmar nelasua existência. Somente assim ela se torna um sujeito da ordemlegal da coletividade e chama-se uma sociedade, uma associaçãoou qualquer outro nome semelhante. O conteúdo natural de talordem pode ser resumido nesta fórmula única: pacta esse obser-vanda, isto é, os contratos devem ser observados, o que supõeimplicitamente uma situação de esferas ou de domínios de von-tades separadas, cujo contorno real é aceito ou garantido, demodo que uma mudança aceita e, conseqüentemente legal, decada esfera, só pode ocorrer seja a favor, seja contra o arbítriode domínios situados fora do sistema, ou ainda no interior dosistema, apenas por contratos, isto é, com o acordo de todos. Talunanimidade de vontades é, segundo sua natureza, momentânea,limitada, de modo que a mudança, como vir-a-ser da nova si-tuação, não deve ter duração. Assim, .a regra superior que per-mite a cada um agir no interior de seu domínio como quiser,mas não fora dele, não sofreu modificação. Mas, onde existe umdomínio comum, como na obrigação durável e na sociedade, aprópria liberdade, como conteúdo dos direitos, deve ser parti-lhada a fim de corresponder a esses direitos, ou então deve sercriada uma nova liberdade artificial e fictícia. A forma simplesda vontade social comum, na medida em que estabelece essedireito natural, eu a chamo convenção. Determinações positivase regras de todas espécies podem ser reconhecidas como conven-cionais, as quais, segundo sua origem, são de estilo totalmentediferente, se bem que "convenção" é compreendida muitas vezes

Distinções e contrastes conceituais básicos — 113

como sinônimo de usos e costumes. Mas tudo o que é conformeao uso e costume é convencional na medida em que é desejadoe recebido como sendo de utilidade geral e na medida em quea utilidade geral é desejada e recebida por cada um como suautilidade própria. Não é mais aceito nem desejado por causa datradição, como herança sagrada dos antepassados. Portanto, osnomes, costumes e usos não são mais apropriados.

A SOCIEDADE CIVIL - O HOMEM COMO COMERCIANTE- CONCORRÊNCIA GERAL - A SOCIEDADE EM SEU

SENTIDO MORAL

A sociedade, portanto, pela convenção e pelo direito de umagregado, é compreendida como uma soma de indivíduos naturaise artificiais, cujas vontades e domínios se encontram em associa-ções numerosas, mas que permanecem, entretanto, independentesuns dos outros e sem ação interior recíproca. Aqui se situa por-tanto a descrição geral da "sociedade civil" ou "sociedade mer-cantil", cuja economia política é aplicada para conhecer a natu-reza e as ações, um estado no qual, segundo a expressão de AdamSmith, "cada um é um comerciante". Em conseqüência, ondeindivíduos propriamente comerciantes, negócios ou sociedades ecompanhias se opõem uns aos outros no tráfico comercial e finan-ceiro internacional ou nacional, a natureza da sociedade se apre-senta como num extrato, reflete-se como num espelho côncavo.Pois a generalidade desse estado não é, de nenhuma maneiracomo o imaginara o célebre Schotte, a decorrência direta e ver-dadeira no novo fato de o trabalho ser dividido e os produtostrocados. Ela é, antes de tudo, um fim longínquo, com relaçãoao qual o desenvolvimento da sociedade deve ser compreendido;e, em nosso sentido, a existência de uma sociedade, em um deter-minado momento, ,é real na medida em que esse fim é atingido.Portanto, esta existência é sempre algo que evolui, que deve serconsiderado como o sujeito da vontade ou da razão geral; e, aomesmo tempo (como sabemos), como um sujeito fictício e nomi-

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nal, que flutua no ar tal como saiu das cabeças de seus suportesconscientes, que estendem as mãos por cima de todas distâncias,fronteiras e idéias, desejosos de troca, e que consideram essa per-feição especulativa como o único país, a única cidade, onde todoscavaleiros de indústria e aventureiros merchant adventurerstêm um real interesse comum. Assim, a generalidade social érepresentada, como a ficção do dinheiro o é pelo metal ou pelopapel, por toda terra ou por um território delimitado de qual-quer maneira; pois, nessa compreensão, é preciso fazer abstraçãode todas as relações primitivas e naturais dos homens uns comrelação aos outros. A possibilidade de uma relação social supõeapenas uma pluralidade de pessoas, capazes de produzir e, emconseqüência, de prometer. A sociedade como coletividade, sobrea qual deve estender-se um sistema convencional de regras, é,segundo sua idéia, ilimitada: ela ultrapassa continuamente suasfronteiras reais ou fortuitas. E como cada pessoa procura nela suavantagem própria e aprova as outras somente na medida e pelotempo em que estas desejam a mesma vantagem que ela própria,a relação de todos para com todos, antes e fora da convenção,e também antes e fora de cada contrato particular, pode sercompreendida como uma hostilidade em potência ou como umaguerra latente, excetuando-se os acordos das vontades, comotambém os pactos e os tratados de paz. E nisso reside a únicaconcepção adequada de todas as realidades do tráfico e do comér-cio, onde todos os direitos e obrigações podem se relacionar a purasdeterminações de bens e de valores e sobre a qual, em conseqüên-cia, deve repousar qualquer teoria do puro direito privado ou(compreendido no sentido social) do direito natural, mesmo que ateoria ignore esse direito natural. Compradores e vendedores, emseus diversos aspectos, situam-se sempre uns com relação aosoutros de tal maneira que cada um deseja e tenta dar o menospossível de seu próprio bem, e obter o mais possível o bem dooutro. E os verdadeiros comerciantes e negociantes percorremdiversos caminhos e, durante esse percurso, cada um procura ul-trapassar o outro e, se possível, classificar-se em primeiro lugar:procuram obter a colocação de sua mercadoria e a maior quau-

Distinções e contrastes conceituais básicos — 115

tidade possível dessa mercadoria; em conseqüência, eles procuramrepelir-se mutuamente e fazer com que o outro caia, e a perdade um é ao mesmo tempo o ganho do outro, como em cada trocaparticular, na medida em que os proprietários não troquem va-lores realmente iguais. Isso é a concorrência geral, que ocorre emmuitos outros domínios, mas em nenhuma outra parte tão clarae conscientemente como no comércio, ao qual em conseqüêncialimita-se o emprego da palavra, e que numerosos derrotistas jádescreveram como a ilustração da guerra de todos contra todos,e que um grande pensador considerou como sendo o estado na-tural e geral da natureza humana. Mas a concorrência leva tam-bém em si, como todas as formas dessa guerra, a possibilidade deseu fim. Também esses inimigos, ainda que dificilmente, decidemem certas situações como sendo vantajoso aumentarem, permane-cerem tranqüilos ou mesmo se associarem em vista de um fimcomum (em primeiro lugar e, no mais das vezes, contra umrival comum). Assim, a concorrência é limitada e transformadaem aliança. E, por analogia com essas relações que se baseiam natroca de valores materiais, pode-se compreender qualquer sócia-bilidade convencional cuja regra superior é a cortesia: uma trocade palavras e de favores na qual cada um parece estar no lugarde todos e onde todos parecem estimar cada um como seu seme-lhante, mas onde, na realidade, cada um pensa em si mesmo ese preocupa, ao contrário, em fazer triunfar entre os outros seuponto de vista e suas vantagens. Tudo o que um mostra deagradável ao outro, ele espera e mesmo exige ao menos um equi-valente e, em conseqüência, pesa exatamente seus serviços, lison-jas, presentes, etc., como se fossem determinar os efeitos desejados.Contratos não formais desse gênero são constantemente concluí-dos e muitos são incessantemente rejeitados nessa sucessão pelopequeno número dos felizes e poderosos. Como, em geral, todasas condições sociais se fundamentam na comparação de serviçospossíveis ou propostos, aparece claramente aqui porque as rela-ções referentes a objetos visíveis e materiais e porque atividadespuras e palavras só podem ser impropriamente o fundamentodessa comparação. Por oposição, a comunidade, como ligação de

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"sangue", é primeiramente a relação dos corpos que se exprimemem ações e palavras; as relações comuns com relação aos objetossão de natureza secundária, não sendo esses objetos tão comer-cializados quanto possuídos e utilizados em comum. A sociedadeé, no sentido que podemos chamar moral, condicionada comple-tamente por suas relações com o Estado, o qual, até o momento,não é objeto do presente estudo, pois a sociedade econômicadeve ser considerada como precedendo-o.

15 — A emergência do conceito de sociedadecomo categoria sociológica

TALCOTT PARSONS (*)

Pode-se considerar "sociedade" como o termo mais geral quese refere a todo o complexo das relações entre o homem e seussemelhantes. Numa tentativa de chegar a uma definição maispreciosa, o presente artigo discutirá as principais tendências dopensamento social no ocidente com relação a esse conceito.

Não há na língua grega um termo realmente equivalente àpalavra "sociedade". Como o homem era considerado nada maisque um organismo biológico, ele era, na expressão de Aristóteles,um animal "político", isto é, consideravam-no participante davida de uma polis; em essência, sua participação na polis cons-tituía seu caráter humano. Não há instituição moderna que cor-responda exatamente à polis. À feição do Estado moderno, elaera uma unidade territorial e, como tal, tinha jurisdição sobretodos os que residiam dentro de suas fronteiras; mas seu escopoera muito mais amplo, porquanto era uma combinação de Estado,Igreja e sociedade. Somente a família e o aspecto individualistada aquisição econômica ficavam, até certo ponto, fora de seudomínio; eram eles considerados pelos gregos como de impor-tância secundária, em grande parte porque o indivíduo nãoconstituía, no sentido moderno, um ser com seus próprios obje-tivos e valores independentes, à parte e até potencialmente emoposição ao consenso no qual participava da polis. Platão levouesses princípios a seu mais pleno desenvolvimento lógico.

(*) Talcott Parsons, in Encyclopaedia of Social Sciences, vol. XIV. TheMacmillan Co., Nova York, 1942, vol. XIV, pp. 225-232. Tradução de LeônidasGontijo de Carvalho e Sílvio Uliana.

19 Comunidade

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O pensamento grego posterior, simultaneamente com a divisãoreal da polis, desenvolveu uma concepção muito mais individua-lista sobre a vida social. O indivíduo, especialmente na teoriados estóicos, tinha uma posição independente que lhe era própria.Por outro lado, a lei objetiva, à qual era obrigado a obedecer,não mais era a lei peculiar a sua polis natal; ao contrário, ex-pressava a ordem natural do universo todo. Com essa concepçãocosmopolita, fundiram-se as doutrinas da lei romana em desen-volvimento, as quais, ao mesmo tempo que possuíam, em essên-cia, o mesmo objetivo e a mesma concepção superindividual dapolis delineados pelas teorias gregas, deixaram, desde o início,lugar para uma esfera de interesses particulares zelosamente de-fendidos por pater-familias individuais, em que as autoridadespúblicas não tocavam. Essa fusão tornou possível a posterior con-cepção dos estóicos romanos sobre o mundo civilizado, que con-sideravam formar um único império mundial, a polis romanaexpandida, que compreendia uma rígida estrutura legal da ordemdentro de cujas limitações os indivíduos eram livres para cuidarde seus interesses particulares sem estorvos ou obstáculos. A con-cessão, afinal, da cidadania romana a todos os homens livres doimpério completou o desenvolvimento institucional corresponden-te à teoria. Toda a concepção se apoiava num rígido dualismoda esfera de interesse público, que era concebida como unidade,da mesma forma que na polis originária, e a esfera particulardos indivíduos, na qual eles eram, em essência, consideradosindependentes e entravam apenas em relações contratuais uns comos outros. Grupos locais e funcionais ocupavam apenas um lugarsecundário na concepção romana e eram considerados estritamen-te subordinados ao Estado.

A religião trouxe a esse mundo individualista e absolutista umnovo elemento. Em seu aspecto social era, ao mesmo tempo,transcendente, universalista e individualista. Seu universalismoadaptava-se admiravelmente ao cosmopolitismo dos estóicos e dalei romana privada. Seu transcendentalismo, por outro lado, davaaos homens um conjunto de valores inteiramente fora desta vidae, do ponto de vista cristão, superior a tudo que nela há. Aomesmo tempo que o cristianismo predominante, em seu desenvol-

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vimento inicial, aceitava a ordem social como sendo necessáriae exortava os homens a darem "a César o que é de César", insis-tia ainda mais fortemente em que a vida religiosa interior doindivíduo fosse mantida à parte e acima de todas as coisas mun-danas. Assim, ele dava ao aspecto individualista do pensamentosocial do fim da antigüidade um fundamento transcendental maisprofundo do que lhe havia dado qualquer das teorias pagas.Especialmente em suas tendências mais ascéticas, ele podia, sobcertas condições, solapar radicalmente a autoridade secular.

Ao mesmo tempo, criava ainda mais uma dificuldade o fatode que o desenvolvimento predominante no cristianismo visavaorganizar uma igreja sacramentai. Não só os indivíduos eram,em sua religião, independentes da ordem político-legal do Estadoromano, como também essa independência religiosa era organi-zada na estrutura de um grupo altamente integrado e por estesupervisionado, no qual não se aceitava de forma alguma a dou-trina da lei romana de que as corporações obtinham seu direitode existência tão-somente da sanção do Estado. Dali por diante,quase não era mais possível, pelo menos numa base cristã cató-lica, pensar em termos da simples dicotomia indivíduo-Estadoda antigüidade paga. A aparição do problema entre Igreja e Es-tado, que haveria de dominar o pensamento social durante quaseum milênio, foi a primeira grande brecha na antiga identificaçãodas relações sociais totais do homem como a unidade política àqual devia obediência.

Em dois aspectos fundamentais, o pensamento social medievaldiferia do da antigüidade, mesmo em sua última fase cristã, naqual permaneceu, em seu sentido peculiar, estritamente dualista.A sociedade fazia parte do reino da carne, tendo como únicasexceções a igreja cristã e o ponto até o qual o indivíduo, emcaráter privado, se utilizava de suas relações sociais como opor-tunidade para a prática da caridade cristã. Dava-se maior ênfase,porém, aos aspectos não-cristãos e pecaminosos, especialmente àcoerção imposta pelas instituições da escravatura, da propriedadee do Estado. O pensamento medieval foi o primeiro a idealizara concepção da sociedade humana como sendo, em essência, umaexpressão dos princípios cristãos. Ao mesmo tempo, isso somente

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foi possível — dado o primeiro dualismo cristão dos mundos doespírito e da carne — com base em uma hierarquia de grupos,ordens e Estados, que formavam uma gradativa transição do mun-do puramente carnal para o puramente espiritual.

Com relação ao primeiro aspecto, era premissa comum paratodos os pensadores medievais ser a lei eterna, tanto reveladacomo natural, a medida de todas as coisas, e emanarem de Deustoda a autoridade e todos os princípios de justiça. A sociedadehumana era uma unidade organizada simples, regida por essesprincípios, a respublica christiana. As controvérsias giravam emtorno da questão: havia um, ou eram dois os canais pelos quaisse transmitia essa autoridade às mãos humanas? Segundo os pa-palistas extremados, o Papa era o único representante imediatode Deus na terra, ao passo que as autoridades seculares eram, narealidade, meros ramos da Igreja. A mais extremada expressãodesse ponto de vista foi formulada por alguns dos canonistasque, tendo transferido para a Igreja a concepção unitária de au-toridade derivada da lei romana, consideravam qualquer outraautoridade apenas como tendo sido delegada por aquela únicae suprema autoridade. A teoria dos imperialistas, por outro lado,era que o imperador, e através dele todas as autoridades secula-res, recebia a sanção diretamente de Deus, sem a Igreja comointermediária. Em nenhum dos casos considerava-se o Papa ouo imperador como soberanos no sentido moderno; ambos ficavamsujeitos à lei eterna, por mais independentes de superiores ter-renos que fossem eles. A idéia de qualquer autoridade humanacom poderes para legislar, isto é, para traçar os elementos fun-damentais da organização social, não era medieval.

No outro aspecto principal da sociedade e do pensamento me-dievais, o aspecto de sua estrutura de grupos hierárquicos, apa-rentemente a mais importante influência parece ter vindo dasconcepções germânicas sobre relações grupais. O rígido dualismoindivíduo e grupo unitário simples era estranho à lei feudal, aqual operava mais em termos de uma hierarquia de unidadesindependentes, cada uma com personalidade real, que, estenden-do-se desde o indivíduo, numa extremidade, e passando por todauma série de grupos coletivos — comunidade de aldeia, associa-

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cão, comuna, propriedade, ordem monástica, capítulo eclesiásticoe reino — chegava até aos grupos supremos da Igreja e do im-pério, situados no ponto mais elevado. Do mesmo modo que pelalei de propriedade medieval, o dominium de uma pessoa nãoexcluía o de outras sobre a mesma coisa, também a verdadeirapersonalidade do ser humano como indivíduo, axioma indispen-sável da religião cristã, não excluía a atribuição simultânea depersonalidade a uma pluralidade de relações grupais de que eleparticipava.

Além disso, o rígido dualismo da antigüidade foi também re-pudiado não só pelo fato de ter sido dada sanção religiosa positivaao indivíduo e à Igreja cristã, mas também por ter sido ela esten-dida, em maior ou menor grau, a todos os principais agrupamentosda sociedade medieval. É claro que o princípio dessa extensãonão era o do mérito igual, porém de uma ordem hierárquica queia desde a simples comunidade de aldeia dos camponeses, no ex-tremo inferior, até as rigorosas comunidades monásticas no extre-mo superior, em uma escala religiosa. Mais ainda, estendeu-se,de modo a confirmar o tradicionalismo da vida medieval. Masmesmo essa sanção relativa só se tornou possível em virtude deuma grande mudança nas relações sociais reais. A "grande socie-dade" dos tempos do império romano, que em grande parte sehavia desintegrado, foi substituída por uma sociedade que se ba-seava principalmente nas relações de fidelidade pessoal, se bemque socialmente sancionadas, que ofereciam uma oportunidademuito mais ampla para o exercício das virtudes cristãs do queaté então houvera. E, qualquer coisa que não se enquadrasseexatamente nesse esquema religioso, como a maior parte da guer-ra feudal, era muitas vezes atribuída ao sempre presente elementodo pecado carnal.

A síntese medieval, que alcançou seu mais alto grau de racio-nalização no pensamento de Tomás de Aquino, continha, entre-tanto, significativos elementos de instabilidade. O mais impor-tante deles baseava-se na extensão até a qual, desde os primeirostempos, dependiam os pensadores medievais dos instrumentosconceptuais herdados da antigüidade, sobretudo da lei romanae de Aristóteles. Isso se evidenciou primeiro na concepção da

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Igreja elaborada pelos canonistas. Não só concebiam a Igreja comoum poder pelo menos independente, senão com soberania sobreo Estado, como também passou ela a ser considerada como pos-suidora de uma estrutura radicalmente diferente da estruturada hierarquia dos grupos seculares medievais. Havia apenas umafonte de autorização que fluía do papado, atravessava as váriascamadas da organização e chegava, por fim, ao sacerdote da pa-róquia. Nenhum outro elemento tinha independência como diretopróprio. E mesmo quando se desafiou o absolutismo do papado,isso foi geralmente feito à moda romana, em nome do corpounido da Igreja como um todo, como aconteceu no movimentode concílios, e não em nome dos vários órgãos. Houve, assim,tanto em teoria como de fato, verdadeira desarmonia estruturalentre a hierarquia burocrática da Igreja e a hierarquia feudalda esfera secular. Tornava-se isso tanto mais evidente quanto maisfortes eram as pretensões papais.

Ao mesmo tempo o crescimento do nacionalismo às expensasdo feudalismo eliminou gradativamente a relatividade da verda-deira hierarquia medieval e colocou as primeiras teorias modernascada vez mais em harmonia com as da antigüidade. Esse movi-mento foi acelerado pela extensão com que os monarcas se utili-zavam dos estudos reavivados da lei romana, para justificar seuscontínuos ataques aos poderes das grandes propriedades e corpo-rações feudais. Resultou disso uma crescente tendência à con-cepção de um Estado absoluto, de um lado, e uma sociedade deindivíduos independentes, de outro. A religião cristã, porém,ficara por demais enraizada no pensamento europeu para queo desenvolvimento dessa idéia jamais voltasse completamente àidéia grega de absorção do indivíduo pelo Estado. Pelo contrário,colocou-se em lugar cada vez mais importante uma teoria dosdireitos naturais dos indivíduos. A principal tendência era, por-tanto, contra o tipo de absolutismo que não deixava lugar aosdireitos de independência dos indivíduos e, de modo geral, cadavez mais contra qualquer forma de absolutismo.

A irredutível independência da Igreja católica permaneceucomo o principal obstáculo que se antepunha à conclusão desseprocesso de eliminação de grupos quase-independentes situados

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entre o indivíduo e o Estado. A Reforma trouxe uma modificaçãona situação, nesse aspecto, tanto em fatos como no pensamento,ao repudiar a Igreja sacramentai. O protestantismo não rejeitoua concepção de uma Igreja organizada como tal, mas alterou ra-dicalmente a posição sociológica dessa Igreja. Nem repeliu oideal essencialmente medieval de uma sociedade cristã; em algunsaspectos levou-o ainda mais longe. Os vários ramos do movimentoprotestante chegaram a resultados, em sua essência, diferentesnesses aspectos. Uma vez eliminada a igreja sacramentai inde-pendente, o aspecto da religião organizada começou a harmoni-zar-se com um outro dos dois elementos em que o pensamentocontemporâneo dividia a sociedade secular, o Estado ou a pluia-lidade de indivíduos independentes. O ramo luterano, que davaênfase ao estado puramente subjetivo e emocional da penitência,reservava pequeno lugar para uma influência cristã direta sobrea vida cotidiana, mesmo em questões muito próximas da religião,e tendia a colocar toda a organização nas mãos do príncipesecular que governava por direito divino. Essa orientação foiacentuada pela tendência dos luteranos a renovar o dualismoradical dos primeiros tempos da religião cristã sem a complicaçãoda igreja sacramentai. Toda organização, mesmo sancionada pelopoder divino, pertence ao mundo do pecado. A atitude do indi-víduo para com ela é de passiva aceitação da autoridade e tra-dição, uma vez que estas são ordenadas por Deus, mas o indivíduoreserva sua vida religiosa interior para um mundo à parte. So-mente num sentido modificado poder-se-ia dizer que o luteranis-mo sustentava que a sociedade poderia ou deveria ser radical-mente cristianizada.

No extremo oposto situam-se as seitas protestantes radicais,batistas, quacres e outras, que se originam de uma longa históriade movimentos de seitas anteriores à Reforma. Essas afirmamque não há nenhuma estrutura de igreja institucional objetivae que a organização religiosa, tal como existe, caracteriza-se soba forma de associações voluntárias de verdadeiros crentes semautoridade coercitiva de qualquer espécie. Na interpretação literalda ética evangélica essa hostilidade para com a autoridade eclesiás-tica tendia, em alguns casos, a estender-se a todo tipo de autori-

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dade, fosse qual fosse. As seitas radicais levavam, assim, ao extremoas implicações da feição individualista do cristianismo e figuramentre os mais importantes precursores do anarquismo moderno.

O calvinismo coloca-se, em muitos aspectos, a meio caminhoentre essas duas alas. Compartilhava com as seitas a tentativa deremodelar o mundo do pecado e transformá-lo em reino de Deusna terra, mas não aprovava a aceitação passiva das coisas comoelas eram, como faziam os luteranos. Nem podia aceitar quese confiasse, como eles, a autoridade, religiosa ou moral, a umgoverno secular. Quando o calvinismo dominava, tendia, portanto,para um sistema teocrático de disciplina, como ao tempo de Cal-vino em Genebra, onde o governo secular era considerado comomero instrumento nas mãos da Igreja em sua tentativa para tor-nar realidade o reino de Deus. Mas quando as igrejas calvinistasnão podiam controlar as autoridades seculares, procuravam, antesde tudo, evitar serem elas controladas pelas autoridades, e eramempurradas cada vez mais em direção das seitas radicais e paraa separação entre a Igreja e o Estado. Os ramos ascéticos doprotestantismo, especialmente o calvinismo, lançaram, portanto,todo o peso de sua sanção ética sobre as atividades do indivíduo,na esfera de suas relações particulares. De modo particular, oconceito de "vocação", como campo para provar o estado degraça da pessoa, tem servido para promover o individualismo eacentuar o valor ético das atividades econômicas.

Pode-se, portanto, dizer, em substância, que o calvinismo e asseitas protestantes completaram um processo que vem se desen-rolando desde a antigüidade clássica, a saber, a transferência docentro dos valores religiosos neste mundo, e com estes o volumequase total da cultura, do Estado para o indivíduo. Podemosdividir esse processo em três fases principais. O cosmopolitismogreco-romano dos últimos tempos criou uma esfera para o indi-víduo fora do Estado sem lhe dar um conteúdo religioso. Ocristianismo em seus primeiros tempos removeu do Estado osvalores religiosos, em grande parte, porém, para incorporá-los naigreja sacramentai, na qual certamente o indivíduo mantinha umaposição altamente importante. Finalmente, com o repúdio daIgreja pelos protestantes, esses valores passaram-se para o indiví-

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duo. Isso acentuou a tendência de considerar o Estado e qualquergrupo social como essencialmente instrumental na concretizaçãodos valores do indivíduo, culminando no individualismo radicaldos séculos dezoito e dezenove.

Depois do término das lutas religiosas que se seguiram à Re-forma veio uma acentuada secularidade do pensamento social.O homem, em relação a seus semelhantes, não mais era conside-rado em termos de sua relação com uma lei eterna, transcenden-talmente decretada por um Deus pessoal. Entretanto, a primeirafase do pensamento secularizado não se desviou radicalmente dessaforma de pensamento fundamental. Em lugar da lei de Deus,colocou-se uma lei na natureza, concepção que fora tirada deuma antigüidade não muito remota e foi incorporada ao pensa-mento cristão, onde exerceu a função altamente importante decomplementar a lei revelada. Ela se tornava, então, novamenteum padrão independente de instituições humanas. Conservava ocaráter de imutabilidade e eternidade que mantivera desde ocomeço; havia apenas uma lei da natureza para todos os tempose lugares.

Ao surgir independente nos séculos dezessete e dezoito, porém,a concepção de uma ordem da natureza tinha uma feição forte-mente individualista, por causa do caráter peculiar das últimasfases do pensamento cristão do qual emergia. Ela se concentravaem uma doutrina dos direitos naturais das liberdades do homem,em que as autoridades e as instituições humanas não deviamintervir. O padrão pelo qual se mediam essas instituições era, emgrande parte, negativo; elas eram criticadas na medida em queeram tidas como violadoras desses direitos naturais.

Com o desvio da ênfase na interpretação da idéia da ordemnatural do normativo para o explicativo, que já era forte nasciências físicas do século dezessete e já se fazia sentir no reinosocial, no trabalho de pensadores como Hobbes, por exemplo,foi fácil a esse individualismo dos direitos naturais passar parao utilitarismo e, assim, introduzir um relativismo no reino dasnecessidades individuais que, em essência, eram desconhecidas nopensamento social anterior.

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Desse ponto de vista, a sociedade tornou-se o mecanismo como qual as necessidades do indivíduo, concebidas como variáveisao acaso, sem nenhum padrão comum, podiam ser satisfeitas atéo mais alto grau possível sob as condições de vida humana exis-tentes. As relações sociais ficavam, assim, reduzidas ao nível demeios para satisfações individuais. Abandonou-se qualquer idéiade controle essencialmente normativo; mas, por outro lado, umelemento de determinismo de espécie diferente foi introduzidopela análise do tipo e extensões das limitações impostas à açãopelas condições, pelo ambiente exterior e a natureza herdadado homem sob as quais ocorreu. Levado a essa conclusão lógicafinal, esse determinismo, em termos de condições, resultou dosúltimos anos do século dezenove, eliminando completamente orelativismo dos utilitaristas anteriores. Essa idéia da sociedadecomo sendo simplesmente uma fase de natureza determinista, atétempos muito recentes, pelo menos, cresceu progressivamente emimportância entre os teóricos.

Sobre essa base secularizada e individualista houve duas gran-des fases do pensamento social. Uma, bastante anterior no tempo,dizia respeito primordialmente à relação entre indivíduo e Estadoorganizado, o problema das obrigações políticas. Estas tendiama terminar em dois pólos. Uma tendência, primeiramente emtermos de direitos naturais, depois de utilidade individual, con-siderava o Estado como mero instrumento contratado para pro-teger ou promover os direitos ou interesses do indivíduo. Aoutra, em termos da teoria moderna de soberania em particular,reafirmava a supremacia qualitativa greco-romana do Estadosobre o indivíduo e, especialmente, em sua forma de utilitarismoposterior, concebia o Estado desobrigado de obediência a qual-quer lei eterna. Enquanto que, em Hobbes, essa teoria era, emsua relatividade, estreitamente limitada pela dificuldade de man-ter as condições de simples ordem e segurança, em Rousseau sa-lientava-se muito mais o aspecto positivo. Cada Estado tem suaprópria vontade geral e, qualquer que seja ela, o Estado estácerto.

Por outro lado, o pensamento se voltava cada vez mais paraas relações de indivíduo para indivíduo dentro da sociedade civil.

O estudo da comunidade e da sociedade — 279

Os mesmos teóricos como Hobbes e Locke, que se preocupavamprincipalmente com a relação entre o indivíduo e o Estado, lan-çaram ao mesmo tempo os fundamentos da teoria individualistadas relações sociais. Como os movimentos anteriores tendiam adespojar todos os grupos organizados e, finalmente, até mesmoo Estado, de todos os valores, menos o instrumental, a concepçãopredominante de sociedade passou a ser a da existência de umapluralidade de indivíduos que entravam em relações de contratopara a promoção de seus próprios interesses pessoais.

A relação mais importante é a do intercâmbio, que resulta dadivisão de trabalho e da qual se participa para vantagem mútua.Os individualistas anteriores, adeptos do laissez faire, concebiama sociedade como constituída somente dessas unidades individuaisindependentes. Como se pressupunham condições de paz e subs-tancial igualdade no intercâmbio, o centro dessa sociedade passoua repousar nas relações econômicas. O ponto culminante dainfluência dessa teoria situava-se na economia clássica da primeirametade do século dezenove. Um elemento adicional era a asso-ciação voluntária, feita por contrato. Os teóricos mais radicais,defensores do contrato, concebiam o Estado nesses termos, e acooperação voluntária no campo de meios econômicos era, alémdo intercâmbio, o outro principal modo de concretizar os obje-tivos do indivíduo através de suas relações com terceiros. De modogeral, porém, as relações de intercâmbio predominaram nessetipo de pensamento.

O mais moderno desenvolvimento do pensamento social e, comele, do conceito de sociedade, ocorreu, em grande parte, em rea-ção a essa tradição utilitária e individualista. Uma alternativacapital apóia-se na importância da influência determinante dascondições que limitam a ação do indivíduo. Nesse sentido, soba influência do movimento darwinista e do antiintelectualismopsicológico, a sociedade passou a ser considerada simplesmentea fase humana do processo evolutivo orgânico. Em particular, oconflito humano, especialmente sob o aspecto da competição eco-nômica, tem sido interpretado como um caso especial da lutabiológica pela existência. Esse movimento explica em grande

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parte o pensamento social de fins do século dezenove e princí-pios do século vinte.

Essa tendência positivista do pensamento, em certos aspectostambém individualista, foi apenas um dos dois importantes movi-mentos modernos de reação contra o utilitarismo. O homem nun-ca deixou de pensar que, em certo sentido, os agrupamentos sociaisconstituem mais que uma simples soma de indivíduos, devendoser tais agrupamentos considerados como possuidores de realidadeindependente. Tem havido, entretanto, muitas interpretações di-ferentes quanto à natureza dessa realidade e de sua relação como indivíduo.

Antigamente a atenção concentrava-se no Estado, e a primeiraimportante versão do realismo social de nossos dias encontra-sena moderna doutrina da sabedoria. O aspecto que aqui chama aatenção é o fenômeno da autoridade coercitiva, que nenhum in-divíduo pode legitimamente exercer sobre outro em relaçõescontratuais comuns. Mesmo os mais extremados partidários mo-dernos desse modo de pensar não excluem necessariamente a idéiacristã essencial de uma inviolável esfera de personalidade indi-vidual. Bodin, geralmente tido como fundador dessa doutrina,ainda considerava a soberania limitada por uma lei eterna denatureza no sentido normativo. Quando se abandonou essa limi-tação, introduziu-se um elemento fundamental de relativismo queexerceu papel muito importante no pensamento social subse-qüente. Cada unidade soberana representava uma síntese espe-cífica, que não tinha de coincidir necessariamente com a de qual-quer outra. É esse o tipo essencial de relativismo que, emboranão esteja necessariamente sujeito ao Estado, tem sido defendidoaté o presente pelos antiindividualistas.

Pode-se considerar que o grande passo seguinte foi a doutrinade Rousseau, relativa à vontade geral. Esta se colocava por trásda questão do aspecto da autoridade soberana sobre o indivíduo,para encontrar sua origem em uma vontade comum, em valorescompartilhados pelos membros da comunidade. Mas, em harmo-nia com o tradicional dualismo do Estado e a pluralidade dosindivíduos, Rousseau via essa vontade geral inteiramente mani-festa no Estado. Não havia lugar para diferenciação social inter-

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na ao nível do superindividual. Esse ponto de vista, com algumasalterações, foi transmitido a Hegel, passando-se para a teoria filo-sófica mais recente sobre o Estado.

A teoria social posterior, conquanto conservasse o elementoda vontade comum ou dos valores comuns como base essencialda realidade social, demonstrou tendência cada vez maior a di-vorciá-la do Estado sozinho e encontrou para ela uma variedadede manifestações. Assim, em certo sentido, houve um movimentode retrocesso à concepção mais instrumental sobre o papel doEstado, mas não em base individualista, desta vez. O Estado tor-na-se, então, não tanto um instrumento contratual para a pro-moção de interesses individuais, senão um órgão pertencente atoda a comunidade para a promoção de alguns de seus finscomuns.

Ao mesmo tempo, a tendência foi a de verificar que a baseda realidade social situava-se em algo mais profundo que o pró-prio Estado, em algo semelhante a um consenso, explícito ouimplícito, dos membros da comunidade. Com a concepção deRousseau sobre a vontade como ponto de partida, a coerção deuma autoridade soberana veio a ser encarada como apenas ummeio de impor ao indivíduo a supremacia dos ideais e atitudescomuns. De fato, a autoridade moral é que é tida como funda-mental, uma vez que, sem o seu apoio generalizado entre asmaiorias, a coerção do Estado não pode, afinal de contas, ser efi-ciente e não se pode fazer coincidirem os interesses. A impor-tância secundária da coerção estatal foi melhor esclarecida peloreconhecimento da operatividade relativamente eficiente das nor-mas sociais em comunidades primitivas, onde não existe qualquerespécie de máquina estatal organizada.

O fundo histórico imediato do desenvolvimento da concepçãomais moderna sobre a sociedade e os principais elementos dopensamento nos fins do século dezenove e começos do séculovinte situam-se no positivismo e no idealismo. O primeiro apre-senta muito maior importância para os povos de língua inglesae aí se pode dizer que foi a libertação das concepções positivistaso principal processo de desenvolvimento do pensamento. O pri-meiro passo nesse processo é a distinção entre uma teoria cien-

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tífica e uma arte prática que, implicitamente, está em pendênciaentre o utilitarismo e a posição positivista radical, que tentauma interpretação puramente científica da vida humana e dasações humanas. Uma teoria científica envolve apenas a coorde-nação dos elementos que fazem parte da experiência do cientista,sendo todos eles "exteriores" ao próprio cientista. Uma arte prá-tica, por outro lado, envolve a adaptação de meios, com baseno conhecimento científico, é claro, a um fim que não é, parao ator, um elemento do mundo exterior no mesmo sentido. En-volve de certo modo o reconhecimento da função das idéias nocampo da ação. O segundo passo está na compreensão de que asidéias envolvidas pelo menos nos fins últimos da ação não podemconstituir teorias científicas no sentido positivista, simplesmenteporque, sendo como são verdadeiros fins, não podem ser merosreflexos da realidade empírica exterior. Em certo sentido, por con-seguinte, elas não são científicas, chegando mesmo a ser metafísicas.

Tem-se observado que esses fins últimos da ação não podemser julgados como existentes ao acaso, simplesmente; antes, devemser considerados, tanto no indivíduo como em qualquer gruposignificativamente coeso, como integrados num sistema harmonio-so de fins, que governam de vários modos todas as ações dosmembros do grupo. Sem um sistema comum aos membros deuma comunidade não se pode explicar a própria ordem social,conforme o demonstrou claramente a análise de Hobbes sobre oestado natural. Reconhecer esse sistema comum é retornar à teoriade vontade geral de Rousseau; mas, no pensamento mais estrita-mente sociológico oriundo do positivismo, ele aparece mais im-plicitamente destacado no pensamento de Pareto e muito mais ex-plicitamente no de Durkheim.

Essas considerações aplicam-se aos fins últimos da ação que nãopodem ser considerados como meios que promovam objetivosespecíficos e tangíveis. Mas subsidiários a eles encontra-se umimportante elemento de ação visando a fins que não são funda-mentais. Pode-se dizer que esse elemento intermediário se situaem três categorias: tecnológica, econômica e política. É claro quetoda ação ocorre também sob certas condições fundamentais doambiente exterior e da natureza humana, as quais devem sempre

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ser consideradas como presentes; não são, entretanto, mais preci-samente, elementos da ação humana ou da própria sociedade. Aomesmo tempo, nunca se pode julgar que os elementos intermediá-rios da ação ocorram na ausência de um sistema de fins últimos,erro que está implícito em grande parte do pensamento indivi-dualista.

O sistema de fins últimos da comunidade determina o queé especificamente procurado, como a riqueza e o poder, mas tam-bém afeta a ação de maneiras fundamentais. Primeiro, os finsúltimos podem constituir os fins imediatos de ações específicas,como no caso de uma guerra religiosa. Segundo, podem formara base de uma estrutura de normas reguladoras que guiam econtrolam a ação na busca de fins imediatos, apoiando-se emprocessos e relações ordenadas e conservando o vasto complexodessas ações utilitárias dentro de certa harmonia com o sistemade valores fundamentais da comunidade. Esse sistema de normasreguladoras, que existe em toda comunidade, pode ser chamadosuas instituições. Quanto ao modo pelo qual se corporificam, sejaatravés dos costumes ou da lei do Estado, do tipo de aplicação ede sua estrutura, elas podem variar grandemente de uma comu-nidade para outra. Constituem a espinha dorsal da estruturasocial. Pode-se talvez considerar Durkheim como o mais eminenteteorista das instituições em termos de sua relação com o indiví-duo, e Max Weber em termos da análise comparativa de suaestrutura. Terceiro, onde a ação se torna uma expressão diretadas atitudes fundamentais fora da esfera das técnicas práticas, omeio não está mais intrinsecamente relacionado a um fim tangí-vel mas torna-se um símbolo. Exemplo específico desse fato é ocaso do ritual religioso, que é outro ingrediente fundamental davida de toda comunidade.

Nesse esquema de análise, o Estado tem tríplice função. Pri-meiro, é o principal órgão de ação conjunta da comunidade. Se-gundo, é o principal guardião de suas instituições, especialmentequando falha seu funcionamento automático e informal atravésdos costumes e surge a necessidade da execução deliberada e, àsvezes, coerciva da lei. Isso ocorre particularmente no caso deuma mudança no tipo de relação institucional, do comunal para

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o racional-legal ou, conforme a expressão de Tõnnies, da Ge-meinschaft para Gesellschaft. Terceiro, o Estado constitui tão-somente um dos principais focos do sentimento comum, exercen-do, portanto, importante função simbólica.

Conquanto seja verdade que em maior ou menor grau as atitu-des comuns de valor de uma comunidade devam ser consideradascomo integradas num único sistema, há lugar para ampla varia-ção tanto no grau de integração como na espécie de sistema. Nasegunda relação, não há razão para excluir um tipo de organiza-ção social que envolva muitas espécies diferentes de estruturacomplexa de grupos reais e classes sociais. Por conseguinte, ateoria social moderna rejeita, como sendo demasiado simples, asrígidas alternativas da teoria de que há, de um lado, o Estado e,de outro, a pluralidade não-integrada de indivíduos separados.É verdade, porém, que algumas estruturas sociais, notadamentea república romana em suas primeiras fases, podem aproximar-se desse tipo simples.

À luz da análise representada aqui pode-se definir a sociedadecomo o complexo total das relações humanas enquanto se origi-nam da ação em termos de relação meios-fins, intrínseca ou sim-bólica. Segundo essa definição, a sociedade é apenas um elemen-to no todo concreto da vida social humana, que também é afeta-da pelos fatores hereditariedade e ambiente, bem como peloselementos da cultura — conhecimento e técnicas científicos, siste-mas de idéias metafísicas, religiosas e éticas e formas de expressãoartística. A sociedade não pode existir à parte de todas essas coi-sas; elas exercem um papel em todas as suas manifestações con-cretas, mas não constituem a sociedade, a qual abrange tão-so-mente o complexo das relações sociais como tais.

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Do Autor, publicados por esta Editora:

Brancos e negros em São Paulo (com Roger Bastide),3.a ed., 1971.

Fundamentos empíricos da explicação sociológica,2.a ed., 1967 (l.a reimpressão, 1972).

A sociologia numa era de revolução social, 1963.Elementos de sociologia teórica, 1970.

Comunidade e Sociedade no Brasil, 1972.A Comunidade (no prelo).

A Sociedade (no prelo).

capa de

Caio Marcondes Ferreira Jr.

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1973

Impresso no Brasil