estudo crítico das fontes sobre o ayllu no século xvi

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Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998 ISBN 85-903587-3-9 1 Estudo crítico das fontes sobre o ayllu no século XVI Ana Raquel M. da C. M. Portugal 1 Os materiais utilizados pelo historiador para exercer o seu trabalho são genericamente conhecidos por fontes, sendo que existem outras expressões para traduzir a mesma realidade, como é o caso de vestígios, testemunhos, documentos e monumentos. Todos se acercam à idéia de documento histórico de Pierre Salmon, que o considera o intermediário entre o passado e o historiador, um espelho da verdade histórica e até, por vezes, um espelho deformador 2 . Ao trabalharmos crônicas do século XVI, sabemos que lidamos com documentos históricos conscientes, que são “testemunhos redigidos por homens que declaram ter assistido ou participado nos factos ralatados ou que se julgam capazes de os narrar com exactidão” 3 . Cabe no entanto, realizar uma crítica histórica das fontes desde o momento heurístico, visto que a “crítica é a parte da ciência histórica que tem por fim determinar o valor dos documentos e dos testemunhos” 4 , entendidos estes últimos, como informações, dados ou elementos fornecidos pelos documentos. Costuma-se designar a crítica em geral por hermenêutica e segundo Dilthey, “como a vida do espírito só na linguagem encontra a expressão capaz de possibilitar a sua compreensão total, completa, e por isso objetiva, a exegese consuma-se na interpretação dos vestígios da existência humana contidos em escritos. Esta arte é a base da filologia. E a ciência desta arte é a hermenêutica” 5 . Nosso objetivo neste artigo é apontar algumas características do ayllu, bem como, as principais fontes onde poderemos encontrar dados sobre a representação auferida ao ayllu por cronistas do século XVI. 1 Doutoranda em História – UFF/RJ. 2 SALMON , Pierre. História e crítica. Coimbra: Livraria Almedina, 1979, p.61. 3 Ibid., p.61. 4 REGO, A. da Silva. Lições de metodologia e crítica históricas. Porto: Portucalense Editora, 1969, p.151. 5 Apud Patrick Gardiner. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969, p.270.

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  • Anais Eletrnicos do III Encontro da ANPHLAC So Paulo 1998 ISBN 85-903587-3-9

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    Estudo crtico das fontes sobre o ayllu no sculo XVI

    Ana Raquel M. da C. M. Portugal1

    Os materiais utilizados pelo historiador para exercer o seu trabalho so genericamente conhecidos por fontes, sendo que existem outras expresses para traduzir a mesma realidade, como o caso de vestgios, testemunhos, documentos e monumentos. Todos se acercam idia de documento histrico de Pierre Salmon, que o considera o intermedirio entre o passado e o historiador, um espelho da verdade histrica e at, por vezes, um espelho deformador2.

    Ao trabalharmos crnicas do sculo XVI, sabemos que lidamos com documentos histricos conscientes, que so testemunhos redigidos por homens que declaram ter assistido ou participado nos factos ralatados ou que se julgam capazes de os narrar com exactido3. Cabe no entanto, realizar uma crtica histrica das fontes desde o momento heurstico, visto que a crtica a parte da cincia histrica que tem por fim determinar o valor dos documentos e dos testemunhos4, entendidos estes ltimos, como informaes, dados ou elementos fornecidos pelos documentos. Costuma-se designar a crtica em geral por hermenutica e segundo Dilthey, como a vida do esprito s na linguagem encontra a expresso capaz de possibilitar a sua compreenso total, completa, e por isso objetiva, a exegese consuma-se na interpretao dos vestgios da existncia humana contidos em escritos. Esta arte a base da filologia. E a cincia desta arte a hermenutica5.

    Nosso objetivo neste artigo apontar algumas caractersticas do ayllu, bem como, as principais fontes onde poderemos encontrar dados sobre a representao auferida ao ayllu por cronistas do sculo XVI.

    1 Doutoranda em Histria UFF/RJ.

    2 SALMON , Pierre. Histria e crtica. Coimbra: Livraria Almedina, 1979, p.61.

    3 Ibid., p.61.

    4 REGO, A. da Silva. Lies de metodologia e crtica histricas. Porto: Portucalense Editora, 1969, p.151.

    5 Apud Patrick Gardiner. Teorias da Histria. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1969, p.270.

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    O ayllu e seus significados

    No perodo pr-colonial, o ayllu constitua um grupo ligado por sistema de parentesco que, geralmente, possua um espao territorial delimitado. J no perodo colonial ocorre uma transformao conceitual devido importncia dada ao espao fsico, ao territrio, e o ayllu transforma-se em comunidade, onde os laos de parentesco deixam de ser o trao caracterstico dessa estrutura.

    Os cronistas espanhis, ao tratarem o ayllu, o identificaram com genealogia, linhagem e territrio. Pressupomos que foi das propostas de reagrupamento indgena de Matienzo que surgiu a identificao de ayllu, reduo e comunidade, pois no era o sistema de parentesco que interessava, e sim, o aldeamento dos ndios. Nas crnicas indgenas, usual encontrarmos categorias europias mescladas a padres culturais andinos, porm tais cronistas interpretam consensualmente o ayllu, como sendo uma estrutura baseada em laos de parentesco de grande importncia para a organizao do Estado Inca.

    Os estudos contemporneos sobre a idia de ser a comunidade indgena atual um fruto da colonizao serviram para provar que a transformao do conceito de ayllu ocorreu realmente no perodo colonial, tendo como principal fonte a concepo de reduo de Matienzo, mais tarde conferida ao ayllu, que passou a ser visto como um espao fsico representado pela aldeia.

    A noo de territorialidade que cronistas europeus conferiram ao ayllu no confere, na sua totalidade, com a realidade andina do perodo da conquista, pois havia diversos ayllus compostos por grupos migrantes e de artesos e pescadores, que no necessariamente detinham um espao territorial6. Por outro lado, o territrio ocupado por um ou vrios ayllus se chamava suyu, que o equivalente em quechua do vocbulo espanhol parcialidad. A diferena que o ayllu...

    ... era una unidad de parentesco unida por un origen comm y mtico. En cambio el suyu o parcialidad indicaba las divisiones socio-polticas de los vrios ayllus agrupados en bandos, ello facilitaba la organizacin de los grupos humanos mayores. El suyu o parcialidad tena la funcin de ser una parte dentro de un todo... (Rostworowski, 1981, p.43).

    6 CANSECO, Mara de Rostworowski de Diez. La voz parcialidad en su contexto en los siglos XVI y XVII, p.

    42-43 e PEASE, Franklin. Ayllu y parcialidad, reflexiones sobre el caso Collaguas, p.21. In: Amalia Castelli et al. Etnohistoria y antropologa andina. Lima: Centro de Projeccin Cristiana, 1981.

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    Segundo John Murra, uma das instituies andinas mais debatidas e pior documentadas o ayllu7. Existem estudos8 que sustentam a idia da existncia do ayllu ou hatha (em quechua ou aymara) desde o perodo pr-incaico. Nesse perodo, o ayllu seria uma famlia extensa de linha matrilinear, o que, conforme Carlos N. Anavitarte, explica a presena de mulheres curacas9. Com o desenvolvimento da agricultura, os ayllus transformaram-se em patriarcados. Esses ayllus tinham por base estrutural, alm dos laos de parentesco, o vnculo religioso. Cada grupo tinha um antepassado comum e tambm seus prprios deuses e huacas10 . O territrio pertencia a todos os membros do ayllu e a terra era cultivada comunitariamente atravs da ajuda recproca. A reciprocidade era a principal caracterstica dos grupos tnicos organizados em ayllus. Essa reciprocidade11 inicial se dava entre os membros do ayllu e o curaca, que era o responsvel pela diviso da terra a ser cultivada e pelo armazenamento da produo. Suas terras tambm eram produzidas, bem como as que se destinavam manuteno das huacas e o restante dos produtos eram redistribudos entre o grupo. Conforme Mara Rostworowski, baseando-se nesse tipo de reciprocidade, os incas formaram o seu imprio, o Tahuantinsuyu12, pois medida que ampliavam suas conquistas, o nmero de curacas unidos ao Inca por reciprocidade e por laos de parentesco foi

    7 MURRA, John. Temas de estructura social y economica en la etnohistoria y el antiguo folklore andino. In:

    Folklore americano. Ao X, n.10, Lima, 1962, p.233. 8 Ver por exemplo: UHLE, Max. El aillu peruano. Lima: Boletn de la Sociedad Geoggafica, 1911;

    VALCARCEL, Luis. Del ayllu al imperio. Lima: Editorial Garcilaso, 1925; CUNOW, Heinrich. El sistema de parentesco peruano y las comunidades gentilicias de los incas. Paris: ENCINAS, J.A.; JIMENEZ, J. A., 1929 [1890], V.1; Las comunidades de aldea y de marca del Per antiguo. Paris: ENCINAS, J.A.; JIMENEZ, J. A., 1929 [1891], V.2; La organizacin social del imperio de los incas. Lima: ENCINAS, J.A., 1933 [1895], V.3; H. STEWARD, Julian. Handbook of South American Indians. New York: Cooper Square Publishers, INC, 1963; ANAVITARTE, Carlos N. El ayllu y la marca en el antiguo Peru. Cuzco: Garcilaso, 1965; VALERA, Jos Mejia, Organizacin de la sociedad en el Peru preincaico. Cuadernos Americanos. Ao XXXV, vol. CCIV, n.1, ener-febr, Mxico, 1976; LUMBRERAS, Luis G. Los origenes de la civilizacion en el Peru. 5. ed. Lima: BATRES, Milla. 1981; EICH, Dieter. Ayll und Staat der Inka; zur Diskussion der asiatischen Produktionsweise. Frankfurt: Vervuet, 1983. 9 senor principal de un pueblo CANSECO, Mara Rostworowski de Diez. Historia del Tahuantinsuyu. 2.ed.

    Lima: IEP,1988a, p. 295; Mara Rostworowski afirma ainda que so numerosas las referencias en documentos de archivos sobre la presencia de mujeres curacas que ejercan directamente el poder durante los siglos XV y XVI... La mujer en la poca prehispnica. Lima: IEP: 1988b, p. 6-7; ANAVITARTE, ibid., 1965, p.16, nota 8. 10

    o guaca, templo del dolo o el mismo dolo Ibid., 1988a, p. 296, nota 6. 11

    Para uma melhor compreenso do significado de reciprocidade, consultar as obras de Marcel Mauss. Sociologia e antropologia. So Paulo: EPU/EDUSP, 1974, v.II; SAHLINS, Marshall. Economa de la edad de piedra. Madrid: Akal, 1977 e TEMPLE, Dominique. Estructura comunitaria y reciprocidad; del quid-pro-quo historico al ecomicidio. La Paz: Hisbol-Chitakolla, 1989. Para Mauss as prestaes e contra-prestaes so feitas de uma forma sobretudo voluntria, por presentes, regalos, embora sejam, no fundo, rigorosamente obrigatrias... In: 1974, p.45. Na anlise de Marshall Sahlins , a necessidade de atender aos imperativos do sistema de reciprocidade que origina o dom, In: 1977, p. 151. J para Temple, o dom e o contra-dom funcionam como mecanismos propulsores da produo. In: 1989, p. 122. 12

    ...(Tawantinsuyu = las cuatro partes del mundo = todo el mundo), llamado imperio de los incas por los cronistas del siglo XVI PEASE, Franklin. Los Incas. 2.ed. Lima: Pontificia Universidad Catlica del Per, 1992, p. 35).

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    aumentando, o que resultou num crescimento da fora de trabalho disponvel13, aumentando a produo e gerando o excedente necessrio manuteno das ligaes recprocas com os ayllus.

    A dificuldade em se analisar o ayllu em tempos pr-incaicos reside na falta de dados arqueolgicos que comprovem as informaes. Uma das obras existentes sobre o assunto Asto: curacazgo prehispnico de los Andes Centrales, de Danile Lavalle e Michle Julien (1983)14. Essas duas arquelogas mostraram como a famlia extensa utilizava uma habitao, conforme os resultados obtidos de um trabalho arqueolgico que trata de reconstruir a ocupao de um stio em funo do agrupamento familiar.

    Para analisarmos o perodo pr-colonial, podemos utilizar as crnicas espanholas e indgenas do sculo XVI. O problema que estamos trabalhando com representaes e no caso dos cronistas espanhis, estes, ao se depararem com realidades distintas das suas, traduziram para sua linguagem os conceitos relativos estruturao do mundo andino, o mesmo ocorrendo em relao ao ayllu.O europeu da conquista via o que queria ver e rejeitava aquilo para o qual no estava mentalmente preparado15. No podemos nos esquecer que, apesar de pertencerem Idade Moderna, esses homens que eram movidos pela ambio de riqueza, estavam imbudos de categorias do medievo europeu, ligadas religiosidade, onde o medo do desconhecido, do outro, levou-os a imaginar um paraso alm mar16 e quando se depararam com a Amrica, assimilaram esse Mundus Novus paulatinamente. J nas crnicas indgenas, como na de Guaman Poma de Ayala (1615), embora no aparea uma definio de ayllu, encontramos um esquema de funcionamento dessa estrutura e informaes sobre as mecnicas de reciprocidade que justificam o ayllu. Sendo estes cronistas espanhis ou indgenas, o que nos fornecem so imagens do ayllu e no comprovadamente uma reproduo plena de tal estrutura, de qualquer forma, poderemos utilizar tais fontes para tentar compreender a diferenciao entre o ayllu pr-hispnico e o colonial.

    Na documentao do sculo XVI, l-se que o Tahuantinsuyu nasceu da anexao de diversas etnias, baixo ao controle poltico-religioso do chefe Inca, pois este era o filho do deus Sol. A reciprocidade, como j mencionamos, foi fundamental para a expanso do territrio

    13 CANSECO, op. cit., 1988a, p.65, nota 6.

    14 JULIEN, Danile Lavalle Michle. Asto: curacazgo prehispnico de los Andes Centrales. Lima: IEP, 1983.

    15 ELLIOTT, J. H. O velho mundo e o novo; 1492-1650. Lisboa: Querco, 1984, p.28.

    16 Ver TODOROV, Tzvetan. A conquista da Amrica; a questo do outro. So Paulo: Martins Fontes, 1983;

    Fernando Silva-Santisteban. El significado de la conquista y el proceso de aculturacion hispano-andino. In: SOLANO, Francisco et al. Proceso Histrico al conquistador. Madrid: Alianza Editorial, 1988; DELUMEAU,

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    inca, tanto que os povos que desconheciam esses sistema no aceitaram a dominao incaica. O Inca estabelecia ligaes com os chefes de ayllus oferecendo presentes em troca de trabalho ou, como nos mostra John Murra, estabelecendo laos de parentesco, contraindo em casamento filhas desses curacas17. Porm, esse sistema tornou-se impraticvel devido s grandes dimenses do imprio. Desse modo, quando um grupo no aceitava o domnio atravs da reciprocidade, o Inca colocava um funcionrio de sua confiana no lugar do curaca local, estabelecendo assim, suas regras organizativas. O aumento do territrio e da populao ocasionou a necessidade de maior produo para ser redistribuda e atender ao sistema de reciprocidade.

    Karl Polanyi aplica os conceitos de reciprocidade e redistribuio no estudo de populaes africanas (1957)18 e John Murra os reutiliza, caracterizando o Tahuantinsuyu como sendo um Estado19 redistributivo20, no porque fosse um Estado com fins humanitrios, mas porque isso era essencial para manter a coeso do Imprio. Isso ocasionou mudanas na organizao produtiva dos ayllus, pois se antes a reciprocidade e a redistribuio se davam em funo das relaes de parentesco entre o chefe do ayllu e seus membros, agora passam a ocorrer em funo da relao poltico-religiosa estabelecida entre esses grupos e o Estado inca21.

    Durante o domnio inca, os ayllus permaneceram como grupos ligados por laos de parentesco e aqueles que tinham a posse da terra, perderam-na, passando esta ao controle do Estado que, por sua vez, a dividiu em terra do Sol, do Estado e do povo. A cada ano era feita a

    Jean. Histria do medo no Ocidente; 1300-1800 uma cidade sitiada. So Paulo: Companhia das Letras, 1989; OGORMAN, Edmundo. A inveno da Amrica. So Paulo: UNESP, 1992. 17

    MURRA, John. La guerre et les rbellions dans l'expansion de l'tat inka. Annales; conomies, socits, civilisations. 33e anne, n.5-6, sep-dc, p.927-935, Paris, 1978, p.929. 18

    POLANYI, Karl et al. Trade and Markets in the Early Empires. Illinois: The Free Press Glencoe, 1957. 19

    Estado - Desde el punto de vista antropolgico, como poltico, y tal como lo define Kelsen, el Estado es una sociedad polticamente organizada bajo un ordenamiento coercitivo. Es exacta la definicin del clebre jurista, puesto que al decir polticamente organizada se est refiriendo a sociedades cuya organizacin incluye varios linajes, clanes o tribus, y la organizacin poltica empieza con la unin, domnio o cooperacin de grupos distintos por encima de los lazos de parentesco; y al decir coercitivo alude a la caracterstica fundamental del Estado sealada por Max Weber, quien lo defini como la asociacin humana que reclama para si, con xito, el monopolio legtimo de la fuerza fsica. Como quiera que se lo interprete el Estado est relacionado con el poder poltico y con el control de los excedentes de la produccin Fernando Silva-Santisteban. Desarrollo tecnologico, ideologia y espacios de poder en el Peru antiguo. In: Marco Curatola, Fernando Silva-Santisteban. (eds.) Historia y cultura del Peru. Lima: Universidad de Lima/Museo de la Nacion, 1994, p.296-297. 20

    MURRA, John Murra. La organizacin econmica del estado Inca. 3. ed. Mexico: Siglo XXI Editores, 1983, p.198. 21

    GODELIER, Maurice. Horizontes da antropologia. 2.ed. Lisboa: Edies 70, 1977, pp.336-337.

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    redistribuio de tupus22, lotes de terra, suficientes para o sustento de cada famlia. Tambm eram distribudas as tarefas de produo estatal da terra, pois esse tipo de trabalho, ou mita23, era o tributo que o Estado exigia populao em troca de benefcios coletivos ou individuais.

    Desse modo, o sistema comunitrio de produo baseado em laos de parentesco do ayllu reutilizado no Tahuantinsuyu com fins expansionistas.

    Muitos grupos tnicos permaneceram insatisfeitos sob o domnio inca, pois tambm foi utilizada a coero. Por outro lado, o crescimento em demasia do territrio dominado originou uma maior demanda de produtos para serem redistribudos e nem sempre o Inca conseguiu satisfazer os curacas, que esperavam dele presentes e regalias. Esse descontentamento vai se refletir mais tarde, quando chegam os espanhis, pois muitos desses curacas aliam-se ao inimigo com o objetivo de libertarem-se do jugo incaico e de estabelecerem novas relaes de reciprocidade.

    Quando Francisco Pizarro chegou a Tumbez, em 1532, o Tahuantinsuyu estava dividido pela disputa dos dois irmos, Huascar e Atahualpa, pela mascapaicha24. O Inca Huayna Capac havia ido guerrear no norte do territrio incaico e a morreu vtima de uma epidemia de varola e sarampo. Huascar era considerado o melhor candidato a substituir seu pai, visto que ele era filho do Inca com a coya, esposa principal. Ao contrrio do que ocorria nos ayllus comuns, em que o sistema era patrilinear e exogmico, entre as panacas ou ayllus reais, a linha de descendncia era matrilinear e endogmica. Porm, apesar da aparente desvantagem de Atahualpa, ele tinha direito a disputar o poder, pois tambm era filho do Inca. Depois de alguns confrontos com seu irmo, Atahualpa terminou por venc-lo.

    Atahualpa encontrava-se em Cajamarca quando Pizarro chegou e o aprisionou. A conquista do povo inca se deu de modo aparentemente fcil, pois estes no ofereceram resistncia, j que no foram atacados. A falta de coeso diante do perigo, a insatisfao de alguns chefes tnicos em relao ao Estado e a debilidade diante do armamento espanhol foram alguns dos fatores que propiciaram a sua derrota.

    22 Tupu - ... tupu fue el lote de tierra requerido para el mantenimiento de un matrimonio sin hijos, ya que un

    tributario del incario reciba una parcela al casarse que deba satisfacer a sus necessidades CANSECO, Mara Rostworowski de Diez. Ensayos de historia andina: lites, etnas, recursos. Lima: EP/BCRP, 1993, p.178. 23

    Mita - La mita o prestacin de servicios rotativa es un concepto muy andino que se emple para efectuar trabajos ordenados cclicamente en un determinado momento. Toda obra contena la idea de mita, de repiticin a su tiempo, de ah que trabajos muy diferentes fuesen ejecutados bajo el sistema de prestaciones rotativas Mara Rostworowski de Diez Canseco. Op. cit., 1988a, p. 237. 24

    Mascapaicha - Mazcca paycha. Borla que era insignia Real, o corona de Rey HOLGUIN, Diego Gonzalez . Vocabulario de la lengua general de todo el Per llamada qquichua o del Inca. 3. ed. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 1989 [1608], p.232.

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    Depois da conquista inicial, comeam a aparecer os primeiros documentos que descrevem no s os feitos dos espanhis, mas tambm as organizaes das etnias encontradas no que hoje conhecemos por Peru.

    O sculo XVI extremamente complexo de ser analisado, pois como afirma Luis Millones, esse perodo o mais importante da histria americana25 por terem acontecido grandes mudanas. A maioria dos pesquisadores se concentra no estudo desse sculo, havendo quem se dedique a um estudo diacrnico da sociedade andina desde a poca pr-hispnica at os dias atuais. No caso especfico das pesquisas sobre o ayllu, dispomos de importantes estudos que procuram na evoluo histrica dessa estrutura compreender como se originou a atual comunidade indgena26.

    Um trabalho de destaque a tese de doutorado de Jos Mara Arguedas, na qual esse pesquisador procura provar que as comunidades indgenas contemporneas so resultado das transformaes ocorridas no perodo colonial. Nessa poca, o vice-rei Toledo manda reagrupar diversos ayllus em redues, que seriam sobrevivncias das comunidades de Castela no Peru com o intuito de evitar que os ndios fossem explorados s por encomendeiros e garantir o seu aproveitamento para a economia real27. Fuenzalida Vollmar, como Arguedas, cr que a comunidade indgena teve origem no perodo colonial, mas acrescenta que o ayllu, enquanto famlia extensa, vira uma cofrada28, ou seja, une laos parentais aos rituais cristos29. Esses estudos partem da anlise de problemas e regies concretas, o que por vezes provoca uma fragmentao dos conhecimentos, acentuando as diferenas regionais e distorcionando a realidade andina pr-hispnica, colonial e contempornea30.

    25 MILLONES, Luis. Etnohistoriadores y etnohistoria andina: una tarea dificil, una disciplina heterodoxa.

    Socialismo y participacin. n.14, jun., Lima, ,1981, p.77. 26

    Ver HOFFMANN, Carmen Arellano. Apuntes histricos sobre la Provincia de Tarma en la Sierra Central del Per. El Kuraka y los ayllus bajo la dominacin colonial espaola, siglos XVI-XVIII. Bonn: BAS, 1988; Zur Bedeutung und Gebrauch des Begriffs Ayllu; Neue Erkenntnisse ber die innere Funktion eines Beispiels einer Kolonialzeitlichen Dorfgemeinschaft in Tarma/Peru. Beitrge zur Kulturgeschichte des westlichen Sdamerika. Bonn: Westdeutscher Verlag, 1990; Los ttulos de comunidades como fuentes para una reconstruccin histrica de lmites de las antiguas etnias andinas: el ejemplo de Tarma en la sierra central del Per. Amrica Indgena. n.4, 1994. 27

    ARGUEDAS, Jos Mara Arguedas. Las comunidades de Espaa y del Per. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 1968, p.6. 28

    Cofrada - ...se destingue de la comunidad porque se funda primeramente con fines religiosos CELESTINO, Olinda; MEYERS, Albert. La posible articulacion del ayllu a traves de las cofradas In: CASTELLI, Amalia et al. op. cit., 1981,p. 300. 29

    VOLLMAR, Fernando Fuenzalida. Estructura de la comunidad de indigenas tradicional; una hiptesis de trabajo.Jos Matos Mar(comp.). Hacienda, comunidad y campesinado en el Per. 2.ed. Lima: IEP, 1976, p.244. 30

    COCK, Guillermo. El ayllu en la sociedad andina: alcances y perspectivas. In: Amalia Castelli et al. Op. cit.,1981, p. 232-233.

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    Em sntese, antes da chegada dos espanhis, o ayllu tratava-se de um grupo ligado por laos de parentesco, alm de outras caractersticas j tratadas, e que, sob o domnio incaico, foi inserido num contexto maior, tendo por funo o sistema produtivo do Estado inca. No perodo colonial, o ayllu aparece nos relatos de cronistas no s como linhagem, mas tambm como povoado, transformando assim sua antiga conotao. Depois das redues toledanas, tambm muda a sua organizao e o ayllu passa a representar no s uma unidade de parentesco, mas tambm uma unidade poltica territorial em que o objetivo foi proporcionar mo-de-obra disponvel para as tarefas coloniais.

    As redues do vice-rei Toledo ocorreram a partir de 1560, por isso, importante analisar documentao relativa a todo o sculo XVI, visando conhecer as diversas representaes dadas ao ayllu por espanhis e indgenas que descreveram o ayllu do perodo da conquista e tambm quando esta estrutura foi inserida no contexto poltico colonial.

    Os cronistas espanhis, ao tratarem o assunto, no estavam apenas influenciados pela realidade colonial peruana, mas tambm, por critrios trazidos da Espanha, como a concepo que tinham de suas prprias comunidades camponesas. Isso, ao nosso ver, deve ter sido determinante nas anlises que fizeram do ayllu. Atravs de uma reviso crtica do que pensavam os cronistas desse perodo a respeito do ayllu, pode-se confrontar informaes para perceber o que se confirma e o que se contradiz nesses documentos e a partir da, perceber como se deu a identificao de ayllu com comunidade e reduo na passagem do perodo pr-hispnico para o colonial.

    Por estarmos em fase inicial de anlise de fontes sobre o ayllu no sculo XVI, apenas introduziremos o leitor ao manancial de crnicas que possuem maior possibilidade de oferecer dados sobre essa estrutura.

    Crnicas no sculo XVI

    Para podermos realizar um estudo da representao dada ao ayllu por cronistas do sculo XVI, deveremos revisar os textos redigidos nesse perodo, dando maior ateno queles produzidos no momento da conquista e primeiros anos de colonizao, visto serem os que oferecem maiores possibilidades de veracidade.

    Percebemos, no entanto, haver pouco material que informe a respeito da realidade fsica e humana entre os anos de 1530 e 40. Podemos contar para tal, apenas com a curta relao de

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    Juan Ruiz de Arce31 e a de Pascual de Andagoya32. Para explicar essa ausncia de produo. Podemos cogitar que os espanhis que chegaram ao Peru, tinham interesses mais preementes do que relatar os costumes indgenas, como no caso dos religiosos, que nos primeiros momentos de contato com esse mundo, preferiram participar e intervir nos conflitos dos conquistadores33. Como bem relatou Cieza de Len, os franciscanos que acompanharam Pizarro at Tumbez, quando no viram os dobres de ouro, pediram licena para se retirarem e regressar a Nicargua34.

    Outro fator relevante, seria a falta de escrita entre o homem andino, o que dificultava a coleta de dados, requerendo um esforo maior por parte dos cronistas para reconstruir e estruturar a tradio oral desse povo.

    No entanto, estas circunstncias no podiam prorrogar o desinteresse por parte dos espanhis sobre essa gente e o espao que acabavam de conquistar. Obedecendo a este interesse, apareceram as primeiras informaes dirigidas por governadores e vice-reis do Peru, desde a de Vaca de Castro, passando de La Gasca, chegando de Francisco de Toledo, que j no fim do sculo XVI, foi um dos que mais se preocupou em aprofundar tais pesquisas35.

    Para dar continuidade a esse tipo de informao, aparecem tambm crnicas redigidas por soldados e religiosos da conquista e perodo colonial inicial, e posteriormente, textos elaborados por indgenas.

    Os cronistas do perodo da conquista foram aqueles que coletaram seus dados junto aos quipo-camayoc, homens que eram responsveis, entre outras coisas, por conservar a histria

    incaica. Porm, essa a chamada tradio oficial, da qual absorveram seus dados Cieza de Len36, Cabello Valboa37 e Martn Murua38, por exemplo. Outros recolheram suas informaes junto a chefes de diferentes localidades que lhes contavam suas memrias

    31 ARCE, Juan Ruiz de. Advertencia que hizo el fundador del vnculo y mayorazgo a los sucesores de l. Tres

    testigos de la conquista del Per. Guayaquil: Ariel Universal, 1975. 32

    ANDAGOYA, Pascual de. Relacin y documentos. Madrid: Historia 16, 1986. 33

    DUVIOLS, Pierre. La lutte contre les religions autochtones dans le Prou coloniel Lextirpation de lidolatrie entre 1532 a 1660. Paris: IFEA, 1971. 34

    LEN, Pedro de Cieza de. Crnica del Per. Tercera parte. Lima: Pontificia Universidad Catlica del Per, 1989, cap. XXXVII, p.110. 35

    GUERREIRA, Mara Concepcin Bravo; PUJANA, Laura Gonzlez. Corrientes informativas de la historiografa peruana en la dcada de 1550. Congreso de historia del descubrimiento Actas. Madrid: Real Academia de la Historia, 1992, t.IV, p.344. 36

    LEN, Pedro de Cieza. Crnica del Per. Lima, Pontificia Universidad Catolica del Per, 1991[1553], 4.v. 37

    VALBOA, Miguel Cabello. Miscelnea Antrtica. Lima, UNMSM, 1951[1586]. 38

    MURUA, Martn. Historia del origen y genealoga de los reyes incas del Per, de sus hechos, costumbres, trajes y maneras de gobierno. Lima, Urteaga y Romero, 1922[1590].

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    pessoais, sendo esse o material que originou as Relaciones Geogrficas de Indias39 e que tambm foi utilizado por Sarmiento de Gamboa40 e Francisco de Toledo41.

    O perodo de maior interesse para a realizao de uma investigao a respeito do ayllu no sculo XVI abarca os primeiros anos de conquista at dcada de 80, que quando se modificam os critrios de anlise do incrio e quando ocorrem as grandes mudanas coloniais, representadas pela implantao das redues toledanas. Partindo desse postulado metodolgico, possvel vislumbrar as principais representaes conferidas a essa estrutura de parentesco andina, utilizando para tal, crnicas e documentos de perodos distintos, quando assim aprouver e for justificvel.

    Segundo Domingo Santo Toms, o ayllu era a linhagem, gerao ou famlia e a marca ou llacta, tinham como significado, povoado ou cidade42. Essa informao se confirma, ao consultarmos o dicionrio de Ludovico Bertonio, em que este traduz ayllu como sendo, linhagem ou parcialidad de indios, melhor denominada hatha e a marca, como acima mencionado, trata-se do povoado43. Atravs da anlise dos lxicos produzidos por esses dois autores, percebemos que os espanhis tiveram acesso ao verdadeiro significado do vocbulo ayllu, mas que ao ser aplicada tal estrutura em distintas funes, acabou adquirindo no perodo colonial uma outra conotao.

    Quando estudamos esse tema, percebemos que no podemos trabalhar a concepo de ayllu genericamente, pois nem todas as regies do Peru utilizaram esse vocbulo para designar o sistema de parentesco que unia diferentes grupos tnicos. Prova disso, a regio norte andina, onde a populao no vivia organizada em ayllus e sim, em pachacas e huarangas44. O que se discute, se pachaca e ayllu se corresponderiam enquanto sinnimos, pois para Mara Rostworowski e Waldemar Espinoza, pachaca seria o equivalente de ayllu para a serra norte45.

    39 ESPADA, Marcos Jimenez de la. Relaciones Geogrficas de Indias. Madrid, Atlas, 1965[1586].

    40 GAMBOA, Pedro Sarmiento de. Historia de los Incas. Buenos Aires, Emec, 1947[1572].

    41 TOLEDO, Francisco de. Informaciones acerca del seorio y gobierno de los incas In: LEVILLER, R., Don

    Francisco de Toledo supremo organizador del Per. Buenos Aires, Coleccin Biblioteca del Congreso Argentino, 1940[1570-72] e Ordenanzas que el seor visorey don Francisco de Toledo hizo para el buen gobierno de estos reinos del Per In: R. Leviller, op. cit., 1925[1572-75]. 42

    SANTO TOMS, Domingo de. Lexicon o vocabulario de la lengua general de Peru. Lima: Ed. Facsimilar Ral Porras Barrenechea / Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 1951 [1560], pp.232, 306 e 318. 43

    BERTONIO, Ludovico. Vocabulario de la lengua aymara. Cochabamba: CERES, 1984[1612], pp.28, 217 e 293. 44

    Las visitas a Cajamarca, 1571-72./1578. Estudios preliminares de Mara Rostworowski y Pilar Remy. Lima: IEP, 1992, 2t., p.72. 45

    CANSECO, Mara Rostworowski de Diez. La voz parcialidad en su contexto en los siglos XVI y XVII e Waldemar Espinoza Soriano. El fundamento territorial del ayllu serrano. Siglos XV y XVI. In: CASTELI, Amalia et al. Op. cit.,1981, pp.39 e 114.

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    Outro termo que foi usualmente utilizado em documentos do sculo XVI em referncia ao ayllu, foi o vocbulo parcialidad, que na verdade, para os cronistas, nada mais era que o ayllu em si, mas mesclado a uma conotao territorial46.

    Os exemplos acima mencionados, provam que trabalhar a representao de ayllu encontrada nas crnicas do sculo XVI, demanda um conhecimento do vocabulrio quechua e espanhol empregado nesse perodo, para ser possvel perceber as diversas conotaes atribudas ao ayllu e as modificaes sofridas ao largo da histria da conquista e colonizao espanhola desse territrio.

    O cronista Cieza de Len fundamental para a compreenso do ayllu, mesmo sendo um soldado que vivenciou o perodo inicial da conquista e, como se sabe, eram raros aqueles que dominavam a lngua quechua. Ele, diferentemente de seus companheiros, tinha uma curiosidade aguada e sagaz e soube captar a realidade andina, transpondo esses limites lingsticos.

    Juan Betanzos47 equipara-se em valor etnogrfico a Cieza de Len, pois aparte de haver se casado com a irm de Atahualpa, ainda se transformou no intrprete oficial de Pizarro, visto ter se dedicado desde cedo ao estudo do quechua.

    Os cronistas Lopez de Gomara48 e Agustn de Zarate49 no produziram obras confiveis, j que o primeiro sequer esteve no Peru, produzindo sua crnica conforme os dados alheios, e Zrate esteve pouco tempo em terras andinas, elaborando seu livro a partir de resumidas anotaes que levou consigo e de partes de outros documentos. Esse tipo de fonte, em que seus autores apenas foram recopiladores e na maioria das vezes nem haviam estado no Peru, foi usual a partir da dcada de 80 no sculo XVI.

    A obra de Juan de Matienzo50 de grande importncia para apreendermos o momento histrico em que o ayllu se transforma em um espao territorial, pois este cronista foi o mentor das redues toledanas. De cunho jurdico, esta crnica representou o discurso de

    46 Y sus terneis cuidado e ansi uso lo mandamos que sepais las parcialidades que hay en la tierra de cada

    cacique e quel es el que mas mandae si las huviere asentareis por si cada parcialidad con sus yndios aparte con el cacique que la mandare e pondreis por escripto quanto ay de vna a otra e quantos yndios tiene porque si se huviere de partir el cacique en dos personas sepamos como se ade dividir y se escusen pleitos entre los pobladores e sin ellos puedan mejor servir a su magestad y entender en la poblacion de la tierra Instruccin que el Marqus Francisco Pizarro dio a Diego Verdigo para la visita que haba de hacer desde Chicama hasta Tucome. Los Reyes, 4 de junio de 1540. In: LEVILLIER, Roberto. Gobernantes del Per. Cartas y papeles. Siglo XVI. Madrid: Sucesores de Rivadeneyra, 1921, T.1, pp.20-22. 47

    BETANZOS, Juan. Suma y narracin de los Incas In: Crnicas peruanas de inters indgena. Madrid,, Atlas, 1968[1551]. 48

    GOMARA, Francisco Lopez de. Historia de las Indias y conquista de Mxico. Zaragoza, Miguel de Zapila, s/d[1552]. 49

    ZARATE, Agustn de. Historia del descubrimiento y conquista del Per In: Biblioteca peruana. Lima, Ed. Tecnicos Asociados, 1968[1555].

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    legitimao do poder espanhol sobre o povo inca. Matienzo, Francisco de Toledo e Sarmiento de Gamboa representam a tendncia anti-incaica em suas crnicas, apresentando os incas no como um povo primitivo, mas um povo de perfeita organizao e que subjugava o restante da populao de forma tirnica, por isso, era legtimo o poder espanhol sobre os incas, pois libertaram as populaes andinas escravizadas por estes. J os cronistas que apoiavam o incrio enalteciam essa organizao com o intuito de provar o alto nvel cultural e poltico desse povo. Tanto as fontes a favor dos incas, como as contrrias, estavam de acordo quanto excelente organizao incaica51.

    Polo de Ondegardo52, apesar de no ter sido um cronista que tenha produzido uma obra importante para a anlise do mundo incaico, o foi para o perodo colonial. Ele foi um opositor da perpetuao do sistema de encomienda, visto ser uma injustia os espanhis apoderarem-se inclusive das terras que outrora pertenciam ao povo, pois nem os incas usurparam da populao o direito terra. A parte que cabia ao Inca e ao Sol era plantada coletivamente e a restante era administrada pela autoridade local com fins tributrios. Os espanhis, ao instalarem a encomienda, no satisfeitos de se apoderarem da totalidade territorial, tambm incutiram populao indgena uma nova tributao.

    Obras menores, como as de Cristbal de Molina - o Cuzquenho53- e Francisco Falcn54, tambm merecem ateno por parte do pesquisador, visto que so compostas a partir de materiais coletados diretamente por seus autores junto ao povo andino.

    A crnica de Jos Acosta55 deve ser analisada to somente para perceber a viso de um religioso sobre o mundo indgena, pois apesar de sua conhecida importncia para os estudos dos povos pr-colombianos, quando se refere ao Peru, utiliza as informaes de Ondegardo, j que a transcrio era uma prtica corriqueira na poca.

    Com o intuito de contrapor distintas representaes do ayllu, faz-se necessrio o estudo no somente das obras redigidas pelos espanhis, mas tambm de indgenas e mestios. Existem poucas fontes, mas de fundamental importncia para compreenso dessa estrutura andina. Sabemos que estes cronistas mesclaram critrios europeus e indgenas e alguns

    50 MATIENZO, Juan de. Gobierno del Per, Lima, IFEA, 1967[1567].

    51 WEDIN, Ake. El concepto de lo incaico y las fuentes. Uppsala: Akademifrlaget, 1966, pag.77.

    52 ONDEGARDO, Juan Polo de. De los errores y supersticiones de los indios In: Confesionario. Lima, Antonio

    Ricardo, 1585[1554]. 53

    MOLINA, Cristbal de(Cuzqueo). Fbulas y ritos de los Incas. Lima, Horacio Urteaga y Carlos A. Romero, 1916[1574]. 54

    FALCN, Francisco Falcn. Representacin hecha en concilio provincial, sobre los daos y molestias que se hacen a los indios In: Coleccin de documentos inditos del Archivo de Indias, Madrid, 1867[15_?]. 55

    ACOSTA, Jos. Obras. Madrid, Atlas, 1954. Nesta edio se encontram Historia natural y moral de las Indias e De procuranda indorum salute, entre outros escritos menores.

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    tambm recolheram seus dados junto aos nobres de Cuzco, como foi o caso de Garcilaso de la Vega56. Mestio, filho de um conquistador espanhol e de uma princesa inca, passou sua infncia no Peru, mas logo foi para a Espanha, onde estudou e redigiu sua crnica. Seu discurso adaptado ao pblico espanhol e por isso mesmo chega a negar a existncia de sacrifcios humanos entre os incas, visto ser algo repulsivo mente europia.

    Joan Santa Cruz Pachacuti57, Guaman Poma de Ayala58 e Titu Cusi59 so ndios puros, que escreveram no incio do sculo XVII, o que no invalida a importncia de suas obras. Suas crnicas baseiam-se nos relatos hericos dos cuzquenhos, mas tambm simbolizam o resultado da aculturao sofrida por esse povo. Nathan Wachtel baseou-se em documentos dos sculos XVI e XVII para abordar a questo da aculturao e a designou como sendo uma ao recproca entre duas culturas com foras desiguais, uma dominante e outra dominada60. No caso, a abordagem indgena representa a cultura dominada, estando explcito em seus discursos tal condio. Pachacuti, profundamente cristianizado, fez de sua crnica um catecismo, utilizando conceitos teolgicos para explicar o mundo andino desde sua origem61. Guaman Poma e Titu Cusi representam a oposio ao mundo colonial com seus escritos apologticos e cheios de contradies, fato plausvel, j que eram homens andinos que haviam sido educados e cristianizados pelos espanhis.

    As crnicas que tratam do perodo colonial inicial at a implantao das redues de Toledo so as que podem nos fornecer as melhores representaes do ayllu incaico e colonial. Faz-se necessria a verificao da provenincia dos dados que aparecem nas crnicas a serem examinadas e descartar aquelas que so meras transcries.

    Consideraes finais

    Antes da chegada dos espanhis, o ayllu simbolizava o sistema de parentesco e ao ser representado por diferentes cronistas, de conceito territorial abstrato e no condizente com a

    56 El Inca Garcilaso de la Vega, Primera parte de los comentarios reales, que tratan del origen de los incas e

    Historia General del Per, Buenos Aires, Emec, 1943[1609 e 1617]. 57

    PACHACUTI, Joan de Santa Cruz. Relacin de antigedades deste reyno del Per, In: Crnicas Peruanas de inters indgena. Madrid, BAE, 1968[1613]. 58

    AYALA, Felipe Guaman Poma de. Nueva cornica y buen gobierno. Lima, Fondo de Cultura Econmica, 1993[1615]. 59

    YUPANQUI, Titu Cusi. Relacin de la conquista del Per. Lima, Ed. de la Biblioteca Universitaria, 1973[1570]. 60

    WACHTEL, Nathan. Los vencidos; los indios del Peru frente a la conquista espaola (1530-1570). Madrid, Alianza Editorial, 1976, p. 26-27. 61

    PORTUGAL, Ana Raquel Portugal. O conceito de ayllu nas crnicas de interesse peruano do sculo XVI. So Leopoldo: Dissertao de Mestrado/UNISINOS, 1995, p.78.

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    realidade andina, foi transformado em comunidade, conforme os moldes europeus de aldeia detentora de um espao territorial demarcado. A confluncia de discursos favorveis e opostos aos incas propiciou o surgimento dessa nova concepo de ayllu.

    Os cronistas abordaram a histria dos incas de distintas formas, uns assumindo uma postura contrria e denegrindo a imagem desse povo e outros procurando compreender e valorizando essa cultura. Espanhis e indgenas, muito embora, representantes de culturas diferentes, articularam discursos verossimilhantes devido aculturao sofrida por estes.

    A construo discursiva do ayllu comeou por ser engendrada desde que os cronistas se apropriaram de seu significante, que de signo representativo de uma simbologia indgena, foi transformado em modelo de comunidade alde do medievo europeu. As crnicas no nos fornecem dados sobre o significado do ayllu propriamente dito, e sim, a imagem que estes homens do sculo XVI forjaram de acordo com as fontes utilizadas e objetivos pessoais.

    Diante da dificuldade em definir essa estrutura indgena atravs da complexa documentao de que dispomos, de grande valia pesquisar a representao da mesma com o intuito de perceber esse entrelaamento de idias alusivas a culturas distintas. Essa conjugao de esteretipos culturais europeus e indgenas refletida em discursos, permitiu que o ayllu colonial assumisse uma nova conotao, que devido tambm s mudanas scio-econmicas da poca, consolidou-se na prtica. O ayllu colonial configurou-se nessa fronteira discursiva, em que cronistas espanhis e indgenas traduziram em palavras as prticas culturais inerentes realidade do encontro/desencontro desses povos.