cultura.sul 78 - 6 mar 2015

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MARÇO 2015 | n.º 78 www.issuu.com/postaldoalgarve Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO D.R. Espaço AGECAL: Os seculares ‘jardins de sal’ do Algarve p. 3 Letras e Leituras: É possível falhar-se a vida? p. 4 O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Março Espaço ALFA: Visitar o Algarve p. 9 D.R. D.R. D.R. p. 7 D.R. 8.640 EXEMPLARES p. 6 Panorâmica: e Legendary Tigerman a entrevista antes de pisar o palco do TEMPO p. 5 p. 5 A cultura sai à rua p. 10 Espaço ao Património: D.R.

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• CONHEÇA O CULTURA.SUL DESTE MÊS • Sexta-feira (dia 6/03) nas bancas com o PÚBLICO e o POSTAL • Partilhe o seu caderno mensal de Cultura no Algarve • EM DESTAQUE: > ESPAÇO AGECAL: Os seculares jardins de sal do Algarve, por Belmira Antunes > PANORÂMICA: The Legendary Tigerman em entrevista, por Ricardo Claro > SALA DE LEITURA: O rumor de Londres, por Paulo Pires > ESPAÇO ALFA: Visitar o Algarve, por Raúl Grade Coelho > LETRAS E LEITURAS: Stoner, John Williams - É possível falhar-se a vida?, por Paulo Serra > DAESPAÇO AO PATRIMÓNIO: Entre a comunidade e o museu, a cultura sai à rua, por José GAmeiro < DA MINHA BIBLIOTECA: Milton Hatoum – Dois Irmãos, por Adriana Nogueira

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Page 1: CULTURA.SUL 78 - 6 MAR 2015

MARÇO 2015 | n.º 78

www.issuu.com/postaldoalgarve

Mensalmente com o POSTALem conjuntocom o PÚBLICO

d.r.

Espaço AGECAL:

Os seculares ‘jardins de sal’ do Algarve

p. 3

Letras e Leituras:

É possível falhar-se a vida?

p. 4

O(s) Sentido(s)da Vida a 37º N:

Março

Espaço ALFA:

Visitar o Algarve

p. 9

d.r.

d.r.

d.r.

p. 7

d.r.

8.640 EXEMPLARES

p. 6

Panorâmica: The Legendary

Tigermana entrevista

antes de pisar o palco

do TEMPOp. 5

p. 5

A cultura sai à rua

p. 10

Espaço ao Património: d.r.

Page 2: CULTURA.SUL 78 - 6 MAR 2015

06.03.2015 2 Cultura.Sul

De cortar a respiração. Por momentos fiquei sem fô-

lego e não foi da surpresa face aos actos, que se repetem infe-lizmente e nos deixam a todos mais pobres.

Não há muitas surpresas, na era da informação e do digital em que as imagens viajam à velocidade da luz, quanto aos desmandos a que determina-dos homens - a letra minúscula não é incidental - se dão a seu bel-prazer.

O ataque do estado - a minús-cula não é, novamente, inciden-tal - Islâmico ao Museu de Mosul é a barbárie, regressada, sem res-peito por ninguém.

Num profundo desrespeito, inominado, sobre o património cultural de todos nós, o que sur-preende a destruição das estátu-as da época assíria, dos séculos VIII e VII antes de Cristo, o que os vis atacantes desconsideram é, acima de tudo, a sua própria herança cultural particular e o Islão e as suas Escrituras que tanto evocam.

Não há, como é óbvio, per-da maior nem ultraje mais re-levante que a matança que a guerra - seja ela qual for - traz a quem a sofre. Não obstante, o atentado contra o património exibe o que de pior o ser hu-mano - a sê-lo - pode mostrar.

Sucumbiram os budas de Bamiyan, no Vale de Hazara-jat, Afeganistão, ao desprezo incontível dos Talibãs e desta feita o espólio do Museu de Mosul.

A menoridade a que se vo-tam os que destroem a heran-ça milenar de toda a humani-dade não tem perdão, e há um vazio que se instala de cada vez que sabemos que só podere-mos revisitar esse património em imagens.

Um vazio de cortar o fôlego.

A guerra ao património Devolver à sociedade o conhecimento

que os arqueólogos produzem

Sendo o património arqueo-lógico um recurso cultural das comunidades, a sua preserva-ção é um dever público, a que se aplica a Lei 107/2001, de 8 de setembro. À parte a especifi-cidade da investigação progra-mada, é mais proveitoso para a preservação desse legado não intervir diretamente nos vestígios e garantir que qual-quer intervenção no subsolo não afete os testemunhos ali existentes. Mas como é impos-sível compatibilizar a atividade humana com a preservação in-tegral do meio físico, a Admi-nistração Pública aposta em procedimentos preventivos, fomentando invariavelmen-te trabalhos arqueológicos de salvaguarda. Uma prática que tem sido seguida no Algarve, de forma coerente, pela Dire-ção Regional de Cultura.

Ao longo das duas últimas décadas assistimos na região a uma crescente eficácia dos procedimentos de salvaguar-

da do património arqueoló-gico desenvolvidos no âmbito das operações urbanísticas: seja através de metodologias de caraterização não invasivas (procedimentos geofísicos) ou pouco invasivas (procedimen-tos geoarqueológicos), que permitam caracterizar os vestí-gios soterrados, seja através de escavações arqueológicas que permitam a preservação física das estruturas arruinadas e a caraterização dos contextos a elas associados, seja através da «conservação pelo registo cien-tífico».

Tornados sistematicamente obrigatórios por lei, e seguin-do o princípio do «poluidor--pagador» (neste caso, do «destruidor-pagador»), os pro-cedimentos preventivos deram origem em todo o país, desde finais do século XX, a um mer-cado de prestação de serviços especializados de arqueologia e ao aparecimento de uma ati-vidade comercial com apreciá-vel volume de negócios e cres-cente número de profissionais envolvidos.

Da aplicação dos procedi-mentos preventivos resulta a produção de conhecimento

científico sobre a trajetória temporal dos lugares, dos ter-ritórios e das sociedades que os habitaram. Esse conheci-mento é indispensável para poder caraterizar os lugares e os territórios como espaços de reconhecimento coletivo,

onde a informação sobre o passado impeça a perda de identidade.

Se, por um lado, uma defi-ciente prática do exercício da arqueologia, se convertida em atividade puramente comer-cial, prejudica a qualidade do

conhecimento produzido, por outro lado a obrigatoriedade legal dos procedimentos pre-ventivos só terá razão de ser se houver real retorno social desse conhecimento.

Fornecendo ao promotor um elenco dos procedimentos preventivos obrigatórios, a in-cluir no caderno de encargos da operação urbanística que promove, criam-se condições para que da intervenção do arqueólogo resulte a utilidade científica dos dados obtidos e a produção de conhecimento, mesmo naqueles casos em que a intervenção se limita a uma tarefa exclusivamente técnica.

Mas de pouca utilidade será acrescentar novas informações e produzir conhecimento se este não for partilhado: tor-nando os dados acessíveis em suporte digital à comunidade científica mas também publi-cando os resultados, ainda que sob a forma de dados semitra-tados, divulgando-os através dos museus, adotando formas de exposição inteligíveis fora do restrito círculo dos profis-sionais da arqueologia. Isto é, devolvendo o conhecimento à comunidade.

Teatro em Olhão

Olhão tem grande tradição no que diz respeito à criação teatral.

Já nos anos trinta eram re-conhecidas as peças produzi-das na nossa terra que inte-gravam no seu elenco figuras

do teatro nacional, que apro-veitavam os períodos de férias para se juntar aos nossos ar-tistas locais em produções de grande sucesso.

Dessa altura, destaque para a Pita e Fanga, uma Revista Olhanense que revolucionou a forma de fazer teatro e que ainda hoje é uma referência.

Foi nessa revista que Vázi-nho, encenou, pela primeira vez, a Carta do Marítimo, recria-da recentemente na peça Mê Menine e o Tê Pai, pela GORDA, com apresentações regulares

desde 2000.Pelo meio, dois grupos de

referência que em épocas dis-tintas assumiram a responsa-bilidade de manter o teatro em Olhão, o GATO, nos anos 60/70, e o Teatro da Vida, anos 80/90.

A nível de formação, desta-que para a Casa da Juventu-de do município, que desde a sua criação, em 2004, apos-tou fortemente nas Oficinas de Teatro, que envolveram até ao momento mais de uma centena de jovens, alguns

deles já com projectos indi-viduais. A mais recente apos-ta foi a Residência Artística Comunitária que envolveu cerca de 60 pessoas de diver-sos grupos da comunidade Olhanense num projecto de formação teatral, mas acima de tudo pessoal e social.

A nível de programação, o Auditório Municipal, que co-memora este mês o seu sexto aniversário, tornou-se uma referência da região pela qua-lidade da sua programação, diversificada e para todos,

com uma aposta regular nas produções teatrais.

Duas referências finais, para as entidades, associações e grupos amadores que, de forma mais ou menos regu-lar, têm dado o seu contribu-to, tanto a nível da formação, como da criação própria e da programação teatral, em todo o concelho e para o público Olhanense, cuja adesão tem justificado a aposta do municí-pio e sido fonte de motivação para os promotores e fazedo-res de teatro da nossa terra.

Ricardo [email protected]

Editorial Missão Cultura

Direção Regionalde Cultura do Algarve

Juventude, artes e ideias

João EvaristoCultura e Juventude CMO

foto: drcalg/r.parreira

Salgadeiras romanas descobertas em 2014 sob o quarteirão do edifício Mabor, em Portimão, no

âmbito de operação de regeneração urbana

AGENDAR

“CRIAÇÕES VIVAS”Até 4 ABR | Posto Municipal de Exposições - LagosExposição reúne obras de Nina, Bradley, Philip e Birgit Felten, artesãos locais que pretendem mostrar os seus trabalhos em conjunto em três vertentes diferentes

“CONCERTO COM MANUEL JOÃO VIEIRA”6 MAR | 22h30 | Casa do Povo de Santo Estêvão - TaviraConhecido pela sua irreverência e ousadia, este músico foi fundador e vocalista de diversas ban-das, entre as quais ‘Ena Pá 2000’, ‘Irmãos Catita’ e ‘Corações de Atum’

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06.03.2015  3Cultura.Sul

Espaço AGECAL

Grande ecrã

Cineclube de TaviraProgramação: www.cineclubetavira.com281 971 546 | [email protected]

SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO ANTÓNIO PINHEIRO | 21.30 HORAS

12 MAR | KIS UYKUSU – WINTER SLEEP (SONO DE INVERNO), Nuri Bilge Ceylan – Turquia/França/Alemanha 2014 (196’) M/1419 MAR | NÉ QUELQUE PART (DE QUAL-QUER LUGAR), Mohamed Hamidi – França/Argélia 2013 (87’) M/14

21 MAR | THE JUDGE (O JUIZ), David Bo-bkin – E.U.A. 2014 (141’) M/14

26 MAR | 20.000 DAYS ON EARTH (NICK CAVE: 20.000 DIAS NA TERRA), Iain For-syth e Jane Pollard – Reino Unido 2014 (97’) M/12

Programação em Tavira aguarda filmes premiados nos Óscares

Enquanto esperamos para poder programar filmes como Boyhood, Birdman, The Theory of Everything, The Imitation Game, Whiplash, Still Alice e Citizen-four, todos galardoados com um ou mais óscares no passa-do dia 22 de Fevereiro, neste mês de Março apresentamos mais um programa diversifica-do, tanto em termos temáticos como ao nível de produção. Winter Sleep foi um dos nome-ados para o óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira. Como sabemos, ganhou Ida, já exibido no nosso Cineclu-be em Outubro passado.

Tal como em Fevereiro, também este mês iremos exi-bir um filme no sábado, dia 21: trata-se de The Judge (O Juiz), protagonizado pelo vete-rano Robert Duvall, realizador e actor principal do primeiro filme exibido pelo Cineclube

de Tavira a 8 de Abril 1999: The Apostle. Duvall completou 84 anos no início de Janeiro... Por favor também não per-cam Rio, Eu Te Amo (depois de Paris, Je T’aime e New York,

I Love You) e o fascinante do-cumentário ficcionado sobre (e da autoria de) Nick Cave, o músico e argumentista mul-tifacetado.

Cineclube de Tavira

Cena de Winter Sleep

fotos: d.r.

Cineclube de Faro Programação: cineclubefaro.blogspot.pt

IPJ | CICLO “1945 – 70 ANOS” | 21.30 HORAS

10 MAR | O ÚLTIMO DOS INJUSTOS, Claude Lanzmann, França/Áustria, 2013, 220’, M/12 17 MAR | O HOMEM DECENTE, Vanes-sa Lapa, Áustria/Israel, 2014, 94’, M/14 24 MAR | O ESPÍRITO DE 45, Ken Loach, Reino Unido, 2013, 94’, M/12 (TEATRO MUNICIPAL)31 MAR | DR. ESTRANHOAMOR, Stanley Kubrick, EUA/Reino Unido, 1964, 94’, M/12

IPJ | ARQUITETURAS FILM FESTIVAL | 21.30 HORAS(1€ - sócios / 3€ - Público em Geral | Filmes premiados em 2014 | Sessões com abertu-ras realizadas por convidados especiais)

12 MAR | ATENCÃO: ISTO PODE SER UM POEMA, Áureo Rosa and Luis H. Girarde; BICICLETA, Luís Vieira Campos; HOUSES FOR ALL, Gereon Wetzel19 MAR | RUA DA ESTRADA, Graça Casta-nheira; WHITE CHIMNEY, Jani Peltonen; PRECISE POETRY – LINA BO BARDI’S AR-CHITECTURE, Belinda Rukschcio26 MAR | THE SINGER, Rafael Navarro Mi-non; BERNARDES, Paulo de Barros, Gusta-vo Gama Rodrigues

Existe no sul de Portugal uma pai-sagem única e que faz parte da iden-tidade cultural algarvia. Numa visão aérea, vislumbram-se quadradinhos azuis e brancos: são as salinas ou os “jardins de sal” do Algarve.

O sal na tradição histórico-cultural algarvia

Os saberes e os sabores da região al-garvia sempre se relacionaram com o mar, o pescado e o seu recurso econó-mico endógeno - a salicultura - a pro-dução de sal. O sal, inerente à conserva de peixe capturado na própria costa, foi durante muito tempo exportado

para diversos países. Se até ao século XIX a salicultura foi um recurso rele-vante para o Algarve, a substituição do sal nas conservas de peixe pelo sistema em vácuo diminuiu a sua importância. De igual modo, o terramoto de 1755 provocou grandes estragos à atividade salineira da região, destruindo muitas salinas. Nos anos seguintes, até as sali-nas recuperarem, foi necessário com-prar sal à vizinha Espanha. No entanto, em 1790, metade da produção de sal no país era oriunda do Algarve, sendo o maior centro produtor de Portugal. Ao longo dos séculos, embora com oscilações, o Algarve nunca deixou de produzir sal de forma tradicional.

A realidade actuale perspetivas futuras

Nos dias de hoje, existem dezenas de “jardins de sal” espalhados pelo Algarve, sendo Tavira o maior centro produtor de sal, seguindo-se Castro Marim e Olhão. Embora surjam as sa-linas industriais, continuam a existir as tradicionais, em que o modo de produ-zir sal é o mesmo de há décadas atrás. A empresa “Necton”, de Olhão, imple-

mentou em 2008 o projecto “ECOSALT” - rotulagem ecológica do sal marinho e da flor de sal, criando assim um produ-to “eco-friendly”, agregando inovação e tradição. Tavira, com a empresa “Rui Simeão”, foi pioneira na certificação da flor de sal (14 hectares de exploração) e é constantemente  premiada mun-dialmente pela sua qualidade. Noutra zona do Algarve, Castro Marim, a em-presa “Salmarim”, está recentemente a valorizar o sal algarvio ao nível da flor de sal e plantas associadas, bem como,

produtos inovadores que estão a ser in-vestigados na Universidade do Algarve. A “salicórnia” é uma dessas plantas, cujo preço é de 25 euros por 100 gramas.

Desde o ano passado que foi criado também pela Cooperativa “Terras de Sal”, outro produto criativo: o sal em spray, um produto mais saudável que possui menor teor em sódio. Também a empresa VATEL lançou no ano passado a gama específica: “Sal marinho tradicio-nal do Algarve”, evidenciando a peculia-ridade deste recurso endógeno algarvio.

Os seculares ‘jardins de sal’ do Algarve, a salicultura como património cultural

Belmira AntunesInvestigadora de Turismoe Património CulturalDoutoranda em Turismo Convidada da AGECAL

d.r.

Inaugurada em 2014, também em Cas-tro Marim, a “Casa do Sal” é um espaço cultural que permite uma maior divul-gação cultural da salicultura tradicional algarvia. Todas estas iniciativas promo-vem a dinamização económico-cultural deste recurso, por vezes menosprezado.

O porquê da especificidade do sal algarvio!

As condições únicas do sul do país, ao nível orográfico (relevos pouco acentu-ados) e climatérico (a pouca chuva e vento e as temperaturas quentes), pro-porcionam um sal de elevada qualidade, contribuindo para a sua crescente valori-zação. O modo de produção tradicional, com a prevalência do recurso humano e não da maquinaria (o saber fazer dos marnotos), e as técnicas ancestrais usa-das são outro dos traços característicos da salicultura algarvia. Outra das mais--valias do sal algarvio é ser produzido em áreas protegidas, o que lhe confere um inequívoco carácter de qualidade ambiental.

Estes “jardins brancos”, locais de produção tradicional de sal, podem e devem ser conhecidos, visitados e di-vulgados por todos: entidades públicas e privadas, sociedade civil e visitantes. Descobrir a salicultura, como se conti-nua a produzir o sal, de modo ancestral, e ter orgulho nele é perpetuar a nossa especificidade cultural regional!

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06.03.2015 4 Cultura.Sul

Letras e Leituras

Stoner, John WilliamsÉ possível falhar-se a vida?

O romance Stoner, do profes-sor universitário John Williams, foi publicado em 1965 mas pa-rece ter ficado esquecido nas pra-teleiras desde então até que no ano de 2013 a livraria britânica Waterstones elegeu esta obra, em detrimento de outras muito mais recentes publicadas nesse mesmo ano, como o melhor li-vro do ano, e tem sido referen-ciado por diversos autores como uma obra-prima e um romance formidável.

Numa era de imediatismo, de popularidade, de conquistas fáceis, de facilitismo, o romance Stoner é uma obra lenta, densa, belamente escrita, que nos apa-nha desde os primeiros parágra-fos, apesar de não deixarmos de sentir como a vida da persona-gem parece enfadonha e triste.

Os primeiros dois parágrafos constituem uma espécie de obi-tuário da personagem principal:

«William Stoner entrou para a Universidade do Missouri em 1910, aos dezanove anos. Oito anos depois, no auge da Primei-ra Guerra Mundial, doutorou-se e aceitou um cargo de docente nessa mesma universidade, onde lecionou até morrer, em 1956. Não passou do grau de assisten-te e poucos alunos se lembravam de Stoner com nitidez» (pág. 7).

Depois desta introdução desa-nimadora, em que o leitor pode pensar que já tudo está dito so-bre a história deste homem, o autor envolve-nos a partir das linhas seguintes na verdadei-ra história de vida de William Stoner. Um fio que vai tecendo lentamente, com uma escrita elegante e cuidada, sem grandes embelezamentos além da arte da simplicidade.

Este jovem é filho de campo-neses. Nasceu em 1891 numa pequena quinta no centro do Missouri. Apesar de nunca ter se-quer alimentado essa esperança, os pais informam-no certo dia que abriu uma escola agrária na Universidade de Columbia e que ele irá fazer o curso durante os

próximos quatro anos. A pro-posta do pai é que ele arranje trabalho para poder pagar o quarto e a alimentação, pois vivem com dificuldades. Tanto que a primeira preocupação de William é perguntar ao pai se ele se consegue aguentar so-zinho com a quinta, ao que o pai lhe responde numa peque-na tirada que termina mais ou menos desta forma: «- (...) Vais prá universidade

este outono. A tua mãe e eu cá nos arranjamos.»

Foi o discurso mais longo que William ouvira da boca do pai. (pág. 10)».

É desta forma luminosa mas contida que a narrativa vai fluin-do... A vida de William sofre en-tão essa profunda mudança, incorrendo num curso que não foi escolhido por si. Mas é tam-bém durante esse curso que Stoner encontra a sua vocação. Além das cadeiras do curso da escola agrária, William é obri-gado como todos os alunos da universidade a frequentar igual-mente um semestre de Literatura Inglesa, disciplina lecionada pelo professor Archer Sloane. Este in-divíduo de meia-idade parecia «encarar a sua missão de docente com aparente desdém e despre-zo, como se percebesse que entre o seu conhecimento e aquilo que podia dizer existia um fosso tão profundo que nem valia a pena tentar transpô-lo.» (pág. 13). A maioria dos alunos teme-o ou antipatiza com ele.

Numa aula, o professor inter-pela William, a propósito de um soneto de Shakespeare, pergun-tando-lhe qual o significado do poema. Nesse momento perce-bemos que William, que não é propriamente descrito como um aluno brilhante, parece ficar sem palavras:

«William Stoner percebeu que estava a suster a respiração há vários instantes. Soltou o ar suavemente dos pulmões, com a noção exacerbada do movi-mento da roupa no seu corpo enquanto expirava. Desviou os olhos de Sloane para a sala em redor. A luz entrava enviesada pelas janelas e pousava nos ros-tos dos colegas, de tal maneira que parecia irradiar de dentro deles e, em contraste com a pe-numbra» (pág. 16).

A descrição continua desta forma, sem nunca termos aces-so aos pensamentos do jovem es-tudante, pois é particularmente

por uma caracterização indireta de todo o cenário envolvente que subtilmente se começa a indiciar que aquela busca deses-perada do rapaz pelas palavras certas que podem explicar por si só o significado de um soneto com mais de trezentos anos é, na verdade, o prenúncio de uma re-velação, de uma transformação interior que moldará o destino da personagem, um momento cuja profundidade lembra o ins-tantâneo literário em que Proust mergulha a madalena no chá e do qual brotam os seus sete li-vros de memórias.

William parece tomar final-mente consciência de si próprio. Os últimos dois anos da sua vida em que frequentou o curso afi-guram-se-lhe subitamente um sonho, como se tivesse passado por eles de forma autómata, com a mente completamente

desligada do corpo. Mas essa mesma verdade encontrada por William, que não é a do sentido do poema mas sim a da sua vida e destino, só lhe será revelada de-pois pelo professor:

«- Ainda não percebeu, Sr. Sto-ner? - perguntou Sloane. - Ainda não descobriu essa verdade so-bre si próprio, sobre a sua natu-reza? O senhor vai ser professor. (...)

- Como é que sabe? Como é que pode ter a certeza?

- É amor, Sr. Stoner - disse Slo-ane alegremente. - O senhor está enamorado. É tão simples quan-to isso.» (pág. 23).

E é a descoberta desse enamo-ramento pela literatura que guia o livro. Stoner é basicamente um livro, tendo aliás sido considera-do uma narrativa autobiográfi-ca, sobre o amor pela literatura e pelos livros bem como o amor

mundano pelo outro. Em última instância, é um caminho solitá-rio, apesar de ser o amor a bús-sola que orienta os seus passos, como se sente logo depois de ter-minar o curso, quando um fosso se cria entre ele e os pais, embora estes tenham aceitado a sua deci-são de prosseguir os estudos em letras. Depois do mestrado e do doutoramento, William torna-se leitor a tempo inteiro na univer-sidade. A partir daí, prossegue a sua carreira, de forma modesta, quase apagada. Da mesma for-ma que vive a sua vida no geral de forma estóica, pois ao casar-se com a bela e enigmática Edith, essa relação rapidamente se reve-la uma profunda desilusão. Edi-th é aliás uma das figuras mais crípticas do romance e apesar do seu comportamento neurótico e rancoroso para com o mari-do, William parece ser sempre demasiado passivo até para a odiar. A própria filha do casal ficará marcada por esta relação disfuncional.

Stoner encontrará de forma inesperada o verdadeiro amor quando se envolve com uma colega mais nova, Katherine, que, aliás, se revelará ser uma académica mais brilhante do que ele mas este caso amoroso irá alimentar guerras internas no seu meio académico. Nunca a voltará a ver, mesmo quando ela publica um livro, que lhe é dedicado. Stoner pode até ser considerada a história de al-guém que falhou a vida, talvez um livro mais destinado a aca-démicos ou amantes da litera-tura, mas não deixa de ser a his-tória de alguém que encontrou algum sentido na vida e toca profundamente no coração de qualquer leitor.

Paulo SerraInvestigador da UAlgassociado ao CLEPUL

fotos: d.r.

John Williams publicou o romance ‘Stoner’ em 1965

Ficha Técnica:

Direcção:GORDAAssociação Sócio-Cultural

Editor: Ricardo Claro

Paginaçãoe gestão de conteúdos:Postal do Algarve

Responsáveis pelas secções:• Artes visuais:

Saul de Jesus• Espaço AGECAL:

Jorge Queiroz• Espaço ALFA:

Raúl Grade Coelho• Espaço Cultura:

Direcção Regionalde Cultura do Algarve• Da minha biblioteca:

Adriana Nogueira• Grande ecrã:

Cineclube de FaroCineclube de Tavira

• Juventude, artes e ideias: Jady Batista

• Letras e literatura: Paulo Serra• Momento:

Ana Omelete• O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot• Panorâmica:

Ricardo Claro• Património:

Isabel Soares• Sala de leitura:

Paulo Pires• Um olhar sobre o património:

Alexandre Ferreira

Colaboradoresdesta edição:Belmira AntunesJoão EvaristoJosé Gameiro

Parceiros:Direcção Regional de Cultu-ra do Algarve, FNAC Forum Algarve

e-mail redacção:[email protected]

e-mail publicidade:[email protected]

on-line em: www.postal.pt

e-paper em::www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul

Tiragem:8.640 exemplares

Page 5: CULTURA.SUL 78 - 6 MAR 2015

06.03.2015  5Cultura.Sul

Panorâmica

The Legendary Tigerman promete entrega total no palco do TEMPO

Cultura.Sul (C.S) - Em “True” que ‘verdade’ é que se mostra ao público?

The Legendary Tigerman (TLT) - No início era um “statement” que tinha a ver com o meu percurso, com uma procura de verdade e amor por aquilo que faço. Mais tarde compreendi que era também um recado para mim mesmo, que tinha que estar atento para não me desviar do meu caminho.

C.S - Classificou “True” como um disco “mais negro, mas não desesperançado”. Este ‘mais negro’ a que se refere expressa--se como? Na comparação com trabalhos anteriores?

TLT - Tem a ver com alguns momen-tos mais pesados, quer do ponto de vis-ta pessoal, quer do ponto de vista social, creio, que vivi... Mas talvez isso estivesse mais na minha cabeça, acho que no fun-do o disco não é assim tão negro... Tem muito rockn’roll e momentos bastante bonitos.

C.S - E onde mora a esperança?TLT - A esperança reside na obra em si,

e aonde ela me leva. Consegui construir mais um disco, exactamente como que-ria, com arranjos tão bonitos da Rita Re-dshoes, do Filipe Melo e do João Cabrita, e ele chegou a tantas pessoas em todo o mundo e durante o ano passado conse-gui mostrá-lo em vários continentes para pessoas que sorriam muito no final dos

concertos. Tenho sido muito afortunado.

C.S - Afasta-se em “True” da ideia de solitário polifónico associada ao ‘one man band’, recorrendo à participação de outros artistas em palco. A escolha assenta na abertura de novos horizontes para a música de The Legendary Tiger-man ou numa escapadela ao percurso solitário para um regresso, mais tarde, ao formato que o destacou na cena mu-sical portuguesa?

TLT - Acho que com o “True”, de certa forma esgotei, neste momento, o meu interesse no formato one man band puro. Creio que neste momento tenho espaço para explorar outros formatos, e creio que será isso que vou fazer, para já.

C.S - A parceria com outros músicos serve antes de mais a sonoridade dos te-mas ou uma necessidade criativa?

TLT - Creio que um pouco de tudo, no que diz respeito aos arranjos do disco e mais tarde na apresentação ao vivo... é uma liberdade incrível poder escolher se toco sozinho, se toco em trio ou em quarteto, e vestir as canções de maneiras diferentes conforme essas escolhas.

C.S - Depois de uma tournée pela Eu-ropa por outros continentes, “True” apre-senta-se agora a Portugal, novamente, mas em salas de espectáculos e fora do circuito dos concertos de Verão, há dife-renças nesta ‘nova vida’ dos espectáculos decorrentes do disco?

TLT - Sim, como dizia antes, os espe-táculos desta tour estão a ser feitos em formato trio, o que nos permite ter uma grande liberdade de improvisação e ter um concerto diferente todas as noites. Provavelmente farei outras opções para os festivais de Verão e outros concertos

ao ar livre.

C.S - Como classifica ou sente a reac-ção dos diferentes públicos estrangeiros a quem apresentou “True”?

TLT - Foi incrível, em todo o lado. É inacreditável o que aconteceu este ano passado, com tanta gente nos concertos, Do México a Macau, a tour no Brasil, a volta aos palcos de França e concertos esgotados em Londres. E sentir que as pessoas estão ali pela música, fundamen-talmente, e saiem dos concertos a sorrir, é muito bom.

C.S - Quem já o viu em palco apercebe--se de uma espécie de ‘presença fora do tempo’ Como se estivesse num outro es-tado paralelo a ouvir música formidável. Há um êxtase solitário com o que se apre-senta em palco?

TLT - Não sei, há realmente algo de

mágico no palco e na relação que se constrói durante um concerto, algo que não é totalmente explicável, e raramente é similar. Não há nada melhor do que sentir essa união com o público, sentir que se levou as pessoas a outros sítios durante esse tempo que temos juntos.

C.S - Há um lado menos conhecido do Paulo Furtado na criação de bandas so-noras para cinema e de música para tea-tro. Como é que estabelece a comparação entre este trabalho e a versão mais notó-ria e pública de The Legendary Tigerman?

TLT - É um trabalho muito interes-sante, ter a música ao serviço de uma coisa maior, ter essa desfoque numa coisa que normalmente é o centro das atenções. Felizmente tenho feito cada vez mais, e cada vez mais se torna in-teressante para mim. E há uma capa-cidade que a música tem de ampliar a visão e os pensamentos dos outros, é surpreendente.

C.S - O que pode esperar o público do concerto de Portimão que já não tenha podido ver em anteriores apresentações de “True”?

TLT - Bem, podem esperar um con-certo de rockn’roll e uma entrega a 200%... O set tem mudado um pouco todas as noites, mas é uma espécie de viagem por todos os discos, até chegar ao “True”, claro.

C.S - Como é que antecipa o futuro próximo enquanto The Legendary Tiger-man, o que se segue nesta saga quase solitária?

TLT - Para já, muitos concertos, um pouco por todo o mundo, mais uma banda sonora para cinema em co-auto-ria com Rita Redshoes e dois projectos para teatro no final do ano, vai ser um ano pouco solitário, curiosamente.

Ricardo ClaroJornalista / Editor

The Legendary Tigerman, vai estar em Portimão já amanhã, no TEMPO

Com uma imagem de mar-ca que marcou indelevel-mente a cena musical por-tuguesa contemporânea, The Legendary Tigerman aka (also known as) Paulo Furtado é hoje um nome in-contornável da actualidade.É este artista singular que se apresenta amanhã no Teatro Municipal de Por-timão (TEMPO), num con-certo que pretende mostrar “True”, o seu último disco.Não se trata de uma obra nova, antes a incursão deste disco de The Legendary Ti-german por salas maiores do país, num périplo que se segue às apresentações do

músico durante os festivais de Verão e um pouco por todo o mundo.

Paulo Furtado promete, na entrevista que concedeu ao Cultura.Sul, “um concerto

de rockn’roll e uma entrega a 200%”.Na calha para a sala maior

de Portimão está “um set que tem mudado um pouco todas as noites, mas que é uma espécie de viagem por todos os discos, até chegar ao “True””.Já não teremos um puro one man band em palco, mas um The Legendary Tigerman di-verso, em partilha de criação e de palco.The Legendary Tigerman é muito mais do que uma mar-cante imagem camaleónica, é uma paleta de sonoridades entre os blues e o rockn’roll sempre pronta a surpreen-der. Desta feita, por terras do Arade, a dar o melhor de si para o público algarvio.

fotos: d.r.

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06.03.2015 6 Cultura.Sul

Artes visuais

Saul Neves de JesusProfessor catedrático da UAlg,Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

Um artista pode ser enquadrado em diferentes estilos artísticos?

Uma abordagem que mui-tas vezes é feita pelo público da arte diz respeito à categori-zação dos artistas num deter-minado movimento ou estilo, dizendo por exemplo que Van Gogh era impressionista, que Picasso era cubista, ou que Dali era Surrealista.

Isto não tem muito sentido, tal como não tem sentido limitar um artista a apenas um instru-mento ou técnica artística, pois a maioria dos artistas experimen-tam as várias técnicas existentes na sua época, numa perspetiva de experimentação no processo de produção artística.

Além disso, a tentativa de ca-tegorizar um artista num deter-minado movimento, pode não corresponder à análise que o próprio artista faz da sua obra e das influências que teve. Por exemplo, Frida Kahlo referiu em dada circunstância: “eu fui considerada surrealista. Isso não é correcto. Eu nunca pintei sonhos. O que eu retratei foi a minha realidade” (Stremmel, 2005). Também nos parece ter pouco sentido associar um ar-tista a apenas um movimento de arte concreto, porque a arte deve ser analisada pela época em que é produzida e tendo em con-ta que os artistas, na sua maioria, antes de assumirem a sua identi-dade artística, que marca a espe-cificidade e originalidade maior do seu trabalho, passaram pela influência de vários estilos e mo-vimentos que caracterizavam a arte durante o período em que a produziram. Por exemplo, Fran-cis Picabia terá sido influencia-do pelo impressionismo e pelo fauvismo, passou pelo cubismo e, já nos EUA, foi membro do

grupo Dada, tendo vindo a lan-çar o primeiro número da revis-ta dadaista “391” em Barcelona, enquanto posteriormente, em França, participou no movimen-to surrealista, vindo a criar com André Breton a revista “491”. Um outro exemplo de um artista que experienciou diversos estilos foi Miró, inicialmente influenciado nos seus trabalhos pelo impres-sionismo e pelo cubismo, reve-lou também uma clara influên-cia surrealista em “O Carnaval de Arlequim” (1924-25), sendo considerado que “os sonhos gra-vados na memória constituem a fonte de inspiração deste qua-dro” (Mink, 2006), enquanto nos seus quadros “Azul II” e “Azul III” (1961) denota a influência do ex-pressionismo abstracto, depois de uma estada nos EUA, e nas suas esculturas “Sua majestade” e “Jovem rapariga a evadir-se” (1968) parece aproximar-se da Pop Art. Inclusivamente, Wa-rhol terá referido o seguinte, em 1963: “Como é que você pode dizer que um estilo é melhor do que outro? Você deve ser capaz de ser um expressionista abs-trato na próxima semana, ou um artista pop, ou um realista, sem sentir que desistiu de algu-ma coisa” (Danto, 2011). O pró-prio Picasso chegou a afirmar: “Estou sempre em movimento (…) Fora com o estilo! Será que Deus tem um estilo específico?” (Gantefuhrer-Trier, 2005). Numa outra obra, em relação à diver-sidade de estilos que praticou e aos meios de produção artística que utilizou, afirmou o seguinte:

“Os diferentes estilos que usei na minha arte não podem ser consi-derados como uma evolução ou como degraus de um caminho para um ideal desconhecido na pintura. Tudo o que fiz foi feito para o presente e na esperança de que permaneça sempre no presente” (Walther, 2006).

Mesmo em relação à arte con-cetual, Godfrey (1998) afirmava que não pode ser definida em termos de alguma técnica ou estilo específico (“It can not be defined in terms of any medium or style. Art can take many for-ms: photographs, videos, posters, billboards, charts, plans and, es-pecially, language itsel”). Assim, esta atitude concetual traduz-se na procura da síntese através da imagem e na ênfase da ideia

prévia e do significado dos tra-balhos produzidos, podendo ser utilizadas as modalidades de expressão ou as técnicas que o artista considerar necessárias ou adequadas para aquilo que pretende partilhar com o públi-co, através da arte.

Inclusivamente, nos anos 90, surgiu um movimento de Arte Integrativa procurando contri-buir para acentuar a perspec-tiva de liberdade, flexibilidade e integração de várias técnicas ou formas de expressão no tra-balho artístico produzido (Cior-nai, 2004).

O mundo das artes visuais a

partir do final do século XX tem sido caracterizado pelo Plura-lismo, não havendo uma opção historicamente correta ou uma maneira específica de fazer arte. Conforme refere Artur Dan-to (2011), fazendo como que um balanço sobre o “estado da arte”: “Em 1984 publiquei um ensaio categoricamente cha-mado de “O fim da arte”, que argumentava não que a arte iria parar, mas que uma razão para fazer arte já não tinha validade. Senti que a minha visão signi-ficava uma libertação das tira-nias da história. Senti que haví-amos ingressado precisamente

naquele mundo de empreen-dimento pluralista (…) Pensei que havíamos entrado na fase pós-histórica da arte em que já não existia mais a possibilida-de da direção historicamente correta. Esse seria, então, um período de Pluralismo profun-do (…) Verdade ou falsidade são incompatíveis com Plura-lismo. Mas não há verdade ou falsidade na arte, o que signi-fica que o Pluralismo é, final-mente, inevitável”. No mesmo sentido pronuncia-se Santaella (2009), ao afirmar que a ca-racterística principal da arte contemporânea se encontra na “avalanche pluralista e ra-dicalmente diversificada de tendências estéticas”. A mes-ma autora conclui o seu artigo intitulado “O pluralismo pós--utópico da arte”, da seguinte forma: “Em suma: longe de ser sintomática de uma situação de caos, a multiplicidade das práticas artísticas contemporâ-neas está sendo, ao contrário, demonstrativa do grau de li-berdade de que goza o artista, desprendido das amarras da arte padronizada, engessada em parâmetros oficiais”.

Atualmente verifica-se uma grande diversidade de meios e de produtos artísticos, em que se destaca a utilização das novas tecnologias e a arte interativa. Por exemplo, em termos de arte interativa, em 1997, o artista americano Peter Halley havia criado uma insta-lação em que os espetadores usavam computadores para alterar as imagens e as cores que o artista tinha escolhido, levantando-se a questão sobre quem seria então o artista. Esta é mais uma questão atual, à qual o próprio mundo da arte procura responder, constituin-do este mais um desafio no seu processo de desenvolvimento...

Nota: Este artigo integra o livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo

e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus ([email protected])

Pintura “O Carnaval de Arlequim”, de Miró (1924-25)

fotos: d.r.

Escultura “Jovem rapariga a evadir-se”,de Miró (1968)Pintura “Azul II”, de Miró (1961)

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“HISTÓRIAS ANTIGAS DE VÁRIOS POVOS”Até 17 ABR | Pólo Museológico de Alte – LouléConjunto de esculturas em cerâmica, da autoria de Maya dos Termos, que “contam” histórias antigas de vários povos

“ESTAMOS TODOS?”7 MAR | 21.30 | Teatro das Figuras - FaroComédia com o incontornável José Pedro Gomes, que se desdobra em múltiplas personagens, cada uma mais hilariante que a outra

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06.03.2015  7Cultura.Sul

Momento

Bisca de Nove, num Jardim AlgarvioFoto de Ana Omelete

O mês de Março é dedicado às fotografias sobre Olhão.

É este o tema da mostra fo-tográfica ‘Visitar Concelhos Algarvios’.

Será assim ao longo de seis meses, prolongando-se até ao início do Verão.

Esta é uma forma de ver-mos os diferentes olhares que se têm sobre a região al-garvia. Fotografias de festas, monumentos, das ruas, da natureza e de tudo o que a vossa imaginação vos pedir.

Um concelho do Algarve em cada mês

Cada mês é dedicado a um município. Albufeira foi em Janeiro, Tavira em Feverei-ro, Olhão é agora em Março,

Portimão em Abril, Faro será dedicado em Maio e para fi-nalizar Lagos brilhará em Junho.

Um convite à participação de todos neste projecto

da Associação Livre Fotógrafos do Algarve

Todos podem participar. Basta enviar a foto do mês para [email protected] e identificar o nome do autor, bem como o número de sócio, caso seja. A mostra é aberta a sócios e a não sócios da Associação Livre Fotógrafos do Algarve - ALFA.

Todos os meses a ALFA destaca a foto do mês que será exibida em www.alfa.pt e no final, em Julho, serão entregues prémios aos parti-cipantes ,num encontro que se realizará na nossa sede em Faro. Está também prevista a exposicão coletiva de todas as fotos participantes por vários locais.

Pode aproveitar e fotogra-far agora Olhão! A sua parti-cipação é grátis!

Mostra fotográfica ‘Visitar Concelhos Algarvios’

Raúl Grade CoelhoMembro da ALFA

Espaço ALFA

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06.03.2015 8 Cultura.Sul

Comunicar o património

Um olhar sobre o património

Campanha incentivou os visitantes a tirar fotografias interagindo com as peças

d.r.

“Longe da vista, longe do co-ração”. Sendo um provérbio fa-talista, não deixa de conter em si uma certa dose de verdade quan-do aplicado ao património cultu-ral. E tão somente porque, ainda que conhecendo a existência de determinado elemento patrimo-nial, é unicamente através da sua

fruição que uma relação afectiva será construída.

E como é que deixamos de ter o património “longe da vista”? Comunicando-o!

Mas não criemos ilusões. Esta comunicação não pode ser feita ad hoc, sob pena de a sua efi-cácia ser diminuta ou até nula. Pelo contrário, deverá obedecer a uma estratégia, a qual deverá ser minuciosamente elaborada para atingir os efeitos pretendidos. E é aqui que o marketing, aplicado ao património num sentido mais estrito, com os seus processos e metodologias pode contribuir para um salto qualitativo, e por-que não afectivo, quer na per-

cepção que a comunidade tem acerca do seu património, quer na maneira como se relaciona com ele. Efectivamente, qual-quer que seja a intervenção no Património, esta não acaba com a intervenção física no edifício ou sítio. Ela continua de forma perene e constante, sendo que este momento poderá originar um rejuvenescimento do bem intervencionado, por forma a cativar a atenção daqueles com predisposição para tal, mas tam-bém, e aí reside o desafio, cativar os que desconhecem ou que não se interessam. Porque sem pesso-as, o património deixa de fazer sentido.

O marketing e as suas ferra-

mentas deverão ser incorpo-rados nas estratégias ligadas à salvaguarda, protecção e recu-peração do património cultural, contribuindo para a constituição de um corpo coeso e coerente (do elemento em si mesmo e da instituição que o administra), através de uma auto-análise que terá que definir a representação que se quer assumida pelo ele-mento patrimonial, com os seus pontos fortes e as suas fraquezas; qual o propósito da sua protec-ção; e a definição de como, e a que níveis, é que essa mesma protecção se pode efectivar. Por outro lado, também será neces-sária uma análise ao contexto

em que ele está inserido, sendo necessário um levantamento dos diversos públicos alvo, da sua concorrência, das opor-tunidades passíveis de serem aproveitadas, assim como das ameaças que podem prejudicar o seu desenvolvimento.

Concretizada esta primeira análise, já terá sido elaborado um panorama claro sobre o elemento e respectiva entida-de administradora e também do contexto onde está inserido, podendo assim ser definido um objectivo claro para a estratégia de marketing, o qual não pode-rá estar dissociado da razão de ser do elemento patrimonial e dos pressupostos que levaram

à determinação da necessidade da sua salvaguarda, protecção e recuperação.

O passo seguinte será o da ela-boração da estratégia de marke-ting, o qual iremos desenvolver na próxima edição.

Deixo no entanto o caro leitor com a imagem de uma campa-nha do Metropolitan Museum of Art que, quebrando alguns tabus, incentivou os seus visi-tantes a tirarem fotografias inte-ragindo ou mimetizando com as peças expostas por forma a criar a campanha “It’s Time we Met” (2009), incentivando desta forma a que o museu fosse (re)descoberto pela comunidade.

(continuação)

Virginia Woolf personificou bem a andarilha urbana, con-fessando que a cidade de Lon-dres lhe devolvia inteiramente a intensidade com que a ela se entregava: “Londres atrai perpe-tuamente, estimula, dá-me uma peça, uma história e um poema, sem qualquer incómodo para além de andar pelas ruas… Ca-minhar sozinha em Londres é o meu maior descanso”.

Continuando o périplo pela sua obra Londres [que abordá-mos parcialmente no último ar-tigo], chegamos à Câmara dos Comuns, espaço que, nas suas palavras, nada apresenta de “ve-nerável, ou de gasto pelo tempo, ou de musical, ou de cerimonio-so”, afigurando-se como uma as-sembleia de aspecto informal e desleixado em que os políticos, aparentemente, pouco se dife-renciam dos cidadãos comuns. A escritora compara mesmo os Comuns a um “bando de pássa-ros num campo de terra lavrada. Nunca pousam senão por breves minutos; alguns passam o tem-po a esvoaçar, enquanto outros parecem estar sempre de regres-so aos seus assentos”. Sobre essa alegre e por vezes viva disputa por “uma semente, um verme ou algum grão recém-desenter-rado”, Virginia vai ainda mais longe na sua visão finamente satírica e desencantada relati-vamente ao mundo da política:

[…] todos eles estão bem alimen-tados e tiveram, sem dúvida, uma excelente educação. Mas com a sua tagarelice, as suas gargalhadas, o seu humor, a sua impaciência e o seu irrespeito, não formam uma assembleia mais judiciosa, ou mais digna, ou mais respeitável do que qualquer agrupamento de cidadãos reunidos para tratar de assuntos paroquiais ou atribuir prémios em feiras de gado.

Mas a lucidez sensível de Wo-olf fá-la ver mais além e mais fundo, captando a psicologia (in-temporal, dizemos nós) de um

lugar/contexto que tem tanto de simples como de complexo, feito de contradições, códigos tácitos, estranheza, labirintos e daquela “extraordinária irracionalidade” que, no fundo, subjaz às relações humanas e à vida em geral:

Sentimos que os Comuns consti-tuem um corpo com carácter pró-prio, que existe há muito tempo e tem as suas leis e liberdades pró-prias. É irreverente, à sua maneira; e como tal, presumimos nós, há-de

ser também reverente, à sua manei-ra. Obedece, de certo modo, a um código próprio. Quem desrespeitar este código será impiedosamente punido; quem o respeitar será fa-cilmente perdoado. Mas aquilo que se condena e aquilo que se perdoa é segredo a que só tem acesso quem conhece esta Câmara por dentro. A única coisa de que podemos estar certos é que um segredo existe.

Esse “indefinível atributo” é, na opinião da literata, uma condição fundamental para o sucesso nesse mundo, pois a virtude, a paixão, a finura de espírito, a invectiva, o ta-lento e a bravura, só por isso, não parecem ser suficientes, e até se afiguram descartáveis: “O homem excepcional seria morto à bicada por todos estes alegres pardais”. Woolf cons-tata mesmo o fim dos dias do indivíduo e do poder pesso-al, que deram, assim, lugar às comissões obcecadas em despachar com celeridade os assuntos humanos. E ironiza, apelando à reconstrução do mundo como um esplêndido edifício público e ao abando-no do erguer de estátuas onde se inscrevem virtudes impos-síveis.

Nas entrelinhas vislumbra-se a crítica face a quem atrasa o avanço da democracia e afasta os cidadãos do sonho e do pro-gresso a que aspiram. Daí Vir-ginia desejar que a democra-cia chegasse apenas dali a cem anos, quando estivessem todos debaixo de terra; ou então que algum “estupendo golpe de génio” conseguisse conciliar o eterno binómio: o vasto e ho-mogéneo edifício/o poderoso

“sistema” vs. o pequeno, frágil e singular indivíduo.

Para fechar a viagem, o re-trato apaixonado de uma fi-gura feminina: a Sra. Crowe. Oscar Wilde dizia que um ho-mem que consegue dominar uma conversação em Londres é capaz de dominar o mundo, e a afirmação bem poderia aplicar-se a esta anfitriã cuja arte maior era a conversa – despida de intimidades, par-ticularidades e de demasiada profundidade/inteligência – sobre as novidades, numa espécie de coleccionismo de relações humanas.

No fundo, o ritual realizado todos os dias da semana, en-tre as cinco e as sete, na sua sala de estar era uma “versão nobilitada da bisbilhotice de aldeia”, que parecia reduzir a vasta metrópole à dimensão de uma aldeia com igreja, so-lar e umas vinte e cinco casas. Saramago escreveu no Memo-rial do Convento que, além dos sonhos, é a conversa das mu-lheres que segura o mundo na sua órbita (?). A verdade é que, para Woolf, sem a Sra. Crowe Londres nunca mais seria a mesma…

Como uma onda no “mar” de Londres

A escritora Virginia Woolf

d.r.

Paulo PiresProgramador culturalno Município de [email protected]

Sala de leitura

Alexandre FerreiraLicenciado em PatrimónioCultural pela UAlg

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06.03.2015  9Cultura.Sul

O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Março

Pedro [email protected]

Primavera

Em março reinventa-se o tempo num novo ciclo que se abre. A hora dos relógios será força-da a alterar-se. Mas é o equinócio que anuncia a mudança para a estação em que as temperatu-ras voltam a subir nas suas mínimas e máximas. E o eclipse solar total trará uma das maiores marés dos últimos anos… e consigo mais vida, mais liberdade, mais esperança, e muita poesia.

«Sízigia»A colectânea de poesia e fotografia da edi-

tora CanalSonora (nov, 2014), que mostra 37 autores que se movem na região, terá hoje 6 de março, em Faro pelas 18h, na biblioteca municipal António Ramos Rosa, o fecho de um ciclo de apresentações públicas, a car-go do seu editor Pedro Jubilot e conta com a presença de vários dos autores, que farão leituras dos textos, como este ‘Oxímoro’ de Luís Ene:

O poema é uma prática de silêncio. O poema, como cada uma das suas palavras, tem sempre um lado de fora e um lado de dentro. O poema nunca é parte de coisa alguma, o poema é sempre um todo.

Ele sabia que assim é.Ele sabiaque só o grito do poemapermiteverdadeiramenteouvir o silêncioque sempre o compõe.

João de Deus

Nasceu a 8 de Março de 1830, na terra algar-via de São Bartolomeu de Messines, como filho de modestos comerciantes e foi batizado sob o nome de João de Deus de Nogueira Ramos - aquele que viria a ser considerado o poeta do amor: «Vi esse corpo de ave,/ Que parece que vai/ Levado como o Sol ou como a Lua/ Sem

encontrar beleza igual à sua;/Majestoso e su-ave,/Que surpreende e atrai!» (Adoração)

Simone de Beauvoir

A pensadora francesa (Paris,1908-1986) es-teve em Faro (diz-se que tomou chá no Café Aliança) para a conferência “A Vida Literária em França, da Ocupação à Libertação”, pronun-ciada a 9 de Março de 1945 no Instituto Fran-cês, a convite do Prof. Lionel de Roulet, obten-

do da imprensa local elogiosas referências…. Noutro inverno igualmente tempestuoso sen-tei-me por ali também a tomar café, naquelas saudosas mesas, e escrevi-lhe esta microbiome-tria: « existir. mas muito mais do que existir, é amar. o sangue do outro. do tempo de se liber-tarem no mundo as ideias presas na garganta, de tudo o que escorre do segundo sexo, para poder gritar pedaços de suor, lamber as pró-prias lágrimas. existindo, vive-se. e vivendo, ama-se, sofre-se e existe-se em essência.»…

E Se Não For?É o primeiro livro de Marco Mackaaij que nas-ceu nos Países Baixos em 1970 e vive em Portu-gal desde 1995. Este professor de Matemática na Universidade do Algarve diz que escrever poe-sia é «Pensar com os poros, suar com o cérebro». O lançamento do livro pela editora CanalSonora terá lugar no dia 14 de março pelas 17h, em Armação de Pera, no Olivalmar Beach Café, com apresentação de Paulo Pires.

Viver sem poesia? Faço-otodos os dias, a escrever poemas.De resto nunca.

Retratos Cinéticos

É uma obra híbrida, que junta livro de fo-tografia e edição discográfica num só objecto. Idealizado pelo trio Orblua, dos músicos Carlos Norton, Nuno Murta e Inês Graça, conta ainda com a sensibilidade fotográfica de Jorge Jubi-lot. Será apresentado no teatro das Figuras em Faro a 19 de março. Segundo a banda de Faro este disco com 11 temas onde são convidados Janita Salomé e os Gaiteiros de Lisboa, celebra a região algarvia, sendo cada tema uma imagem do Algarve, da cultura e das tradições, das suas

gentes e dos seus costumes. Uma visão contem-porânea da identidade algarvia, procurando no património as raízes da essência do povo e da cultura do Algarve.

Poesia & CompanhiaCom a organização da ArQuente, este festival

regressa à cidade velha de Faro, estendendo-se por diversos locais, desde a sede da associação a espaços como a Fábrica da Cerveja, os claustros do Museu Municipal e restaurantes da zona da Sé. Esta segunda edição que decorrerá entre 19 e 22 de Março terá exposições, performance, debate, música, leituras, concerto spoken word, poetas convidados como Vasco Gato, Beatriz Hierro Lopez ou Luna Miguel e uma feira de livro de poesia.

Dia Mundial da Poesia 21 de Março

A Casa Álvaro de Campos em Tavira celebra o dia com uma série de eventos ligados à poe-sia que inclui instalação poética, exposição de arte digital, apresentação de livro, leitura aberta de poesia, e concerto com O Poema (A)Corda, grupo com base artística em Nuno Mangas--Viegas e João Sousa, que se estreia no Algarve. Na Casa do Sal em Castro Marim, será apresen-tada a colecção de textos poéticos de 23 autores intitulada ‘Apontamentos da Margem’, onde participam entre outros Pedro Oliveira Tava-res, Lena Cristina ou João Pereira que apontou assim:

Quem me dera que o grito que prometo / no po-ema que não escrevi, soubesse à transcendência da espuma/das tardes que, no raiar das manhãs, são os átomos / de um compósito que viaja para o nome que /não é a pessoa que sou.

fotos: d.r.

AGENDAR

“BUSTOS DE PRESIDENTES DA REPÚBLICA”16 MAR a 17 ABR | Paços do Concelho de LouléExposição da totalidade dos Presidentes da Repúbli-ca, da autoria do barrista barcelense Joaquim Esteves, mestre que se notabilizou em termos artísticos, na olaria, figurado e na caricatura

“CONCERTO PELA ORQUESTRA CLÁSSICA DO SUL”15 MAR | 15.00 | Teatro das Figuras - FaroNeste concerto ‘Santo António, O Santo Casamen-teiro’ terá o protagonismo e a Orquestra Clássica do Sul será conduzida pelo Maestro John Avery, que é também o autor da obra

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06.03.2015 10 Cultura.Sul

Espaço ao Património

Entre a comunidade e o museu, a cultura sai à rua!

Observatórios culturais aten-tos às transformações sociais, os museus projectam as pequenas e as grandes sínteses históricas das suas comunidades, salva-guardando e divulgando a di-versidade e a imensa riqueza temática do seu património cultural e natural.

Nos últimos anos, tem-se vindo a registar no nosso País uma crescente importância em relação ao Património Cultural Imaterial (PCI), de acordo com o estipulado pela Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Património Cultural Imate-rial de 2003, que o define como “(…) as práticas, representações, expressões, conhecimentos e apti-dões – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços cultu-rais que lhe estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural”.

Neste contexto, cabe aos mu-seus um papel privilegiado para o estudo, divulgação, e valoriza-ção do PCI, devendo conferir prioridade ao contacto directo com as comunidades e os gru-pos sociais que habitam os seus territórios de actuação e os espa-ços identitários das suas vivên-cias, sempre em permanente evolução.

No caso do Museu de Porti-mão, que se define como Museu de Sociedade, Território e Identi-dade, o trabalho de investigação

direcciona-se prioritariamente para o seu Município, procu-rando traduzir as dinâmicas existentes nessa geografia física e humana, entre a Serra de Mon-chique e o Oceano Atlântico, no intenso cruzamento histórico das culturas mediterrânicas que marcaram esta região.

Quando em Maio de 2008, as portas do Museu de Portimão se abriram ao público no edifício da antiga fábrica de conservas “Feu Hermanos”, na margem direita do rio Arade, já o Muni-cípio de Portimão (e a própria região algarvia) tinha sofrido, a partir da década de 70, do século XX, uma significativa alteração económica, social e cultural do seu modelo de desenvolvimento local que, de um inicial contexto agrícola, passando pelo aprovei-tamento mais intenso dos seus recursos marítimos, pela indús-tria conserveira e alguma acti-vidade portuária, daria lugar à realidade do turismo e à oferta dos serviços a ele associados.

Face a este novo cenário de mudança, para um paradigma de acentuada monocultura, ha-via que estabelecer prioridades na pesquisa e recolha patrimo-nial, uma vez que, actividades até então imprescindíveis para o crescimento da cidade, sobre-tudo a partir de finais do século XIX e início do século XX, esta-vam a ser “absorvidos” por uma nova realidade.

“O Museu bate à portada nossa história”

Neste âmbito, surge o pro-jecto antropológico “O Museu bate à porta da nossa história”, como resposta às necessidades de iniciar um trabalho perma-nente de recolha etnográfica do património cultural (material e imaterial), a desenvolver prio-

ritariamente junto das comuni-dades rural e marítima, nos seus bairros e residências, de forma a estabelecer uma maior ligação com estes autênticos “professo-res não formais”, com os seus testemunhos, representações e histórias de vida.

Esta actividade e os resultados obtidos permitiram a construção de um mapa sócio laboral, bas-tante diversificado, do Município e das suas três freguesias (Porti-mão, Mexilhoeira Grande e Al-vor), uma vez que o ponto de partida de todas estas temáticas de investigação, foi o “trabalho”, o universo laboral subjacente a cada uma das actividades men-cionadas, com um enfoque quer na descrição de processos ope-ratórios e saberes-fazer, quer nas condições de trabalho, vivências e sociabilidades relacionadas com as profissões, artes, ofícios e actividades exercidas.

A cultura sai à rua!

Apesar da forte representação das actividades ligadas ao mar, como a pesca, a indústria con-serveira ou a construção naval, a investigação e a recolha de cam-po foi igualmente desenvolvida e alargada à matriz rural da fre-guesia da Mexilhoeira Grande, onde se contemplaram várias valências patrimoniais, desde as arqueológicas, arquitectóni-cas, etnográficas e imateriais, procurando-se igualmente co-nhecer que tipo de actividades e modos de ruralidade ainda hoje estão presentes, qual o seu calendário natural e as transfor-mações verificadas.

Nesse sentido e através do re-ferido projecto “O Museu bate à porta da nossa história”, proce-deu-se a uma intensa recolha et-nográfica naquela freguesia, na qual se procuraram identificar

memórias de profissões, sabe-res, artes e ofícios, técnicas e ma-teriais e formas de arquitectura popular, economia doméstica, tecnologias ligadas às antigas práticas agrícolas, tradição oral, testemunhos e narrativas sobre a utilização quotidiana dos re-cursos naturais e da ria de Alvor, crenças, mezinhas, práticas so-ciais e festividades.

Com base nos resultados alcançados, fruto da contínua interacção entre a equipa do Museu e a comunidade da Mexilhoeira Grande, ganhou forma a ideia de reunir a di-versidade do património cul-tural, os seus principais agen-tes e protagonistas locais, o seu melhor conhecimento e apropriação pública, des-ta realidade patrimonial tão significativa, mas simultanea-mente algo dispersa e pouco perceptível, na sua dimensão

e autenticidade. Retomando o espírito das

antigas festas de trabalho colectivas e das reuniões po-pulares da comunidade, de-terminadas pelo calendário rural, esta iniciativa e reencon-tro entre gerações, designado “A nossa cultura sai à rua” foi a forma de celebrar em Se-tembro de 2014, as Jornadas Europeias do Património, no contexto do próprio espaço exterior da vila da Mexilhoei-ra Grande, ao longo das suas ruas e no largo da Igreja.

Deste modo foi possível percorrer as ruas da freguesia, descobrir a história das suas gentes, as formas e cores da ar-quitectura popular, as antigas profissões, conhecer as artes, os saberes e provar os sabores herdados e que durante déca-das fazem parte do dia-a-dia de diferentes gerações. Oficinas de taipa e adobe, pinturas com pigmentos naturais e cal, cerâ-mica, moinhos de papel, jogos ambientais e lúdicos tradicio-nais, como o pião, os berlindes, a malha, a corda, a macaca, os jogos do burro e das cinco pe-drinhas, puderam ser utilizados e mais facilmente apreendidos.

A moagem e o pão, emprei-ta, vime, cortiça, “atabua”, ren-das, ervas e mezinhas, doçaria, medronho, mel, vinho, quei-jo, biscoitos, foram também alguns exemplos desses sabo-res e trabalhos apresentados.

No final da noite, com a recriação da festa popular da desfolhada do milho, com os seus rituais musicais, a que não faltaram os tradicionais biscoitos fritos, terminaria este primeiro encontro entre a comunidade, a sua cultura e o património local, com a pro-messa de se voltarem a reunir em 2015.

José GameiroDirector científicodo Museu de Portimão

Ritual da desfolhada do milho, ao início da noite, no adro da Igreja da Mexilhoeira Grande

fotos: d.r.

A concertina a acompanhar a desfolhadaTrabalhando a empreita de palma Construindo uma cadeira com a “atabua”

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06.03.2015  11Cultura.Sul

Milton Hatoum – Dois IrmãosDa minha biblioteca

Adriana NogueiraClassicistaProfessora da Univ. do [email protected]

Até há pouco tempo nunca tinha lido nada de Milton Ha-toum. Mas, emprestado por uma amiga, li Dois Irmãos e pergun-tei-me por que razão não tinha ouvido falar dele antes. Às vezes ando distraída e deixo passar várias informações literárias em revistas, jornais e rádio (televisão não tenho). Deve ter sido numa dessas alturas que o seu nome foi falado, até porque as notí-cias das suas vitórias de prémios literários foram difundidas no nosso país.

Tendo passado por diversas profissões (arquiteto, professor de literatura, cronista), Milton Hatoum não é um desconhecido em Portugal e muito menos no Brasil. Por cá, a sua obra (quatro romances e um livro de contos) está publicada na Cotovia (Relato de um certo Oriente – 1999; Dois irmãos – 2000; Cinzas do norte – 2005 e os contos A cidade ilhada – 2009) e na Teorema (Órfãos do El Dourado – 2009). No Brasil, to-dos os romances foram premia-dos: três deles com o prestigiado prémio Jabuti de Literatura e um, Cinzas do norte, com o importan-te Prémio Portugal Telecom de Literatura.

Dois irmãos é um livro peque-no, mas muito intenso. Depois de terminarmos a leitura ainda ficamos com as personagens e os seus dramas de vida na nossa memória. Passado em Manaus, acompanha a história da famí-lia de Zana e Halim, um casal de libaneses emigrados no Brasil. A ação acompanha décadas da família (os gémeos teriam nas-cido em 1925), principalmente do período que medeia a Segun-da Guerra até à ditadura militar, pelo olhar de uma personagem secundária, que sabe de muitas destas histórias em segunda mão, através das conversas com

diversas personagens, principal-mente Halim e a índia Domingas que, vimos a saber, é sua mãe. Tudo nos é revelado aos poucos, como se o narrador (cujo nome, Nael, só sabemos quase no fim) nos fosse contando à medida que se vai lembrando, recuando e avançando no relato.

Caim e Abel

Na cultura ocidental, desa-venças entre dois irmãos fazem--nos pensar em Caim e Abel. De alguma maneira, estes dois gémeos da história, Yaqub e Omar, filhos de Halim e Zana, apesar de pertencentes a uma cultura diferente (a libanesa, já contaminada com a brasileira), também têm ciúmes um do ou-tro e competem, não pelo amor de Deus, mas pelo amor das mulheres da sua vida. Essa dis-puta que sempre existiu entre os dois extremou-se depois do afastamento de Yaqub, por uns anos, para o Líbano, também por causa de uma mulher. Ciu-mento, e apenas com 13 anos, Omar rasga-lhe a cara. Essa cica-triz, que Yaqub nunca ocultou, é um traço distintivo, também simbólico, da diferença exterior

que este quer marcar em relação ao gémeo, de quem não poderia ser, interiormente, mais distinto: ele é bom aluno, outro é expul-so da escola, este é calado, outro expansivo, este é independente e outro dependente. Mas, apesar de todos os defeitos apontados a Omar, também vemos nele uma vítima, um prisioneiro do amor das mulheres da família.

As mulheres de Omar

O título do livro remete para as personagens que motivam a história, os gémeos, mas tam-bém se poderia chamar Amor de mãe, visto que a personagem mais forte é a de Zana. Apesar de tentar esconder e não ad-mitir a sua preferência por um dos filhos, estabelece com o mais novo, o Caçula (Omar), uma relação de tal modo do-entia que, não fosse a paixão que tem pelo marido ser ma-nifesta, dir-se-ia quase incestu-osa. Com o seu amor sufoca-o, dificultando-lhe a relação com a restante família e, principal-mente, com outras mulheres: «Todas foram vítimas de Zana. Todas, menos duas (…). As ou-tras, assanhadas e oferecidas,

não foram páreo para Zana, nem de longe ameaçavam o amor da mãe. Nem chegavam a duelar, não foi preciso. Além disso, não tinham nome, quer dizer, o Caçula só as chama-va de queridinha ou princesa, para deleite da rainha-mãe, jamais destronada. Mas a mu-lher daquela noite tinha um nome: Dália. (…) Só ela atraía os olhares (…) e nós – aturdidos com os giros sensuais daquele corpo que nos desviou da noite –, nós invejávamos o Caçula, o gémeo disputado. Mas Omar cometia o erro de trair a mu-lher que nunca o havia traído» (p.76). Mais do que a questão que separa os dois irmãos, este é o maior drama desta história: uma mãe que não consegue li-bertar o filho, que não o deixa crescer, com um amor asfixian-te e destruidor.

Além da mãe, Omar tem de lidar também com o amor de Rânia, a irmã mais nova, que não encontra nenhum com-panheiro que consiga compe-tir com os irmãos, por quem nutre um amor infinito. Tam-bém esse amor doentio, sem o ser efetivamente, parece in-cestuoso, como o narrador dá

a entender, neste caso mais claramente: quando o Caçula queria dinheiro, ia-lho pedir. Ela rabujava, mas «Ele ouvia a ladainha e começava a acari-ciar a irmã: um beijo nas mãos um afago no pescoço, uma lambida no lóbulo de cada orelha. Enlaçava-a, carregava--a no colo, olhando para ela como um conquistador cheio de desejo. As palavras que ado-raria ouvir de um homem ela ouviu de Omar, ‘o irmão que nunca ficou longe de ti, que nunca te abandonou, mana’, ele sussurrava. Rânia se derre-tia, sensual e manhosa, e a voz dela, mais pausada, ia cedendo um pouquinho, até balbuciar, concordar: Está bem, mano, te dou uma mesadinha, assim tu te divertes por aí» (p.133).

A outra mulher da casa é Domingas, que nunca saiu da casa que a acolheu, qua-se criança, como criada, es-tabelecendo uma relação de lealdade inquestionada. O narrador vem a descobrir que seu filho é neto de Zana e Halim: «Eu não sabia nada de mim, como vim ao mun-do, de onde tinha vindo (…). Minha infância, sem nenhum

sinal da origem. Era como es-quecer uma criança dentro de um barco num rio deser-to, até que uma das margens o acolhe. Anos depois, des-confiei: um dos gémeos era meu pai» (p.54).

Halim

Sobre um livro chamado Dois irmãos, pouco aqui es-crevo sobre eles. Pode parecer estranho, mas faço-o inten-cionalmente, para não tirar à leitura o prazer da descoberta. Por isso, escolhi, para fechar este texto, escrever algumas palavras sobre o pai, a única pessoa que vai transmitindo algum equilíbrio e sensatez, com desejos e anseios sim-ples, que tudo o que sempre quis na vida foi amar a sua mulher, viver tranquilamente (sem filhos, o que não foi pos-sível), conviver com os amigos e aproveitar sossegadamen-te os bons momentos que a existência pode proporcio-nar. Não sendo este um livro feliz, esta personagem é a que conseguiu viver mais perto da felicidade. Só que a «vida vai andando em linha reta, de re-pente dá uma cambalhota, a linha dá um nó sem ponta. Foi assim…» (p.135).

Dois irmãos, de Milton Hatoum, narra uma história de ódio familiar

fotos: d.r.

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“CORPO RESTRITO”Até 3 MAI | Museu Municipal de FaroExposição fotográfica de Vasco Célio, com imagens inéditas dos objectos sobre modelos, Jóias da Foto-grafia, com o objectivo de colocar em diálogo os no-vos conceitos da Joalharia Contemporânea de Autor

“CERÂMICAS DE ALCOUTIM”Até 26 MAR | Casa dos Condes - AlcoutimExposição mostra uma retrospectiva do trabalho realizado pela artista plástica Isabel Ferreira ao lon-go de 18 anos da sua actividade como ceramista

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