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CRISE DE LEGITIMIDADE DO ESTADO E NOVAS TECNOLOGIAS DE
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO
Rodrigo Fernandes das Neves∗
RESUMO
A humanidade passa por evidentes transformações culturais, econômicas e sociais,
determinadas principalmente pela difusão de novas tecnologias de informação e
comunicação. Essa verdadeira revolução informacional determinou a redução do poder
do Estado-nação, uma vez que ele concorre com fluxos internacionais financeiros,
produtivos e de identidades fragmentárias religiosos, étnicos, ambientais etc. Aquelas
tecnologias, contudo, podem igualmente ser utilizadas para enriquecer a esfera pública e
legitimar o Estado-nação como interlocutor privilegiado na promoção da democracia em
nossa atual condição pós-moderna.
PALAVRA-CHAVE: LEGITIMAÇÃO - PÓS-MODERNIDADE - ESTADO-NAÇÃO
– DEMOCRACIA - TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO.
ABSTRACT
The humanity passes through evidents cultural, economic and social transformations,
mainly determined by the diffusion of new information and communication
technologies. This information revolution determined the reduction of the power of the
Nation-state caused by international flows of finance and production and religious,
ethnic and environmental fragmentary identities. Those technologies, however, can
equally be used to enrich the public-sphere and to legitimize Nation-State as privileged
interlocutor in the promotion of the democracy in our current post-modern condition.
KEYWORDS: LEGITIMATION - POST-MODERNITY - NATION-STATE –
DEMOCRACY - NEW INFORMATION AND COMMUNICATION
TECNOLOGIES.
∗ Procurador do Estado do Acre, mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected] (www.rodrigoneves.com).
1
INTRODUÇÃO
O título do artigo, “Crise de Legitimidade do Estado e Novas Tecnologias de
Informação e Comunicação”, deixa subentendida, apesar de manter aberta, a questão da
ligação entre a crise do Estado-nação e as tecnologias de comunicação.
Contudo, o título também pode referir-se a uma outra forma de intersecção
do Estado com tecnologia, dessa vez em uma visão mais otimista: a utilização de novas
maneiras de informar e comunicar como instrumento democrático, de fortalecimento da
cidadania e de enriquecimento do espaço público.
Para falar sobre estes temas, neste artigo fazemos uma breve descrição de
teorias sociológicas que podem nos ajudar a entender nosso mundo contemporâneo e a
compreender a forma com que as tecnologias interferem nas estruturas do sistema e do
mundo da vida. Cuida-se do que intitulamos uma “condição pós-moderna” do mundo
contemporâneo, a que o Estado deve fazer frente.
Após a digreção histórica, e estabelecido o prisma teórico adotado, passamos
a descrever, com maior especificidade, a maneira como surgiu o Estado Moderno e as
razões que o levaram à crise de legitimidade a que assistimos hoje.
Questionamo-nos: a fragmentação da sociedade em interesses bastante
específicos e a transnacionalização dos movimentos sociais, assim como ocorre com os
mercados e as finanças globalizadas, determinará o fim do Estado-nação? Não nos
furtamos desse tema. Apresentamos os contornos do quadro e as perspectivas para o
Estado, o que acaba nos levando ao próximo assunto, qual seja, a utilização da própria
tecnologia de informação e comunicação para auxiliá-lo a resgatar, ao menos em parte,
a legitimidade perdida, bem como permitir seu reposicionamento na rede mundial de
fluxos de poder.
É assim que, na seqüência, fazemos um relato sintético de experiências
práticas de democracia eletrônica na Finlândia e na Itália, dentre um universo já grande
no mundo, buscando estabelecer alguns requisitos mínimos para que iniciativas desse
tipo possam alcançar o sucesso.
Tentamos, dessa maneira, colaborar para o debate sobre o tema, tão atual e
necessário no meio acadêmico, para que possamos servir como centro irradiador de
idéias e concepções que nos ajudem a evoluir como sociedade, bem como consolidar
processos democráticos que respeitem a opinião pública e nos garantam a participação
constante nas deliberações estatais.
2
1 CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
Para compreensão de nosso tema, entendo que primeiramente devemos
contextualizar os questionamentos que fazemos em relação ao Estado-Nação, levando
em consideração a relação de poder em que o mesmo está inserido, inclusive diante do
mercado e da sociedade. Temos como ponto de partida a aceitação de que vivemos, a
humanidade, uma nova etapa de organização social, econômica e cultural, que nos leva
a uma alteração das bases e princípios com os quais devemos lidar nos nossos estudos.
Nesse sentido, diversas teorias sociológicas têm procurado explicar os acontecimentos
atuais, e a elas nos referiremos a seguir.
É importante essa compreensão histórica para que possamos demonstrar as
raízes da crise de legitimidade do Estado a que fazemos menção, bem como para que
nos auxilie na compreensão das possibilidades de sua relegitimação diante da sociedade
civil.
Krishan Kumar, professor de ciência política e social, sintetizou em sua obra
“Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna” as principais tendências teóricas sobre o
mundo contemporâneo. Dentre as várias teorias, ele destaca: a percepção dos
fenômenos atuais como uma “sociedade da informação”; como resultado de
modificações estruturais no capitalismo, que corresponderia a uma teoria “pós-fordista”;
e uma concepção “pós-moderna”, esta eclética e influenciada, dentre outras, por aquelas
duas visões.
A convergência entre essas teorias consiste no reconhecimento do papel
fundamental das novas tecnologias de informação e comunicação (em uma condição
técnico-instrumental) nesse processo de criação de um novo cenário.
Vejamos, portanto, um pouco de cada uma dessas teorias.
1.1 Sociedade da informação
Esta formulação teórica tem por base os escritos de autores como Alvim
Tofler e Daniel Bell, dentre outros, que mantêm, em suas formulações, a fé no
Ilimunismo, na racionalidade e no progresso, em uma visão que pode ser caracterizada
como “otimista” da utilização de novas tecnologias de informação e comunicação –
TICs.
A teoria da sociedade da informação é um desdobramento de pensamentos
originados ainda na década de 1960, então chamados de pós-industrialismo, e sustenta a
plausibilidade de grandes possibilidades emancipadoras trazidas pela propagação da
informação e do conhecimento.
3
De acordo com Daniel Bell, o que gerou a sociedade da informação foi a
convergência explosiva de computador e telecomunicações, que acabou com a antiga
distinção entre processamento e disseminação de conhecimentos. Ressalta o autor que
as sociedades do passado foram basicamente limitadas pelo espaço e pelo tempo, e que
a coesão somente era possível por meio de uma autoridade burocrática e política central
que tivesse por base um território, assim como por meio de apropriação homogênea da
história e das tradições1. Essa apropriação e homogeinização deram origem à formação
dos Estados constitucionais contemporâneos, bem como determinaram sua inicial
legitimação perante a sociedade.
Yoneji Masuda, por sua vez, sustenta que a tecnologia da comunicação por
computadores tornará possível dispensar a política e o governo centralizados. Em seu
lugar, surgiria uma democracia participativa e sistemas de "administração local pelos
cidadãos"2, formulação esta que determina a sua identificação com a teoria da
“sociedade da informação”.
Alega Kumar, contudo, que há uma percepção ingênua desses autores com
relação aos poderes reinantes, salientando que, ao contrário do que imaginam os
formuladores da teoria, as novas tecnologias estão sendo aplicadas em uma estrutura
política e econômica que confirma e reforça os padrões de dominação existentes, em
vez de gerar novos3.
Ou seja, a sociedade da informação não teria evoluído de maneira neutra e
isenta, mas moldada conforme certos interesses sociais e políticos4, em uma ambiente
claramente capitalista e (neo)liberal.
Todavia, Kumar, quando se refere à sociedade da informação, apresenta suas
percepções com base no pensamento dos primeiros autores sobre o tema, que tinham
uma opinião exageradamente otimista e romantizada sobre as mudanças já mencionadas
e que muitas vezes apelavam para futurologia.
O Autor, assim, não capta o que Manuel Castells, após a edição do Livro de
Kumar, viria a caracterizar como "sociedade informacional", diferenciando-a do
conceito de “sociedade da informação”, que não seria suficiente para explicar processos
que se aprofundaram exponencialmente com a difusão da internet e as novas 1 BELL, Daniel. Apud: KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 22. 2 MASUDA, Yoneji. Apud: KUMAR, op. cit., p. 27. 3 KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 44. 4 KUMAR, op. cit., p. 46.
4
possibilidades de comunicação que hoje se apresentam.
Castells concorda que o capitalismo fornece a matéria prima desse novo
panorama e também que existem possibilidades emancipadoras, mas ressalta que estão
dadas as bases de um processo já iniciado de formação de uma nova ordem mundial,
cujo denominador comum, presente tanto na teoria do pós-fordismo, como na da
sociedade da informação e no pós-modernismo, é a formação de redes.
Ele entende estar ocorrendo uma verdadeira revolução tecnológica,
caracterizada pela aplicação do conhecimento tanto para geração de conhecimento
quanto para novos dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um
ciclo de realimentação cumulativo entre inovação e seu uso5. Entende o autor que, por
influência desse novo sistema comunicacional, mediado por interesses sociais, políticas
governamentais e estratégias de negócios, surge uma nova cultura que intitula a “cultura
da virtualidade real”6.
O mundo, impactado pelas tecnologias de comunicação, passa, portanto, por
um processo de mundança semelhante à Revolução Industrial. As empresas, não mais
são organizadas em hierarquias verticais e rígidas, mas possuem estruturas cada vez
mais horizontais e fragmentadas. O mercado financeiro transnacional é totalmente
interligado, a ponto de qualquer desequilíbrio em um de seus nós ter conseqüência por
toda a rede. Enfim, governos, grupos de interesses, ONGs, mídia, dinheiro, produção e
cultura estão interligadas em torno de fluxos de informação, formando uma grande rede
interdependente, uma metarrede.
Sob uma perspectiva histórica, a sociedade em rede representa uma
transformação qualitativa da experiência humana7.
1.2 Pós-Fordismo
Ainda na esteira das teorias sociais que tentam explicar as transformações
que vivemos, Kumar cita o pós-fordismo, ressaltando desde logo que tal compreensão
da realidade é um pensamento influenciado fortemente por princípios marxistas,
configurando portanto uma análise de esquerda quanto aos fenômenos em estudo.
Os pós-fordistas, em especial os ingleses, agregados ao movimento chamado
"Novos Tempos", sustentam que as transformações recentes do capitalismo sinalizam o
fim da produção em massa e, portanto, do “fordismo” como modelo de produção. 5 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Tradução: Roneide Venâncio Majer – (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 69. 6 CASTELLS, A Sociedade em Rede, op. cit., p. 415. 7 CASTELLS, ibidem, p. 573.
5
O modelo fordista de produção em massa, com base taylorista de
organização científica do trabalho, estaria sendo substituído por produções
personalizadas e em pequena escala, no que os pós-fordistas chamam de "especialização
flexível". Isso resultaria em um retorno das pessoas para suas casas ou até mesmo uma
reorganização autônoma do trabalho, trincando princípios que sustentam o sistema
capitalista. Tal novel configuração do trabalho poderia tornar a vida das pessoas mais
agradável e mais satisfatória. Há quem diga, portanto, ser uma tentativa romântica de
buscar uma vitória marxista nas entranhas do capitalismo.
De qualquer forma, sustentam os pós-fordistas que as razões que teriam
levado àquela mencionada “especialização flexível” seria uma demanda do mercado por
produtos em quantidades e qualidades imprevisíveis, a diversificação do mercado em
razão de sua mundialização, o ritmo frenético de transformação tecnológica e a ineficaz
rigidez dos sistemas de produção em massa diante da nova economia8.
Como exemplo emblemático da ocorrência dessa modificação no modo de
produção é sempre citada a organização empresarial da chamada “terceira Itália”, nas
últimas décadas do Séc. XX, um fenômeno ocorrido em uma região específica do norte
da Itália com a proliferação de pequenas indústrias organizadas em rede de produções
flexíveis, interligadas e diversificadas, portando alta-tecnologia e fornecendo produtos
personalizados para o mercado mundial.
Kumar reflete sobre o tema e, com base no exemplo japonês, tenta
demonstrar que o que os pós-fordistas chamam de "especialização flexível", que seria
representativo da autonomia fragmentária dos novos tempos, também pode ocorrer por
meio de grandes empresas, ou por elas capitaneadas, o que é corroborado por Castells9.
A característica primeira do pós-fordismo, portanto, não seria suficiente para justificar a
concepção de superação da Era Moderna.
Os pós-fordistas sustentam, por outro lado, que essas características
determinam a existência de um "capitalismo desorganizado", cuja manifestação de
instabilidades e inquietações sugeririam mudanças qualitativas na cultura e política no
futuro. Exemplificam essas mudanças, na economia, com o surgimento de mercados e
empresas globais e declínio de empresas nacionais e da Nação-estado; nas relações
políticas e industriais, com a fragmentação de classes sociais e declínio de partidos
baseados em classe, bem como o surgimento de movimentos baseados em região, etnia,
8 CASTELLS, A Sociedade em Rede, op. cit., p. 212. 9 CASTELLS, ibidem, p. 214.
6
sexo etc; na cultura e ideologia, com a privatização da vida doméstica e de atividades de
laser.
Nesse sentido, Lash e Urry10 sustentam que as transformações sociais estão
ocorrendo “a partir de cima, de baixo e de dentro. Tudo o que é sólido no capitalismo
organizado - classe, indústria, cidades, coletividade, nação-estado e mesmo o mundo -
se desmancha no ar”.
Os intelectuais vinculados ao movimento inglês de esquerda “Novos
Tempos”, entendem que a globalização em si - a origem de tantas mudanças que estão levando ao pós-
fordismo - deve ser interpretada como sendo tanto uma ameaça como uma
oportunidade. A globalização ergue a política e a cultura acima do nível
provinciano da nação-estado e sugere novas conexões e interdependências
entre todos os povos do mundo11.
Para Kumar, contudo, os pós-fordistas confundem efeitos com causas, já que
o que consideram como fatos primários são na verdade produtos derivados ou
dependentes de processos menos visíveis e desconsiderados pela teoria. Ressalta,
entretanto, que a crítica em relação à teoria não pode impedir o reconhecimento de que
coisas novas estão acontecendo. Como poderíamos então descrever a situação da
humanidade hoje?
1.3 Pós-Modernidade. Superação da Modernidade?
A condição histórica em que o Estado-Nação, assim como nós, está inserido
hoje gera imensas polêmicas, a começar por uma longa discussão acadêmica sobre a
ocorrência do fim modernidade e suas conseqüências, colocando filósofos como
Habermas e Derrida em campos opostos.
De quaquer forma, a discussão acerca do tema passa, necessariamente, pela
conceituação da própria modernidade, uma vez a idéia de pós-modernidade contém em
si a essência do que pretende superar (a modernidade).
Podemos, assim, iniciar dizendo que a modernidade está ligada a uma
percepção particular de tempo que, baseada numa idéia cristã de progressão linear e
irreversível, opõe-se a uma idéia anterior de tempo natural, cíclico, característico de um
tempo antigo12. Essa idéia de progresso é elemento determinante para formação da idéia
contemporânea de modernidade. 10 LASH, Scott; URRY, John. Apud: KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 62. 11 KUMAR, op. cit. p. 65. 12 KUMAR, ibidem, p. 81.
7
Buscando identificar o momento da configuração do início histórico da
modernidade, Kumar relembra que a Renascença ainda estava presa ao tempo natural e,
não obstante ter recuperado conhecimentos clássicos da Era Antiga, ultrapassando o
obscurantismo da Idade Média, nada criou de novo. A história, até o Séc. XVIII, era um
manancial de exemplos uniformes e imutáveis, em uma noção atemporal do
conhecimento.
Entretanto, é justamente na segunda metade do Séc. XVIII que se tem as
bases para a formação, com base no Iluminismo, da idéia de progresso. Os tempos
modernos começavam a tomar vida. Os intelectuais já não se consideravam mais cópias
menores dos antigos filósofos. Ao contrário, proclamavam o rompimento completo com
o passado e o estabelecimento de um novo começo baseado em novos princípios13.
Todo esse processo teve por resultado a primeira revolução moderna da
história: a Francesa. Ela representou o início simbólico da modernidade, bem como
moldou sua forma e consciência características14.
Posteriormente, com um maior desenvolvimento do capitalismo, as imagens
determinadas pela revolução industrial vincularam-se tão intimamente ao próprio
modernismo que desde então toda alteração nas estruturas de produção industrial induz
a uma idéia, não necessariamente correta, de modificação de mesma ordem em relação à
modernidade15. Isso importa no sentido de mantermos uma visão crítica dessas novas
teorias, para não sermos iludidos pela aparência e confundir causas com efeitos, como
ocorreu com o pós-fordismo.
De qualquer forma, devemos lembrar que, desde seu começo, a modernidade
buscou o rompimento com a Era Antiga, com o obscurantismo da Idade Média e com a
tradição, mas paradoxalmente criando uma nova tradição, a “tradição do novo”. Na
modernidade há uma interminável série de mudanças de estilos e de modas, ou seja, o
estabelecimento de um culto às inovações sem fim16.
Há, agora, um movimento diferente, em que a condição temporal e
geográfica do conhecimento é simplesmente desprezada, e a fragmentação do
espaço/tempo é levada ao extremo, seja na criação de comunidades, na produção de
bens, na prestação de serviços, na produção cultural ou na participação política.
Ora: Todas essas mudanças estruturais tão radicais não determinariam o fim 13 KUMAR, op. cit., p. 91. 14 KUMAR, ibidem, p. 93. 15 KUMAR, ibidem, p. 95. 16 KUMAR, ibidem, p. 111.
8
da modernidade? A profundidade das alterações não configurariam a pós-modernidade?
Hoje, é certo, não há mais nenhuma força que oriente e controle a forma e o significado
da sociedade. Há simplesmente um fluxo aleatório, sem direção17. Estamos, assim, em
uma nova Era ou trata-se apenas da revitalização da própria modernidade, cujos
princípios foram perdidos e agora resgatados?
Esses questionamentos são possíveis hoje principalmente porque nos
permitimos um rompimento com aquela citada “tradição do novo” e com a própria idéia
de tempo, na busca de uma síntese do velho e do novo, do longe e do perto. A
ambivalência da (pós) modernidade é evidente.
De qualquer forma, diz Kumar, o que não há de se negar é uma profunda
transformação das sociedades industriais, o que merece um novo nome, que pode ser
simplesmente “moderno” ou “moderno tardio” ou ainda “pós-moderno” ou qualquer
outro. O que se deve é levar em consideração é a nova situação das sociedades,
impactadas pelas tecnologias de comunicação, em uma mudança geral na visão da
civilização e uma nova condição de desenvolvimento da cultura e da organização da
sociedade.
Nesse contexo, onde as TIC’s exercem papel fundamental, estas podem ser
vistas tanto como uma ampliação da capacidade e do poder humanos quanto uma
supressão do indivíduo nas redes de informação18. Bauman, por exemplo, diz tratarem-
se, essas novas tecnologias, de “uma estreita fenda na parede, não de um portal”19, no
que parecer ser uma visão pessimista das possibilidades democráticas decorrentes.
Por outro lado, os pós-modernistas sustentam que a democracia não pode se
basear em uma idéia “essencialista” de um agente racional unitário e universal da teoria
clássica, mas devemos aceitar a pluralidade de possibilidades e identidades
diferenciadas que constituem os indivíduos, abandonando o Estado Nacional como
única arena da política20.
Assim, nada de organizações e instituições permanentes na rígida estrutura
do Estado-nação, mas redes frouxamente ligadas, inventando suas próprias vidas e
descobrindo os próprios meios de expressá-las21. É a idéia da total desconstrução para
um novo rearranjo de nosso universo. 17 KUMAR, op. cit., p. 113. 18 KUMAR, ibidem, p. 138. 19 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 79. 20 KUMAR, op. cit., p. 142. 21 KUMAR, ibidem, p. 147.
9
Essa concepção de desconstrução, contida na idéia de pós-modernidade,
vincula-se mais fortemente aos chamados pós-estruturalistas, que pregam a necessidade
de reconhecimento do fim das “meta-narrativas”, que são os grandes esquemas
histórico-filosóficos de progresso da modernidade e que tentam explicar genericamente
as regras que nos regem. Os pós-estruturalistas, todavia, não aceitam serem definidos
como pós-modernistas, em um curioso fenômeno de o pós-modernismo possuir poucos
membros que assumem explicitamente a posição22.
Os intelectuais, de qualquer maneira, compreendem, a partir desse ponto de
vista, que não têm o papel de estabelecer regras absolutas para a sociedade, mas sim de
agir como intérpretes de costumes e culturas específicas23.
Assim, portanto, é o mundo pós-moderno: um presente eterno, sem origem,
destino, passado ou futuro, onde tudo é temporário e mutável ou tem o caráter de formas
locais de conhecimento e experiência24.
Sem ingressar na questão de filiação a qual ou tal teoria, podemos considerar
que estamos vivendo em uma “condição pós-moderna”, reconhecendo as intensas
mudanças nas estruturas da modernidade decorrentes, principalmente, da difusão das
novas tecnologias de informação e comunicação por todos os campos da vida humana.
2 CRISE DE LEGITIMIDADE. FIM DO ESTADO-NAÇÃO?
Manuel Castells questiona-se em relação ao Estado contemporâneo: ele está
destituído de poder? 25 Da mesma forma, Zygmunt Bauman pergunta: depois da Nação-
estado, o quê?26 Em um primeiro momento, interrogações desse tipo nos levam a uma
grande preocupação quanto ao papel futuro do Estado como fonte de regras e mediador
de conflitos. Diante de todas as mudanças sociais, culturais e econômicas já
comentadas, estaria o Estado-Nação realmente fadado à extinção?
A pergunta possui uma resposta aparentemente ambígua: ao mesmo tempo
em que devemos reconhecer a decadência do poder do Estado, não há dúvidas de que o
mesmo mantém sua influência27. Vejamos.
Castells sustenta que a “identidade nacional” não é pré-existente ao Estado,
22 KUMAR, op. cit., p. 143. 23 KUMAR, ibidem, p. 151. 24 KUMAR, ibidem, p. 157. 25 CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 2). São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 288. 26 BAUMAN, Globalização, p. 63. 27 CASTELLS, O Poder da Identidade, op. cit., p. 287.
10
mas por ele criada; a Nação, portanto, é um produto do Estado. Tal ocorreu por meio da
apreensão do tempo histórico e apropriação da tradição pela organização estatal28.
Cuidou-se, em verdade, de um processo de homogeinização da população, necessária à
estabilidade institucional.
Conforme salienta Tilly, “a construção da nação é somente um dos possíveis
resultados da construção do Estado”29. Ainda segundo o autor, em consonância com que
disse Castells, os Estados em formação se apoderavam da cultura local, como por
exemplo a adoção de uma religião estatal, e expulsavam as minorias, estabeleciam uma
língua nacional bem como uma organização de instrução pública30, na itenção de
moldar a sociedade e unificar o poder em um determinado território.
Mais recentemente, e talvez em uma visão um pouco diferente da exposta
acima, com a maior politização da população, a consolidação do Estado moderno neste
século se deu por meio de uma união dialética de interesses entre a sociedade e as
autoridades do Estado, no reconhecimento da necessidade de uma ordem institucional
estável para regulação da convivência. Assim, “o status de cidadão e de pertencimento à
comunidade política nacional torna-se a principal identidade dos indivíduos e o foco
para mobilização ou união de interesses”31.
Entretanto, em se reconhecendo a condição pós-moderna de nosso mundo,
podemos dizer que a relação entre Estado e sociedade se modifica. A Nação-estado hoje
já não tem total controle de seus súditos, e a maior comunicabilidade e mobilidade física
e virtual dos cidadãos vinculados a um território subvertem a ordem e desafiam as
autoridades e as regras.
Como salienta Habermas, a internet ao mesmo tempo ampliou e fragmentou
os nexos de comunicação. Dessa maneira, ela produz, por um lado, efeito subversivo em
regimes autoritários à esfera pública e, por outro, enfraquece as conquistas das esferas
28 CASTELLS, O Poder da Identidade, op. cit., p. 287. 29 TILLY, Charles. Apud: KOSLINSKI, Mariane. Da Modernidade à Globalidade: novos espaços para a análise da esfera da ação da sociedade? In: SORJ, Bila (Coord.). Enfoques on line: Revista eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. – V.4, n.1 (jul.2005). Rio de Janeiro: PPGSA, 2005. p. 10. 30 TILLY, idem. 31 KOSLINSKI, Mariane. Da Modernidade à Globalidade: novos espaços para a análise da esfera da ação da sociedade? In: SORJ, Bila (Coord.). Enfoques on line: Revista eletrônica dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. – V.4, n.1 (jul.2005). Rio de Janeiro: PPGSA, 2005. p. 12.
11
públicas tradicionais32, normalmente representadas justamente pelo Estado. Esse é um
fenômeno que acelera o processo de minimizaão de sua (Estado) legitimidade
orgininária como monopólio do espaço para exercício da política.
O controle de um território, portanto, tradicionalmente exercido pelo Estado,
hoje é desafiado por multiplos fluxos de poder. A globalização econômica, midiática e
comunicacional retirou muitos dos instrumentos de dominação estatal. A exemplo, o
trânsito quase imediato de recursos financeiros internacionais cria dificuldades cada vez
maiores para um controle sobre a economia interna por parte dos governos nacionais.
Dessa forma, a única tarefa permitida ao Estado, e que se epera que assuma,
é a garantia de um “orçamento equilibrado”, conforme nos lembra Bauman33. De acordo
com o autor, esse enfraquecimento da Nação-estado é, justamente, o que a Nova Ordem
Mundial precisa para se sustentar e reproduzir, em um processo onde a fragmentação
política e a globalização econômica são aliados íntimos e conspiradores afinados34.
Além disso, a transnacionalização da produção de bens e serviços deixa
pouco espaço para o Estado-nação criar diferenças substanciais de benefícios sociais,
diminuindo, portanto, as possibilidades de legitimação perante a sociedade mediante a
aplicação de adequadas políticas públicas35.
Bauman, para evidenciar que vivemos realmente em uma nova fase da
modernidade, nos lembra que a antiga divisão do mundo em dois blocos ideológicos
encobria as diferenças e desviava a atenção em relação às divergências mais profundas
do globo, já que todo espaço fazia parte, de uma forma ou de outra, da “ordem global
das coisas”36.
Com o Grande Cisma terminado, o mundo é agora um campo de forças
dispersas e díspares em uma vastidão modernamente inculta, decorrente da fraqueza e
impotência dos agentes ordenadores habituais37. “Em poucas palavaras: ninguém parece
estar no controle agora” 38.
Bauman afirma, ainda, que o Estado, que teve como origem justamente a
avocação a si do direito de impor regras e determinar a ordem em um certo território,
32 HABERMAS, Jürgen. O Caos da Esfera Pública. Folha de São Paulo, São Paulo. 13 ago. 2006. Caderno Mais! pp. 4-5. 33 BAUMAN, Globalização, 74. 34 BAUMAN, ibidem, p. 77. 35 CASTELLS, O Poder da Identidade, op. cit., p. 297. 36 BAUMAN, Globalização, op. cit., p. 66. 37 BAUMAN, ibidem, p. 68. 38 BAUMAN, ibidem, p. 66.
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pelas razões anteriormente expostas, encontra-se em verdadeira crise39.
Por outro lado, o controle sobre a mídia, que sempre serviu como suporte ao
controle do Estado, tem sofrido enorme segmentação, diversificação e interatividade,
dificultando o controle por regulamentações estabelecidas tradicionalmente. A
comunicação mediada por computador igualmente está fora do alcance do Estado, em
uma nova era de comunicação extraterritorial, o que tem sido um verdadeiro pesadelo
para o Estado-Nação40.
Além dessas questões externas, e avançando nos pensamentos, é de se
perceber que, internamente, a fragmentação da sociedade em múltiplas identidades
heterogêneas gera demandas por serviços e políticas públicas muito específicas,
induzindo o Estado-Nação a descentralizar a administração, uma vez que não tem como
lidar com essa imensa diversidade de interesses. Essa dificuldade do Estado-nação de
atender simultaneamente essas exigências internas e externas leva ao que Habermas
denomina “crise de legitimação”41.
Exemplo da compreensão desse fenômeno inclusive pelo próprio Estado
aparece no relatório do órgão de pesquisa e formulação estratégica norte-americano, o
National Intelligence Council – NIC, que se preocupa em formular projeções dos
processos de mudanças da ordem mundial e seus efeitos para seu país. Afirma-se no
relatório: A crescente conectividade também será acompanhada pela proliferação de
comunidades virtuais transnacionais, tendência que pode complicar a capacidade dos
países e das instituições globais de gerar consenso e de pôr em prática as decisões
tomadas, podendo até mesmo ver desafiadas a sua legitimidade e autoridade. Grupos
baseados em afinidades religiosas, culturais, étnicas ou quaisquer outras podem ficar
divididos entre a lealdade ao seu país ou às outras identidades. Esses grupos terão
um considerável poder para influenciar em âmbito nacional, e até mesmo global, as
decisões políticas sobre um amplo espectro de temas – o que é, normalmente, uma
função dos governos.42
Não temos dúvidas, portanto, de que as características multipolares de poder
em que o Estado está inserido deixam evidentes os desafios que lhe são impostos. Nesse
contexto, os limites de sua legitimidade são expressos, por exemplo, quando se discute a
39 BAUMAN, ibidem, p. 68. 40 CASTELLS, O Poder da Identidade, op. cit., p. 302. 41 CASTELLS, ibidem, p. 317. 42 ESTADOS UNIDOS. Conselho de Inteligência Nacional. Mapeando o Futuro Global: relatório do projeto 2020 do Conselho Nacional de Inteligência. In: O Relatório da CIA: como será o mundo em 2020. São Paulo, Ediouro: 2006. p. 171.
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administração do meio ambiente planetário, onde redes transnacionais de interesse
sobrepujam a má articulação interestatal, colocando em cheque a capacidade do Estado-
nação de lidar com questões consideradas como as mais importantes de nosso tempo,
que configuram o que podemos definir, em sentido lato, como direitos coletivos.
Assim, espremido entre as limitações internacionais e as pressões internas de
grupos de interesse cada vez mais fragmentados, o Estado cede parte de sua soberania
para formação de blocos multinacionais (garantindo assim sua durabilidade), bem como
busca descentralizar suas atividades típicas internas a administrações locais. Essa
tentativa de relegitimação acaba tendo, paradoxalmente, um alto preço pela redução da
importância do Estado na rede de fluxos de poder, comprometendo sua legitimidade e
agravando ainda mais sua ineficácia e incapacidade43.
Podemos dizer que os governos nacionais são não só muito pequenos para
enfrentar as forças globais como também muito grandes para administrar a vida das
pessoas44.
Como se vê, o Estado encontra-se submetido à uma rede de fontes de
autoridade da qual é apenas um dos nós, sofrendo uma concorrência de várias formas de
poder: ONGs, redes criminosas, movimentos étnicos, redes de capital e de produção,
religiões, mídia, mecado financeiro etc.
Torna-se, assim, complexo o papel do Estado, que tem que se equilibrar nos
âmbitos global e local em uma geometria variável. Passa, portanto, de sujeito soberano
a ator estratégico, permanecendo a exercer influência considerável, mas sem o poder de,
por si só, buscar soluções isoladas da coordenação com macroforças supranacionais e de
microprocessos subnacionais45.
Respondendo ao questionamento inicial quanto ao fim do Estado-nação,
ressaltamos que de fato ele perdeu grande parte de seu poder econômico,
permanecendo, contudo, com relativo controle sobre os sujeitos. Nas palavras de
Cancellier de Olivo, a “vantagem competitiva do Estado em relação a seus parceiros
privados é que ele ainda tem na representação política a sua fonte de legitimidade”46.
3 ESTADO E NOVAS TECNOLOGIAS: OPORTUNIDADES.
43 CASTELLS, O Poder da Identidade, op. cit., p. 314. 44 CASTELLS, ibidem, p. 319. 45 CASTELLS, ibidem, p. 357. 46 OLIVO, Luis. Reglobalização do Estado e da Sociedade em Rede na Era do Acesso. Florianópolis: Boiteux, 2004. p. 119.
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Como visto acima, governar hoje é um teatro onde nenhum ator detém
sozinho os meios para resolver os problemas demandados pela sociedade47,
posicionamento, aliás, corroborado por Castells e Bauman. Tendo em vista as novas
tecnologias de informação e comunicação, o Estado, não obstante ser um nó
privilegiado, passou a concorrer com diversas outras fontes de poder em uma imensa
rede de fluxos e conexões econômicas, políticas, culturais e sociais.
O que buscaremos verificar a seguir, de forma breve em razão da própria
limitação do artigo, são as possibilidades abertas aos próprios Estados e que podem
fomentar um processo de relegitimação baseado no enriquecimento da esfera pública e
fortalecimento da democracia participativa.
Isso porque as mesmas tecnologias que geraram as modificações na
sociedade e na economia, e que forçaram a perda de poder por parte do Estado, podem
permiti-lo trazer para si (em um exemplo da ambivalência pós-moderna) os movimentos
caracterizados por interesses específicos, estabelecendo-se como instituição mediadora
do diálogo político, ainda que fragmentado. Ou seja, fortalecer-se como nó dentro da
rede.
Uma visão romântica dessas possibilidades, porém, não está em nosso
horizonte. Ao contrário, reconhecemos que há tantos obstáculos e impecílios quanto
esperança no fortalecimento do cidadania por meio das TIC’s. É verdade que alguns
associam, muitas vezes deterministicamente, e de forma exagerada, a disponibilização
da tecnologia comunicacional com a qualificação da esfera pública, atrapalhando uma
análise honesta dessa complexa mudança social. Todavia, uma compreensão realista do
tema não deve nos impedir de imaginar soluções criativas, mesmo que complexas.
Algumas visões pessimistas, aliás, dificultam, muitas vezes, uma discussão
sobre o que se acostumou chamar de “governança eletrônica” – referência a um governo
virtual - e que muitas vezes é perturbada por uma compreensão ideológica do termo.
Isso porque o Banco Mundial (vinculado aos interesses das nações desenvolvidas),
juntamente com outros bancos regionais de fomento, tem incentivado por todo o mundo
em desenvolvimento a implantação de programas de “governança”, identificados com
princípios economicamente liberais (ou neoliberais), onde o escopo da decisão
47 STOKER, Gerry. Apud: FREY, Klaus. Experiências de Cidades Européias e Algumas Lições para Países em Desenvolvimento. In: EISENBERG, José; CEPIK, Marco (orgs.). Internet e Política: teoria e prática da democracia eletrônica. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 143.
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democrática é limitado pelas expectativas dos mercados48, o que tem gerado fortes
reações.
Todavia, é de se lembrar que o termo também é utilizado em um sentido
mais emancipatório, tendo relação com novas práticas de atividades em rede, parcerias e
fóruns deliberativos, ainda que fora do Estado. Assim entendida, a governança
eletrônica também pode ser vista como uma possibilidade de relegitimação do sistema
político por meio de novos canais de participação da sociedade no espaço público49.
Os Estados podem, dessa maneira, utilizar as novas tecnologias não somente
para fins de melhoria da eficiência administrativa e oferecimento on-line de serviços
ordinariamente prestados. Há muito mais a se fazer.
Aliás, Lawson50 reforça essa idéia de que as possibilidades são muito mais
extensas do que aquelas que os governos costumam implantar em abordagens
geralmente conservadoras, no que ele chama de “visão fraca” da governança eletrônica.
Isso porque, na verdade, as tecnologias de informação e comunicação podem ser
catalizadoras - além de serviços públicos personalizados, holísticos, efetivos e criativos
- da formação de redes sociais e políticas, ou seja, de novas formas de participação
democrática51.
De qualquer maneira, é bom ressaltar que a tecnologia, por si, não é
suficiente para garantir o sucesso de um sistema, mantido pelo Estado, de participação
política por meio de comunicações mediadas por computador, já que sua eficácia
depende da existência de um firme propósito governamental, além de requisitos
essenciais como um amplo acesso a meios digitais de comunicação, campanhas
educativas e criação de comunidades virtuais com conteúdos adequados e atraentes.
Experiências em várias partes do mundo têm buscado, por meio das
tecnologias digitais, uma aproximação com os movimentos fragmentários da sociedade,
na tentativa de participar diretamente do processo de autoformação da sociedade e
alcançar subsídios para a própria atuação nos meios políticos tradicionais, ainda que
apenas em âmbitos locais.
Frey exemplifica experiências formuladas em algumas cidades, como a rede
Iperbole, de Bolonha, e a rede NuvaNet, de Espoo, na Finlândia. Nesta última, um site e 48 FREY, Klaus. Experiências de Cidades Européias e Algumas Lições para Países em Desenvolvimento. In: EISENBERG, José; CEPIK, Marco (orgs.). Internet e Política: teoria e prática da democracia eletrônica. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 144. 49 FREY, op. cit., p. 145. 50 FREY, ibidem, p. 147. 51 LAWSON, George. Apud: FREY, op. cit., p. 147.
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uma revista on-line permitem a participação de jovens da cidade em uma plataforma
chamada IdeaFactory, que os possibilita apresentar suas idéias e moções junto às
autoridades locais. Trata-se de uma rede baseada na transparência pública, estimulando
processos reflexivos e interativos, já que os encaminhamentos são sempre precedidos de
ampla discussão no meio virtual. A experiência demonstra ser essencial, neste tipo de
sistema, uma estreita vinculação entre o processo de deliberação virtual e o processo
real de tomada de decisões por parte das autoridades52, o que permite aos participantes
formar uma percepção de valor e significado para a comunidade.
Em Bolonha, as proposições são ainda mais ousadas. O governo local
promoveu um amplo programa de inclusão digital e criou um portal contendo
informações administrativas e políticas importantes para a população, com a
disponibilização de uma rede de caráter aberto, encontrando novas maneiras de criação
de redes sociais, principalmente por meio de fóruns de discussão livres ou ordenados
por moderadores devidamente treinados.
Questiona-se, portanto, se a comunicação mediada por computador pode de
fato enriquecer a democracia, o que significa também perguntar se ela pode ajudar a
democracia a ser mais delibertativa.
O exemplo de Bolonha nos indica que simples consultas pré-determinadas,
em espécies de enquetes ou indagações fechadas, são insuficientes. A cidade italiana
percebeu a necessidade de sistemas abertos, onde os próprios cidadãos determinam a
formação do conhecimento deliberativo. Às comunidades, dessa forma, deve ser
permitida a produção e publicação de informações por si própria, de maneira que possa
rearranjar ou destacar informações que são lhe sejam diretamente pertinentes53.
Requisitos como esses são necessários uma vez que simples consultas de
opinião não constituem verdadeiro espaço público, já que não incluem um processo de
formação de opinião. Comunicação significa não somente encontrar o que indivíduos
previamente decidiram ou aprenderam, mas é principalmente um processo em que a
opinião propriamente dita é criada por meio de um debate54.
Dessa maneira, Joss Hands, em uma pesquisa realizada em 469 web sites de
52 FREY, op. cit., pp. 154-155 53 WILLIAMSON, Andy. Getting Ready for eDemocracy. Disponível em: <http://public-policy.unimelb.edu.au/egovernance/papers/42_Williamson.pdf >. Acesso em 13 nov. 2006. 54 THORNTON, Alinta. Does Internet Create Democracy? Disponível em <http://www.zip.com.au/~athornto/thesis_2002_alinta_thornton>. Acessado em 8 nov. 2006.
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governos locais na Grã-Bretanha55, identificou que, para formação de verdadeiros
espaços públicos deliberativos, devem existir, necessariamente, alguns elementos
básicos, como: adequada provisão de informação; oportunidade de discussão dos
problemas sem a coerção de outros cidadãos; regras que falicilitem o processo
deliberativo; e a oportunidade de influenciar os políticos nos procedimentos
democráticos formais.
A criação dessas redes sociais e políticas, a partir da estrutura do próprio
Estado, pode trazer, portanto, para o espaço tradicional da política, aqueles movimentos
que, de outra forma, estariam concorrendo com o próprio Estado na rede de fluxos de
poder característica de nossos tempos.
Trata-se, dessa maneira, de se fomentar a sensibilização e a compreensão por
parte dos administradores públicos em relação ao contexto em que a instituição de que
fazem parte, e da qual decidem o rumo, está inserido. Somente assim terão a tenacidade
necessária para empreender os eforços na criação de espaços públicos virtuais
portadores dos requisitos necessários e que sirvam não somente como instrumento de
melhoria da democracia, mas também como possibilidade de ampliação da importância
do próprio Estado na rede.
Nesse sentido, diversas experiências em outras partes do globo têm
demonstrado que existem possibilidades amplas e inéditas para criação de uma
“cidadania virtual”, onde os cidadãos possam defender seus interesses sem,
necessariamente, desafiar toda a organização do Estado moderno.
Alguns podem compreender essa possibilidade como uma indevida invasão
do Sistema no Mundo da Vida, para utilizar uma linguagem habermasiana. Veriam em
tal comportamento por parte do Estado como algo não desejado, caso se entenda que o
futuro da organização política deva ser baseado no terceiro setor e não no Estado-nação.
Aliás, essa tendência de migração do debate político para fora dos canais
tradicionais da democracia representativa é o que Gramsci apresentava como “crise de
hegemonia” e que pode ser caracterizado como uma crise de consenso, um excesso de
desacordo, ou indiferença, entre o Estado e os cidadãos56.
Em síntese, os aspectos mais promissores da internet como instrumento de
revitalização da esfera pública é determinada pela habilidade de pequenos grupos de
55 JOSS, Hands. E-deliberation and Local Governance. First Monday, vol. 10, n. 7. Disponível em < http://www.firstmonday.org/issues/issue10_7/hands>. Acessado em 10 nov. 2006. 56 JOSS, op. cit.
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interesse de encontrar-se e comunicar-se, a possibilidade de indivíduos e pequenos
grupos com poucos recursos apresentarem seus pontos de vista a um grande número de
pessoas, o fácil acesso a uma grande variedades de pontos de vista, a longevidade dos
materiais informativos, uma maior interatividade e a formação de comunidades on
line.57
Ao fim, podemos dizer que ao Estado-nação cabe adaptar-se às mudanças
estruturais em curso e que o levaram à perda de poder, aproveitando sua influência
regulatória sobre as pessoas em um determinado território, apresentando-se, assim,
como intermediário hábil e confiável para coordenação dos interesses da sociedade
civil, em um reestabelecimento da união dialética de interesses que lhe deu origem.
Talvez esse seja o caminho para nos reencontrarmos em uma comunidade
originária, um outro nome que damos ao paraíso perdido e a que esperamos
ansiosamente retornar. Eis porque, assim, buscamos febrilmente os caminhos que
podem levar-nos até lá58.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto neste artigo, há que se aprofundar o debate sobre o papel do
Estado-nação na Nova Ordem Mundial. A utilização das tecnologias de informação e
comunicação resultou em profundas alterações sociais, que devem ser analisadas e
compreendidas. A utilização da própria tecnologia como meio de legitimação da
atuação do Estado é apenas um dos aspectos possíveis de ser estudado.
O cenário demonstrado aqui implica, igualmente, em modificação na
estrutura do Estado, tendo, portanto, ligação com o Direito Administrativo; um
questionamento quanto às bases justificantes do Estado Moderno, permitindo
indagações de ordem teórica no Direito Constitucional; O surgimento de novas relações
interpessoais, de ordem virtual, que exigem atualização do Direito Civil e do Direito
Penal. Sem falar nas conseqüências para a linguística, a sociologia e antropologia, a
história, os estudos ambientais, a educação e a uma infinidade de áreas afetadas pela
nossa condição pós-moderna.
Todavia, temos como primordial a questão democrática nesse contexto. As
novas tecnologiais permitem um grau de interatividade e difusão de conhecimento que,
57 THORNTON, op. cit. 58 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 9.
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uma vez superada a questão do livre acesso, da divisão digital, pode-se imaginar
imensas possibilidades de avanço de uma democracia representativa para uma
verdadeira democracia deliberativa, rica, plural e atraente.
O Estado-nação pode, assim, ter um papel fundamental nessa evolução.
Primeiramente, porque tem os instrumentos para criar políticas que diminuam a
defasagem digital da Nação, mas também porque pode incentivar o desenvolvimento e
difusão de tecnologias que possibilitem a criação de experiências realmente inovadoras
de cidadania, no que poderíamos de intitular uma “visão forte” de governança
eletrônica.
Experiências em diversos locais, em variados países do mundo, nos dão um
norte de como podem funcionar sistemas que atraiam de volta as pessoas para a esfera
pública, que está cada vez mais ameaçada pela “commoditização” da cultura e da
política.
Acreditamos, e essa é a essência da proposta deste artigo, que se trata de uma
grande oportunidade do Estado fortalecer-se no espaço de fluxos da sociedade em rede,
buscando sua legitimação como interlocutor privilegiado entre as múltiplas identidades
heterogêneas, reiventando-se como Estado adaptado à condição pós-moderna.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. __________________ Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999. _________________ O Poder da Identidade. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 2). São Paulo: Paz e Terra, 1999. EISENBERG, José; CEPIK, Marco (orgs.). Internet e Política: teoria e prática da democracia eletrônica. Belo Horizonte: UFMG, 2002. ESTADOS UNIDOS. Mapeando o Futuro Global: relatório do projeto 2020 do Conselho Nacional de Inteligência. In: O Relatório da CIA: como será o mundo em 2020. São Paulo, Ediouro: 2006. HABERMAS, Jürgen. O Caos da Esfera Pública. Folha de São Paulo, São Paulo. 13 ago. 2006. Caderno Mais! JOSS, Hands. E-deliberation and Local Governance. First Monday, vol. 10, n. 7. Disponível em < http://www.firstmonday.org/issues/issue10_7/hands>. Acessado em 10 nov. 2006. KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. OLIVO, Luis. Reglobalização do Estado e da Sociedade em Rede na Era do Acesso. Florianópolis: Boiteux, 2004.
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SORJ, Bila (Coord.). Enfoques on line: Revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ – V.4, n.1 (jul.2005). Rio de Janeiro: PPGSA, 2005. THORNTON, Alinta. Does Internet Create Democracy? Disponível em <http://www.zip.com.au/~athornto/thesis_2002_alinta_thornton>. Acessado em 8 nov. 2006. WILLIAMSON, Andy. Getting Ready for eDemocracy. Disponível em: <http://public-policy.unimelb.edu.au/egovernance/papers/42_Williamson.pdf >. Acesso em 13 nov. 2006.
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