arvore e folha - j. r. r. tolkien

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

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    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel.

  • J. R. R. TOLKIEN

    RVORE E FOLHA

    TRADUORONALD EDUARD KYRMSE

    Membro da Tolkien Society e do grupo lingustico Quendily

    SO PAULO 2013

  • OBRAS DE J. R. R. TOLKIEN

    The Hobbit [O Hobbit]Leaf by Niggle [rvore e folha (Sobre Contos de Fadas e Folha, de Migalha)]

    On Fairy Tales [Sobre Histrias de Fadas]Farmer Gil of Ham [Mestre Gil de Ham]

    The Homecoming of BeorhtnothThe Lord of the Rings [O Senhor dos Anis]

    The Adventures of Tom Bombadil [As Aventuras de Tom Bombadil]The Road Goes Ever On [com Donald Swann]

    Smith of Wootton Major

    OBRAS PUBLICADAS POSTUMAMENTE

    Sir Gawain and the Green Knight, Pearl and Sir Orfeo*The Father Christmas Letter [Cartas do Papai Noel]

    The Silmarillion* [O Silmarillion]Pictures by J. R. R. Tolkien*

    Unfinished Tales* [Contos Inacabados]The Letters of J. R. R. Tolkien*

    Finn and HengestMr. Bliss [Sr. Bliss]

    The Monsters and the Critics & Other Essays*Roverandom [Roverandom]

    The Children of Hrin* [Os Filhos de Hrin]The Legend of Sigurd and Gudrn* [A Lenda de Sigurd e Gudrn]

    The Fall of Arthur* [A Queda de Arthur]

    A HISTRIA DA TERRA-MDIA POR CHRISTOPHER TOLKIEN

    I The Book of Lost Tales, Part OneII The Book of Lost Tales, Part Two

    III The Lays of BeleriandIV The Shaping of Middle-earth

    V The Lost Road and Other WritingsVI The Return of Shadow

    VII The Treason of IsengardVIII The War of RingIX Sauron DefeatedX Morgoths Ring

    XI The War of the JewelsXII The Peoples of Middle-earth

    *Editados por Christopher Tolkien

  • ndice

    Nota introdutria

    Sobre contos de fadasFolha, de Migalha

  • ENota introdutria

    STAS duas coisas, Sobre contos de fadasa e Folha, de Migalhab, esto aqui reimpressas epublicadas em conjunto. No so mais fceis de obter, mas ainda podem ser consideradas

    interessantes, especialmente por quem apreciou O Senhor dos Anis. Apesar de uma ser umensaio e a outra um conto, esto relacionadas: pelos smbolos da rvore e da Folha epelo fato de ambas se referirem, de maneiras diferentes, ao que o ensaio chama desubcriao. Tambm foram escritas no mesmo perodo (1938-1939) em que O Senhor dosAnis comeava a se desenvolver e a apresentar perspectivas de trabalho e explorao numaterra ainda desconhecida, to assustadora para mim quanto para os hobbits. Mais ou menosnaquela poca havamos chegado a Bri, e eu tinha to pouca ideia quanto eles do que fora feitode Gandalf ou de quem era Passolargo; e eu comeara a desacreditar de que sobreviveria paradescobrir.

    O ensaio foi originalmente composto como Conferncia Andrew Lang, e em forma maisbreve foi apresentado na Universidade de St Andrews, em 19381. Acabou sendo publicado,com pequenos acrscimos, como um dos itens de Essays presented to Charles Williams[Ensaios apresentados a Charles Williams], Oxford University Press, 1947, atualmenteesgotado. Aqui reproduzido com algumas alteraes menores.

    O conto s foi publicado em 1947 (Dublin Review). Desde que chegou, rapidamente, forma manuscrita, num dia em que acordei j com ele na cabea, no sofreu alteraes. Umade suas fontes foi um lamo de grandes galhos, que eu enxergava mesmo deitado na cama. Derepente foi podado e mutilado pelo proprietrio, no sei por qu. Agora foi derrubado,punio menos brbara por eventuais crimes de que possa ter sido acusado, como porexemplo o de ser grande e estar vivo. No acho que tivesse algum amigo ou algum que opranteasse, a no ser eu e um par de corujas.

    J. R. R. TOLKIEN

    a No original On Fairy-Stories. (N. do T.)b No original Leaf by Niggle. (N. do T.)

    1. No 1940 como foi incorretamente afirmado em 1947. (N. do A.)

  • SOBRE CONTOS DE FADAS

  • PSobre contos de fadas

    ROPONHO-ME a falar de contos de fadas, apesar de estar ciente de que uma aventuratemerria. O Reino Encantado uma terra perigosa, em que h armadilhas para os

    incautos e calabouos para os demasiado audazes. Pode ser que me considerem ousadodemais, pois, apesar de ter sido amante de contos de fadas desde que aprendi a ler e refletirsobre eles de tempos em tempos, no os estudei profissionalmente. Provavelmente nada maisfui do que um explorador eventual (ou intrometido) da rea, cheio de admirao mas no deinformaes.

    O reino dos contos de fadas amplo, profundo e alto, cheio de muitas coisas: l seencontram todos os tipos de aves e outros animais; oceanos sem praias e estrelas sem conta;uma beleza que encantamento e um perigo sempre presente; alegria e sofrimento afiadoscomo espadas. Um ser humano talvez possa considerar-se afortunado por ter vagueado nessereino, mas sua prpria riqueza e estranheza atam a lngua do viajante que as queira relatar. E,enquanto est l, perigoso que faa perguntas demais, pois os portes podero se fechar e aschaves se perder.

    No entanto h algumas perguntas que algum que v falar sobre contos de fadas precisa sedispor a responder, ou a tentar responder, no importa o que pense da sua impertinncia opovo do Reino Encantado. Por exemplo: O que so contos de fadas? Qual sua origem? Qualsua utilidade? Tentarei dar respostas a essas perguntas, ou as indicaes de respostas queconsegui coligir principalmente das prprias histrias, as poucas que conheo dentre amultido das que existem.

    CONTO DE FADAS

    O que um conto de fadas? Neste caso intil consultar o Oxford English Dictionary. Eleno traz referncia combinao fairy-storya e no de nenhum proveito no que se refere aotema fadas em geral. No Suplemento, fairy-tale est registrado desde o ano de 1750, e seusentido principal consta como (a) um conto sobre fadas, ou de modo geral, uma lenda defadas, com desdobramentos de sentido, (b) uma histria irreal ou incrvel, e (c) uma falsidade.

    Os dois ltimos sentidos obviamente tornariam meu tpico desalentadoramente amplo. Mas

  • o primeiro sentido restrito demais. No restrito demais para um ensaio; para muitos livros suficientemente amplo, mas restrito demais para abranger o uso real. E isso principalmentese aceitarmos a definio de fadas do lexicgrafo: seres sobrenaturais de tamanho diminuto,que a crena popular supe possurem poderes mgicos e terem grande influncia sobre osassuntos dos seres humanos, para o bem ou para o mal.

    Sobrenatural uma palavra perigosa e difcil em qualquer um dos seus sentidos, maisamplo ou mais restrito. Mas dificilmente poder ser aplicado a fadas, a no ser que sobre sejaconsiderado meramente um prefixo superlativo. Pois o ser humano que sobrenatural (emuitas vezes de estatura diminuta) em comparao com as fadas, ao passo que elas sonaturais, muito mais naturais que ele. Essa sua sina. A estrada para o reino das fadas no aestrada para o Paraso; nem mesmo para o Inferno, creio, embora alguns tenham afirmado queela pode conduzir indiretamente at l pelo dzimo do Diabo.

    O see ye not yon narrow road

    So thick beset wi thorns and briers?

    That is the path of Righteousness,

    Though after it but few inquires.

    And see ye not yon braid, braid road

    That lies across the lily leven?

    That is the path of Wickedness,

    Though some call it the Road to Heaven.

    And see ye not yon bonny road

    That winds about yon fernie brae?

    That is the road to fair Elfland,

    Where thou and I this night maun gae.b

    Quanto ao tamanho diminuto: no nego que uma noo dominante no uso moderno. Muitasvezes pensei que seria interessante tentar descobrir como se deu essa transformao; mas meuconhecimento no suficiente para uma resposta correta. Antigamente havia de fato algunshabitantes do Reino Encantado que eram pequenos (mas certamente no diminutos), porm apequenez no era caracterstica desse povo como um todo. O ser diminuto, elfo ou fada, naInglaterra (acho eu) em grande parte um produto artificial da fantasia literria1. Talvez noseja de estranhar que na Inglaterra, o pas em que o amor pelo delicado e fino frequentemente

  • reapareceu na arte, o gosto se volte, nesse mbito, para o requintado e diminuto, assim comona Frana chegou corte e se cobriu de p de arroz e diamantes. Porm suspeito que essamiudeza de flores-e-borboletas tambm tenha sido produto da racionalizao quetransformou o glamour da Terra dos Elfos em mero artifcio, e a invisibilidade, numafragilidade que podia esconder-se numa prmula ou encolher-se atrs de uma folha de capim.Parece ter entrado em moda logo depois que comearam as grandes viagens que tornariam omundo estreito demais para conter ao mesmo tempo homens e elfos; quando a terra mgica deHy Breasail no Oeste se tornara meros Brasis, a terra da madeira da tintura vermelha2. Detodo modo, foi em grande parte um caso literrio em que William Shakespeare e MichaelDrayton tiveram uma participao3. Nymphidia de Drayton um dos ancestrais daquela longalinhagem de fadas florais e duendes adejantes com antenas, que tanto me desagradavamquando criana, e que meus filhos, por sua vez, detestavam. Andrew Lang tinha sentimentossemelhantes. No prefcio de Lilac Fairy Book [Livro lils de fadas] ele se refere s histriasde enfadonhos autores contemporneos: sempre comeam com um menininho ou umamenininha que sai e encontra as fadas dos narcisos, das gardnias e das flores de macieira [..]Essas fadas tentam ser engraadas e fracassam, ou tentam fazer pregao e tm xito.

    Mas o caso comeou, como eu disse, bem antes do sculo XIX, e h muito alcanou o tdio,certamente o tdio de tentar ser engraado e fracassar. Nymphidia de Drayton, considerado umconto de fadas (uma histria sobre fadas), um dos piores que j foram escritos. O palcio deOberon tem paredes de pernas de aranha,

    And windows of the eyes of cats,

    And for the roof, instead of slats,

    Is covered with the wings of bats.c

    O cavaleiro Pigwiggen monta numa lacraia travessa, manda ao seu amor, a Rainha Mab,uma pulseira de olhos de formiga, e marca um encontro numa flor de prmula silvestre. Mas ahistria contada em meio a toda essa lindeza um inspido conto de intriga e astutosmexeriqueiros; o galante cavaleiro e o marido furioso caem no atoleiro, e sua ira acalmadapor um gole das guas do Letes. Teria sido melhor que o Letes engolisse o caso todo. Oberon,Mab e Pigwiggen podem ser diminutos elfos ou fadas; Artur, Guinevere e Lancelot no so,mas a histria boa e m da corte de Artur um conto de fadas, e este conto de Oberon no .

    Fairy [fada], como substantivo mais ou menos equivalente a elf [elfo], uma palavrarelativamente moderna, quase no usada antes do perodo Tudor. A primeira citao noOxford Dictionary (a nica antes de 1450) significativa. Foi extrada do poeta Gower: as hewere a faierie [como se ele fosse uma fada]. Mas no foi isso que Gower disse. Ele escreveu

  • as he were of faierie, como se fosse de Farie [Reino Encantado]. Gower estavadescrevendo um jovem galante que busca enfeitiar os coraes das donzelas na igreja.

    His croket kembd and thereon set

    A Nouche with a chapelet,

    Or elles one of grene leves

    Which late com out of the greves,

    Al for he sholde seme freissh;

    And thus he loketh on the fleissh,

    Riht as an hauk which hath a sihte

    Upon the foul ther he schal lihte,

    And as he were of faierie

    He scheweth him tofore here yhe.4 d

    Este um jovem de sangue e osso mortais; mas ele d uma descrio dos habitantes daTerra dos Elfos muito melhor do que a definio de fada, sob a qual, por um duplo erro, elefoi colocado. Pois o problema com relao aos seres reais do Reino Encantado que nemsempre tm a aparncia do que so; e se revestem da soberba e da beleza que envergaramosde bom grado. Pelo menos parte da magia que manejam pelo bem ou pelo mal do homem umpoder para jogar com os desejos do seu corpo e do seu corao. A Rainha da Terra dos Elfos,que levou Thomas, o Rimador, no seu corcel branco como leite e mais veloz que o vento, veiocavalgando at a rvore Eildon sob forma de uma senhora, embora de encantadora beleza.Assim, Spenser estava na tradio verdadeira quando chamou os cavaleiros de seu ReinoEncantado pelo nome de Elfe. Era pertinente a cavaleiros como Sir Guyon, muito mais que aPigwiggen armado de ferro de vespa.

    Agora, apesar de ter apenas mencionado (de modo completamente inadequado) elfos efadas, preciso retroceder, pois me afastei do meu tema propriamente dito: os contos de fadas.Disse que o sentido de histrias sobre fadas era demasiado restrito5. restrito demaismesmo que rejeitemos o tamanho diminuto, pois no uso normal em lngua inglesa os contos defadas no so histrias sobre fadas ou elfos, mas histrias sobre o Reino Encantado, Farie, oreino ou estado no qual as fadas existem. O Reino Encantado contm muitas coisas alm doselfos e das fadas, e alm de anes, bruxas, trolls, gigantes ou drages; contm os oceanos, osol, a lua, o firmamento e a terra, e todas as coisas que h nela: rvore e pssaro, gua epedra, vinho e po, e ns mesmos, seres humanos mortais, quando estamos encantados.

  • As histrias que de fato tratam principalmente de fadas, isto , de criaturas que nalinguagem moderna tambm poderiam ser chamadas de elfos, so relativamente raras, e porvia de regra no muito interessantes. A maioria dos bons contos de fadas trata dasaventuras dos homens no Reino Perigoso ou nos seus sombrios confins. natural, pois, se oselfos so de verdade, e de fato existem independentemente de nossas histrias sobre eles,ento tambm isto certamente verdade: os elfos no se interessam primordialmente por ns,nem ns por eles. Nossos destinos so distintos, e nossas trilhas raramente se encontram.Mesmo nas fronteiras do Reino Encantado s os encontramos em algum cruzamento fortuito decaminhos6.

    A definio de conto de fadas o que , ou o que deveria ser no depende, portanto, denenhuma definio ou relato histrico sobre elfos ou fadas, mas sim da natureza do ReinoEncantado, do prprio Reino Perigoso, e do ar que sopra nessa terra. No tentarei defini-lonem descrev-lo diretamente. impossvel faz-lo. O Reino Encantado no pode ser captadopor uma rede de palavras; pois uma de suas qualidades ser indescritvel, porm noimperceptvel. Tem muitos ingredientes, mas a anlise no necessariamente descobrir osegredo do todo. No entanto espero que o que tenho a dizer adiante sobre as outras questesoferea alguns vislumbres da minha prpria viso imperfeita. Por ora s direi isto: um contode fadas aquele que toca ou usa o Reino Encantado, qualquer que seja seu propsitoprincipal, stira, aventura, moralidade, fantasia. O prprio Reino Encantado talvez possa sertraduzido mais proximamente por Magia7 mas magia de um modo e poder peculiares, nopolo oposto ao dos artifcios comuns do mgico laborioso e cientfico. H uma ressalva: sehouver alguma stira presente no conto, h uma coisa da qual no se deve zombar: a prpriamagia. Naquela histria ela deve ser levada a srio, sem escrnio nem explicaes que ainvalidem. Dessa seriedade o conto medieval Sir Gawain e o Cavaleiro Verde um exemploadmirvel.

    Mas, mesmo que apliquemos apenas esses limites vagos e mal definidos, fica claro quemuitos, at os estudiosos desses assuntos, usaram com muito descuido o termo conto defadas. Uma olhada nos livros recentes que se dizem coletneas de contos de fadas suficiente para mostrar que histrias sobre fadas, sobre a famlia das fadas em qualquer umade suas casas, ou at sobre anes e duendes, so apenas uma pequena parte do seu contedo.Isso, como vimos, era de esperar. Mas esses livros tambm contm muitas histrias que noenvolvem, nem mesmo mencionam, o Reino Encantado; que na verdade nem deveriam serincludas.

    Darei um ou dois exemplos dos expurgos que eu realizaria. Isso atender ao lado negativoda definio. Tambm veremos que isso conduzir segunda pergunta: quais so as origensdos contos de fadas?

  • O nmero de coletneas de contos de fadas muito grande atualmente. Em ingls,provavelmente nenhuma rivaliza em popularidade, abrangncia ou mrito geral com os dozelivros de doze cores que devemos a Andrew Lang e sua esposa. O primeiro foi publicadomais de setenta anos atrs (1889) e ainda encontrado. A maior parte do seu contedo passano teste, com clareza maior ou menor. No o analisarei, embora uma anlise pudesse serinteressante, mas observo de passagem que, das histrias deste Blue Fairy Book [Livro defadas azul], nenhuma especialmente sobre fadas e poucas se referem a elas. A maioria doscontos provm de fontes francesas: na poca, de certo modo, foi uma escolha justa, comotalvez ainda seja (embora no para meu gosto, agora ou na infncia). Seja como for, to fortea influncia de Charles Perrault, desde que seus Contes de ma Mre lOye [Contos da minhamame gansa] foram traduzidos pela primeira vez para o ingls no sculo XVIII, e de outrosexcertos semelhantes do vasto estoque do Cabinet des Fes [Gabinete das fadas] que setornaram famosos, que at hoje, suponho, se pedssemos a algum que mencionassealeatoriamente um conto de fadas tpico, provavelmente a pessoa mencionaria uma dessascoisas francesas como O Gato de Botas, Cinderela ou Chapeuzinho Vermelho. Pode haverquem se lembre primeiro dos Contos de Grimm.

    Mas o que dizer do fato de Uma viagem a Lilliput aparecer no Blue Fairy Book? Direi queessa histria no um conto de fadas, nem como o autor a fez, nem como aqui aparececondensada pela srta. May Kendall. Esse no seu lugar. Temo que tenha sido includasimplesmente porque os liliputianos so pequenos, at diminutos a nica caracterstica pelaqual se fazem notar. Mas a pequenez no Reino Encantado, tal como em nosso mundo, apenasum acidente. Os pigmeus so to prximos das fadas quanto os patagnios. Excluo essahistria no por sua inteno satrica; existe stira, constante ou intermitente, em contos defadas indubitveis, e muitas vezes pode ter havido inteno de stira em contos tradicionaisem que hoje no a percebemos. Eu a excluo porque o veculo da stira, por mais que seja umainveno brilhante, pertence classe das histrias de viajantes. Essas histrias relatam muitasmaravilhas, mas so maravilhas a serem vistas neste mundo mortal, em alguma regio donosso prprio tempo e espao; somente a distncia as oculta. Os contos de Gulliver no tmmais direito de entrar do que as narrativas do Baro de Munchhausen, ou, digamos, do que Osprimeiros homens na Lua ou A mquina do tempo. Na verdade, os Eloi e os Morlocks teriammais direitos que os liliputianos. Os liliputianos so simplesmente homens vistos de cima,sarcasticamente, de uma altura igual dos telhados das casas. Eloi e Morlocks vivem muitolonge, num abismo de tempo to profundo que exerce um encantamento sobre eles; e, se sonossos descendentes, podemos recordar que um antigo pensador ingls certa vez afirmou queos ylfe, os prprios elfos, descendiam de Ado atravs de Caim8. Esse encantamento dadistncia, especialmente do tempo distante, s enfraquecido pela prpria Mquina do

  • Tempo, absurda e inacreditvel. Mas vemos neste exemplo uma das principais razes pelasquais as fronteiras do conto de fadas so inevitavelmente dbias. A magia do Reino Encantadono um fim em si, sua virtude reside nas suas operaes, entre elas a satisfao de certosdesejos humanos primordiais. Um desses desejos vistoriar as profundezas do espao e dotempo. Outro (como veremos) entrar em comunho com outros seres vivos. Assim, umahistria poder tratar da satisfao desses desejos, com ou sem a operao de mquina oumagia, e na medida em que tiver xito aproximar-se- da qualidade e do sabor do conto defadas.

    Em seguida, depois das histrias de viajantes, eu tambm excluiria, ou considerariainadequada, qualquer histria que use o mecanismo do Sonho, do sonho do sono humano real,para explicar a aparente ocorrncia de suas maravilhas. Pelo menos, mesmo que sob outrospontos de vista o prprio sonho relatado fosse um conto de fadas, eu condenaria o todo comoalgo gravemente falho, tal como um bom quadro numa moldura deturpadora. verdade que oSonho no desvinculado do Reino Encantado. Nos sonhos podem ser desencadeadosestranhos poderes da mente. Em alguns uma pessoa pode, por um tempo, exercer o poder doReino Encantado, esse poder que, mesmo enquanto concebe a histria, faz com que ela assumaforma e cor viva diante dos olhos. s vezes um sonho real pode de fato ser um conto de fadasde facilidade e destreza quase lficas enquanto est sendo sonhado. Mas, se um escritordesperto lhe diz que seu conto apenas uma coisa imaginada durante o sono, ele estdefraudando deliberadamente o desejo primordial no corao do Reino Encantado: arealizao, independente da mente que a concebe, da maravilha imaginada. Muitas vezes diz-se das fadas (verdade ou mentira, no sei) que elas produzem iluses, que enganam os homenscom fantasia; mas esse assunto bem diferente. problema delas. Seja como for, essastrapaas acontecem no interior de histrias em que as prprias fadas no so iluses; por trsda fantasia existem vontades e poderes reais, independentes das mentes e dos propsitos doshomens.

    De qualquer modo, essencial ao genuno conto de fadas, diferentemente do uso dessaforma para fins menores ou aviltados, que ele seja apresentado como verdadeiro. Em ummomento considerarei o significado de verdadeiro neste contexto. Mas, visto que o conto defadas trata de maravilhas, ele no pode tolerar nenhum enquadramento ou mecanismo que da entender que toda a histria em que ocorrem uma fico ou iluso. claro que o prprioconto pode ser to bom que podemos ignorar o enquadramento. Ou pode ter sucesso e serdivertido como histria de sonho. So assim as histrias da Alice de Lewis Carroll, com seuenquadramento de sonho e suas transies de sonho. Por esse motivo (e por outros) elas noso contos de fadas9.

    H outro tipo de histria maravilhosa que eu excluiria do ttulo conto de fadas,

  • certamente, mais uma vez, no por no gostar dele: trata-se da pura fbula de animais.Escolherei um exemplo dos Livros de fadas de Lang: O corao do macaco, um conto sualique est publicado no Lilac Fairy Book. Nessa histria, um tubaro malvado convence ummacaco a montar em suas costas e o leva at metade do caminho para sua terra, para ento lherevelar que o sulto daquele reino estava doente e precisava de um corao de macaco para securar. Mas o macaco logrou o tubaro e o fez voltar, convencendo-o de que seu corao ficaraem casa, dentro de um saco pendurado numa rvore.

    A fbula de animais, claro, tem conexo com os contos de fadas. Bichos, pssaros eoutras criaturas muitas vezes falam como homens nos contos de fadas de verdade. Em parte(muitas vezes em pequena parte), essa maravilha decorre de um dos desejos primordiaisque esto prximos do cerne do Reino Encantado: o desejo que os homens tm de secomunicar com outros seres vivos. Mas a fala dos animais na fbula, que se desdobrou emramo separado, tem pouca relao com esse desejo, e frequentemente o esquece por completo.A compreenso mgica que os homens tm das linguagens prprias dos pssaros, dos outrosanimais e das rvores est muito mais perto dos verdadeiros propsitos do Reino Encantado.Mas nas histrias que no envolvem nenhum ser humano, ou naquelas em que os heris eheronas so animais, ao passo que os homens e mulheres, quando aparecem, so simplescoadjuvantes, e principalmente naquelas em que a forma animal apenas uma mscara sobreum rosto humano, artifcio do satirista ou do pregador, temos fbulas de animais e no contosde fadas, sejam elas Reynard Raposa, O conto do padre da freira, Irmo Coelho ousimplesmente Os trs porquinhos. As histrias de Beatrix Potter situam-se perto da fronteirado Reino Encantado, mas quase sempre fora dele, penso eu10. Sua proximidade deve-se emgrande parte a seu forte elemento moral com isso quero dizer sua moralidade inerente, noalguma significatio alegrica. Mas Peter Rabbit [Pedro Coelho], apesar de conter umaproibio, e apesar de existirem proibies na terra das fadas (como provavelmente existemem todo o universo, em todos os planos e em todas as dimenses), continua sendo uma fbulade animais.

    Tambm O corao do macaco claramente apenas uma fbula de animais. Suspeito quesua incluso num Livro de fadas no se deve primordialmente qualidade deentretenimento, mas precisamente ao fato de dizer que o corao do macaco foi deixado paratrs, dentro de um saco. Isso era significativo para Lang, estudioso de folclore, mesmo quenesse caso essa ideia curiosa seja usada somente como brincadeira, pois nesse conto ocorao do macaco era de fato muito normal e estava no peito dele. Ainda assim esse detalhe, claramente, apenas um uso secundrio de uma ideia antiga e muito difundida no folclore,que ocorre nos contos de fadas11: a ideia de que a vida ou a fora de um homem ou outracriatura pode residir em algum outro lugar ou objeto, ou em alguma parte do corpo

  • (especialmente o corao), que pode ser destacada e escondida num saco, ou debaixo de umapedra, ou num ovo. Em um extremo da histria registrada do folclore, essa ideia foi usada porGeorge MacDonald em seu conto de fadas O corao do gigante, que deriva esse motivocentral (bem como muitos outros detalhes) de famosos contos tradicionais. No outro extremo,na verdade no que provavelmente uma das mais antigas histrias escritas, ela ocorre noConto dos dois irmos, no papiro egpcio DOrsigny. O irmo mais novo diz ao mais velho:

    Encantarei meu corao, e coloc-lo-ei no alto da flor do cedro. O cedro ser derrubado emeu corao cair ao cho, e tu virs busc-lo, mesmo que passes sete anos a busc-lo; mas,quando o tiveres encontrado, coloca-o num vaso de gua fria, e em verdade viverei.12

    Mas esse ponto de interesse e comparaes como esta levam-nos ao limiar da segundapergunta: Quais so as origens dos contos de fadas? Isso, claro, deve significar: a origemou as origens dos elementos fantsticos. Perguntar qual a origem das histrias (no importacomo estejam qualificadas) perguntar qual a origem da linguagem e da mente.

    ORIGENS

    Na verdade a pergunta Qual a origem do elemento fantstico? nos faz aportar, em ltimaanlise, na mesma indagao fundamental; mas h muitos elementos nos contos de fadas (comoaquele corao destacvel, ou mantos de cisne, anis mgicos, proibies arbitrrias,madrastas malvadas e at as prprias fadas) que podem ser estudados sem abordar essaquesto principal. Esses estudos, porm, so cientficos (pelo menos na inteno); so tarefade folcloristas ou antroplogos, isto , pessoas que usam as histrias, no como se pretendiaque fossem usadas, mas como uma pedreira da qual possam extrair provas ou informaessobre assuntos que lhes interessam. Um processo perfeitamente legtimo em si mas aignorncia ou o esquecimento da natureza de uma histria (como coisa contada por inteiro)muitas vezes levou esses pesquisadores a estranhos julgamentos. Para pesquisadores dessetipo, semelhanas recorrentes (como esse assunto do corao) parecem especialmenteimportantes. Tanto assim que estudiosos do folclore podem acabar se desviando do prpriocaminho ou se expressando numa taquigrafia enganosa, e enganosa especialmente se sair dassuas monografias e entrar em livros sobre literatura. Eles tendem a dizer que duas histriasconstrudas em torno do mesmo motivo folclrico, ou constitudas de uma combinaogeralmente semelhante desses motivos, so a mesma histria. Lemos que Beowulf apenasuma verso de Dat Erdmnneken; que O Touro Negro de Norroway A Bela e a Fera, ou a mesma histria que Eros e Psique; que a Donzela-Mestra nrdica (ou a Batalha dos

  • Pssaros galica13 e seus muitos congneres e variantes) a mesma histria do conto gregode Jaso e Medeia.

    Afirmaes desse tipo podem expressar (numa abreviao indevida) algum elemento deverdade, mas no so verdadeiras no sentido dos contos de fadas, no so verdadeiras em arteou literatura. O colorido, a atmosfera, os inclassificveis detalhes individuais de uma histriae acima de tudo o teor geral que dotam de vida os ossos no dissecados do enredo, querealmente contam. O Rei Lear de Shakespeare no o mesmo da histria de Layamon em seuBrut. Ou, tomando o caso extremo do Chapeuzinho Vermelho, de interesse meramentesecundrio o fato de que as verses recontadas da histria, nas quais a garotinha salva porlenhadores, derivam diretamente da histria de Perrault, em que ela devorada pelo lobo. Oque realmente importa que a verso posterior tem um final feliz (mais ou menos, se no noscondoermos demais da vov) e a verso de Perrault no tinha. E essa uma diferena muitoprofunda, qual voltarei.

    claro que no nego, pois sinto intensamente, o fascnio do desejo de elucidar a histriaintrincadamente emaranhada e ramificada dos galhos da rvore dos Contos. Ela se liga deperto ao estudo dos fillogos da confusa meada da Linguagem, da qual conheo algumaspequenas peas. Mas, mesmo no que se refere linguagem, parece-me que a qualidade e asaptides essenciais de determinada lngua, num momento vivo, so mais importantes de captare muito mais difceis de explicitar do que sua histria linear. Assim, com relao aos contosde fadas, acho que mais interessante, e tambm mais difcil ao seu modo, considerar o queeles so, o que se tornaram para ns e que valores os longos processos alqumicos do tempoproduziram neles. Nas palavras de Dasent eu diria: Temos de nos satisfazer com a sopa quenos servem, e no querer ver os ossos do boi com que foi feita.14 No entanto, curiosamente,por sopa Dasent designava uma mixrdia de pr-histria espria fundamentada nasprimitivas conjeturas da Filologia Comparada; e querer ver os ossos significava anecessidade de enxergar as operaes e as provas que levaram a essas teorias. Por sopadesigno a histria tal como servida por seu autor ou narrador, e por ossos, suas fontes ouseu material mesmo que (por rara sorte) possam ser descobertos com certeza. Mas claroque no probo a crtica da sopa como sopa.

    Portanto, passarei ligeiramente sobre a questo das origens. Sou demasiado inculto paralidar com ela de modo diferente; mas, das trs questes, essa a menos importante para meupropsito, e algumas observaes sero suficientes. evidente que os contos de fadas (emsentido mais amplo ou mais restrito) so de fato muito antigos. Coisas semelhantes aparecemem registros muito primevos e so encontradas universalmente, onde quer que existalinguagem. Portanto, estamos obviamente diante de uma variante do problema encontrado pelaarqueologia ou pela filologia comparativa: o debate entre evoluo (ou antes, inveno)

  • independente dos semelhantes, herana de um ancestral comum, e difuso, em vrias pocas,de um ou mais centros. A maioria dos debates se baseia em uma tentativa (de um ou de ambosos lados) de excesso de simplificao, e suponho que esse debate no seja exceo. A histriados contos de fadas provavelmente mais complexa que a histria fsica da raa humana, eto complexa quanto a histria da linguagem humana. As trs coisas inveno independente,herana e difuso evidentemente tiveram seu papel na produo da intrincada teia daHistria. Desemaranh-la est agora alm de qualquer habilidade que no seja a dos elfos15.Das trs, a inveno a mais importante e fundamental, e portanto (no de surpreender)tambm a mais misteriosa. No fim, as outras duas tero de levar de volta a um inventor, ouseja, um criador de histrias. A difuso (emprstimo no espao), seja de um artefato ou deuma histria, s remete o problema da origem a outro lugar. No centro da suposta difuso hum lugar onde outrora viveu um inventor. O mesmo ocorre com a herana (emprstimo notempo). Assim, acabamos chegando apenas a um inventor ancestral. Se acreditarmos que svezes ocorreu a criao independente de ideias, temas e esquemas semelhantes, estaremossimplesmente multiplicando o inventor ancestral, mas sem com isso compreender maisclaramente o seu dom.

    A filologia foi destronada do lugar elevado que ocupava outrora nesse tribunal de inqurito.A viso de Max Mller, da mitologia como doena da linguagem, pode ser abandonada semremorso. A mitologia no nenhuma doena, porm pode adoecer como todas as coisashumanas. Da mesma forma poderamos dizer que o pensamento uma doena da mente.Estaria mais prximo da verdade dizer que as lnguas, em especial as europeias modernas, souma doena da mitologia. Mas ainda assim a Linguagem no pode ser descartada. A menteencarnada, a lngua e o conto so coetneos em nosso mundo. A mente humana, dotada dospoderes de generalizao e abstrao, no v apenas grama verde, discriminando-a de outrascoisas (e achando-a bonita de contemplar), mas v que ela verde alm de ser grama. Mascomo foi poderosa, como foi estimulante para a prpria faculdade que a produziu, a invenodo adjetivo. Nenhum feitio nem mgica do Reino Encantado mais potente. E no desurpreender: tais encantamentos, de fato, podem ser considerados apenas como outra visodos adjetivos, uma parte do discurso numa gramtica mtica. A mente que imaginou leve,pesado, cinzento, amarelo, imvel, veloz tambm concebeu a magia que tornaria as coisaspesadas leves e capazes de voar, transformaria o chumbo cinzento em ouro amarelo e a rochaimvel em gua veloz. Se podia fazer uma coisa, podia fazer a outra; inevitavelmente fezambas. Quando podemos tomar o verde da grama, o azul do cu e o vermelho do sangue, jtemos o poder de um encantador em um plano; e desperta o desejo de manejar esse poder nomundo externo s nossas mentes. No se segue que usaremos bem esse poder em qualquerplano. Podemos pr um verde mortal no rosto de um homem e produzir um horror; podemos

  • fazer luzir a rara e terrvel lua azul; ou podemos fazer com que os bosques irrompam emfolhas de prata e os carneiros vistam lanugens de ouro, e pr o fogo quente no ventre do rptilfrio. Mas numa tal fantasia, como a chamamos, uma nova forma se faz; o Reino Encantadocomea; o Homem torna-se subcriador.

    Assim, um poder essencial do Reino Encantado o de tornar as vises da fantasiaimediatamente eficazes por meio da vontade. Nem todas so belas, nem mesmo salutares,certamente no as fantasias do Homem cado. E ele maculou os elfos que tm esse poder (emverdade ou fbula) com sua prpria mcula. Esse aspecto da mitologia a subcriao, no arepresentao ou interpretao simblica das belezas e dos terrores do mundo muito poucoconsiderado, penso eu. Ser porque mais visto no Reino Encantado que no Olimpo? Porquese pensa que pertence mitologia inferior, no superior? Tem havido muita discusso arespeito das relaes entre essas coisas, o conto popular e o mito; mas, mesmo que nohouvesse discusso, a questo exigiria ateno em qualquer exame das origens, por breve quefosse.

    Houve uma poca em que era opinio dominante que todos esses elementos derivavam demitos da natureza. Os Olmpicos eram personificaes do sol, da aurora, da noite e assimpor diante, e todas as histrias contadas sobre eles eram originalmente mitos (alegorias seriauma palavra melhor) das grandes mudanas elementais e processos da natureza. O pico, alenda heroica, a saga ento localizavam essas histrias em lugares reais e as humanizavamatribuindo-as a heris ancestrais, mais poderosos que homens e no entanto j homens. Efinalmente essas lendas se reduziram, transformando-se em contos populares, Mrchene,contos de fadas histrias infantis.

    Isso parece a verdade quase de cabea para baixo. Quanto mais prximo o assim chamadomito da natureza, ou alegoria dos grandes processos da natureza, est de seu supostoarqutipo, menos interessante ele , e, de fato, menos de oferecer algum esclarecimentosobre o mundo. Vamos presumir por um momento, como presume esta teoria, que nada existede fato que corresponda aos deuses da mitologia: nenhuma personalidade, apenas objetosastronmicos ou meteorolgicos. Ento esses objetos naturais s podero ser revestidos designificado e glria pessoal por um dom, o dom de uma pessoa, de um homem. Apersonalidade s pode derivar de uma pessoa. Os deuses podem derivar sua cor e sua belezados sublimes esplendores da natureza, mas foi o Homem que os obteve para eles, abstraiu-osdo sol, da lua e da nuvem; eles obtm sua personalidade diretamente do Homem; atravs delerecebem do mundo invisvel, o Sobrenatural, a sombra ou a centelha de divindade que lhescabe. No h distino fundamental entre as mitologias superiores e as inferiores. Seus seresvivem, se que vivem, pela mesma vida, exatamente como os reis e os camponeses no mundomortal.

  • Tomemos o que parece um caso evidente de mito da natureza olmpico: o deus nrdicoThrr. Seu nome Trovo, que Thrr em nrdico; e no difcil interpretar seu marteloMillnir como o raio. No entanto Thrr tem (at onde alcanam nossos ltimos registros) umcarter, ou personalidade, bem marcante, que no se encontra no trovo nem no raio, apesar dealguns detalhes poderem, de certo modo, ser relacionados a esses fenmenos naturais: porexemplo sua barba ruiva, sua voz possante e seu temperamento violento, sua fora atabalhoadae destrutiva. Ainda assim no teria muito sentido indagarmos: o que veio primeiro, asalegorias naturais sobre um trovo personalizado nas montanhas, fendendo rochas e rvores,ou histrias sobre um fazendeiro de barba ruiva, irascvel e no muito esperto, de foradescomunal, pessoa muito semelhante (em tudo menos na estatura) aos fazendeiros do Norte,os bndr que adoravam Thrr de modo especial? Pode-se considerar que Thrr foireduzido imagem de um homem como esse, ou que o deus foi ampliado a partir dela. Masduvido que alguma dessas vises esteja correta no em si, no se insistirmos em que umadessas coisas tem necessariamente de preceder a outra. mais razovel supor que ofazendeiro tenha aparecido no mesmo momento em que o Trovo adquiriu voz e rosto; quehavia um rugido distante de trovo nas colinas todas as vezes que um contador de histriasouvia um fazendeiro enraivecido.

    claro que Thrr deve ser considerado membro da mais alta aristocracia mitolgica, umdos soberanos do mundo. No entanto a histria que se conta dele no Thrymskvitha (na EddaAntiga) certamente apenas um conto de fadas. antiga, tanto quanto podem ser os poemasnrdicos, o que no significa tanto tempo assim (900 d.C., digamos, ou um pouco antes, nestecaso). Mas no h motivo real para supor que esse conto seja no primitivo, pelo menos emqualidade, ou seja, por ser do tipo conto popular e no muito nobre. Se pudssemos recuar notempo, descobriramos que o conto de fadas mudaria nos detalhes, ou que daria lugar a outroscontos. Mas sempre haveria um conto de fadas enquanto houvesse um Thrr. Quandocessasse o conto de fadas, haveria apenas o trovo, que nenhum ouvido humano jamaisescutara.

    Ocasionalmente vislumbra-se na mitologia algo realmente mais elevado: a Divindade, odireito ao poder (diverso da sua posse), o devido culto; na verdade, religio. Andrew Langdisse, e alguns ainda o elogiam por diz-lo16, que a mitologia e a religio (no sentido estritodessa palavra) so duas coisas distintas que ficaram inextricavelmente enredadas, apesar de amitologia em si ser quase isenta de significado religioso17.

    No entanto essas coisas de fato ficaram enredadas ou talvez tenham sido separadas hmuito tempo e desde ento tenham voltado devagar, tateando, atravs de um labirinto de erros,atravs da confuso, rumo refuso. Mesmo os contos de fadas como um todo tm trs faces:a Mstica, voltada para o Sobrenatural; a Mgica, voltada para a Natureza; e o Espelho de

  • desdm e compaixo, voltado para o Homem. A face essencial do Reino Encantado a domeio, a Mgica. Mas o grau em que as outras aparecem (se que aparecem) varivel, e podeser decidido pelo contador de histrias individual. A Mgica, o conto de fadas, pode serusada como um Mirour de lOmme; e pode (mas no to facilmente) ser transformada emveculo do Mistrio. Pelo menos foi isso que George MacDonald tentou, realizando histriasde poder e beleza quando bem-sucedido, como em A chave dourada (que ele chamou de contode fadas); e mesmo quando fracassava parcialmente, como em Lilith (que ele chamou deromance).

    Voltemos por um momento Sopa que mencionei acima. Falando da histria dashistrias, e especialmente dos contos de fadas, podemos dizer que a Panela de Sopa, oCaldeiro da Histria, estava sempre fervendo, e que lhe foram continuamente acrescentadosnovos ingredientes, saborosos ou no. Por esse motivo, tomando um exemplo fortuito, o fatode uma histria semelhante que se conhece por A menina dos gansos (Die Gnsemagd, emGrimm) ser contada no sculo XIII sobre Berta Ps Grandes, me de Carlos Magno, naverdade nada prova em nenhum sentido: nem que a histria (no sculo XIII) estivessedescendo do Olimpo ou de Asgard por meio de um antigo rei, j lendrio, e a caminho de setornar um Hausmrchen, nem que estivesse subindo. Encontramos a histria muito difundida,sem ligao com a me de Carlos Magno nem qualquer outro personagem histrico.Certamente no podemos deduzir desse fato por si s que no seja verdade com relao mede Carlos Magno, mas esse tipo de deduo o que mais frequentemente se faz a partir dessetipo de evidncia. A opinio de que a histria no verdadeira com relao a Berta PsGrandes deve basear-se em algo diferente: em caractersticas da histria que a filosofia docrtico no admite serem possveis na vida real, de tal modo que ele efetivamente noacreditaria na histria mesmo que ela no fosse encontrada em nenhum outro lugar; ou naexistncia de indcios histricos consistentes de que a verdadeira vida de Berta foi bemdiferente, de modo que no acreditaria na histria mesmo que sua filosofia admitisse que elaseria perfeitamente possvel na vida real. Imagino que ningum deixaria de acreditar numahistria de que o Arcebispo de Canterbury escorregou numa casca de banana quando soubesseque um infortnio cmico semelhante foi relatado sobre muitas pessoas, e principalmentesobre cavalheiros idosos e respeitveis. Algum poderia duvidar da histria se descobrisseque nela um anjo (ou mesmo uma fada) avisara o Arcebispo de que escorregaria se usassepolainas numa sexta-feira. Tambm poderamos duvidar dela se dissessem que tinhaacontecido, digamos, no perodo entre 1940 e 1945. Chega. um argumento bvio, e foi usadoantes; mas arrisco-me a repeti-lo (apesar de ser um pouco alheio ao meu objetivo atual), poisele constantemente deixado de lado pelos que se ocupam das origens dos contos.

    Mas e a casca de banana? Passamos realmente a nos ocupar dela s quando foi rejeitada

  • pelos historiadores. Ela mais til quando descartada. O historiador provavelmente diria quea histria da casca de banana foi vinculada ao Arcebispo, assim como diz, com clareza, queo Mrchen da Menina dos Gansos foi vinculada a Berta. Essa maneira de colocar a questo bastante inofensiva, no que comumente se conhece por histria. Mas ser de fato uma boadescrio do que est acontecendo, e aconteceu, na histria da criao de histrias? Acho queno. Creio que seria mais verossmil dizer que o Arcebispo foi vinculado casca de banana,ou que Berta foi vinculada Menina dos Gansos. Ainda melhor: eu diria que a me de CarlosMagno e o Arcebispo foram colocados na Panela, na verdade entraram na Sopa. Foram apenasnovos ingredientes acrescentados ao caldo. Uma honra considervel, pois nessa sopa haviamuitas coisas mais antigas, mais potentes, mais belas, cmicas ou terrveis do que eles(considerados simplesmente figuras histricas).

    Parece bastante evidente que Artur, outrora histrico (mas talvez no muito importantecomo tal), tambm foi colocado na Panela. L ferveu por muito tempo, junto com muitas outrasfiguras e elementos mais antigos, da mitologia e do Reino Encantado, e at com alguns outrosossos esparsos da histria (como a defesa de Alfred contra os dinamarqueses), at emergircomo um Rei do Reino Encantado. A situao semelhante na grande corte nrdicaarturiana dos Reis dos Escudos da Dinamarca, os Scyldingas da antiga tradio inglesa. ORei Hrothgar e sua famlia tm muitas marcas evidentes de histria verdadeira, muito mais queArtur, e no entanto mesmo nos relatos (ingleses) mais antigos so associados a muitas figurase eventos dos contos de fadas: estiveram na Panela. Mas refiro-me agora aos remanescentesdos mais antigos contos ingleses registrados do Reino Encantado (ou de suas fronteiras),apesar de serem pouco conhecidos na Inglaterra, no para discutir a transformao do menino-urso no cavaleiro Beowulf, nem para explicar a intruso do ogro Grendel no salo real deHrothgar. Quero destacar algo mais que essas tradies contm: um exemplo singularmentesugestivo da relao entre o elemento do conto de fadas e os deuses, reis e homensannimos, ilustrando (creio) a opinio de que esse elemento nem se eleva nem cai, mas estl, no Caldeiro da Histria, esperando pelas grandes figuras do Mito e da Histria, e por Eleou Ela ainda sem nome, esperando pelo momento de serem lanados no ensopado em lentafervura, um por um ou todos juntos, sem levar em conta categoria social nem precedncia.

    O grande inimigo do Rei Hrothgar era Froda, Rei dos Heathobards. No entanto ouvimosecos de uma estranha histria sobre Freawaru, filha de Hrothgar no uma histria comum naslendas heroicas nrdicas: o filho do inimigo de sua casa, Ingeld, filho de Froda, apaixonou-sepor ela e com ela se casou desastrosamente. Mas isso extremamente interessante esignificativo. No segundo plano da antiga contenda assoma o vulto daquele deus que osnrdicos chamavam de Frey (o Senhor) ou Yngvi-Frey, e os anglos de Ing; um deus da antigamitologia (e religio) nrdica da fertilidade e do Trigo. A inimizade das casas reais estava

  • ligada ao local sagrado de um culto dessa religio. Ingeld e seu pai tm nomes que pertencema ela. A prpria Freawaru chamada de Proteo do Senhor (de Frey). No entanto, uma dasprincipais coisas que se contam mais tarde (em islands antigo) sobre Frey a histria em queele se apaixona de longe pela filha dos inimigos dos deuses, Gerdr, filha do gigante Gymir, ese casa com ela. Isso prova que Ingeld e Freawaru, ou seu amor, so meramente mticos?Creio que no. A histria muitas vezes se parece com o Mito, porque ambos, em ltimaanlise, compem-se da mesma matria. Se de fato Ingeld e Freawaru jamais viveram, ou pelomenos jamais amaram, ento em ltima anlise eles obtm sua histria de um homem e umamulher annimos, ou melhor, entraram na histria deles. Foram postos no Caldeiro, ondetantas coisas potentes ficam fervendo lentamente no fogo, entre elas o Amor--primeira-vista.O caso do deus semelhante. Se nenhum jovem jamais se tivesse apaixonado ao se encontrarfortuitamente com uma donzela, e jamais tivesse encontrado velhas inimizades que seinterpunham entre ele e seu amor, ento o deus Frey jamais teria visto Gerdr, a filha dogigante, do trono de Odin. Mas, j que falamos de um Caldeiro, no podemos esquecertotalmente os Cozinheiros. H muitas coisas no Caldeiro, mas os Cozinheiros no mergulhama concha completamente s cegas. Sua seleo importante. Afinal de contas os deuses sodeuses, e assunto de certa importncia quais histrias so contadas sobre eles. Assim, temosde admitir francamente que uma histria de amor ter maior probabilidade de ser contada arespeito de um prncipe histrico, na verdade ter maior probabilidade de acontecer de fatonuma famlia histrica cujas tradies so as do Dourado Frey e dos Vanir, e no as de Odin ogodo, o Necromante, que farta os corvos, Senhor dos Mortos. No de espantar que spell, emingls, signifique ao mesmo tempo uma histria contada e uma frmula de poder sobre homensviventes.

    Mas, depois de fazermos tudo o que a pesquisa capaz de fazer coleta e comparao dashistrias de muitas terras , depois de explicarmos muitos dos elementos que comumente seencontram incrustados nos contos de fadas (como madrastas, ursos e touros encantados, bruxascanibais, tabus sobre nomes e coisas assim) como relquias de antigos costumes outrorapraticados na vida diria, ou de crenas outrora abrigadas como crenas e no comofantasias, ainda resta um ponto muito frequentemente esquecido: o efeito produzido agorapor essas coisas antigas, nas histrias tais como so.

    Por um lado, agora so antigas, e a antiguidade tem um apelo prprio. A beleza e o horrordo P de Junpero (Von dem Machandelboom), com seu incio extraordinrio e trgico, oabominvel cozido canibalesco, os ossos repulsivos, o alegre e vingativo esprito de pssaroque emerge de uma nvoa que se erguia da rvore, permaneceram comigo desde a infncia; eno entanto sempre o principal sabor dessa histria que sobrevivia na lembrana foi no abeleza nem o horror, mas a distncia e um grande abismo de tempo, no mensurvel nem

  • mesmo em twe tusend Johr f. Sem o cozido e os ossos de que as crianas de hoje so muitofrequentemente poupadas em verses suavizadas de Grimm18 essa viso teria se perdido emgrande medida. No penso que fui prejudicado pelo horror do contexto do conto de fadas,sejam quais forem as obscuras crenas e prticas do passado das quais ele possa ter vindo.Essas histrias tm agora um efeito mtico ou total (inanalisvel), um efeito muitoindependente das descobertas do Folclore Comparado, e que essa disciplina no consegueestragar nem explicar; elas abrem uma porta para Outro Tempo, e, se a atravessarmos, nemque seja por um momento, estaremos fora de nosso tempo, talvez fora do prprio Tempo.

    Se nos detivermos, no apenas para notar que esses elementos antigos foram preservados,mas para pensar como foram preservados, deveremos concluir, penso eu, que isso aconteceu,muitas vezes, se no sempre, precisamente por causa desse efeito literrio. No podemos tersido ns, nem mesmo os irmos Grimm, os primeiros a senti-lo. De maneira nenhuma oscontos de fadas so matrizes rochosas das quais os fsseis s podem ser arrancados porgelogos peritos. Os elementos antigos podem ser extrados, ou esquecidos e descartados, ousubstitudos por outros ingredientes, com a maior facilidade, tal como mostrar qualquercomparao de uma histria com suas variantes prximas. As coisas que existem nelas devemter sido mantidas (ou inseridas), muitas vezes, porque os narradores orais, instintiva ouconscientemente, sentiram sua significncia literria19. Mesmo quando se suspeita que umaproibio em um conto de fadas deriva de algum tabu, praticado muito tempo atrs,provavelmente ela foi preservada nas etapas posteriores da histria do conto em virtude dogrande significado mtico da proibio. Por trs dos prprios tabus, de fato, pode ter havidoum senso dessa significncia. No deves do contrrio te isolars como indigente no remorsoinfindvel. Os mais brandos contos infantis conhecem isso. At mesmo a Peter Rabbit foiproibido um jardim, e ele perdeu seu casaco azul e adoeceu. A Porta Trancada uma eternaTentao.

    CRIANAS

    Agora me voltarei para as crianas, e assim chegarei ltima e mais importante das trsperguntas: quais so, se que existem, os valores e as funes dos contos de fadas agora?Geralmente presume-se que as crianas so a plateia natural ou especialmente apropriada doscontos de fadas. Ao descreverem um conto de fadas que acham que os adultos podero lerpara seu prprio entretenimento, os crticos costumam se permitir gracejos como: este livro para crianas de seis a sessenta anos. Mas nunca vi um anncio de carrinho que comeasseassim: este brinquedo vai divertir crianas de dezessete a setenta anos, o que, na minhaopinio, seria muito mais apropriado. Haver alguma ligao essencial entre crianas e

  • contos de fadas? Haver necessidade de comentrio quando um adulto os l sozinho? Isto , lcomo contos, no estuda como curiosidades. Aos adultos permitido colecionar e estudarqualquer coisa, at mesmo velhos programas de teatro ou sacos de papel.

    Entre aqueles que ainda tm sabedoria suficiente para no achar que contos de fadas soperniciosos, a opinio comum parece ser a de que existe uma ligao natural entre as mentesdas crianas e os contos de fadas, da mesma ordem da ligao entre os corpos das crianas eo leite. Creio que isso um erro; na melhor das hipteses um erro de falso sentimento, eportanto um erro cometido mais frequentemente por aqueles que, seja qual for seu motivoparticular (como no ter filhos), tendem a enxergar as crianas como um tipo especial decriaturas, quase uma raa diferente, e no como membros normais, embora imaturos, de umadeterminada famlia e da famlia humana em geral.

    Na verdade, a associao entre crianas e contos de fadas um acidente de nossa histriadomstica. No mundo letrado moderno os contos de fadas foram relegados ao quarto dascrianas, assim como a moblia velha ou fora de moda relegada sala de recreao,primordialmente porque os adultos no a querem, e no lhes importa que se faa mau usodela20. No a escolha das crianas que decide isso. As crianas como classe classe queno so, exceto pela falta de experincia que lhes comum no gostam mais dos contos defadas, nem os compreendem melhor, do que os adultos, e no os apreciam mais que muitasoutras coisas. So jovens e esto em crescimento, e geralmente tm apetites aguados, demodo que por via de regra os contos de fadas so bastante bem digeridos. Mas na verdade salgumas crianas, e alguns adultos, tm gosto especial por eles; e quando o tm no exclusivo, nem necessariamente dominante21. Tambm um gosto que, creio eu, no surgiriamuito cedo na infncia sem estmulo artificial; certamente um gosto que no decresce, e simcresce com a idade, quando inato.

    verdade que recentemente os contos de fadas em geral tm sido escritos ou adaptadospara crianas. Mas tambm pode-se fazer isso com msica, poesia, romances, histria oumanuais cientficos. um processo perigoso, mesmo quando necessrio. Na verdade s sesalva da desgraa pelo fato de as artes e as cincias no serem, como um todo, relegadas aoquarto das crianas; este e a sala de aula s recebem do assunto adulto as amostras e osrelances que parecem ser-lhes adequados na opinio dos adultos (frequentemente muitoequivocada). Qualquer dessas coisas, se fosse deixada inteiramente no quarto das crianas,ficaria gravemente prejudicada. Tambm uma bela mesa, um bom quadro ou um aparelho til(como um microscpio) seriam desfigurados ou quebrados se os abandonssemos por muitotempo numa sala de aula. Os contos de fadas assim banidos, eliminados de uma arteplenamente adulta, no fim estariam arruinados; na verdade, na medida em que foram assimbanidos, foram arruinados.

  • Ento, na minha opinio, o valor dos contos de fadas no pode ser encontrado considerandoas crianas em particular. Na verdade, as coletneas de contos de fadas so por naturezastos e quartos de despejo, e quartos de brinquedo apenas por um costume temporrio elocal. Seus contedos so desordenados, frequentemente desmantelados, uma mixrdia dediferentes datas, objetivos e gostos; mas em meio a eles pode-se ocasionalmente encontraralgo de valor permanente, uma antiga obra de arte, no excessivamente danificada, que s aestupidez poderia ter desprezado como coisa sem valia.

    Os Livros de fadas de Andrew Lang no so, talvez, quartos de despejo. Mais parecemestantes de um bazar. Algum com um espanador e um bom olho para coisas que ainda tmalgum valor deu uma volta pelos stos e depsitos. Suas coletneas so em grande parte umsubproduto de seu estudo adulto da mitologia e do folclore, mas foram transformadas emlivros infantis e apresentadas como tais22. Algumas das razes dadas por Lang merecem serconsideradas.

    A introduo do primeiro volume da srie fala de crianas s quais e para as quais socontados. Representam, diz ele, a juventude do homem fiel aos seus primeiros amores, etm seu gume de crena afiado, um apetite vivo por maravilhas. verdade? diz ele, agrande pergunta feita pelas crianas.

    Desconfio que crena e apetite por maravilhas so aqui considerados idnticos ouintimamente relacionados. So radicalmente diferentes, embora o apetite por maravilhas noseja imediatamente ou de incio diferenciado, pela mente humana em crescimento, do seuapetite geral. Parece bastante evidente que Lang usou crena no sentido comum: crena de quealgo existe ou pode ocorrer no mundo real (primrio). Sendo assim, acho que as palavras deLang, despojadas de sentimento, s podem implicar que o narrador de contos maravilhosospara crianas precisa ou pode se aproveitar, ou enfim se aproveita, da credulidade delas, dafalta de experincia que torna menos fcil para as crianas distinguir o fato da fico em casosparticulares, mesmo que a distino em si seja fundamental para a mente humana sadia, e paraos contos de fadas.

    claro que as crianas so capazes de crena literria, quando a arte do criador dehistrias suficientemente boa para produzi-la. Esse estado mental tem sido chamado desuspenso voluntria da incredulidade. Mas no me parece uma boa descrio do queacontece. O que acontece de fato que o criador da histria mostra ser um subcriador desucesso. Ele faz um Mundo Secundrio no qual nossa mente pode entrar. Dentro dele, o queele relata verdade, concorda com as leis daquele mundo. Portanto acreditamos, enquantoestamos por assim dizer do lado de dentro. No momento em que surge a incredulidade, oencanto se rompe; a magia, ou melhor, a arte fracassou. Ento estamos de novo no Mundo

  • Primrio, olhando de fora o pequeno Mundo Secundrio malogrado. Se formos obrigados aficar, por benevolncia ou circunstncia, ento a incredulidade precisar ser suspensa (ouabafada), do contrrio ser intolervel ouvir e olhar. Mas essa suspenso da incredulidade um substituto da coisa genuna, um subterfgio que usamos quando condescendemos em umjogo ou faz de conta, ou quando tentamos (mais ou menos voluntariamente) descobrir algumavirtude na obra de arte que para ns fracassou.

    Um verdadeiro entusiasta de crquete est no estado encantado: a Crena Secundria. Eu,quando assisto a uma partida, estou no nvel inferior. Consigo atingir (mais ou menos) asuspenso voluntria da incredulidade, quando sou mantido ali e sustentado por algum outromotivo que afaste o tdio: por exemplo, uma predileo desenfreada, herldica, pelo azulescuro sobre o claro. Assim, essa suspenso da incredulidade pode ser um estado de espritomeio cansado, aborrecido ou sentimental, portanto tendendo ao adulto. Imagino quefrequentemente seja esse o estado dos adultos na presena de um conto de fadas. Eles somantidos e sustentados pelo sentimento (lembranas da infncia, ou ideias de como deveriaser a infncia); acham que deveriam gostar do conto. Mas se realmente gostassem do conto,por ele mesmo, no teriam de suspender a incredulidade: acreditariam nesse sentido.

    Se Lang quisesse dizer algo assim, poderia haver alguma verdade nas suas palavras. Pode-se argumentar que mais fcil fazer funcionar o encantamento com crianas. Talvez seja,embora eu no tenha certeza. Muitas vezes acho que essa aparncia uma iluso adultaproduzida pela humildade das crianas, por sua falta de experincia crtica e de vocabulrio,e por sua voracidade (adequada ao crescimento rpido). Gostam ou tentam gostar do que lhes dado; quando no gostam, no conseguem expressar bem a sua averso nem dar motivos paraela (e portanto podem escond-la); e gostam indiscriminadamente de uma grande quantidadede coisas diferentes, sem se preocuparem em analisar os planos da sua crena. Em todo caso,duvido que essa poo o encantamento do conto de fadas eficaz realmente seja do tipo quese torna cega com o uso, menos potente aps repetidos goles.

    verdade? a grande pergunta feita pelas crianas, disse Lang. Sei que fazem essapergunta, e no uma pergunta que possa ser respondida de modo impulsivo ou displicente23.Mas dificilmente prova de crena afiada, nem mesmo de desejo por essa crena. Maisfrequentemente ela provm do desejo que a criana tem de saber que espcie de literatura estdiante dela. Muitas vezes o conhecimento do mundo pelas crianas to pequeno que elas noconseguem julgar, de improviso e sem ajuda, a distino entre o fantstico, o estranho (isto ,fatos raros ou remotos), o despropositado e o simplesmente adulto (isto , coisas comuns domundo de seus pais, cuja grande parte ainda permanece inexplorada). Mas reconhecem asdiferentes classes, e s vezes podem gostar de todas elas. claro que os limites entre elasfrequentemente flutuam ou se confundem, mas isso no vale s para crianas. Todos ns

  • conhecemos as diferenas de espcie, mas nem sempre temos certeza de como classificar algoque ouvimos. Uma criana pode muito bem acreditar num relato de que existem ogros nocondado vizinho; muitos adultos acham isso fcil de acreditar com respeito a outro pas; e,quanto a outro planeta, muito poucos adultos parecem capazes de imagin-lo povoado, se que povoado, por algo que no sejam monstros perversos.

    Fui uma das crianas s quais Andrew Lang se dirigia nasci mais ou menos na mesmapoca que o Green Fairy Book [Livro de fadas verde] , as crianas para as quais ele pareciapensar que os contos de fadas eram o equivalente do romance adulto e das quais disse: Seugosto permanece igual ao dos seus antepassados nus de milhares de anos atrs, e parecemgostar mais de contos de fadas do que de histria, poesia, geografia ou aritmtica.24 Mas serque realmente sabemos muita coisa desses antepassados nus, exceto que certamente noeram nus? Nossos contos de fadas, por mais antigos que sejam alguns dos seus elementos,certamente no so os mesmos que os deles. Porm, se assumirmos que temos contos de fadasporque eles os tinham, ento provavelmente temos histria, geografia, poesia e aritmticaporque eles tambm gostavam dessas coisas, na medida em que podiam obt-las, e na medidaem que j tinham separado os muitos ramos de seu interesse geral por tudo.

    E, no que se refere s crianas de hoje, a descrio de Lang no se ajusta s minhaslembranas, nem minha experincia com crianas. Talvez Lang estivesse enganado quanto scrianas que conhecia, mas, se no estava, pelo menos as crianas diferem consideravelmente,mesmo dentro dos estreitos limites da Gr-Bretanha, e essas generalizaes que as tratamcomo uma classe (desconsiderando seus talentos individuais e as influncias da regio em quevivem, e sua educao) so enganosas. Eu no tinha nenhum desejo de acreditar especial.Eu queria saber. A crena dependia do modo como as histrias me eram apresentadas, pelosmais velhos, ou pelos autores, ou do tom e da qualidade inerentes ao conto. Mas em nenhummomento consigo me lembrar de que gostar de uma histria dependesse da crena de queaquelas coisas poderiam acontecer, ou tinham acontecido, na vida real. Os contos de fadasclaramente no envolviam primordialmente a possibilidade, mas sim a desejabilidade. Sedespertavam desejo, satisfazendo-o ao mesmo tempo que muitas vezes o atiavaminsuportavelmente, tinham sucesso. No necessrio ser mais explcito aqui, pois pretendodizer adiante algo sobre esse desejo, um complexo de muitos ingredientes, alguns universais,outros particulares aos homens modernos (inclusive s crianas modernas), ou mesmo a certostipos de homens. Eu no desejava ter sonhos nem aventuras como Alice, e a narrao delessimplesmente me divertia. Eu tinha muito pouco desejo de procurar tesouros enterrados oucombater piratas, e a Ilha do Tesouro no me entusiasmava. Os peles-vermelhas erammelhores: nessas histrias havia arcos e flechas (eu tinha e tenho um desejo totalmenteinsatisfeito de atirar bem com arco), lnguas estranhas, vislumbres de um modo de vida

  • arcaico e, acima de tudo, florestas. Mas a terra de Merlin e Artur era melhor que eles, emelhor do que tudo era o norte sem nome de Sigurd dos Vlsungs, e o prncipe de todos osdrages. Essas terras eram preeminentemente desejveis. Nunca imaginei que o drago fosseda mesma ordem que o cavalo. E isso no s porque eu via cavalos todos os dias, mas nuncatinha visto nem a pegada de um lagarto25. O drago tinha nele, claramente inscrita, a marcaregistrada Do Reino Encantado. Fosse qual fosse o mundo em que ele tinha existncia, era umOutro mundo. A fantasia, a criao ou o vislumbre de Outros mundos era o cerne do desejo doReino Encantado. Eu desejava drages com um desejo profundo. claro que, com meu corpotmido, no queria t-los nas proximidades, intrometendo-se em meu mundo relativamenteseguro, onde por exemplo era possvel ler histrias em paz mental, livre de medo26. Mas omundo que continha at mesmo a imaginao de Ffnir era mais rico e mais belo, fosse qualfosse o custo do perigo. O habitante da plancie tranquila e frtil pode ouvir falar das colinasatormentadas e do mar sem colheita e ansiar por eles em seu corao. Pois o corao firme,por mais fraco que seja o corpo.

    Mesmo assim, por mais que eu agora perceba a importncia do elemento do conto de fadasnas leituras infantis, falando por mim quando criana, s posso dizer que o gosto pelos contosde fadas no foi uma caracterstica dominante das primeiras preferncias. O verdadeiro gostopor eles despertou depois dos dias de quarto de criana, e depois dos anos, poucos mas quepareciam longos, entre aprender a ler e ir para a escola. Naquele tempo (quase escrevi felizou dourado, mas na verdade foi triste e turbulento) eu tambm gostava, igualmente ou mais,de muitas outras coisas, como histria, astronomia, botnica, gramtica e etimologia. Eu nocondizia nem um pouco com as crianas generalizadas de Lang em princpio, e somente emalguns pontos por acaso: por exemplo, eu era insensvel poesia, e, quando ela aparecia nashistrias, eu a pulava. Descobri a poesia muito mais tarde, no latim e no grego, especialmentepor ser obrigado a tentar verter versos ingleses para versos clssicos. Um gosto real porcontos de fadas foi despertado pela filologia no limiar da idade adulta, e estimulado plenavida pela guerra.

    Talvez eu tenha dito mais que o suficiente sobre este ponto. Pelo menos ficar claro que naminha opinio os contos de fadas no deveriam ser especialmente associados s crianas.Eles so associados a elas naturalmente, porque as crianas so humanas e os contos de fadasso um gosto humano natural (porm no necessariamente universal); casualmente, porque oscontos de fadas representam grande parte do material literrio que a Europa recente relegouaos stos; no naturalmente, por causa de um sentimento errneo com respeito s crianas,um sentimento que parece aumentar com o decrscimo do nmero de crianas.

    verdade que a era do sentimento de infncia produziu alguns livros agradveis (pormespecialmente encantadores para adultos) da espcie das fadas ou prximos dela, mas tambm

  • produziu um espantoso matagal de histrias escritas ou adaptadas para o que se concebia ouconcebe ser o padro das mentes e necessidades infantis. As antigas histrias so abrandadasou expurgadas em vez de serem reservadas; muitas vezes as imitaes so simplesmente tolas,coisas de Pigwiggen sem nem sequer a intriga; ou condescendentes; ou (pior de tudo)dissimuladamente trocistas, de olho nos outros adultos presentes. No acusarei Andrew Langde fazer troa, mas certamente ele sorria consigo mesmo, e tambm certamente muitas vezesespiava o rosto de outras pessoas espertas por cima das cabeas de sua plateia infantil muitoem detrimento das Crnicas de Pantouflia.

    Dasent respondeu com vigor e justia aos pudicos crticos de suas tradues de contospopulares nrdicos. No entanto, cometeu a espantosa bobagem de proibir especialmente ascrianas de lerem os dois ltimos de sua coleo. Parece quase incrvel que um homempudesse estudar contos de fadas e no saber fazer melhor que isso. Mas nem a crtica, nem aresposta, nem a proibio teriam sido necessrias se as crianas no tivessem sidoconsideradas, desnecessariamente, as leitoras inevitveis do livro.

    No nego que h uma certa verdade nas palavras de Andrew Lang (por mais que possamsoar sentimentalistas): Quem quiser entrar no Reino Encantado dever ter o corao de umacriancinha. Pois essa posse necessria para toda aventura elevada, em reinos menores emuito maiores que o Reino Encantado. Mas humildade e inocncia isso que corao decriana deve significar nesse contexto no implicam necessariamente uma admirao isentade crtica, nem na verdade uma delicadeza isenta de crtica. Certa vez Chesterton observouque as crianas em cuja companhia assistiu ao Pssaro Azul, de Maeterlinck, ficaraminsatisfeitas porque no terminou com um Juzo Final, e no foi revelado ao heri e heronaque o Co foi fiel e o Gato infiel. Pois as crianas, diz ele, so inocentes e amam ajustia, ao passo que a maioria de ns malvada e naturalmente prefere a misericrdia.

    Andrew Lang foi confuso neste ponto. Empenhou-se em defender o assassinato do AnoAmarelo pelo Prncipe Ricardo em um de seus contos de fadas. Odeio crueldade, disse ele,[...] mas isso foi numa luta justa, espada na mo, e o ano, paz s suas cinzas!, morreu nocumprimento de sua misso. Porm no evidente que uma luta justa seja menos cruel queum julgamento justo; ou que trespassar um ano com uma espada seja mais justo que aexecuo de reis malignos e madrastas ms que Lang repudia: ele manda os criminosos(conforme se gaba) aposentadoria com amplas penses. Isso misericrdia no temperadapela justia. verdade que esse pleito no foi dirigido s crianas, e sim aos pais e tutores, aquem Lang recomendava seus Prncipe Prigio e Prncipe Ricardo como sendo adequados aosseus encargos27. Foram os pais e tutores que classificaram contos de fadas como Juvenilia. Eesta uma pequena amostra do falseamento de valores resultante.

    Se usamos criana no bom sentido (a palavra tambm tem, legitimamente, um mau sentido),

  • no devemos permitir que isso nos empurre para o sentimentalismo de s usar adulto no mausentido (a palavra tambm tem, legitimamente, um bom sentido). O processo de se tornar maisvelho no est necessariamente aliado ao de se tornar mais malvado, embora os dois muitasvezes ocorram juntos. Espera-se que as crianas cresam e no se transformem em Peter Pans.No para perderem a inocncia e o maravilhamento, mas para prosseguirem a viagemdeterminada, aquela em que certamente no melhor viajar esperanoso do que chegar, apesarde termos de viajar esperanosos se quisermos chegar. Mas uma das lies dos contos defadas (se que se pode falar em lies de coisas que no se ensinam) que, juventudeimatura, indolente e egosta, o perigo, o pesar e a sombra da morte podem conferir dignidade es vezes at sabedoria.

    No vamos dividir a raa humana em Eloi e Morlocks: crianas bonitas elfos, como osculo XVIII costumava cham-las idiotamente com seus contos de fadas (cuidadosamentedesbastados), e Morlocks sombrios cuidando de suas mquinas. Se o conto de fadas, comoespcie, merece ser lido, ento merece ser escrito por adultos e lido por eles. claro que elesacrescentaro mais e extrairo mais do que as crianas so capazes. Ento, como um ramo dearte genuna, as crianas podero ter a esperana de receber contos de fadas adequados paraelas lerem e ao seu alcance; assim como podero ter a esperana de receber introdues poesia, histria e s cincias que lhes sejam apropriadas. Embora talvez seja melhor paraelas lerem algumas coisas, em especial contos de fadas, que estejam alm do seu alcance eno aqum. Seus livros, como suas roupas, devem dar espao para crescer, e de todo modoseus livros devem promover o crescimento.

    Ora muito bem. Se os adultos devem ler contos de fadas como um ramo natural da literatura nem brincando de ser crianas, nem fingindo que esto escolhendo para crianas, nem sendomeninos que no querem crescer , quais so os valores e as funes dessa espcie? Esta ,penso eu, a ltima e mais importante pergunta. J apontei para algumas das minhas respostas.Antes de tudo: se forem escritos com arte, o valor primordial dos contos de fadas sersimplesmente aquele valor que, como literatura, eles compartilham com outras formasliterrias. Mas os contos de fadas tambm oferecem, em grau ou modo peculiar, estas coisas:Fantasia, Recuperao, Escape, Consolo, coisas de que as crianas por via de regra precisammenos que os mais velhos. Hoje em dia a maioria delas muito comumente consideradanociva para todos. Vou consider-las brevemente, e comearei pela Fantasia.

    FANTASIA

    A mente humana capaz de formar imagens mentais de coisas que no esto presentes de

  • fato. A faculdade de conceber as imagens (ou era) naturalmente chamada de Imaginao.Mas em tempos recentes, em linguagem tcnica, no normal, a Imaginao muitas vezes temsido considerada algo mais elevado que a mera criao de imagens, atribuda s operaes deFancyg (uma forma reduzida e depreciativa da palavra mais antiga Fantasy); assim, tenta-serestringir, eu deveria dizer perverter, a Imaginao ao poder de dar a criaes ideais aconsistncia interna da realidade.

    Por mais que possa ser ridculo algum to pouco instrudo ter uma opinio sobre esteassunto crtico, arrisco-me a considerar a distino verbal filologicamente inapropriada e aanlise imprecisa. O poder mental de criao de imagens uma coisa, ou aspecto, e deveriaser chamado, apropriadamente, de Imaginao. A percepo da imagem, a compreenso desuas implicaes, e o controle, que so necessrios a uma expresso bem-sucedida, podemvariar em vivacidade e intensidade, mas uma diferena de grau da Imaginao, no umadiferena de espcie. A realizao da expresso, que confere (ou parece conferir) aconsistncia interna da realidade28, na verdade outra coisa, ou aspecto, que necessita deoutro nome: Arte, o vnculo operativo entre a Imaginao e o resultado final, a Subcriao.Para meu presente objetivo preciso de uma palavra que possa englobar tanto a ArteSubcriativa em si quanto uma qualidade de estranheza e maravilhamento na Expresso,derivada da Imagem: uma qualidade essencial ao conto de fadas. Proponho, assim, atribuir-meos poderes de Humpty Dumptyh, e usar Fantasia para este fim, ou seja, num sentido quecombina com seu uso mais antigo e elevado, como equivalente de Imaginao, os conceitosderivados de irrealidade (ou seja, de dessemelhana com o Mundo Primrio), de liberdadeda dominao dos fatos observados, em suma, do fantstico. Assim, estou no s conscientemas contente com as conexes etimolgicas e semnticas de fantasia com fantstico, comimagens de coisas que no somente no esto presentes de fato, mas que na verdade nempodem ser encontradas em nosso mundo primrio, ou que geralmente se cr que no podem serencontradas nele. Mas, mesmo admitindo isso, no consinto o tom depreciativo. O fato de asimagens serem de coisas que no so do mundo primrio (se que isso possvel) umavirtude, no um defeito. Creio que a fantasia (neste sentido) no uma forma inferior de Arte,e sim superior, de fato a mais prxima da forma pura, e portanto (quando alcanada) a maispotente.

    claro que a Fantasia comea com uma vantagem: a estranheza cativante. Mas essavantagem tem se voltado contra ela, e contribuiu para sua difamao. Muitas pessoas nogostam de ser cativadas. No gostam de nenhuma interferncia com o Mundo Primrio, oucom os pequenos vislumbres dele que lhes so familiares. Portanto elas confundem, tolamentee at maldosamente, a Fantasia com o Sonho, no qual no existe Arte29; e com distrbiosmentais, nos quais no existe nem mesmo controle: com iluso e alucinao.

  • Mas o erro ou a maldade, engendrados pela inquietao e consequente averso, no so anica causa dessa confuso. A Fantasia tambm tem uma desvantagem essencial: difcil dealcanar. A Fantasia talvez seja, em minha opinio, no menos e sim mais subcriativa, pormde qualquer modo descobre-se na prtica que a consistncia interna da realidade ser tantomais difcil de produzir quanto mais as imagens e os rearranjos do material primrio foremdiferentes dos arranjos reais do Mundo Primrio. mais fcil produzir esse tipo derealidade com material mais sbrio. Portanto, com demasiada frequncia a Fantasiapermanece rudimentar; ela e foi usada frivolamente, ou com pouca seriedade, ou apenascomo decorao; permanece apenas fantasiosa. Qualquer pessoa que tenha herdado ofantstico dispositivo da linguagem humana pode dizer o sol verde. Muitos podem entoimagin-lo ou conceb-lo. Mas isso no basta embora j possa ser algo mais potente do quemuitos breves esboos ou reprodues da vida que recebem elogios literrios.

    Fazer um Mundo Secundrio dentro do qual o sol verde seja verossmil, impondo CrenaSecundria, provavelmente exigir trabalho e reflexo, e certamente demandar umahabilidade especial, uma espcie de destreza lfica. Poucos tentam tarefa to difcil. Mas,quando elas so tentadas e, em algum grau, executadas, temos uma rara realizao da Arte: naverdade, a arte narrativa, a criao de histrias em seu modo primordial e mais potente.

    Na arte humana a Fantasia algo que melhor incumbir s palavras, verdadeira literatura.Na pintura, por exemplo, a apresentao visvel da imagem fantstica tecnicamente fcildemais; a mo tende a suplantar a mente, at mesmo a derrub-la30. Frequentemente oresultado tolo ou mrbido. um infortnio que o Drama, uma arte fundamentalmente diversada Literatura, seja to comumente considerado junto com ela, ou como ramo dela. Entre essesinfortnios podemos contar a depreciao da Fantasia. Pois essa depreciao, pelo menos emparte, deve-se ao desejo natural dos crticos de exaltar as formas de literatura ouimaginao que eles prprios preferem, de modo inato ou por treinamento. E a crtica, numpas que produziu to importante Drama e tem as obras de William Shakespeare, tende a serdemasiado dramtica. Mas o Drama naturalmente hostil Fantasia. A Fantasia, mesmo dotipo mais simples, dificilmente tem xito no Drama, quando ele apresentado como deve ser,atuado de modo visvel e audvel. As formas fantsticas no podem ser simuladas. Homensvestidos de animais falantes podem redundar em bufonaria ou arremedo, mas no alcanam aFantasia. Penso que isso bem ilustrado pelo fracasso da forma bastarda, a pantomima.Quanto mais prxima do conto de fadas dramatizado, pior ela . S tolervel quando oenredo e sua fantasia se reduzem a mero enquadramento vestigial para a farsa, e nenhumacrena exigida nem esperada de ningum em nenhuma parte da encenao. Isso, claro,deve-se em parte ao fato de que os produtores do drama precisam, ou tentam, trabalhar commecanismos para representar a Fantasia ou a Magia. Certa vez assisti a uma assim chamada

  • pantomima para crianas, a histria exata do Gato de Botas, tendo at a metamorfose doogro em camundongo. Se tivesse sido um sucesso do ponto de vista mecnico, teriaaterrorizado os espectadores ou teria sido apenas um truque de prestidigitao de alta classe.Da maneira como foi feita, apesar de alguma engenhosidade na iluminao, a descrena teveno s de ser suspensa, mas tambm enforcada, estripada e esquartejada.

    Em Macbeth, quando lido, acho as feiticeiras tolerveis; elas tm uma funo narrativa ecomo que uma insinuao de significado sombrio, embora sejam vulgarizadas, pobresrepresentantes de sua espcie. Na encenao so quase intolerveis. Seriam absolutamenteintolerveis se eu no fosse fortalecido por alguma lembrana de como so na histria lida.Dizem-me que eu me sentiria diferente se tivesse o esprito daquela poca, com suas caas einquisies de feiticeiras. Mas preciso dizer: se eu considerasse as feiticeiras possveis, defato provveis, no Mundo Primrio; em outras palavras, se elas deixassem de ser Fantasia.Esse argumento conclusivo. Ser dissolvida, ou ser degradada, a provvel sina da Fantasiaquando um dramaturgo tenta us-la, mesmo um dramaturgo como Shakespeare. Macbeth defato uma obra de arte de um teatrlogo que deveria, pelo menos naquela ocasio, ter escritouma histria, se tivesse habilidade ou pacincia para essa arte.

    Uma razo, creio que mais importante do que a inadequao dos efeitos de palco, esta: oDrama, por sua prpria natureza, j empreende uma espcie de magia falsa, digamos pelomenos substituta: a apresentao visvel e audvel de pessoas imaginrias numa histria.Isso, por si s, uma tentativa de arremedar a varinha mgica. Introduzir, mesmo com sucessomecnico, mais fantasia ou magia nesse mundo secundrio quase-mgico, exigir como queum mundo interno ou tercirio. um mundo demais. Pode no ser impossvel conseguir isso.Nunca vi isso ser feito com xito. Mas pelo menos no pode ser proclamado como o modocorreto do Drama, em que pessoas que caminham e falam foram consideradas instrumentosnaturais da Arte e iluso31.

    Exatamente por essa razo o fato de no Drama os personagens, e mesmo as cenas, noserem imaginados mas observados o Drama, apesar de usar material semelhante (palavras,versos, enredo), uma arte fundamentalmente diferente da arte narrativa. Assim, sepreferirmos o Drama Literatura (como claramente preferem muitos crticos literrios), ouformarmos nossas teorias crticas primordialmente a partir de crticas de teatro, ou mesmo apartir do Drama, estaremos sujeitos a compreender mal a pura criao de histrias e arestringi-la s limitaes das peas de teatro. Por exemplo, provavelmente preferiremos ospersonagens, mesmo os mais ordinrios e obtusos, aos objetos. Muito pouca coisa a respeitode rvores como rvores pode ser introduzida numa pea.

    J o Drama do Reino Encantado aquelas peas que, de acordo com abundantesregistros, os elfos muitas vezes apresentaram aos homens capaz de produzir Fantasia com

  • um realismo e uma instantaneidade que ultrapassam os limites de qualquer mecanismohumano. Como consequncia, seu efeito usual (sobre um homem) ultrapassar a CrenaSecundria. Ao presenciarmos um drama no Reino Encantado, estaremos, ou pensaremosestar, pessoalmente dentro do seu Mundo Secundrio. A experincia pode ser muitosemelhante ao Sonho, e s vezes (pelos homens) tem sido (ao que parece) confundida com ele.Mas no drama do Reino Encantado estamos em um sonho que outra mente est tecendo, e oconhecimento desse fato alarmante pode escapar nossa compreenso. Experimentardiretamente um Mundo Secundrio: a poo forte demais, e ns lhe conferimos a CrenaPrimria, por mais que os acontecimentos sejam maravilhosos. Somos iludidos se essa ainteno dos elfos (sempre ou a qualquer tempo) outra questo. Seja como for, eles mesmosno esto iludidos. Para eles esta uma forma de Arte, distinta da Mgica ou Magiapropriamente dita. No vivem nela, embora possam, talvez, ter condies de gastar maistempo com ela do que os artistas humanos. O Mundo Primrio, a Realidade, o mesmo paraelfos e homens, ainda que apreciado e percebido de modo diverso.

    Precisamos de uma palavra para essa destreza lfica, mas todas as palavras que lhe tmsido aplicadas foram obscurecidas e confundidas com outras coisas. Magia uma que seapresenta prontamente, e usei-a acima (p. 11), mas no deveria. Magia deveria ser reservadas operaes do Mgico. A Arte o processo humano que produz de passagem CrenaSecundria (esse no seu objetivo nico nem final). Os elfos tambm conseguem usar Arteda mesma espcie, embora com mais habilidade e sem esforo, ou pelo menos isso que osrelatos parecem mostrar. Mas chamarei de Encantamento a destreza mais potente,especialmente lfica, por falta de palavra menos discutvel. O Encantamento produz umMundo Secundrio em que podem entrar tanto o planejador quanto o espectador, parasatisfao de seus sentidos enquanto esto dentro; mas em estado puro ele artstico pordesejo e propsito. A Magia produz, ou finge produzir, uma alterao no Mundo Primrio.No importa quem se diga que a pratica, fada ou mortal, ela permanece distinta dos outrosdois; no arte e sim tcnica; seu desejo poder neste mundo, dominao dos objetos e dasvontades.

    A Fantasia aspira destreza lfica, o Encantamento, e quando tem xito aproxima-se maisdele que todas as formas da arte humana. No cerne de muitas histrias de elfos feitas peloshomens reside, aberto ou dissimulado, puro ou mesclado, o desejo por uma arte subcriativaviva e realizada, que (por mais que se lhe assemelhe exteriormente) interiormente bemdiferente da avidez por poder autocentrado que a marca do simples Mgico. desse desejoque os elfos, na sua melhor parte (ainda assim perigosa), so feitos em grande parte; e comeles que podemos aprender qual o desejo e aspirao central da Fantasia humana mesmoque os elfos sejam, mais ainda na medida em que so, somente um produto da prpria

  • Fantasia. Esse desejo criativo s ludibriado por imitaes, quer sejam os artifciosinocentes mas desastrados do dramaturgo humano ou as fraudes malvolas dos mgicos. Nestemundo, ele insacivel para os homens, e portanto imperecvel. Incorrupto, no busca ilusonem feitio e dominao; busca enriquecimento compartilhado, parceiros no fazer e no deleite,no escravos.

    Para muitos a Fantasia, essa arte subcriativa que prega estranhas peas ao mundo e a tudo oque h nele, combinando substantivos e redistribuindo adjetivos, parece suspeita, se noilegtima. Para alguns ela parece no mnimo uma tolice infantil, algo que s serve para povosou pessoas em sua juventude. Sobre sua legitimidade farei apenas citar um breve trecho deuma carta que certa vez escrevi para um homem que descreveu o mito e o conto de fadas comomentiras; mas, para lhe fazer justia, ele foi suficientemente gentil e estava suficientementeconfuso para chamar a criao de contos de fadas de Sussurrar uma mentira atravs dePrata.

    Dear Sir, I said Although now long estranged,

    Man is not wholly lost nor wholly changed.

    Dis-graced he may be, yet is not de-throned,

    and keeps the rags of lordship once he owned:

    Man, Sub-creator, the refracted Light

    through whom is splintered from a single White

    to many hues, and endlessly combined

    in living shapes that move from mind to mind.

    Though all the crannies of the world we filled

    with Elves and Goblins, though we dared to build

    Gods and their houses out of dark and light,

    and sowed the seed of dragons twas our right

    (used or misused). That right has not decayed:

    we make still by the law in which were made.i

    A Fantasia uma atividade humana natural. Certamente ela no destri a Razo, muitomenos insulta; e no abranda o apetite pela verdade cientfica nem obscurece a percepodela. Ao contrrio. Quanto mais arguta e clara a razo, melhor fantasia produzir. Se oshomens estivessem num estado em que no quisessem conhecer ou no pudessem perceber averdade (fatos ou evidncia), ento a Fantasia definharia at que eles se curassem. Se

  • chegarem a atingir esse estado (no parece totalmente impossvel), a Fantasia perecer e setransformar em Iluso Mrbida.

    Pois a Fantasia criativa se fundamenta no firme reconhecimento de que as coisas so nomundo assim como este aparece sob o sol; no reconhecimento do fato, mas no naescravizao a ele. Assim fundamentou-se na lgica o absurdo que aparece nos contos epoemas de Lewis Carroll. Se as pessoas realmente no conseguissem distinguir sapos dehomens, no teriam surgido contos de fadas sobre reis sapos.

    claro que a Fantasia pode ser levada ao exagero. Pode ser malfeita. Pode servir a maususos. Pode at iludir as mentes das quais surgiu. Mas, neste mundo cado, para que coisahumana isso no verdade? Os homens no s conceberam elfos, mas imaginaram deuses, eos cultuaram, e cultuaram at aqueles mais deformados pelo mal de seu prprio autor. Masfizeram falsos deuses a partir de outros materiais: suas opinies, seus estandartes, seusdinheiros; at suas cincias e suas teorias sociais e econmicas demandaram sacrifciohumano. Abusus non tollit usum. A Fantasia continua sendo um direito humano: fazemos emnossa medida e a nosso modo derivativo, porque somos feitos, e no apenas feitos, mas feitos imagem e semelhana de um Criador.

    RECUPERAO, ESCAPE, CONSOLO

    Quanto velhice, seja ela pessoal ou dos tempos em que vivemos, talvez seja verdade,como se supe frequentemente, que ela impe incapacitaes (ver p. 34). Mas essa essencialmente uma ideia produzida pelo simples estudo dos contos de fadas. O estudoanaltico de contos de fadas uma preparao to ruim para apreci-los ou escrev-los quantoseria o estudo histrico do drama de todos os pases e tempos para apreciar ou escrever peasde teatro. O estudo pode na verdade tornar-se deprimente. fcil o estudioso sentir que, comtodo o seu trabalho, est coletando apenas umas poucas folhas, muitas agora rotas oudeterioradas, da incontvel folhagem da rvore dos Contos, com as quais atapetada aFloresta dos Dias. Parece intil aumentar essa camada. Quem consegue projetar uma novafolha? Os padres do boto at o desabrochar e as cores da primavera at o outono foramdescobertos pelos homens h muito tempo. Mas isso no verdade. A semente da rvore podeser replantada em quase qualquer solo, mesmo to saturado de fumaa (assim disse Lang)como o da Inglaterra. claro que, realmente, a primavera no menos bonita porque vimos ououvimos falar de outros eventos semelhantes: eventos semelhantes, nunca o mesmo evento docomeo do mundo ao fim do mundo. Cada folha, de carvalho, freixo e espinheiro, umaconcretizao singular do padro, e para alguns este ano mesmo talvez seja a concretizao, a

  • primeira j vista e reconhecida, apesar de os carvalhos terem produzido folhas duranteincontveis geraes de homens.

    No desanimamos, ou no precisamos desanimar do desenho porque todas as linhas tm deser curvas ou retas, nem da pintura porque s existem trs cores primrias. Na verdadepodemos agora ser mais velhos, na medida em que somos herdeiros, na apreciao ou naprtica, de muitas geraes de ancestrais nas artes. Nessa herana de fartura pode haver operigo do tdio ou da ansiedade por ser original, e isso pode levar averso por