adorno, theodor - palestra sobre lirica e sociedade in notas de literatura i

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~.~ W.~.o N ota ~ c)2, LJt-eRa1-0Q cl. :r:.. Palestra sobre lírica e sociedade U anúncio de lima palesrra sobre lírica e sociedade dev pro\'()car, em muiros dos senhores, lIm ceno desconforto. Esra rflo esperando lima dessas consideraçóes sociológicas que poden ser alinhavadas a bel-prazer sobre qualquer objero, assim comI há cinqÜenra anos se invenravam psicologias e, h,i rrinra, feno menologias de rodas as coisas imagináveis. Além disso, ficarã< desconfiados de que o exame das condições sob as quais derer minadas configurações r Gebilde] foram criadase recebidas que se inrromerer no lugar da experiência delas mesmas; de que su bordinaçães e relações deixarão de lado a percepção da verdad( ou inverdadc do próprio objeto. Os senhores levanrarão a sus. peita de que um intelectual pode acabar se rornando culpadc daquilo que Hegel reprovava no "intelecto formal", ou seja, pai [er uma perspecriva geral do rodo, ficar acima da exisrência sino guiar de que hlla, isroé, simplesmenre não vê-Ia, apenas eriquerá. Ia. O que incomoda em um procedimcl1[o como este sed espe- cialmenre sensível, para os senhores, no caso da lírica. Afinal. rrara-se de manusear o que há de mais delicado, de mais fdgil. aproximando-o justamente daquela engrenagem, de cujo con- [aro o ideal da lírica, pelo menos no senrido rradicional, sempr( prcrendeu se resguardar. Uma esfera de expressão que [em sua 65

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Page 1: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

~.~ W.~.oNota ~ c)2, LJt-eRa1-0Q cl. :r:..

Palestra sobrelírica e sociedade

U anúncio de lima palesrra sobre lírica e sociedade dev

pro\'()car, em muiros dos senhores, lIm ceno desconforto. Esra

rflo esperando lima dessas consideraçóes sociológicas que poden

ser alinhavadas a bel-prazer sobre qualquer objero, assim comI

há cinqÜenra anos se invenravam psicologias e, h,i rrinra, feno

menologias de rodas as coisas imagináveis. Além disso, ficarã<

desconfiados de que o exame das condições sob as quais dererminadas configurações rGebilde] foram criadase recebidasquese inrromerer no lugar da experiência delas mesmas; de que su

bordinaçães e relações deixarão de lado a percepção da verdad(

ou inverdadc do próprio objeto. Os senhores levanrarão a sus.

peita de que um intelectual pode acabar se rornando culpadc

daquilo que Hegel reprovava no "intelecto formal", ou seja, pai

[er uma perspecriva geral do rodo, ficar acima da exisrência sino

guiar de que hlla, isroé, simplesmenrenão vê-Ia,apenas eriquerá.Ia. O que incomoda em um procedimcl1[o como este sed espe-cialmenre sensível, para os senhores, no caso da lírica. Afinal.

rrara-se de manusear o que há de mais delicado, de mais fdgil.

aproximando-o justamente daquela engrenagem, de cujo con-

[aro o ideal da lírica, pelo menos no senrido rradicional, sempr(

prcrendeu se resguardar. Uma esfera de expressão que [em sua

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Page 2: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Notas de literallJra I Palestra sobre lírica e sociedade

e~sêl)cia prccisamcnrc em nflo reconhecer () poder da socializa-

ção, ou em suped-Ia pc/o ptlt/;()Jda disr;'lIlcia, COlHOno caso de

Baudelairc ou de Nierzsche, deve ser arrog.anrcl11enrc transfor-mada, por esse tipo de consideração, no cOlHdrio do modo co-

mo concebe a si mesma. Quem seriacapazde falar de lírica c so-

ciedade, pergunl;trão, sen;io algul-m tol:llmcn t~'dcs:lIl1par:Hlopelas musas?

Obviamenre. eSS;1suspeita sÓ pode sei cnf"n:nl:HI:Iqu:mdocomposições líricas nflo si'ioabusivall1clm.' lOIl1:ldascomo ohje-

tos de demonstração de tesessociol6gicls, mas sim quando sua

refcrência ao socialrevela nelasprÓpriasalgo de csscncial.algodo fundamenro de Sllaqualidade. A referência ao socialni'io deve

levar para fora da obra de ane, mas sim levar mais fundo para

dentro dela, É isso o que se deve esperar, e até a mais simples

reflexão caminha nesse sentido. Pois o teor [Gehalt] de um poe-

ma não é a mera expressão de emoções e experiências individuais.

Pelo contrário, estas só se tornam arrísticas quando, jusramente

em virtude da especificação que adquirem ao ganhar forma es-tética, conquistam sua participação no universal. Não que aquilo

que o poema lírico exprime renha de ser imediaramc/He aquilo

que todos vivenciam. Sua universalidade não é uma {l%nté c/c.'

tom, não é a da mera comunicação daquilo que os outros sim-

plesmente não são capazes de comunicar. Ao contrário, o mer-

gulhono individuadoelevao poemalírico ao universal por ror-

\ nar manifesto algo de nflodisron.:ido,de não caplado, de aindanão subsumido, anunciando desse modo, por anrecipação, algo

de um estado em que nenhum universal ruim, ou seja, no fun-

do algo particular, acorrenre o ourro, o universal humano. A

composição lírica tem esperançade eXHair. da mais irrcsrritaindividuação, o universal. O risco peculiar assumido pela lírica,

entretanto, é que seu princípio de individuaçãonãogaranrc nun-ca que algo necessário e autêntico venha a ser produzido. Ela não

rem o poderde evir;]rpor complero° riscodepermanecernaconringênciadeumaexistcnciameramcnteisolada.<-

Essa universalidade do teor lírico, contUdo, é esscncialmen-

te social. Só entende aquilo que o poema diz quem escura, em

sua solidão, a voz da humanidade; mais aineb, a prÓpria solidi'io

dapalavralíricaépré-traçadapelasocicebdc individualisra l', CITIúlrima an,lIise,aromísrica,assimcomo. inversamenrc.sua capa-cidadedecriar vínculos universais [(rI(~~~JJJ('il/c\!c/'!Jim/lit'!JI.:{'Új

\'íve dadensidadede sua individuação.Por issomesmo,o pen-S:lJ'sobre a obra de arte esd aurori'l.adoc compromcl"idoa per-gllJ1lar concrcramenre pelo teor social, a não se satisf"azercom o

vago sentimenro de algo universal e abrangente, Esse tipo dedeterminação pelo pensamento não é uma reflexão externa e

alheia à arte, mas antes uma exigência de qualquer configuração

lingÜística. O material próprio dessa configuração, os conceitos,

não se esgota na mera intuição. Para poderem ser estericamemeintUídos, os conceitos sempre querem ser também pensados, e

o pensamento, uma vez posro em jogo pelo poema, não podemais, a seu comando, ser sustado,

Essepcnsamcnro, porém, a inl"erprctaçãosocialda lírica, co-

mo aliás de todas as obnt~ de arte, I~ãopode porranto ter em mira,sem mediação, a assim chamada posição social ou a inserção so-Cialdos interesses das obras ou até de seus aUtores, Tem de esta-

helecer,em ve7,disso, como o fOr/Oeleuma sociedade,mmada

C0l110unidade em si mesma contraditória. aparece na obra de

arte; mostrar em que a obra de arte lhe obedece e em que a ultra-

passa. O procedimento tem de ser, conforme a linguagem da filo-sofia, imancnte. Conceitos sociais não devem ser trazidos de fora

;\$composições líricas,massim dcvemsurgir da rigorosaintuiçãodelas mesmas. Aquela frase das Máximas e reflexõesde Goethe',

que diz que o que não entendes tU também não possuis, não valesomente para o relacionamento estético com obras de arte, v.ale

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Page 3: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Notas de literatura I Palestra sobre lírica e sociedade

la/IJI)cITIpara a teoria estética: nada que não esteja nas obras, em

sua forma específica, legirima a decisão quanro àquilo que seu

reor, o que foi poeticamenre condensado, represema e1l1termossociais. D,eterminá-Io requer, sem dúvida, não sÓo saber da obrade arte por dentro, como também o da sociedade fora dela. IV!as

esse saber só cria vínculos quando se redescobre no puro aban-donar-se à própria coisa. Recomenda-se vigil;lI1cia, sobrerudo,

perante o conceito de ideologia, hoje dehulhado até o limite dosuportável. Pois ideologia é inverdade, falsa consciência, menri-

ra. Ela se manifesta no malogro das obras de ane, no que estas

têm de falso em si mesmas, que deve ser apontado pela crítica.

Mas dizer de grandes obras de arte, que rêm sua essênciano po-der de configuração e apenas por isso são capazes de uma recon-ciliação tendencial das contradições fundamentais da exisrência

real, que elas são ideologia, não é simplesmenre fazer injusriça aopróprio teor de verdade dessas obras, é também falsear o conceito

de ideologia. Este não afirma que rodo o espírito serve apenaspara que alguns homens eventualmente escamoteiem evenruais

interesses particulares, fazendo-os passar por universais, mas sim

quer desmascarar o espíriro determinado a ser Gllsoe, ao mes-

mo tempo, apreendê-Io conceirualmenre em sua necessidade.

Obras de arte, entretanto, rêm sua grandeza unicamente em dei-

xarem [,1laraquilo que a ideologia esconde. Seu prÓprio êxito,clucr elasqueiram ou não, passaalém da f~ds;!cOIl~cjC:llci;1.

Permiram-me que tome como pomo de panida a prÓpria

desconfiança dos senhores, que selltem a lírica como algo opostoà sociedade, como algo absolutamente individual. f\ a(C'lividade

dos senhores faz quesrão de que issopermaneça assim, de que aexpressão lírica, desvencilhada do peso da objeriviebdc, evoque

a imagem de uma vida que seja livre da coerçáo da pd.xis domi-nante, da utilidade, da pressão da auroconservação obrusa. Con-

rudo, essa exigência feita à lírica, a exigência da palavra virginal,

~ em si mesma social. Implica o proresto ,contra uma siruação so-

cial que todo indivíduo experimenta como hostil, alienada, fria

c opressiva, unla siruação que se imprime em negarivo na confi-

guração lírica:quanto mélisessasituação pesa sobre ela,mais in-flexivelmente a configuração resisre, não se curvando a nada de

hcrerÔnomo e consliruindo-se inreiramente segundo suas prÓ-prias leis. Seu disranciamenro da mera existência roma-se a medi-

da do que há nestade f~tlsoe de ruim. Emprotesto contra ela, ()

poema enuncia o sonho de um mundo em que essasituação ~;eria

difcrcnre. t\ idiossincrasia do espíriw lírico contra a prepor('.nciadas coisas'é uma forma de reação à coisificação do mundo, ;1

dominação das mercadorias sobre os homens, que se propagou

d.esde o início da Era Moderna e que, desde a Revolução Indus-trial, desdobrou-se em força dominanre da vida. Mesmo o culto

à coisa [Ding/eult],pretendido por Rilke,já perrenceao círculoencanrado de tal idiossincrasia,como uma rentativa de assimi-

lar e resolver na expressão subjetivamente pura as coisas aliena-das, creditando metafisicamente em favor delas essa sua aliena-

ção. A fraquezaestéticadesse culto à coisa,seu gesto afetadamen-te misterioso e sua misrura de religião e artesanato, denuncia ao

mesmo tempo o rcal poder da coisifJcação,que não se dcixa maisdourar por ne~';huma aura lírica, nem se resgatar pelo senrido.

Quando se diz que o conceiro de lírica, para nÓsalgo ime-di:lro Caté cerro pomo uma segundanatureza, rem um (adtercompletamente moderno, apenas se está exprimindo de manei-

ra diferente essa percepção da essência social da lírica. De modo

an,l!ogo, a pintura de paisagens e sua idéia de "natUreza" sÓ se

desenvolveram autonomamente na Idade Moderna. Sei que es-

[Ou exagerando ao dizer isso,e que os senhores poderiam retru-car com muitos conrra-exemplos.O mais incisivoseriaSafo. Nãofalo da lírica chinesa, japonesa ou ,írabe, pois não a leio no ori-ginal e nurro a suspeira de que atravésda tradução ela é apanha-

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Page 4: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Notas rle literatura I Palestra sobre lírica e sociedade

dapor um mecanismoadapra!ivoque torna cO!llplctamcnreim-possível o enrendimenro adequado. Mas as manifesrações mais

anrigasdo espírito lírico, no senrido específico que nos é f:lIl1i-liar, só reluzem csporadiGlI1!(,Il!l', assim COl1l0cerros (lIndos da

pintura amiga às vezes anrecipam, carregados de press;ígio, a idéia

da pinrura de paisagens.Elasnão estabelcccm a 1~)l"fn;1.Aquelesgrandes poetas do passado r('moro que s;io (lassil~cados pl'lns

conceiros hisrÔrico-litedrios corno repn:Sl'llIa!IIi.'Sd;1lírica, p(Jrexemplo Píndaro e Alccu, mas também hoa parte da ohr;t de\Valther von der Vogclweide, estão a uma disdncia dcscoll1un;11

denossa mais primária represcfllaçãodo que sejaa Iíríca. Falra-

Ihes aquele cadter do imediaw, do desrnatcrializado. quc noshabituamos a considerar, justa ou injusramenre, como critério

da lírica, e que apenas uma rigorosa formação [Bildul1g] culru-ral nos permite superar.

Entretanto, aquilo que entendemos por lírica, alHesmes-mo que tenhamos ampliado hisraricamcnre esse conceiro ou odirecionado criticamente conrra a esfera individualista. contém

em si mesmo, quanto mais "pura" ela se oferece, o momento da

fratura..o cu quc ganha voz na lírica é um eu que se derennina

e se exprime como opostO ao coletivo, à objetividade; sua iden-

tificação com a narureza, à qual sua expressão se refere, também

não ocorre sem mediação. O eu lírico acabou perdcndo. por as-

sim dizer, essa unidade co'm a natureza, e agora se cmpenha em

restabelecê-Ia,pelo <lnimisrnoou pc/o mergulho no prÓprio eu.'$omente através da humanização há. de ser devolvido à nature-

za o direitOque lhe foi tirado peladominação humana da naru-reza. Mesmo aquelas composições líricas nas quais não se imis-

cui nenhum resíduo da existência convencion.lI e objetiva, ne-

nhuma materialidade crua, as mais alras composições conheci-

das por nossa língua, devem sua dignidade justamenre à força

com que nelas o eu desperra a aparência da natUreza. escapando

à alienação. A pura subjetividade dessas composições, aquilo que

nelaspareceharmÔnico e não fraturado, testemunha o contr;Í-rio, O sofrimento com a existência alheia ao sujeito, bem como

o amor a essa L'xist0ncia _o_o.ali;ís, sua harmonia não é propriamcl1-

re nada mais que a consonància rcdpmel desse sofrimento e desseamor. Os versos de Cocrhe "\F/lrtc Imr, balde / rubes! dll d/ld/'

!Espera um pouco, logo i lU repousar;ís também] ainda rêm o

~~l~Srode cOl1sohç,"ío:sua ahissal bekza (: inscpadve! daquilo que

eles calam, da represcl1lação de um mundo que rejeita ;1paz.

Somenre ao companilhar o luto por essa sitUaç;io o rom do poe-

ma reafirma que, apesar de rudo, h;ípaz. Quase seríamos tenra-

dos a ir buscar em auxílio, no poema vizinho de mesmo ríntlo,o verso "Ach, ich bin eles Tl'eibens müde" [Ah, estou cansado da

faina], para servir de inrerpretação ao "Wanderers Nachdied"

[Noturno do andarilho]. Este poema certamente deve sua gran-

dezaao Euo de que náo bla de nadaalienado e perturbado r, deque, nele próprio, o desassossego do objeto não é contraposto ao

sujeira: pelo contrário, o poema reverbera o desassossego do pró-

prio sujeito. É prometida uma segunda imediatidade: o que é

humano, a própria linguagem, aparece como se fosse ainda uma

vez a criação, enquanto tudo o que vem de fora se extingue noeco da alma. Esse elemento humano, porém, é mais que aparên-

cia, torna-se verdade integral porque, graças à expressão verbaldo bom cansaço, ainda paira sobre a conciliação a sombra cioanseio,e mesmoda morre: no verso" \f/ar/e 1lI1J',balde"a vida

inreira se transforma, com enigmático sorriso de tristeza, no breveinstante que antecede o adormecer. O rom de paz testemunha

que a paz não foi alcançada, sem que entretanto o sonho tenha

sido rompido. A sombra não rem nenhum poder sobre a ima-gem da vida que rerorna a si mesma, mas somente ela confereao sonho, como Últimalembrança de sua deformação, a pesada

profundidade sob a canção sem peso. No semblanre ela namre-

Page 5: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Notas do literatura I Palestra sobre lírica e sociedade

l.a t.:m repouso, do qual seapagaram os tra~'osde qualqucr serne-lhança humana, o sujeito inrerioriza sua própria nulidade. Im-

perceptivelmenre, a ironia roça em silêncio o que há de conso-

lador no poema: os segundos que anrecedcm a bcrn-aven rurançado sono são os mesmos que separam da morre a curta vida. Essa

sublime ironia, depois de Goerhe, decaiu em sarcasmo. Mas sel11-

pre foi burguesa: a exalração do sujciro liberrado rraz consigo,

como sua sombra, o rcbaixamclHodo sujei(o ,Icondiçío de algopermut.ivel, de mero ser para ourro; a personalidade {Tal.consi-

go a humilhação do "O que você pensa que e". 1\ :lurenricída-d d "N n .. .

e o oturno, enrretanto, esta em scu Instante: o que esta por

trás de sua força destl"uriva ahlSta-o da esfera do jogo, enquantoessacapacidadede destruiçãoainda não exercenenhuma violên-

cia sobre o poder não-violento da consolação. Costuma-se dizer

que um poema lírico perfeito tem de possuir rotalidade ou uni-

versalidade, tem de oferecer, em stla limitação, o rodo; em sua

finirude, o infinito. Se isso for algo mais que um lugar-comumdaquela estética que rem sempre;\ mão, corno panacéia univer-

sal, o conceito do simbólico, emão isso mostra que em cada poe-

ma lírico devem ser encontrados, no lIIt'rlilllJ/do t'spírito .~uhjt'-

tivo que se volta sobre si mesmo, os sedimentos da relação his-tórica do sujeira com a objetividade, do indivíduo com a socie-

dade. Esse processo de sedimentação sed tanco mais perfeitoquanto menos a composição lírica tematizar a relação encre o eu

e a sociedade, quanto mais involuntariamenre essa relação for.cristalizada, a partir de si mesma, no poema.

Os senhores poderão objerar-me quc, determinando as coi-

sas desse modo, eu reria sublimado a tal palHa a relação earre lí-

ricae sociedade,por temer o sociologismogrosseiro,quc no fun-do nada mais resta dessa relação: exaramenre o não-social no poe-ma lírico seria agora o seu elememo social. Poderiam recordar-. ....

me aquela caricatura de Gusrave Doré, de UI11deputado ulrra-

reacionário que vai intensificando seu louvor ao Anâen R{~r;i1lle,

até chegar à exclamação: "E a quem, meus senhores, devemosagradecer pela revolução de 1789, a quem, senão a Luís XVI?".

Os senhores poderiam aplicar isso à minha concepção de lírica

e sociedade: nela a sociedadedesempenharia o papel do rei exe-curado, e a lírica o papel daqueles que o combateram; mas a lí-rica pode tão pouco ser explicada a partir da sociedade quantoo mérito da revolu~'ão pode ser atribuído ao monarca que ela

derrubou, mesmo que as tolices do rei tenham contribuído de-cisivamente para que ela irrompesse naquele momento históri-

co. Resrasaberse o depuradode Doré era efetivamenteapenasum propagandista estúpido e cínico, tal como o desenhista o ri-dicularizou, ou se em sua piada involunrária não h.t mais verda-

de do que admite o saud.íve/ bom senso; a fJlosollada históriade Hegel teria muiro com que contribuir para a reabilitação da-

quele deputado. No entanto, a comparação não é inreiramentejusta. Não se trata de deduzir a lírica da sociedade; seu teor so-

cial é justamente () espontâneo, aquilo que não é simples conse-

qÜência dasrelações vigentes em dado momento. Mas a filoso-

fia -- novamcnte a de Hcgd - conhece a proposição cspecula-

riva que diz que o individual é mediado pelo universal e vice-

versa. Ora, isso quer dizer que rambém a resistência conrra a

pressão social não é nada de absoluramenre individual; nessa re-

sistência agem arristicamente, arravés do indivíduo e de sua es-pontaneidade, as forças objetivas que impelem para além de LImasituação social limitada e limiranre, na direção de uma siruação

social digna do homem; forças, portamo, que tàzcl11parte de LImaconstiruição do todo, não meramenre da individualidade infle-

xível,que se opõe cegamenreà sociedade.Se, em virrude de sLla

prÓpria subjetividade, pode-se falar do reor lírico como sendoobjetivo - caso comrário não seria possível explicar o simples

faro que fundamenta a possibilidade da lírica como gênero ar-

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Page 6: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Notas de literatura I Palestra sobre lirica e sociedade

dstico: seu efeito sobre outros que não o poera em monÓlogo_.

consigo mesmo -, issosó ocorre se a obra de arre líricl. ao re-trair-se e recolher-se em si mesma, em scu disr;lncialllC'nro da

superfície social, for motivada socialmelHc. por sohre a cabeça

do auror. O meio para isso. porém. é a lin~uagem. O paradoxo

específico da configuração lírica. a subjeri\.jebdc que se reverre

em objetividade, está ligado a essa prim,1'l.iada conformação lin-

gÜísticana lírica, da qual provém o primado da linguagem nacriação literária em geral, aré nas formas em prosa. Pois :1prÓ-

pria linguagem é algo duplo. Arravés de suas connguraç:ões, a

linguagem se molda inreiramente aos impulsos subjerivos; umpouco mais, e se poderia chegar a pensar que somcnre ela os b.z

amadurecer. Mas ela conrinua sendo, por outro lado, o meio dosconceitos, algo que estabelece uma includvcl rderência ao uni-

versal e à sociedade. As mais altas composiçÔes líricas são, porisso, aquelas nas quais o sujeiro, sem qualquer resíduo da mera

matéria, soa !lê.linguagem, até que a própria linguagem ganha

voz. O amo-esquecimento do sujeiro, que se entrega à lingua-

gem como a algo objetivo, é o mesmo que o cadter imediara e

involunt,írio de sua expressão: assim a linguagem estabelece a

~ediação entre lírica e sociedade no que h;í de mais intrínseco.Por ISso, a lírica se mostra mais profundamenre assegurada, em

termos sociais, ali onde não f.11aconforme o gosto da sociedade,ali onde não comunica nada. mas sim onde o sujeitO, alcançan-

do a expressão feliz, chega a uma sintonia com a própria lingua-

gem, seguindo o caminho que ela mesma gosraria de seguir.Mas a linguagem, por outro lado, também não deve ser

absolurizada enquanto voz do Ser, oposra ao sujeira lírico, como

agradaria a muitas das reorias onrolÓgicas da linguagem em voga

atUalmenre. O sujeito, cuja expressão é necess;íria, cm Elce da

mera significaçãode conreúdosobjetivos,paraque se alcanceessacamada de objetividade lingüística,não é um adendo ao próprio

real' dessa camada, nãoéalgoexrernoaela.O insrantedo auto-

~squecimenro. no qual o sujeito submerge na linguagem, nãoconsiste no sacrifício do sujeira ao Ser. Não é um insranre de

violência, nem sequer de violência contra o sujeito, mas um ins-

tante de reconciliação: a linguagcm fala por si mesma apenas

quando deixa de falarcomo algo alheio e se rama a própria vozdo sujeiro. Onde o eu se esquece na linguagem, ali ele est,í in-teiramentc presenre: senão a linguagem, convertida em abraca-dabra sacralizado. sucumbiria ~ reificação, como ocorre no dis-

curso comunicarivo. ivias isso nos leva de volra à quesrão da re-

lação real enrre indivíduo e sociedade. Não apenas o indivíduo

é socialmente mediado em si mesmo, não apenas seus conteÚ-

dos são sempre, ao mesmo tempo, rambém sociais, mas, inver-

samente, também a sociedade configura-se e vive apenas em vir-

[llde dos indivíduos, dos quais ela é a quinressência [IlIbegl'ijf].

Se cerca vez a grande filosofia construiu a verdade, hoje sem dÚ-

vida desdenhada pela lógica da ciência, de que S.lIjeime objeto

não seriam pólos rígidos e isolados, mas só podem ser determi-

nados a partir do processo em que se elaboram e modificam mu-ru;1me~te, então a lírica é a conrraprova estética desse filosofema

dialérico. I:Jo poema lírico o sujeito nega, por idemificação coma lingll<lgem,tamo sua mera contradição monadológica em re-

lação à sociedade, quanto seu mero funcionar no intcrior da so-

ciedade socializada. Quanto mais cresce, porém, a ascendência

desta sobre o sujeira, mais prccária é a situação da lírica. A obra

a~Ba~;d~laire foi a primeira a registrar esse processo, na~"edidaem que, como a mais alraconseqÜênciado vefeltJCh11lel'z[dor do

mundo] europeu, n,ão se comenrou com os sofrimenros.do in-divíduo, mas escolheu como tema de sua acusação a própria mo-

dernidade. enquanto negação completa do lírico, extraindo delasuas flíscas poéticas, por força de uma linguagem heroicamente:?stilizada. Em Baudelairc já se anuncia um elemento de deses-

Page 7: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Notas de literatura I Palestra sobre lírica e sociedade

ríscico: seu efeito sobre outros que não o poeta em monÓlogoconsigo mcsmo -, isso só ocorre se a obra de arfe lírica. ao re-trair-se e recolher-se em si mesma, em scu disranciamcnro da

superfície social. for morivada socialmente. por sobre a cabeça

do autor. O meio para isso. rorém. é a lin~~uag(:m.O paradoxoespecífico da configuração lírica, a subjer.i\"idade que se re\lene

em objetividade, está ligado a essa prim,l'l.ia da conformaç;10 lin-

gÜística na lírica, da qual provém o primado da linguagem na

criação literária em geral, até nas formas em prosa. Pois a prÓ-

pria linguagem é algo duplo. Através de suas conl~gurações, a

linguagem se molda inteiramente aos impulsos subjetivos; umpouco mais, e se poderia chegar a pensar que somcl1[e ela os faz

amadurecer. Mas ela continua sendo, por outro lado, o meio dos

conceitos, algo que estabelece uma ineludvcl referência ao uni-

versal e à sociedade. As mais alrascomposições líricas são, porisso, aquelas nas quais o sujeira, sem qualquer resíduo da mera

matéria, soa n;;. linguagem, até que a própria linguagem ganha

voz. O aUto-esquecimento do sujeiro, que se entrega à lingua-gem como a algo objetivo, é o mesmo que o caráter imediatO e

involunr;írio de sua expressão: :lssim a linguagem esrabelece a

mediação entre lírica e sociedade no que há de mais intrínseco.

Por isso, a Ifrica se mostra mais profundamente assegurada, em

termos sociais, ali onde não f.11aconforme o gosto da sociedade,ali onde não comunica nada, mas sim onde o sujeito, alcançan-

do a expressão feliz, chega a uma sintonia com a própria lingua-

gem, seguindo o caminho que ela mesma gostaria de seguir.Mas a linguagem,por outro lado, rambémnão deveser

absolurizada enquanto voz do Ser, oposta ao sujeito lírico, como

agradaria a muitas das teorias onrolÓgicas da linguagem em voga

atualmente. O sujeira. cuja expressão é necess,íria, em Elce da

mera significaçãode conreÜdosobjetivos,para quesealcanceessac1Il1aclade objetividade lingÜística, não é um adendo ao próprio

lcor dessa camada, não é algo exrerno a ela. O installte do <luro-

~squccimenro. no qual o sujeitO submerge na linguagem, nãoconsiste no sacrifício do sujeiro ao Ser. Não é um instante de

violência, nem sequer eleviolência contra o sujeira, mas um ins-

tante ele reconciliação: a linguagem fala por si mesma apenas

quando deixa de hl/ar C0l110algo alheio e se torna a própria voz

do sujeira. Onde o eu se esquece na linguagem, ali ele eSr;l in-

teiramelHe presenre; senão a linguagem, convenida el11abraca-dabra sacrali'l.ado. sucumbiria à reificação, como ocorre no dis-

curso comunicativo. Mas isso nos levade volra à quesrão da re-lação real entre indivíduo c sociedade. Não apenas o indivíduoé socialmente mediado em si mesmo, não apenas seus conteÚ-

dos são sempre, ao mesmo rempo, rambém sociais, mas, inver-

samente, rambém a sociedadeconfigura-seevive apenasem vir-tUde dos indivíduos, dos quais ela é a quinressência [IlJbegri.ff1.

Se cena vez a grande filosofia construiu a verdade, hoje sem dÚ-

vida desdenhada pela lógica da ciência, de ques.ujeiwe objero

não seriam pólos rígidos e isolados, mas só podem ser detenni-

Ilados a panir do processo em que seelaboram e modificam mu-tu,lmenre, então a lírica é a conrraprova esrérica desse filosofema

dialérico.l:'Io poema lírico o sujeito nega, por idenritlcação coma lingÚagem, tanto sua mera contradição monadológica em re-

laçãoà sociedade, quanto seu mero funcionar no interior da so-

ciedade socializada. QuantO mais cresce, porém, a ascendência

desta sobre o sujeito, mais predria é a situação da lírica. A obra

a~13a~ld;lajrefoi a primeira a registrar esse processo, na~~~edida

"emque, como a mais alra conseqÜênciado V7eltJdJluerz[dor do

mundo] europeu, n,ãose contentoucom os sofrimenros.doin-divíduo, mas escolheu como tema de sua acusação a própria mo-

dernidade, enquanro negaçãocomplera do lírico, exrraindo delasuas hlíscas poéticas, por força de uma linguagem heroicamente~srjlizada. Em Baudelaire já se anuncia um elemento de deses-

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Page 8: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Notas de literatura I Palestra sobre lírica e sociedade

pCr.0' que se equilibra no CII/IlCdo scu pníprio car;írcr parado-xal. Quando a comradição enrre a linguagem poética e a comu-

nicativa se intensificou ao extremo, toda lírica se tOrnou um jogo

de tudo ou nada; não porque tenha se tOrnadoinimcligível,comopretenderia a opinião filisrin;l, mas porqllc. un icamen rc emvi 1'-

tude de ter ramado consciência de si mesma enquanto lingua-gem artística, através de seu esforço cm alcançar lima objetivida-

de absolUta, não limitada por qualquer preocllpa~:<locom a (0-munica~:ão, ela ao mesn10 tcmpo se a(;lsla d;! ohjt'li\'ichdc do t'S-

pírito, da língua viva, criando um aparato poérico que substitUi

uma linguagem não mais presenre. O momento pocrizante c elc-

vado, subjetivamente violento, da cnfraquccida lírica posterioré o preço que ela tem de pagar para se malHeI'objerivamenre viva,

sem ser desfigurada ou maculada; seu falso esplendor é o com-

plemento do mundo desencantado do qual ela se desprende.Tudo isso, sem dúvida, precisa ser resrringido para não ser

mal interpretado. O que afirmei foi que a configuraç;ío lírica é

sempre, também, a expressão subjetiva de um antagonismo so-cial. Mas como o mundo objetivo, que produz a lírica, é ummundo em si mesmo antagonísrico, o conceitO de lírica não se

esgota na expressão da subjetividade, à qual a linguagem confe-re objetividade. Não apenas o sujeira lírico incorpora de mododecisivo o rodo, quanto mais adequadamcntc se manifesta, mas

antes a própria subjetividade poérica deve sua existência ao pri-vilégio: somente a pouquíssimos homens, devido ;'ISpressões da

sobrevivência, foi dado apreender o universal no mergulho em

si mesmos,ou foi permirido que se dcscnvolvessemcomo sujei-tos autônomos, capazes de se expressar livremenre. Os ourros,

contudo, aqueles que não apenas se cnconrram alienados, como

se fossem objetOs, diante do dcsconcerrado sujei ro poético, masqlle também foram rebaixados liter;l]menre;, condição de obje-(O da hisrória, têm tanto ou mais direiro de rarearem buscada

prÔpria voz, na qual se enIa_çal~1? ~~)~rimel1to e o sonho. 1\ afir-l11ãçiíõdesse direito inalienável tem sido uma constante, ainda

que de manei;a--impurae mUtilada,fragmemária e intermiten-re, a única possívelpara aqueles que têm o fardo para carregar.

UI!1acorrente subterrânea coleriva é o fundamcnto de toda líri-(;1individual. Se esta visa efetivamemeo rodo e não meramente

lima parte do privilégio, refinamento e delicadeza daquelc quepode sc dar ao luxo de ser delicado, então a substancial idade da

lírica individual (kriva csscnciall11cl1!cde sua panicipa(;;Í() nessa

corrente subterrânea coletiva, pois someme ela faz da lingua-gem o meio em que o sujeito se tOrna mais do que apenas sujei-

to. A relaçãodo Romantismo como Vollulier./[cançãopopular]é o exemplo mais visível disso, mas certamente não o mais inci-

sivo. Pois o Romantismo persegue programaricamcnte uma es-pécie de transfusãodo coletivo no individual, e por issoa líricaindividual buscava,atravésda técnica, a ilusãoda criação de vín-

culos universais, sem que esses vínculos surgissem dela mesma.

Em contraste, os poeras que desdenhavam qualquer emprésrimo

da linguagem coletiva freqüentemente participavam dessa cor-

rente subterrânea coletiva, em virtude de sua experiência histó-

rica. Çito Baudelaire, cuja lírica não apenas é um rapa na carado juste mifí.eu, como também de rodo essesentimento burguês

\ de compaixão social, que no entamo, em poemas como "Lespetiresvieilles" [As velhinhas] ou o da servente de grande cora-

ção dos TableauxparisicJ1S[Quadros parisienses], era mais fiel;'ISmassas, para as quais voltava sua m;íscara rdgica e arroganre,

do que roda a poesiasobregentepobre fArml'leu/epocJie]."Hoje,quandoo pressupostodaqueleconceirodelíricaquetomo c{;-moponto de partida, a expressãoindividual. pareceabaladoaré oámago na crisc do indivíduo, a corrente subterrânea da líricaaflora com violência nos mais diversos pontos, primeiro como

mero fermento da própria expressãoindividual, mas logo tam-

Page 9: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Notas de literatura I Palestra sobre lírica e sociedade

bém como possível antccipação de urna simação que ultrapassa

a mera individualidade. Se as traduções não enganam, GarcíaLorca, que os agentes de Franco assassinaram e que nenhum re-

gime totalidrio teria podido suportar, é porrador de tal (Órç1; e

o nome de Breclu se impõe como o do lírico que' soube preser-var a inree:ridadeda line:uagemsem llUCtCl1ha,:ido ohrig;ldo aJ ,-I 1..

pagar o preço do esorerismo. Ahstenho-mc de julgar se aqui o

princípio poérico de individuação h)j efeti\';\I1)C'lHesuperado t'm

um princípio superior, ou se o ~illllbmenro disso l: a rq~ress:io e

o enfraquccimcnto do Ctl.Talveí'. o vigor mkli\'o d;llírica con.

temporânea se deva, em larga mcdida. aos rudimclltos lingÜís-ricos e anímicos de uma condição ainda n;io ilHciramCllle indi-

viduada, pré-burguesa no senrido mais amplo do rcrnJO -- o

dialeto. A lírica tradicional, porém. como a mais rigorosa nega-

ção estética dos valores da burguesia, tem permanecido até hoje,

justamente por isso, ligada à sociedade burguesa.

"NotUrno". As duas composições sobre as quais quero dizer al-

go parricipam, cerramente, da corrente subterrânea coleriva. Mas

gosraria de chamar a atenção dos senhores sobrerudo para o

modo como, nelas. diversos graus de uma relação contradirÓriafundamental da sociedade são exposws por intermédio do su-

jeiw poético. Devo reperir que não se trata da pessoa privada do

poeta, nem de sua psicologia, nem de sua chamada "posiç~ioso-

cial". mas do prÓprio poema. tomado como relÓgio solar hisrÔ-rjco-tilosórico.

1':111primciro 11.I~;lr,~()sraria de ler para os scnhorcs o poc-

lHa "Aufeiner \XIanderung" [r:,m uma caminhada], de MÓrike:

Mas porque consideraçôes de princípios n;io s:ío suf'icien-

tes, eu gostaria de concretizar, em alguns poemas, a rel:lção queo sujeito poético, que sempre representa um sujeiro coletivo mui-

to mais universal, manrém com a realidade social que lhe é al1-

ritérica. Nesse processo, os elemcntos matni;lis, dos quais ne-nhuma composição de linguagem, Ilem mesmo a p(}(~ficpur(', é

capaz de despojar-se intei ramente, precisa rão de inrerpreração

ranto quanto os assim chamados elemcnros f()l'Inais. Scd espe-

cialmente enfatizado o modo como ambos se inrcrpenetr;lm, pois

somenre em virtude dessa inrerpel1<.:na~j()() pocma lírico captura

realmenre, em seus limires, as badaladas do rempo histÓrico. No

emanto, não gosraria de me arer a pocmas como o dc Gocrhc,

do qualj:i comentei alguns aspectos sem :udid-Io a fundo. m;lS

sim escolherei obras mais recelllCS,versosquc n;io sesingulari-

Dll11 por aquela<lLltcnricidadeincondicionalque caracrerizao

/11 I.'ÍI1/i'l'1Il/rl/icf,c's SllirlldwlI IreI il'f, l'ill,

{li rim SlrlUSCI/ /ÍlXI mlfl' A /mlrl.l'(f,l'ÍI/.

/IIIS t'Í1I1'1IIr~llill'll h'wlt'l' dml,

Ü/Ja tlt!IJ l'l'Ídl.l'lcll /J/lIl1u',!/lor

Hi/ll(ILg, bort I//r/II Go!r(r;;lockl'1ltihll' sclJ((lebl'll,

UI/d cinc Stil1l1lJ1' .I'I.ht'ÍIII I'il/ Nr/(hligrl//l'IIdlOr,

f)".f.i tlie Blfi/m /}{,/;I'll,

D(m dic Liifrc lebl'll, .

DaJs iil hohl'l'elll ROI dic Rusm ICllchll'l/ lior.

/,"'Ig I;ie'!t id; JI/flll/e'l/rI, IWI/;ddll 11I11I1'1I.

Wie ich /}illllllJ 11(11'.1'Tllr gekollllllm,

fC/} weÚs es wtll}r/ich se/bl'l' lIic/;t.

Ach hiel', /(Iie li/Xt die \";1e/1so lirbt!

Der Hilllllld lUogl i'l jil/1j!llI'lJt.'1II Ce'II'fib!e',

Riirkllllirts die Sttlrll il/ goldl/cm [(III/c/);

\\?ie rr/1/sc!}t der Erlm!Jnc;" I(lie I'Ilwcht im Gmilr! rlie AfiiMe!

fch bill ,uie Iml//ml. in:<!J:flihrt-

() MI/se', rill h"SI IllI'ÍI/ /-/I'1'Zbl'1'iif/J'l

AI Íl eÍlIi'lII Liebesf,'l/Icf,.'

Page 10: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Notfls de líteralwa I Palestra sobre lírica () sociedade

Entrei numa am~ívd cidadezinha.

Nas ruas o rllhor da tarde resplandecia.

Dc uma janela aberta. cntão.

Por cntrc floreiras ricamcnte em flor

E botão. ouviam-se' os sons de UIlldOllr;lllocarrilh,lo.

E urnavozqucparcciarouxi'Híis em (111'0.Fazendo as flores rn::ll1erl'm.

Fazcndo os arc's re'\'iI'CI'cm.

Fazcndo qual brasa brilh:lrt'111as rosa.. em ';Jgo.

proximidade mais prÓximacom a da mais exrremadisrância. 1\

Wmla conhece a cidadezinha apenas como cenário fugidio, não

como paradeiro. A grandeza do sentimento que se prende ao

enca nto causado pela voz da rapariga, e não escura apenas aque-

la voz, mas :1de toda a natun.'za, em coro, só se l11anifesrapara

al~1l1do centÍrio limirado, soh a ondulação pÜrpura do céu. onde

:\ cidade dourada e o riacho murmurante se conjugam em ilJltl-go. Para isso conrrihui, no plano da linguagem. um demenro deI 111lI:ff;1Iic!t1t/t.como de uma ode. imponderavdmcnlc rcnnado c

quase impossível de ser lixado no deralhe. Como se soassem de

longe, os rirmos livres evocam esrrofesgregassem rima, assimcomo, por exemplo, o pathos que irrompe no verso final da pri-

meira estrofe, cujo efciro é obrido apenas com o mais discrerodos recursos, a inversãoda ordem das palavras:"Dassin hoherem

Rot c!ieRosen leuchten vor" [Fazendo qual brasa brilharem as ro-

sas em fogo]. Decisiva é a palavra !v/use [Mllsa], no final do poe-ma. É como se essa palavra, uma das mais desgasradas do Clas-

sicismo alemão, hrilhasseuma vez mais. como que :1lu? do sol

poenre, por estar arribllída ao genills /oci [espírito do lugar] daam:Ível cidadezinha. (~como se, mesmo a ponco de desaparecer,

eia ainda possuísse rodo aquele poder de encantamento que, em

invocações à Musa com termos da linguagem moderna, costU-

ma descambar em algo simplesmente cÔmico. Em praticamen-

te nenhum ourro aspecto se prova tão perfeira a inspiração do

poema quanro no faro de que, no ponco crírico, a escolha da pa-

lavramaischocanre,cuidadosamenrepreparadapelo latenregestolingiiísrico grego, resgaraa intensa dinâmica do rodo, como limacadência musical. ;\ lírica consegue, no espaço mais exíguo, ter

êxito naquilo que a épica alemã, mesmo em concepções comol{alllfllll1 IIne!Dorothea de Goerhe, renrava em vão alcançar.

i\ inrerprer:1\;ão social de rall'xito diz respeito ao gratl de,:xperi['ncia histÓrica que sc cvidencia no poel11a. Em nOllll' da

Alifiquei parado.extasiadode prazer.

E na vcrdad(~não consigo pcrcehe'r

Como os pOr!'õesda cidade ClItr;lI1spus.

Ah, como aqui o mundo é pura luz!

O céu ondula em plírpul'O rorvclinho

E hiatr;ísdesvanecea ciebdcem dourado fulgor;Como murmura o riacho entre os alnos. como murmura

lao fllndo o moinho

Estou ébrio. perdido cm c()n~llsão-() Musa, tocasrc o meu coração

Com um sopro de amor!

A imagem que se impõe é a daquela promessa de felicida-de ainda hoje proporcionada a quem visira. no dia cerro. limacidadezinhado sul da Alemanha, mas sem a menor concessão ao

pitoresco,ao idí/io dacidadepequena. O pocma transmireo scn-rimemo de calor e de ahrigo 1.'11111111espaçocsrreiro.(' no el1fal1fo

é ao mesmo tempo uma obra de esrilo elevado. IÚO mandada

pelo tom do conforTável e do aconchegante, ncm disposta a lou-var senrimenralmenre a estreireza comra a v:lsridJo. Oll a felici-

dade em cada esquina. Rudil11elHarl's. :I Uhul:l l' :I linguagem

auxiJiam. em igual medida. ;lllnj(ICIJ' aniSlic,ll11l'IHl' a uropia da

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Page 11: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Nota~; da litnratura I Palestra sobra lírica e sociedade

humanidade, da univer.did;ICIc do hllI11;II!O,() (llssicis/l1o alt:-

mão havia pretendido desemharaçaro impulso sllhjerivo,amea-

çado de contingência cm uma sociedade na CJualas rela~'c)esen-

tre os homens j;í não eram imediatas, ma, permancciam me-

diadas apenas pelo mercado. O Classicismn aspirava aUI11~1oh-

jetivação do subjerivo, assim como Hcgcln<l filosofia, l' t('nl;\\';1superar as comradições davida realdos homens ;\1raVl-Sde slla

reconciliação no espíriro, na idéia. A persisr~ncia dess;]s comra-

dições na realidade, entretanro, acabou compromctendo a solu-

ção espiritual:diante de LImavida desprovida de scntido. umavida que se esgota na az<il~lInados interesses concorrerw:s, uma

vida que a experiência artística percebe corno prosaica; diante deum mundo em que o desrino dos homens individuais se cum-

pre na obediência a leis cegas,a arte cuja forma d,í a impressãode falar em nome de uma humanidade realizada converre-se em

mero palavrório. O conceiro de homem que o Classicismo ha-

via alcançado se retrai, por isso, na existência privada do homem

singular, e também em suas imagens; somente nelas o humano

parecia aindaestar a salvo. A burguesia te\'(' ncccssariamente de

renunciar, tanto na política quanro nas /"(.)I')11aSestéticas, à idéia

da humanidade como um rodo capaz de aurodetermina~'ão.Éa fixação obrusa nessa esfera restrira do que ainda est;í preserva-

do, também ela resultado de uma coerção. o que torna rão sus-

peitos, então, ideaiscomo os de conforto c aconchego. O prÓ-prio sentido est;Í vinculado ;1cotHingência da Idicidade indivi-

dual, àqualse atribui, por uma espéciede usurpação, uma dig-nidade que ela só alcançaria junro com a felicidade do rodo. r\

força social dagenialidade de IV!orike, porÓll, consisre na arri-

culação das duas experiências, a do estilo l'lcvado do Classicismo

e a da miniatura privada do Romantismo, reconhcC\:ndo os limi-

tes de al))bas as possibilidades e equilibrando-as rcciprocamcn-

rI"',com incompaJ";\ve! tino. Em nenhum impulso exprcssin) de

vai :t/ém (l:1quiloque podia ser verdadeiramclllc akan~'ado cmsua época. A rão aclamada organicidade de sua produção nada

mais é, provavelmente. do que esse tino histÓrico-~lIosÓfico,quc

quase nenhum OlUro poeta de língua alemã possuiu na mesma

medida. Os traços supostamenre doentios de MÜrike, identifi-

cados c relarados pelos psicÓlogos, e mesl110o esrancamcnto de

sua produção no tilrimo período, são o aspecro negarivo de sua

extrema compreensão do que é possível. Os poemas desse p;írocohipocondríaco de Cleversulzbach, que costuma ser incluído no

rol dos arristas ingênuos. sflo peças de virruosismo jamais supe-

radas por nenhum mestre da filrt pour f'art. Mõrike é rITosensí-

vel ao que há de vazio e ideológico no esrilo elevado quanro ao

que h;í de tacanho, de apatia pequeno-burguesa e de cegueiradianre da totalidade, no estilo Biedermeier, período em que se

situa a maior pane de sua lírica. Nele, o espírito é levado a com-

por, pelaúlrimavez,imagensque não se traem nem pelo requinredo drapeado nem pela vulgaridade da conversa de botequim,nem pela grandiloqÜência de um dó-de-peiro nem pelos mausmodos à mcsa. Como sobre o ~IOda navalha. cm N\i}rikc ainda

ressoam as reminiscências do estilo elevado, junro com os sinais

de uma vida imediata que ainda promeriam realização, quando

i;íestavam, na verdade. condenados pela tendência histórica. AambossaÜdao poeta, em llma caminhada, apenas quando estesesrão presres a desvanecer. Ele já comparrilha o cadter parado-xal da lírica na incipienrc era indusrrial. Tão vacilanres e ~i';igeis

como essas pioneiras soluções de Mõrike foram rambém as so-luções de rodos os grandes líricos que o sucederam, mesmo dos

que parecem separados dele por um abismo, como aquele Bau-dclaire. cujo estilo Claudcl descreveu COl110um misto de Racinc

e dos jornalisras de seu tempo. Na sociedade indusrrial. a idéia

lírica da imediatidaek que se amo-regenera roma-se, na ml'dieb

;::111quenãoevocaimporenreo passadorom;\ntico. cada \'C7,mais

Page 12: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Noras de literatura I Palestra sobre lírica e sociedade

III})~ilíbito lampcjo, em que o possível transcende sua prÓpriaimpossibilidade.

O curto poema de StefanGeorge, sobre o qual gostaria ain-da de Ihes dizer algo, surgiu em uma fase muito mais tardia des-se desenvolvimenro. É uma das célebres canções de Da Sil'hClltC'

Rillg [O sétimo anel], um ciclo de composi~'()es cxlTcmamelllC

densas, que apesar da leveza do ritmo estão sobrecarrcgadas desubstância e livres de todo ornamenro .Illgcl1drtil.Sua arrojada

ousadia sÓfoi resgatadado vergonhoso conscrvadorisrno cultu-ral do Círculo de George quando o grande compositor Antonvon Webern a musicou; em Ceorge, a idcolo!!ia e o (cor social'-- '

estão separados por um abismo. A canção diz:

Agora o maio trama

Agora devo ao fim

Por tells olhos c teu sim

Dias a fio

Viwl' em chama.

No recerdo wntO

Foi mell pedidoSó devaneio.

Sóumsorriso

Tua resposta.r\ noire cncharcada

Um brilho propaga.-

Quanro ao estilo elevado, não há um segundo de dÜvida.

;\ felicidade das coisas prÓximas, que ainda toca o poema tão l11ai~

.lntigo de Ivlürike. esd interditada. Foi banida jusramelltc pOI

:tqude jJtltbo,inietzschcano da distância, do qual Ccofge se re-conhecia como herdeiro. Entre Morike e ele jazem os inrimi-

danres despojos do Romanrismo: os res[Osdo idílio eStão irreme-

diavelmente envelhecidos e degeneraram em pieguice. Enquan-

[() a poesia de Gcorge, a de um indivíduo soberano, pressupõe

como condição de sua possibilidade a sociedade individualista

burguesa e o indivíduo cenrrado em si mesmo, um an<Ítema élançado ranro sobre o elemellto burguês da f()J'Inaconvencional

qU:IIIIOsobre os (OUldldos hmgul'ses. No CIH<1I1ID,uma vez quc

essa lírica não pode Ellar a parrir de nenhuma oUtra eStrlHUra

geral além da burgucsa, que ela rejeita não apenas ripriori C ta-citamenre, mas também cxpressamenre, então ela fica represada

c renui: simula a parrir de si mesma,de forma aurocrática, umacondição feudal. É esse elemento social que se esconde por tds

daquilo que o lugar-comum denomina a atirude arisrocnitica de

George. Ela não é a pose que exaspera o burguês, incapaz de. .manusear esses poemas, mas antes, por maIS que seu gesto seja

hostil à sociedade, ele é fruro da dialética social que nega ao su-

jeiro lírico a identificação com o strltU.íquo e seu reperrÓrio de

formas, embora essesujeira esteja inrimamente ligado 11realida-

de vigenre: ele não pode falar de nenhum ourro lugar que nãoseja o de uma sociedade passada, ela mesma senhorial. Desse

passado é tomado de empréstimo o ideal de nobreza que dira a

1m 1l'ílldr's-1/Jt:I}('11

\\",Iar meillefrnge

Nur trfiumcl'C'i.

Nu r I;ichclll 1/111r

\V'm dll g~e:clJi'I/.

Aus IIlwa IWrlJ(

Eill glllllz 1'lltjulJ( --Nltll clriillgt der IJ/iI;

N/m I1I11SSich gflr

Um rleill illIg Itml h(llIl'

AlIe IfIge

1/1 sl'/IJ/I'IIII'bl'll.

84 .. 85

Page 13: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

Notas clnlitoraturo I Palestra sohre lírica e sociedade

escolhade cadapalavra. imagem c som no poema; e a rÓrmaé

medieval de um modo quaseimperceptível, corno algo impreg-nado na configuração lingÜística.Nessesentido, o poema,assimcomo o conjunto da obra deGeorge,é efetivamemenco-rom:ln-rico.Não se evoca,porém. nem realidadesnem sons, massimum esrado de alma absorto. A larencia do ideal. artisricamenre

conquistada. a ausência de qualquer arcaísmo grosseiro, deva acanção acima de roda ficçãodesesperada.que da emreranro ofe-rece; é tão impossível confundi-ta com a poesia que imira como

mero enfeitedeparedeos rnenesrréise a epopéia medievalquan-to misturá-Ia com o reperrÓrio da lírica do mundo moderno; seu

princípio de estilização resguarda o poema do conformismo. O

espaçodeixado para a reconciliaçãoorg;lnicade elementos (011-

flitanres, no poema, é tão reduzido quanro o que em sua época

havia para o seu apaziguamcnro real: eles só são subjugados porseleção e por eIipse. Onde as coisas mais próximas, aquilo quecomumente se denomina experiências concreras imediaras, ain-

da são admitidas na lírica de George, elas siioconsentidas uni-camente quando pagam o preço da mito]ogização: nenhuma

delas pode permanecer o que é. Assim, numa das paisagens do

Sétimo anel, a criança que colhia amoras silvesrres é meramol'-

foseada, sem uma palavra sequer, em uma criança de conros det:1da. como se tivesse sido tocada pela l11;ígicabrural de uma va-

rinha de condão. A harmonia da canção é cxrorquida de uma

exrrema dissonância: ela se baseia naquilo que Valéry denomina-

va refus, uma implacável recusa a rodos os meios pelos quais a

convenção lírica imagina caprurar a aura das coisas.Esse proce-dimento rerém apenas os modelos, as puras idéias formais e es-

quemas do lírico, quc, ao rejeitarem tOda e qualquer cOlHingên-

cia, falam mais uma vez com imensa expressividadc.Em plenaAlemanhaguilhermina,o esrilo elevado. do qualessalíricapo-kll1icall1eme se desvcncilha. nilo pode apc.'lara nenhuma rradi-

ção, principalmenre ao legado cIassicista. Esse estilo é alcança-

do não pelo recurso f.ícila certasfigurasde ret6rica e a determi-nados ritmos, mas na medida em que economiza asceticamenre

tUdo aquilo que poderia diminuir a distância em relação à lin-

guagem degradada pelo comércio. Aqui, para que o sujeito seja

c\paz de, em sua solidão, resistir verdadeiramente à reificação.ele l1ilopode nunca mais se refugiar no que lhe é prÓprio, comoSt'fosse sua propriedade; os vesdgios de um individualismo que.

nesse meio-rempo, j;í se enrregou ;\ turela do mercado, nos su-

plemenros liter,írios, asslIstam: o slljeiro precisa abandonar a simesmo, na medida em que se cala. Ele precisa se converter no

recepr:íclllo, por assim dizer, da idéia de uma linguagem pura,

que os grandes poemas de George buscam resgatar. Formado nas

línguas románicas, e especialmente naquela redução da lírica aomais simples, pela qual Verlaine a converreu em instrumento

para o mais diferenciado, o ouvido do discípulo alemão de Mal-larmé ouve sua própria língua como se fosse estrangeira. Supera

a alienação da língua marerna, provocada pelo uso, e a intensifi-ca até o estranhamento de uma língua que pl'Opriamente j,í não

é mais falada,uma língua imagináriaem cuja composiçãoo poera

imui porencialidadesjamaisrealizadas.As quatro linhas: "NUll

Imm iclJgari Um deil1a/lg ((11e1lJaarl Alie lage I /11sefmen febell"

[Agora devo ao fim / Por teus olhos e teu sim / Dias a ~Io/ Vi-ver em chama], que considero um dos momcntos mais E1scinan-res da lírica alemã, são como uma citação, mas não de ourro poe-

ta, e sim daquilo que foi irreparave\mente perdido pela língua:os Mimwlinger [poetas medievais alemães] teriam conseguidorrovar com êxito esses versos, se uma cerra rradição ela língua

alemf\, ou mesmo, seríamos remados a dizer, se a própria língua

\lcmã tivesse rido êxiro. Era nesse espíriro que Borchardt queria

:raduzir Dante. Ouvidos sutis rêm tropeçado nesse elíptico "gar"

"ao rim], que sem dÜvida subsritui "gtl11Z/117(1gar" [ao fim e ao

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Page 14: ADORNO, Theodor - Palestra Sobre Lirica e Sociedade in Notas de Literatura I

cabo] e foi utilizado, em cerra mcdida, por quesrÓcs de rima

Pode-scadmilir tal crítica, COI)}Ose admitl' qUl' ;1 pala\'l";I, 1;1i

como foi encravada no verso, n;ío of('rece I1laisnenhum sClHidc

exato. Mas as grandes obras de arre S30aquelasquc. el11 SCllS

pontos mais problemâticos, acabam sendo k'lizcs. Assim como,por exemplo, as mais sublimes obras musicais não sc esgotam,.

puramente na sua construção, mas a transcendem com um parde notas ou compassos supérfluos, o mesmo ocorre nl.'sscpoe-ma com o "gar", uma goctheana ''sedimcntação do absurdo",pela qual a língua escapada inrenção subjetiva que trouxe a pa-

lavraao texto. É provavc!mclHe essemesmo "gl/r" qlH: csrahclcce

a dignidade do poema, com a força de um déjri1m: atravÓ dele

a melodia do poema se estende para além da mera signitlcação.

Na época em que a linguagem declina, Gcorge capta na prÓpria

linguagem a idéia que lhe foi negada pela marcha da histÓria, earticula versos que soam, não como se fossem dele, mas como

se tivessem existido desde o começo dos tempos, e devessem per-

manecer assim para sempre. No clltaIHo, o (adrer quixoresco

dessa empreitada, a impossibilidadede uma ral poesia reparadora

c o perigo do arresanato,reforçam ainda mais o teor do poema:

o quimérico anseio da linguagem pelo impossível torna-se expres-são do insaciável anseio erótico do sujeito, que no oUtro seali-

via. Foi precisoque a individualidade, intensificada ao exrremo,reverresse em aura-aniquilação -- e qual é o significado do cul-

to do últimoGeorgeao amante Maximin, senão uma renúnciaà individualidade, apresenradade maneiradesesperadamentepo-

sitiva - paraalcançaressat1ntasmagoriaque a língua alemã.emseus maiores mestres, sempre tateou em vão: a canção popular.É somenteem virrudede limadiFerenciadolevadarão longc a, ,ponto de não poder mais suporrar sua prÓpria dill'rcnça, nã.opoder mais suporear nada que não seja o ul1i\'crsalliberrado, no

indivíduo, da vergonha da individuação, que a palavra lírica re-

presclHa o scr-cm-si da linguagem conrra sua servidão no reino

dos Ill1s. iVlascom isso a lírica I~dacm nome do pensamcmo de

uma humanidade livre, mesmo que a Escola de Gcorge o lenhadissimulado no culto inFerior das altUras. A verdade da lírica de

George reside em sua consu mação do particular, na sensibilida-

de que repudia tanro o banal como até mesmo o selera, derru-

bando os mllros da individualidade. Se a expressãodessaverda-

de se condensou em lima expressãoindividual, inteiramente sa-

curada com a substància e experiência da prÓpria solidão, emão

é justamenre essa [tia que se torna a voz dos homens, eIHre os

<juais já não existebarreira.