fanzine2016.files.wordpress.com · eu devia ter uns cinco anos quando ganhei minha primeira caixa...

8
+ (&) × fanzine 50 Dente de le˜ ao Quatro reminiscˆ encias 1. Eu devia ter uns cinco anos quando ganhei minha primeira caixa de l´ apis de cor. Era um estojo de l´ apis curtos, apenas seis deles, e fazia parte do meu kit escolar, no jardim de infˆ ancia. O primeiro desenho que me lembro de ter feito foi uma bandeira do Brasil. Caprichei no verde das nossas matas, no amarelo do nosso ouro, no azul do nosso c´ eu, no marrom do mastro. Para que nenhuma cor voltasse intacta, contornei todo o conjunto de vermelho, e corri para casa, para mostrar a obra ao meu pai. Ele olhou o desenho e disse que estava tudo errado, que n˜ ao havia - e nunca haveria - vermelho na bandeira do Brasil. Me lembro, como se 1964 tivesse sido h´ a poucos minutos, de ficar no corredor que dava para a cozinha, com meu desenho errado na m˜ ao, sem saber o que fazer com ele, sem saber o que fazer comigo. 2. Na escola (tamb´ em por volta de 1964) um coleguinha veio com a hist´ oria de que as estrelas eram redondas como a lua. E maiores que o sol. Tive pena da ignorˆ ancia dele, mas outros confirmaram a not´ ıcia. Se aquilo fosse verdade, eu n˜ ao s´ o n˜ ao podia confiar nas ilustra¸c˜ oes dos livros ou na bandeira do Brasil, mas nem nos meus pr´ oprios olhos. Perguntei ` a minha av´ o - os mais velhos ainda me pareciam confi´ aveis. ao, disse ela, as estrelas n˜ ao eram redondas, eram pontudas. Mas, sim, eram muito grandes. Maiores at´ e do que a pra¸ ca. Minha av´ o j´ a havia me encantado ao contar que sabia que n˜ ao ia chover porque o c´ eu estava estrelado. Nunca chovia quando o c´ eu estava cheio de estrelas - ou elas cairiam junto com a chuva. Eu vivia torcendo para chover com c´ eu estrelado e poder catar estrelinhas na enxurrada. Mas diante da revela¸c˜ ao de que as estrelas eram maiores que a pra¸ ca, passei a rezar cada vez que chovia, com medo que um estrel˜ ao pontudo desabasse em cima do hotel onde mor´ avamos. Eu admirava muito a despreocupa¸c˜ ao dos adultos diante da chuva e suas consequˆ encias estelares. 1

Upload: dangdieu

Post on 25-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

+ (&) ×fanzine 50

Dente de leao

Quatro reminiscencias

1.

Eu devia ter uns cinco anos quando ganhei minha primeira caixa de lapisde cor. Era um estojo de lapis curtos, apenas seis deles, e fazia parte domeu kit escolar, no jardim de infancia.

O primeiro desenho que me lembro de ter feito foi uma bandeira doBrasil. Caprichei no verde das nossas matas, no amarelo do nosso ouro, noazul do nosso ceu, no marrom do mastro. Para que nenhuma cor voltasseintacta, contornei todo o conjunto de vermelho, e corri para casa, paramostrar a obra ao meu pai.

Ele olhou o desenho e disse que estava tudo errado, que nao havia - enunca haveria - vermelho na bandeira do Brasil.

Me lembro, como se 1964 tivesse sido ha poucos minutos, de ficar nocorredor que dava para a cozinha, com meu desenho errado na mao, semsaber o que fazer com ele, sem saber o que fazer comigo.

2.

Na escola (tambem por volta de 1964) um coleguinha veio com a historiade que as estrelas eram redondas como a lua. E maiores que o sol. Tivepena da ignorancia dele, mas outros confirmaram a notıcia. Se aquilo fosseverdade, eu nao so nao podia confiar nas ilustracoes dos livros ou na bandeirado Brasil, mas nem nos meus proprios olhos.

Perguntei a minha avo - os mais velhos ainda me pareciam confiaveis.Nao, disse ela, as estrelas nao eram redondas, eram pontudas. Mas, sim,eram muito grandes. Maiores ate do que a praca.

Minha avo ja havia me encantado ao contar que sabia que nao ia choverporque o ceu estava estrelado. Nunca chovia quando o ceu estava cheio deestrelas - ou elas cairiam junto com a chuva. Eu vivia torcendo para chovercom ceu estrelado e poder catar estrelinhas na enxurrada. Mas diante darevelacao de que as estrelas eram maiores que a praca, passei a rezar cadavez que chovia, com medo que um estrelao pontudo desabasse em cima dohotel onde moravamos.

Eu admirava muito a despreocupacao dos adultos diante da chuva e suasconsequencias estelares.

1

3.

Eu odiava sopa. Qualquer sopa. E sopa era, para meu desespero, ojantar que minha mae costumava preparar, quase todas as noites. Eu, quenao chorava diante de uma injecao ou de um vidro de mertiolate, choravadiante de um prato de sopa.

Uma noite, estava eu em prantos, prato fundo de sopa a minha frente,e minha mae insensıvel, como sempre, ao meu sofrimento. Moravamos commeus avos, e isso lhes dava autoridade sobre tudo – inclusive a educacao dosnetos. Minha avo, que nao suportava nos ver chorar, recolheu o abominavelprato de sopa, escorreu o caldo, botou molho de tomate e um pouco dequeijo ralado – e, diante dos meus olhos incredulos, o transformou no meuprato favorito: macarronada!

Macarronada era comida de almoco de domingo e aquele foi, possivel-mente, o melhor jantar da minha vida – e quando descobri que nada e taohorrıvel que nao possa, com amor e queijo ralado, se transformar em algoextraordinario. Pena que tal experiencia nunca mais tenha se repetido naminha vida.

4.

Eu devia ter onze anos, e passavamos pela entao imensa ponte que cru-zava o Rio Preto. A nossa frente, um caminhaozinho se arrastava, carre-gando camas, armarios, fogao, caixas, colchoes, tudo amarrado. Era comose a barriga de uma casa tivesse sido aberta e suas entranhas cruzassem aponte, em precario equilıbrio sobre a carroceria.

Meu pai disse alto, para si mesmo “Nao ha nada mais triste que umcaminhao de mudanca”. Eu tive como que uma revelacao: meu pai sentia.Havia coisas que doıam nele, apesar de todas as evidencias em contrario.

Nunca mais, ao longo de sete decadas, o ouvi falar de outro sentimento.E desde entao caminhoes de mudanca me comovem, com seus estrados, ca-deiras, vasos de plantas, cacarecos – vidas em transito, com suas intimidadesexpostas, nervos expostos, carne viva.

Eduardo Affonso

Dente de leao sera uma pequena seccao preenchida com colaboracaosolicitada a amigos do Fanzine.

∗Frases para biscoitos da sorte - poema de Frank O’Hara

E uma pessoa maravilhosa e os outros tambem acham.

Tera tambem um bebe como a Jackie Kennedy – maior ate.

2

Vai encontrar uma desconhecida loura, bela e alta e nao lhe dira ola.

Fara uma grande viagem e sera muito feliz, sozinho embora.

Casara com a primeira pessoa que lhe disser que os seus olhos parecemovos mexidos.

No comeco havia a SUA PESSOA – havera sempre a SUA PESSOA,acho.

Escrevera uma grande peca e tera tres representacoes.

Telefone para The Village Voice quanto antes: eles querem entrevista-lo.

Roger L. Stevens e Kermit Bloomgarden estao de olhos postos em si.

Relaxe um pouco; um dos seus tiques nervosos mais conhecidos sera asua perdicao.

O seu primeiro livro de poesia sera publicado logo que o acabar.

Pode ser um sucesso nos arredores, mas na baixa e uma lenda!

A sua maneira de andar tem uma qualidade musical que lhe trara famae riqueza.

Vai comer bolo.

Mas quem e que pensa que e? Jo Van Fleet?

Pensa que a sua vida e tipo Pirandello, mas na verdade e tipo O’Neill.

Umas aulas de danca com James Waring e quem sabe? Talvez acontecaalguma coisa.

Nao e uma malha na meia, e uma mao na sua perna.

Vejo que viveu em Franca, mas isso nao e razao para saber TUDO!

Devia usar branco mais vezes – fica-lhe bem.

A proxima pessoa a falar consigo tera uma proposta muito intrigante afazer.

Muitas pessoas nesta sala queriam ser como e.

Foi a exposicao do Mike Goldberg? E a do Al Leslie? E da Lee Krasner?

3

As vezes, a sua falta de interesse pode nao parecer sincera aos estranhos.

Agora que ja foi a eleicao, o que vai fazer?

Esta preso numa fabrica de croissants e adora.

Come carne. Porque?

Para alem do horizonte ha um vale de tristeza.

Tambem podia ser Primeiro Ministro de Franca, se ao menos... se aomenos...

∗Dois retratos por Elaine de Kooning

Allen Ginsberg

4

Robert de Niro Sr.

Orson Welles (2)

Sempre achei muito higienico estar falido.

Nao tenho nenhuma grande mensagem para o mundo.

Nunca disse que era um genio.

Nao perguntes o que podes fazer pelo teu paıs. Pergunta o que e oalmoco.

O gangster com classe e uma invencao de Hollywood.

Na minha lapide quero que escrevam: “Nunca participou no Barco doAmor!”.

Pessoalmente, nao gosto que uma namorada tenha marido. Se engana omarido, enganar-me-a tambem.

Tenho uma personalidade desgracada.

Tenho passado a maior parte da minha vida adulta a tentar provar quenao sou irresponsavel.

A gula nao e um vıcio secreto.

5

∗Objet trouve

I know what taste is and what vulgarity is

In 1947, A Streetcar Named Desire premiered on Broadway to rapturousapplause, glowing reviews and, the following year, numerous awards. It ranfor two successful years with few alterations. In 1951, a film version hit the

6

big screen, adapted by Williams. It went on to win four Academy Awards.But it wasn’t all plain sailing. In 1950, the year before its release, the filmfell foul of the Motion Picture Production Code, with a “pivotal” rape scenedeemed to be in breach of guidelines. In response, Tennessee Williams wrotethis letter.

∗Linha editorial

Nao havera artigos de fundo. A colaboracao pedir-se e aceitar-se-a mas,na sua quase totalidade, sera roubada descaradamente. Procurar-se-a al-guma responsabilidade na atribuicao de autorias, locais do crime etc. Ostemas serao multiplos e nada coerentes. 4 paginas, o que vier a mais serabonus. Terrıvel aspecto grafico. A orientacao editorial podera sofrer al-teracoes inexplicaveis. Saıda irregular.

O fanzine nao sera distribuıdo em saco de plastico e esta disponıvel em

https://fanzine2016.wordpress.com

∗7

faneditores: francisco jose craveiro de carvalho, em [email protected], &joana costa, em [email protected].

∗Floco de neve

Eduardo Batarda

8