solaris - stanislaw lem

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SOLARIS - Stanislaw Lem

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  • I N D I C E

    AchegadaOssolaristasOsvisitantesSartoriusRheyaOPequenoapcrifoAconfernciaOsmonstrosOoxigniolquidoConversaOspensadoresOssonhosVitriaOvelhomimdeSolaris:OlivroeosfilmesporEduardoTorres

  • A C H E G A DA

    A SDEZENOVEhoras,horadanave, fuiparaa areadelanamento.Emvoltadospoos,oshomensicaramemilasparamedeixarpassar.Desciumaescadaeentreinacpsula.

    Nointeriordaestreitacabine,eumalpodiaafastarosbraosdocorpo.Fixeiotubodabombaavalvuladomeuescafandro,queseencheurapidamente.Apartirdesseinstante,iqueiimpossibilitadodefazerqualquermovimento.Laestavaeude pe, ou melhor, suspenso, envolto no meu macacao espacial integrado nacarapaametlica.

    Olheiparacima.Vi,atravesdoglobotransparente,umaparedelisae,bemnoalto, a cabea de Moddard inclinada sobre a abertura do poo. Moddarddesapareceu e, bruscamente, fez-se noite. O pesado cone protetor havia sidocolocadono lugar.Ouvioitovezesseguidasozumbirdosmotoreseletricosqueapertavam as porcas e depois o chiado do ar comprimido nos amortecedores.Meusolhoscomearamasehabituaraescuridao.Diviseiamoldurafosforescentedonicomedidor.

    Umavozressoounosfones:-Pronto,Kelvin?-Pronto,Moddard-respondi.- Nao se preocupe - continuou ele. - A estaao colhera voce em voo. Boa

    viagem!Houveumrangidoeacapsulaoscilou.Contraosmusculosquasesemquerer.

    Noouvinenhumoutrorudo,nemqualquernovomovimento.-Quandoapartida?-perguntei.Ouviumbarulhonoexteriordacpsula,comoumchuviscodeareiafina.-Vocejaestaacaminho,Kelvin.Felicidades!-respondeuavozdeModdard,

    toprximaquantoantes.Uma fendaabriu-senaalturadosmeusolhoseviasestrelas.APrometheus

    navegavanosarredoresdeAlfadoAquario.Masfoiemvaoquetenteimeorientar.

  • Umapoeirabrilhanteenchiaaescotilha;nao reconhecinenhumaconstelaao;oceudaquelaregiaodagalaxiaeradesconhecidoparamim.Espereiomomentodepassarpelaprimeiraestrelantida;fuiincapazdedistinguiralguma.Seuesplendordiminua; elas fugiam, submersas num vago clarao purpura. Foi assim que tiveconscienciadadistanciapercorrida.Comocorpointeirometidonomeuinvolucropneumatico,eurasgavaoespaocomaimpressaodecontinuarimovelnovacuo,tendocomonicarealidadeocalorquesubialenta,progressivamente.

    Desubito,houveumrudoagudo,umrangido.Comoseuma laminadeaoestivessesendoesfregadanumaplacadevidromolhado.Ecomeouaqueda.Seosnumerosquepulavamnomostradordocontadornaometivessemadvertido,eunao teriareparadonamudanadedireao;comasestrelasdesaparecidashaviamuitotempo,oolharseperdia,maisquenunca,napalidaclaridadeamareladadoininito. Eu podia ouvir meu coraao, que batia surdamente. Sentia, na nuca, osoprofriodoclimatizador.Naoobstante,tinhaorostoemfogo.Lamenteinaoterpodido avistar aPrometheus. Semduvidaestava foradomeualcancequandooscomandosautomticosabriramoprotetormetlicodagrandeescotilha.

    Umasacudidelaabalouacapsula,seguidalogodeoutra.Oveculocomeouavibrar. Penetrando nas camadas de revestimentos isolantes, atravessandomeuenvoltorio pneumatico, a vibraao me atingiu e se comunicou ao meu corpointeiro.Multiplicada,aluzfosforescentedocontadorespalhava-separatodosdoslados.Nao iz casodomedo.Nao empreendera aquela longa viagempara irmeperderalmdoobjetivo!

    - EstaaoSolaris! EstaaoSolaris - gritei. - EstaaoSolaris! Acho que estousaindodatrajetoria!Mantenham-menorumo!EstaaoSolaris,falaacapsulavindadaPrometheus.Estouesperando,Solaris!

    Euhaviaperdidoopreciosoinstantedaapariaodoplaneta!Elesurgiadiantedosmeus olhos ja imenso e plano. Apesar disso, em virtude do aspecto da suasuperfcie,penseiqueaindaestavalonge.Ou,maisexatamente,queaindaestavamuitoalto,umavezqueeujahaviaultrapassadoaimperceptvelfronteira,apartirdaqual a distanciaquenos separadeumcorpo celestemede-se em termosdealtitude.Eucomeavaacair.Naqueleinstante,mesmodeolhosfechados,sentiaaqueda. Apressei-me a abrir os olhos, pois nao queria perdermais nada do quehaviaparaservisto.

    Fiquei em silencio durante um minuto e depois recomecei a chamar.Nenhumaresposta.Ascrepitaoessesucediamnosfones,tendocomofundoumrumor,baixoeprofundo,queimagineiserapropriavozdoplaneta.Umveucobriao ceu alaranjado e a vigia escureceu. Encolhi-me instintivamente dentro doslimites permitidos pelo meu macacao espacial. Quase imediatamente, vi que

  • estavaatravessandonuvens.Comosetivessesidoaspiradoparaoalto,amassadenuvensdesapareceu.Euplanava,oranaluz,oranasombra,poisacapsulagiravasobresimesma,numeixovertical.Gigantesca,amassasolarapareceuinalmentediantedavidraa,surgindoesquerdaparadesaparecerdireita.

    Umavozlongnquachegou-meatravsdosrudosedascrepitaes.- Atenao, fala a estaaoSolaris! Aqui a estaaoSolaris!Vai tudobem.Voce

    estasobocontroledaestaaoSolaris.Acapsulapousaranotempozero.Repito,acapsula pousara no tempo zero. Prepare-se! Atenao, vou comear. Duzentos ecinqenta,duzentosequarentaenove,duzentosequarentaeoito...

    Miadossecosentrecortavamosvocabulos.Aquelaspalavrasdeacolhidaerampronunciadasporumaparelhoautomatico.Espantoso,eraomnimoquesepodiadizer. Habitualmente, todos os homens de uma estaao espacial corriam parareceber um recem-chegado, principalmente quando este vinha diretamente daTerra.Nao tive tempodecontinuarameespantar,poisa orbitadosol,queateentao me circundava, deslocou-se inopinadamente e o disco incandescentepareceudanarnohorizontedoplaneta,aparecendooraadireita,oraaesquerdadele.Eubalanavacomose fosseopesodeumpendulogigantesco,enquantooplaneta, mostrando uma superfcie estriada de sulcos violaceos e enegrecidos,erguia-se aminha frente como uma parede.Minha cabea estava comeando arodar quando descobri um pequeno tabuleiro de pontos verdes e brancos - ocampodeorientaaodaestaao.Houveumestaloealgumacoisaseparou-sedocone da capsula. O longo colar do para-quedas desprendeu seus aneis comviolenciaeobarulhoquechegouatemimevocavairresistivelmenteaTerra:pelaprimeiravez,depoisdetantosmeses,orudodovento.

    Aseguirfoitudomuitorapido.Atealieusabiaqueestavacaindo.Agoraeuviaaqueda.Otabuleiroverdeebrancoaumentavarapidamente.Viqueelehaviasidopintado sobre um corpo alongado, em formade baleia, com relexos prateados,cujos lancos estavam eriados de antenas de radar. Vi que aquele colossometalico, cheio de ileiras de aberturas escuras, nao assentava na superfcie doplaneta,maslutuava,projetandosobreumfundodetintaumasombraelipsoidaldeumpretomais intenso.Distinguiasrugasacinzentadasdooceano,animadasporumlevemovimentoe,derepente,asnuvenssubirammuito,cercadasdeumofuscantehaloescarlate.

    Maisalem,oceuamareladotornou-secordecinza, longnquoe liso,e tudodesapareceu.Caemparafuso.

    Umchoquerapidoestabilizouacapsula.Revi,atravesdaescotilha,asondasdo oceano, semelhantes a cristas de mercurio refulgente. Os cabos sedesamarraram subitamente e os gomos do para-quedas, levados pelo vento,

  • voaramdeformaconfusaporcimadasondas.Oscilandonaqueleritmolentotodoespecialquelheeraimpostoporumcampomagneticoartiicial,acapsuladesceusuavemente.Tiveaindatempodeverasgradesdasrampasdelanamentoe,noaltode suas torres iluminadas, os espelhosdedois radiotelescopios.Houveumbarulhodeaocontraao,acapsulaseimobilizou,umaescotilhaseabriue,comum longosuspirorouco,a carapaametalica,quemeaprisionava, terminousuaviagem.

    Ouviavozsemvidadainstalaodecontrole.-EstaoSolaris.Zeroezero.Acpsulaestpousada.Fim.Com as duas maos (eu sentia uma vaga pressao no peito e as vsceras

    pesarem desagradavelmente), agarrei as alavancas e cortei os contatos. Umletreiro se acendeu em verde: CHEGADA. A parede da capsula abriu-se. A camapneumaticaempurrou-mecomsuavidade,demaneiraque,paranaocair,tivededarumpassoafrente.comumsilvoabafado,resignado,oescafandroexpulsouoardosseusdepsitos.Euestavalivre.

    Encontrava-mesobumfunilprateadotaoaltoquantoanavedeumacatedral.Feixes de tubos coloridos desciam ao longo das paredes inclinadas edesapareciamemorifciosarredondados.Virei-me.Ospoosdeventilaaorugiamaspirandoosgasesletaisdaatmosferaplanetaria,quehaviamseiniltradoquandomeu veculo pousou no interior da estaao. Vazia, semelhante a um casuloarrebentado, a capsula em forma de charuto erguia-se, apertada por um calicemontadonumabasedeao.Orevestimentoexterior,calcinadoduranteaviagem,tomaraumacormarromsuja.

    Desciumapequenarampa.Embaixo,osolometalicoforarecobertoporumacamada de plastico aspero. Em certos lugares, as rodas dos vagonetes, quetransportavam os foguetes, haviam desgastado aquele tapete plastico e o aoaparecia.

    Osventiladorespararamsubitamentedefuncionarehouveumsilenciototal.Olhei em torno, um tanto indeciso, esperando o aparecimento de alguem. Masninguem parecia chegar. So uma lecha de neon brilhava, apontando para umaescadamecanica,querolavasembarulho.Deixei-melevarparaafrente.Otetodasala baixava, seguindo uma bela linha parabolica, ate a entrada de uma galeria.Quantidades de garrafas de gas comprimido, de aparelhos, de para-quedas, decaixasemuitosoutrosobjetosamontoavam-se,atiradosdequalquermaneira,nasreentrnciasdagaleria.

    Aesteirarolantemedepositounaextremidadedagaleria,nopatamardeumatrio,ondereinavaumadesordemaindamaisvisvel.Umapoadelquidooleosoespalhava-se sobummontaode latas.Umcheironauseabundoempestavao ar.

  • Marcas de pes, manchas pegajosas, afastavam-se em varias direoes. Umemaranhadodeitastelegraicas,depapeisrasgadosetodaespeciedeimundcierecobriamaslatas.

    Apareceuoutravezumalechadeluzverde,apontandoparaaportacentral.Por tras da porta, estendia-se um corredor estreito, onde dois homens jamaispoderiam andar lado a lado. Tijolos de vidro, incrustados no teto, iluminavamaqueladesordem.Novamenteumaporta,pintadadeverdeebranco,emformadetabuleirodedamas.

    Estavaentreabertaeeuentrei.A sala, de paredes curvas, tinha uma grande janela panoramica, que uma

    bruma ardente avermelhava. Sob a janela, passavam silenciosamente as cristasfuliginosas das ondas. Havia, junto as paredes, armarios abertos, repletos deinstrumentos, de livros, de vidros sujos de recipientes termicos, cobertos depoeira. Cinco ou seis pequenas mesas com rodas e poltronas esiapadasatravancavamochaoimundo.Umunicoassentoestavacheiodear,comoencostoconvenientemente ereto atras. Um homenzinho magro, com o rosto queimadopelo sol e com a pele do nariz e das faces descascando, estava sentado nessapoltrona. Reconheci-o. Era Snow, especialista em cibernetica, substituto deGibarian.Quandomoo,publicaraartigosmuitooriginaisnoanuariosolarista.Ateaquele instante, eu nunca o havia encontrado. Ele usava uma camisa demalha,cujos orifcios deixavam passar, aqui e ali, os pelos cinzentos de um peitodescarnado,eumacaladealgodaocheiadebolsos,umacalademecanico,quehaviasidobrancaequeestavaagoramanchadaateosjoelhoseesburacadapelosacidos.Tinhanamaoumadessasperasdemateriaplastica,usadasparabebernosveculosespaciaisnaoprovidosdeumsistemadegravidade interna.Olhava-meixamente. A pera escapou dos seus dedos e quicou varias vezes, espalhandoalguma quantidade de um lquido transparente. O sangue havia reludolentamentenoseurosto.Euestavademasiadamentesurpresoparafalareaquelacenamudadurou tanto tempoque, semquerer,Snowme transmitiuseu terror.Deiumpassofrente.Eleseencolheunapoltrona.

    -Snow...-murmurei.Eleestremeceu,comoseeuotivesseespancado.Olhando-mecomumhorror

    indescritvel,faloucomvozrouca:-Nooconheo...Nooconheo...Quequevocquer?Olquidoderramadoseevaporararapidamente.Sentiumbafodealcool.Ele

    bebia?Estavabebado?Dequetinhatantomedo?Permanecidepenomeiodasala.Minhaspernasestavambambas.Meusouvidospareciamentupidosdealgodao.Eutinha a impressao deque, sobmeuspes, o chaonao era real. Por tras do vidro

  • curvo da janela, o oceano estava agitado por ummovimento regular. Snownaotirava os olhos injetados de sangue de cima de mim. O terror comeava aabandonarseurosto,mascontinuavaaexpressodeumnojoinarredvel.

    Perguntei,emvozbaixa:-Quequevoctem?Estdoente?Elerespondeu,comvozsoturna:-Voceestapreocupado...Ah!Entao,semmaisnemmenos,vocesepreocupa?

    Porquevocseincomodacomigo?Nooconheo.-OndeestGibarian?-perguntei.Eleperdeuoflego.Nofundodosolhos,tomadosvtreos,umachamaacendeu

    eapagou.Gaguejou:-Gi...Giba...No!No!Seucorpofoiinteiramentesacudidoporumrisoabafado,umrisodeidiota.

    Depois,foiseacalmandopoucoapouco.-VeioverGibarian?PorcausadeGibarian?Quequevocquerfazer?Passouameencararcomose,derepente,eutivessedeixadoderepresentar

    uma ameaa para ele. Havia em suas palavras, ou melhor, no seu tom, odio eprovocao.

    Espantado,tartamudeei:-Oque...Ondeestele?-Vocnosabe?Evidentemente, Snowestava embriagado ehaviaperdido completamente a

    cabea. Eu comeava a icar furioso. Deveria ter me dominado e sado, mas apacinciameabandonou.

    Berrei:-Basta!Comopoderiaeusaberondeestaele,seacabodechegar!Snow!Que

    estacontecendo?Oqueixodelecaiu.Tornouafaltar-lheofolegoeumclaraodiferenteiluminou

    seusolhos.Agarrouosbraosdapoltrona comasduasmaos. Levantou-se comextremadificuldade.Seusjoelhostremiam.

    -Oque?...Voceestachegando...Estachegandodeonde?-perguntouele,quasesbrio.

    Respondicomraiva:-DaTerra!Talvezjtenhaouvidofalarnela!Ningumdiria!-Da...Grandeespao...Entovoc...Kelvin?-Sou.Porquemeolhadessamaneira?Quequeeutenhodeespantoso?Snowpiscourapidamente.-Nada-disse,esfregandoatesta-nada...Desculpe,Kelvin, istonao enada,

  • garanto,sasurpresa...Noesperavav-lo.- Nao esperava me ver, como? Voces foram avisados ha varios meses e

    ModdardtelegrafouhojemesmodaPrometheus...- Claro, claro,mas acontece... sabe? - que atualmente andamos um pouco...

    desorganizados.Respondisecamente:-Defato...oqueestouvendo!Snowdeuumavolta em tornodemim, inspecionandomeuescafandro, um

    trajebastantecomum,comsuahabitualquantidadedecabosefiosnopeito.Tossiuepassouamopelonarizossudo.- Voce nao quer tomar um banho? Vai lhe fazer bem... Naquela porta azul,

    daquelelado.-Obrigado,conheoatopografiadaestao.-Estcomfome?-No!...OndeestGibarian?Semresponder,Snowaproximou-sedajanela.Decostas,pareciamuitomais

    velho.Seuscabelos,cortadosrente,eramgrisalhos.Rugasprofundassulcavamsuanuca,queimadapelosol.

    Ascristasdasondasenormes,queiamevinham,subindoedescendodevagar,cintilavam atraves da janela. Olhando-se o oceano daquela maneira, tinha-se aimpressao - que nao passava decerto de simples ilusao - de que a estaao sedeslocava imperceptivelmente, como se estivesse deslizando de cima de umpedestalinvisvel.Depoispareciarecuperaroequilbrioantesdeseinclinarparaooutro lado, com identicomovimento lento. Embaixo, a espuma espessa, cor desangue,amontoava-senoocodasondas.Numafraaodesegundo,minhagargantase contraiu e eu tive saudades da disciplina severa a bordo daPrometheus,lembrana de uma existencia que, subitamente, se revelou para mim feliz eperdidaparasempre.

    Snowvirou-se,esfregandoasmoscomnervosismo.-Oua-disseele,derepente-porenquantoestousoeuaqui...Hojevocetera

    desecontentarcomaminhacompanhia.MechamedeRato-Velhoepronto!Comovoce ja havia vistominha fotograia, basta imaginar queme conhece hamuitotempo.TodosmechamamdeRato-Velho.Nadapossofazer.Alias,achoqueeumnomepredestinado,poismeuspaissempretiveramaspiraescsmicas...

    Obstinado,repetiminhapergunta:-OndeestGibarian?Bateunovamenteasplpebras.-Lamentoterrecebidovocedestamaneira.E ...Naverdade,naotenhoculpa.

  • Esqueci completamente... Aconteceram tantas coisas aqui, que vocecompreender...

    -Estbem...eGibarian?Noestnaestao?Estemvodeobservao?Snowolhouparaummontedecabosenrolados.-No,elenosaiu.Noirvoar.Exatamente...Comoeucontinuassedeouvidostapados,escutavacadavezpioreperguntei:-Noentendi.Ondeeleest?-comavozmudada,Snowrespondeu:-Vocentendeumuitobem.Encarou-me com frieza nos olhos. Estremeci. Ele estava embriagado, mas

    sabiaoquedizia.-Serquehouve...-Sim.-Umacidente?Snow sacudiu a cabea vigorosamente, num gesto de concordancia,

    examinandominhareao.-Quando?-Nestamadrugada.Minhareaonofoiviolenta.Aquelatrocadeperguntaserespostasmehavia

    acalmadopelaconcisao.EucomeavaaterumaexplicaaoparaocomportamentobizarrodeSnow.

    -Queespciedeacidente?-Vaparasuacabinaetireoescafandro...Depoisvolteaqui...Dentro...Dentro,

    digamos,deumahora.Hesiteiduranteummomento.-Estbem-respondi,finalmente.Quandocomeceiaandarparaaporta,eledisse:-Espere!Queriamedizeralgumacoisa,aspalavrasnaosedecidiamasairda

    suaboca.Aocabodeummomento,acrescentou:-Nsramostrseagora,comvoc,tornamosasertrs.ConheceSartorius?-Comoavoc,defotografia.-Eleestanolaboratorio,laemcima,enaocreioqueapareaantesdanoite,

    mas...sejacomofor,voceoreconhecera.Sevoceviralguemmais,alguemquenaosejaeunemSartoriussabe?-ento...

    -Entooqu?Eu estava sonhando, tudo aquilo nao passavade um sonho!Aquelas ondas

    escuras, de relexos sangrentos, sob o sol poente, e aquele homenzinho quetornara a sentar na poltrona, com a cabea inclinada outra vez na direao domontedecabos.

  • -Entonofaanada.Irritei-me.-Quequeeupoderiaver?Umfantasma?-Vocepensa,evidentemente,queeusoulouco.Nao.Nao,naosoulouco.Nao

    possolhedizermaisnada,porenquanto.Alias,talvez...talveznaoaconteanada.Emtodocaso,noesqueameuaviso.

    -Falecommaisclareza!Dequesetrata?- Controle-se e prepare-se para enfrentar... qualquer coisa. Sei que e

    impossvel.Mastente.Eo unicoconselhoqueposso lhedar.Naoencontronadamelhor.

    -Masenfrentaroqu?-gritei.Vendo-osentadoali,olhandodesoslaio,comacabeacansadaequeimadade

    sol,malpudemeconter.Minhavontadeeraagarra-lopelosombrosedar-lheumasboassacudidas.

    Amuitocusto,deixouaspalavrassaremumaauma.-Nosei.Numcertosentido,dependedevoc.-Alucinaes?-No,...real.Noataca.Elembreoquelhedisse!Noreconheciminhaprpriavoz.-Quehistriaessa?NoestamosnaTerra.Griteinovamente:-Polpteros?Elesnadatmdehumano!Iameatirarsobreele,paraarranca-lodacontemplaaoque lhe inspiravam,

    aparentemente,aquelescomentriosinsensatos,quandoSnowmurmurou:-Eporissoquesoperigosos.Lembredoquelhedisse,fiquedeolho!-QueaconteceuaGibarian?Snownorespondeu.-Sartoriusestfazendooqu?--Voltedentrodeumahora.Virei-meesa.Aofecharaporta,olhei-oaindaumavez.Pequeno,encolhido,

    com a cabea entre as maos e os cotovelos apoiados na cala manchada,continuavasentado,imvel.Sentonoteiosanguecoaguladonascostasdassuasmos.

  • O S S O L A R I S TA S

    O CORREDOR estava vazio. Fiquei um instante parado diante da portafechada.Ogemidodoventoeraouvidonoenvoltorioestanquedaestaao.Divisei,na almofada da porta, colado de traves, de forma descuidada, um pedao deesparadrapo, onde havia escrito a lapis: "Homem". Olhei aquela palavra,displicentementeescrita,epenseiemvoltarparajuntodeSnow.Depoisdesisti.

    Suas loucas advertencias ainda ressoavam nos meus ouvidos. Continuei aandar, com os ombros curvados pelo peso do escafandro. Com passos macios,evitando mais ou menos conscientemente algum observador invisvel, volteiquase ate o atrio. Depois que sa do corredor, encontrei duas portas a minhaesquerdaeoutrasduasdireita.

    Liosnomesdosocupantes:Dr.Gibarian,Dr.SnoweDr.Sartorius.Naohaviaplacanaquartaporta.Hesitei,torciamaanetacomsuavidadeeabrilentamenteaporta.

    Empurrei-aetiveopressentimento,quaseacerteza,dequehaviaalguemnasala.Entrei.

    Naohavianinguem.Umajanelapanoramicaconcava,ligeiramentemenorquea da cabina onde eu achara Snow, dava para o oceano, que brilhava naqueleinstante ao sol, com um relexo oleoso, e cujas ondas pareciam segregar umagordura avermelhada. Relexos escarlates enchiam o quarto inteiro, cujadisposiolembravaumcamarotedenavio.

    Deumlado,cercadodeestantescheiasdelivros,umleitoautomaticoestavaencostado verticalmente contra a parede. Do outro, entre numerosos armarios,estavampenduradasmoldurasdenquel,comumaseriedevistasaereas,coladasladoaladocomesparadrapo,earmaoescontendoprovetaseretortas,tampadascomchumaosdealgodao.Emfrente a janela,duasileirasdecaixasdeesmaltebrancoobstruamapassagem.Levanteialgumastampas.Ascaixasestavamcheiasde instrumentos de toda especie, misturados com tubos de materia plastica.Havia, em cada angulo, uma torneira, uma instalaao de refrigeraao e um

  • dispositivoanti-mofo.Ummicroscopioforacolocadonochao,porfaltadeespaonagrandemesaaoladodajanela.Voltando-me,vi,juntodaportadeentrada,umarmarioalto.Estavaentreabertoecontinharoupasespaciais,blusasdetrabalho,aventais isolantes, roupadebaixo, botasde exploraaoplanetaria e garrafasdealumniopolido-reservatoriosdeoxigenioparaaparelhosportateis.Doisdestes,comasrespectivasmascaras,estavampenduradosnagradedacama.Paraondequer que eume virasse, encontrava omesmo caos, uma desordemque alguemhaviatentado,grosseiramente,dissimular aspressas.Aspireioar.Sentiumlevecheiro de reativos qumicos e traos de um odor mais acre: cloro? Procureiintuitivamente as grades de aeraao junto ao teto. Presas a elas, itas de papellutuavamcomsuavidade.Osaparelhosfuncionavam,garantindoumacirculaaodearnormal.Tireios livros,aparelhose instrumentosqueestavamemcimadeduas cadeiras e levei-os para o outro ladodoquarto, colocando-os de qualquermaneira.Meuobjetivoeraconseguirumespaorelativamentelivreemtornodacama, entre o armario e as estantes. Puxei um cabide, para pendurar meuescafandro.Pegueiapontadozperedepois larguei-o.Estavasendo trabalhadopela ideia confusa de que, ao retirar a vestimenta, icaria despojado de umaproteo.Porissonomedecidiaaabandonaraquelaindumentria.

    Meusolhospercorreramasalamaisumavez.Veriiqueiqueaportaestavabemfechada,masquenaotinhafechadurae,depoisdebrevehesitaao,arrasteiparaasoleiraalgumasdascaixasmaispesadas.

    Feita essa barricada provisoria, livrei-me do casco do escafandro com tressacudidelas.Umespelhoestreito,colocadonaportadeumarmario,reletiaumapartedoquarto.Comorabodoolho,surpreendiumaformasemovendo.Tiveumsobressalto, mas nao passava de meu proprio relexo. A camiseta, sob o traje,estavaempapadadesuor.Retirei-aeempurreiumarmarioquedeslizavasobretrilhos ao longo da parede. Ele revelou o interior iluminado de um pequenobanheiro.Haviaumacaixinhachataeoblonganochaodochuveiro.Carregueiacaixinhaparaoquarto,semdiiculdade.Assimqueacoloqueinochao,umamolafezcomqueatampaseabrisseevicompartimentoscheiosdeobjetosestranhos:pedaos de metal escuro, replicas grotescas dos instrumentos existentes nosarmarios. Nenhum dos instrumentos da caixinha era utilizavel. Estavam semforma,atroiados, fundidos, comose tivessemsadodeumbraseiro.Coisamaisestranhaainda,mesmoasempunhadurasdeceramica,praticamenteinfundveis,icaram deformadas. Nenhum forno de laboratorio, aquecido ao maximo, seriacapazdederrete-las.Talvezumapilhaatomicaoconseguisse.Tireidobolsodomeutrajeumcontadorderadiaoes,masapequenaextremidadepretacontinuousilenciosaquandoaaproximeidosdestroos.

  • Naquele instante eu so tinha sobre o corpo uma sunga e uma camiseta detrico. Tratei de retira-los, jogando-os longe de mim e corri para o chuveiro. Ochoqueda agua foieicaz.Girandosobremimmesmosobo jato forteequente,esfreguei-me com excessivo vigor, respingando as paredes e expulsando,extirpandodapele toda aquela imundcie de apreensoesperturbadorasquemeimpregnavadesdeminhachegada.

    Remexi o armario e encontrei um macacao de treinamento, capaz de serusadotambemsoboescafandro.Nomomentodetransferirparaumdosbolsosatotalidadedasminhasmagrasposses,sentiumobjetoduroimprensadoentreasfolhasdomeucadernodenotas.Eraumachave,adomeuapartamentolembaixo,na Terra. Indeciso, iquei rodando a chave entre os dedos. Por im, coloquei-asobre a mesa. De repente, lembrei-me de que iria precisar de uma arma. Umcanivetedevarias laminasnaoeraexatamenteo ideal,maseraa unicaarmadequedispunhaenaoiria,naquelaaltura,sairaprocuradeumapistolaradioativaouqualquercoisadognero.

    Sentei-me num banquinho no meio do espao vazio. Queria estar so.Constatei,comsatisfaao,quedispunhademaisdemeiahora.Costumorespeitarescrupulosamenteosencontrosmarcados, importantesounao.Osponteirosdorelogio, cujo mostrador era dividido em vinte e quatro partes, marcavam setehoras. O sol comeava a se por. Sete horas ali eram vinte horas a bordo daPrometheus. Solaris, nas telas de Moddard, nao passava de um grao de poeiraindistinto,confundidocomasestrelas.

    Bom, que me importava aPrometheus? Fechei os olhos. Ouvia, apenas, osgemidosdascanalizaeseotnuepingardaguanobanheiro.

    Gibarianestavamorto.Naohaviamuito tempo,seeunaoestavaenganado.Queteriamfeitodocorpo?Enterrado?Nao,naqueleplanetaeraimpossvel.Penseidemoradamente a respeito, preocupado exclusivamente com o destino docadaver.Depois,percebioquehaviadeabsurdonaquelepensamento.Levantei-meecomeceiaandardeumladoparaoutro.Baticomapontadopenumasacolaquesurgiadomeiodeummontedelivros.Inclinei-meeapanhei-a.Havia,dentrodela,umfrascodevidroescuro,taolevequepareciatersidofabricadodepapel.Examinei-odefrontedajanela,aluzpurpuradeumlugubrecrepusculo,invadidoporbrumasdefuligem.Queestavameacontecendo?Porquemedeixavadistrairpordivagaesoupelaprimeirabobagemquemecaanasmos?

    Estremeci. As lampadas acenderam, sob o comando de um aparelhofotoeletrico.O sol acabava de desaparecer.Que iria acontecer? Eu estava de talmaneira tenso, que a sensaao de um espao vazio asminhas costas tornou-seinsuportavel.Decidilutarcontramimmesmo.Chegueiumacadeiraparapertoda

  • estante e apanhei uni livro que me era familiar, o segundo tomo da velhamonograia de Hughes e Engel, Historia deSolaris. Coloquei sobre os joelhos ogrossovolume,solidamenteencadernadoecomeceiafolhe-lo.

    AdescobertadeSolarisremontavaamaisoumenoscemanosantesdemeunascimento.

    Oplanetagravitavaemtornodedoissois,umvermelhoeumazul.Nenhumanaveseaproximaradoplanetaduranteosquarentaanosqueseseguiramasuadescoberta.

    Naquela epoca, a teoria de Gamow-Shapley, airmando que a vida eraimpossvel em planetas satelites de dois corpos solares, era tida como certa. Aorbita e constantementemodiicada pelomovimento variavel da gravitaao, nocursodarevoluaoemtornodedoissois.Aorbita,emconsequenciadevariaoesdagravitaao,seachataousedistendeeoselementosdavida,seaparecerem,saoinfalivelmentedestrudos, sejaporuma radiaaode calor intenso, sejaporumabrutalquedadetemperatura.Essasmodiicaoesintervemnumtempoestimadoemmilhoesdeanos,consequentementeumtempomuitocurto,segundoasleisdaastronomia ou da biologia (a evoluao exige centenas de milhoes, se nao umbilhodeanos).

    Segundo os primeiros calculos,Solaris devia, em quinhentos mil anos,aproximar-sedoseusolvermelhonumadistanciaequivalente ametadedeumaunidade astronomica e, um milhao de anos mais tarde, submergir no astroincandescente.

    Mas,jaaoimdealgumasdezenasdeanos,acreditaramterdescobertoqueaorbitanaoacusavaabsolutamenteasmodiicaoesesperadas.Elaeraestavel,taoestvelquantoarbitadosplanetasdonossosistemasolar.

    Recomearam, com extrema precisao, as observaoes e os calculos queconirmaram simplesmente as primeiras conclusoes: a orbita deSolaris erainstvel.

    Unidademodestaentreascentenasdeplanetasdescobertosacadaano,aosquaisasgrandesestatsticasselimitavamaconsagraralgumaslinhas,deinindoasparticularidadesdomovimento,Solarispoucoapoucoergueu-se aalturadoscorposcelestesdignosdeatenomaisconsidervel.

    Quatro anos apos essa promoao, a expediao Ottenskjold empreendeu oestudo deSolaris, sobrevoando o planeta a bordo doLaakon. A expediao tinhacomounicafunaoumreconhecimentopreparatorio,quaseimprovisado,poisoscientistasnao estavamequipadosparapousar.Ottenskjold colocouumagrandequantidade de satelites-observatorios automaticos em orbitas equatoriais epolares,cujafunoprincipalconsistiaemmedirospotenciaisdegravitao.Alm

  • disso, estudavaa superfciedoplaneta, recobertaporumoceanopontilhadodeinumerasilhas,quetemaconiguraaodeplanaltos(asuperfcietotaldasilhaseinferioradaEuropa,emboraodiametrodeSolarissejaumquintomaiorqueodaTerra. Essas extensoes de territorio rochoso e desolado, irregularmentedistribudas,estoagrupadasprincipalmentenohemisfrioaustral).

    Analisaram,tambem,acomposiaodaatmosfera,desprovidadeoxigenio,eefetuaram medioes extremamente precisas da densidade do planeta, do qualdeterminaram a capacidade de reletir, bem como outras caractersticasastronomicas. Como era previsvel, nao foi descoberto qualquer trao de vida,tantonasilhascomonooceano.

    Nos dez anos seguintes,Solaris tornou-se o centro de atraao de todos osobservatorios ligados ao estudo daquela regiao do espao. O planeta, porem,revelavaumatendenciaespantosaaconservarumaorbitadegravitaaoque,semamenorduvida,deveriaserinstavel.Ofatosetornouquaseumescandalo.Tendoosmeiosoiciaisconsiderado inexatososresultadosdasobservaoes, tentaramculpar (para o bem da ciencia) os cientistas ou os computadores por elesutilizados.

    Afaltadeverbaatrasouemtresanosapartidadeumaverdadeiraexpediaosolarista. Shannahan, inalmente, tendo completado sua equipe, obteve doInstitutotresunidadesdetonelagemC,osmaiorescruzadorescosmicosdaepoca.Umanoemeioantesdachegadadaexpediao,quepartiudeAlfadeAquario,umasegunda frota de exploraao, agindo em nome do Instituto, colocou em orbitasolarista um sateloide automatico:Luna 247 (esse sateloide, depois de tresreconstituioessucessivas,efetuadascomalgunsanosdeintervalo, funcionaatehoje). Os dados fornecidos pelo sateloide conirmaram deinitivamente asobservaoes da expediao Ottenskjold no que concerne ao carater ativo dosmovimentosdooceano.

    UmdosveculosdeShannahan icounuma orbitaalta.Osoutrosdois,aposensaios preliminares, pousaram num terreno rochoso, de cerca de seiscentasmilhas quadradas, no hemisferio austral deSolaris. Os trabalhos da expediaoduraram dezoito meses e foram efetuados em condioes favoraveis, seexcetuarmosumacidente lamentavel,provocadopelofuncionamentodefeituosodealgunsaparelhos.Noentanto,aequipedecientistassedividiuemdoiscampos,tendo o oceano como objeto de discussao. Baseando-se em analises efetuadas,admitiram que o oceano era uma formaao organica (naquele tempo ninguemaindahaviaousadodeclara-lovivo).Mas, enquantoosbiologoso consideravamumaformaaoprimitiva-umaespeciedetodogigantesco,umacelulaluida,unicae monstruosa (que eles chamavam "formaao pre-biologica"), que envolvia o

  • globonumacamadacoloidalquepodiaatingir,emcertoslugares,umaespessurade algumasmilhas -, os astronomos e fsicos airmavamque ele devia ser umaestrutura organizada, extraordinariamente evoluda. Segundo eles, o oceanoultrapassavaemcomplexidademesmoasestruturasorganicasterrestres,poiseracapazdeinluirdeformaeicazsobreotraadodaorbitaqueoplanetadescrevia.De fato, nao haviam descoberto nenhuma outra causa que pudesse explicar ocomportamentodeSolaris.Alemdisso,osplanetofsicoshaviamestabelecidoumarelaaoentrecertosprocessosdooceanoplasmaticoeopotencialdegravitaaomedido localmente, potencial que se modiicava de acordo com as"transformaesdematria"dooceano.

    Dessa forma, foram os fsicos e nao os biologos que propuseram aquelaformulaaoparadoxal -"maquinaplasmatica"entendendoportalumaformaaotalvez privada de vida, segundo nossas concepoes, mas capaz de executaratividadesteis-emescalaastronmica,precisoquesediga.

    Por ocasiao dessa discussao, cuja agitaao, em poucas semanas, atingiu asmais eminentes autoridades, a doutrina Gamow-Shapley, irrefutavel duranteoitentaanos,foiabaladapelaprimeiravez.

    Alguns ainda continuavam a sustentar a airmaao de Gamow-Shapley, asaber,queooceanonadatinhaemcomumcomavida,quenaoeraumaformaao"para" ou "pre-biologica", mas uma formaao geologica, pouco comum, semnenhumaduvida,ecapazunicamentedeestabilizaraorbitadeSolaris,malgradoavariaaodasforasdeatraao.Parareforaraargumentaao,referiam-sealeideLChatelier.

    Emoposiaoaessaatitudeconservadora,novashipotesesforamaventadas-entreelasadeCivito-Vitta,dasmaiselaboradas-proclamandoqueooceanoeraoresultado de um desenvolvimento dialetico. Partindo de sua forma primaria depre-oceano, soluao de corpos qumicos de reaao lenta, e pela fora dascircunstancias (as mudanas de orbita que ameaavam sua existencia), elechegara,comumunicosalto,aoestadode"oceanohomeostatico",sempassarportodososgrausdaevoluaoterrestre,evitandoasfasesunicelularepluricelular,aevoluaovegetaleanimal,aconstituiaodeumsistemanervosoecerebral.Ditodeoutraforma,aocontrariodosorganismosterrestres,elenaosehaviaadaptadoao seu meio em algumas centenas de milhoes de anos, para dar nascimento,inalmente, aos primeiros representantes de uma especie dotada de raciocnio,mashaviadominadoaquelemeiodeimediato.

    Opontodevistaeraoriginal.Apesardisso,continuava-se ignorandodequemaneiraaqueleenvoltoriocoloidalpodiaestabilizaraorbitadocorpoceleste.Jahaviaumpoucomaisdeumseculoqueeramconhecidosdispositivoscapazesde

  • criarartiicialmentecamposdeatraaoedegravidade:osgravitadores.Masnaoeraamesmacoisaalguemimaginarcomoaquelagosmainformepodiaobterumefeito que os gravitadores provocavam por intermedio de reaoes nuclearescomplicadasedetemperaturasextraordinariamenteelevadas.

    Osjornaisdaquelestempos,espicaandoacuriosidadedoleitormedioeairados cientistas, regurgitavamde fabulas asmais inverossmeis sobre o tema do"misterioSolaris".Umcronistachegouateapretenderqueooceanoera...parenteafastadodosnossospeixeseltricos!

    Quando,numacertamedida,conseguiu-seesclareceroproblema,foireveladoqueaexplicaao-coisaquesereproduziucomfrequencia,aseguir,nodomniodos estudos solaristas substitua um enigma por outro, talvez ainda maissurpreendente.

    Asobservaoesdemonstraram,pelomenos,queooceanonaoagiadeacordocom as leis dos nossos gravitadores (o que, alias, teria sido impossvel), masconseguiaimpordiretamenteaperiodicidadedopercurso.Dissoresultava,entreoutras coisas, diferenas namedida do tempo num unicomeridiano deSolaris.Assim,portanto,naosomenteooceanoconhecia,numcertosentido,ateoriadeEinstein-Boevia,comotambemsabiaexplorarsuasconsequencias(enquantonosnopodamosdizeromesmo).

    Quando essa hipotese foi enunciada, explodiu no seio domundo cienticocomo uma das mais violentas tempestades do seculo. Teorias veneraveis,universalmente aceitas, desmoronaram. Artigos audaciosamente hereticosinvadiam a literatura especializada. "Oceano genial" ou "coloide gravitante", oproblemaexcitavaasmentes.

    Tudo issosepassoumuitosanosantesdomeunascimento.Quandoeueraestudante-novosdadoshaviamsidorecolhidosnessemeiotempo-,aexistenciade vida emSolarispassaraateraceitaaogeral,emboraessavidaselimitasseaumnicohabitante.

    O segundo volume de Hughes e Engel, que eu continuava a folhearmaquinalmente, comeava por uma sistematizaao tao engenhosa quantodivertida.Atabeladeclassificaescomportavatrsdefinies:

    TIPO:Polptero;ORDEM:Sincitial;CATEGORIA:Metamrfica.Enos quepensavamos conheceruma ininidadede exemplaresda especie,

    quando, na realidade, so existia um, pesando, e verdade, setecentos bilhoes detoneladas!

    Meus dedos folheavam iguras multicoloridas, graicos pictoricos, analisespertinentesediagramasespectrais,expondootipoeoritmodastransformaoesfundamentaisedasreaoesqumicas.Rapidaeinfalivelmente,oalentadovolume

  • mearrastavapara o solido terrenoda fematematica. Era possvel concluir quehavamos adquirido um completo conhecimento daquele representante dacategoriametamorica, que se estendia por algumas centenas demetros sob aestruturametalicadaestaao,encobertanaqueleinstantepelassombrasdeumanoitequedurariaquatrohoras.

    Na verdade, nem todos estavam convencidos de que o oceano fosse,realmente, uma "criatura" viva e,menos ainda, diga-se de passagem, que fossedotadoderaciocnio.

    Pouseiogrossovolumenaprateleiraeapanheioseguinte.Dividia-seemduaspartes.Aprimeiraeraconsagradaaoresumodasinumerastentativasquetinhamporinalidadeestabelecerumcontatocomooceano.Naepocadosmeusestudos,lembro-me perfeitamente, aquele estabelecimento de contato era objeto deanedotas,debrincadeirasedezombariassemim.Comparadacomaabundanciadeespeculaoes suscitadasporaqueleproblema, aescolasticamedievalpareciaumexemplodeevidencias luminosas.A segundaparte, cercademil e trezentaspaginas, compunha-se quase que exclusivamente da bibliograia referente aoassunto.Ostextoscitados,sereunidos,nocaberiamnasalaondemeencontrava.

    Osprimeirosensaiosdecontatoforamtentadosporintermediodeaparelhoseletronicosespecialmenteconcebidos,quetransformavamosimpulsosemitidosbilateralmente.

    Ooceanoparticipoudessasoperaesativamente,umavezquereproduziuosaparelhos. Apesar disso, continuava tudo obscuro. Que era, exatamente, aquela"participao"?

    O oceanomodiicava certos elementos dos instrumentos submergidos; porconsequencia,oritmoprevistodasdescargasicavadesarranjadoeosaparelhosdegravaaoreproduziamumaquantidadedesinais, testemunhas fragmentariasde alguma atividade fantastica, que escapava, na realidade, a qualquer analise.Traduziriam aqueles dados um estado momentaneo de estmulo, ou impulsosconstantes,emrelaaocomasestruturasgigantescasqueooceanoestavaapontode criar em algum lugar, nas antpodas da regiao onde os pesquisadores seencontravam? Os aparelhos eletronicos teriam registrado a manifestaaoimpenetrveldevenerveissegredosdaqueleoceano?

    Teriaelenosentregadosuasobras-primas?Comosaber!Oimpulsonaohaviaprovocadoduasreaoesidenticas.Nummomentodado,osaparelhossofaltavamexplodirsobaviolenciadosimpulsosenooutrohaviaumsilencioabsoluto.Emresumo,eraimpossvelobterarepetiaodequalquermanifestaaojaobservada.Parecia, constantemente, estarem a ponto de decifrar a massa crescente dosindciosgravados.Naohaviamsidoconstrudoscomesseimcerebroseletronicos

  • de uma capacidade de informaao praticamente ilimitada, como nenhum outroproblemaexigiraateentao?Naverdade,obtinham-seresultados.Ooceano-fontedeimpulsoseletricos,magneticosedegravidade-exprimia-senumalinguagemdecerta formamatematica.Porconseguinte,apelandoparaumdosramosmaisabstratos da analise, a lei dos grandes numeros, foi possvel classiicar certasfrequencias de descargas de correntes K pareceram similitudes estruturais, jaobservadaspelosfsicosnosetordacienciaquelevaemconsideraaoasrelaoesrecprocasdaenergiaedamateria,decomponentesecompostos,doinitoedoininito. Essa correspondencia convenceu os cientistas de que estavam empresena de um monstro dotado de raciocnio, de um oceano-cerebroprotoplasmico, envolvendo o planeta todo, que desperdiava seu tempo emconsideraoes teoricas extravagantes sobre a realidade universal. Nossosaparelhos haviam captado de surpresa nimos farrapos de um formidavelmonologo, que se desenrolava eternamente nas profundezas daquele cerebrogigantescoeque,forosamente,ultrapassavanossacompreenso.

    Isso no que respeita aos matematicos. Aquelas hipoteses, segundo alguns,subestimavam as possibilidades da mente humana. Inclinavam-se diante dodesconhecido, proclamando uma velha doutrina, audaciosamente desenterrada:ignommus et ignorabimus. Outros pensavam que as hipoteses dos matematicosnaopassavamdedivagaoesestereiseperigosas,poiscontribuamparacriarumamitologiacontemporanea,baseadanocerebrogigante-eletronicoouplasmatico,poucoimportavaconsideradocomoobjetivoderradeirodaexistenciaeinalidadedavida.

    Outrosainda...Masoscientistaseramlegiaoecadaumtinhaumateoria.Secomparassemos o setor das tentativas de "contato" com os outros ramos dosestudossolaristas,nosquaisaespecializaaohaviasedesenvolvido fortemente,sobretudonodecorrerdoltimoquartodesculo,constatava-sequeumsolarista-cibernticomalpodiasefazerentenderporumsolaristasimetriadologista.

    Veubeke,diretordoInstitutonotempoemqueeuestudava,perguntaraumdiabrincando:"Comoequevocequersecomunicarcomooceano,senaoecapazdecompreenderasimesmo?"Abrincadeiratinhaumgrandefundodeverdade.

    A decisao de classiicar o oceano na categoria metamorica nada tinha dearbitrria.Suasuperfcieonduladapodiadarnascimentoaformaesamplamentediversiicadas,emnadaseparecendocomoquevamosnaTerra,ea funaodoprocessodeadaptaao,dereconhecimentoououtro-desuasbruscaserupoesde"criatividade"plasmtica,continuavaumenigma.

    Levantando com as duas maos o pesado volume, pousei-o na prateleira epenseiquenossaerudiao-todaainformaaoqueacumulamosembibliotecas-

  • nao passava de um amontoado inutil, um emaranhado de testemunhos e desuposioes, e que nos nao havamos progredido uma unica polegada desde ocomeodaspesquisas,haviaoitentaeoitoanos.Asituaaoapresentava-sepiorque na epoca dos pioneiros, pois os esforos ininterruptos de tantos anos naohaviamlevadoanenhumacertezaindiscutvel.

    O conjunto de nossos conhecimentos exatos era estritamente negativo. Ooceanonaoseserviademaquinas.Emdeterminadascircunstancias,noentanto,parecia capaz de constru-las. No decorrer do primeiro e do segundo ano dostrabalhos de exploraao, ele havia reproduzido partes de alguns aparelhossubmersos.Emseguida,passarapurae simplesmentea ignorarasexperienciasque continuavamos a fazer com uma paciencia beneditina, como se tivesseperdidotodointeressepelosnossosinstrumentosepornossasatividades(comose,porconseguinte,setivessedesinteressadodenos).Ooceanonaotinhasistemanervoso - continuo a traar o quadro do nosso "conhecimento negativo" - nemcelulas e sua estrutura nao era proteiforme. Nem sempre reagia aos estmulos,mesmoaosmaispoderosos("ignorou"completamente,porexemplo,oacidentecatastroicoocorridocomasegundaexpediaodeGiese:umfogueteauxiliarcaiudeumaalturade trezentosquilometros e se espatifouna superfciedoplaneta,ocasionando adestruiaodeplasmanum raiodedoismil e quinhentosmetroscomaexplosoradiativadesuasreservasnucleares).

    Pouco a pouco, nos meios cienticos, o "casoSolaris" passou a serconsideradouma"jogoperdido",sobretudoentreosadministradoresdoInstituto,onde,recentemente,vozeshaviamsugeridoocortedasverbaseasuspensaodaspesquisas. Ninguem, ate entao, ousara falar de uma liquidaao deinitiva daestaao. Tal decisao signiicaria muito claramente uma derrota. Alias, durantecertas conversas oiciosas, um determinado numero de nossos cientistaspreconizou abandonar o "casoSolaris", adotando uma linha de retirada tao"honrosa"quantopossvel.

    Numerosos cientistas, entretanto, em especial os jovens, chegaraminsensivelmente a considerar o "caso" como uma pedra de toque dos valoresindividuais. "Tudo bem estudado", diziam eles, "o lucro nao consiste so empenetrarnacivilizaao solarista.Trata-seessencialmentedenos,dos limitesdoconhecimentohumano."

    Durante certo tempo, prevaleceu a opiniao (difundida com ardor pelaimprensadiaria)queo "oceanopensante"deSolariseraumcerebrogigantesco,prodigiosamentedesenvolvido,tendoumavanodemuitosmilhoesdeanoscomrelaao a nossa propria civilizaao, uma especie de "iogue cosmico", um sabio,umaexempliicaaodaoniscienciaque,haviamuitotempo,compreenderacomo

  • eravatodaatividadeeque,poressarazao,apartirdaserecolhiaaumsilencioinabalavel.Aopiniaoerainexata,poisooceanovivoagia.Nao,eclaro,segundoasnooeshumanas.Naoconstruacidadesoupontes,nemmaquinasvoadoras.Naoprocurava abolir distancias e nao se preocupava com a conquista do espao(criteriodecisivo,segundoalguns,paraairmaraincontestavelsuperioridadedohomem). O oceano entregava-se a inumeras transformaoes, a uma "auto-metamorfose ontologica". Nao falta imponencia aos termos cienticos nasatividadessolaristas!Poroutrolado,todocientistaligadoaoestudodosmultiplossolarianos sentia a irresistvel impressao de perceber fragmentos de umaconstruaointeligente,talvezgenial,misturadosdesordenadamenteaproduoesabsurdas,engendradasaparentementepelodelrio.Foiassimquenasceu,opondo-seconcepo"oceano-iogue",aidiado"oceano-dbil".

    Essashipotesesexumaramumdosantigosproblemasilosoicos:asrelaoesentreamateriaeamenteeentreestaea consciencia.Nao faltouaudaciaaDuHaartquandosustentou-foioprimeiro-queooceanoeradotadodeconsciencia.O problema, que os metodologistas apressaram-se a declarar metafsico,alimentou grande quantidade de discussoes e disputas. Era possvel que opensamento fosse privado de consciencia? Alias, seria possvel chamar depensamento os impulsos observados no oceano? Umamontanha e um enormepedregulho? Um planeta e uma enorme montanha? Continuava-se livre paraescolher uma terminologia, mas a nova escala de valores introduzia normas efenmenosnovos.

    A materia se apresentava como uma transposiao contemporanea doproblema da quadratura do crculo. Todo pensador independente procuravaincluir sua contribuiao pessoal no tesouro dos estudos solaristas. As teoriasnovas formigavam. O oceano testemunhava um estado de degenerescencia, deregressao, que sucedia uma fase de "plenitude intelectual". Era um neoplasmadelirante, descendente do corpo dos habitantes anteriores do planeta, todosdevorados, engolidospor ele e cujos resduos ele fundiranaquela formaeterna,auto-reproduzvel,deelementosupracelular.

    Aluzbrancadostubosluorescentes,palidaimitaaodaclaridadedeumdiaterrestre, retirei da mesa os aparelhos e livros que a ocupavam. Estendi, nasuperfciedemateriaplastica,omapadeSolariseiqueiolhandoparaele,comosbraosabertoseasmaosapoiadasnabeiracromadadamesa.Ooceanovivotinhacordilheiras e fossas. Suas ilhas, cobertas de um deposito mineral emdecomposiao,eramdecertodamesmanaturezadofundodooceano.Ordenariaele a erupao e desmoronamento das formaoes rochosas enterradas em seusabismos? Ninguem sabia. Considerando a grande projeao plana dos dois

  • hemisferios,matizados de diversos tons de azul e violeta, senti aquele espantoangustiante queme dominava com frequencia e queme envolveu aindamuitocriana,naescola,aotomarconhecimentodaexistnciadeSolaris.

    Perdido na contemplaao daquele mapa espantoso, nao pensava em coisaalguma e muito menos no misterio que cercava a morte de Gibarian, ou naincertezadomeuprpriofuturo.

    Asdiversasseoesdooceanolevavamosnomesdoscientistasqueashaviamexplorado. Estava estudando o mar de Thexall, que banhava os arquipelagosequatoriais,quandotiveabruscasensaodequealgummeolhava.

    Eu estava inclinado sobre o mapa, mas nao o via mais. Um invencvelentorpecimentotolhiameusmembros.Caixaseumpequenoarmariobarricavamaportaminhafrente.

    "E umrobo",pensei.Noentanto,eunaoencontraranenhumnoquartoeumrobonaopoderiaentrarcontraminhavontade.Sentiapeledanucaedascostasqueimando.

    Opesodaquele olhar imovel tornava-se insuportavel. coma cabeametidaentre os ombros, apoiei-memais fortemente namesa, que comeou a deslizardevagar.Essemovimentomelibertou.Voltei-me.

    Oquartoestavavazio.Naminhafrentehaviaapenasajanelaconcavaeanoitelafora.Masasensaaopersistia.Anoitemeolhava,cega,imensaesemfronteiras.Nenhumaestrelailuminavaaescuridaoalemdavidraa.Corriascortinasopacas.Naofaziaaindaumahoraqueeuestavanaestaaoejacomearaadarindciosdemorbidez.SeriaconseqnciadamortedeGibarian?Conhecendo-obem,euestavacertoataqueleinstantedequenadapoderiaperturbar-lheamente.

    Agoranotinhamaiscerteza.Fiqueiparadonomeiodoquarto,aoladodamesa.Minharespiraaocomeou

    aseacalmar.Sentiosuoresfriarnatesta.Eutinhapensadoemque,haviapouco?Ah,sim,nosrobos!Fiqueiespantadodenaoencontrarnenhum.Ondetinhamsemetido?Ounicocomoqualeuestiveraemcontato-delongepertenciaaoservioderecepodeveculos.Mas...eosoutros?

    Olheiorelgio.EstavanahoradeencontrarSnow.Sa. Filamentos luminosos, colocados no teto, iluminavam palidamente o

    vestbulo.ChegueijuntoaportadeGibarianeiqueiimoveldurantemuitotempo.Apenassilncio.

    Silencio por todos os lados. Torci a maaneta. Na verdade, eu nao tinha amenor intenao de entrar. Amaaneta girou e a porta abriu-se, formando umafendaescura.

    Emseguida,asluzesseacenderam.Atravesseirapidamenteasoleirae,sem

  • barulho,torneiafecharapassagem.Entomevoltei.Minhascostasroavamaalmofadadaporta.Oaposentoeramaiorqueomeu.

    Uma cortina estampada de pequenas lores cor-de-rosa e azuis, sem duvidatrazida da Terra, acrescentada aos arranjos pessoais e nao previstos noequipamentodaestaao,tapavatresquartosdajanelapanoramica.Ocupandoasparedes,haviaprateleira,separadasporarmarios,urnaseoutrosesmaltadosdeverde palido com relexos prateados. As estantes e os armarios haviam sidoesvaziadoseseuconteudoestavaamontoadoentreostamboreteseaspoltronas.Aos meus pes, impedindo a passagem, estavam emborcadas duas mesas comrodas, semi-ocultas por uma pilha de jornais que haviam cado de pastasarrebentadas. Livros com as folhas abertas em leque estavam manchados porlquidosmulticoloridosquesehaviamderramadodeprovetasefrascosderolhascorrodas,recipientesdeumvidrotaoespessoqueumaqueda,mesmodealturaconsidervel,nopoderiaquebrar.

    Uma pesada mesa estava cada sob a janela, esmagando uma lampada demesa de brao movel. Duas pernas de um tamborete virado estavam metidasnuma gaveta entreaberta. Uma enorme quantidade de papeis de todos osformatos,cobertosdecaracteresmanuscritos,cobriaosolo.ReconhecialetradeGibarianemeinclinei.Aoerguerasfolhassoltas,noteiqueminhamaoprojetavaumasombradupla.Endireitei-me.Acortinacor-de-rosabrilhava,atravessadaporuma linha incandescentedeumbranco-azulado,que ia sealargando.Levantei acortina.

    Uma luminosidade insustentavel crescia no horizonte, expulsando umexercitodesombrasespectrais,surgidasdasondas,queseestendiamnadireaodaestaao.Eraaaurora.Depoisdointervalonoturnodeumahora,osegundosoldoplaneta,oazul,subianocu.

    Quando me virei para o monte de papeis, o interruptor desligouautomaticamente as lampadas. Deparei com a minuciosa descriao de umaexperienciafeitatressemanasantes.Gibariantinhaaintenaodeexporoplasmaaumaradiaoextremamenteintensaderaios-x.Peloteordadescrio,viqueeradirigida a Sartorius, que devia organizar a operaao. Aquilo era uma copia doprojeto.

    A brancura das folhasme feria os olhos. Aquele novo dia era diferente doanterior.Namornaclaridadedosolalaranjado,neblinasrosadasplanavamacimadooceanonegroderelexossangrentosecobriamquasepermanentemente,comuma pelcula avermelhada, as ondas, as nuvens e o ceu. Agora, o sol azultrespassava,comumaluminosidadedelampadadequartzo,otecidoestampadocom lores.Minhasmaosmorenas pareciam cinzentas. O quarto haviamudado.

  • Todososobjetosquetinhamrelexosvermelhoshaviamesmaecido,tornando-secastanho-acinzentados, enquanto os objetos brancos, verdes e amarelos,adquiriramumbrilhomaisvivoepareciamemitirluzprpria.

    Piscando, dei outra olhada pela fresta da cortina. Uma extensao de metalluidovibravaepalpitavasobumceudechamasbrancas.Fecheiosolhoserecuei.Encontrei,naprateleiradapia(queestavatodaestragada),umpardeoculosdeespessosvidrosescuros.Cobriram-memetadedorosto.Acortinairradiava,agora,uma luz de sodio. Continuei a ler, apanhando as folhas e colocando-as sobre aunica mesa utilizavel. O texto tinha lacunas. Remexi em vao os papeisamarrotados.

    Examinando os relatorios das experiencias ja efetuadas, vim a saber que,durante quatro dias consecutivos, Gibarian e Sartorius haviam submetido ooceanoradiao,numpontosituadoamilequatrocentasmilhasdaatualposiodaestaao.Ora,oempregoderaios-xeraproibidoporumaconvenaodaONU,emvirtude de sua aao nociva, e eu estava certo de que ninguem havia enviadoqualquer requerimento a Terra pedindo autorizaao para efetuar taisexperincias.

    Levantando a cabea, vi minha imagem no espelho de um armarioentreaberto.Eraumrostopalido,meio encobertopor oculos escuros.Oquarto,cheioderelexosbrancoseazuis,tinhaumaspectoestranho.Mas, logoaseguir,ouviumrangerprolongadoeosprotetoresexteriores,opacos,deslizaramsobreavidraa.Houveummomentode escuridao e depois as lampadas se acenderam,parecendoextremamentefracas.Estavacadavezmaisquente.Orudoregulardosaparelhos de ar refrigerado assemelhava-se a um latido exasperado. Estavamtrabalhando com fora total. Apesar disso, o calor sufocante nao cessava deaumentar.

    Ouvipassos.Alguemestavaandandonovestbulo.Comdoispulossilenciosos,aproximei-medaporta.Ospassostornaram-semaislentos.Odesconhecidoparoujunto a porta. A maaneta girou. Sem pensar, automaticamente, agarrei-a. Apressonoaumentounemdiminuiu.Ningumdeambososladosdaportaergueuavoz.Cadaumseguravaamaanetaeassim icamosduranteummomento.Derepenteapressaocessoueamaanetameescapoudamao.Ospassos,abafados,afastaram-se.Continueiescutando,comoouvidocoladoporta,masnodistinguirudoalgum.

  • O S V I S I TA N T E S

    COLOCANDO rapidamente no bolso as notas de Gibarian, aproximei-me doarmario.Macacoeseoutrasroupashaviamsidoafastadosecomprimidoscontraumlado,comoseumhomemtivesseseescondidonofundo.Umenvelopeemergiada montanha de papeis no chao. Apanhei-o. Estava endereado a mim. Com agargantaseca,abrioenvelope.

    Tivedefazerumesforoparamedecidiradesdobrarafolhadentrodele.Com sua letra normal, perfeitamente legvel, emboramiuda, Gibarian havia

    escritoduaslinhas.Suplemento An. Solar. Vol. I: Vot. Separai. Messenger ds, ass. E; Ravintzer:

    Pequenoapcrifo.Era so, sem qualquer palavra a mais. Essas duas linhas conteriam alguma

    informaao importante? Quando ele as teria escrito? Resolvi que precisavaconsultar, o mais depressa possvel, o ichario da biblioteca. Eu conhecia osuplementodoprimeirovolumedosestudossolaristas,querdizer,semnuncaoterlido,sabiadasuaexistncia.

    Naotinhaeleacategoriadedocumentohistorico?QuantoaRavintzereseuPequenoapcrifo,nuncaouvirafalarneles.

    Quefazer?Eujaestavaquasequinzeminutosatrasado.Umavezmais,decostasparaa

    porta,percorrioquartocomumolharatento.Soentaonoteiacama,encostadaverticalmente na parede, cobrindo um grande mapa deSolaris. Qualquer coisapendiapor trasdomapa.Eraumgravadordebolso.A itaestavanovedecimosgravada.Tireioaparelhodoestojo,querecoloqueinolugaremqueencontraraemetiogravadornobolso.

    Volteiparaaporta.comosolhosfechados,procureicaptarosrudosexternos.Nada. Abri a passagem sobre um poo escuro e so entao me ocorreu tirar osculos.

    Osfilamentosluminosossobotetoclareavamcomparcimniaolocal.

  • Algunscorredores,afastando-seemvariasdireoes, formavamumaestrela.Subitamente, surgindo de uma reentrancia que levava a sala da lavanderia,apareceuumaenormesilhueta,quaseindistinta,confundidacomapenumbra.

    Imobilizei-me, pregado ao chao. Umamulher gigantesca, do tipo negroide,caminhavacalmamente,numpassobamboleante.Entreviobrilhodobrancodosseusolhoseouviosuavepalmilhardosseuspesnus.Sua unicavestimentaeraumasaiaamareladepalhatranada.Seusseiosenormesbalanavamlivreseseusbraospretoseramtaogrossosquantoascoxas.Cruzoucomigo-separava-nosadistanciadeummetro,apenassemmelanaromenorolhar.Comasaiadepalhaoscilando cadenciadamente, continuou a andar, semelhante as estatuasesteatopgicas da Idade da Pedra, que costumamos ver nos museus deantropologia.ElaabriuaportadeGibarian.Suasilhuetadestacou-senitidamentena soleira, aureolada pela luzmais viva que se acendera no interior do quarto.Depoisfechouaporta.Fiqueiso.Comamaodireitapegueiaesquerda,queaperteicomtodafora,ate fazerasarticulaoesestalarem.Comoolharvago,percorriagrande sala vazia. Que havia acontecido? Que era aquilo? De repente, senti umcalafrio.Lembrei-medasadvertenciasdeSnow.Quesigniicavaaquelefato?QuemeraaquelamonstruosaAfrodite?Deiumpasso,umpassoapenas,nadireaodosaposentos de Gibarian. Eu sabiamuito bem que nao ia entrar. Com as narinasdilatadas,aspireioar.Porque?Ah,sim!Instintivamente,euhaviaesperadosentiro cheiro caracterstico do suor da mulher. Mas nao havia sentido nada, nemmesmonomomentoemqueestvamosaumpassoumdooutro.

    Naomelembrodequantotempoiqueiencostadonafrescaparedemetalica,ouvindoapenasorudoafastado,montono,dosclimatizadores.

    Deialgunstapasdelevenorostoecaminheiparaasaladordio.Quandotorciamaaneta,ouviumavozrude:

    -Quem?-Eu,Kelvin.EntreieviSnowsentadojuntoamesacolocadaentreummontedecaixasde

    alumnio e o aparelho emissor. Estava comendo carne em conserva, que tiravadiretamentedalata.Seraqueelenaosaamaisdasaladeradio?Estupefato,iqueiolhando o movimento do seu maxilar. Depois me lembrei de que eu tambemmorriadefome.Aproximei-medosarmarios,escolhiopratomenosempoeiradoesentei-meemfrenteaSnow.

    Comemosemsilncio.Snowlevantou-se,desarrolhouumagarrafatermicaeencheuduastaascom

    umcaldofumegante.Colocandoagarrafanochao,poisnaohavialugarnamesa,perguntou-me:

  • -VocviuSartorius?-No.Ondeeleest?-Emcima.Em cima era o laboratorio. Continuamos a comer, sem falar mais. Snow

    raspoucuidadosamenteo fundoda sua lata.A salaestava iluminadaporquatroglobosixadosnoteto.Umpostigofechavahermeticamenteajanelapeloladodefora. Os raios dos globos luminosos brilhavam sobre a tampa plastiicada doemissor.Snowusava,naqueleinstante,umablusadesiadanospunhos.Umarededefinasveiasvermelhasestendia-sesobreseurosto.

    -Quequeh?-eleperguntou.-Nada...Porqu?-Vocestempapado.Enxugueiatesta.Eraverdade,meusuorescorria.Semduvida,umareaaoem

    consequencia daquele encontro inesperado. Snow me perfurava com um olharinquisidor.

    Deviacontar-lhe?Seeletivessetidomaisconianaemmim...Queespeciedejogoincompreensvelsedesenrolavaaliequemeraoadversriodequem?

    -Estfazendocalor.Penseiquearefrigerao,aqui,funcionassemelhor!- Os aparelhos se ajustam automaticamente de hora em hora. Seu olhar

    tornou-seinsistente.-Temcertezadequesocalor?Naorespondi.Snowatiroudequalquermaneiraostalhereselatasvaziasna

    pia.Voltouparasuapoltronaecontinuouameinterrogar:-Quaissosuasintenes?Respondicomcalma:- Issodependedevoces.Suponhoque tenhamumplanodepesquisas,nao?

    Umnovoestmulo,osraios-xtalvez,ouqualquercoisaassim...Snowfranziuocenho.-Raios-x...Quemlhedisse?- Nao me lembro. Alguem deixou escapar uma palavra. Talvez a bordo da

    Prometheus.Entovocscomearam?-Soseiporalto.E umaideiadeGibarian.EleapreparoujuntocomSartorius.

    Curiosocomovocpdesaber!Sacudiosombros.-Vocssabeporalto?Masdeviasabermais,poisfoivoc...Nocompleteiafrase.Snowcontinuoucalado.Oarquejardosclimatizadoreshaviacessado.Atemperaturaeramantidanum

    nvel suportavel. Persistia no ar um som anasalado, como o zumbido de uma

  • moscaagonizante.Snowselevantoudapoltronaefoiateoemissor,ondeicouinclinadosobreo

    paineldecomando.Pos-seagirarcontrolesdesordenadamenteesemresultado,porque havia deixado de ligar o aparelho. Divertiu-se durante um instantemexendonaquilotudoedepoisdisse:

    -E precisopreencherasinalidadesconcernentes...Eleestavadecostasparamim.

    -E?...-atalhei..Elevirou-seemeolhoucomarmaligno.Naoeraminhaintenaoenraivece-lo.

    Mas, ignorando que tipo de jogo estava se desenrolando, restringi-me a umaesperacheiadereticncias.Seupomo-de-adosobressaanagoladablusa.

    -VocefoiaosaposentosdeGibarian-disseele,derepente-eistonaoeumapergunta.

    Olhei-otranqilamente.-Vocfoiaosaposentosdele!-repetiuSnow.Esboceiumgestodecabea.-Sevocinsiste...-Haviaalguml?-perguntou.Entoeleaviraou,pelomenos,sabiadaexistnciadela!-Ningum...quempoderiaestarl?-Entoporquevocnomedeixouentrar?Sorri.-Porqueeuestavacommedo.Me lembreidassuasadvertencias.Quandoa

    maanetagirou,agarrei-aautomaticamente.Porquenaodissequemera?Eulhedeixariaentrar.

    Snowrespondeu,comvoztitubeante:-PenseiqueeraSartorius.-Eda?;Respondeuminhaperguntacomoutrasduas.-Quequevocacha?...Quefoiqueaconteceul?Vacilei.-Vocdevesabermelhorqueeu...Ondeestele?-Nacmaradecongelamento.Nsotransportamoshojedemanh.-Ondeoencontraram?-Noarmrio.-Noarmrio?Jestavamorto?-Ocoraoaindabatia,masnorespiravamais.Eraofim.-Tentoureanim-lo?

  • -No.-Porqu?-Notivetempo.Quandoodeitei,estavamorto-Snowbalbuciou.-Eleestavadepnoarmrio?Nomeiodostrajes?-Estava.Snowapanhouumafolhasobreamesinhaaoladoemeentregou.-Redigiumrelatoriosucinto...Ainaldecontas,naofoimauvocetervistoo

    quarto.Causadamorte:injeodepernostalemdosemortal.Estescritoa...Percorriafolhadepapelcomosolhosemurmurei:-Suicdio...Porquemotivo?-Perturbaoesnervosas,depressao,chamecomoquiser...Vocesabemelhor

    queeu.Continuei sentado. Snow estava de pe na minha frente. Encarando-o,

    respondi:-Seiapenasoqueconstateipessoalmente.-Quequevocquerdizer?-perguntouSnow,semsealterar.-Eleseinjetoupernostaleseescondeunoarmario,naofoi?Nessecasonaose

    tratade perturbaoesnervosasoucrisededepressao,masdeumestadomuitogravedeumapsicoseparanica...

    Falandocadavezmaislentamente,semtirarosolhosdele,acrescentei:-Ele,nacerta,tinhaaimpressodeveralgumacoisa.Snow recomeou a mexer nos controles do emissor. Depois de um curto

    silncio,recomecei:-Estaasuaassinatura...EadeSartorius?-Jlhedissequeeleestmetidonolaboratrioenoaparece.Achoqueele...-Queeleoqu?-Queelesefechoupordentro.-Sefechou?Ah,sefechou...Talveztenhafeitoumabarricada?-Epossvel.-Snow...Hmaisalgumdentrodaestao,algumestranho.Elelargouoscontroleseficoumeolhando,meiodelado.-Vocviu!-Vocmepreveniu.Contraquem?Contraoqu?Contraumaalucinao?-Oquevocviu?-Umserhumano,talvez?Snowicoumudo.Virou-separaaparede,comosequisesseesconderorosto.

    Tamborilavacomosdedosnasplacasmetalicas.Olheiparasuasmaos.Naohaviamaistraosdesanguenasarticulaes.Tiveumarpidatonteira.

  • Em voz baixa, quase num suspiro, como se lhe estivesse coniando umsegredoqueningumdeviaouvir,continuei:

    -Naosetratadeumamiragem,masdeumserrealquesepode...tocar,quesepode...ferirequevocviuaindahoje.

    -Comoquevocsabe?Com o rosto colado a parede, Snow nao se mexia. Suas costas estavam

    voltadasparamim.-Antesdaminhachegada...poucoantesdaminhachegada,nofoi?Eleseencolheu.Viseuolharafobado.-Evoc!-engasgou-se.-Evoc,quemvoc?Penseiqueele iaseatirarsobremim.Naohaviaesperadoaquelareaao.A

    situaao estava se tornando absurda. Ele nao acreditava que eu fosse quempretendiaser!

    Quesigniicavaaquilo?Snowmeexaminavacomumterrorcrescente.Estariadelirando?Asemanaoesmefticasdaatmosferaexteriorteriamintoxicado?Tudoerapossvel.

    Sim,eeu...euavira,aela,aquelacriatura...ento,eutambm?-Quemela?-perguntei.Aquelas palavras o acalmaram. Durante um momento, olhou-me com ar

    inquiridor,comoseaindaduvidassedemim.Sentou-se desanimado na poltrona e pos a cabea entre as maos. Antes

    mesmoquetivesseabertoaboca,percebiquenaoestavadispostoameresponderdiretamente.

    -Afebre-disseele,comvozcalma.-Quemela?-pergunteioutravez.Snowresmungou:-Sevocnosabe...-Quequetem?-Snow...Nosestamosisolados,longedetudo.Vamosporascartasnamesa!

    Ascoisasjestosuficientementeembrulhadas.-Quequevocquer?-Quemedigaquemvocviu.-Evoc?-atirou-meele,comdesconfiana.-Bem,eurespondereiedepoisvoceofara.Fiquecalmo,naovoupensarque

    estdoido...-Doido?MeuDeus!-esboouumsorriso.-Masvocenaoentendeunada,nada

    mesmo... Se ele tivesse podido pensar, um pouquinho que fosse, que estavadelirando,noteriafeitoaquilo,estariavivo.

  • -Ento,orelatrioquevocfez,aquelahistriadeperturbaesnervosas,eramentira?

    -Masclaro!-Porquenoescreveraverdade?-Porqu?-Snowrepetiu.Fez-seumlongosilencio.Nao,decididamente,eunaoestavacompreendendo

    nada.Penseite-loconvencidodaminhasinceridade.Imagineiqueamosconjugaresforosparadecifraroenigma.Porque,porqueeleserecusavaafalar?

    -Ondeestoosrobs?-Nodeposito.Encerramostodoselesla.Soconservamosemusoopessoalda

    recepo.-Porqu?Noquerdizer?-Noposso.Acadainstanteelepareciaestarapontodeseentregar,masdepoisrecuava.

    TalvezfossemelhorqueeusubisseateolaboratoriodeSartorius.Lembrei-medacartae,nesseinstante,atribu-lheumaimportnciacapital.

    -Vocspensamcontinuarasexperincias?Snowsacudiuosombroscomdesprezo.-Paraqu?-Ah...entodequevamosnosocupar?Elecalou-se.Ouviu-se,aolonge,umfracorudodepesdescalosarrastando-

    se ao chao. Ali, entre os instrumentos niquelados e plastiicados, entre altosarmarios cheios de tubos de vidro, contendo a aparelhagem complicada dasinstalaoeseletronicas,oecoabafadodaqueleandarressoavadeformagrotescaeirreal.

    Incapazdemecontrolar,iqueidepe.Aomesmotempoqueprestavaatenaoaospassosqueseaproximavam,euobservavaSnow.comosolhossemi-cerrados,elenopareciaassustado.Entonotinhamedodela?

    -Elavemdeonde?-perguntei.Ecomoeledemorassearesponder:-Noquermedizer?-Nosei.-Estbem.Ospassosseafastaramemorreram.- Voce nao acredita? - disse Snow. - Juro quenao sei. Em silencio, abri um

    armario e afastei os pesados escafandros. No fundo, como eu previra, estavampenduradasaspistolasagasutilizadasparadeslocamentonovacuo.Apanheiumadelas,veriiqueiseestavacarregadaepasseiacorreiadocoldrepeloombro.Nao

  • eraexatamenteumaarma,maseramelhorquenada.Quando eu estava ajustando o tamanho da correia, Snow sorriu com ar de

    troa,mostrandoosdentesamarelos.-Boacaada!-disseele.Caminheiparaaporta.-Obrigado.Snowlevantou-se.-Kelvin!Olhei-o. Ele nao estava mais sorrindo. Nunca vi um rosto exprimir tanto

    desnimo.-Kelvin,nao e...eu...defatonaoposso... -gaguejou.Esperei.Snowmexiaos

    lbiossemproferirumnicosom.Vireiascostasesa.

  • S A R TO R I U S

    SEGUIporumlongocorredordesertoedepoisvireiadireita.Eununcahaviaestadonaestaao,masnaTerra,duranteotreinamento,viveraseissemanasnasuarplicaexata.Porissosabiaondeiadarapequenaescadadealumnio.

    A biblioteca estava as escuras. Tateando, achei o interruptor. Consultei oarquivo.Depoisdecomporosdadosdoprimeirovolumedoanuariodeestudossolaristasedeseusuplemento,pusocomputadorparafuncionar.Acendeu-seumaluz vermelha. Veriiquei o registro: os dois livros estavam com Gibarian. OPequenoapcrifotambm.Apagueialuzevolteiparaoandarinferior.

    Apesar de ter ouvido os passos se afastarem, eu temia ir novamente aosaposentosdeGibarian.Elapodiavoltar.Fiqueiumtempoenormediantedaporta.Porfim,torcendoamaaneta,entrei.

    Nao havia ninguem no quarto. Comecei a remexer nos livros espalhadosdiante da janela, mas interrompi minha busca por um instante para fechar oarmrio.Fazia-memalveroespaovazioentreosmacaces.

    O suplemento nao estava sob a janela e eu comecei a examinarmetodicamenteos livros,umaposoutro,por todooquarto.Quandochegueiaoltimomonte,entreacamaeoarmrio,acheiovolumequeestavaprocurando.

    Euesperavaencontraralgumaindicaaoe,efetivamente,haviaummarcadorentre as paginas do ndice. Umnome que eu nao conhecia estava sublinhado alpisvermelho:

    AndreBerton.Osnumerosconcernentesaessenomeremetiamoleitoradoiscaptulosdiferentes.DeiumaolhadanaprimeirareferenciaeviqueBertonforapilotodereservadonaviodeShannahan.

    Arefernciaseguinteapareciacercadecempginasalm.No comeo, a expediao agira com ininita prudencia. Depois, passados

    dezesseisdias, foiveriicadoqueooceanoplasmaticonaosonaodavaqualquersinal de agressividade, como fugia a todo contato direto com os aparelhos ehomens, recuando cada vez que um corpo qualquer se aproximava da sua

  • superfcie.Shannahaneseuimediato,Timolis,desistiramdepartedasprecaues,quecomplicavameretardavamoandamentodostrabalhos.

    Aexpediaosedividiu,entao,empequenosgruposdedoisoutreshomens,efetuandovoossobreooceanonumraiode,asvezes,algumascentenasdemilhas.As rampas irradiantes,usadasantespara limitareprotegeros trabalhos, foramtransportadasparaabase.Passaram-sequatrodiassemomenoracidente,excetoalgumas avarias no equipamento que garantia a alimentaao de oxigenio dosescafandros. A atmosfera exercia uma aao particularmente corrosiva sobre asvlvulas,forandosuasubstituioquasediariamente.

    Na manha do quinto dia, isto e, no vigesimo primeiro dia da chegada daexpediao, dois cientistas, Carucci e Fechner (o primeiro era radiobiologo e osegundo,fsico),saramparaexplorarasuperfciedooceano.Iamabordodeumaeromovel-naoumveculovoador,masumdeslizador,deslocando-sesobreumcolchodearcomprimido.

    Seis horas mais tarde, os dois exploradores ainda nao haviam voltado.Timolis,quedirigiaabasenaausenciadeShannahan,deuoalarmeeorganizouabusca,utilizandotodososhomensdisponveis.

    Por um fatal conjunto de circunstancias o contato radiofonico havia sido,naquele dia, cortadoumahoradepois dapartidados gruposde exploraao, emconsequencia de uma grande mancha que cobrira o sol vermelho e quebombardearaascamadassuperioresdaatmosferacomumvolumemuitodensode partculas energeticas. So os aparelhos que emitiam ondas ultra curtascontinuaram a funcionar, limitando os contatos a um raio de vinte e poucasmilhas.Paracumulodoazar,onevoeirosetornaramaisespessoantesdopor-do-solefoinecessriointerromperaprocura.

    Nahoraemqueasequipesdesalvamentoestavamvoltandoparaabase,umhelicopterodescobriuoaeromovelaapenasoitentamilhasdanavecapitania.Omotor estava funcionandoeo aparelho, a primeiravista incolume,mantinha-seacima das ondas. So havia um homem, meio inconsciente, dentro da cabinatransparente.EraCarucci.

    O aeromovel foi escoltado ate a base. Carucci foi medicado e logo icouconsciente. Foi incapaz de dizer qualquer coisa sobre o desaparecimento deFechner. Lembrava-se apenas de ter sido vtima de sufocaao na hora em quedecidiram voltar. A valvula do seu aparelho de oxigenio desatarraxara e gasestxicos,empequenaquantidade,haviampenetradonoescafandro.

    Fechner,paraconsertaroaparelhodeCarucci,foraobrigadoatirarocintodesegurana e icardepe. Esta era a ultima coisadequeCarucci se lembrava.Deacordocomosespecialistas,erafacilreproduzirodesenrolardosacontecimentos.

  • PararepararoaparelhodeCarucci,Fechnerabriraotetodacabina,poisacupulabaixaentravavaseusmovimentos.Issonaotinhanadadeextraordinario,umavezqueacabinadaquelesveculosnaoerahermetica,constituindo-seapenasnumatela contra as iniltraoes atmosfericas e o vento. Enquanto Fechner socorria ocompanheiro, seu proprio aparelho de oxigenio sofrera tambem, sem duvida,algumaavaria.EFechner, semterconscienciadoque fazia,haviasubidoparaacpuladoaeromvelecaranooceano.

    Fechner fora,portanto,aprimeiravtimadooceano.Procuraramseucorposemresultado(oescafandrodeveriaterboiado,oquenaoaconteceu).Alias,talveztivesse aparecido lutuando em outro local. A expediao, no entanto, nao tinhameios de examinar detalhadamente a superfcie imensa daquele desertoondulante,cobertodefarraposdeneblina.

    Ao cair da tarde - retomo a narraao a partir do im daquele vigesimoprimeiro dia - todos os veculos de socorro haviam regressado a base, comexceao de um grande helicoptero de reabastecimento, a bordo do qual seencontravaBerton.

    OhelicopterodeBertonvoltouumahoradepoisdoanoitecer,quandotodosjacomeavam a icar seriamente preocupados. Berton apresentava sinaismanifestos de choque nervoso. Desceu do aparelho e pos-se imediatamente acorrerparatodosos lados,comoumlouco.Conseguiramagarra-lo.Elegritavaechorava.Erade se icarespantadoveraquele comportamentonumhomemquetinhaaseucreditodezesseteanosdenavegaaocosmicaequejahaviaefetuadomaisdeumvoemcondiesbempiores.

    Os medicos julgaram que Berton tambem absorvera gases e toxicos. Mas,tendoreadquiridoumpoucodoequilbrio,Bertonrecusou-seadeixarointeriordabase,mesmoporuminstante,emuitomenosaseaproximardajanelaquedavaparaooceano.

    Doisdiasdepois,Bertonpediuautorizaaoparaditarumrelatorioreferenteao voo. Insistiu sobre a importancia das revelaoes que ia fazer. O conselho daexpediaoexaminouorelatorioeconcluiuqueeleerafrutodacriaaomorbidadeuma mente intoxicada pelos gases nocivos da atmosfera. As tais revelaoesinteressavamnaoahistoriadaexpediao,masaodesenvolvimentodadoenadeBerton.Porisso,acharamdesnecessriomencion-lo.

    Esseeraoteordosuplemento.Penseique,emtodocaso,orelatriodeBertondeviaoferecerumachaveparaomisterio.Queacontecimentoteriapodidoabalarataquelepontoumveteranodosvosespaciais?Recomeceiaremexernoslivros,mas o Pequeno apocrifo continuava sumido. Senti-me cada vez mais cansado.Resolviprosseguirainvestigaonodiaseguinteesadoquarto.

  • Passandopelopedaescada,repareiquehaviamanchasluminosasdecimaabaixodosdegrausdealumnio.Sartoriusaindaestavatrabalhando!Decidiirv-lo.

    Estavaquente laemcima.Apesardisso,haviauma levecorrentedeareastirasdepapelnaoparavamdeseagitarnasgradesdoscondutosdeventilaao.Ocorredor era baixo e amplo. Uma espessa placa de vidro fosco, com molduracromada,fechavaolaboratorioprincipal.Umacortinaespessavedavaaportapordentro.Aluzvinhadasjanelasexistentesacimadaverga.Gireiamaaneta.Aportanaocedeu, comoeuprevira.O unicosomvindodo laboratorioeraumzumbidointermitente, semelhante ao sopro de ummaarico defeituoso. Bati. Nao houveresposta.

    - Sartorius! Doutor Sartorius! - gritei. - Sou eu, Kelvin. Acabo de chegar!Precisov-lo!Abra,porfavor.

    Houveumbarulhodepapelamassado.- Sou eu, Kelvin! Voce ja ouviu falar em mim! Estou vindo de bordo da

    Prometheus.Chegueihpouco!Eugritavacomoslbioscoladosranhuradaporta.-DoutorSartorius!Estousozinho.Porfavor,abra!Nenhumapalavra.Depois,omesmobarulhodeantes,seguidodoentrechocar

    de instrumentos de ao sendo arrumados numa bandeja. A seguir... nao pudeacreditar nos meus ouvidos... uma serie de passos miudos, como os de umacriana,oandarcurtoeprecipitadodeumpardepernasminsculas.Seriamdedosnotavelmenteageis,tamborilandonatampadeumalatavazia,aimitaaodaqueleandar?

    -DoutorSartorius,vaiabrirouno?-berrei.Silencio.Apenasopisarinfantile,simultaneamente,ospassosdeumhomem,

    caminhandonapontadospes.Mas,seaquelehomemselocomovia,naopodia,aomesmotempo,imitaroandardeumacriana!Alis,poucomeimportava...

    Sempodermaisconteraraivaquemeinvadia,explodi:- Doutor Sartorius! Nao iz uma viagem de dezesseis meses para vir me

    divertir com suas palhaadas! Vou contar ate dez. Se nao abrir, arrebentarei aporta!

    Alias,euduvidavapoderarrebentaraquelaportacomfacilidade...eadescargade uma pistola de gas nao era muito forte. Apesar disso, eu estava disposto aexecutaraameaa,fossecomofosse,mesmoquetivessederecorreraexplosivosfacilmente encontraveis, semduvida, no almoxarifadoda estaao. Eunao podiarecuar, isto e, nao podiamais continuar a participar de um jogo com as cartasmarcadasquemehaviamsidodadas.

    Houveumbarulhodeluta.Oueraapenasodeobjetossendoempurrados?A

  • cortinasedividiuaomeioeumasombraesguiaseprojetousobreovidrofosco,aureoladadeluz.Umavozdeformadaeagudafalou:

    -Abrirei,masvocmeprometequenoentra.-Entoparaqueabrir?-Estbem.Prometo.Asilhuetarecuoueacortinafoicuidadosamentefechada. Umaatividade

    confusatevelugarnolaboratorio.Ouviobjetosseremarrastados.Seriaumamesaarranhando o chao? Por im a fechadura estalou, o painel de vidro se abriu eSartoriusseesgueirouparaocorredor.

    Sartorius encostou-se a porta. Eramuito alto,magro, ossudo, sob o blusaoesbranquiado.Tinhaumlenopretoamarradonopescoo.Nobrao,dobradoaomeio, trazia um guarda-po de laboratorio, queimado por acidos. Sua cabea,anormalmente estreita, estava inclinada para o lado. Nao pude ver seus olhos.O culos escuros, redondos, cobriam-lhemetade do rosto. Omaxilar inferior eracomprido. Tinha os labios azulados e orelhas enormes, tambem azuladas. Naohaviafeitoabarba.

    Trazia,amarradasaospulsosporcadaros,luvasvermelhasanti-radiao.Olhamo-nos por um momento, com uma aversao nao dissimulada. Seus

    cabelos desgrenhados (evidentemente cortados por ele mesmo) eram cor dechumbo.Abarbacresciagrisalha.ComoSnow,tinhaatestaqueimada,massoateametade, e lvida acimada linhahorizontal. Sartoriusdeviausarumaespeciedegorroquandoseexpunhaaosol.

    -Estouesperando-disseele.Eu tinha a impressaodeque elenao sepreocupava comoque eu ia dizer.

    Tensoe encostadonaplacadevidro, so prestava atenao aoque sepassava assuascostas.

    Aprincpioeunaosabiaoquefalar,poistemiadizerumabobagem.Depoisprincipiei:

    - Me chamo Kelvin... na certa ouviu falar em mim. Sou, ou melhor, fuicolaboradordeGibarian.

    Seu rosto magro, de linhas verticais - eu imaginava que dom Quixote eraassim - nao revelava qualquer expressao. E amascara negra naome ajudava aencontraraspalavras.

    -EusoubequeGibarian...morreu.Fizumapausa.-Morreu.Continue.Suavozrevelavaimpacincia.-Tersesuicidado?Quemencontrouocorpo,vocouSnow?

  • -Porquemeperguntaisso?OdoutorSnownolheinformou?-Gostariadeouviroquetemadizeraesserespeito.-Vocestudoupsicologia,noverdade,doutorKelvin?-Estudei.Edai?-Vocsededicacincia?-Sim,claro.Quequetem...-Vocenaoepolicial.Sao,nesteinstante,duashorasequarentaesetee,em

    vez de se entregar as suas tarefas, aos trabalhos que lhe estao afetos aqui, naocontentedeforaraportadomeulaboratorio,vocemeinterrogacomoseeufosseumsuspeito.

    Osuorinundavaminhatesta.Custeiameconter.comvozabafada,respondi:-Vocsuspeito,doutorSartorius!Euqueriaatingi-lodequalquermaneiraeacrescentei,furioso:-Alis,vocsabedissoperfeitamente!-Kelvin, senaoseretrataremepedirdesculpas, representareicontravoce

    pelordio.-Porquedeveriamedesculpar?Porquevocesefechaeerguebarricadasno

    laboratorio,emvezdeirmereceber,emvezdemeporhonestamenteapardoqueestaacontecendoaqui?Perdeucompletamenteacabea?Einalmentevoce,sim,quemvoc?Umcientistaouummiservelcovarde?Responda!

    Naome lembromais do que continuei a gritar. Sartorius nem estremeceu.Gotas enormes escorriam por suas faces de poros dilatados. Subitamentecompreendi:elenaomeouvira!comasmaosescondidasascostas,seguravacomtodasasforasamaanetadaporta,queeraviolentamentesacudida,comosedooutroladoalguemestivessedandosocosnaalmofada.Comvozestranha,ina,elegemeu:

    - Va embora! Por favor... pelo amor deDeus, va embora!Desa, irei ao seuencontro,fareitudooquevocquisermas,suplico-lhe,vembora!

    Suavoztraaumtalesgotamentoqueestendiautomaticamenteobraocomaintenaodeoajudaraseguraraporta.Eledeuumberrodepavor,julgandoqueeuhouvesse apontado uma faca na sua direao. Comecei a recuar, enquanto elegritava,comvozdefalsete.Abriuaportaeseatirouparadentro.Pareceu-mequeumobjetoamarelo,umdiscobrilhante,atravessaraseupeito.

    Umsomabafadosaiudolaboratorio.Acortinavoouparaolado.Umagrandesombraseprojetounovidrofosco.Depoisacortinavoltouaolugarenaovimaisnada.

    Queestariaacontecendoali?Pescomearamabaternochao,dandoincioaumaperseguiolouca,seguindo-seobarulhoassustadordevidroquebrado.Ouvi,

  • ento,umrisodecriana...Minhas pernas bambearam. Olhei para a porta com um jeito espantado. O

    silenciosubstituraobarulho.Senteinoparapeitoplastiicadodeumajanela.Laiqueitalvezquinzeminutos,naosei,esperandoqueacontecessealgumacoisaousimplesmente chocado, apontodenao termais vontadedeme levantar.Minhacabeaestourava.

    Ouviumrangidocontinuadoeumaluzcrescenteiluminouoteto.De onde eu estava, via so uma parte do corredor circular que rodeava o

    laboratorio, situado no alto da estaao, diretamente sob a cupula da armadurasuperior.Emconsequencia, asparedes eramconcavas e inclinadas, com janelasoblongas, distantes alguns metros umas das outras. Os protetores externoscomeavamasubir,poisodiaazulchegavaaoim.Um,raioceganteatravessouasespessas vidraas. Cada frisoniquelado, cadamaaneta, lamejavam.Aportadolaboratorio, aquele grande painel de vidro rugoso, cascateou tremulas fascas.Olhei minhas maos, pousadas nos joelhos, que se haviam tornado cinzentasnaquela luz espectral. Minha mao direita segurava a pistola a gas - eu naoperceberaqueahaviaretiradodocoldre.Torneiaguarda-la.Agorasabiaquenemmesmoumalanaradioativameteriaajudado.

    Dequemeserviria?Paraarrombaraportaetomarolaboratriodeassalto?Levantei-me. O disco solar, semelhante a uma explosao de hidrogenio,

    mergulhava no oceano e me atingia com um jato de raios horizontais, quasetangveis. Quando tocaram meu rosto (eu estava descendo a escada), senti-oscomoferroembrasa.

    Parei no meio dos degraus para pensar e tornei a subir. Andei a volta dolaboratorio. Como ja disse, o corredor cercava-o completamente. Depois de terandadoumacentenadepassos, vi-medefrontedeumasegundaportadevidro,exatamenteigualoutra.Tenteiabri-la,massabiaqueestavafechada.

    Examineiaparede,procurandoumaaberturaouumafendaqualquer.AideiadeespionarSartoriusmeocorrerade formanaturale semconstrangimento.Eudesejavaacabarcomassuposioeseconheceraverdadeque,antecipadamente,imaginavaincompreensvel.

    Veriiquei que as salasdo laboratorio eram iluminadaspor janelasno teto,localizadasnoexteriordacarapaaqueenvolviaaestaao.Assim,seriapossvelespionarSartoriuspeloladodefora.Paracomear,seriaprecisodescer,vestirumescafandroecolocarumaparelhodeoxigenio.Noaltodaescada,hesitei.Aquelasjanelas eram, provavelmente, blocos de vidro fosco. Mas eu necessitava ver olaboratrioenohaviaoutrasoluo...

    Voltei para o andar intermediario. A porta da sala do radio estava aberta.

  • Snow, largado em sua poltrona, dormia. O barulho dos meus passos fe-losobressaltar-seeabrirosolhos.

    -Viva,Kelvin!-disse,comvozrouca.Comoeunorespondesse,perguntou:-Ento,descobriualgumacoisa?-Sim...Elenoests...-Ah,noest?Bem,jalgumacoisa.Eleestcomvisitas?Quaseinvoluntariamente,respondi:-Naoseiporquevocenaoquermedizerdoquesetrata.Jaquevouicar,cedo

    outardesabereiaverdade.Porquetantomistrio?-Voccompreenderquandotiverrecebidovisitas.Pareceu-mequeminhapresenaoimportunavaequeelenaotinhavontade

    decontinuaraconversa.Sa.-Aondevaivoc?Norespondi.O espao-porto estava como eu o havia deixado. Minha capsula calcinada

    erguia-se,escancarada,sobresuabase.Aproximei-medoscabidesdosmacacoesdevo.Mas,subitamente,desinteressei-medaquelaidaaoexteriordacarapaa.

    Deimeia-voltaedesciumaescadaemcaracol,que levavaaosarmazensdoentreposto. Embaixo, o corredor estreito estava repleto de garrafas e caixas.Placasdemetalnu,comrelexosazulados,revestiamasparedes.Oscanosnevadosdainstalaaoderefrigeraaoapareciamumadezenadepassosadiante,sobumaarcada.Elesmergulhavam,nofimdocorredor,numcolarinhodeplstico.

    Quando abri a pesada porta, de duas polegadas de espessura e cercada deespumaisolante,fuipenetradoporumfrioglacial.Tremi.Encontrava-menolimiarde uma gruta talhada numa geleira, com esculturas em relevo, em forma decarreteisenormes,deondependiamestalactitesdegelo.Tambemali,enterradassob uma camada de neve, havia caixas e capsulas espaciais e, em prateleiraslaterais, quantidades de latas e sacos transparentes, contendo uma materiaamarela,oleosa.Aarcadase inclinava.Umacortinabrilhantedegeloescondiaofundo da gruta. Afastei-a. Um grande corpo alongado, coberto com uma lona,estavadeitadonumagradedealumnio.

    LevanteiocantodacobertaeviorostopetriicadodeGibarian.Seuscabelosescuros, comumamechagrisalha, estavamcoladosno cranio.As cartilagensdagarganta ressaltavam como arestas no meio do pescoo. Os olhos mortiosixavam-senaabobada,comlagrimascongeladaspenduradasnaspalpebras.Ofrioeratobrutalquetivedecerraromaxilarparaquemeusdentesnobatessem.

  • Segurei a mortalha com uma das maos e com a outra toquei no rosto deGibarian.Penseiestartocandonumtroncodearvorepetriicado,eriadodepelosescuros e pontiagudos. A curva dos labios exprimia um paciencia ininita,desdenhosa. Deixando a lona cair, notei, ultrapassando a extremidade inferior,cincoprolasnegrasdispostasemordemdecrescente.Fiqueiapavorado.

    Euhaviareconhecidoaquelesdedos,acarneovaldosartelhosdeumpenu.Sobamortalhaamarrotada,coladaaocorpodeGibarian,estavadeitadaamulhernegra.

    Retirei lentamente a lona. A cabea dela, de cabelos crespos divididos empequenas trancas, estava apoiada na curva do seu brao negro e grosso. Suascostasbrilhavameosmusculosestavamcontrados junto asvertebras.Nenhummovimentoanimavaaquelecorpogigantesco.Examineinovamenteaplantadospesnuse constateiqueelasnaoestavamachatadasnemdeformadaspelopesoquedeveriamsustentar,nemapelehaviasidoendurecidapeloandar,continuandotomaciaquantoadasmosouombros.

    ComdiiculdademuitomaiorqueaquetiveraquandotoqueinocadaverdeGibarian, obriguei-me a mexer num daqueles pes nus. Fiz, entao, uma outraconstataaoincrvel:aquelecorpo,abandonadodentrodeumcongelador,estavavivoesemexia.Amulherencolheraope,exatamentecomoumcaoadormecido,quandoalgumtentapegar-lheapata.

    Penseiconfusamente:"Elavaicongelar..."Masocorpo,novamentetranquilo,estavamornoesentiabatidaregulardapulsaaonasalmofadasdosdedos.Recueiedeixeitombaralona.Fuiemboracorrendo.

    O calor pareceu-me sufocante quando sa da gruta branca. Andei pelocorredoresubiaescada,quemelevoudevoltaaoespao-porto.

    Sentei-mesobreumpara-quedasenrolado.Coloqueiacabeaentreasmaos.Euestavaarrasado.Meuspensamentos sedispersavam.Era impossvel ixa-los,elesrolavamporumdecliveabrupto...Queestavameacontecendo?Semeujuzoiadesmoronar, era melhor icar logo inconsciente! A ideia de um aniquilamentoimediatodespertouumaesperanainexprimvel...irrealizvel.

    NaovaliaapenaencontrarSnowouSartorius,ninguempodiacompreendertotalmente o que eu acabara de viver, o que vira, o que tocara com minhasprpriasmos.

    So havia uma explicaao, so uma sada para aquilo: a loucura. Sim, euenlouquecera desde o instante daminha chegada ali. As emanaoes do oceanohaviam atacado meu cerebro. As alucinaoes se sucediam. Nao valia a penadesperdiarminhasforastentandoresolverenigmasictcios.Eramelhorpediraajuda de ummedico, chamar aPrometheus ou qualquer outro navio pelo radio,

  • enviarumSOS.Operou-seemmimumamudana inesperada:opensamentodequeestava

    loucotrouxe-mecalma.NoentantoeuouviraclaramenteaspalavrasdeSnow...seSnowexistisseese

    eutivessefaladocomele!Asalucinaespoderiamtercomeadomuitomaiscedo.Estariaeu,talvez,abordodaPrometheusEuhaviasidosubitamenteatacadoporumadoenamentaleestavaenfrentandoascriaoesdomeucerebroirritado.Ofatodemesuporenfermodava-meodiretodepensarqueiaicarbom,oquemepermitia uma esperana de libertaao - esperana a que devia renunciar seadmitisserealidadeaospesadelosconfusosqueacabavadeatravessar.

    Convinha, antes de mais nada, conceber uma experiencia logica -experimentumcrucis-queconirmassetereumetornadoverdadeiramentelouco,que era vtima de miragens da minha imaginaao, ou que, apesar da absurdainverossimilhana,euviveraacontecimentosreais.

    Assimreletindo,olheiparao trilhoque levava a rampade lanamento.Eraumavigadeaoquesurgiadaparedepintadadeverde-claroecheiadeplacasdemetal encurvadas. Em alguns lugares, a um metro de altura, a tinta haviadescascado em consequencia do atrito dos vagonetes que transportavam osfoguetes.Toqueinoao,aqueci-ocommeusdedos,batinotetolisodablindagem.Odelrio poderia atingir tal graude realidade? "Pode", respondi amimmesmo.Afinaldecontas,eraaminhaespecialidade,euconheciaoassunto.

    Mas seria possvel realizar uma experiencia-chave? Nao, penseiimediatamente,seriaimpossvel,poismeucerebrodesarranjado(seequeestavamesmo) criaria as ilusoes que eu exigiria dele. No sonomais comum, semqueestejamos doentes, conversamos com desconhecidos, aos quais fazemosperguntaseouvimossuasrespostas.

    Alemdisso, emboranossos interlocutores sejam,de fato, criaoesdanossapropria atividade psquica, forjados por um processo pseudo-independente,enquantonaosedirigiremanosnaosabemosquepalavrassairaodassuasbocas.No entanto, essas palavras foram formuladas por uma parte da nossa mente.Deveramos,portanto,conhece-lasnoinstanteexatoemqueaselaboramos,paracoloca-las na boca de seres ictcios. E, qualquer que fosse meu projeto deexperiencia e qualquer que fosse a forma pela qual eu o pusesse em execuao,poderiasemprejulgarqueestavamecomportandoexatamentecomonumsonho.ErainutilfazerqualquerperguntaaSnowouSartorius,poisambosnaopossuamnenhumaexperinciareal.

    Penseiemabsorveralgumpo,algumadrogapoderosa,opeyotl,porexemplo,ou uma outra poao que provocasse alucinaoes coloridas. Se esse ato fosse

  • seguido de visoes, provaria que eu vivera, de fato, aqueles acontecimentosrecentes e que eles estavam ligados a realidade material ambiente. Mas nao,pensei,aquelanaoseriaaexperiencia-chavedesejavel,umavezqueeuconheciaos efeitos da droga (que eu proprio deveria escolher) e queminha imaginaaopodiamesugeriraduplailusodeteringeridoaqueladrogaesentirseusefeitos.

    Para onde quer que eume virasse, voltava ao ponto de partida. Nao tinhacomo sair disso. So somos capazes de pensar com o proprio cerebro e naopodemosnosverdoexterioraimdeveriicarofuncionamentoexatodosnossosprocessosinternos...Derepente,surgiu-meumaidia,tosimplesquantoeficaz.

    Levantei-medeumpuloecorriateasaladeradio.Estavadeserta.Deiumaolhada no relogio eletrico pendurado na parede. Eram quase quatro horas, aquarta hora da noite convencionada no interior da estaao. O sol vermelhobrilhava la fora. Liguei com rapidez o emissor de longo alcance e, enquanto asvlvulasaqueciam,reexamineimentalmenteasetapasprincipaisdaexperincia.

    Naomelembravadosinaldechamadaaserenviadoaestaaoautomaticadosateloide. Li-o numa cartolina pendurada sobre o painel de comando central.EnvieiosinalemMorseearespostachegouoitosegundosdepois.Osatelide,isto,seucrebroeletrnico,fez-seanunciarporumsinalcadenciado.

    Pediaosateloidequemeinformassequemeridianosinterestelaresdagalaxiaeleatravessava,emintervalosdevintedoissegundos,girandoemtornodeSolariseexigifraesdecincoalgarismos.

    Depois sentei-me e esperei a resposta. Ela chegou ao im de dezminutos.Arranquei a tira de papel recem impressa e a escondi numa gaveta (tendo ocuidadode nao a olhar). Apanhei grandesmapas celestes na estante, tabuas delogaritmos,umcalendariodetalhandoopercursodiariodosateliteealgunslivrosauxiliares. Depois, dediquei-me a achar a resposta para a pergunta que izera.Duranteumaboahora realizeiequaoes.Haviamuito tempo,desdequandoeraestudante,queeunaofaziataiscalculos.Quandoforaaultimavez?Semduvidanoexamedeastronomiaprtica.

    Efetuei as operaoes com a ajuda da enorme calculadora da estaao. Meuraciocnioeraoseguinte:seexecutasseoscalculostomandocomobaseosmapascelestes,euobteriaumaconirmaaoaproximadadosresultadosfornecidospelosateloide. Aproximada, pois o percurso do sateloide estava sujeito a variaoescomplicadssimas,emvirtudedaaaodas forasdegravitaaodeSolariseseusdois sois, e tambem por causa das diferenas de gravitaao localizadas eprovocadas pelo oceano. Quando eu tivesse as duas series de algarismos, umafornecidapelosateloideeaoutracalculadateoricamenteapartirdomapaceleste,fariaretificaesnasminhasoperaes.

  • Entao os dois grupos coincidiriam ate a quarta decimal. So subsistiriamdiferenasapartirdaquinta,devidasaoimprevisveldooceano.

    Seosnumerosobtidosdosateloidenaofossemumarealidade,masofrutodaminha mente desarranjada, nao haveria conirmaao da segunda serie, pensei.Meu cerebro talvez estivesse doente, mas nao conseguiria, em qualquercircunstancia, rivalizar com a grande calculadora da estaao e efetuarsecretamente calculos que teriam exigido muitos meses de trabalho. Porconsequencia, se os numeros coincidissem, a grande calculadora da estaaoexistiamesmoeeuhaviadefatomeservidodelaenoestavadelirando.

    Minhasmaostremiamquandotireiaitatelegraicadagavetaecoloquei-aaoladodacompridatiradepapelsadadacalculadora.Asduasseriesdealgarismoscoincidiam,comoeuprevira,ateaquartadecimal.Asdiferenassoapareciamapartirdaquinta.

    Escondiospapeisnagaveta.Acalculadora,portanto,existiaindependentedemim.Issosigniicavaqueaestaao,comseushabitantes,tinhaexistenciareal.Iafechar a gaveta quando reparei que ela estava atulhada de folhas cobertas decalculosimpacientementegaratujados.Bastou-meumaolhadaparaveriicarquealguemhaviatentadoumaexperienciasemelhanteaminhaepediraaosateloidenao informaoes concernentes aos meridianos interestelares, mas medidas darefraodeSolariscomintervalosdequarentasegundos.

    Eu nao estava louco. Desizera-se o ultimo raio de esperana. Desliguei oemissor,bebiocaldoquesobraranofundodalatatrmicaefuimedeitar.

  • R H E YA