poÉticas orais: sopros “anônimos” de vida literária
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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
HIRAN DE MOURA POSSAS
POÉTICAS ORAIS: sopros “anônimos” de vida literária
Belém-PA
2011
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HIRAN DE MOURA POSSAS
POÉTICAS ORAIS: SOPROS “ANÔNIMOS” DE VIDA
LITERÁRIA
Dissertação apresentada, como requisito parcial, para a obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura. Linha de Pesquisa: Linguagem e Análise discursiva de Processos Culturais. Universidade da Amazônia. Orientador Profº Dr. José Guilherme de Oliveira Castro.
Belém-PA
2011
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Marineide Vasconcellos CRB 2/1.028
398.2 P856p Possas, Hiran de Moura. Poéticas orais: sopros “anônimos” de vida literária / Hiran de
Moura Possas. -- 2011. 89 f. : il.; 21 x 30 cm. Dissertação (Mestrado) -- Universidade da Amazônia, Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Comunicação Linguagem e Cultura, Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura, 2011.
Orientador: Profª. Drª. José Guilherme de Oliveira Castro.
1. Poesia Oral. 2. Multiculturalismo. 3. Literatura Oral – História e critica. 4. Literatura – Oralidade. I. Castro, José Guilherme de Oliveira. II. Título.
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POÉTICAS ORAIS: SOPROS “ANÔNIMOS” DE VIDA LITERÁRIA
HIRAN DE MOURA POSSAS
Dissertação apresentada junto ao Programa de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura. Linha de Pesquisa: Linguagem e Análise discursiva de Processos Culturais, Universidade da Amazônia como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau em mestre em comunicação, linguagens e cultura.
Banca Examinadora
_____________________________________________ Profº Dr. José Guilherme de Oliveira Castro (Orientador)
___________________________________________ Profª Dr. Elizabeth Lemos Vidal
___________________________________________
Profª Dr. Lucilinda Teixeira
Belém, 16 de março de 2011.
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DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado à minha esposa, Vera, a “Pimpa”, minha principal razão para persistir e prosseguir. Sem VOCÊ e o fruto da nossa união, nada valeria a pena...
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AGRADECIMENTOS
A realização deste exercício epistemológico se deve à colaboração e apoio de diversas
vozes, às quais transmito os meus sinceros agradecimentos:
Às vozes das ilhas de Ananindeua, especialmente àquela que considero a mais ressonante:
Antonio Farias;
Ao Poeta de Cajari, Antonio Juraci Siqueira, por permitir acesso ao seu manancial de
produções poéticas;
À prefeitura de Ananindeua e à Secretaria Estadual de Educação do Pará por subsidiarem
essa pesquisa;
À coordenação do Mestrado em comunicação, linguagens e cultura na figura de sua
coordenadora a Professora Marisa Mokarzel pelos incentivos;
Aos Professores Agenor Pacheco e Paulo Nunes do referido programa de mestrado pelas
contribuições valiosas;
À banca de avaliação da qualificação e da defesa da dissertação, composta pelas
professoras Dr. Lucilinda Teixeira e Elizabeth Vidal, pelas significativas sugestões;
Ao Professor Dr. José Guilherme de Oliveira Castro, meu orientador, pela paciência,
responsabilidade, exemplo para ser seguido nas minhas futuras jornadas do magistério;
Aos colegas do mestrado;
A Felipe Cintra, meu sobrinho, por conceder os fios de Ariadne necessários para
percorrer, com segurança, os labirintos da tecnologia;
A Deus; Grande Arquiteto do universo
Ao meu “fiel escudeiro”, companhia indispensável nos momentos de maior dúvida;
À minha família, em especial, a minha esposa Vera Lúcia e à querida filha Maria Cecília,
pela paciência, incentivo, ajuda, compreensão e companheirismo.
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EPÍGRAFE
“É preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as há, é preciso dizê-las até que elas me encontrem, até que digam – estranho castigo, estranha falta, é preciso continuar, talvez já tenha acontecido, talvez já me tenham dito, talvez me tenham levado ao limiar de minha história, diante da porta que se abre sobre minha história, eu me surpreenderia se ela se abrisse ...”
Michel Foucault
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RESUMO
POSSAS, Hiran de Moura. Poéticas orais: sopros “anônimos” de vida literária. 2011 x f. Dissertação (Mestrado). Programa de Mestrado em Comunicação Linguagens e Cultura. Universidade da Amazônia, Belém, 2011. Múltiplas experiências sociais, principalmente as referentes à oralidade, estiveram fora da pauta dos estudos das ciências humanas e se perderam ao longo do tempo, graças à arrogância e à indolência de uma “racionalidade” de boa parte dos pensamentos filosóficos e científicos ocidentais. Quando retratadas, principalmente pelos cânones literários, ganham abordagens depreciativas, associando-as ao exótico, ao primário e ao popular. As universidades americanas promoveram calorosas discussões sobre a questão dos cânones, que se espalharam para o mundo, gerando numerosas reações, algumas em defesa dos valores tradicionais, outras, como a desse exercício epistemológico, fundamentando-se nos estudos multidisciplinares e em diferentes sujeitos produtores de discursos, vislumbrando o estudo, a divulgação e o reconhecimento de novos ou desconhecidos cânones. Os estudos literários precisam absorver uma experiência, quem sabe oswaldiana, no sentido de que se encontrem ou se reencontrem com as demais ciências e com o saber empírico, fazendo do pensamento disciplinar, multidimensional. Se pensarmos no que há por descobrir sobre a arte contemporânea, especialmente as oraturas, cujo estudo significa desde logo, como ponto de partida, problematizar os paradigmas - especialmente os grafocêntricos na literatura -, e sobre a questão da imaginação que se impõe para aqueles que escolhem unicamente as “verdades” de laboratório, mais perto estaremos da compreensão de que as narrativas orais não se restringem simplesmente à arte ancestral ou pelo menos desenvolveremos um pensamento científico, aberto e plural sobre a questão. Palavras-chave: Performance; poesia oral; pensamento complexo; multiculturalismo.
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RESUMEN
POSSAS, Hiran de Moura. Poéticas orais: golpes "anónimos" en la vida literaria. 2011 x f. Dissertação (Mestrado). Programa de Mestrado em Comunicação Linguagens e Cultura. Universidade da Amazônia, Belém, 2011.
Múltiples experiencias sociales, especialmente las relativas a la moral, estaban fuera de la programación de los estudios y las humanidades se han perdido con el tiempo, gracias a la soberbia y la pereza de una "racionalidad" de gran parte del oeste de pensamiento científico y filosófico. Cuando se destaca, sobre todo por los cánones literarios, despectivos acerca ganar, su vinculación a lo exótico, la principal y popular. Universidades de Estados Unidos han promovido discusiones fuertes sobre la cuestión de los cánones, que se extendió a todo el mundo, generando numerosas reacciones, algunas en defensa de los valores tradicionales, otros, como este ejercicio epistemológico, basándose en estudios multidisciplinarios en las distintas materias y los productores discursos, ver el estudio, la difusión y el reconocimiento de nuevos cánones o desconocido. Los estudios literarios necesidad de absorber una experiencia, que sabe oswaldiana, en el sentido de que están o se juntan con otras ciencias y los conocimientos empíricos, lo que hace el pensamiento disciplinario, multidimensional. Si se considera que haya descubierto en el arte contemporáneo, especialmente orature, cuyo estudio significa en primer lugar como punto de partida a la pregunta de los paradigmas - grafocêntricos especialmente en la literatura - y la cuestión de la imaginación que se necesita para los que elegir sólo las "verdades" del laboratorio, estamos más cerca de comprender que las narrativas orales no se limitan sólo al arte antiguo o al menos desarrollar un pensamiento científico, abierto y plural sobre el tema. Palabras clave: rendimiento, la poesía oral, el pensamiento complejo, el multiculturalismo.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Escola Municipal Domiciano Farias........................................................................11
Figura 2: Entrada na Comunidade do Igarapé Grande ...........................................................12 Figura 3: Mapa Político Retificado de Ananindeua................................................................13 Figura 4: Trilha para a Comunidade de João Pilatos .............................................................15 Figura 5: Labirintos Líquidos ................................................................................................16 Figura 6: O barracão da Comunidade de João Pilatos ...........................................................17 Figura 7: Trapiche da Comunidade do Igarapé Grande .........................................................18 Figura 8: Antonio Farias ........................................................................................................47 Figura 9: Antonio Juraci Siqueira ..........................................................................................57 Figura 10: Acesso ao pequeno porto da Comunidade do Igarapé Grande .............................82
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SUMÁRIO 1. O SOPRO CRIADOR DA VOZ .....................................................................................21
2. REGENERANDO AS “FRATURAS” DAS NARRATIVAS DO SOPRO.................37
2.1. UM DIÁLOGO COM A “MORTE”..............................................................................37
2.2. RESSUSCITANDO A PLENOS PULMÕES ...............................................................42
2.2.1. O Silêncio Significante ...............................................................................................42
2.2.2. Cheiros, Sons e Toques Ritmados pelo Batimento Sanguíneo...............................46
3. PELAS “TRILHAS” DAS ENCANTARIAS E DOS ENCANTADORES..................52
3.1. FÉRIAS DA RAZÃO OU CIÊNCIA DA IMAGINAÇÃO ?..........................................52
3.2. ASTÚCIAS ENUNCIATIVAS DE NARRADORES HERÓIS......................................53
3.3. O IARA BRANCO E O IARA PRETO: ESTABELECIDOS E OUTSIDERS?.............60
3.4. MATINTA MUNDIADA OU MUNDIALIZADA?........................................................64
4. “CAOS” É BELO: O ORAL NO ESCRITO...................................................................68
4.1. UM POETA ASSALTADO PELAS MEMÓRIAS DA ORALIDADE...........................68
4.2. A VOCALIDADE DO POETA DE CAJARI...................................................................70
4.3.CURUPIRANDO AS TRILHAS DO IMAGINÁRIO.......................................................71
4.4.CAOS, ERRÂNCIA E OPACIDADE: O ORAL NO ESCRITO?.....................................77
4.5 AS VOZES SE PROJETAM: PERCURSOS LABIRÍNTICOS, PERCALÇOS, IMPASSES, INCERTEZAS E TAREFAS SEM TÉRMINO .................................................83
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 94
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1.0 O SOPRO CRIADOR DA VOZ
“Para combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade. Sem uma crítica do modelo de racionalidade ocidental dominante pelo menos durante duzentos anos, todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas que se julguem, tenderão a reproduzir o mesmo efeito da ocultação e descrédito.”
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS1
Dentre todos os ruídos da natureza, a voz humana sempre mereceu de minha parte
uma atenção especial, principalmente a voz dos poetas rapsodos. Os inúmeros “Era uma vez”
ou “contam os antigos” ainda ecoados, em plena modernidade, testemunham a sobrevivência
de um todo orgânico capaz de seduzir e de transportar plateias para outras dimensões, se
expressando, não só por suas cordas vocais, como também por uma sinergia de recursos, que
numerosas ciências tentam compreender, especialmente a linguística, a sociologia, a
antropologia e a literatura.
As marcas das minhas experiências compartilhadas com os tecelões da recordação
estão impressas nesse exercício escrito, desde o convívio com comunidade indígena
Parkatêjê2, nos estudos da graduação, até a mais recente na convivência com o discurso dos
contadores de “causos” e de assombrações das ilhas de Ananindeua/PA.
O alcance social dessas vozes, verdadeiras amálgamas culturais da Amazônia, ainda
não foi abalado pelo progresso tecnológico ou pelos signos gráficos advindos do curso
hegemônico da escrita.
Nessa perspectiva, recolho algumas peças de minha memória para citar o primeiro
encontro com as redes de sentido da região das ilhas de Ananindeua. Circunavegando nas
instâncias do imaginário e do simbólico, os imprevistos das marés durante a viagem de rapeta3
- único meio de transporte para a localidade - deixaram-me preocupado e, ao mesmo tempo,
atraído pelo repertório das explicações expostas pelo condutor do barco. As fases da lua e os
assoreamentos naturais ou os causados pelas mãos humanas estariam fazendo as margens
comprimirem os rios e os igarapés, favorecendo o desaparecimento da biodiversidade dos
1 SANTOS, Boa ventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e para uma sociologia das emergências. Revista de Ciências Sociais, 63, outubro 2002, p. 237-280. 2 Os Gaviões ou simplesmente os Parkatêjês, como gostam de ser denominados, vivem na Terra indígena Mãe Maria, localizada no município de Bom Jesus do Tocantins, no sudeste do Estado do Pará. 3 Denominação dada à pequena embarcação motorizada.
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mangues. Prescindindo a idealizada paisagem idílica com as minhas expectativas exóticas,
destacavam-se paisagens humanas repletas de experiências para serem compartilhadas.
Ao final dessa miniodisséia, não fui transportado para fora do século XXI, como
previa, mas sim para as imprevisíveis telas da região, dentre as quais, a primeira delas: a
Escola municipal Domiciano Farias4, “cravada” no meio das matas da comunidade do Igarapé
Grande. O desejo de regresso no tempo, mais tarde, foi “diagnosticado” como uma crise de
miopia cultural felizmente não confundida com o olhar do turista voyeurista costumeiramente
dirigido às populações da Amazônia.
Figura 1. Escola Municipal “Domiciano Farias”
O que primeiro saltou aos meus olhos nesse canto do mundo, ignorado pelos
mapeamentos oficiais5, não fora a placa propriamente dita que me dava boas vindas ao
paraíso, mas sim quem foi o autor daquele código secreto grávido de possibilidades de
interpretações, reinscrevendo cotidianamente o sentido da palavra tradição para seus leitores.
4 A Escola fica localizada na Comunidade do Igarapé Grande, atendendo às comunidades próximas além de alunos moradores do bairro do Curuçambá. 5 No mapa político da cidade de Ananindeua, o espaço referente à região das ilhas é denominado de área rural, silenciando, desse modo, a existência de ilhas e povoados.
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Figura 2. Entrada na Comunidade do Igarapé Grande
Outros signos mais tarde foram brotando desse mundo simbólico: pescadores,
caçadores, agricultores e aqueles que trabalham e estudam em regiões próximas6 compõem
um “entrelugar” ou um terreno de feições culturais inacabadas sujeitas aos constantes
retoques.
Artífices do seu lugar, os poetas rapsodos das ilhas de Ananindeua tecem “o jogo
social de suas vidas”, não restringindo suas existências simplesmente aos equilíbrios
ecológicos. Pelo contrário, a vida pulsa para esses sujeitos culturais submetendo a natureza às
suas exigências e aos seus projetos, principalmente os estéticos.
Sujeitos à ação criativa desses contadores de “causos”, trilhas pela terra, pelas águas,
pelo imaginário7 e paisagens signos se tornam projetos de vida, quando observadas de perto,
6 A região das ilhas de Ananindeua, além da ilha de João Pilatos é composta de outras pequenas ilhas quase todas habitadas: São Pedro, Viçosa, Maritubinha I, Maritubinha II, São José, Santa Rosa, São José da Sororoca, Sassunema, Mutá, Arauari e Guajarina. 77 As definições sobre o imaginário estão longe de um consenso, por isso associo ao termo as considerações apresentadas pela sociologia do imaginário, um segmento da sociologia que, em uma obra coletiva organizada
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nas reminiscências do trabalho, da escola e do lazer, desconstruindo pré-leituras associadas ao
“ribeirinho” e oferecendo um ângulo privilegiado para o reconhecimento de narrativas que
dilatam a percepção para práticas cotidianas carregadas de significados.
Figura 3. Mapa Político Retificado de Ananindeua
Universos simbólicos testemunhados pelo olhar, pela escuta, pelo cheiro e pelo
gosto, formatam espaços de interações, dentre as quais os encontros “naturais” e
plurissensoriais repletos de sentidos dos sujeitos sociais com as encantarias, sejam nas casas
conchas, nas ruas trilhas, nos rios avenidas ou nos mais recônditos espaços do “mato”
cartografados pela minha efêmera8, mas intensa presença.
Celulares, rádios e recentemente a televisão, agora com a chegada da energia elétrica,
se embaralham com as “contações” das histórias, fazendo, especialmente da ilha de João
Pilatos um espaço cultural de pertença múltipla pelo qual o passado não se torna nostálgico ou
simples congelamento de fatos, mas sim funcional e revelador de certas representações como
as casas de madeira misturadas às construções de alvenaria, verdadeiras fortalezas, casas
útero, refúgios, conchas, lugar confortável e ponto de referência no mundo.
pelo sociólogo Patrick Legros, descobre-se que o véu que dissimula o fantástico, o “irreal”, o imaginário, nada mais é do que a sociedade cotidiana. 8 Convivi diariamente com esses sujeitos sociais por cerca de quatro anos, mas as lembranças e os laços de afeto perduram ainda hoje.
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Há também existências de espaços significativos no interior de outros espaços,
sentidos e embutidos em outros sentidos, como uma referência especial à Escola Dominiciano
Farias, um microcosmo de múltiplas significações que atende às quatorze9 ilhas da região,
oferecendo ensino fundamental. Ela é o verdadeiro e o principal motivo de ter convivido de
tão perto com a região.
A Escola foi gestada na década de 70 quando em meio às velas, causos e utopias, os
moradores sentiam a necessidade de inserir “a meninada” na Escola, pois para eles viverem
das “forças da natureza” já estava ficando mais difícil. A escassez do pescado e da caça
dificultava a sobrevivência estando na hora de experimentar outras opções de vida, como a
“da garotada” virar “dotô”.
Em convênio com a Prefeitura Municipal de Ananindeua na gestão do “Poli” 10, o
primeiro passo para a concretização do sonho de se construírem “paredes” fora dado quando
os moradores transportaram nas suas rapetas todo o material de construção disponibilizado
pelo poder público municipal. Enquanto as aulas eram realizadas nas varandas das casas, os
moradores forneciam a mão de obra para construção do prédio; eram as merendeiras que
limpavam “as salas de aula” cercadas pela mata. Havia uma relação orgânica entre a casa
escola e as estruturas que as pessoas construíram sobre ela, fazendo com que sujeitos culturais
investissem sobre esse espaço poderes espirituais, mágicos, como era considerado o “milagre
da leitura”. Metaforizada pela abertura de portas, a leitura seria instrumento sine qua non para
a concretização de um projeto imaginando pelos moradores para “lutarem melhor por seus
direitos”. A proximidade das casas com a Escola reforçava certa cumplicidade e intimidade da
comunidade com os primeiros funcionários. A Casa era a Escola. A Escola era a Casa. Tudo
fazia parte de um mesmo espaço. Não havia limites que determinassem o término das casas e
o começo da Escola.
A simplicidade dessas edificações, comparáveis às miniaturas ou às maquetes, se
vistas à distância, é uma imensidão ou tudo aquilo que precisavam no discurso hiperbólico
dos sonhadores: “[...] esse é o meu palácio. Já tem banheiro, cama e a cozinha é imensa ‘pra’
receber toda ‘famia’ [...]” (FARIAS, 2009). A imensidão é uma categoria considerada poética
para Bachelard (1997), principalmente quando a grandeza do íntimo desses intérpretes
9 Dados do IBGE e das Secretarias Municipais de Ananindeua apontam a existência de quatorze ilhas, mas se deixarmos de lado a história das mentalidades, há quem diga que podem ser mais ilhas. Apenas ainda não foram registradas as suas existências. 10 Os moradores da região usam esse apelido para se referirem ao prefeito da época (1971 a 1972 – 1983 a 1989): Paulo Falcão.
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memoriais se confunde com o espaço ou com a imensidão que os rodeia, fazendo de simples
“palafitas”, verdadeiros palácios para seus habitantes.
Outras cenas culturais da região se concentram nas paradoxais trilhas, verdadeiras
“ruas” do mato garantindo, no verão, o ir e vir dos agentes de saúde, dos estudantes e dos
trabalhadores, revelando também retalhos de experiências como a prática de se pedir licença
para a mãe do mato – um ato semelhante à tomada de bênção da mãe – talvez, na minha
humilde leitura, um pedido de bênção à mãe terra, recebedora do último repouso de seus
filhos.
Figura 4: Trilha para a comunidade do Igarapé Grande
A trilha, além de um corredor, é também usada para ancoragens ou “bate papos”.
Grande parte do que ouvi sobre a região foi testemunhado em quase uma hora de caminhada
para chegar à comunidade desejada. Nela, testemunhei relações horizontais e colaborativas;
produções de narrativas, territórios de negociação econômicas e sociais, dentre os quais,
recentemente, os diálogos sobre a chegada da energia elétrica11, o que vem fazendo os
11 A prefeitura de Ananindeua, em parceria com o governo federal, entregou mais de 28 quilômetros de energia elétrica na Ilha de João Pilatos, no sábado (19). Mais de 230 moradores de cinco comunidades foram beneficiados. Os moradores das comunidades de Bela Vista, Maritubinha, João Pilatos, Igarapé Grande e Nova Esperança.Pela primeira vez viram a televisão funcionar sem auxílio de geradores, responsáveis pela produção de energia, mas não em tempo integral. HTTP;//WWW.ananindeua.pa.gov
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moradores repensarem sua existência a uma possível conexão com outras redes afetivas, com
outros interlocutores, com outros imaginários: o mundo globalizado. Na relação entre o
universal e o particular, entre unidade e totalidade se constrói a rede das relações interpessoais
e, dentro dessa “rede” é o sujeito que recria significados e confere sentidos ao seu lugar.
Nas trilhas virtuais12, a metáfora de estarmos tão próximos do outro ganha sentido
em novas preocupações despertadas pela televisão: “ Meu Deus, a televisão mostra cada
desgraça. Vi gente morrendo, sangue, gente com fome [...]” (FARIAS 2009). O “causo” não
se sobressai sobre os demais, nem contradiz outras narrativas, pelo contrário se justapõe como
na transformação da televisão em um encantado de feições camaleônicas e “modernas”. Ela
anuncia a chegada de novas situações, novos sentidos, novos perigos e novas preocupações.
Pelos labirintos líquidos – verdadeiros oceanos de água doce – o regime das águas
regula e reflete a vida dos sujeitos culturais da região. Esse sistema arterial e venoso produtor
de intermináveis teias e ramificações participam também das representações simbólicas dos
moradores. O rio “[...] hipnotiza, solapa, restaura, faz parecer e reapareceram ilhas, esconde
embarcações encantadas na manga de sua casaca de onde, devora cidades, alimenta
populações, guarda em suas profundezas ricas encantarias como o boto, iaras, anhangás,
boiúnas, cobras - Norato [...]” (LOUREIRO, 1995).
Figura 5: Labirintos líquidos
12 Pelos meios de comunicação eletrônicos: rádio, televisão, computadores com acesso a internet.
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Cenas líquidas são recorrentes, como o banho nos igarapés, uma prática social
refletindo flashes do real revestido do sobrenatural. Crianças, exímias nadadoras – “os
botinhos” – muitas despreocupadas com a paternidade não assumida, se divertem, entretendo
um público atendo. Para os adultos, o mergulho nos rios e nos igarapés é um momento de
renascerem, se energizarem e de se sentirem “renovados”, o que Chevalier & Gheerbrant
(2009) significa o contado com: “[...] A água viva, a água dá vida, se apresenta como um
símbolo cosmogônico. É porque ela cura, purifica e rejuvenesce, conduz ao eterno [“...]”.
No cenário cultural das moradoras da comunidade de João Pilatos, inspiradas talvez
pelo legado deixado pelo “poetinha” Vinícius de Morais, “a vida é arte do encontro”, essas
atrizes sociais elegeram o “barracão” um centro de convivência criado pelas necessidades de
se produzir artesanato para subsistência. Lá, se labora, além de raízes, galhos e sementes,
questões emocionais confidenciadas por desabafos, matéria prima tecelã de um lugar
simbólico, lugar das mulheres, num espaço imaginado para sedimentar e interagir com as
“dificuldades da mulher”. Não posso aqui transcrever esses relatos íntimos, porque me foram
negados para divulgação, mas cabe aqui a referência de uma territorialidade comparável às
das cantigas de amigo.
Figura 6: O barracão da Comunidade de João Pilatos
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Na realização dessa topografia cultural, o trapiche da comunidade do Igarapé Grande
é pelo meu olhar um centro, um umbigo, a interseção do trabalho com a casa; o encontro dos
sonhos com as obrigações diárias; a fronteira também do perigo, do desconhecido com a
segurança da concha do lar. No “eterno retorno” ao “paraíso”, as vozes desse espaço parecem
não se importar com as dificuldades e imposições da maré nem tão pouco da escuridão. Cada
uma costuma “gastar o tempo” de forma peculiar. As crianças balançam a pequena
embarcação com as brincadeiras, as senhoras fazem o terço, adolescentes aos celulares e o
sonhador vagueia seu olhar para o horizonte, procurando respostas para suas vidas.
Figura 7: Trapiche da Comunidade do Igarapé Grande
Pelos campos culturais do futebol da comunidade de João Pilatos cercados de casas,
algumas tabernas, apresentando inclinações no terreno e linhas da cal gastas pelos jogos, são
desenhadas certos desejos imaginados por seus “jogadores”. Os adultos usufruem da trave de
madeira pintada de branco, dos jogos de camisa indicando a filiação ao time representativo da
comunidade. O lugar promove o reencontro de amigos, famílias “faça sol ou faça chuva”,
regado a refrigerantes e “muita cerveja”. As crianças, ao lado do campo, imitam os adultos: as
traves são as sandálias ou os gravetos; a bola pode ser até de meia. O futebol é apenas um
pretexto para promoção dos encontros e de tomadas de decisões, terreno estratégico, para
reunir nos finais de semana líderes e moradores das comunidades da região.
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Quando Bachelard (1997) nos transporta para um mundo poético e “suprarreal”,
nossas experiências do mundo material, o cotidiano se transfigura em espaços imateriais,
como paisagens visuais, sonoras e olfativas. Deste modo, tentei realizar uma cartografia
também em sons, ritmos, imagens e odores, que povoam o imaginário constante do lugar
fundamental para o enriquecimento da abordagem da forma de apropriação do espaço, pelos
atores sociais das ilhas de Ananindeua.
Mesmo considerando um corpo frio pós-moderno entorpecido por experiências
muitas vezes resumidas à imagem13, cenários auditivos e olfativos virão, neste exercício de
escrita, reforçar o domínio imaterial simbolicamente distinto nas ilhas de Ananindeua.
As paisagens olfativas são receptoras e, ao mesmo tempo, transmissoras de
experiências emocionais, sentimentos intensos do e pelo espaço, como o cheiro ou odor
desagradável indicando presença do curupira, um ordenador espacial, apontando quais
espaços da região seriam apropriados para o trânsito ou não dos moradores.
O pitiú14 é outro indicador espacial ao apontar, em algumas narrativas, a presença de
um problema ou de uma catástrofe para uma determinada região. O odor desagradável pode
direcionar para a degeneração de um rio, furo ou igarapé, como também para erosão de um
núcleo familiar.
O espaço acústico determinado nos “causos” aponta para uma sonoplastia
característica de tranquilidade como um canto dos passados misturado ao som da maré, dos
barcos e do sopro de grito do vento.
Ante ao exposto, todo meu espetáculo cultural reservado para ser inconscientemente
imposto aos sujeitos culturais da região naufragou e foi arrebatado pelo desconhecido ou,
simplesmente, por vozes que insistentemente se aderiam à questão cultural, em uma tentativa
clara de se entrar em acordo com o mundo, buscando verdades e respostas para suas vidas.
O filtro redutor do meu olhar sobre o lugar, meses mais tarde, se converteu no
interesse de manter uma extensa agenda de eventos sócio-culturais na região. Não só a Escola,
como professor, como na “lida” 15, percebi um sopro desferido pelos contadores de “causos”,
recebendo um trato diferenciado, fazendo escapar da ponta da língua um mundo ambivalente,
nele convivendo e se confrontando o bem e o mal; verbo criador, ao seu modo, semelhante à
13 Para Roger Sennet na obra “Carne e Pedra”, o homem da pós-modernidade pode ser considerado um corpo frio, pois entorpecido pelos meios de comunicação, geralmente experimenta falsas experiências, desprezando inconscientemente testemunhos auditivos e olfativos. 14 Odor desagradável do pescado em degeneração comumente usado pelas populações amazônicas. 15 Termo usado pelos moradores para fazer uma referência ao labor diário da vida.
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força da palavra impressa; metáfora maniqueísta que se explica, fere e acaricia; caleidoscópio
configurado experimentalmente pelas percepções plurissensoriais de seus narradores.
Pensamentos redutores e preconceituosos como os que associam as poéticas da voz a
grunhidos, a imitação de sons da natureza ou a simples desabafos precisam ser revistos sob
pena da continuidade da perda de um número imensurável de experiências sociais. Um sério e
desafiador problema para as pesquisas às quais eu me associo, as memórias orais.
Meu processo de miopia cultural é fruto de uma formação sedimentada em uma
racionalidade arrogante, indolente e hiperespecializadas, mas vem se redefinindo com a
convivência tão próxima com o etnoconhecimento explícito ou mesmo latente das ilhas de
Ananindeua, apesar de hoje não ser tão próxima quando era pautada pelo relacionamento
professor X comunidade.
A despeito desse distanciamento geográfico – uma ilusão de proximidade para alguns
– para mim, a amizade mantida até o momento com esses sujeitos culturais é o fio condutor
desse exercício epistemológico de reparação, não só pela ausência dessa região nos
mapeamentos oficiais, mas sim no desafio maior de buscar a articulação, sem abusar da
credulidade popular, de modos antagônicos e contraditórios de se pensar numa interseção por
meio da qual ninguém prevalece, mas se complementam.
Aportes teóricos da antropologia, da sociologia e da literatura, somados aos saberes
da experiência dos sujeitos culturais da região das ilhas de Ananindeua, vêm sendo a melhor
via de acesso para a realização desta pesquisa. Neles, percebo as questões identitárias
imbricadas com as temáticas literárias, quando as consideram “objetos” complexos, opacos e
erráticos. Os narradores, assim como qualquer cidadão do mundo, salvos raras exceções de
diversidade étnica e cultural, não são mais seres monoglotas, pois se expressam, escrevem e
narram na presença de todos, dissolvendo as fronteiras físicas estabelecidas16 ou pelo menos
as tornando mais porosas e permeáveis. Uma nova literatura precisa ganhar legitimidade, nem
que, para isso, acompanhe o “calor” das discussões dos estudos identitários. Partir de
pensamentos que atrelassem tradições à estabilidade ou à pureza cultural, induziria a uma
reflexão sobre as diferenças por meio de pensamentos binários e herarquizadores, como:
sujeito ribeirinho X sujeito urbano; local X global, dicotomias produtoras apenas de versões
abreviadas, ou até mesmo, distorcidas sobre paisagem sócio-cultural de qualquer lugar.
16 Metaforicamente, considero essas fronteiras os cânones literários, assim como os limites geográficos imaginados para separar uma nação da outra.
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Da efervescência e da pluralidade de calorosas discussões sobre os cânones literários,
sou atraído pelas pesquisas17 que defendem a inclusão de “novos” sujeitos produtores de
discursos, vislumbrando o reconhecimento de novos ou desconhecidos cânones. Isso não
significa dizer que haja negação dos paradigmas da literatura ocidental, ao contrário,
compartilhando do pensamento de Paul Zumthor (1997): a relação do oral com escrito antes
de ser excludente, é, na verdade complementar. Entendo que haja uma necessidade de se
revisar os cânones literários ou pelo menos trazer para a cena epistemológica espaços não
canônicos, pois variações lexicais, morfossintáticas e fonéticas, por si sós, são insuficientes
para se realizar uma leitura satisfatória sobre a vocalidade. Refinou-se tanto a sensibilidade
estética em nichos epistemológicos estagnados que acabamos por recusar a espontaneidade e
imediatez do aparelho vocal.
Na esteira desse entendimento, discorrer sobre cânones identitários e literários eclode
em uma reflexão não prevista, por mim, sobre a questão do poder. A perspectiva do
colonizador precisa ser revista, contestada e em alguns momentos, corrigida. Não precisamos,
por exemplo, aportuguesar ou embranquecer o belo do discurso artístico dos silenciados, mas
sim necessitamos do testemunho da academia, pois presenciei, com preocupação e tristeza, a
perda de verdadeiras bibliotecas humanas. A academia precisa reaprender a escutar a voz da
experiência ou o lado épico de suas verdades.
Não pretendo desperdiçar a convivência com esses artistas que articulam, em
performance, gestos, pausas, entonações e silêncios, cronometricamente imprevisíveis, nunca
sendo duas vezes o mesmo. Felizmente, a oralidade além de viva no cotidiano de atores-
artistas culturais, vem sendo repatriada pela escrita de Guimarães Rosa, de Dalcídio Jurandir,
de Benedito Monteiro, Antonio Juraci Siqueira, dentre outros prosadores, como também de
escritores africanos de expressão na língua portuguesa que, através de uma estética
humanística, contestam os paradigmas das literaturas de feições aristocráticas.
Percebo no diálogo mantido com as contribuições teóricas sobre a arte
contemporânea, dentre as quais a temática da metamorfose, e a precariedade de se realizar
uma monoleitura, o entendimento do sentido com algo que se nega a fixar. Ele liberta nosso
olhar, vivendo em uma revolução permanente, e a crítica deveria ser testemunha sem repouso
dessas transformações:
“A cada momento tem de acompanhar o artista nas suas investigações, na sua inquietude, mas tem adicionalmente de se esforçar por, a cada momento, saber não
17 Dentre esses trabalhos acadêmicos, destaco o Grupo de Estudos filiados à UNAMA (Universidade da Amazônia) Saberes Populares, Poéticos e Narrativos da Amazônia Paraense.
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só captá-los, mas colocá-los em situação. Mesmo quando combate por uma idéia, por um movimento, a unilateralidade do artista, inerente, natural à personalidade do artista, não pode ser sua; pois que para explicar, defender, situar, hierarquizar, é sua obrigação ver também de outros ângulos. Ai do crítico que não reconhece valores plásticos autênticos onde se encontrem em qualquer movimento; ou que desconhece os valores, como os poéticos, por exemplo; dirão que sua gama de apreensão é escala reduzida; o mesmo dirá do que passar intocado por documentos de valores estéticos mais elementares, como no artista primário, inconsciente, ingênuo, ou de evidente primitividade, num complexo isolamento cultural18.”
A minha análise literária sobre essas experiências humanas vocalizadas tentam
desaprisionar o texto das amarras ou compreensões pautadas em parâmetros que o rasurem. O
texto vive uma pluralidade de sentidos e de existências “[...] Por detrás das formas
estruturadas, que são estruturas extintas ou arrefecidas, transparecem, fundamentalmente, as
estruturas profundas [...]” (DURAND, 1997). “[...] o imaginário não só se manifestou como atividade que transforma o mundo, como imaginação criadora, mas, sobretudo como transformação eufêmica do mundo, como intellectus sanctus, como ordena do ser às ordens do melhor [...]” (DURAND, 1997)
O trabalho, como exemplo dessa rica tessitura inacabada de experiências humanas na
ilha de João Pilatos, é “recheado” de peças arqueológicas herdadas de culturas míticas ou um
sítio sagrado habitado por animais e por plantas mitologizados em um manancial de narrativas
tecidas pela experiência de seus depoentes. No limiar do sonho com a ciência ou relativizando
a realidade, a região nos revela um mundo social, não diferente do meu, obedecendo, com
frequência, as motivações de natureza obscura ou inexplicáveis. Esse “[...] conjunto das
imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensando do homo sapiens [...]”, em
que se encaixam os pensamentos humanos, serão estudados sob uma perspectiva da força
simbólica demonstrada pelas narrativas, aqui analisadas. (DURAND, 1997).
As temáticas míticas, deste modo, não podem ser traduzidas, codificadas, nem
podem ser colocadas de “quarentena”, pois não as considero “férias” da razão e infância da
consciência, ao contrário, o “real” e o “fictício” se confundem, prenunciando o “ainda-não-
ser”, uma categoria indicativa de como deveria ser o que estar por vir e como antecipar
soluções práticas para problemas futuros. O amanhã deixa de ser insondável, para se vincular
à realidade como expectativa de um melhor entendimento para a vida, como bem percebe
Legros (2007): “[...] Acabamos de escrever um livro inteiro não pra reivindicar um direito de igualdade entre os imaginários e a razão, mas sim um direito de integração ou pelo
18 PEDROSA, Mário. O mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1986.
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menos, de antecedência do imaginário e dos seus modos arquétipos, simbólicos e míticos [...] 19”
O registro ou a tentativa de recolhimento de alguns retalhos culturais vocalizados
recebe o auxílio dos recursos midiáticos, sem uma pauta pré-estabelecida, ao sabor das
lembranças e do humor de seus narradores, na articulação da memória com as experiências,
demonstrando que o ato de relembrar é sempre pessoal, mas é feito em redes de significações
tecidas por comunidades de sentimentos. As representações sociais dos depoentes revelam o
cotidiano de sujeitos históricos, inseridos em tempos e em espaços específicos que
estabelecem trocas de diferentes ordens. As investigações sobre estas histórias humanas
esquecidas e desprezadas são compostas por lembranças pessoais. O ecletismo dos temas
abordados e a facilidade com a qual o locutor passa de uma história para outra se tornam uma
experiência desafiadora, pois é um obstáculo, e, ao mesmo tempo, o testemunho de um fazer
poético ímpar.
Não considero essas entrevistas simples “apêndices” de um gravador ou de uma
máquina digital, mas sim trocas de convivência, aproximando-se do que Portelli (1997) define
como “intelectual orgânico”: aquele que reabre periodicamente o canal de comunicação
respeitando as diferenças e as “práticas de igualdade” 20.
Minha presença, em parte da vida desses sujeitos culturais inevitavelmente, tem
deixado algumas marcas, mesmo que a intenção nunca tenha sido essa. Fui, no começo dessa
convivência, um corpo estranho – o professor e todo seu espetáculo cultural paradigmático –
gerando muitos estranhamentos, mas alguns pensamentos em comum foram gestados, como
aquilo que considero hoje apenas uma utopia: uma reengenharia curricular na escola que
atende a região, vislumbrando uma relação amistosa e complementar das memórias orais do
lugar com os saberes paradigmáticos: “[...] lá (o narrador se refere à Escola) eu ajudei a
construir, mas nunca me convidaram ‘pra’ contar minhas histórias [...] têm coisas que ensina
lá que não tem serventia ‘pra’ gente [...] (FARIAS, 2008).
Nas transcrições dos diálogos mantidos com alguns moradores há certas
incompatibilidades entre as performances com as descrições apresentadas. A riqueza dos
detalhes das cenas esbarra nas limitações impostas às palavras, para expressá-las. Converter
informações auditivas em visuais, vem interferindo e promovendo modificações em algumas
19 DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 20 Segundo o pesquisador Alessandro Portelli no artigo “Forma e significado na História oral. A pesquisa como um experimento em igualdade” uma entrevista dificilmente pode criar uma situação de igualdade, mas ela- a entrevista – pode pedir por isto.
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situações, como as pausas, as reações de fundo emocional, mesmo que haja de minha parte,
uma tentativa de traduzir com fidelidade o discurso dos depoentes.
O sopro do encontro de situações tão diferentes ou simplesmente o “caos” pode ser
traduzido por numa narrativa envolvendo todo mundo. O pesquisador e a crítica de arte de
modo geral não podem desprezar a imprevisibilidade das performances casuais.
Essa breve incursão transversal me levará a percorrer, metaforicamente, um campo
de provas dividindo em três momentos: no primeiro, pretendo dialogar com caixas de
ferramentas teóricas que anunciam uma suposta “morte” das narrativas orais. Para essa
empreitada uma reflexão sobre esse discurso híbrido ou, quem sabe, sobre os cânones
literários, tendo como referência três categorias: o silêncio, o gestual e as onomatopéias.
Nessa perspectiva crítica de calorosas discussões sobre o cânone, os pontos de vista
parecem ser babélicos quando se trata de cânones tradicionais X cânones alternativos, porém,
alimentando esse debate, me associo ao reconhecimento de diferentes sujeitos produtores de
discursos, vislumbrando o estudo, a divulgação e o reconhecimento de novos ou
desconhecidos cânones. Partir de múltiplos pontos de vista e, conseqüentemente, diferentes
sujeitos produtores de discurso, “novos” ou “velhos” cânones poderiam ser reconhecidos,
problematizados ou até mesmo “implodidos”, sugerindo outras abordagens para a questão.
No segundo momento, percebo o imbricamento do real com o ilusório nos discursos
de temáticas míticas. Realizarei leituras sobre algumas cenas sociais refletidas da intimidade
com a vida. Nesses “causos”, astutos narradores protagonizam experiências ambientais, nas
quais as forças naturais são personificadas em criaturas do imaginário amazônico: partindo,
realizando feitos e retornando do campo de provas da vida como heróis. As experiências de
seus corpos, sejam elas psíquicas ou sociais, registram proezas, como a de sobreviver às
forças espirituais do mato. O prêmio conquistado seria usufruir de uma vida mais rica, mais
madura e a mestria de uma narrativa, tramando “renúncias” aos interesses pessoais em
“benefício” da vida alheia. Jogos de poder, representações, enfim territórios de decifração
serão apreciados, através de leituras realizadas por mim, tendo como repertório teórico as
questões identitárias, culturais e semióticas.
Tais leituras estão longe de formular respostas definidas e confortáveis sobre a
identidade, mas serão um exercício epistemológico que restitui o direito de soprar a quem
historicamente foi silenciado.
No terceiro momento, partindo da premissa de Zumthor (1996a) de que a relação da
oralidade com o escrito antes de ser excludente é, na verdade, complementar, a produção
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literária de Antonio Juraci Siqueira, escritor “marajoara”, a meu ver, é um testemunho das
considerações do teórico suíço, abrigando as marcas vivas da oralidade no exercício escrito.
Não espero, nesta jornada metodológica hercúlea, atingir uma leitura plena de uma
realidade presente ou passada, até porque os discursos, que sustentam esse exercício
acadêmico, são fora de controle e de feições ainda crepusculares21, mas nem por isso
desafiadores aos defensores de projetos estéticos ou epistemológicos fundamentados na
complexidade22.
Se pensarmos nessas vozes que nunca se calaram - apenas não as escutávamos pelo
refinamento de nossa sensibilidade estética – problematizar-se-ão paradigmas, especialmente
os grafocêntricos na leitura. Feita essa ponderação, o imaginário se impõe àqueles que
escolhem unicamente as “verdades” de laboratório – uma verdadeira cruzada pela
desmistificação – desaguando na compreensão de que as narrativas orais não se restringem
simplesmente à arte ancestral ou pelo menos, exercitando Jorge Luís Borges em “O Aleph”,
desenvolvendo um pensamento científico aberto e plural sobre a questão: “[...] Ao abrir os olhos, vi o Aleph [...] – Sim o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos os ângulos [...] O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ai, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a vida claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América [...] vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo [...]”
Em simetria com Borges (2001), alargo o meu olhar para as minhas experiências
com os historicamente silenciados, me engajo com alguns de seus desejos e me atrelo meu
fazer às topografias de vários níveis de abstração, para transplantá-las ao terreno das ilhas de
Ananindeua com cuidado, receios, paciência e, acima de tudo, sujeição às discussões, às
explicações, aos questionamentos e às contestações.
21 Arte que, em alguns estudos da teoria literária, vive uma condição de invisibilidade. 22 Tomo por empréstimo o temo usado pelo teórico Edgar Morin.
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2.0 REGENERANDO AS “FRATURAS” DAS NARRATIVAS DO SOPRO “Doze ou quinze gerações de intelectuais formados à européia, escravizados pelas técnicas escriturais e pela ideologia que elas secretam, haviam perdido a faculdade de dissociar da idéia de poesia e da escritura. O ‘resto’, marginalizado, caíam em descrédito: carimbo ‘popular’ [...]”.
Paul Zumthor
2.1 UM DIÁLOGO COM A “MORTE” [...] a arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade, está em extinção [...]
Walter Benjamin
Walter Benjamin (1989) quando manifestou sua preocupação angustiada com a
suposta extinção das narrativas ancestrais sufocadas pelo advento da palavra impressa ou do
mundo contemporâneo, me direcionou para algumas reflexões: será que não há mais
possibilidade de transmitir, adquirir e sedimentar experiências? O poeta rapsodo ficou privado
de uma faculdade que lhe parecia segura e inalienável: sua capacidade de intercambiar
experiências? O conselho, a sabedoria empírica ou o lado épico da verdade foram silenciados
esteticamente? “[...] o primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno [...] por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de gato presente entre nós, em sua atualidade viva, ele é algo distante e que se distancia ainda mais [...] as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo [...] (BENJAMIN, 1989).
Elenquei alguns pensamentos benjaminianos para situações práticas e, realmente em
algumas cenas sociais, principalmente por algumas escolas pelas quais trabalhei, dar, receber
ou emprestar conselhos são situações consideradas substituíveis. Nessa perspectiva, o
contador de “causos” pode ser inteiramente substituído pelo simples clicar de um mouse ou
por um livro que “diz tudo”.
Tzvetan Todorov (1970) contribuiu para o debate e para esse ponto de vista
excludente ao afirmar que a teoria literária pode aprender muito com a teoria da pintura,
especialmente no sentido de compreender ou de realizar o estudo de uma narrativa por meio
da enunciação. Daí, como desprezar as marcar deixados no texto? E como falar em
enunciação para a brevidade de fugacidade das performances das narrativas orais?
A partir do pensamento de Todorov (1970) seria confortável dizer que a profecia de
Benjamin (1989) – A morte da narrativa artesanal – estaria decretada. Aparentemente, as
narrativas orais não apresentam enunciação, com bem coloca o morador-narrador da ilha de
38
João Pilatos, Otacílio Silva (2008): “[... minhas palavras se perdem no vento [...] não sei
escrever, só sei contar [...] tenho medo que os mais novinhos não conheçam as histórias
contadas por meus avós 23[...]” . O narrador teme que as experiências partilhadas por muitas
gerações sejam perdidas ou desprezadas pelos mais jovens, com a sua morte e pela falta de
um registro escrito para as mesmas.
Dialogando com Todorov (1970), percebo a existência de uma enunciação
performativa funcionando com um desejo do fazer narrativo. Isso faz com que existam
condições e contextos da enunciação. Para cada contexto, uma situação circunstancial. Isso
explica a maestria com que os narradores das ilhas de Ananindeua conduzem suas
performances, cada qual a seu tempo e lugar; dirigida e orquestrada para um público;
circunscrita a situações diferentes. Em cenários públicos ou privados, há histórias para todos
os gostos e todas as situações.
Outra questão tratada por Todorov (1970) é a impossibilidade da existência de um
narrador, ao mesmo tempo, onisciente, onipresente e onipotente. O narrador artesanal não tem
todos os super poderes que imaginara, não sendo o único “dono” da narrativa, ou a única
intencionalidade presente na obra. Talvez, com bem diz Todorov (1970), seja mais pertinente
falarmos de uma atuação mais ou menos intensa para esse narrador.
Sem dúvida, o linguista búlgaro tem razão, em parte, pois, em sinergia com o
narrador, existe em público astucioso que, em algumas situações, é capaz de determinar o
comportamento de quem está ali para narrar.
Uma prova desta situação é percebida na narrativa oral do contador de “causos”
Otacílio Silva, “O curupira estuprador”. A sensação inicial é de uma simples exposição de um
narrador/ confessor, porém ao contrário do que pareça, essa narrativa não explicita a imagem
de seu narrador, até pelo fato de sabermos que o depoente, no seu empreendimento
“oswaldiano” de apreender e de aprender a experiência alheia, absorve para sua fala aquilo
que já ouviu anteriormente. Em um dos múltiplos momentos que a história da criatura de
estatura baixa, corpo coberto de bolhas fora narrada por meio de performances, percebi a
presença de algumas vozes que duvidavam e incomodavam o narrador sobre a veracidade do
fato. Isso foi determinante para que o narrador se apropriasse de um fato que o perturbava
naquele momento: o aparecimento de uma vítima de estupro.
Repentinamente, a narrativa consumiu olhares e atenções até daqueles que
inicialmente desdenhavam do “causo” pelo simples motivo de que o narrador tinha
23 SILVA. Ananindeua: 12 de abril de 2008. Entrevista concedida a Hiran de Moura Possas.
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encontrado o autor do delito: o curupira. Seu sobrinho morreu, pois o curupira “fez saliência”
com o adolescente e, ao não suportar a dor, principalmente da vergonha, o jovem se entregou
à depressão, encontrando, dias mais tarde, a morte. O narrador dissera ter testemunhado o
fato, mas pouco pudera fazer, porque seu familiar fora irresponsável, não seguindo seus
conselhos sobre como respeitar a fúria dos encantados. Faltou experiência e vivência para o
jovem e sobrou inteligência e criatividade para o contador: “O pessoal diz que é mentira, mas
eu garanto: é verdade e aconteceu comigo e meu sobrinho24 [...]” O personagem-narrador não é, pois, uma personagem como as outras; [...] No momento em que o sujeito da enunciação se torna sujeito do enunciado, não é mais o mesmo sujeito que enuncia. Falar de si próprio significa não ser mais “si próprio”. O narrador é inominável: se quisermos dar-lhe um nome, ele nos permite o nome, mas não se encontra por detrás dele: refugia-se eternamente no anonimato. O narrador do livro é tão fugidiço quando não importa que o sujeito da enunciação, o qual, por definição, não pode ser representado. Em “ele corre”, há “ele”, sujeito do enunciado, e “eu”, sujeito da enunciação; E, “eu corro”, um sujeito da enunciação enunciada se intercala entre os dois, tornando a cada uma parte de seu conteúdo precedente, mas sem fazê-los desaparecer inteiramente: não faz mais que imergi-los. Pois o “ele” e o “eu” existem sempre: o “eu” que corre não é o mesmo que enuncia. “Eu” não reduz dois a um, mas de dois faz três (TODOROV,1970).
Nasce, da interseção do narrador diegético com o contador empírico, um novo ou até
então desconhecido autor: o implícito. Alguém que está por trás de uma cena e fala de quem
narra, repleto de intencionalidades, manipulando também as ações da história, assim como
nos fazendo repensar sobre a enunciação.
Performance também é linguagem, ou melhor, é justaposição de linguagens
insensíveis a alguns segmentos da crítica literária que, mergulhados em seus arquivos
eurocêntricos, insistem em conceber como arte as manifestações estéticas populares.
Sobre esse rótulo de popular, na esteira de suas reflexões, percebo que
historicamente o termo esteve sujeito a depreciações ou às formas tradicionais de vida. Essa
visão pejorativa vem perdendo espaço, especialmente nos estudos culturais, para uma
conotação de resistência. O capital pode até ter um interesse mercadológico pelo popular, mas
sem dúvida, as diásporas sobre o popular vêm ganhando corpo.
Sinalizando essa resistência, há diversas formas de manifestação da arte
contemporânea, inclusive na oralidade, subvertendo paradigmas pela valorização do processo,
não sendo compreendida essa configuração como um descompromisso com projetos teóricos
e estéticos ou desprezos ao passado. A partir desse pensamento, há um domínio de trocas e de
experimentações, um encontro fortuito e relacional, sendo uma releitura do espírito de
24 SILVA, Otacílio. Ananindeua: 12 de abril de 2008. Entrevista concedida a Hiran de Moura Possas
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outrora. Uma Arte que nunca finda, nunca morre. Apenas se ressignifica depois de passar
muito tempo encoberta sob as camadas da formalidade.
Em performance, seus intérpretes em conjunção com o público e com as
circunstâncias elaboram uma poética híbrida – um fazer artístico que privilegia interseções
entre as diversas linguagens – abarcando gestos, entonações da voz, olhar, respiração, e o
silêncio, extrapolando o simples fazer comunicativo, visto que põem em ação e interpretação,
texto e ouvinte. Há necessidade da resposta do público, ou seja, o ouvinte exerce função ativa
que é indispensável. A obra se concretiza na apreensão do ouvinte. Isso porque ele recria, de
acordo com seu repertório particular, o universo significativo transmitido pelo narrador.
Borriaud (2009) e Danto (2006) são precisos sobre a questão. Não se trata de escravização ou
domesticação do destinatário, mas sim criação do espaço necessário para as condições de
trocas. Antes de narradas, as histórias do imaginário amazônico são rememoradas por seus
intérpretes aos ouvintes, evocando o repertório cultural do “auditório”. Tempos depois, o
narrador reatualiza a história, acatando em algumas situações as intervenções do público “[...]
O narrador retira da experiência o contado: sua própria experiência ou a relatada pelos outros.
Incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes [...]”. (BENJAMIN, 1989).
Em um simples depoimento sobre histórias do imaginário da Amazônia, observei que
gestos, provações tácteis, silêncios, entonações da voz e olhares entram em conjunção. Esta
interseção de linguagens ou este caráter translinguístico, para Paul Zumthor (2000), é sempre
improvável, provisório, e em constante transmutação a cada nova ação, ilustrando a relação
indissociável entre corporeidade e poeticidade. O oral não é apenas vocalizado ou produto
direto da voz, mas tudo o que vem acompanhando ou complementando essa voz. “Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz. Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica e suas reações que elas provocam em nossos centros nervosos. Essa percepção, ela está lá. Não se acrescente, ela está. É a partir daí, graças a ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo semântico do texto, aproprio-me dele, interpretando-o, ao meu modo; é a partir dela que, este texto, eu o reconstruo, com meu lugar de um dia” (ZUMTHOR, 2000).
Apesar dessas constatações, o discurso da “morte do poeta rapsodo” encontra forte
ressonância em Adorno (1983): “[...] Ela se caracteriza hoje por um paradoxo, não se pode
mais narrar, ao passo que uma forma do romance exige a narração [...]” (ADORNO, 1983).
Percebo que é de vez sepultada a narrativa artesanal, porque os procedimentos narrativos vêm
experimentando transformações que remontam ao século XIX, chegam ao século XX (época
de Adorno) e ao XXI. As experiências para Adorno (1983) deixaram de ser sedentárias. Elas
se multiplicam, assim como as identidades das experiências se desintegram.
41
“Narrar algo significa, na verdade, ter algo especial (itálicos de Adorno) a dizer, e
justamente isto é impedido pelo mundo administrado, pela estandartização e pela
mesmidade.” (ADORNO, 1983) O horizonte estabelecido na segunda metade do século XX e
em prosseguimento no começo do século XXI, se incompatibiliza com as formas anteriores de
narrar.
O teórico alemão vê as narrativas tradicionais resumidas ao “convencer”, pois o
narrador deseja envolver o leitor de modo que ele creia naquilo que está dizendo. Já nas
narrativas do contemporâneo, as entrelinhas e ironias, dentre outras características, cruzam do
enunciado para enunciação, despertando o leitor da suposta passividade assumida nas
narrativas ancestrais.
As afirmações são plausíveis a partir do reconhecimento da importância dada ao
leitor que, numa concepção mais contemporânea, é entendido como um agente ativo no
processo de construção de sentidos. Dessa interação entre texto-autor-texto-leitura-leitor-
texto, nasce o leitor crítico: capaz de encontrar múltiplos sentidos em um texto, convencido
de que poderia haver outros. Esse leitor sempre existiu. Seu horizonte de expectativas é uma
via de mão dupla, porque a narrativa pode enriquecer ou ser enriquecida por vivências
pessoais, sócio-históricas, filosóficas, religiosas, estéticas, jurídicas e ideológicas.
Narrativa, seja ancestral ou contemporânea, no meu ponto de vista, é tessitura
inacabada de uma obra coletiva: A experiência da leitura logra libertá-los das opressões e dos dilemas de suas práxis de vida, na medida em que obriga a uma nova percepção das coisas. O horizonte de expectativas da literatura, distingue-se daqueles da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiência vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura25.
Por esse motivo, Adorno (1983) tem razão quando diz que não podemos considerar
experiências culturais no singular ou achar que a tradição cultural seja algo estável. O teórico
parece dialogar com os estudos culturais ao perceber que não existe mais espaço nas
narrativas para identificações submetidas às tradições, mas sim uma diegese híbrida,
impessoal, uma obra coletiva.
Repensando Adorno (1983), lembrei que Hall (2009), um dos percussores dos
estudos culturais, defende a ideia de que nunca existiu a tradição ou uma cultura pautada em
uma essência para ser apreendida ou examinada. Na verdade, tradição é algo que se assume,
um construto identitário forjado para servir às formas geométricas de poder.
25 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994
42
Nunca pensei cultura como sinônimo de homogêneo. Percebo nos “causos” das ilhas
de Ananindeua a compreensão de que gestam obras coletivas, garimpadas de falas alheias e
abertas a outras vozes. A experiência nunca foi pura e singular. Ela sempre irá a um encontro
de opostos.
Os tipos “arcaicos” de narrador: o marinheiro comerciante e o camponês sedentário
constantemente se multiplicam, sob circunstâncias de um contexto pós-moderno ou
contemporâneo, fazendo dos códigos narrativos e identitários marcas que não são fixas e que
insistentemente mantêm inter-relações, experimentando constantes transformações. O ato de
fiar, miticamente associado à criação, ou seja, à ação de tecer o fio da existência humana,
experimenta apenas a passagem da oralidade por diversas etapas antes de se transformar em
texto escrito. O sujeito cultural, ao narrar as suas experiências cotidianas, acrescenta à sua
própria experiência de vida, aquilo que viu e sentiu.
Quando Benjamin (1989) diz: “[...] O narrador retira da experiência o contado: sua
própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de
seus ouvintes [...]”, sobretudo utilizando o verbo no presente, sinaliza para uma
sobrevivência. O oral já, há alguns anos, respira sem agonizar, vivendo sem parasitar o
escrito. A oralidade, como tentarei abordar no último capítulo desse exercício epistemológico,
vem historicamente sobrevivendo em modalidades literárias escritas.
A literatura oral, expressão criada por Sébillot (1983), é uma resposta à miopia
literária e cultural que tentou camuflá-la ou reduzi-la ao folclore ou ao popular. Poesia oral é
outra coisa, tendo uma acepção mais larga nas perspectivas sociológicas, antropológicas e
literárias. Tão fortemente social quando individual, a voz mostra a forma pela qual o homem
se situa no mundo em relação ao outro e como é capaz de reatualizar os paradigmas literários,
apresentando uma convencionalidade particular, híbrida e permeável, revelada em uma
poética comparável à secreção do corpo humano.
2.2 RESSUSCITANDO A PLENOS PULMÕES
2.2.1 O Silêncio Significante
“[...] No início é o silêncio. A linguagem vem depois [...] quando o homem, em sua história, percebeu o silêncio como significação, criou a linguagem para retê-lo [...]
Eni Puccinelli Orlandin
43
O silêncio, um dos traços característicos das performances dos contadores de
“causos” e de assombrações das ilhas de Ananindeua, é algo valoroso e que precisa superar
compreensões redutoras que o qualifica como “resto” ou “excrescência” da linguagem. Ele
supera este sentido passivo, atravessa as palavras – existindo entre suas “frestas” – repleto de
intencionalidades “[...] Quando o homem, em sua história, percebeu o silêncio como
significação, criou a linguagem para retê-lo [...]” (ORLANDI, 2007).
Nas performances em questão, interrupções marcadas pelo silêncio indicam uma
tomada de fôlego para significar. Silenciosamente, os narradores checam as reações de seu
“auditório”, reorientando estrategicamente as histórias. Eu já fui mundiado pelo curupira. Eu passei mal, não queria comer... Eu ‘tava’ caçando, [o narrador interrompe a fala e faz silêncio] eu caçava muito e a carne sobrava e dava pra todo mundo [...] Meu sobrinho foi malinado pelo curupira. Fez saliência com ele. Atacou ele na casa dele. Ele ficou todo arranhado e as paredes também. Ele mundiou e depois morreu. Aí subi na árvore pra ver melhor a caça e deixei lá em baixo a espingarda e o terçado. Foi meu mal [o narrador deixa derramar lágrimas]. Ele veio, era baixinho, cabeludo e o corpo era cheio de bolhas, me olhou. Dava um grito horrível : Uhhhhhhhh. Era horrível! O cheiro, meu deus! As minhas carnes ‘tremia’. Ele teve pena de mim. Eu custei ‘pra’ ficar normal. Nunca mais eu cacei. Eu fui benzido. O pajé de remanso disse: - Não encara mais ele. A reza me curou [...] Eu dou graças a Deus de ‘tá’ vivo. Ei? [o narrador faz silêncio] . Outra vez fez a gente se perder. A gente andava, andava e não achava o caminho de casa. Era o nosso fim. Aí eu lembrei do meu avô e tive força para ter uma idéia. Se vocês quiserem eu conto?! Vocês querem? Peguei cio titica e enrolei bem. Aí eu joguei para traz sem olhar. Passou um tempo, ele se distraiu com o encanto do cio. Aí a gente conseguiu fugir. Se quiserem eu mostro como é. Querem? [faz silêncio] o cio titica não serve só pra encantar, ele é usado na nossa arte. O pessoal diz que é mentira, mas eu garanto: é verdade e aconteceu comigo [...] Fala pra todo pessoal que é verdade. Eu ‘tô’ vivo!
O silêncio no “causo” acima procura apagar outras palavras ou se manifesta em
práticas de silenciamento de outros discursos. Dizer e silenciar caminham juntos. Há, sem
dúvida, um recorte ou uma tentativa de interdição no dizer e no fazer. Quem tem segurança
para relatar o fato e encarar as forças espirituais do mato são os antigos, a voz da experiência.
Percebo a história dividida em dois momentos. No primeiro, o “causo” retrata a versão mais
difundida e conhecida sobre o curupira: o narrador traduz o curupira como uma criatura que
faz os visitantes da mata se perderem, em uma experiência inconsciente marcada por um
transe ou loucura, como aconteceu com o personagem narrador ao ser “mundiado”. No
segundo momento, após ficar em silêncio, o que para Orlandi (2007) não pode ser confundido
com passividade - o corpo vai mudando constantemente de expressão. O narrador apaga a
imagem anterior do curupira substituindo-a por outra, o transformando em estuprador. Agora,
o encantado assume uma imagem mais horrenda: seu corpo é repleto de bolhas; seu cheiro é
insuportável e suas atitudes são ainda mais violentas. Além desta transformação imposta à
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criatura, há uma reelaboração da experiência sobrenatural de sentir mundiado. Esse transe
também está associado à vergonha de compartilhar com comunidade o fato de ter sido vítima
sexual de um personagem do “imaginário” do lugar.
Percebo o silêncio e sentido caminhando juntos. Concentrado e em repouso, o
narrador reformula “sua” história – faz o tempo parar – dotando-a de maior “veracidade”; na
segunda versão, há o acréscimo de uma vítima, o sobrinho do narrador; um lugar, a casa; e o
testemunho do depoente. Constatei um propósito de silenciar qualquer manifestação de
dúvida sobre a autenticidade do fato e o claro projeto de domesticar ou institucionalizar os
sentidos.
Sua principal característica, uma “invisibilidade” discursiva, não anula o silêncio
como enunciação, ao contrário, ele reside, passa, não durando entre as palavras: “[...] Ele
escorrega entre a trama das falas [...]” (ORLANDI, 2007).
Em muitas situações, dentre as quais, nos momentos em que fui apresentado para
alguns narradores, não houvera palavras, mas sim longos silêncios, mais tarde compreendidos
como um momento de reavaliação de atos e de propósitos.
Historicamente, a Linguística debruçou-se sobre o silêncio concebendo-o como
elipse ou implícito, em uma tentativa de sedentarizá-lo, impondo margens e limites chamados
por Orlandi (2007) de língua em seu estado gasoso.
Problematizar o silêncio, nos estudos literários, é repensar o sentido da linguagem
que não se faz sob a forma de uma linha reta, mensurável, calculável e segmentável: repensar
o silêncio, a meu ver, é traçar um limite à redução de significância ao paradigma da
linguagem verbal. Isso significa propor uma descentração do verbal.
Retornando ao narrador Otacílio Silva, um artífice do silêncio, outra questão pode ser
categorizada pela expressão política do silenciamento. Usando como exemplo a ditadura
brasileira, Orlandi (2007) nos diz: “[...] censura e resistência trabalham na mesma região dos
sentidos [...]”. Deste modo, a proibição promove o nascimento de outros sentidos – o do
ouvinte - que desmistifica a ideia de que o projeto ideológico do narrador-actante seja o mais
agudo: “[...] os sentidos ‘criam pernas’ (ou ‘asas) e são surrupiados de um discurso para o
outro [...]” (ORLANDI, 2007).
Assim sendo, nem todo “auditório” se convenceu da versão apresentada pelo
narrador. O sentido é errático e migra de uma região para outra. O silenciamento não alcança
sucesso absoluto. Alguns ouvintes, mesmo em silêncio, não acreditam na história apresentada.
Certas reações, principalmente as gestuais, indicam contestações. Na proibição, estão os
outros sentidos. Aquilo que bem ou mal não foi dito, mas significou.
45
“[...] Esse é o risco dos sentidos. Não há discurso estanque que os torne de todo ‘controláveis’ nem discurso que garanta uma correspondência estrita aos lugares (oposições) em que são produzidos. Uma vez postos em circulação, eles podem se deslocar por qualquer ponto dos processos discursivos [...]” (ORLANDI, 2007)
A polifonia da voz pelo silêncio também deságua na metacomunicação do “não dito”
através das expressões faciais, corporais, gestuais e tímbricas. Em várias situações, o silêncio
pareceu determinar outros sentidos dos narradores. Seu Antônio Farias (2008) diz que “nem
todos sabem fazer silêncio”, talvez esteja justamente comunicando o controle da sinergia das
ausências de suas palavras com seu corpo. Quando faz silêncio, seu coração pulsa, seu corpo
sua, suas expressões mudam e no retorno da sua voz, o timbre se ajusta às necessidades do
momento. As histórias contadas para “deixar o povo triste”, a voz precisa ser trêmula, o corpo
deve ficar desfalecido, o olhar fica perdido, mas, ao ter a necessidade de “alegrar a povorada”,
seu Farias (2008) faz sua voz fica mais audível, seu corpo vibra e o “suor invade a camiseta”.
Dor e silêncio parecem irmãs nas ilhas de Ananindeua. O luto pela perda de um dos
mais antigos moradores-narradores, seu Tarcísio, foi traduzido pela frase insistente “[...] hoje
não falo. ‘Tou’ de luto e sem vontade de falar pelo ‘Tarcísio’ [...]” ( FARIAS, 2009). O gesto,
na época foi compreendido como subtração de palavras. Hoje, porém, lembro de cada olhar,
cada rosto baixo, cada respiração ofegante e cada lágrima dizendo tudo: “[...] O silêncio, aí
encontrado, é o mais fino dos silêncios, pois expõe a face da verdade que resiste ao visível e
ao representável. O silêncio é faca oxidada contra a polpa verde ...
Os estudos sobre o silêncio na Literatura escrita são tímidos, quem sabe pela
hercúlea tarefa de abraçar com a palavra, o impossível. A vocalidade é privilegiada nesse
aspecto, porque um grito é uma forma de fazer com que o silêncio seja ouvido. As encantarias
das ilhas de Ananindeua deixam de estar em silêncio, como veremos ainda nesse capítulo,
justamente quando dão a materialidade de sua existência com seu grito: “[...] A Matinta faz
ziiiiiiiiiiiiiiiiiiiipiuiiiiiiiiiiiiiiii! [...]” (SILVA, 2008).
Simbolicamente, o silêncio se faz por atos ou experiências-limite, sendo “[...]
prelúdio de abertura à revelação [...] grade cerimônia [...]” (CHEVALIER&GHEERBRANT,
2009). O jovem, vítima sexual do curupira, silenciou sua vida se entregando à depressão. Sua
atitude, nos ‘causos’, foi considerada uma saída nobre, silenciando comentários indecorosos
sobre seu gesto sacrificial: “[...] Por todos, pagou um. Ele deu sua vida para nós [...]” (SILVA,
2008).
Palavras também transpiram silêncio. “[...] contar não é coisa pra qualquer um [...]”
(FARIAS, 2008). Os intérpretes da região das ilhas de Ananindeua selecionam e silenciam
certas passagens da história, impondo certos limites para o que pode ser dito para um
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estranho. As histórias que tanto aprendi a apreciar não foram contadas em encontros únicos.
Muitos dos seus capítulos me foram negados e silenciados inicialmente. Astuciosamente,
aquilo que a semiótica greimasiana chama de breagem, um convite periódico a desvendar
quaisquer que sejam as passagens dos “causos”, fora sempre utilizado: “[...] outro dia eu te
conto tudo, mas tem que voltar [...]” (FARIAS, 2008).
Estes capítulos ainda não findaram e essas vozes não se calam mesmo caladas. Os
silêncios desafiam os estudos que ainda tentam territorializar principalmente a Literatura no
terreno do escrito. As fronteiras do dito e do não dito ou entre o escrito e o oral são
permeáveis de “[...] sentidos que não têm donos [...] cada um o quer pra si [...]” (ORLANDI,
2007).
2.2.2 Cheiros, sons e toques ritmados pelo batimento sanguíneo “Não é ao objeto físico que o corpo pode ser
comparado, mas antes à obra da arte”. Merleau-Ponty
Os corpos não podem ser associados simplesmente à matéria orgânica, de modo que
estão constantemente sendo reinventados, consequência de seu diálogo com as transformações
mundanas, nos revelando, através de suas marcas, um eu em particular e um coletivo: [...] um corpo não é apenas um corpo. É também o seu entorno. Mais do que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações, o corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções que nele se operam a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se acoplam, os sentidos que nele se incorporam, os silêncios que por ele falam , os vestígios q eu nele se exibem, a educação de seus gestos [...] enfim, um sem limite se possibilidades sempre reinventadas e a serem descobertas (GOELLNER, 2003)
No corpo dos contadores de “causos” e de assombrações das ilhas de Ananindeua
reside metaforicamente a sede de uma escritura verbalizada pelo gesto: lágrimas, suores,
ornamentos, provocações tácteis, expressões de medo, reprovação, contentamento, acrobacias
e “espasmos” involuntários são um lugar de expressão ou simplesmente carne se fazendo
texto. Lá se inscrevem “textos” em que o verbo poético se faz pela carne26 ou a carne se faz
de verbo:
Merleau Ponty (1994) traduz o que para mim é uma certeza nas narrativas orais: o
corpo é uma obra de arte e sua linguagem uma poética, desenhando um estético fruto de
musculaturas e sensações reagindo na interação dos intérpretes com os ouvintes.
26 "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus ... E o Verbo se fez carne" (João 1:1, 14)
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Em conjunção com a voz, os gestos têm a capacidade de simbolizar: lágrimas
parecem ser e provocar emoções; suores, tensões; apelo táctil, checagem e convite para a
atenção do ouvinte: “[...] a língua do gesto é também a do sopro, ela provoca uma espécie de
reserva pré-linguistica [...]” (ZUMTHOR, 1993)
O contador de “causos” Antonio Farias, independente da narrativa que interpreta,
lança mão de sua memória táctil-cinestésica mais acurada nos últimos anos do que sua
memória visual27, para descrever detalhes sobre as encantarias da região, antes pouco
mencionados. Suas experiências tácteis foram estendidas para o imaginário, evocando
situações, como o “desprazer” de tocar o curupira. A estatura do encantado é pequena; seu
corpo é repleto de bolhas, algumas “espocadas”; parece ter um só olho, mas “muito grande”; o
corpo também é coberto de pelos grossos, “igual macaco”.
Essa descrição proveniente das experiências tácteis do narrador se assemelham às
descrições do Cíclope, criatura da tradição grega, de aparência física semelhante à descrita
para o encantado da Amazônia, um lado negro e tirano para a criação ou simplesmente estado
assaz ou primitivo da própria humanidade.
Quando retratada pela memória táctil, a encantaria do boto, segundo seus narradores,
indica uma maneira “infalível” de reconhecer o “bicho” “disfarçado” de gente. O simples
aperto de mão ou tocar nas costas do “bicho” apontam para uma pele muito lisa, quase
escorregadia, e uma coluna muito “torta”, porque “[...] é de tanto o bicho vergar o corpo ‘pra’
nadar [...] (FARIAS, 2008)
Uma particularidade sobre a aparência física do narrador Antonio Farias, além de sua
cegueira, é a companhia de seu inseparável “cajado”. Na verdade, é um simples “cabo de
vassoura” usado para facilitar sua locomoção. Uma paisagem signo, interessante por
significar, para familiares e moradores do lugar, um símbolo de liderança ou de um guia,
pastor do seu “rebanho”. Não é à toa que seu cabo de vassoura, que se faz cajado, ter
apontado e ainda aponte, sem ainda ter “errado”, para a indicação dos líderes comunitários da
comunidade do Igarapé Grande como problematizarei em capítulos posteriores.
O tato também está presente na ação de narrar. Otacílio Silva, morador da comunidade
de João Pilatos, checa a atenção do seu ouvinte tocando-o periodicamente. Os toques
violentos, apertados apontam para necessidade de uma atenção maior para suas palavras. O
aperto gentil e delicado é uma afirmação de contentamento com a atenção que lhe é dirigida.
27 Na passagem de 2008 para 2009 o narrador foi acometido de um glaucoma, segundo ele, incurável
48
Em algumas narrativas sobre a encantaria dos “Iaras”, os gestos não parecem mera
dublagem mímica da voz, mas sim um texto paralelo e complementar, para aquilo que a voz
não dá conta de narrar: “[...] gesto e voz; regulados um pelo outro, asseguram uma harmonia
que nos transcende [...] o elo que liga a voz e o gesto é de ordem funcional, resultando de
uma finalidade em comum[...]” (ZUMTHOR, 1993). O corpo fala para desenhar o tamanho
do “bicho”, a proporção de seus dentes incomuns; os olhos grandes que não piscam; e para
um corpo parecido com curvas femininas, mas, ao mesmo tempo, musculoso e repleto de
cicatrizes graças às redes de pesca.
A teatralização do cotidiano ou o jogo do corpo operado por esses narradores retrata
topograficamente uma reconstrução cultural, em que se inscrevem experiências ancestrais e
contemporâneas, superfície repleta de marcas que denunciam quem são, como se identificam
e como se posicionam diante da vida.
Os estudos literários parecem não avançar sobre a questão, pois: “[...] repetem-se,
engendram uma retórica que não tem a ver com a “realidade” e colocam em xeque uma
etnologia míope [...]28 , principalmente à questão do corpo, um discurso sem palavras. [...] é ele [o corpo] que sinto reagir. Ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos [...]: contração e descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos, sensações de vazio, de pleno, de turgescência, mas também um ardor ou sua queda, o sentimento de uma ameaça, ao contrário, de segurança íntima, abertura ou dobra afetiva, opacidade ou transparência, alegria ou pena (ZUMTHOR, 2000)
Pitiús, café torrado, mata molhada, enxofre, madeira molhada, fumaça e fumo são
alguns ingredientes que fazem parte das memórias olfativas dos contadores de “causos” e de
assombrações das ilhas de Ananindeua. Considerando o sentido pioneiro e também talvez o
mais ignorado pela ciência, esse mundo enigmático, complexo e, para alguns, irracional,
perpassa para o mundo estético, desafiando seus artífices a traduzir, pela palavra, as paisagens
olfativas.
Certos odores caracterizam o contato dos narradores com as encantarias, como a do
narrador Otacílio Silva com o curupira, uma experiência olfativa repulsiva, pelo fato da
criatura apresentar um odor proporcional a sua perversidade. Algo semelhante, segundo suas
palavras, ao odor desferido pelo enxofre, simbolicamente relacionado à presença de Lúcifer.
Esta associação só reforça o intento do narrador em intensificar a perversidade do curupira ao
compará-lo ao demônio. O cheiro da criatura ainda se faz presente na memória do seu
narrador. O odor desagradável evoca lembranças de um encontro não restrito com curupira,
28 Expressão usada por Bachelard para se referir ao pensamento racionalista ocidental.
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mas sim com a própria morte: “[...] Era horrível! O cheiro, meu Deus! As minhas carnes
‘tremia’. (SILVA, 2008)
As paisagens olfativas despertam emoções, como o medo da morte, e
comportamentos conscientes ou inconscientes até então ignorados pelos narradores. Não é
qualquer um que sente, pelo cheiro, o curupira, pois é preciso experiência, e principalmente
coragem até então ocultada pela imediatez do medo: “[...] Foi preciso ter medo pra “mim”
“ganhá” coragem (SILVA, 2008)
Alguns cheiros estimulam outros sentidos, dentre os quais, o de mato molhado com o
café torrado, convite para o regresso a casa para a refeição e ao “cochilo” depois do almoço
ou até mesmo regresso ao passado, desenterrando principalmente as memórias da infância. O
óleo queimado anuncia a chegada das rapetas e dos pais regressando depois do trabalho.
A subjetividade dos odores estimula a criatividade das narrativas, trazendo, para os
palcos literários, textos nasais tecidos pelo “último sentido, o menos “nobre”, o menos
“necessário”, o mais imperceptível, o menos pesquisado.
A dificuldade de capturá-lo ou percebê-lo, nas produções literárias escritas ou até
mesmo orais, se justifica pela inexistência de semânticas para o cheiro e domínio lexicais para
traduzi-lo, sendo as comparações e as metáforas os recursos mais utilizados para sua
expressão: “[...] o “chero” da matinta é igual de tabaco misturado com catinga do “suvaco”
[...]” (SILVA, 2008). Essas paisagens odores evocam e caracterizam personagens. Pitiús
anunciam a presença dos Iaras; fumaça evoca a Matinta ; enxofre caracteriza o curupira.
Nos múltiplos diálogos mantidos com esses poetas rapsodos, a ausência de um odor
característico é a indicação da inexistência de um determinado encantado: “[...] aqui não tem
saci. Isso é coisa da televisão. Não tem “chero” disso aqui [...]” (SILVA, 2008). Ter cheiro na
região das ilhas de Ananindeua é ter existência.
Cheiro e cultura são parceiros indissociáveis, principalmente no trabalho dos
pescadores. Odores ligados à matéria em decomposição podem ser um indicativo de que
poderia ser melhor não se lançar às supostas mórbidas tormentas anunciadas. “[...] Não ia
‘pra’ pesca porque minha mãe falava que tava um cheiro de podre [...]” (SILVA, 2008).
Em sintonia com as considerações da pesquisadora Maria Eunice Moreira (2009) é
preciso revisar a definição de poesia diante dessas experiências olfativas descritas, pois: “[...]
Poesia é, como aí designa Paul Zumthor (e hoje já nos parece tão claro) [...] um conjunto de
textos ditos poéticos como atividades que os produziu: o corpo, o gestos, os meios [...]”29
29 MOREIRA,Maria Eunice; Silva, Daniela MANDAGARÁ, Pedro. O cânone em questão. Porto alegre v.2, n.1, p. 114- 116.
50
As paisagens olfativas demonstradas pelos narradores em questão são expressões
criadoras que convidam e testemunham a compatibilidade dos cheiros com a literatura, talvez
evocando dos narradores e de seus “leitores” emoções camufladas e o lado mais instintivo da
humanidade.
Aprendi a falar da região das ilhas de Ananindeua escutando um repertório de sons
especialmente o universo sonoro dos contadores de “causos” e de assombrações.
Não poderia desprezar a presença insistente das onomatopéias no discurso
performativos dos narradores desse microcosmos cultural, ainda que os estudos linguísticos e
literários contemporâneos ofereçam pouca atenção sobre um fenômeno tão presente na
linguagem cotidiana, e ao fato de serem paisagens sonoras carregadas de conotações sociais,
às vezes irreproduzíveis, em um exercício de escrita, como nas transcrições das narrativas
orais em questão.
Estes ruídos monossilábicos se reduplicam nas narrativas, assemelhados aos sons
provocados pelos efeitos sonoplásticos percebidos no cinema e nas histórias em quadrinhos.
Há, através dessas paisagens sonoras, uma ambientação de trama do discurso, que nas
palavras de Matoso Câmara (1977) não podem ser compreendidas como imitação fiel e direta
dos ruídos, mas sim uma interpretação aproximada por meio dos recursos oferecidos pela
língua.
A presença do ser imaginário - o curupira - sob a ótica de seus narradores se
concretiza com “o seu pronunciamento”: “Uhhhhhhhh [...]” (SILVA, 2008). Sendo mais um
artifício do narrador para propiciar uma ilusão de realidade, procurando suprir seu
vocabulário simples, a partir da recriação de um som ou ruído, substituindo a descrição
exausta de uma cena ou sobre os detalhes da aparência das encantarias.
O imaginário se reveste de “racionalidade” quando é dada voz ao curupira. A criatura
e sua narrativa ganham ares de “verdade” ou vivem agora na interseção do real com o
imaginário. Vislumbra-se pela imaginação, algo realmente presente no jogo social dos
moradores: a existência de um estuprador. Sobre a questão, Durand (1997) diz que “[...] uma
pedagogia da imaginação se impõe ao lado da cultura física e do raciocínio [...]”. O mito não é
produto da história, pelo contrário, ele vivifica a estrutura e as próprias concepções da
história.
Percebi também, no uso das onomatopéias, empréstimos linguísticos característicos
de sujeitos de territorialidade permeáveis. O pei pei que o narrador Antonio Farias utiliza no
seu relato, é uma pequena amostra de eventos sonoros típicos da televisão: “[...] minha
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espingarda costuma fazer pei pei pei, mas se calou quando viu o curupira [...]”. (FARIAS,
2008).
Estados de espírito e situações emocionais se materializam nas onomatopéias,
criações governadas pelo fantástico, demonstrando um direito de antecedência do imaginário
sobre quaisquer “verdades laboratoriais30”
Esses “barros” dos artífices das poéticas oralizadas nas ilhas de Ananindeua, matéria
bruta de uma manifestação criadora, desafiam o entendimento e ao mesmo tempo tornam-se
um convite para futuros estudos acadêmicos.
30 Expressão usada por Bachelard para se referir ao pensamento racionalista ocidental
52
3.0 PELAS “TRILHAS” DAS ENCANTARIAS E DOS ENCANTADORES
“Se tu podes crer; tudo ó possível ao que crer”' (Marcos, 9:23)
“O mito é o nada que é tudo” (Fernando Pessoa)
3.1 FÉRIAS DA RAZÃO OU CIÊNCIA DA IMAGINAÇÃO?
“[...] Refletir e trabalhar sobre o imaginário supõe uma grande modéstia, pois o homem e a sociedade saem da iluminação fácil dos pressupostos ao quais se empresta fé e virtude de uma razão que (a) parece, repentinamente, frágil [...]
Patrick Legros
Em um estudo de tradução cultural31, privilegiar sua própria cultura como arquétipo
normativo para outras culturas é dar mostras de um colonialismo intelectual gerador de
diversos obstáculos epistemológicos, como aqueles que costumam desvalorizar a importância
da imaginação.
Assentar um pensamento no imaginário, para boa parte das ciências ocidentais seria
abdicar “[...] dos pressupostos aos quais se empresta fé em virtude de uma razão que (a)
parece, repentinamente frágil [...]” (LEGROS, 2007). No entanto, os estudos sociológicos
contemporâneos não conseguem vislumbrar o “real” desvinculado do simbólico ou da “razão”
dissociada do terreno mítico.
A imaginação nos terrenos de feições cartesianas é considerada férias da razão ou
infância do conhecimento para as cruzadas empreitadas pela desmistificação. Em acordo com
o pensamento de Durand (1997), não percebo o pensamento lógico dissociado da imagem:
“[...] É-nos assim evidente que uma pedagogia da imaginação se impõe ao lado da cultura
física e do raciocínio [...]”. A imagem seria portadora de um sentido cativo da significação
imaginária, um sentido figurado, constituindo um signo intrinsecamente motivado, um
símbolo. O simbolismo é cronológico e ontologicamente anterior a qualquer significância
audiovisual; a sua estruturação está na raiz de qualquer pensamento. E mais: “[...] o
imaginário não só se manifestou como atividade que transforma o mundo, como imaginação
criadora, sobretudo como transformação eufêmica do mundo, como intellectus sanctus, como
ordenança do ser às ordens do melhor” (DURAND, 1997).
31 Compartilho do pensamento de Robert Darnton de que pouco adianta unicamente utilizar o conhecimento ocidental ou a história intelectual no estudo de atores sociais. Sua cosmologias, ou a história de suas mentalidade faz diferença na leitura dessas experiências humanas.
53
O imaginário atravessa todas as atividades da vida humana podendo ser
problematizado por uma polissemia de temáticas. No limiar do sonho com a ciência ou
relativizando a realidade, os contadores de “causos” e de assombrações das ilhas de
Ananindeua nos revelam um mundo social obedecendo, com freqüência, a motivações de
natureza obscura ou inexplicável.
Alguns sociólogos, dentre os quais Edgar Morin, parece uma voz uníssona a do
narrador Antonio Farias quando diz que a “[...] a imagem não é, pois, uma simples interface
entre o real e o imaginário: ela é o ato constitutivo, radical e simultâneo, do real e do
imaginário [...]” (MORIN apud LEGROS, 2007). “[...] Pergunta ‘pro’ mato que ele resolve as
‘broncas’ da tua vida [...]” (FARIAS, 2009).
3.2 ASTÚCIAS ENUNCIATIVAS DE NARRADORES HERÓIS
“O rigor, a simplicidade do texto, no qual não havia uma só palavra inútil, a transparência dos conceitos [...] Dado que todos os conceitos são interdefinidos sua justaposição produz um efeito singular [...] É como se, ao ler, tudo estivesse claro e finalmente e demasiada clareza nos obscurecesse, o que obrigaria a reler a frase três vezes [...] isso me fazia pensar naquelas casas de vidro [...] e o todo vazado nessa espécie de economia de meios que torna uma escrita científica [...]” Algirdas Julien Greimas
Nas narrativas que sustentam esse exercício interpretativo, prevalece a figura de um
herói narrador capaz de “dar a própria vida” em favor do bem estar de sua comunidade. Ao
enfrentar os “perigos” que circundam a vida dos moradores das ilhas de Ananindeua, esses
“heróis” são capazes de realizar “proezas” físicas e espirituais. Não é nada simples, por
exemplo, suportar, como percebemos na narrativa relacionada ao ataque de um curupira, seu
cheiro insuportável, assim como sua força física capaz de derrubar as árvores que serviriam de
refúgio para suas vítimas: “[...] não adianta correr dele. Ele derruba as árvores. Tem que ter
manha pra enfrentar sua força [...] (SILVA, 2008).
O enfrentamento de criaturas sobrenaturais exige destes narradores, líderes de
conduta, conhecimentos sobre as forças espirituais do mato. Cipós, palavras mágicas, chás,
“remédios da floresta” compõem uma missão “sacrificial” que precisava ser empreendida.
Tendo como simulacro metodológico a semiótica greimasiana, procurarei descrever e
explicar o que o “causo” diz e como ele faz para dizer o que diz, conciliando uma análise dos
elementos internos e externos. Para que seu sentido seja construído, a Semiótica lança mão de
um plano de conteúdo sob a forma de um percurso gerativo, onde há uma superposição de
níveis de significação proposta por Greimas (2008): o fundamental, o narrativo e o discursivo.
54
O nível fundamental, ponto de partida do processo gerativo, trata de uma
representação de oposições semânticas - afirmações e negações - buscando o sentido nas
diferenças. A isotopia temática da experiência em forma de sacrifício, constantemente
reiterada no “causo” em questão, é figurativizada pelo ritual do herói mítico, que sob a luz da
teoria dos arquétipos culturais ilustra: uma partida: relatada como uma ação dolorosa para o
herói e para a comunidade; realizações no campo de provas da vida com o auxílio de objetos
“mágicos”, operando verdadeiros “milagres”, dentre os quais a salvação da vida dos heróis
com a ressalva de que: “[...] não adiantava nada ter facão ou espingarda sem a minha manha
[...]”. (SILVA, 2008); e o retorno vitorioso repleto de experiências, para serem
compartilhadas. Os narradores, não conseguindo guardar para si os feitos, sentem a
necessidade de compartilhar suas ações e suas aprendizagens em “benefício” de seus
conterrâneos, se tornando, nesta atitude de “doação”, um guia político e espiritual para a
comunidade, visto que já percorreu, com louvor, o campo de provas da vida. Os arquétipos
nascem da incessante renovação das vivências experimentadas ao longo de várias gerações. A
luta infinita do bem contra o mal; do medo contra a coragem, da experiência contra a
inexperiência.
Examinando a figuratividade do “sacrifício” exposta pela trajetória do herói narrador,
percebi que “este sofrimento” faz parte de um projeto intencional, induzindo o público
ouvinte (imanência) a solidificar a imagem do narrador como uma liderança ou um guia de
conduta espiritual e político por meio do respeito e da compaixão daquele que se doou pelo
próximo: “[...] É Cristo na cruz que desperta nosso amor [...] (Campbell, 1990).
Na narrativa “O curupira estuprador”, a categoria semântica fundamental é: a
experiência X inexperiência, ilustradas pelas seguintes passagens: “[...] Aí, eu lembrei do meu
avô e tive força pra ter uma idéia”; “Peguei cipó titica e enrolei bem; “Aí eu joguei [...]”;
“Meu sobrinho foi malinado pelo curupira. Fez saliência com ele [...] Ele mundiou e morreu
[...]” (SILVA, 2008).
Aos termos contrários: experiência X inexperiência, se contrapõem os termos
subcontrários, seus contraditórios: não experiência X não inexperiência.
Ainda no nível fundamental, agora no aspecto semântico, serão determinadas as
categorias fundamentais positivas (eufóricas) ou negativas (disfóricas). A experiência seria a
eufórica, enquanto a inexperiência a disfórica.
Construído o mínimo de sentido nas estruturas fundamentais, as oposições
semânticas deverão ser convertidas em estruturas narrativas, ou seja, não se tratará mais de
reafirmar a experiência do narrador protagonista de “O curupira estuprador” em detrimento da
55
inexperiência dos ouvintes e dos demais que se tornaram vítimas da criatura, mas sim: “[...]
organiza-se a narrativa, do ponto de vista de um sujeito [...] representam-se ou simulam-se,
como em um espetáculo, o fazer do homem que transforma o mundo, suas relações com os
outros homens, seus valores, aspirações e paixões” (BARROS, 2005).
Pares de actantes, “[...] uma entidade sintática da narrativa que se define como termo
resultante da relação transitiva, seja ela uma relação de junção ou de transformação”
(BARROS, 2005) serão percebidos neste nível. Na relação sujeito X objeto, percebi um
narrador que tenta consolidar sua liderança política e espiritual na comunidade, pois é ele
quem sobreviveu às forças espirituais do mato “[...] Eu dou graças a Deus 'tá' vivo [...]”,
ouvindo a voz da experiência: “[...] Aí eu lembrei do meu avô e tive força pra ter uma idéia
[...]”, ao recorrer aos ensinamentos da ancestralidade. O narrador é um guia de conduta,
aquele que merece o respeito, e “sempre” diz a verdade: “[...] O pessoal diz que é mentira,
mas eu garanto: é verdade e aconteceu comigo [...]” (SILVA, 2008).
Outro “membro” importante deste coral polifônico de actantes é o curupira ou o
narrador travestido de anti-herói, na minha leitura. O poder espiritual do narrador protagonista
não poderia ser medido por qualquer feito. Precisava de um confronto com um oponente que
gerasse o medo e o respeito. Nas populações ribeirinhas da Amazônia, ainda hoje o curupira
encanta e desperta o medo naqueles que ouvem essas histórias. O narrador constrói, dentro de
seu projeto persuasivo, uma imagem chocante e repugnante: “[...] Ele veio, era baixinho,
cabeludo e o corpo era cheio de bolhas, me olhou. Dava um grito horrível: Uhhhhhhhhhh. Era
horrível! O cheiro, meus Deus! [...]”. (SILVA, 2008). [...] as ações do sujeito e do destinador-manipulador, diferenciam porque enquanto o sujeito transforma estados, faz-ser e simula a ação do homem sobre as coisas do mundo; o destinador modifica o sujeito, pela alteração de suas determinações semânticas e modais, e faz-fazer, representando, assim, a ação do homem sobre o homem” (BARROS, 2005).
Há ainda na estrutura narrativa o fazer persuasivo ligado ao espaço e ao tempo. O
narrador em questão não depõe em qualquer lugar. Quando convidado a contar a narrativa “O
curupira estuprador”, ele é enfático afirmando que há o momento e o lugar certo para o relato.
Estrategicamente, após o jantar, a história é relatada. Como não havia energia elétrica na
localidade na época do “ataque” da criatura, as pessoas se sentavam e ouviam a história, tendo
em volta a sonoplastia gerada pelo vento, pelas árvores, e pelos ruídos de animais. Instaura-se
o que Campbell (1990) chama de tempo mítico: um encontro do contemporâneo com o
passado. A história transporta os participantes ao fato ocorrido por simples palavras, como:
Era uma vez...; ou naquele tempo.... . Ficam imprecisas datas e locais.
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Nesse percurso interpretativo, no nível narrativo, existem quatro fases a serem
descritas: a manipulação, a competência, a performance e a sanção.
Na manipulação, astuciosamente o narrador protagonista propõe um contrato com os
destinadores: ele oferece experiências, práticas e regras sociais que permitem uma entrada
segura no “mato”: “[...] Se vocês quiserem eu conto! ? Vocês querem?” . Em troca, ele pede
respeito, reconhecimento e divulgação do “serviço”: “[...] Fala pra todo pessoal que é
verdade” (SILVA, 2008).
Na competência, o manipulador não pode simplesmente querer ou dever ser mais
experiente, ele precisa de fato saber ser mais experiente no mato ou na vida. Na hierarquia
familiar ou na questão da discrepância com a idade e a experiência do narrador, os ouvintes se
tornam uma presa fácil, pois como argumentar com alguém que já viveu 85 anos ou é o
familiar mais antigo, um bisavô ou tataravô? Duvidar, neste contexto, não seria apenas um
confronto de pontos de vista, mas sim uma quebra de uma “regra” sócio-cultural.
Na performance, há o que chamamos de perdas ou de ganhos, quando o narrador
estrategicamente faz com que os “lucros” e “prejuízos” sejam divididos. Ele “vendeu” sua
experiência “sem ônus” algum, consolidando sua posição de líder, enquanto os ouvintes
“pagaram” com o respeito e a audição o bem precioso que ganharam “gratuitamente”: mais
experiência.
O percurso da manipulação experimenta seu fim discursivo na sanção. Segundo
Barros (2005): “[...] O sujeito reconhecido como cumpridor dos compromissos assumidos é
julgado positivamente e recebe uma retribuição. Já o sujeito desmascarado, por não ter
executado sua parte no contrato, sofre o julgamento negativo e punição [...]”.
Recompensas e castigos são divididos, quando sanções negativas e positivas
acontecem para os actantes. Para o narrador, Otacílio Silva (2008), desrespeitar as forças
espirituais do mato “[...] Eu 'tava' caçando, [o narrador interrompe a fala e faz silêncio] eu
caçava muito e a carne sobrava e dava pra todo mundo [...]” custou um preço muito caro, pois
foi penalizado com a repreensão da natureza: “[...] Foi meu mal [o narrador deixa derramar
lágrimas] [...]”, contudo também foi poupado do fim de seu sobrinho, pois ele não encarou a
natureza, merecendo viver: “[...] Não encara mais ele [...] Nunca mais eu cacei [...] Eu ‘tou’
vivo”. Para os ouvintes, o “prêmio” seria desfrutar dos conselhos deu um sábio.
A última etapa do percurso gerativo do sentido é a análise da estrutura discursiva
que, para Barros (2005), é o patamar mais superficial, ou a concretude do discurso por meio
da manifestação textual. Valor e significados serão atribuídos às palavras-símbolos ou à
enunciação do discurso. É preciso, deste modo, definir os seguintes processos de
57
discursivização: actorialização, temporalização e espacialização. Tais categorias estabelecem
relações e são instrumentais para a leitura das marcas deixadas pelo texto.
Apropriando-se da experiência alheia ou tecelão de uma malha discursiva
intertextual, mas nem por isso acrescentando informações individuais, na actoralização, o
narrador da história bem mais do que uma personagem, figurativizado como actante, perde
qualquer vínculo com a neutralidade ou com a verdade ao “vender” em primeira pessoa um
discurso que não engana, mas sustenta algo verossímil, criando efeito de verdade : “Eu dou
graças a Deus 'tá' vivo [...] mas eu garanto: é verdade e aconteceu comigo[...]”. Ainda na
actoralização, o narrador se utiliza do recurso da breagem, para estabelecer um contexto de
conjunção com os ouvintes. Para tanto, ele utiliza o que Jakobson (2005) chama de função
fática da linguagem. A todo instante ele checa a comunicação, despertando ou convidando os
ouvintes para se manterem atentos ao “causo”, e ao mesmo tempo, checando se o sentido que
ele dá à narrativa é o mesmo que está sendo percebido por seu “auditório”: “[...] Ei [...]
Querem? [...]”. A utilização deste recurso lembra o “gancho” jornalístico.
Na temporalização, há três modalidades de presente que se concretizam na narrativa.
Há a memorialização de um fato do passado que se faz presente, pois o encontro do narrador
com o curupira se fez presente na experiência recente e desastrosa do seu sobrinho, ainda que
os destinos tenham sido diferentes. Há o presente que se faz presente, ou melhor, o narrador
em suas interrupções faz uma adequação da história ao auditório que está a sua volta. E há,
finalmente, o tempo da espera ou um futuro que se faz no presente. O narrador espera o
reconhecimento de quem o ouve, tanto no sentido da veracidade da história, como também, na
questão de que é uma figura essencial para a comunidade.
Na espacialização, o discurso do contador de “causos” se assemelha às narrativas
míticas ao traduzir o lugar onde mora – a Comunidade de João Pilatos – como um campo de
provas das culturas míticas: “As pessoas reivindicam a terra criando sítios sagrados,
mitologizando animais e as plantas [...] eles investem a terra de poderes espirituais. A terra se
torna uma espécie de templo, um lugar de meditação [...]” (CAMPBELL, 1990).
Manipulações de outros narradores-actantes que compartilham dos entendimentos
sobre a suposta existência do “curupira estuprador”, para consolidarem suas lideranças,
podem ser problematizados à luz da simbologia. Nas narrativas de Antonio Farias, que se
confundem com as histórias de Otacílio Silva – uma enunciação híbrida de várias vozes- duas
situações não passam despercebidas pelo auditório: sua cegueira e um inseparável “cabo de
vassoura”.
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Figura 8: Antonio Farias
Para Chevalier & Gheerbrant (2009), a cegueira é o “privilégio” daqueles que
conhecem uma luz interior ou uma realidade secreta e proibida aos mortais, desmistificando
visões pejorativas que a associa à punição divina ou “castração” do direito de viver. Para o
narrador herói Antonio Farias, sua cegueira limitou seus movimentos e o tornou inapto ao
mundo material. Ele entende que foi compensado sensorialmente “sonhando acordado”, ao
enriquecer criativamente suas narrativas e as dos outros: “[...] é chato esse glaucoma [...]
agora eu preciso de todo mundo [...] a única coisa boa é que minhas histórias estão mais
coloridas [...] eu invento mais [...]” (FARIAS, 2008). Da literatura clássica à contemporânea,
a cegueira é metáfora que fascina e rediscute certas temáticas. Édipo rei, Tirésias e Homero
se, por um lado, experimentaram um sentimento de perda, por outro, foram agraciados pela
possibilidade de evocar e amadurecer outros sentidos. A cegueira foi a oportunidade destas
personagens de enxergarem o que não está simplesmente diante dos olhos.
Em Saramago (1995), a cegueira é tratada à luz de uma cegueira coletiva
acometendo aos que possuem o sentido da visão, mas insensíveis às riquezas de detalhes de
uma narrativa, como, por exemplo, as de Antonio Farias. Para o escritor português, o cego
em meio de suas trevas, talvez leve mais luz e verdade para os que “desfrutam” precariamente
da visão: “[...] Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos
que, vendo, não vêem [...]”.
59
O inseparável cabo de vassoura ou para outros olhares o cajado de Antonio Farias,
bem mais do que um instrumento de sustentação, é outro objeto signo podendo ser lido como
o bastão do “pastor” ou de um tutor apontando os caminhos para seus ouvintes, afugentando-
os das influências perniciosas. Também, para Chevalier e Gheerbrant (2009), o “cabo cajado”
pode representar uma paisagem cultural de feições falocêntricas, especialmente se comparado
ao ofício de narrar nas ilhas de Ananindeua. Diversos depoimentos femininos me foram
negados durante meu convívio com essas moradoras. É mote nas suas falas a “desculpa” de
que estão muito ocupadas para contar histórias e nada melhor do que ouvir, nestes casos, os
homens mais velhos.
O projeto de manipulação do narrador desnudado nesse fazer interpretativo, modela
comportamentos, mobiliza energias e legitima sua duradoura liderança. O poder prova do
imaginário na medida em que técnicas de manejo das representações simbólicas, como talvez
o ato de narrar, sejam reservadas a determinados guardiões.
Partindo do princípio “Maquiavélico” de que “governar é fazer crer”, a força de
sedução desses discursos fabrica situações individuais, acabando por se tornar “consciência
coletiva”, como no selo de qualidade atribuído às narrativas da região. Quem narra com
maestria são os homens velhos.
As “recordações” despertadas pelo “estupro do curupira” são regradas com certas
doses de “esquecimentos”, expressando uma memória que não se assenta na “palavra por
palavra”. Pelo contrário, é instrumento de instabilidade e maleabilidade. Quando alguns
ouvintes dessa narrativa procuram obter maiores detalhes ou desejam saber se houvera
testemunhas da aventura empreendida pelos narradores heróis, percebi o uso de uma certa
“amnésia” intencional: [...] Faz tanto tempo que nem me lembro direito dos outros [...] eu
‘tava’ preocupado em me salvar [...] mas eu garanto que é verdade [...] (SILVA, 2008).
A “manipulação” da memória social não é um “privilégio” das sociedades que
exercitam fortemente a oralidade. Não nos esqueçamos também das memórias eletrônicas32
fortemente controladas por propósitos ideológicos.
Outro detalhe do fazer persuasivo dos contadores de “causos” é o encantamento do
cipó titica, o recurso que afugentou o curupira. Cipós que salvam e rezas que curam fazem
parte do limiar entre o real e o imaginário que tanto o narrador conhece e domina. Ele é capaz
nos dois mundos, assim como, indiretamente diz a seus ouvintes que o conhecimento não se
restringe aos saberes paradigmáticos, ou como bem diz o narrador, o saber da Escola. Ser um
32 Refiro-me aos mass médias
60
guia de conduta é absorver e saber usar o conhecimento empírico. É saber usar as forças do
mato a serviço do homem. “Se quiserem eu mostro como é e o cipó titica não serve só pra
encantar, ele é usado na nossa arte [...]”. (FARIAS, 2008)
Apropriar-me da sequência proposta por Greimas (2008), não deve ser considerada
uma leitura plena, conciliatória, definitiva ou uma “camisa de força” na qual faz caber a
narrativa e uma possível leitura a todo e qualquer custo. Inúmeras possibilidades devem ser
levantadas, para permitir, e apreender a forma específica que a narratividade assume em um
dado texto. Feita essa modesta incursão pelos domínios do plano do conteúdo, tal como
propõe a teoria Semiótica francesa, pude perceber que um texto, seja ele de que natureza for,
se constrói com uma superposição de níveis de profundidades diferentes, em um processo de
invariância crescente (do nível superficial ao mais profundo), sendo cada uma das etapas
suscetível de ser descrita e explicada por uma gramática autônoma, embora o sentido do texto
dependa da relação entre estes níveis.
Bakthin (2002) é apropriado para lembrar que todo texto, sendo polifônico, é
composto de inúmeras vozes, permeando todo o seu discurso. Se são múltiplas as vozes,
múltiplos são os textos e múltiplos são os leitores.
Nas leituras e releituras dos “causos”, ampliei a minha proficiência enquanto leitor,
que em uma concepção mais moderna, deve ser um agente ativo no processo de construção
dos sentidos. Dessa interação entre texto-autor-texto-leitura-leitor-texto renasci como leitor
crítico capaz de encontrar outros sentidos em um texto e estar convencido de que há mais.
Meu limitado horizonte de expectativas sobre o “absurdo de uma criatura da
imaginação estuprar um ser real” foi transformado. Inicialmente, procurei inserir os “causos”
no esquadro de horizontes dos meus valores. A narrativa perturbou esse horizonte, se
distanciando do que esperava por hábito: uma mentira. Convivendo tão próximo dos
encantadores e dos encantados, percebi que “nos jogos de poder”, nem o terreno do
imaginário é desprezado. Transportei essa lógica local para outros contextos, e minhas
expectativas se ampliaram, compreendendo melhor também o funcionamento do “cabo de
guerra da vida”.
3.3 O IARA BRANCO E O IARA PRETO: ESTABELECIDOS E OUTSIDERS?
Sob alguns aspectos, eles são iguais no mundo inteiro. A pobreza – o baixo padrão de vida – é um deles. Mas existem outros, não menos significativos em termos humanos, dentre os quais figuram a exposição constante aos caprichos das decisões e ordens dos superiores, a humilhação de ser excluído das fileiras deles e as atitudes de deferência instiladas no grupo “inferior”. Além disso, quando o diferencial de
61
poder é muito grande, os grupos na posição de “outsiders” avaliam-se pela bitola de seus opressores.(Elias & Scotson, 2000, p.28)
As Iaras ou os Iaras, como costumam denominar os contadores de “causos” e de
assombrações das ilhas de Ananindeua, são criaturas míticas que desde os contos homéricos
às Vênus da Amazônia, enfeitiçam e atraem, com seus cantos e suas aparências quase
femininas, os pescadores da região para as profundezas dos rios e dos igarapés.
Encantados pela voz da deidade fluvial, pescadores narradores adicionam novos
“ingredientes” ao “causo”: Era lua cheia, uma calmaria, nenhum peixe beliscava as iscas [...] aí deu um puxão na linha e era dos ‘grande’. Não dava conta, pedi ajuda. Puxamos um bicho grande de mais de dois ‘metro’. Era preto, feio [...] Ah! 'o' iara 'é' de dois tipos que 'aparecem' por aqui nos rios. Meu sobrinho viu duas lá na beira do rio. Ele ficou apavorado. 'Era' duas brancas. A branca não faz mal. A que faz mal é a preta [...] Ah! Essa mata. Ela fica próxima do mangues e não deixa a gente levar caranguejo pequeno [...]33
Esta cena fluvial, partindo, de uma incursão Literária pelos campos da Sociologia,
revela uma sociodinâmica das ilhas de Ananindeua semelhante à descrita em Winston Parva,
nome fictício de uma cidade da Inglaterra, na qual Norbert Elias e John L. Scotson
produziram um trabalho, publicado no Brasil com o título de “Os estabelecidos e os
Outsiders”. O estudo explica as relações conflituosas desenvolvidas entre dois grupos
residentes na cidade. Um grupo, reconhecido como establishment local, exclusivamente pelo
critério de antiguidade, o outro composto por moradores novos, reconhecidos como outsiders.
Partindo dessa situação, nos jogos de poder das ilhas de Ananindeua, algumas
situações descritas por Elias Norbert como a coesão, cisões grupais, preconceito e
reconhecimento são identificadas nas práticas sociais do lugar, configurando ideais sem a
pretensão de apontar julgamentos e conclusões sobre esses comportamentos.
Geralmente, o Iara branco é citado como uma criatura amorfa e contemplativa. Ele
não mata, não pune nem ousa ferir os pescadores da região, assistindo passivamente todo tipo
de prática pesqueira inclusive às consideradas ilegais, como a coleta do caranguejo no período
do defeso. O Iara “preto”, por sua vez, é considerado uma criatura perigosa reagindo a
qualquer prática de pesca, inclusive as das crianças. Ele mata, mutila, pune “sem dó” os
moradores se configurando como um desenho comportamental negativo para todos.
Antíteses a parte, a escassez da pesca na região é uma preocupação que vem
promovendo novas práticas de trabalho, como a de atravessar o rio em direção à cidade para
33 FARIAS, Antonio: 12 de abril de 2008. Ananindeua. Entrevista concedida a Hiran de Moura Possas.
62
“arranjar emprego de carteira assinada”. Por outro lado, a crescente falta de moradia na região
metropolitana de Belém vem contribuindo para que “novos” moradores, principalmente os
que promovem ações de invasão, estejam ocupando espaço das regiões das ilhas de
Ananindeua.
Coube aqui, deste modo, ilustrar em que medida a relação entre os estabelecidos e os
“outsiders” na obra de Elias Norbert auxiliou-me a repensar as relações de poder entre grupos
de moradores “antigos” ou “novos” das ilhas de Ananindeua.
Uma lógica de normalidade comportamental estabelecida pelos moradores “antigos”
se assenta nas atitudes do Iara branco. Amorfas e passivas, as famílias dos pescadores
ignoram a pesca ilegal no período do defeso sob a justificativa de que denunciar ou “colocar a
boca no trombone” seria o mesmo que retirar o “prato de comida dessas famílias”.
Assumir comportamentos semelhantes ao Iara preto, ou melhor, sair da neutralidade,
do silenciamento e da “cegueira”, é optar por uma imagem “negativa”, quebrando o pacto
tradicional de silêncio da comunidade sobre a pesca no período do defeso, além de promover
corrosão na coesão da “maioria”. A reputação do outsider questionador e do crítico é ruim
desaguando no isolamento, na exclusão e em atitudes mais agudas, expulsão da região.
O alto grau de coesão das famílias identificadas com o Iara branco dita as normas
sociais do lugar e reinventa a definição de tradição, porque optar por outras formas de
trabalho e principalmente criticar aqueles que ainda pescam, sejam em que circunstâncias
forem, é “apagar” o passado, esquecer “dos que já se foram” e queimar os arquivos
memoriais da comunidade.
O uso estratégico da simbologia das cores “preta” e branca demonstra o modo sutil,
velado e ambíguo que os portadores desse discurso preconceituoso tratam o outsider. O jogo
social da região é travestido de cores democráticas pelas quais “todo mundo tem a chance de
fazer o que quiser”, principalmente nas práticas de lazer, “na bola”34, contudo, piadas
segregadoras e constrangedoras, revelam quem tem as melhores cartas do jogo: “[...] rapaz, a
gente ‘tá’ quase dando fim ‘pros’ Iaras pretos. Eles estão acabando e deixando a gente pescar
em paz [...]” (FARIAS, 2008).
Nesse contexto esportivo, o riso se torna importante instrumento para verificar de
que lado está “o povo”, indicando a aprovação ou o descontentamento com o desprestígio
dirigido ao Iara preto. As gargalhadas catárticas são orquestradas e uníssonas não havendo
lugar para os sorrisos amarelos35.
34 Uma referência aos jogos de futebol. 35 Seria um sorriso falso, forçado. Desaprovação
63
Também, é freqüente, nos mecanismos de depreciação ao Iara preto situações
assentadas na violência e na morte. Uma fantasia coletiva associa os moradores, que não
simpatizam com as práticas pesqueiras, à violência urbana. Sair das ilhas, trabalhar na cidade
ou vir dos centros urbanos é adquirir estereótipos comportamentais “ nocivos” à comunidade.
Outras formas de deformação para os Iaras pretos estão associadas ao seu feísmo:
“[...] ele é preto, feio, e mais horrível que o branco [...]” (FARIAS, 2008) transportado da
aparência do encantado para o comportamento dos outsiders: “[...] O pitiú, o jeito que nada é
horrível. A gente não quer ele ‘pra’ cá [...]” (FARIAS, 2008).
Uma paisagem cultural é um palco de batalhas ininterruptas pela hegemonia do
poder por meio da memória, não sendo à toa a utilização do esquecimento para excluir
elementos indesejáveis de quem outrora era a memória oficial. Nas “queimas de arquivo”, o
Iara “preto” é uma “vítima” da reconstrução promovida pelo dúctil e complexo mecanismo da
consciência.
Recompor o passado no presente ou as sereias aos Iaras das ilhas de Ananindeua
nunca trarão de volta a narrativa primeva, mas é uma fonte inesgotável de leituras, como a
que tentei realizar sobre às conveniências de um grupo social forte e estabelecido em
detrimento dos outsider em um cenário microscopicamente refletindo situações universais.
Aproprio-me da glocalização36, um construto epistemológico e imaginário que adere
o global ao local, para compreender que as piadas, as insinuações e as depreciações apontadas
para o Iara “preto” podem ser o reflexo de cenas globais ou vice-versa. Olhares
demonizadores repletos de preconceitos e significados extrapolam as fronteiras físicas dos
espaços.
As culturas das ilhas de Ananindeua não são e nem podem ser compreendidas como
algo institucionalizado, fechado e ligado a um paradigma universal. As culturas de um modo
geral são elementos, vínculos, e significados que os homens semeiam entre si. Compreendê-
las por esse viés, foi um exercício epistemológico que me aproximou de uma proposta
interpretativa para a cultura37. Se as culturas, isto é, as linguagens e os códigos existentes
entre os homens devem traduzidos ou interpretados, cabe aos pesquisadores orgânicos ter a
sensibilidade para perceber e respeitar outros sujeitos culturais estando tão próximos de nós. 36 Termo usado por: CANCLINI, Néstor Garcia. A globalização imaginada. Tradução Sérgio Molina. São Paulo: Iluminuras, 2003. 37. GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. p.15: “O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como sendo uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado”
64
3.3 MATINTA MUNDIADA OU MUNDIALIZADA?
“[...] se eu for ao encontro do outro não serei mais eu mesmo, e, se eu não for mais eu mesmo, perco-me de mim! [...] como ser a si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro ser perder-se a si mesmo? [...]” Édourd Glissant
O “causo” da Matinta “Perera”, longe de repetir nas falas dos narradores em questão
fatos descritos em outras histórias similares espalhadas pela Amazônia, nos revela algumas
“pistas” de como os moradores das ilhas de Ananindeua costumam desenhar seu retrato
identitário.
As transformações experimentadas pela Matinta, desde sua forma humana - a velha
de aspecto horrendo - até o pássaro de silvo poderoso, também se repetem na vida dos
moradores da região, tornando-os criaturas híbridas resultadas de fugazes identificações em
curso.
A trajetória espaço cultural dos moradores se confunde com as das Matintas. Boa
parte desses sujeitos sociais veio do nordeste brasileiro para as ilhas, seduzida pelas
“oportunidades” anunciadas no período do ciclo da borracha: [...] Lá, principalmente no
nordeste brasileiro, já contavam essa história. “[...] Ela perturbava meus avós na viagem pra
cá. Ela vinha na forma do pássaro e meu avô quase morreu perturbado. Não agüentava mais o
assobio e não tinha mais fumo pra negociar com o bicho [...]” (SILVA, 2008).
A identificação do morador com a Matinta não se limita às questões históricas, pois
“[...] qualquer vizinho meu pode ser uma Matinta [...]” (SILVA, 2008). Em algumas situações
não há como determinar que é “gente” e quem é a Matinta. Eles se confundem, se refletem,
projetando uma verdade equívoca para a questão identitária.
Essa simultaneidade idêntica projeta uma reflexão fundamentada na temática do
espelho, tão frequente nos estudos literários, se refletindo sob a forma de uma imagem opaca,
complexa e errática para as identificações, assim como apregoa Édouard Glissant (2005)
quando fala em crioulização em detrimento de mestiçagem. Os efeitos da mestiçagem podem
ser mensurados, enquanto “o mundo se criouliza” imprevisivelmente. Rastros e resíduos
culturais na história narrada não indicam a supremacia de uma raiz sobre outra. Os resíduos
identitários convivem em um circuito cultural não havendo espaço para degradação ou
diminuição de um dos componentes dessa mistura.
65
“[...] hoje, as culturas do mundo colocadas em contato umas com as outras de maneira fulminante e absolutamente consciente transformam-se, permutando entre si, através de choques irremissíveis, de guerras impiedosas, mas também através de avanços de consciência e de esperança que nos permitem dizer – sem ser utópico e mesmo o sendo-o – que as humanidades de hoje estão abandonando dificilmente algo em que se obstinavam há muito tempo – a crença de que a identidade de um ser só é válida e reconhecível se for exclusiva, diferente da identidade de todos os outro seres possíveis [...]” (GLISSANT, 2005)
As deformidades diante do espelho, além de um fértil encontro da Psicanálise com a
Literatura, promovem a erosão de identificações pautadas no refúgio cultural, abrindo a
possibilidade de perceber o morador Matinta sob a ótica do mito da “democracia identitária”
da qual seu principal expoente é Macunaíma, o herói sem caráter.
Na obra marioandradiana - uma rapsódia cultural - se entrelaçam lendas ameríndias,
africanas e portuguesas formando uma colcha de retalhos discursiva. Macunaíma funde suas
brincadeiras com lendas, canções, provérbios e superstições numa saga folclórica de um
Brasil plural, como as quadras populares utilizadas: “[...]Faz três dias que não como, Semana
que não escarro, Adão foi feito de barro, Sobrinho, me dá um cigarro [...]”38.
A história da Matinta das ilhas de Ananindeua segue um raciocínio semelhante. O
“causo” flui de uma série de outras narrativas brasileiras relatando a existência de uma
"assombração" ou "visagem" que assusta as pessoas e pode até provocar-lhes a morte; noutras
é uma mulher que vira passarinho assobiador; ou uma preta velha, maltrapilha, cujo assobio
arremeda seu nome: Mati-Taperé.
“[...] Existem os que estudam para "virar Matinta”, segundo uns; já outros afirmam que Matin(ta) é uma maldição que a pessoa carrega por toda vida, como a licantropia*. Nos interiores paraenses muito se crê nessa versão. Em muitos lugarejos a existência dessa bruxa cabocla que se transforma em gato [...]” (OLIVEIRA, 1984)
A antropóloga do Museu Emílio Goeldi Adélia Engrácia de Oliveira (1984) registrou
informações que se assemelham à fala do contador de “causo” Otacílio Silva: “[...] uma pessoa é Mati quando "possui diversos calombos no pescoço, como um colar", uma espécie de caroço que cresce na costa da pessoa que está para transformar-se em Matinta. Esse caroço não é percebido por ninguém, mas a pessoa "sente", e quando ele "amadurece", abre-se e dele sai asas e a pessoa pode voar [...]”
A Matinta “Perera” é um dos mitos mais interessantes e menos estudados no cenário
acadêmico, até porque seus depoentes sentem verdadeiro temor ante a possibilidade da
checagem das informações. O pesquisador não pode confirmar e colher uma variedade de
depoimentos diretos, nem sequer sondar o indivíduo supostamente apontado como Matinta, 38 ANDRADE, M. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. 16. ed. São Paulo, Martins Editora S.A., 1977.
66
sob o risco de promover “desgraças” à comunidade: “[...] É melhor a gente parar por aqui.
Mexer nisso é dor de cabeça e bronca pra todos nós [...] deixa isso ‘pra’ lá [...]” (SILVA,
2008).
Meu encontro com Edgar Morin39(1991), um contrabandista dos saberes,40 talvez
resuma minhas impressões sobre os moradores Matintas. O teórico francês define a
humanidade como criaturas prosaicas e poéticas. Entendo como sujeitos prosaicos, aqueles
que fazem parte de uma narrativa consensual. Os moradores das ilhas de Ananindeua são o
que precisam ser em determinados momentos, às vezes ribeirinhos nas mesas de negociação.
Quanto ao fato de seremos poéticos, percebo a rebeldia da poesia que não cede às amarras ou
aos paradigmas, na medida em que negam imagens identitárias pautadas em traços étnicos ou
mumificações culturais, não existindo espaço para identidades fundamentadas em
especulações etnoculturais, por meio das quais a mesma língua, mesma territorialidade e
mesma religião compartilhadas definam uma “família” cultural.
Os moradores das ilhas de Ananindeua são pessoas inclassificáveis; massas
heterogêneas; um manancial de estranhos, desconhecidos. São ribeirinhos urbanos, oprimidos
e opressores nas suas idas e vindas dos jogos sociais que não merecem, por parte da academia,
estudos etnicizadores.
O exercício de uma leitura identificatória livre de propostas monoidentificadoras
desatou-me das “amarras” de “[...] confessar [...] raças, ideologias e religiões – se não em
tribunais, ao menos em formulários oficiais. As políticas são feitas em torno dessas etiquetas
[...]” (THOMSON, 1997).
Os moradores das ilhas de Ananindeua não precisam ser rotulados de ribeirinhos
para disporem de uma Escola digna e, sobretudo sensível às suas vozes. Infelizmente, a
realidade de suas vidas é ainda ignorada e desprezada. Uma interpretação é necessária para a
busca incessante da tomada de conhecimento de suas diferentes estruturas simbólicas, tendo
como parâmetro sua dinâmica social e sua “lógica” glocal. Não poderei tomar conhecimento
plenamente de qual o sentido (se é que há) “lógico” nos seus discursos performáticos, mas
ouvi-los, nos seus contextos, nas suas temporalidades experienciadas e nas suas tensões
sociais é a tarefa mínima das pesquisas que se dedicam às interpretações e às descrições
densas. “[...] Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os
39 Refiro-me especialmente à obra “Os sete saberes necessários à educação do futuro” 40 Morin não rotula sua atuação intelectual, podendo ser ora filósofo, ora antropólogo ora sociólogo
67
comportamentos, as instituições e os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é descritos com densidade[...]”41
41 GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. p.24-25
68
4.0 O “CAOS” É BELO: O ORAL NO ESCRITO
4.1 UM POETA ASSALTADO PELAS MEMÓRIAS DA ORALIDADE
“Tomado por ânsia extrema
o poeta o peito escalavra e lança o grão de poema
no fértil chão da palavra... Antonio Juraci Siqueira
A Poesia, as palavras e o fazer poético são nômades, tomando por assalto os mais
recônditos lugares, desde seus repousos na voz, nas performances, até suas presenças vivas
nas mais diversas representações do signo escrito.
Despido dos formalismos eurocêntricos e “parido” das terras do Grão-Pará, Antonio
Juraci Siqueira, “o filho do boto”, se apropria do verdevagomundo42 para transitar pelas
margens do oral no escrito.
Figura 9: Antonio Juraci Siqueira
Seus sonhos, como bem diz o referido poeta, emergem do seu fazer literário criativo
como piracemas ávidas para desovar e procriar. Seus “causos” ou suas “acontecências”,
híbridos de múltiplas vozes das experiências alheias, retratam suas “andanças” pela
Amazônia:
42 Melhor expressão não há do que a do escritor Benedicto Monteiro para a Amazônia.
69
“Espetáculo! É como classifico as lembranças guardadas na memória das antigas manhãs a bordo da ‘flor do Cajari’: canoas freteiras à levantando âncoras para reiniciar viagem. Velas de todas as cores, tamanhos e formatos. veros poemas concretos! Borboletas coloridas voando sobre as águas revoltas do meu sempre amado Marajó. Hoje, quando navego por essas águas seculares, tais lembranças vêm à tona em meio ao burburinho dos barcos, canoas, montarias e cascos motorizados [...] Cadê as canoas freteiras com suas velas coloridas? Cadê caboclo ribeirinho remando? Navegam nas águas turvas da memória deste velho ribeirinho que ainda teima em trazer à luz tais lembranças engolidas por essa boiúna faminta chamada Tempo [...]”43
Menino de Cajari44, assaltado por suas memórias da infância, pinta pela voz escrita
cenários de rara beleza para a Amazônia e especialmente para o Marajó, mais conhecido pelas
obras dalcidianas: “Uma das brincadeiras prediletas de minha infância às margens do Cajari era acompanhar de montaria, rio abaixo e rio acima, meus barquinhos de mututi com velas de papel. Os barquinhos eram entalhados por mim na sapopema do mututizeiro [...] Casco devidamente entalhado era a vez dos acessórios: mastro, mastaréu, gurupé, cordames de fios de embira, vergas e bujarronas de papel e a quilha removível de paxiúba, colocada na posição adequada a cada tipo de manobra. Ficava horas tangendo minha esquadra sob o sol escaldante até dona Esmeralda, minha mãe, aparecer no trapiche, arrimada no temido galho de cuieira, último argumento aceito sem apelação pelo caboclinho tuíra do sol [...]”45
Preciso como o corte de um açougueiro46, sem a pretensão de agradar a gregos e
cabanos, tematiza a capital paraense, um “mundongo-de-meu-deus”, sem ser arrebatado ou
seduzido pelo exotismo e pelos reducionismos.
De mão beijada, distribui corações pela cidade, proporcionando “adivertimentos” e,
sobretudo, mostrando que não há fronteiras entre o norte e o nordeste brasileiro com o seu
cordel nortenordestino de feições secas e molhadas: “Virgem Mãe de Nazaré, Iluminai meu roteiro Para contar este causo Tão singelo e verdadeiro De um menino que escutava As estrelas e sonhava Um dia ser canoeiro [...] Nasceu e cresceu às margens De um rio, nos cafundós De Judas, ouvindo histórias Narradas por seus avós.
43 SIQUEIRA, Antonio Juraci. Acontecências: Crônicas da Vida Simples. Belém – Pará. [s.n], 2010. 44 Distrito do município de Afuá situado na extremidade norte-ocidental da Ilha de Marajó/PA 45 Ibid, p.p 08 e 09. 46 Segundo Antonio Juraci: À época eu trabalhava no açougue do João Roque [...] matadouro localizado às proximidades da Fortaleza de São José (Amapá).
70
Viveu sem traumas, sem mágoas, Tomando banho nas águas, Da floresta ouvindo a voz [...]47
Trovas, com recheio de poesia e emoção, distribuídas em troca de “vales afeição ou
atenção”, abrigam expressões, palavras e memórias da oralidade, procurando conceder para as
visões estrábicas dos estudos literários, luz ou a possibilidade de convivência pacífica e
harmoniosa do mundo das letras com o mundo das vozes. “Se o mundo quer calar-me, eu não hesito: recorro à trova e crio um mundo novo onde ponho o calor e a voz do povo um punhado de humor, um beijo e um grito...48
4.2 A VOCALIDADE DO POETA DE CAJARI
“Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz. Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos. Essa percepção, ela está lá. Não se acrescenta, ela está. É a partir daí, graças a ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo semântico do texto, aproprio-me dele, interpretando-o, ao meu modo; é a partir dela que, este texto, eu o reconstruo, como o meu lugar de um dia”
Paul Zumthor
Performático, sua voz emana de um corpo franzino, ganhando amplitude além da
derme, semelhante à performance dos contadores de “causos” e de assombrações das ilhas de
Ananindeua.
Escandir as trovas de Antonio Juraci Siqueira é uma tentativa frustrada de determinar
os múltiplos movimentos do seu corpo acompanhados de seu inseparável chapéu de boto,
expressando um ninho de ânsias sobre as águas seculares da Amazônia.
Ainda sobre suas ações performáticas, percebi, à convite do Poeta, uma ressurgência
das energias vocais da humanidade sem as repressões ou as interferências do seus fazer
poético escrito. Não observei, como no discurso dos poetas rapsodos das ilhas de Ananindeua,
uma resposta revanche para o curso hegemônico da escrita. Pelo contrário, vibravam e
alimentavam, no corpo do poeta de Cajari, versos outrora reclusos em suas trovas grávidas de
significados, ganhando vida nos olhares, nas palmas e nos sorrisos de seus mais variados
ouvintes:
47 SIQUEIRA, Antonio Juraci. O menino que ouvia estrelas e se sonhava canoeiro. Belém, PA. [s.n], 2009 48 Fragmento do poema “Um pássaro a cantar dentro de um ovo”
71
“Eu vou contar a vocês uma historinha legal do tempo em que não havia rádio, tevê nem jornal que fala das artimanhas, e das incríveis façanhas de um tal bicho folharal. essa história aconteceu antes dos contos de fada, tempo que os bichos falavam, a mata era respeitada e os homens, nossos avós, não tendo grana nem voz, não davam palpite em nada [...]49
Seu corpo poético é um suporte de experiências vividas concretizadas por palavras e
expressões tão comuns aos antigos. Barquinhos de mututi50, sementes de ucuúba51, andiroba52
e de pracaxi53 revelando o seu sacrossanto respeito aos saberes da experiência e às poéticas
anônimas dos “tapuias ou não de sete costados”: “[...] Mesmo quando escrita, a linguagem era
(é ainda, sem dúvida, para muitos) sentida como vocal [...] (ZUMTHOR, 2000).
Concordo quando Zumthor (2000) defende a ideia de que a oralidade experimenta
uma nova era diferente da tradicional, apresentada pela recriação da experiência alheia.
Antonio Juraci parece ser figura representativa desse ato recriativo, concedendo ao mundo
Amazônico o privilégio de se apropriar de memórias orais para manifestar seu artefato
poético.
4.3 CURUPIRANDO AS TRILHAS DO IMAGINÁRIO
“O imaginário é o perfume do real. Por causa do odor da rosa eu digo que a rosa existe”
René Barbier
49 SIQUEIRA, Antonio Juraci. O Bicho Folharal. Belém/Pa. [s.n], 2010. 50 O nome Mututi vem da denominação de três árvores leguminosas, subfamília das Papilionáceas; bastante encontradas na Ilha do Marajó. 51 A Virola surinamensis (Rol.) Warb., conhecida popularmente como ucuúba, é uma árvore de cerca de 60m de altura, comumente encontrada em lugares alagados, geralmente perto de igapós. 52 Andiroba (Carapa guianensis Aubl. ) é uma árvore da família Meliaceae. O nome deriva de "andi-roba", a palavra tupi-guarani que refere as sementes desta árvore e que significa gosto amargo. É reconhecida oficialmente pelo Ministério da Saúde do Brasil como possuidora de propriedades fitoterápicas. 53 Pentaclethara macroloba Wild , para as populações ribeirinhas da Amazônia, o pracaxi , nome popular da árvore , é muito usado para o tratamento contra picada de cobras e cicatrização de úlceras.
72
Curupirando54 as trilhas do imaginário oralizado na Amazônia, o poeta de Cajari
parece revisitar as obras de Gaston Bachelard ou dos pensadores pré-socráticos quando
Matintas “Pereras”, Iaras, curupiras, cobras grandes e, especialmente o boto, transitam pelas
temáticas míticas associadas ao fogo, às águas, à terra e ao ar. Devaneios da imaginação
dando trato às suas inquietações, aos medos e às suas“esperânsias”: “Após ter aparecido no quadro: ‘Me leva, Brasil, do Fantástico da rede globo, afirmando ser ‘filho de boto’, muita gente procurou-me para saber da veracidade do fato [...] minha “mãe” é a Amazônia e o boto em questão é o Capitalismo, esse moço bonito que nos seduz, nos enraba e depois nos abandona prenhes de dívidas e dúvidas [...] Quando disse ao repórter que a minha mãe não pulou cerca porque não havia cerca, quis dizer simplesmente que a Amazônia continua escancarada e indefesa à cobiça Internacional. Tem muito “olho de boto” em cima da gente. “É olho de boto no fundo de toda paisagem [...]55
Um simbolismo primordial ou das culturas das “margens” emerge do signo escrito
do poeta marajoara fazendo da tradição instrumento orgânico e em constante processo de
transformação. O “olho de boto” em questão talvez seja lançado por divulgadores de
discursos pseudo-sustentáveis ou sustentáveis para poucos, ao se apropriarem das culturas
locais na reelaboração das suas estratégias de dominação: “Cada sílaba é o sopro, ritmado
pelo batimento do sangue [...]; e a energia deste corpo [...] (ZUMTHOR, 1997 a). “A estrela fita o poeta e pela mão o conduz para a sala dos eleitos e com seu verbo de luz mira seus olhos cansados e diz em versos pausados que a Musa agora traduz: -Ó, meu querido poeta, então você não notou que durante a caminhada pelos lugares que andou entre gregos e cabanos alheio a perdas e danos, canoeiro se tornou?56
Percebo em Antonio Juraci um mediador entre as memórias da voz com a
materialidade das palavras. A voz se torna objetivável, principalmente pelo boto mandigueiro,
maroto, malino e plurissignificativo, traduzido pela infinitude de suas possibilidades poéticas: “Ao povo rogo atenção, A Deus pai, sabedoria Para contar uma história Cheia de ação e magia:
54 Esse neologismo, segundo seu criador, Antonio Juraci Siqueira, tem múltiplos significados, sendo o mais o usual o ato de percorrer, explorar e conhecer a vastidão da Amazônia. 55O texto é um fragmento de umas das crônicas, Nós, os filhos do boto, que fazem parte da obra Histórias a Beira rio. 56 Fragmento do cordel “O menino que ouvia estrelas e se sonhava canoeiro”.
73
- a lenda viva do boto, Ser mandigueiro e maroto Da nossa mitologia. Esse caso aconteceu Não muito longe daqui Numa noite enluarada Às margens do Cajary. Vovó contou-me essa história, Eu a guardei na memória E hoje, em versos escrevi [...]57
O boto do Poeta “marajoara” é astucioso, assim com as palavras oralizadas que, sob
o disfarce de uma escritura primeira, restituem a autoridade das invocações das epopéias ou o
lado épico da verdade que muitos consideravam perdidos ou caídos em desuso com o advento
do signo escrito: “No meio da madrugada de repente ele sumia e a dama com quem dançava também desaparecia. De amanhã era encontrada, Seminua e malinada Sem saber o que dizia.58
Peças arqueológicas garimpadas no mito nosso de cada dia ilustram pela
sensibilidade de um poeta que primeiro ouve para depois se expressar, traduzindo um imenso
e cacofônico coral de vozes acompanhadas de suas experiências com o sobrenatural. “Minha mãe me contou que [...] aconteceu com a prima dela na cidade de Cametá, ou melhor, no interior, num lugar próximo à cidade [...] sua prima estava menstruada, seu irmão pegou uma perema e, para que a mesma não fugisse, o menino pediu para ela furar o casco e amarrá-la com um fio [...] Os dias se passaram e ela começou a sentir os sintomas de gravidez [...] Os meses foram passando até que um certo dia ela sentiu uma dor muito forte, claro, o bebê iria nascer, pensaram [...] Mas para a surpresa de todos, em vez do bebê, nasceu uma perema!59
O científico não se divorcia dos “causos” testemunhados pelo Poeta da divindade ou
do mistério. A verdade para os magnos problemas da humanidade reside na acurada e
paciente sensibilidade do também ouvinte Antonio Juraci Siqueira: “O gostoso é ler ou ouvir cada relato com a mente aberta, despida de preconceitos, de juízo da realidade. Fechar os olhos e imaginar-se na pele de quem conta, sentir seu medo e seu deslumbramento diante do fantástico, do terrível e do imensurável [...]”60
As águas para Bachelard (1997) se mesclam a todas as cores, se misturando a todos
os sabores, a todos os cheiros, combinando diversas matérias, diversos temas, como o das
57 SIQUEIRA, Antonio Juraci. O Chapéu do boto. Ilustração de Waldir Lisboa. Belém, PA. [s.n]. 2007. 58 Ibid, p.p 09. 59 “Causo” registrado pelo Poeta junto a uma aluna da rede pública do Pará: Simone Américo Xavier 60 Fragmento de um depoimento do Poeta na obra: Entre o real e o imaginário.
74
“águas maternais, águas comparáveis ao amor materno: imenso e projetado ao infinito. Não
poderiam também deixar de se mesclar à produção poética do marajoara em estudo. Seu
cheiro, sua cor, sua utilização e sua intensidade são fontes de lembranças e reflexos de
comportamento do homem da Amazônia, contrariando o simples adorno ocupado pela água
em algumas narrativas, consideradas literárias. “Gostava de olhar o rio em sua luta cosntante e costumava dizer: - “Nossa vida é semelhante ao rio que calmo desponta: tem preamar e reponta, possui enchente e vazante [...] Pressentindo que a vazante em sua vida chegava, tudo o quanto produzia com todos comapartilhava pois entendia que a arte tem que estar em toda parte, por isso não descansava [...]61
Quando Bachelard (1994) nos diz que o tempo passa e fica, independente da
paisagem cultural, uma secreta idolatria sobre o fogo se faz presente: “[...] um fenômeno
privilegiado capaz de explicar tudo [...]”, mesmo em tempos que velozmente tudo se
modifica. A temática do fogo é responsável pela aproximação de eixos, em princípio,
inversos. Poesia e o pensamento científico se tornam complementares, até porque o fogo é
mais uma questão social do que propriamente natural: “[...] cumpre mostrar, na experiência
científica, os vestígios da experiência infantil [...]” (BACHELARD, 1994)
Brilhando no paraíso ou nas brasas no inferno, o fogo vive uma pluralidade de
existências, não sendo assim diferente na obra do Poeta marajoara. “[...] A chama da poronga cochilava no seio tumular da noite densa e meus irmãos teciam linha após linha histórias de Iaras e boiúnas, de Mapinguaris e Carunas e até Babilônicas naufragadas em profundos mupéus de pecados [...]62
O fogo tem um caráter cosmogônico quando indica o desejo de mudança, de
transformação, de uma Amazônia que se regenera graças à resistência, à adaptação e à
persistência do seu povo: “Em cada curva do rio, em cada palmo de chão da Amazônia existe um olho
61 Fragmento da obra: O menino que ouvia estrelas e se sonhava canoeiro. 62 Fragmento do Poema Incêndios e Naufrágios.
75
observando o Dragão com seu hálito de fogo, seu discurso demagogo, seu poder de sedução [...] e em cada rosto caboclo existe um índio escondido, enclausurado em si mesmo, discriminado, oprimido, escravo em sua própria terra trazendo o grito de guerra no coração reprimido [...]63
A agitação dos rios, dos igarapés e das árvores é testemunha do sopro criador da
natureza e das “máquinas da voz”64 da Amazônia: [...] Mas o vento, de repente, por maldade ou distração, passou a soprar as nuvens de chuva pra outro lugar e a seca, então, sorrateira, veio chegando, chegando, trazendo a morte no cós [...]65
Água que fecunda a terra e proporciona alimento e renda para o ribeirinho. Quando se
ausenta, a terra e a humanidade parecem experimentar um estado de esterilidade: Água benta, água divina que do céu cai sobre o chão engravidando a semente nas entranhas do sertão. Água-mãe de um poço eterno, água do ventre materno, berço de toda criação.66
A ambivalência dos ventos encontra ressonância em narrativas que destacam o
assobio violento do vento sobre moradias, o grito do ar, e os ventos balsâmicos sopradores de
saúde e renovação. A vida ao sabor do vento: Ar em vento transformado com a natureza a brincar: carrega o pólen das flores, encrespa as ondas do mar, beija a palma do coqueiro, enche a vela do veleiro faz o moinho girar!67
Do “tubo sonoro”68 humano, uma matéria fluida, o sopro que fala, traduz a alegria de
respirar ou de estar simplesmente vivo. O ar é comparável a um combustível que alimenta a
capacidade de criar as mais variadas metáforas aéreas e sensações de miragens sonoras:
63 Fragmento do Poema Kararaô. 64 Expressão usada por Bachelard na obra O ar e os sonhos 65 Fragmento do Poema Maré Onírica. 66 Ibib. 67 Fragmento do Poema TERRA, ÁGUA, FOGO E AR - Louvação aos 4 elementos.
76
Mas a vida tem mil faces, põe tento em tuas ações: vê que o ar que respiramos também gera furacões onde havia um mar de rosas, numa alusão primorosa às nossas contradições! Porém se o ar da discórdia virar vento de opressão, a brisa que anima o povo há de tornar-se um tufão com poderes de oceano derrubando o ódio tirano com o sopro forte da ação!69
A Poética de Antonio Juraci dialoga com Campbell (1990) quando demonstra que
“[...] existe uma relação uma relação orgânica entre a terra e as estruturas que as pessoas
constroem sobre ela [...]”, fazendo com que sujeitos culturais invistam sobre seu espaço
poderes espirituais, tornando-o um lugar para a meditação. Eis a Terra! Mãe eterna, pátria dos nossos avós. Semeia nela teus sonhos, teus planos, teu grão de voz. A ela paga os tributos para colheres seus frutos, bem comum de todos nós.70
A presença de um arado ou do contato da enxada “penetrando” a terra com “jeito” e
delicadeza simula o coito nas culturas agrárias, pois a terra – a grande mãe – só gera, para as
culturas de feições míticas, o fruto se for fecundada com sabedoria. Eis a Terra! Mãe amada, mãe de todos os viventes: das baleias, das libélulas, dos carvalhos, das sementes, dos fracos, dos poderosos... Os seus seios generosos amamenta ateus e crentes. Que todos vejam na chuva, na pedra, na flor singela, na mata, num grão de areia, esta mensagem tão bela: - assim como o mar e a serra, nós pertencemos à Terra mas não somos donos dela!71
68 Expressão usada por Bachelard na obra O ar e os sonhos 69 Ibib. 70 Ibid. 71 Ibid.
77
Sobre a terra repousam seus mais representativos heróis que, separados do seu
mundo e chamados para a aventura, são capazes de “dar a própria vida” em favor do bem
estar de sua comunidade. Ao enfrentar os “perigos” que circundam a vida de seus
conterrâneos e uma sucessão de provas, esses “heróis” são capazes, apesar de suas limitações,
de realizar “proezas” físicas e espirituais. Enfrentam criaturas sobrenaturais ou não, sem abrir
mão das forças espirituais, do conhecimento extraído do mato e dos amuletos protetores.
Cipós, palavras mágicas, chás, enfim “remédios da floresta” ajudam na recuperação daqueles
que perceberam a necessidade de realizar de uma missão “sacrificial” que precisava ser
empreendida no campo de batalha da vida para a salvação do seu mundo. Contribuindo para a
concretização da missão heróica, simples objetos ou ferramentas, inclusive as virtuais de que
o Poeta marajoara hoje dispõe, se tornando objetos “mágicos” ao operarem verdadeiros
“milagres” Herói tupinambá procuro, às cegas, nos densos matagais de dor e dúvida meus pais, filhos, irmão, minha Penélope, meu arco amigo e um cais onde ancorar. Em mares vituais hoje navego sem bússola, astrolábio, sem estrelas na velha Argo ora tripulada por argonauta @ ponto com. Das janelas do Orkur Circe espreita, Zeus e Tupã dão cartas no Congresso, Sereias cantam na televisão.
Meus inimigos rosnam de tocaia, meu arco enrijeceu nas mãos do tempo e eu, já sem forças, não o posso vergar...72
4.4 CAOS, ERRÂNCIA E OPACIDADE: O ORAL NO ESCRITO?
“[...] se eu for ao encontro do outro não serei mais eu mesmo, e, se eu não for mais eu mesmo, perco-me de mim! [...] como ser a si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro ser perder-se a si mesmo? [...]”
Édourd Glissant
O discurso fundador de realidades de Antonio Juraci Siqueira, assim como dos
poetas rapsodos das ilhas de Ananindeua, guarda em comum o uso de alegorias-metáforas que
não petrificam a Amazônia. São aberturas secretas revelando uma verdade que não precisa ser
72 Soneto Odisséia Tupinambá.
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testada pelas hipóteses do pensamento cartesiano. É preciso saber ouvi-las! Uma escuta calma
e sensível sobre valores que transcendem qualquer julgamento.
Esse laboratório de experiências ou universo de possibilidades vive no signo de
princípios vitais, a voz viva, que no labor de Antonio Juraci Siqueira se toca com a
materialidade do verbo “[...] a procura de cúmplices para levar adiante a árdua tarefa de
libertar a poesia dos livros, das gavetas e trazê-la à luz, misturá-la ao povo, fundi-la e
confundi-la com a própria vida [...]” (SIQUEIRA, 2010).
Recompondo esse manancial literário do poeta marajoara, o percebi imbricado com a
noção de Caos-Mundo73 associada a uma pulverização do ideal de que a escrita é lei e
sentença no terreno literário. Passar da oralidade à escrita não significa engessar o corpo,
submetê-lo, ou superá-lo, mas sim dialeticamente uma retomada da negociação entre a
abstração da escrita com as memórias da oralidade.
Nessa relação estamos diante de duas peças de um quebra cabeça que se encaixam
em uma cena literária e cultural definida por Glissant (2005) como uma “Totalidade–Terra”.
A dialética da oralidade na escrita constitui, portanto, elementos equivalentes em valor, não
havendo degradação ou diminuição de um dos componentes dessa “mistura”.
Então, a passagem da literatura oral à literatura escrita constitui uma prova iniciática
para conceber o “caos” como belo, ao indicar como um possível paradigma, a categoria
imprevisibilidade, associada ao pensamento, indicando, que, antes de mais nada, a Literatura é
um processo: “[...] Ele não é ser, mas sendo e como todo sendo, muda [...]” (GLISSANT,
2005).
Assim sendo, Antonio Juraci Siqueira sabe ajustar sua "linguagem" a essa situação
“caótica”, construindo um fazer poético que repele a raiz74, se identificando aos rizomas,
aqueles que vão ao encontro de outras raízes, fraturando um universal generalizante para a
questão literária. “No princípio era a ideia [...] Então disse o poeta: - Que haja luz na poesia! E a luz se fez aurora para vencer os tigres que habitam o não-ser das coisas [...] que a emoção caminhe descalça sobre as rimas e que o poema, acima de tudo, seja a medida de todos os sonhos [...] que no futuro todos possam, impunemente, se perder no sudário luminoso do poema [...]75
73 A noção de Caos-Mundo não é de natureza negativa. Ela não significa mundo caótico, desordem. Caos significa enfrentamento, harmonia, conciliação, mas também oposição, ruptura intra e entre a multiplicidade de concepções das culturas que confluem umas nas outras na Totalidade-Terra concretamente realizada graças às revoluções dos povos e das minorias, e graças à revolução tecnológica. 74 Para Glissant, ideia da qual compartilho, a literatura ocidental comportou-se como uma “carta de Caminha” na construção de uma estética redutora, etnocêntrica e de única legitimidade. 75 Orelha composta por Antonio Juraci Siqueira para o livro “Aurora que vence os tigres” de Benilton Cruz.
79
Há margem para uma exploração da dialética da oralidade e da escrita, dentro da
própria escrita. Mas, para que isto seja possível, é preciso que a escrita passe pelas
experiências primevas da oralidade, como bem exercita o Poeta marajoara, numa variância e
multiplicidade infinita de contatos, tecendo um novo imaginário para a fala humana, um sopro
híbrido, experimental ou quem sabe um sopro escrito alimentado pela presença do corpo, dos
gestos, enfim categorias impensadas, anteriormente, para o signo escrito: “[...] é preciso
praticar a errância [...]” (GLISSANT, 2005).
Existe uma escrita encenada na narrativa de Antonio Juraci ou simplesmente o desejo
de estar mais próximo do oral por meio de alguns recursos, dentre os quais as repetições,
reiterações e pela construção de uma atmosfera narrativa marcada por um suspense gerador de
expectativas, o que não exercita simplesmente a justaposição do oral no escrito. Pelo
contrário, os conecta em rede pelo simples paradigma do caos, entendido para o teórico
Glissant (2005) como “[...] poesia sacudida pelo caos [...]” inventada e inventando gêneros
novos “[...] dos quais não temos ainda nenhuma idéia atualmente [...]”. “Na camarinha da “Perseverança”, canoa freteira do Marajó, Manuel Feitosa preparava-se para ir à festa num barracão [...] O locutor da aparelhagem, voz impostada, anuncia, com estardalhaço, o início da festa [...] Seus olhos varrem o salão à cata de dama [...] avança mais uns passos e descobre, finalmente, uma mocinha até que jeitosa [...] – Vamo dançá, dona minina? [...] – Só danço abenetando [...] a frase pega Feitosa de surpresa: nos seus quase quarenta anos, metade deles embrenhado nesse mundo-de-meu-deus chamado Marajó, já havia dançado de tudo [...] Mas nunca viu alguém dançar “abenetando” [...] toma postura e volta à carga: - Pur favur, donazinha, vamo dançá [...] Mas eu já num disse qui só danço abenetando?... [...] – num tem pobrema, meu bem. Eu tombem sei dançá abenetando. Fitando-o pela primeira vez com um par de olhos negros e brilhantes, a jovem ribeirinha encerra o diálogo com a resposta definitiva: - Mas a Bené num ta [...]”76
Algumas questões apresentadas por Glissant (2005) para a Poética do Caos transitam
também no terreno da identidade. Descolonizar significa romper, recusar ou ultrapar,
preceitos pautados na universalidade, nas identidades fixas e unitárias e no monolinguismo,
nos sendo feito um convite que, talvez Antonio Juraci Siqueira tenha atendido para pensar seu
texto literário pela ótica da relação e da pluralidade identitária para a Amazônia, em especial a
região do Marajó. A concepção dessa “identidade” assume múltiplas facetas delineadas por
interações conflituosas e tensas, ao darem origem a um produto literário opaco e errante. O
boto pintado pelo Poeta marajoara ganha esses contornos pelo meu olhar, aparência de sujeito
pós-moderno. EU, O BOTO
76 “Causo” contado para Antonio Juraci Siqueira pelo Poeta Fernando Canto.
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Eu venho de um mundo que tu não conheces; --do onde, do quando, do nunca, talvez... Eu venho de um rio perdido em teus sonhos, um rio insondável que corre em silêncio entre o ser e o não ser. Eu venho de um tempo que os homens não medem, nenhum calendário registra os meus dias. sou filho das ondas que gemem na praia, sou feito de sombras de luz, de luar e trago em meu rosto mandinga e mistério e guardo em meus olhos funduras de um rio. Cuidado, cabocla! cuidado comigo que eu sou sempre tudo que anseias que eu seja: --teus ais, teus segredos tua febre e teu cio... Se em noites de lua sentires insônia e a fome de sexo queimar tuas estranhas, a sede de beijos tua boca secar e em brasa teu corpo meu corpo exigir, contigo estarei na rede de encanto cativo nas malhas da teia do amor. E quando teus olhos fitarem meus olhos, e quando meus lábios teus lábios tocarem, e quando meus braços laçarem teu corpo, e quando meu ser em teu ser penetrar só então saberás quem sou e a que vim. E assim que a semente do amor, do desejo, vingar em seu ventre gerando outro ser, não mais estarei contigo. Somente a minha lembrança permanecerá boiando nas águas, barrentas, confusas de tua memória
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cansada, febril... --Foi sonho? -- foi fato ninguém saberá!...
A identidade-boto77 de Antonio Juraci Siqueira se constrói e reconstrói
constantemente no interior de trocas socias, não havendo espaço para uma essência cultural,
mas sim identidades relacionais ou flutuantes, sendo o mais adequado concebê-la como
identificação.
No contexto da Amazônia paraense pelo qual as cisões espaço-temporais são
inevitáveis, a sua cultura se redefine. Um boto, em situações urbanas, pode ser uma miragem,
fruto de um conjunto de estigmas oferecidos por seus narradores e ouvintes aos olhos do
outro. É também um exemplo de que a globalização, apesar de mais imaginada para os
mercados do que para os homens, também pode ser portadora de discursos que fortaleçam
produções endógenas inseridas em contextos marcados pela convivência de múltiplos modos
de vida.
Debruçado sobre os registros do Poeta “Marajoara” em suas incursões por terras
Amazônicas, lembrei-me de Barbero (2000) ao trazer à tona sua compreensão para a
mediação cultural, espaços intermediários, que permitem a releitura de crenças, costumes,
sonhos e medos, o que talvez traduza a essência do labor literário de Antonio Juraci Siqueira,
ao perceber nas “invencionices” populares pistas significativas para a compreensão “do
mundo que os e nos rodeia”.
A oralidade midiatizada mecanicamente seja no blog do poeta marajoara ou em suas
performances registradas nas páginas do youtube, apesar de certa perda de espontaneidade,
permite, sem dúvida, que a memória coletiva seja diferida, adiada, prolongada, repetida no
tempo e no espaço.
A relevância de um olhar para novas frentes literárias transplantadas para os
ambientes virtuais se insere no entendimento de que as questões culturais não podem ser
associadas ao seu entendimento estático. As práticas culturais sobrevivem graças aos
entrecruzamentos de sentidos, e aos constantes processos de reformulação experimentados.
Portanto, a presença da oralidade amazônica nas produções literárias de Antonio
Juraci Siqueira, mesmo quando mediada pelo espaço da escrita, como veículo de expressão
principalmente de grupos fadados à invisibilidade sócio-cultural, não deixa de refletir um
77 Na obra Entre o Real e o Imaginário, Antonio Juraci Siqueira materializa histórias contadas por alunos da rede pública paraense, demonstrando uma variedade surpreendente de naturezas de boto. Há botos de Muaná, assombrações de botos, mulheres do boto, botos do rio Tauá, boto de Managualzinho, vinganças do boto, botos e mães de santo, boto de Itapecuru até o boto “Ricardão”.
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espaço pelo qual são administrados conflitos oriundos das relações assimétricas envolvidas na
convivência do oral com o escrito. A rigor, isso é uma situação epistemológica recente e
distinta daquilo que outrora me dediquei a estudar e a aprender, tendo a compreensão de que
homem sempre contou e irá contar histórias, antes mesmo de escrevê-las. Em tempos de pós-
modernidade, ou para não entrar na discussão, nas sociedades contemporâneas, o embate entre
o oral e o escrito vem perdendo espaço para a produção de obras híbridas, no sentido de que o
discurso oral vem sendo legitimado no escrito. As oraturas78, na África Ocidental e mesmo na
América latina, vêm se tornando o solo fértil do qual muitos escritores contemporâneos estão
firmemente enraizados, tais como o poeta marajoara destacado nesse capítulo.
Como bem diz Jorge Luiz Borges: “O autor escolhe seus próprios precursores”,
vivendo um momento de “oralidade escrita”79 ou de pelo menos um exercício de
descolonização da/para palavra. Associo esse pensamento borgiano aos estudos de Paul
Zumthor, esperando que essa voz pouco audível da oralidade na escrita ganhe a ressonância
apropriada, que merece, nos estudos literários. “[...] Em condições ótimas de informação, somos conduzidos até o ponto extremo em que a imaginação crítica aspira a alternar com a pesquisa: onde ouço, de repente, abafado mas audível, este texto; onde percebo, num relance, esta obra – eu, sujeito singular que uma erudição prévia tenha (esperemos!) despojado dos pressupostos mais opacos que se prendem a minha historicidade, a meu enraizamento em outra cultura, a nossa... Certamente, em si, caso se chegue a ela, a reconstituição permaneceria folclórica, e não se saberia, tudo contribuindo para isso, verdadeiramente fundar um conhecimento. Parece-me, contudo, necessário que a idéia de sua possibilidade e, se posso dizer, a esperança de sua realização sejam interiorizadas, semantizadas, integradas em nossos julgamentos e em nossas escolhas metodológicas.” (ZUMTHOR, 1993).
78 Expressão usada por pesquisadores africanos, dentre os quais Pius Zirimu. 79 A expressão é usada pelo escritor nigeriano Amus Tutuola
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5.0 AS VOZES SE PROJETAM: PERCURSOS LABIRÍNTICOS, PERCALÇOS, IMPASSES, INCERTEZAS E TAREFAS SEM TÉRMINO
[...] poeta é, assim, quem descobre e faz poesia a respeito de tudo: de gente, de bicho, de planta, de coisas do dia-a-dia, da vida da gente, de um brinquedo, de pessoas que parecem com pessoas que conhecemos, de episódios que nunca imaginamos que poderiam acontecer e até a própria poesia [...]
Marisa Lajolo
Duas frentes de trabalho foram determinantes para que este inacabado exercício
epistemológico chegasse até este momento: uma incursão pelo conhecimento humanístico dos
moradores das regiões insulares do município de Ananindeua e outra pelos pressupostos
teóricos eurocentristas os quais nunca neguei, apenas questionei.
Ser o mais fiel possível à metáfora da jardinagem, cada “verdade” testemunhada foi
desenterrada delicadamente de seus respectivos solos ou de suas especificidades sendo
transplantada para este trabalho de pesquisa orgânica80, sabendo que a paciência, sensibilidade
aguçada e observação seriam fundamentais para que houvesse uma tentativa de germinação
de um pensamento ou de uma razão menos indolente, mais aproximada do “ausente”.
Os paradigmas científicos cartesianos nunca foram excluídos desse exercício de
escrita, até porque a libertação de tais princípios não parece ser para mim e, para alguns
pesquisadores, automática. Existe uma zona invisível em cada paradigma, um atestado para
sua instabilidade epistemológica e um desafio para as pesquisas que não se compatibilizam
com o conformismo cognitivo ou com às domesticações do fazer epistemológico.
Os quatro pilares da certeza positivista foram, ao longo dessa pesquisa,
problematizados: a ordem, a separabilidade, a redução e a lógica, sem seguir um caminho
científico específico, até porque a “libertação” da epistemologia cartesiana é um processo
experimental, como nesse exercício sobre o simbólico e o imaginário de paisagens
sócioculturais historicamente silenciadas, inclusive pela academia.
Aqueles que vivem em condição de invisibilidade social experimentam essa
imposição graças às práticas comuns do conhecimento hegemônico filosófico e científico
ocidental. Amparados em uma racionalidade indolente, arrogante e metonímica, reduzem-se à
multiplicidade mundana, a uma versão abreviada, parcial e seletiva. Nas inúmeras cenas
sociais ilustradas pelo meu olhar, o “ribeirinho” contava sua história na tentativa de entrar em
acordo com o mundo ou de harmonizar sua vida com a realidade. Essa cena analisada, pelo 80 Para pesquisadores como Paulo Freire e Alessandro Portelli, a pesquisa como um experimento de igualdade dificilmente alcançará essa condição, mas pode criar situações de igualdade, como uma entrevista pedindo por isto, ao sabor das memórias sem o compromisso com perguntas prontas e tendenciosas, o que se configura uma tarefa que exige tempo e confiança entre os sujeitos sociais envolvidos.
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prisma indolente, receberia um olhar que vê uma pessoa cultivar a terra com uma enxada não
conseguindo ver nela senão um camponês pré-moderno (SANTOS, 2002).
O mundo natural para essas culturas silenciadas interfere nas práticas sociais e
culturais humanas, possuindo um tempo que lhe é particular com base em suas interações com
a natureza, um tempo mítico. Através do fazer etnográfico, pude compreender que as
populações haliêuticas na Amazônia possuem suas relações econômicas e sociais com base no
espaço e em suas limitações naturais. Essa íntima relação com o “mato” acaba por determinar
dinâmicas para suas relações sociais, possibilitando a construção dos seus saberes, sendo as
suas maneiras, carregadas de uma lógica eficiente no “fazer” com os recursos naturais - uma
ciência do concreto nas vivências e nas experiências do dia a dia com os elementos que a
natureza oferece. O mundo e o lugar se constituem num par indissociável; o lugar é a
categoria concreta real e, portanto o local de existência, de coexistência e de resistência.
No jogo social dos moradores das ilhas de Ananindeua estão imbricadas suas
relações cotidianas com o ambiente natural, tanto em um sentido material para a obtenção de
bens básicos para a sobrevivência, quanto no sentido simbólico relacionado à concepção e às
representações do meio em que vivem. O comportamento que uma dada categoria
socioambiental tem em relação ao ambiente é influenciado por características de sua formação
social, tais como a orientação de sua produção econômica, o grau de envolvimento com o
mercado e a posse de uma cultura de feições mítico-imaginárias.
Quanto aos estudos antropológicos que tiveram forte influência das teorias
evolucionistas, do positivismo e do determinismo geográfico, teorias que procuraram
encontrar razões para a diversidade das sociedades humanas, justificando, e aí recebem suas
maiores críticas, o estágio supostamente “atrasado” dos povos dominados, e ao mesmo tempo,
uma também equivocada situação de civilidade para os povos conquistadores. Os estudos
dessas sociedades “exóticas”, em muitos casos, foram usados como instrumento de
dominação política e discursiva das metrópoles sobre os povos colonizados81: as teorias
evolucionistas impunham a essas sociedades um estigma de barbárie. E, penso eu em pleno
século XXI, que há discursos ambientalistas utilizando as mesmas práticas para as populações
historicamente silenciadas.
81 Pelo contexto de surgimento da antropologia como ciência na era dos impérios, na conjuntura do Neo-colonialismo, e pelo fato de muitas pesquisas etnográficas terem sido financiadas pelos governos europeus e usadas para poder organizarem suas estratégias de dominação, justifico a critica aos instrumentos de dominação do capitalismo sobre outros povos.
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Interrogar e problematizar, seja que verdade for, é abrir caminho para metapontos de
vista, permitindo o desabrochar do pensamento complexo do qual tentei exercitá-lo nesta
pesquisa: “Quanto sofrimento e desorientações foram causados por erros e ilusões ao longo da história humana, e de maneira aterradora no século XX. Por isso, o problema cognitivo é de importância antropológica, política, social e histórica. Para que haja um progresso de base no século XXI, os homens e as mulheres não podem ser brinquedos inconscientes não só de suas idéias, mas das próprias mentiras. O dever principal da educação é de armar cada um para o combate vital para a lucidez”82
Uma das questões que pontuou essa aproximação do saber cartesiano com o saber
empírico da qual resolvi “tatear”, é o identitário tratado sob a luz dos estudos multiculturais,
um ponto de vista que não se associa às representações de um estado de ideias já alcançado ou
pronto e acabado para a temática. Matintas, curupiras e Iaras foram tratados como
significantes oscilantes, signos não esgotados, nem degenerados para as representações que
os moradores das ilhas de Ananindeua atribuem para explicar às suas semelhanças e às suas
diferenças.
O meramente local se degenerou quando percebi crianças navegando da águas dos
rios e igarapés para os ambientes virtuais, fraturando visões abreviadas e equivocadas sobre o
dia a dia do “ribeirinho”. Não coube, portanto, um trabalho arqueológico na busca dos
“fósseis” culturais da região. Ao contrário, esse pensamento naufragou em águas passadas ou
nas minhas iniciais visões redutoras para as monoidentificações culturais da Amazônia. Hall
(2009) empresta suas sábias palavras para essa constatação: “Portanto, não é uma questão do
que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições [...]”.
Com o pensamento descolonizado, percebi que o meu papel era tentar realizar uma
tradução a essa lógica sócioidentitária desses atores sociais. Não desejei transportar
significados da minha lógica cultural para a ilha de Ananindeua. Pelo contrário, o sentido não
é portátil ou fácil de ser transplantado. Essa leitura do identitário desse lugar signo foi
construída por horas de convivência e reflexões solitárias, tentando entender o que estava
acontecendo quando, ao ilustrar esse momento, falava-se incansavelmente dos ataques do Iara
“preto” em alguns grupos de pescadores.
É uma sensação de satisfação e, ao mesmo tempo de frustração, verificar como o
sentido para o jogo social desses sujeitos sociais não pode ser enclausurado ou obrigado a
residir em um simulacro teórico. Ele se nega a esse serviço, impondo, apenas essa parcial e
82 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à Educação do futuro. Tradução: Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortes; Brasília, DF: UNESCO, 2000.
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incompleta leitura que entende a identidade dessa região sendo tecida por relações
assimétricas de poder. Metaforicamente, os Iaras “brancos” ditam as regras, enquanto os Iaras
“pretos” um dia, quem sabe, reverterão essa ordem ou serão “promovidos” a Iaras
privilegiados.
Essa “comunidade imaginada” talvez pelos Iaras “brancos” repele o pensamento
identitário atrelado à origem, “forjando” as questões de pertencimento a um lugar que se
assume em detrimento às essências raciais. São aglutinados, por esse discurso, sujeitos
culturais marcados por idas e vindas de todos os lugares e de lugar nenhum, movidos pelo
interesse em comum da sobrevivência, um circuito de conexões com “outras” culturas. “Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos e “autenticidades”, pois há sempre algo no meio [...] Diante da “floresta de signos” (Baudelaire), nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias [...] Talvez seja mais uma questão de buscar estar em casa aqui, no único momento e contexto que temos [...]” (CHAMBERS apud HALL, 2009).
Essa compreensão também se conecta a pensadores como Paes Loureiro (1995), na
questão literária, ao traduzir em sua poética, uma versão para a cultura amazônica
estabelecida pelo encontro de amazônidas com os nordestinos, principalmente no período da
borracha, pelo qual um imaginário poético híbrido monumentaliza rios e florestas.
Recebido por um olhar desprovido de exotismos, o imaginário dos “causos” das ilhas
de Ananindeua e do Poeta Antonio Juraci, supera a compreensão de que trata daquilo que
simplesmente não existe, uma paisagem cultural avessa à realidade “concreta”. Produzem,
pelos seus verbos poderosos, imagens que explicam contextos sociais, por vezes superando-as
pelo anúncio do real que ainda está por vir ou o possível não realizável no presente.
Um curupira estuprador, uma serra elétrica que ganha vida ou uma Matinta “Perera”
que não tem lugar fixo para morar são imagens de um sujeito social, traduzindo os seus
desejos, seus conflitos, suas aspirações e suas motivações. Representações simbólicas de uma
coletividade que regula o social, designando papéis e identidades, e reelaborando, segundo
suas conveniências, imagens de si. Enfrentar um curupira estuprador ou Iaras “pretos”, são
situações grandieloquentes de um narrador que não quer ser somente herói, legitimando quem
verdadeiramente manda.
Resolvi transplantar as problematizações levantadas sobre as opacas identidades dos
moradores das ilhas de Ananindeua para o plano literário, principalmente absorvendo o
pensamento de que, seja qual for a episteme, não há mais espaço para a redução do outro. Há
sim a possibilidade de um fértil estudo, levando em consideração o encontro de uma
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“inocência” enunciativa primeira com as astúcias enunciativas do signo escrito, libertando
vozes literárias diluídas na categoria do popular.
A racionalidade cartesiana vem fazendo companhia aos estudos literários,
procurando explicar e organizar o outro poético, reduzindo-o e submetendo-o a uma escala
pré-estabelecida: o estranho ou o estrangeiro indigno de uma existência em seu modo
particular de ser.
Transgredir os binarismos hierarquizadores, especialmente os de natureza literária,
não foi e nem será a qualquer exercício epistemológico uma tarefa simples ou alcançável
plenamente. Imaginar um terreno tranquilo para que os paradigmas literários sejam
transgredidos ou questionados não significou desatrelar meu olhar das relações desiguais
existentes no plano social e no plano simbólico.
Como poderia pensar, de forma não reducionista, o terreno do social e do literário se
a classificação dos gêneros literários se insere nas construções hierárquicas que estabelecem
aquilo que é superior e o que é inferior?
O signo é uma arena de luta de discursos, como procurei demonstrar nas cenas
sociais em que os Iaras brancos e “pretos” se fazem presentes. O domínio dos signos é
coincidente aos domínios ideológicos, estabelecendo assimetria de poderes nas relações
sociais nas ilhas de Ananindeua.
Transportada a questão para um nível macro, Selligman (1997) auxiliou-me para o
entendimento de que o signo é um instrumento de manejo para a refração e para a deformação
do ser, aprisionando a arte de um modo geral a uma gramática normativa.
Revendo o capítulo que reservei para o estudo e aprendizagem com o Poeta de
Cajari, Antonio Juraci Siqueira, percebi que tais dicotomias hierarquizadoras, principalmente
a existente entre o oral X o escrito, perdem sentido quando há o entendimento de que não são
inteiramente separáveis. O oral se apodera e perturba o escrito, apontando para a longevidade
de sua existência.
Nos discursos expostos para apontar a sobrevivência do oral diante de suas mortes
anunciadas, fiz o possível para não fazer desse exercício epistemológico um instrumento de
suspensão aos moldes bakhtinianos, pelo qual a diegese de contadores de causos, a qualquer
custo, ganharia status de literário, sinalizando inversões hierárquicas que destronariam
paradigmas eurocêntricos, na promoção temporária do poeta “popular” e “ribeirinho”.
A palavra, seja ela em que suporte estiver, precisa ser libertada dos grilhões de
sentidos. Necessita de liberdade para estabelecer relacionamentos “estranhos”, embora
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fecundos, com campos epistemológicos “improváveis”, experimentado vida fora de suas
condições “lógicas” de compreensão.
Se, em alguns momentos, houve de minha parte a promoção de uma marcha de um
“deus” descoroado – a oralidade – não a considero uma incursão pelas metáforas da inversão.
Procurei, sim, rasurar os binarismos hierarquizadores, imposições que ainda prevalecem no
cenário acadêmico.
Formas literárias impuras, híbridas e opacas revelam a existência de uma linha tênue
entre o oral e o escrito, desconstruindo visões canônicas aparentemente literárias, mas que
advém também das questões sociais.
A pregação de uma incompatibilidade do oral com o escrito se dilui na relação
paradoxal de fascínio e, ao mesmo tempo, repugnância que há entre eles, atestada nos saberes
dos contadores de causos e de assombrações das ilhas de Ananindeua: “[...] são farinhas do
mesmo saco [...]” (FARIAS, 2008). Gêmeos separados por conveniências, imperativos
ideológicos e mercadológicos repletos também de uma polissemia de sentidos.
Atraídos por um desejo natural com lampejos de repulsividade, a Teoria Literária e
epistemologias como a Antropologia, a Sociologia e os Estudos Culturais não conseguem
viver mais segregadas. Esse dialogismo fica cada vez mais claro quando os estudos literários,
colocados sob rasura83, se tornam insuficientes para dar conta das questões das poéticas da
voz.
Nos processos poéticos experimentais, combinações como da categoria corpo ou
gestual com saberes olfativos e visuais advêm de observações que procuraram superar o olhar
primeiro, descuidado sobre o campo do visível para um olhar mais sensível, percebendo
símbolos, imaginários e histórias gestando vidas e conhecimentos. Corpos tradutores de
sujeitos sócio-culturais desafiam os sentidos ultrapassando o campo do visível ou do olhar
despercebido, para se instalarem nas representações dos seus símbolos.
Imaginários sociais, históricos e afetivos – a verdade essencial – dos moradores das
ilhas de Ananindeua encontram significação nos enigmas instalados nos corpos estésicos de
poetas da gestualidade, sempre dispostos a produzir infinitas significações, novas
interrogações, informações e excitações. Meu olhar mais atento percebeu uma necessidade
83 A expressão tem no sentido de incluir a teoria literária em uma zona heterogênea e complexa, na qual, recorrendo à metáfora de Ivani Fazenda na obra “Interdisciplinaridade: dicionário em construção”, o conhecimento é Terra de todos e de ninguém, pela qual são mobilizadas diferentes disciplinas na confecção de um tecido tramado com um sem número de fios, lenta e pacientemente entrecruzados, articulados, sucedendo-se um ao outro, em um movimento sincronizado, fornecendo a forma, a cor, a resistência, a beleza e a funcionalidade que o processo de sua construção engendra.
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inicial de atenção, principalmente com o desejo de ensinar, extrapolando o simples ato de
frequentar uma Escola e assistir às aulas.
As linguagens desses corpos não se encontram aprisionadas nesses corpos. Elas
dizem a todo o momento. Muitos as escutam, mas infelizmente ainda percebo as Escolas da
região cegas ao muito que diariamente é dito. Essas significações estão disponíveis para as
práticas educativas da região, inclusive as paradigmáticas, porém é preciso um olhar dessas
Escolas mais estético, sensível e atrelado às questões culturais.
A compreensão desses corpos poéticos e culturais traz a tona documentos de carne,
“bibliotecas” vivas, algumas já perdidas, como a do morador das ilhas de Ananindeua,
chamado de seu Tarcísio. Tudo fala pelo corpo desses contadores de “causos”. Necessitamos
apenas reaprender a escutar a voz de suas experiências ou o lado épico das suas verdades.
Sei que recompor o quebra cabeça do passado das ilhas de Ananindeua, no presente
nunca trará de volta a verdade primordial, principalmente porque há o exercício do
esquecimento, às vezes consequência da idade, da emoção ou atendendo às conveniências de
quem narra.
Na reorganização de suas vivências, tanto os contadores de “causos” e de
assombrações de Ananindeua quanto o Poeta de Cajari, para não trair a “veracidade” de suas
lembranças, buscam o auxílio de Mnemósine, deusa grega, personificação da memória, para
tentarem “domar” o ontem na busca da compreensão do hoje e do amanhã. Nesse retorno ao
mais recôndito passado, a infância, se reencontram com pessoas, lugares e encantados.
Exercitando a recordação como um espelho velho, com falhas no estanho e sombras
paradas ou um ato lacunar repleto de espaços vazios, o fazer criativo desses poetas rapsodos
outrora citados reside justamente no preenchimento dessas incertezas, acrescentando
“ingredientes” enriquecedores para situações relacionadas aos medos, às alegrias, às angústias
e às tristezas, todos entendidos por Gaston Bachelard (1988), na sua poética do devaneio
como: “[...] um campo de ruínas psicológicas, um amontoado de recordações [...]”.
Lembranças remotas de um valor primeiro, o onírico, trazem a tona um ponto inexato de
supostos inícios para seus narradores.
Pude apreciar alguns impulsos dessas carnes que se fazem verbo e constatei que, em
algumas situações, essa poética tem uma natureza mimética resultada de um princípio
cultural, ético e cotidiano, vício ou virtude cultural, associada à imagem dos melhores homens
ou dos melhores imitadores dos grandes ícones dos antepassados da região.
Essa tendência cultural, que nesse exercício de escrita chamo de mimética, reveste e
transmuta o corpo carne em um corpo metáfora, cujo devir nos direciona a estruturas de uma
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linguagem ou de uma cultura sempre “em movimento”. São corpos que subvertem a
compreensão lógica do que seja o poético, uma força orgânica que não se sustenta
simplesmente no alimento de cada dia, mas sim de uma razão pela qual alimenta as veias de
um outro fazer poético ou novas velhas formas de se traduzir e de se compreender o mundo,
imenso poder de extrapolar ou de contar de outro modo o que já fora dito ou visto.
Os sentidos dos textos corpos caminham, se afastam e nos afetam de múltiplas
maneiras. Corpos suados, tensos, tão relaxados e convictos do que diziam, estão impressos
nas minhas memórias construídas no convívio com as mentalidades das ilhas de Ananindeua,
merecendo um olhar mais atento a esses textos ritmados pelo batimento de sanguíneo de seus
autores.
Silenciosos contadores de “causos” apontaram para este estudo outra categoria com
indicativos literários, pertinente para futuras investigações, o silêncio. Provocou-me
estranheza no olhar primeiro, depois superado pela admiração e pelo exercício de tentar
compreender o que está sendo dito pelo indizível, o insondável, aquilo que experimenta uma
possibilidade semântica que talvez a palavra demore a alcançar, uma representação até mais
verdadeira e mais próxima do que é ser morador das regiões insulares de Ananindeua.
Superada a estranheza pelo que se cala, essa proposição temática, não exclusiva aos
discursos orais, a nenhum século ou a nenhum autor, está ali, sempre presente nos discursos
de que natureza for, na comunicação humana, significando pela ausência e pela polissemia de
sua semântica. Não sei se realmente a palavra é de prata, enquanto o silêncio é de ouro, porém
sei que o silêncio precisa sair da condição de mistério sacralizado para experimentar
materialidade. Lembremos que, se no princípio era o verbo, talvez seja porque a criação parte
do silêncio ou o silêncio se impõe como alma do verbo, apesar de tudo.
A noção de Caos-Mundo deve ser a mais apropriada para traduzir o que foi
problematizado nesta dissertação na busca da superação do sendo ou do existente. Penso que
estamos vivenciando um redimensionamento da negociação entre a transparência e a
abstração da escrita - o existente, o sendo – com a redescoberta, ainda não tardia do saber das
experiências e, mais especialmente, as diegeses orais, uma relação que na ótica de Glissant
(2005), pensamento do qual compartilho, determina uma reflexão sobre o escrito na
reivindicação da oralidade.
Com esse entendimento, creio que a estética ditada pelas literaturas e pelas artes
ocidentais, um humanismo unificante e redutor, parece estar sendo substituído pela estética da
relação ou até mesmo, utilizando um termo freiriano, uma estética da tolerância na proposição
do estudo e compreensão das diversidades e opacidades culturais e literárias.
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Na poética do caos-mundo, a escrita simplesmente ecoa graficamente as vozes
literárias de outrora, entendimento fundamental para a realização de uma leitura sobre o agir
no mundo de sujeitos culturais como o amazônida.
Leituras sobre o exercício da oralidade restituem fala aos historicamente silenciados
e, em uma perspectiva mais otimista, recontam um passado que pode, aceito ou não, subsidiar
argumentos, como assim fazem uso os moradores das ilhas de Ananindeua , nas mesas de
negociação, de uma representatividade, que aos poucos se afasta e se impõe às visões
prontas, acabadas e muitas vezes exóticas daqueles que insistem em obrigar a humanidade
“[...] a confessar... raças, ideologias e religiões – se não em tribunais, ao menos em
formulários oficiais. As políticas são feitas em torno dessas etiquetas [...]” (THOMSON,
1997).
A retomada dos estudos das memórias de “sujeitos comuns”84 protagonizando suas
experiências sociais e designando representações de si e de seus “inimigos”, é um alento para
as ciências que compreendem as identificações locais no exercício de práticas sociais
libertadoras. [...] as recordações familiares, às histórias locais, de clã, de famílias, de aldeias, às recordações pessoais [...], a todo aquele vasto complexo de conhecimentos não-oficiais, não-institucionalizados, que ainda não se cristalizaram em tradições formais [...] que de algum modo representam a consciência coletiva de grupos inteiros (famílias, aldeias) ou indivíduos (recordações e experiências pessoais), contrapondo-se a um conhecimento privatizado e monopolizado por grupos precisos em defesa de interesses constituídos [...] (TRIULZI apud LE GOFF, 2003)
Na presença da cena do mundo entendida como uma Totalidade-Terra, o escritor, o
contador de “causos” não escrevem mais de forma monolinguística, sendo intimados a
considerar nos seus processos de criação os imaginários das línguas que os atingem,
compondo uma obra imprevisível e de multiplicidades semânticas. É assim com a presença
recente da televisão na vida dos moradores da ilhas de Ananindeua, principalmente com as
novelas “globais” que mantêm forte diálogo com os causos da tradição, transcendendo um
entendimento isolado para essa forte mistura cultural. A fusão do global com o local para
Canclini (2002) e para mim tem um sentido que não os entende como objetos inertes e fixos.
Tentei considerar suas volatilidades, como no exercício despreendido para realizar a leitura do
causo da Matinta “ Perera”.
O debate sobre as produções artísticas da contemporaneidade estão longe de se
esvair, inexistindo um consenso entre os pensadores no que se refere à denominação do atual
período histórico que vivemos. Um dos construtos que embasaram esta dissertação atrela-se
84 Refiro-me a simplicidade de suas vidas que não devem ser entendidas como simplórias.
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ao pensamento pós-moderno na aceitação de uma cena mundial desenhada como uma
totalidade heterogênea e fragmentada, desprovida de qualquer olhar pautado nas
singularidades. O pensamento pós-moderno, diferentemente, aceita a multiplicação das
diferenças, substituindo a procura de uma identidade e de um fazer literário permanente ou
estável para identificações, diegeses e imaginários sucessivos e provisórios.
Não descarto as dificuldades de ter trabalhado sob esse entendimento, até porque a
globalização se realiza e é entendida por alguns discursos homogeneizadores, fragmentadores
e reordenadores de diferenças e de desigualdades sem o desejo de suprimi-las, conjunto de
estratégias para rearfirmar hegemonicamente conglomerados econômicos e estéticos.
Nessa travessia empreendida pelas trilhas dos saberes acadêmicos e pelos saberes das
ilhas de Ananindeua, minha curiosidade epistemológica alcançou voos inimagináveis, cada
vez mais ousados à medida que, não tendo a pretensão de monopolizar pensamentos ou
enjaular minhas considerações interpretativas a nenhuma episteme excludente, procurei
experimentar transformações, pronunciando de forma mais audível, a vida dos moradores das
ilhas de Ananindeua, seus saberes, suas narrativas, assim como o fazer literário de um artífice
marajoara também sensível às vozes ribeirinhas, Antonio Juraci Siqueira.
Pronunciá-los de modo audível na minha compreensão seria reescrevê-los sob
critérios mais éticos de interpretação, provocando olhares menos míopes sobre a riqueza de
seus universos percebidos sem visões deterministas.
Parafraseando Freire (1997), estar no mundo é estar com os outros e tudo o que
tenham a nos oferecer, e esse entendimento relacional foi decisivo para que as malhas
discursivas e suas pluralidades de sentidos, ditadas por silenciados amazônidas, despontassem
uma universalidade temática a partir de seus microcosmos sócio-culturais.
A restituição material desse fazer acadêmico para os moradores das ilhas de
Ananindeua talvez seja um exercício ético que encontre alguns obstáculos, como o acesso de
alguns narradores à cultura letrada. Daí, percebi que restituir significa bem mais do que
simples devoluções de imagens e de transcrições, não se aprendendo sobre elas nos manuais.
As vozes vibram, fazem vibrar, nos dizendo que nunca estaremos sozinhos.
Agora compreendo melhor o sentimento experimentado no começo deste exercício
de escrita. Queria que essas vozes ribeirinhas fossem ouvidas. Voltarei sempre ao começo ou
quando for necessário, não temendo quaisquer necessidades de reparar algum pensamento ou
palavra entendida como “verdade absoluta”.
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Figura 10: Acesso ao pequeno porto da Comunidade do Igarapé Grande
Espero que, reservando esse espaço, para que essas vozes, quem sabe, sejam ouvidas,
haja contribuições significativas aos estudos que entendem as fronteiras epistemológicas
como permeáveis. Outros sujeitos culturais e suas práticas, especialmente poéticas parecem
estar ficando cada vez mais próximos de nós. O caos, a errância, a simplicidade, o onírico, o
mítico, o primordial e a ambiguidade podem ser belos em uma narrativa envolvendo Todo
Mundo no sopro ou no exercício escrito do encontro das diferenças.
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