padre feijó - celibato nacional

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O PADRE FEIJÓ E A QUESTÃO DO CELIBATO CLERICAL ISNARD DE ALBUQUERQUE CÂMARA NETO Departamento de Ciências Sociais e Letras Universidade de Taubaté RESUMO O objetivo do presente trabalho é apresentar os embates do Padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843) em relação à Igreja Católica. A maior parte dos pesquisadores, normalmente, aborda a atuação política de Feijó como governante durante a Regência, deputado paulista às Cortes de Lisboa (1821), deputado geral (1826-1829 e 1830-1833) e senador (1833) em temas alheios a História da Igreja. Relegados a um plano secundário são seus combates contra o episcopado da época, em virtude de sua defesa pela supressão do celibato. Propõe-se, pois, essa faceta de Feijó – um padre que ia de encontro aos interesses de sua própria Igreja – como um convite para maiores aprofundamentos por parte dos historiadores. PALAVRAS-CHAVE: catolicismo; celibato clerical; Brasil INTRODUÇÃO: A COMPOSIÇÃO DE FORÇAS Após a independência surgem as primeiras idéias de uma reforma católica no Brasil, com duas tendências bem distintas. A primeira, com o Padre Antônio Feijó na liderança de boa parte do clero paulista entre 1826 e 1842, período de sua vida como deputado de São Paulo (1826), ministro da Justiça (1831), senador do Rio de Janeiro (1833) e, finalmente, regente (1835- 1837). Defendia Feijó a criação de uma Igreja brasileira, desatrelada de Roma e tendo como centro de comando um Concílio Nacional, política essa fundamentalmente regalista e apoiada no padroado. Para Feijó e seu grupo, dois problemas básicos precisavam ser resolvidos. Um dizia respeito ao já famoso “clero amasiado”, pois ainda corria o tempo em que “ter filhos naturais era então a coisa mais natural deste mundo. Sem exceção para os padres, que costumavam ser muito bons padreadores.” (FRIEIRO, 1945, p. 16). Assim, apoiavam pragmaticamente a supressão do celibato, tendo Feijó, inclusive, em 1827, lançado o folheto intitulado – Demonstração da necessidade da abolição clerical pela Assembléia Geral do Brasil, e da sua verdadeira e legítima competência nesta matéria. A questão do celibato clerical reporta-se ao Concílio de Elvira, em 305, válido somente para a Espanha; mas, em 386, o papa Sirício (384-399) estendeu-o a toda Igreja do Ocidente, posto que “sem preocupações e liames familiares, podiam os clérigos atender melhor à própria perfeição e às obras do apostolado.” (AZZI, 1962, p. 49). A outra vertente era dirigida por Dom Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo metropolitano da Bahia e primaz do Brasil desde 1826, ano esse em que, como Feijó, entra para a Câmara dos Deputados. D. Romualdo propunha a formação de um clero observante do celibato, subordinado a Roma e independente do governo em assuntos espirituais. A questão, no entanto, ganhava contornos consuetudinários por parte da sociedade, pois “se criava uma espécie de consciência comum de que o sacerdote podia, sem quebrar os seus compromissos, na perspectiva jurídica, viver como os leigos católicos na sociedade, incluindo mesmo o costume de constituir família.(LUSTOSA, 1985, p. 12) A GUERRA DE DISCURSOS O ano de 1827 assiste ao primeiro momento do processo de reformismo, por meio da proposta de Antônio Ferreira França, deputado pela Bahia, que propunha, em 3 de setembro, que “o nosso clero seja casado e que os frades e as freiras acabem entre nós”. (ALMEIDA, 1951, p. 61), desencadeando com isso a explosão de um barril de pólvora que há muito tempo exsudava nas gavetas dos gabinetes imperiais, nas igrejas, na imprensa e nas camadas mais cultas da sociedade. É possível imaginar-se que, decerto, por parte da Igreja não era esse o caminho a ser trilhado para o início de uma discussão, mas, bon gré ou mal gré, a atitude intempestiva de Ferreira França possibilitou trazer a lume uma questão há muito discutida de forma velada, clarificando destarte o estado de coisas entre o Império e a própria Igreja. Dividiam-se as tendências entre os que eram a favor da supressão do celibato, tais como o Padre Diogo

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Page 1: Padre Feijó - Celibato Nacional

O PADRE FEIJÓ E A QUESTÃO DO CELIBATO CLERICAL

ISNARD DE ALBUQUERQUE CÂMARA NETO Departamento de Ciências Sociais e Letras

Universidade de Taubaté

RESUMO

O objetivo do presente trabalho é apresentar os embates do Padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843) em relação à Igreja Católica. A maior parte dos pesquisadores, normalmente, aborda a atuação política de Feijó como governante durante a Regência, deputado paulista às Cortes de Lisboa (1821), deputado geral (1826-1829 e 1830-1833) e senador (1833) em temas alheios a História da Igreja. Relegados a um plano secundário são seus combates contra o episcopado da época, em virtude de sua defesa pela supressão do celibato. Propõe-se, pois, essa faceta de Feijó – um padre que ia de encontro aos interesses de sua própria Igreja – como um convite para maiores aprofundamentos por parte dos historiadores. PALAVRAS-CHAVE: catolicismo; celibato clerical; Brasil INTRODUÇÃO: A COMPOSIÇÃO DE FORÇAS

Após a independência surgem as primeiras

idéias de uma reforma católica no Brasil , com duas tendências bem distintas. A primeira, com o Padre Antônio Feijó na liderança de boa parte do clero paulista entre 1826 e 1842, período de sua vida como deputado de São Paulo (1826), ministro da Justiça (1831), senador do Rio de Janeiro (1833) e, finalmente, regente (1835-1837). Defendia Feijó a criação de uma Igreja brasileira, desatrelada de Roma e tendo como centro de comando um Concílio Nacional, política essa fundamentalmente regalista e apoiada no padroado.

Para Feijó e seu grupo, dois problemas básicos precisavam ser resolvidos. Um dizia respeito ao já famoso “clero amasiado”, pois ainda corria o tempo em que “ ter filhos naturais era então a coisa mais natural deste mundo. Sem exceção para os padres, que costumavam ser muito bons padreadores.” (FRIEIRO, 1945, p. 16).

Assim, apoiavam pragmaticamente a supressão do celibato, tendo Feijó, inclusive, em 1827, lançado o folheto intitulado – Demonstração da necessidade da abolição clerical pela Assembléia Geral do Brasil , e da sua verdadeira e legítima competência nesta matéria.

A questão do celibato clerical reporta-se ao Concílio de Elvira, em 305, válido somente para a Espanha; mas, em 386, o papa Sirício (384-399) estendeu-o a toda Igreja do Ocidente, posto que “sem preocupações e liames famili ares, podiam os clérigos atender melhor à própria perfeição e às obras do apostolado.” (AZZI, 1962, p. 49).

A outra vertente era dirigida por Dom Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo metropoli tano da Bahia e

primaz do Brasil desde 1826, ano esse em que, como Feijó, entra para a Câmara dos Deputados. D. Romualdo propunha a formação de um clero observante do celibato, subordinado a Roma e independente do governo em assuntos espirituais. A questão, no entanto, ganhava contornos consuetudinários por parte da sociedade, pois “se criava uma espécie de consciência comum de que o sacerdote podia, sem quebrar os seus compromissos, na perspectiva jurídica, viver como os leigos católicos na sociedade, incluindo mesmo o costume de constituir família.” (LUSTOSA, 1985, p. 12)

A GUERRA DE DISCURSOS

O ano de 1827 assiste ao primeiro momento do

processo de reformismo, por meio da proposta de Antônio Ferreira França, deputado pela Bahia, que propunha, em 3 de setembro, que “o nosso clero seja casado e que os frades e as freiras acabem entre nós” . (ALMEIDA, 1951, p. 61), desencadeando com isso a explosão de um barril de pólvora que há muito tempo exsudava nas gavetas dos gabinetes imperiais, nas igrejas, na imprensa e nas camadas mais cultas da sociedade.

É possível imaginar-se que, decerto, por parte da Igreja não era esse o caminho a ser trilhado para o início de uma discussão, mas, bon gré ou mal gré, a atitude intempestiva de Ferreira França possibili tou trazer a lume uma questão há muito discutida de forma velada, clarificando destarte o estado de coisas entre o Império e a própria Igreja.

Dividiam-se as tendências entre os que eram a favor da supressão do celibato, tais como o Padre Diogo

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Antônio Feijó, Amaral Gurgel, Ildefonso Xavier Ferreira, Marcelino Ferreira Bueno, dentre outros, e os que eram contra, como Dom Romualdo Antônio de Seixas, Dom Marcos de Souza, Padre Luís Gonçalves dos Santos (o famoso padre Perereca) e o Visconde de Cairu.

A resposta de Feijó em relação à proposta de Ferreira França vem a 10 de outubro de 1827 no seguinte parecer à Câmara, dando clara posição de suas intenções, bem como propondo ameaças ao papa: “primeiro, que autorize ao Governo para obter de Sua Santidade a revogação das penas espirituais ao clérigo que se casa; fazendo saber ao mesmo Santíssimo Padre a necessidade de praticar, visto que a assembléia não pode deixar de revogar a lei do celibato; segundo, que o mesmo governo marque ao nosso plenipotenciário prazo certo, e só o suficiente, em que deve definiti vamente receber da Santa Sé o deferimento dessa súplica; terceiro, que no caso da Santa Sé recusar-se ao requerido, o mesmo plenipotenciário declare a Sua Santidade mui clara, e positi vamente, que a assembléia geral não derrogará a lei do celibato, mas suspenderá o beneplácito de todas as leis eclesiásticas disciplinares que estiverem em oposição aos seus decretos; e que o governo fará manter a tranqüili dade e o sossego público por todos os meios que estiverem ao seu alcance.” (DORNAS FILHO, 1938, p. 56).

O REFORÇO VEM DE ROMA: O TERCEIRO NÚNCIO APOSTÓLICO

De fato, a recomendação não fora leviana, pois o

Deputado Diogo Antônio Feijó fizera publicar na imprensa um requerimento, datado de 11 de junho de 1830, cujo teor parece demonstrar com clareza a hostili dade e a tentativa de embaraçar o múnus do terceiro Núncio Apostólico, Monsenhor Ostini. Ei-lo:

“Constando haverem desembarcado nesta corte o Núncio apostólico e mais alguns eclesiásticos, requeiro se peça ao Governo primeiro as credenciais ou bulas do dito Núncio, caso ele venha com desígnio de exercer jurisdição eclesiástica neste Império. Segundo: o número dos eclesiásticos com declaração de serem seculares ou regulares; de que religião, de que nação, se foram convidados pelo Governo, e para que fim, e à custa de quem, e onde são conservados.” (SILVEIRA, 1958, p. 426).

Parece, no entanto, que a Santa Sé enviara alguém suficientemente habili doso para o cargo, e o Visconde de Alcântara, Ministro da Justiça e Negócios Eclesiásticos, permitiu oralmente que o Núncio usasse suas faculdades, lembrando-lhe, porém, que elaborasse um elenco das mesmas, para ser mostrado às Câmaras. Ostini, em sua correspondência com Roma, não esconde

sua contrariedade, denominando o documento de Feijó de “ insolente inquérito.” (ACCIOLY, 1949, p.266)

De qualquer forma, é possível notar-se a má vontade da parte de Feijó para com o representante da Santa Sé, e até mesmo para os assuntos de interesse da Igreja. Sacerdote que era, investiu contra a ortodoxia católica enquanto defensor da abolição do celibato, posição essa que muito provavelmente proviesse “da falta, em sua formação para o serviço do altar, de uma vida em comum e sob uma direção mais adequada e vigilante no internato de um Seminário.” (ALMEIDA, 1948, p. 618).

Em suma, não fugiu em demasia ao seu tempo, quando os padres faziam parte das intrigas políticas e pertenciam aos diversos clubes maçônicos.

Ostini, por sua vez, expressando-se em termos escolhidos, tão comuns aos homens que gravitam em torno do poder, dá a Pio VIII suas impressões sobre os bispos do Brasil , informando-lhe que os mesmos “são boas pessoas, e nada mais.” (ACCIOLY, 1949, p. 241).

VENCE A IGREJA

A 7 de abril de 1831, com a queda de D. Pedro I,

Feijó assume a Regência Trina Provisória, não provocando alterações na jurisdição do Núncio. Todavia, pode-se enquadrar, também no ano de 1831, a segunda fase do processo de reformismo, quando o grupo de Feijó apresenta à Assembléia Geral o projeto sobre o matrimônio.

Relativamente simples em sua confecção, em momento algum proíbe o clero de casar-se, atingindo destarte, ainda que de forma indireta, o celibato clerical, posto que as cláusulas impeditivas são bastante claras. A força do Padroado, assim entendemos, mostra-se presente já em sua introdução:

“Sendo o Contrato do Matrimônio o que assegura a paz das famílias, educação dos filhos, e os direitos que a Lei lhes concede sobre os bens dos seus progenitores; tendo sido o objeto dos cuidados de todos os Legisladores, intervindo a mesma Religião para santifi cá-lo com cerimônias sagradas, não convém que aos Legisladores do Brasil seja indiferente que os Eclesiásticos, a cujo cargo tem estado a sua fiscalização, continuem a ser arbitrários dispensadores de condições e fórmulas essenciais ao mesmo Contrato.” (LUSTOSA, 1985, p. 22) (grifo nosso).

Prossegue a introdução do projeto, e os abusos do clero frente às dispensas matrimoniais são forte objeto de reparo:

“A Comissão Eclesiástica observando a relaxação que por toda a parte se encontre nas dispensas dos impedimentos

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matrimoniais, a tal excesso, que o maior número deles não existe senão para obrigar os brasileiros a despesas inúteis, e algumas vezes excessivas, que lhe são extorquidas por diferentes pretextos,sem que jamais semelhantes impedimentos obstem aos seus

contratos: tendo em vista que a liberdade de culto, reconhecida pela Constituição, introduz grande variedade na celebração

do matrimônio,que as antigas Leis não providenciaram; e querendo remover tantos

abusos, dar firmeza e legalidade a semelhantes contratos, oferece o seguinte projeto:

A Assembléia Geral Legislativa decreta:

Art. 1o ) Só não pode contrair validamente matrimônio:

1. O que se achar legitimamente casado. 2. O menor de 14 anos, e a menor de 12.

3. O parente em 1o grau de afinidade, seja por cópula lícita, ou ilí cita, sendo sabida por mais de três pessoas.

4. O que cooperar ou consentir na morte de um dos cônjuges, vivendo em adultério com ele, ou com o fim de casar-se com o que, ou a que sobreviveu.

5.O filho de família ou escravo, sem o consentimento do Pai, Tutor, ou Curador, ou Senhor, ou sem consentimento do Juiz de Direito do lugar, depois de os ouvir quando estes sem grave motivo o recusem.

6. O que se achar aterrado por fortes ameaças, ou suposição de grandes males reais, ou aparentes, com o fim de contrair matrimônio.

7. A que sendo raptada não estiver em lugar seguro, onde possa li vremente declarar sua vontade.

8. O que estiver enganado sobre qualidade pessoal do cônjuge, e que antes do Contrato lhe declarou ser condição necessária,e essencial ao mesmo. A parte enganada só será admitida a provar o engano dentro do primeiro mês de coabitação depois do Contrato. Excetua-se o engano sobre a escravidão, que poderá ser provada em qualquer tempo, em que foi sabida.” (LUSTOSA, 1985, p. 22-23).

Feijó tinha perfeita consciência do baixo grau de teor moral da maioria do clero de sua época. Sua visão moralista e a condição de filho espúrio talvez fossem fatores que o fizessem indispor-se tão frontalmente contra a Igreja da qual era ministro.

Em 12 de março de 1832, seu aviso dirigido ao episcopado é bem claro no que se refere ao estado da Igreja, e engloba de forma cardeal a confusa equação onde se misturam as conseqüências do padroado, da religiosidade popular e do caráter epidérmico do culto. Eis o trecho, primor de iluminismo: “A superstição, a hipocrisia e meras exterioridades religiosas só servem para desacreditar a verdadeira religião e tornarem-na ridícula aos olhos do homem sensato, e objeto de curiosidade e divertimento para com a multidão que

não pensa;"Realizada esta ref lexão, Fei jó aponta

diretamente aqueles a quem julga serem os responsáveis pelo problema, quais sejam, os bispos:

“Não podendo dissimular-se que a causa principal da irreligiosidade [ ...] é devida a má escolha dos ministros da religião;” Apontados os responsáveis, seguem as

acusações aos padres, incluídas aí, como não poderiam faltar, as festas, constante objeto de eternos atritos entre o clero e os devotos:

“A negligência dos prelados em regular o culto pelas leis da Igreja, consentindo que nele se introduzam tantos abusos, tolerando que nos templos as festas se façam até de noite, onde se desenvolve com escândalo notável a perversidade daqueles que nenhum caso fazem da celebração dos santos mistérios.”

Encerrando o aviso, Feijó ordena aos bispos “a mais escrupulosa escolha das pessoas destinadas ao serviço da Igreja que, por suas moralidades e instrução, sejam capazes de lhe servir de ornamento; a severidade em punir canonicamente os que se desviarem das regras...” (ALMEIDA, 1951, p. 75-76).

O COMEÇO DO FIM

Um incidente de ordem religiosa, no entanto,

duraria mais que o razoável. Trata-se da indicação de Antônio Maria de Moura, em 30 de abril de 1833, para a diocese do Rio de Janeiro. Companheiro de idéias de Feijó, era-lhe recusada, por Bonifácio VIII , a bula de confirmação. Os pretextos de Roma baseavam-se nas idéias do padre quanto ao celibato clerical, além do fato de o mesmo ser filho de pais incógnitos, mesmo caso de Feijó, o que o feriu profundamente.

Não tardou o assunto a assumir caráter político, como era de se esperar, e “deputado houve que se ergueu, em sessão de 6 de junho de 1835, para propor simplesmente a separação da Igreja brasileira da Igreja romana.” (MORAES, 1929, p. 54).

Mesmo não indo a questão adiante, nota-se mais uma vez a intromissão do governo nos negócios da Igreja. O episódio, no entanto, marcaria Feijó, posto que seria ele protagonista de igual problema, quando de sua nomeação para o bispado de Mariana, como se verá oportunamente.

D. Romualdo, por sua vez, continuava a não se deixar dobrar facilmente perante as tentativas de Feijó, e, em 16 de agosto de 1833, numa representação à Assembléia Geral Legislativa, apresenta as linhas mestras de uma reforma.

A Igreja, portanto, plenamente desperta e consciente dos riscos que corria, passa à ofensiva. O primeiro item evoca a possibili dade de ver surgir no Brasil uma Igreja “diferente”, com um clero consentâneo à realidade desejada, formado em seminários. Note-se ainda o desejo de “participação” e “proteção” do

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governo nos projetos da Igreja, bem como a referência ao Concílio Ecumênico de Trento:

“Quereis ver, Augustos e Digníssimos Senhores, florescer ainda neste abençoado Império a beleza e a disciplina da Igreja, e o tocante espetáculo de um clero respeitável por seu exemplo e doutrina? Elevem-se ao Episcopado homens tais, quais descreve o grande Apóstolo das Nações, cheios de zelo pela honra da Igreja, e pelo bem espiritual dos Povos cometidos ao seu cuidado; e, liberalizando-lhes a vossa confiança e proteção, auxili ai-os em seus projetos, sobretudo no estabelecimento de seminários, que tanto mereceu a solicitude dos Padres de Trento, e os desvelos da nossa mesma legislação existente, garantindo aos bispos no Alvará de 10 de maio de 1805 a execução dos Decretos daquele concílio, e os socorros necessários para tão previdentes fundações.” (AZZI, 1974, p. 475-476).

A formação dos seminaristas é fonte de preocupação para o prelado, que insiste no tema e, realista, também não se furta a lembrar os desvios do clero:

“Os aspirantes ao sacerdócio, formando-se desde os primeiros anos à sombra do Santuário, e debaixo das vistas do seu prelado, na piedade e na ciência, farão conhecer sem os disfarces da hipocrisia sua índole, seus talentos e vocação ao estado eclesiástico; e tornando mais fácil o discernimento e acerto na escolha, poupar- se-á aos bispos a dolorosa necessidade em que muitas vezes se acham de impor as mãos em pessoas que eles mal podem conhecer e

experimentar; e à Igreja tantas lágrimas, que ela não dos seus ministros.” (AZZI, 1974, p. 476).

1834 inicia-se tenso. É o terceiro momento de tentativa da ação reformista do grupo de Feijó, que entrega a D. Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade (1827-1847), bispo e Presidente do Conselho Geral de São Paulo, uma Representação, em que lhe é solicitada a dispensa do celibato clerical em sua diocese. É no bispado de D. Manuel Joaquim, segundo Augustin Wernet, que “a falta de ‘ilustração’, o engajamento em atividades econômicas e lucrativas e a politização do clero paulista chegou ao auge.” (WERNET, 1987, p. 75).

Em nosso entender, não havia melhor momento nem melhor bispo para a Representação, uma vez que “D. Manuel vivia como o seu clero: além de ser fazendeiro, dono de escravos, apaixonado caçador, teve também destacada atuação política em São Paulo, desde os tempos da Independência até sua morte em 1847, sendo membro militante e um dos chefes do Partido Conservador. Foi várias vezes vice-presidente da Província, membro do Conselho Geral da Presidência

da Província, deputado à Assembléia Geral e Provincial e candidato ao Senado.” (WERNET, 1987, p. 80).

A Representação, de 14 de janeiro, baseia seus argumentos em dois pontos: um, de ordem moral, visava corrigir a situação do “clero amasiado”; e outro, de caráter demográfico, com o objetivo de aumentar a população.

O documento é claro em seu objetivo, não se furtando de informar ao bispo o que ele já bem sabia: “É doloroso, mas é preciso confessá-lo: a lei do celibato é letra morta, só existe de direito, e não de fato. Nem se atribua esse mal à geração presente. Ele é antiquíssimo, tão antigo como a própria lei. Não observada a lei, não só são criminosos os transgressores dela, como todos aqueles que conduzem ao erro o mau exemplo da classe que mais deve influir na moral por ser a escolhida e destinada ao serviço do culto.” (LUSTOSA, 1985, p. 26).

Prossegue a Representação, justificando-se a dispensa como panacéia universal para a questão da moralidade do clero:

“Se pois para o exercício do ministério sacerdotal se exige uma consciência pura, se, dispensada a lei, os ministros do culto não têm tão freqüentes ocasiões de pecar, por isso mesmo se estabelece e promove a decência do mesmo culto, cessa o escândalo dos fiéis, tira-se o motivo da censura, dos insultos e dos sarcasmos com que os ímpios satirizam e zombam da religião, confundindo a pureza e santidade desta com a de seus ministros.” (LUSTOSA, 1985, p. 26).

O segundo argumento, de ordem demográfica, é então exposto. Chega a ser divertido o jogo de palavras que é feito entre “aumento de casamentos” e “diminuição dos celibatários,” dando a parecer que a maioria brasileira era composta por padres:

“Mas não é só a Igreja que lucra com

a dispensa dessa lei. É também o Estado. O Brasil, um império vastíssimo por sua extensão territorial, tem uma população muito limitada, por conseqüência convém- lhe necessariamente promover todos os meios de aumentar a sua população e torná-la mais moralizada. O aumento dos casamentos, ou por outra, a diminuição dos celibatários, na opinião dos mais hábeis publicistas, consegue estes dois fins: aumenta a população, pois que, pondo a prole nas circunstâncias de obter na casa paterna todos os socorros que demandam os filhos, estes não ficam abandonados. Torna a população mais moralizada, não só pela melhor educação da mocidade, como porque, tornando-se mais freqüentes os casamentos, evitam-se as desgraças de muitas vítimas da

cessa de derramar pelos escândalos dos seus ministros." (AZZI, 1974, p. 476).

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educação e do mau exemplo.” (LUSTOSA, 1985, p. 26).

Em assunto tão grave, a castidade não poderia ser esquecida. No entanto, este “estado de perfeição angélica” se restringiria tão somente ao religioso que a quisesse adotar, e até as palavras de Cristo foram tomadas como argumentação:

“Nem se diga que se pretende destarte menosprezar a virtude da castidade. Não. Aqueles que se conhecem com forças para a sua prática, aqueles a quem a graça divina levar a esse estado de perfeição angélica, têm toda a liberdade de praticarem essa virtude. Mas não se exija da condição humana o que é superior às suas forças, não se imponha uma lei que o mesmo divino Salvador não impôs ao homem, porque não era

necessária para a salvação.” (LUSTOSA, 1985, p. 27). Ao receber a Representação, D. Manoel

Joaquim, ainda que inclinado a aceitar, posto que liberal, mas não ingênuo, posto que bispo, decide, em nosso entender, ganhar tempo. E como é costumeiro nas autoridades que não desejam tomar unicamente para si as conseqüências do processo decisório, submete o documento ao exame de vinte e uma personalidades, bem como ao Cabido Diocesano.

Este, educadamente, transfere novamente ao prelado a questão nos seguintes termos: “ [...] conquanto julgue a dita Representação baseada em razão e justiça, contudo julga também que só a V. Exa. poderá decidir, pois ninguém melhor do que V. Exa. conhece o estado do bispado e as premissas alegadas na dita Representação.” (LUSTOSA, 1985, p. 15).

Mesmo com o processo terminando por ser arquivado, o grupo paulista capitaneado por Feijó fará mais uma tentativa, a última, para levar adiante a reforma na Igreja: uma Constituição Eclesiástica para o Bispado de São Paulo.

Dessa vez a idéia baseava suas linhas gerais em proposições do Concílio Ecumênico de Trento, que determinavam aos Ordinários adaptações às normas concili ares que se fizessem necessárias ao bom funcionamento das dioceses.

Considerando-se que no Brasil ainda eram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, que norteavam os bispos em suas decisões, ficava clara a necessidade de “mudanças” pelo grupo paulista, consubstanciadas na proposta da Constituição Eclesiástica.

Especificamente, destacam-se como fontes utili zadas pelos reformadores “o Sínodo de Pistóia, a Constituição Civil do Clero Francês de 1790 e os projetos reformistas elaborados nos estados meridionais da Alemanha.” (WERNET, 1987, p. 86).

O padre Diogo Feijó prosseguia à frente das manobras, desta vez menos rígidas e radicais, e o texto não propunha a supressão pura e simples do celibato, deixando algumas saídas, em artigos, que permitiam aos bispos regular a matéria. Diz o prefácio à Constituição:

“Nenhuma lei foi derrogada. As comissões reconhecem que este direito compete só aos Concílios Gerais, ou ao Soberano Pontífice, nos casos de manifesta utili dade; mas como seja inegável o direito divino dos Bispos que providenciarem a salvação da parte do rebanho, que pelo mesmo Deus lhes foi confiada e que ninguém melhor que eles pode ser inteirado da necessidade ou utili dade da parcial revogação ou dispensa da lei em benefício dos fiéis de suas dioceses, são declaradas as dispensas que o uso, a prática constante deste bispado e suas peculiares circunstâncias tornam necessárias.” (LUSTOSA, 1985, p. 100).

Não obstante ser D. Manuel Joaquim Gonçalves bastante simpático à causa de Feijó, mais uma vez o projeto não passou, frustando definitivamente os objetivos do grupo paulista. As palavras de Augustin Wernet definem bem a situação:

“Na fase final da organização do Estado brasileiro, a maioria dos políti cos e, sobretudo, os principais conselheiros de D. Pedro II chegaram à convicção de que as idéias do conservadorismo e do catolicismo ultramontano serviriam de melhor fundamentação e justifi cação para a ordem vigente, do que os princípios liberais e as idéias do catolicismo à altura do Século das Luzes.” (WERNET, 1987, p. 87-88).

No mesmo ano de 1835, Feijó assume como regente único do Império, e, na véspera de sua posse, 11 de outubro, comunicam-lhe que fora nomeado por seu antecessor Lima e Silva para o bispado de Mariana, em virtude do falecimento de D. José da Santíssima Trindade. É também nesse ano que Feijó solicita ao Marquês de Barbacena, então em Londres, providências para a vinda de Irmãos Morávios, protestantes, que se dedicassem à educação dos indígenas. Foi um grave erro político de Feijó, pois tal projeto foi apresentado por D. Romualdo Seixas como mais um argumento de oposição, diante do qual Feijó renunciaria.

Consciente de que Gregório XVI recusaria a bula de confirmação, como fizera anteriormente com seu amigo Antônio Maria de Moura, habilmente “mandou arquivar a carta de apresentação que lhe dizia respeito, nenhum andamento deu às bulas de confirmação, e, sem fazer constar sua renúncia, limitou-se a deixar vaga a diocese.” (MORAES, 1929, p. 52).

Page 6: Padre Feijó - Celibato Nacional

Ficava entretanto a mágoa, e, em 1836, na abertura da primeira sessão legislativa, Feijó manifestou o claro desejo de separar a Igreja brasileira da de Roma. Seu poder era pleno, e a esse respeito a exegese de Vilhena de Moraes é primorosa:

“O augustiniano de Eisleben tinha a investidura sacerdotal, mas não o poder políti co; o marido de Ana Bolena, o poder políti co, mas sem a investidura sacerdotal. Feijó, porém, possuía uma e outra coisa, com a circunstância a mais de já ter sido, sem usurpação própria, anteriormente indicado para receber a plenitude do sacerdócio. Um golpe, tão somente, e, li sonjeadas sem efeito ainda muito vivos de uma completa autonomia continental em todos os domínios, estaria feita a separação e criada entre nós uma Igreja Nacional, com seu supremo hierarca assentado no trono, enfeixando nas mãos todos os poderes!” (MORAES, 1929,p. 57). É natural que tais pretensões excedessem todo o

bom senso, e os próprios estadistas julgaram as idéias de Feijó como uma ameaça à unidade política do Império.

Da parte da Igreja era preciso, além de combater o Padroado, deter a ação de Feijó, cujos procedimentos políticos desenhavam no horizonte praticamente um quadro de cisma.

Mais uma vez D. Romualdo entra em cena, agora com o auxílio de Bernardo de Vasconcelos, cuja atuação foi a de contrapor o pensamento liberal de Feijó à disciplina da Igreja. Em sua resposta a Feijó, ele afirma: “Tornar-se-ão independentes as igrejas nacionais, sem nexo estável com o pai comum dos fiéis, com essa cadeira eterna sobre a qual Jesus Cristo fundou sua Igreja. Desaparecerá o catolicismo, pois não há catolicismo sem unidade.” (MORAES, 1929, p. 58).

Os ataques, porém, atingiram Feijó em cheio, quando D. Romualdo e Vasconcelos o acusaram de ter mandado contratar os Irmãos Morávios para a catequese dos índios. Sendo os Morávios luteranos, tal fato tornava-se inconcebível em um país católico. Era o fim.

A 19 de setembro de 1837, premido pela oposição, Feijó renunciava, e, menos de um ano após, a 16 de julho de 1838, faz publicar no Observador Paulista uma retratação, deixando livre o caminho para a grande ofensiva que a Igreja, na figura pioneira de D. Romualdo Seixas, desfechará em favor de sua autonomia, uma vez suplantado o risco de secessão.

Feijó voltaria, ainda que de forma ocasional, aos velhos temas, quando no Senado do Império, entre 1838 e 1839; e algumas outras manifestações regalistas prosseguiram, como exemplo, o chamado “ recurso à Coroa”, consolidado pelo artigo 30 da lei de 5 de fevereiro de 1842, que consistia em apelar ao poder civil sobre abusos ou improcedências dos tribunais eclesiásticos.

A posição da Igreja, contudo, estava assegurada. A ameaça pior já passara, e os problemas agora eram outros.

O tempo de Feijó passara. A Revolução Liberal de 17 de maio de 1842 termina por provocar sua prisão. A 15 de maio do ano seguinte faz sua defesa no Senado. É seu “canto de cisne”.

Morre em São Paulo a 10 de novembro, quando então as forças conservadoras ultramontanas já delineavam claramente seu papel no comando da Igreja, “conduzindo aos poucos o catolicismo a sateliti zar-se progressivamente ao tipo de catolicismo dominante na Europa.” (WERNET, 1987, p. 88).

ANOTAÇÕES CONCLUSIVAS

A presença de padres na política era bastante

comum no Império. Feijó, no entanto, sobressaiu-se como um revolucionário nos assuntos pertinentes à questão do celibato clerical. Se por um lado ia de encontro aos interesses da Igreja Católica, da qual era sacerdote, por outro propunha que a mesma admitisse uma realidade bem típica à época: a grande quantidade de padres amasiados e com filhos. Essa linha de pensamento, tão cartesiana na resolução de problemas, era típica de religiosos que beberam nas águas do catolicismo iluminista. Precisava ser combatida, como de fato o foi, pela Igreja.

Fechada em sua redoma doutrinária, em face dos ataques que recebia desde os acontecimentos de 1789, a reação dos papas e do episcopado ao que se poderia denominar de modernidade foi de total intransigência a qualquer pensamento que ameaçasse suas posições. Com perdas e ganhos, a verdade é que, mais uma vez, a Igreja saiu vitoriosa. Feijó, por sua vez, menos que um sacerdote imbuído na defesa de sua Igreja, representava muito mais o político cioso da defesa dos interesses do governo a que servia - sua carreira bem o mostra. No entanto, errou. A prática moralizadora da Igreja servia também mantenedor de controle social. A supressão do celibato, portanto, não atendia aos interesses de ambas as instituições. Venceu a Igreja e o conservadorismo, tão bem representado pela Reforma Ultramontana, tema fascinante, que abordaremos em uma próxima oportunidade.

ABSTRACT The aim of this study is to present the clashes between Priest Diogo Antônio Feijó (1784-1843) and the Catholic Church. The majority of the researchers usually indicates Feijó’s poli tical performance as a governor during the regency period, “paulista” deputy under Lisbon Court (1821), general deputy (1826-1829 and 1830-1833) and senator (1833) in other themes besides the Church History. His quarrels were relegated in secondary plans against the episcopacy time, due to his defense for celibate supression. This facet of Feijó is

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proposed here – the priest who searches his own Church interests – as the invitation to great studies of historians. KEY-WORDS: catholicism, clerical celibate, Brazil REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACCIOLY, Hildebrando. Os Primeiros Núncios no Brasil . São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949. ALMEIDA, Luís Castanho de. O Sacerdote Diogo Antônio Feijó. Petrópolis: Vozes, 1951. ALMEIDA, Luís Castanho de. Formação Intelectual de Feijó e do Clero de Sua Época. Revista Eclesiástica Brasileira, v. 8. fasc.3, set. 1948. AZZI, Riolando. Ascensão ou Decadência da Igreja? São Paulo: Editora das Américas, 1962. AZZI, Riolando. D. Romualdo Seixas e D. Macedo Costa: Dois Propugnadores da Liberdade da Igreja no Século Passado”. Revista Vozes. Ano 68, v. LXVIII , n. 6, ago. 1974.

DORNAS FILHO, João. O Padroado e a Igreja Brasileira. São Paulo: Nacional, 1938. FRIEIRO, Eduardo. O Diabo na Livraria do Cônego. Belo Horizonte: Cultura Brasileira, 1945. LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Reformismo da Igreja no Brasil Império: do Celibato à Caixa Eclesiástica. São Paulo: Loyola, 1985. MORAES, E. Vilhena de. O Patriotismo e o Clero no Brasil . Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1929. SILVEIRA, Ildefonso. A Portaria Feijó para a Reforma dos Regulares. Revista Eclesiástica Brasileira, v. 18, fasc. 2, jun. 1958. WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no Século XIX. São Paulo: Ática, 1987. Isnard de Albuquerque Câmara Neto é Professor Colaborador Adjunto no Departamento de Ciências Sociais e Letras da Universidade de Taubaté.