o outro lado do muro - ladrões, humildes, vacilões e bandidões nas prisões paulistas

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    O Outro Lado

    Do Muro

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    O Outro Lado

    do Muro

    Ladres, humildes, vaciles e bandides

    nas prises paulistas

    OSVALDO VALENTE

    SILVIO CAVALCANTE

    2013

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    Copyright 2013 by Osvaldo Valente / Silvio Cavalcante

    Capa

    Osvaldo Valente e Silvio Cavalcante

    sobre desenho de Artur Dias

    Ilustraes Internas

    Artur Dias

    Reviso

    Artur Dias e Osvaldo Valente

    ___________________________________________________________

    Valente, OsvaldoO Outro Lado do Muro: Ladres, Humildes, Vaciles e Bandides nasprises paulistas / Osvaldo Valente e Silvio Cavalcante.Belm: SilvioCavalcante : Osvaldo Valente, 2013.

    ISBN 978-1490909080

    1. Prises e Presidiriosaspectos sociais 2. Crimes e CriminososSoPaulo (Estado) 3. Penitenciria do Estado (So Paulo)memrias I.Ttulo.

    ___________________________________________________________

    A ALMA DOS CORPOS Ladres, Humildes, Vaciles e Bandides

    nas prises paulistas

    1 Edio reduzida. Publicada por: Grfica da Imprensa Oficial do Estadodo Par. 297 p.

    ISBN 124.612-193-262 (1997)

    [2013]

    Todos os direitos desta edio reservados aos autores

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    NDICE

    Agradecimentos i

    Introduo 1

    Parte I - O Tiro 7

    Parte II - No Distrito Policial 85

    Parte III - Na Casa de Deteno 213

    Nota Final 415

    Sobre os autores 417

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    AGRADECIMENTOS

    Agradecemos a todas as pessoas que direta ou indiretamentecolaboraram para o feitura deste livro.

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    Introduo

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    O cadeado abriu fazendo um barulho seco. Seguiu-se o rudo forteproduzido pelo arrastar do ferrolho. Por fim, a velha dobradia de ferrorangeu, reclamando uma vez mais do peso da porta macia. Essa sequn-cia de sons familiares nos acordou. A cela estava sendo aberta.

    Era quase meia-noite. Dormimos cedo. ramos cinco presos divi-

    dindo uma cela que abrigava o pessoal que trabalhava na enfermaria.Quando ouvimos o carcereiro cumprindo o ritual que nos tirou do sono,imaginvamos que se tratava de uma emergncia, algum detento feridoou passando mal com uma febre alta.

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    Silvio Cavalcante?falou o carcereiro em voz alta.

    Sua voz incerta e seu rosto afogueado indicavam que havia bebidoalm da conta de novo. Raras foram as vezes que o vi sbrio. Ele estava,

    de qualquer modo, me chamando. Isso me fez ver que no era nada naenfermaria. O seu procedimento seria outro se o fosse. Estranhei.

    Aqui, chefia.

    Estava completando sete meses como presidirio e j havia incor-porado ao meu linguajar muito da maneira prpria dos presos se expres-sarem.

    Nome do pai?

    Esta era realmente uma pergunta estranha de se ouvir quela hora.Minha curiosidade se aguava. Disse o nome do meu pai que, no haviamuito, estivera em So Paulo entrando em contato com advogados eacompanhando a fase final do meu processo.

    Nome da me?

    Mais uma pergunta estranha. Enquanto respondia, pensava queno a via h muito tempo.

    Arruma suas coisas. Voc vai de liberdade. disse o carcereiro,ento.

    Aquela era uma hora pouco usual de se colocar os detentos em li-berdade. Isso costumava acontecer por volta das nove horas da noite.Mas, no pensei em nada disso quando recebi a notcia. Tampouco fiqueieufrico. No dei nenhum grito de alegria, ou saltos descontrolados portoda a cela. No fiz nada disso. No naquele primeiro momento.

    Sentia-me tomado por um torpor. Ouvia um zumbido forte emmeus ouvidos, que abafava todo o som circundante. Podia ver-me alidentro daquela cela, e o que sentia era uma estranha sensao de queacabava uma histria que tinha acontecido com outra pessoa. Remeximinha memria e vi tudo o que tinha me acontecido ao longo daquelessete meses: as circunstncias que me levaram a ser preso, o tiro na perna,a passagem pelas mos da polcia, as tenses e fobias do distrito policial,a transferncia para a Deteno, o pavilho 9 e, por fim, o pavilho 2.Relembrei tudo isso em questo de segundos, como dizem que acontece

    com uma pessoa que est prestes a morrer. No meu caso, lembrava parapoder apagar da memria o que acontecera comigo. De qualquer modo,morria naquele momento o Par, como os presidirios me chamaram a

    maior parte do tempo que passei entre eles.

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    Isso aconteceu em 1991. Quando pus meus ps fora da Deteno,j como pessoa livre, a madrugada do dia 11 de outubro havia comeadoh pouco.

    A vida voltou ao seu curso normal. Sempre tratei aquela experin-cia como um apndice em minha vida. Algo que est parte, fora dela.Foi algo que no escolhi. Foi-me imposta. No cheguei a recalc-la, poisos amigos no deixaram que isso acontecesse. Foram muitas as pergun-tas, assim como muitas as respostas pela metade.

    Em um domingo de outubro de 1992, um ano depois de minha li-bertao, recebi pela televiso a notcia da rebelio na Casa de Detenode So Paulo. O noticirio informava que a Polcia Militar invadiu o pr-

    dio do Pavilho 9. Total de mortes anunciadas ento: 8. No conheoningum que confie nas verses oficiais, principalmente nos seus nme-ros. No dia seguinte o nmero de mortos j havia aumentado para 11. Onmero final, ainda o oficial, chegou a 111 mortos. Uma carnificina.

    Resolvi ento remexer aquele ba mal fechado em que guardava amemria do que me acontecera no ano anterior. Sabia que ao revolveressas lembranas estaria me expondo a um exerccio doloroso. Mas, sa-bia tambm que nunca chegara a esquecer de todo o que passei. Por mui-

    to tempo acordei sobressaltado no meio da noite. Tinha pesadelos que separeciam muito com os que tivera na primeira noite que passei em umdistrito policial. Neles havia policiais fardados que atiram em e prendempessoas, no importando se so inocentes ou culpadas; policiais civis quetorturam presos comuns para melhor e mais rpido conseguirem umaconfisso e assim cumprirem o seu dever; o mundo desconhecido e sub-terrneo dos presos, com suas regras duras, algumas vezes implacveis,que permeado por uma angstia e uma ansiedade permanentes e dif-ceis de se controlar.

    Para melhor compreender o que aconteceu em outubro de 1992 nofundo, como chamado o Pavilho 9 na Casa de Deteno, necess-

    rio que se conhea as pessoas que esto l, como vivem, como se relaci-onam e qual a natureza daquele tipo de espao institucional. Detentosno so aqueles rostos e ps que se veem nos closes e nos travellings dascmeras de TV. No os reconheo mais naquelas imagens que nada in-formam. No so tampouco aquela pilha grotesca de cadveres que sepde ver nas fotografias divulgadas do assassinato. Pude perceber que as

    vrias verses, as oficiais em especial, apresentadas do como e do porqudo massacre no Carandiru foram na sua maioria falaciosas, para se dizero mnimo algumas beiraram o cinismo grosseiro. Lembrei de minhahistria individual, de como, na condio de laranja, entrei em um

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    mundo que desconhecia, convivi com e me tornei durante algum tempoum presidirio, um "ladro". Com isso, procurava me livrar do que meimpedia de colocar essa experincia no fluxo da minha vida, mas, princi-palmente, chamar o que falso e cnico pelo nome.

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    Parte I

    O Tiro

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    A Praa da Bandeira em So Paulo uma imensa estao de ni-bus, cortada por cima por uma passarela que d acesso aos vrios pontosde parada. Em consequncia de sua natureza utilitria, ela um local degrande e constante movimentao. Mas isso no se deve exclusivamenteaos motoristas e passageiros, como deve ter imaginado o engenheiro quea projetou. Ela funciona tambm como uma espcie de mercado ao arlivre, improvisado na passarela e nas caladas dos pontos. Entre a fuma-a e a fuligem produzidas pelos motores, pode-se comprar desde benja-

    mins a milho cozido, passando por canetas, chaveiros, churrasquinhos,etc. Ela , em suma, um espao de ambulantes e camels, uma amostrade como a misria do terceiro mundo no se deixa esconder por lugaresplanejados para serem celebraes do crescimento e do desenvolvimentoda cidade.

    Estava a poucos metros da passarela que me poria bem no centrodaquele movimento. Estava com pressa de chegar at o ponto de nibus.Eram quase 11:30 hs da manh e deveria estar de volta penso em que

    estava hospedado ao meio-dia. Meu scio deveria telefonar-me a estahora para saber como estava me saindo em So Paulo. No tinha boasnotcias para lhe dar.

    Aquele era meu quarto dia na cidade. Estava ali a negcios. Sciode uma pequena empresa de informtica, pretendia fechar a compra denovos equipamentos para a firma, pesquisar preos e fazer um curso es-pecfico de computao que estava precisando. Por no conhecer a cida-de, estava encontrando dificuldades para localizar o endereo da empresa

    que nos venderia o que precisvamos. No dia anterior, tinha finalmenteconseguido localiz-la e para l me dirigi. O resultado da empreitada foio furto de minha carteira com meus documentos, todo meu dinheiro eminha passagem de volta para Belm.

    Ouvi o estampido quando j podia sentir a atmosfera angustiantecriada pela cor amarela com que pintaram o concreto da praa. Foi forteo suficiente para assustar-me, tirando-me dos meus pensamentos e deixarum zumbido nos meus ouvidos. Entretanto, o que realmente me chamou

    ateno foi o vento forte que senti em minha cala.Hoje me parece ridculo, mas no momento imaginei que se tratava

    de uma brincadeira de crianas, nada mais do que uma bombinha de SoJoo estourando perto de mim. Por puro instinto olhei ao redor, procu-

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    rando os autores da traquinagem. Estava em frente divisria de um barcom uma farmcia. Naquele haviam poucas pessoas, todas adultas. Afarmcia estava vazia. Somente um carro passou na rua com pouco mo-vimento, tendo um adulto ao volante.

    Aquele cenrio calmo me causou estranheza. Minha primeira hi-ptese havia sido derrubada em poucos segundos. Resolvi ento conferirminha cala. Deparei-me com uma perfurao na perna esquerda da cal-a jeans. Apesar de no sentir nenhuma dor, sabia que aquele buraco sig-nificava que havia recebido um tiro.

    Em meio a sentimentos confusos, mas sem desespero, chequei no-vamente o cenrio ao meu redor. Por ser a origem mais provvel do tiro,

    verifiquei primeiro o bar. Alm do tdio normal que se pode encontrarem qualquer bar como aquele, s pude notar que todos ali pareciam umpouco aborrecidos com o barulho provocado pelo disparo. A farmciacontinuava vazia. Na rua, nenhum carro. Mais frente, aparentando indi-ferena ao acontecido, um senhor de meia idade arrumava revistas numabanca. No me ocorreu verificar a passarela que estava alguns metrosadiante e acima de mim.

    Levantei a perna da cala at a altura do joelho para ver o ferimen-

    to, pois j sentia minha perna cansada, sem fora, com um tremor queindicava que estava fora de meu controle. curioso como se imagina umbaleamento como algo seguido imediatamente por muita dor e muitosangramento. Naquele caso pelo menos, o lugar atingido pela bala for-mava um orifcio esbranquiado, sem nenhum sangramento ou dor. Aviso daquele ferimento indolor, no entanto, se confundia com a consci-ncia da dificuldade da minha situao. Eu estava em So Paulo, umacidade que no conhecia, sem dinheiro, tendo como nico documento oboletim de ocorrncia que registrei to logo me dei conta do furto da car-

    teira, e, agora, baleado. Naquele momento, s era capaz de perceber ainverossimilhana da minha histria: vinha andando, fui atingido por umtiro, e no vi quem me atingiu. Imaginava-me contando-a para algum,pois tinha que pedir socorro, e no podia deixar de pensar no quo im-provvel ela devia parecer.

    Com tudo isso na cabea e com a cala levantada, entrei na farm-cia em busca de ajuda. A essa altura j caminhava com dificuldade, ar-rastando a perna ferida. Procurar por socorro era a nica coisa que podia

    fazer, e a drogaria me pareceu mais indicada que o bar.No havia clientes na farmcia. Atrs do balco divisei dois jo-

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    vens. O mais velho deles no tinha mais que uns vinte e quatro anos. Ooutro era apenas um adolescente. Eram jovens e pareciam assustadosdemais. No podia esperar muito daqueles dois. Mesmo assim, fui emfrente, apoiando-me no balco muito baixo que tornava meus movimen-tos ainda mais difceis e patticos.

    Me ajudem,disse eu da maneira mais convincente que pudetomei um tiro. Eu estava aqui em frente e no sei de onde ele veio. Vocsdevem ter ouvido o barulho. Eu no sei o que aconteceu.

    No recebi nada como resposta, a no ser o estupor estampado emseus rostos.

    Olhei novamente para minha perna, notei que ela comeara a san-

    grar. O sangue apareceu como a personagem principal de um filme que,aps algum suspense, finalmente resolve entrar na trama. E esta apareceudiscretamente. O lquido quente e vermelho descia do ferimento em dire-o ao solo, em pouca quantidade, descrevendo um caminho irregular.Sabia que em breve ele tomaria conta da cena. Por isso tentei novamente.

    Vocs no tm uma gaze, um algodo, ou alguma outra coisaque sirva para estancar o sangramento? Vocs no podem me arrumargua oxigenada para limpar o ferimento, por favor?

    Mais uma vez no obtive resposta. Os dois jovens ficaram ali, pa-rados, boquiabertos, assustados, sem dizer palavra, sem saber o que fa-zer. Eles estavam paralisados pelo medo. Diante daquela reao, ocorreu-me que seria melhor esquec-los e procurar ajuda em outro lugar.

    Divisei, ento, dois policiais militares passando em frente farm-cia. Chamei-os assim que os vi. Naquele momento s sabia que eles, pelomenos, j deviam estar mais acostumados com tiros e sangramentos.

    Alm disso, baleado como estava, cedo ou tarde teria que me entendercom a polcia. Era melhor que fosse eu quem tomasse a iniciativa. Nemme dei conta de que, nas duas vezes em que chequei o local atrs do pos-svel atirador, no os vi por perto.

    Os PMs ficaram do lado de fora, esperando-me na calada. Cami-nhei em sua direo, deixando no piso da farmcia manchas vermelhasde sangue. Aquele cho manchado deve ter tirado do torpor os funcion-rios, pois ainda ouvi um deles pedindo-me que ficasse quieto: estava su-jando todo o cho. Aquela meia-reclamao foi tudo que ouvi daquelesdois.

    J do lado de fora, contei minha histria aos policiais. Senti que se

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    ela no chegou a convenc-los, pelo menos deixou-os desarmados, umavez que fui eu que os chamei. Enquanto me revistavam, encontrei o olhardo senhor que trabalhava na banca de revistas. Ele olhava-me e fazia ges-tos com a cabea. Balanava-a de modo a indicar os dois PMs, que esta-vam de costas para ele. O nico significado provvel daqueles gestos,pensei na hora, era de que aqueles guardas a quem pedi ajuda tinhamsido os autores do disparo que me atingiu. Desconfiado, calei-me e, ale-gando dores na perna, sentei no batente da porta da farmcia.

    Um dos policiais se afastou em direo ao bar, provavelmente parafazer as averiguaes de praxe. No demorou muito. Enquanto voltava, ooutro se dirigiu ao telefone da farmcia. Vigiava todos os seus movimen-tos com muita ateno. O que voltou do bar retirou do seu uniforme a

    identificao que fica presa a ele a velcro. Ele fez isso na minha frente,vindo em minha direo. Quando o outro voltou do interior da farmcia,j veio sem o nome que deveria estar no uniforme. Daquele momento emdiante, eles eram apenas policiais militares ocultos pelo uniforme, semnomes, nem rostos. Pensei que o melhor agora era manter-me calado,falar o menos possvel. No podia passar por cima de minhas desconfi-anas.

    Os PMs perguntaram-me de novo o que havia acontecido. Repeti

    minha histria, como faria inmeras vezes naquele dia. Notei que elesno estavam prestando ateno ao que dizia, pareciam muito agitados,olhando insistentemente para o cho, procurando alguma coisa. Termineimeu relato j sem esperanas de que ele mudasse alguma coisa ou tivessealgum peso. Calei-me. Seguiu-se um silncio de ambas as partes. Espe-rvamos, pensei, uma ambulncia.

    Vieram, contudo, viaturas da polcia. A primeira delas veio parano ficar. Os policiais estavam apressados. O motorista chamou um dos

    PMs que estava comigo, disse que logo chegaria outra viatura que cuida-ria do caso, olhou nervosa e inquiridoramente ao redor e saiu to apres-sado quanto chegou. Logo depois chegou a segunda. Os dois ocupantesdesceram e falaram com os policiais que me acompanhavam.

    O que foi que houve?perguntou o motorista.

    O cidado a, ia passando e tomou um tiro respondeu um dosque estavam comigo.

    Vocs viram alguma coisa?tornou o motorista.No, a gente no viu nada. Ns chegamos e ele j estava baleado

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    a. Diz que no sabe quem foi, no sabe o que aconteceu, no viu nada respondeu o mesmo guarda, repetindo sem muito entusiasmo minha his-tria.

    O policial que fazia as perguntas me encarou com seu olhar maisduro. Observou o ferimento, que a essa altura j sangrava muito. Por fimse afastou para checar o local. O outro PM que estava no lugar do caronana viatura ficou todo esse tempo observando tudo um pouco afastado.Quando o motorista voltou, revistou-me mais uma vez e mandou que euentrasse na viatura. Para que meu sangue no sujasse o interior do carro,foi providenciado um saco de lixo plstico no bar.

    Instalado no banco traseiro da radiopatrulha, percebi o grande mo-

    vimento que havia no seu rdio. Todo mundo parecia agitado naquelamanh. O carro comeou a se movimentar deixando para trs os policiaisdos quais suspeitava, os funcionrios da farmcia, uns poucos curiososque saram do bar e marcas vermelhas de sangue na calada.

    Aparentemente estvamos a caminho de uma soluo para o meuferimento. Mas, o fato de estar na presena de policiais militares me in-comodava. No devia nada, portanto nada devia temer. Sabia, no entanto,que as coisas no funcionam dessa maneira quando se est lidando com a

    polcia. As desconfianas que alimentava em relao primeira dupla depoliciais no se dissiparam e nada indicava que com estes as coisas seri-am diferentes. A verdade que no conheo ningum que se sinta von-tade na presena de policiais.

    No rdio a comunicao entre as viaturas e a central continuava deforma incessante, nervosa e frentica. O carona pegou o fone e fez conta-to com aquela rede. No deu para perceber se fazia contato com outrasviaturas ou se com o controle central, sabia que ele deveria informar que

    estava me levando para atendimento de socorro.Levando mala ao PS, cmbiodisse ele a certa altura.

    Quando veio a resposta do rdio foi que percebi que a mala a

    qual se referia era eu, e o PS era uma abreviatura para Pronto-Socorro.Mas, decodificar aquela linguagem no teria sido possvel se as instru-es passadas no ordenassem que eu fosse levado para o local ondeacontecera um assalto. Um baleado sempre um suspeito, e um suspeitodeve ser averiguado. Estava certo em me sentir apreensivo por estar em

    companhia de policiais. O carona trocou olhares desconfiados com o mo-torista e depois se virou para mim, dizendo:

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    Ih, maluco. Vai pegar pro seu lado.

    Esta frase foi dita com uma expresso facial armada de tal forma ano deixar dvida que eu estava em dificuldades. Quebrei ento o siln-

    cio que vinha mantendo desde que entrei no carro. Falei o que falariainmeras vezes ao longo daquele dia: disse que no sabia o que estavaacontecendo e repeti minha histria mais uma vez. Falei inutilmente, poisos policiais no me davam ouvidos. J estavam muito ocupados em ma-traquear pelo rdio, num linguajar repleto de grias que desconhecia. Le-vei muito tempo para me acostumar com aquela linguagem e comear acompreend-la. Antes disso, porm, passei por uma barreira de incomu-nicabilidade que me atrapalhou muito.

    Portanto, ali estava eu, a caminho de uma averiguao policial,sem documentos que dissessem quem era eu, sem dinheiro, sem endereofixo em So Paulo, e ainda por cima, baleado. No era uma situao queesperasse encontrar e que achasse fcil de sair. Estava em dificuldades.Sabia que seria difcil convencer policiais, sempre to ansiosos por mos-trar servio, de que no tinha nada a ver com o que quer que estivesseacontecendo. Minha cabea era um turbilho de pensamentos angustia-dos, conquanto procurasse aparentar o mximo de calma que o momentome permitia. As coisas no se somavam, se multiplicavam. Resolvi guar-

    dar para mim a desconfiana que nutria quanto aos primeiros PMs. Falaralgo parecido para outros soldados seria pura insensatez. Permaneci ca-lado. No podia fazer muita coisa mais.

    A viatura agora se movia com maior rapidez. A sirene ligada pro-curava abrir caminho no trnsito do centro de So Paulo. ramos agoraum Opala cinza da PM que andava em alta velocidade e gritava sua pres-sa.

    O local para onde fomos era uma espcie de calado, cercado porprdios ora pomposos, ora simplrioscaixotes de cimento, as maravi-lhas da arquitetura moderna. A julgar pela confuso que havia ali, oacontecimento tinha sido de grande gravidade. Naquele espao acotove-lavam-se curiosos, policiais militares em grande nmero, viaturas e umcaminho de transporte de tropas da polcia.

    A tarefa de estacionar exigiu alguma pacincia e cuidado do moto-rista. Policiais que j se encontravam no local afastavam os curiosos, pa-

    ra dar lugar viatura. Os olhares convergiam para ns. Os PMs que meconduziram saltaram. O motorista mergulhou na multido, nela desapa-recendo. O carona ficou prximo ao carro, conversando com outros sol-

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    dados. S, no interior do Opala, sentia os olhares sobre mim. Eram des-confiados e acusadores.

    A porta foi aberta e recebi ordem para sair. Arrastei minha perna

    ensanguentada para a calada. Fiquei de costas para o veculo e para olocal de maior aglomerao. Na minha frente, alguns policiais e a ruamovimentada.

    O PM que ordenou minha sada me revistou era a terceira vezem menos de meia hora que faziam aquilo. Ele era um sujeito jovem,grande e branco. Estava bastante nervoso. Levantou, ento, meus braose se ps a cheirar minhas mos. Ocorreu-me neste momento que houvetiroteio naquele local. Aquele policial farejava meus braos atrs de res-

    qucios de plvora. Olhei de relance para a multido s minhas costas.No sei o que procurava. De qualquer modo, s encontrei os olhares oradesconfiados, ora acusadores. Homens e mulheres que no sabiam muitobem o que fazer da vida, acusando-me de ser culpado por suas pequenasmisrias e pelo medo que sentiam.

    O sujeito acabou de farejar ao mesmo tempo em que o motoristavoltava seguindo um tipo alto, corpulento, de gestos bruscos e violentos.Pelo ar de quem s decide as coisas pelo grito, percebi que se tratava de

    um sargento.E a?perguntou o sargento para o que me farejou.

    A resposta do PM farejador foi um gesto negativo com a cabea.

    Seguiu-se um breve silncio, longo o suficiente para muita hesita-o por parte dos policiais e alguma, mas no muita, esperana de minhaparte.

    E ento?perguntou o carona.

    ele mesmo. Pode levarfoi a resposta do sargento.

    A partir daquele momento eu estava detido e minha sorte, para ossete meses seguintes, selada. Viraram-me. Fiquei de frente para o carro epara a multido que a tudo observava. Sentia-me humilhado. Colocaramalgemas em meus pulsos. Com as mos presas s minhas costas, fui co-locado de volta no interior da viatura. Pude ouvir o sargento dando or-dens para que me levassem ao pronto-socorro e depois ao Distrito Polici-al.....

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    .......

    Para que tu queres isso!? Me diz meu irmo!? Se referindo mquina que tenho entre as mos Joga fora essa mquina! Acabou.

    Agora cuidar da vida.Concordo. Jogo a mquina no cho e, com o calcanhar do sapato,

    quebro-a. Jogo-a no lixo. Volto sacola. Olho detidamente as cartas. Socartas que recebi da minha famlia enquanto estava preso. Rasgo-as emvrios pedaos e dou-lhes o mesmo destino da mquina de fotografar.Quero esquecer do que aconteceu, da cadeia. Livro-me de tudo que possalembrar-me dela.

    Volto a conversar com meu irmo. O nibus que nos levar ao ae-

    roporto vai, finalmente, sair. Vamos at seu ponto de parada.Deixo atrs de mim, numa lata de lixo, as lembranas que guarda-

    va da cadeia. A iluminao da estao queima lentamente o filme e suasfotos. Os corredores perdem sua profundidade. Os dias de visita, sua re-lativa alegria. Pituca, Joo e Alemozinho, seus sorrisos. A luz faz tudoisso esvaecer. As cartas tomaro, no dia seguinte, o mesmo destino dasfotografias no reveladas: vo sumir em meio ao lixo da cidade.

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    Nota Final

    Entre o trmino desta obra em 1994 (A Alma dos Corpos: La-dres, Humildes, Vaciles e Bandides nas prises paulistas . Ttulo ori-ginal, ISBN 124.612-193-262) e esta publicao, passaram-se quase vin-te anos. Nesse intervalo de tempo, a Casa de Deteno de So Paulo

    cenrio em que se passa metade da histria que aqui contamosfoi desa-tivada e demolida em sua quase totalidade. Ficamos, assim, diante dodilema de modificar o texto, atualizando-o, ou mant-lo como no origi-nal, preservando aquilo que lhe deu origem: a necessidade de falar deuma realidade que estava acontecendo naquele momento. Quando escre-vemos, o Complexo do Carandiru ainda estava l, com seus pavilhes,corredores e celas repletos de presos, alguns dos quais eram nossos per-sonagens. Por isso o Leitor no deve estranhar nossa deciso de falar daDeteno como se ela ainda hoje estivesse ativa.

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    Sobre os Autores

    Osvaldo Valente socilogo e professor de cincia poltica na Universidade

    Federal do Par - UFPA.

    Silvio Cavalcante professor, analista programador, designer grfico. Atual-mente trabalha em pesquisa e desenvolvimento na rea de eficientizao deenergia.

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