o naufrágio da nau da carreira da Índia

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1 O naufrágio da nau da Carreira da Índia 7 de Novembro de 1615 Ilha do Faial, Açores Alexandre Monteiro Horta.1999

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O naufrágio da nau da Carreira da Índia

7 de Novembro de 1615

Ilha do Faial, Açores

Alexandre Monteiro

Horta.1999

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Índice

1 INTRODUÇÃO 3

2 RESUMO HISTÓRICO 4

2.1 A partida da Armada de 1614 6

2.2 A permanência em Goa 9

2.3 A viagem de retorno a Lisboa 10

2.4 A arribada à ilha Terceira da nau São Filipe 11

2.5 O naufrágio da nau capitânia Nossa Senhora da Luz 13

2.6 O salvamento da carga da Nossa Senhora da Luz 15

2.7 O tesouro do Pegu 19

3 AS MERCADORIAS DA NOSSA SENHORA DA LUZ 21

3.1 Panos 21

3.2 Especiarias e drogas 21

3.3 Pedraria 22

3.4 Porcelanas 22 3.4.1 Descrição sumária dos fragmentos de porcelana recuperados do local do naufrágio 23

4 LOCALIZAÇÃO DO SÍTIO DO NAUFRÁGIO 26

5 CARACTERIZAÇÃO DO SÍTIO DO NAUFRÁGIO 27

CONCLUSÕES 28

6 RECOMENDAÇÕES 30

7 APÊNDICE DOCUMENTAL 31

8 BIBLIOGRAFIA 52

O presente relatório resulta dos esforços conjuntos da Direcção Regional da Cultura, do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática do Instituto Português de Arqueologia e do Institute of Nautical Archaeology da Universidade A&M do Texas, na localização e caracterização arqueológica do sítio do naufrágio da Nossa Senhora da Luz.

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Introdução

Em Agosto de 1998, uma expedição promovida pela Direcção Regional da Cultura e liderada pelo Professor Kevin Crisman, do Institute of Nautical Archaeology da Universidade A&M do Texas, tentou delimitar, na ilha do Faial, o local do naufrágio da Nossa Senhora da Luz, uma nau portuguesa da Índia, capitânia da Armada de 1614, ali naufragada a 7 de Novembro de 1615. Apesar de se ter circunscrito a zona provável do naufrágio a uma área compreendida entre a Ponta Furada e a praia de Porto Pim, na costa sul do Faial, e de se terem efectuado dois mergulhos de reconhecimento, a natureza do fundo bem como o aparecimento de condições meteorológicas adversas levou a que a expedição arqueológica tivesse de abandonar o local sem que a zona do naufrágio tivesse sido identificada. Em Junho de 1999, a Delegação nos Açores do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS-A) procedeu ao estudo arqueológico de uma zona da baía da Horta, prestes a ser impactada pelas obras de ampliação da Marina da cidade. Simultaneamente, no intervalo que mediou entre a conclusão dos trabalhos de prospecção e o início das dragagens no local estudado, o CNANS-A levou a cabo vários mergulhos na zona acima assinalada, com a finalidade de determinar o local preciso do naufrágio da Nossa Senhora da Luz.

É precisamente dos resultados dessa prospecção, bem como da pesquisa documental até agora efectuada sobre o mesmo assunto, que trata o presente relatório, que não se pretende exaustivo mas sim que reflicta o estado actual da investigação, tanto histórica como arqueológica.

Abreviaturas BA – Biblioteca da Ajuda. AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. BPADPD – Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Ponta Delgada. FEC – Fundo Ernesto do Canto. BPADH - Biblioteca Pública e Arquivo Distrital da Horta. AGS – Archivo General de Simancas. Desenhos: Catarina Garcia Pesquisa documental, fotografia e cartografia: Alexandre Monteiro Mergulho: Erik Phaneuf e Alexandre Monteiro

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Resumo histórico A história do naufrágio da nau Nossa Senhora da Luz, capitânia da Armada de 1614 começa verdadeiramente em 1613, com os preparativos da Armada que nesse ano iria à Índia.

Com efeito, a viagem da Armada de 1613, comandada por Dom Manuel de Meneses, foi extremamente aziaga. Partindo de Lisboa a 4 de Abril, as naus viram-se forçadas a arribar a Lisboa, a 23 de Agosto do mesmo ano1, devido ao mau tempo e às deficientes condições em que tinham sido aparelhadas e providas. O estudo da documentação relativa à arribada da Armada de 16132 revela-nos que as quatro naus que a compunham3 foram reparadas em Lisboa, atrasando-se a sua partida para o ano seguinte.

1 MALDONADO, M. (1985) – Relação das Náos e Armadas da Índia Com os sucessos dellas que se puderem saber, Para Noticia e instrucção dos curiozos, e amantes Da Historia da Índia (British Library, Codice Add. 20902): Leitura e anotações de Maria Hermínia Maldonado. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, p. 125. 2 Cf., por exemplo, BA: - 18 de Janeiro 1613, Carta do bispo D. Pedro de Castilho a D. Francisco de Castelo Branco sobre o apresto das naus da Índia. Governo de Portugal. Cartas do Conde de Sabugal, nº 133, fl. 212v., Cod. 51-VIII-15. - 11 de Fevereiro de 1613, Regimento que há-de guardar Paulo Rangel de Castel-Branco, capitão da nau Nª Srª do Remédio, que vai à Índia. Regimentos, Instruções e Resoluções Pertencentes à Índia, nº 39, fls. 132-135 v. Cod. 51-VII-11. - 29 de Março 1613, Carta do bispo D. Pedro de Castilho a D. Francisco de Castelo Branco sobre a partida das naus da Índia; sobre as coisas que hão-de ir e vir da Índia e a repartição das esmolas por a vinda das naus da Índia. Governo de Portugal. Cartas do Conde de Sabugal, nº 148, fl. 230v., Cod. 51-VIII-15. - 30 de Março 1613, Carta do bispo D. Pedro de Castilho ao duque de Lerma sobre a partida das naus da Índia; e a chegada a Sagres da nau Santa Helena muito destroçada e falha de gente. Cartas do bispo de Leiria para o duque de Lerma, nº 10, fl. 10, Cod. 51-VIII-20. - 6 de Abril de 1613, Carta do bispo D. Pedro de Castilho a D. Francisco de Castelo Branco sobre a partida das naus da Índia. Governo de Portugal. Cartas do Conde de Sabugal, nº 22, fls. 35-36, Cod. 51-VIII-15. - 5 de Setembro de 1613, Carta de Fernão de Matos para o bispo D. Pedro de Castilho sobre a arribada das naus da Índia e o socorro que se há-de enviar à Índia. Cartas de Fernando de Matos e Francisco Lucena para o bispo inquisidor-geral, nº 115 Cod. 51-VIII-13. - 28 de Setembro de 1613, Carta do bispo D. Pedro de Castilho a D. Filipe II sobre a arribada das naus da Índia; a venda da pimenta e as despesas com as naus novas e o apresto da armada para socorrer a Índia. Cartas do Bispo para El-Rei, nº 22, fl. 35, Cod. 51-VIII-16. - 2 de Outubro de 1613, Carta de Fernão de Matos para o bispo D. Pedro de Castilho sobre o apresto das naus da Índia. Cartas de Fernando de Matos e Francisco Lucena para o bispo inquisidor-geral, nº 116, fls. 249-251v. Cod. 51-VIII-13. - 13 de Novembro de 1613, Carta de D. Filipe II sobre a devassa que se tirou da arribada das 4 naus da Índia, capitaneadas por D. Manuel de Meneses; sobre a nomeação de pessoas para capitão-mor da Armada que irá para a Ìndia. Cópias das Cartas d’El-Rei para vários vice-reis de Portugal e outras pessoas, nº 45, fls. 68, Cod. 51-VIII-9. - 19 de Março de 1614, Carta de D. Filipe II ao bispo D. Pedro de sobre a arribada das naus da Índia e culpados nela. Copia das Cartas d’el Rei para vários Vice Reis de Portugal e outras pessoas, nº 48, fl. 71, Cod. 51-VIII-9. 3 Naus Nossa Senhora da Luz, São Boaventura, São Filipe e Nossa Senhora dos Remédios.

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Para as capitanear, foi escolhido Dom Manoel Coutinho.4 Nesse ano, às quatro naus do ano anterior juntou-se uma quinta nau, a Nossa Senhora de Guadalupe. Devido ao adiantado da época de partida, o próprio capitão mor aplicou-se no apresto das naus, como quem conhecia que da presteza e bondade dos apparelhos e provimentos, a ninguem resultava maior bem, ou mal do que a elle. Parte do interesse de Manuel Coutinho adviria certamente do desejo que tinha em ver o seu irmão, Dom Diogo Coutinho, que já há vários anos servia como capitão da praça de Cochim.5

4 Manuel Coutinho andara já embarcado na armada das Ilhas em 1593, antes de receber o comando da Armada de 1614. Coutinho residira em Madrid entre 1612 e 1613, recebendo a mercê da Capitania-mor da Armada da Índia, na vagante dos providos, graças aos serviços do pai e de um seu irmão, a 19 de Junho de 1601. Cf. GUEDES, M. (1995) – Viagem da Birmânia aos Açores – Filipe Brito de Nicote e o naufrágio, no Faial, da nau capitânia Nª Srª da Luz. In O Faial e a Periferia Açoriana nos Sécs. XV a XIX. Horta: Núcleo Cultural da Horta, p. 153, e IRIA, A. (1973) - Da navegação portuguesa no Índico no século XVII: documentos do Arquivo Histórico Ultramarino. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 2º edição, p. 244. 5 BOCARRO (1876) – Década 13 da História da Índia, composta por Antonio Bocarro chronista d’aquelle Estado publicada de ordem da classe de sciencias sociais moraes, politicas e bellas-lettras da Academia Real das Sciencias de Lisboa e sob a direcção de Rodrigo José de Lima Felner socio da mesma Academia: Parte I. Lisboa: Typographia da Academia das Sciencias, p. 323.

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A partida da Armada de 1614

Por ordem real, foi atribuído a Paulo Rangel de Castello Branco o posto de

almirante da frota, com o comando da Nossa Senhora dos Remédios; a João Soares Henriques o comando da Nossa Senhora de Guadalupe; a Luiz Ferreira de Mendonça Furtado, o comando da São Boaventura e a Manuel de Vasconcellos o da São Filipe.6 De acordo com algumas fontes, à frota de cinco naus juntaram-se duas urcas, uma denominada Fortuna, sob o comando de Rui de Melo de Sampaio, e outra denominada Esperança, comandada por Francisco de Sousa Pereira.7

O apresto e a partida das naus de 1614 estão igualmente bem documentados,8 sabendo-se que a Armada saiu de Lisboa, em dois grupos: um a 8 e outro a 10 de Abril de 1614. A capitânia,9 navegou de acordo com a rota estipulada no Regimento dado ao capitão mór,10 rota essa que era calculada todos os dias pelo piloto da Nossa Senhora da Luz, Gaspar Ferreira,11 que se vira quase que obrigado, no último momento, a voltar ao mar. Com efeito, por não haver piloto a que se pudesse encarregar a frota com confiança de a trazer a salvamento, similhante a Gaspar Ferreira, piloto mor que já estava aposentado, el-Rei o mandou vir, e por mais que elle se escusou o não houve por escuso, antes o obrigou com mais mercês, entre as quais o hábito de Christo,12 o que parece ter-se verificado já que, pelo menos em 1617, Gaspar Ferreira era cavaleiro do hábito de Santiago.13 Na paragem da Guiné, com grandes calmarias tiveram muitas doenças de que lhe morreu copia de gente, acabando tambem o capitão Luiz Ferreira, capitão da nau São Boaventura. Em seu lugar elegeu-se Diogo de Sousa de Meneses, fidalgo que já tinha servido na Índia e que vinha despachado para a fortaleza de Ormuz.

6 Embora alguns autores (cf. GUINOTE et al., p. 240) dêem como certa a perda de uma nau da armada de 1614, denominada Nossa Senhora da Conceição no cabo de Santo Agostinho na costa do Brasil, parece-nos que esta nau nunca terá saído em conserva com as cinco que temos vindo a tratar. 7 MALDONADO, op. cit., p. 126. 8 Cf., por exemplo, BA: - 8 de Fevereiro de 1614, Carta do bispo D. Pedro de Castilho a D. Francisco de Castelo Branco sobre o estado das naus da Índia. Governo de Portugal. Cartas do Conde de Sabugal, nº 166, fl. 269, Cod. 51-VIII-15. - 6 de Março de 1614, Carta do bispo D. Pedro de Castilho a D. Francisco de Castelo Branco sobre a próxima partida das naus da Índia e a venda da pimenta. Governo de Portugal. Cartas do Conde de Sabugal, nº 140, fl. 220-220v., Cod. 51-VIII-15. 9 Navio onde ia embarcado o capitão-mór de uma armada. 10 BA, 30 de Janeiro de 1614, Regimento que há-de guardar D. Manuel Coutinho, capitão-mor das naus da Índia. Regimentos, Instruções e Resoluções Pertencentes à Índia, nº 40, fls. 138-145 v. Cod. 51-VII-11. Para uma ideia aproximada de como se processava o processo de pilotagem de uma nau da Carreira da Ìndia, cf. LEITÃO, H. ed. (1958) – Viagens do Reino para a Índia e da Índia para o Reino (1608 – 1612): Diários de navegação coligidos por D. António de Ataíde no século XVII. Introdução e notas do Comandante Humberto Leitão. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, vols. I e II. 11 Viterbo considera que este Gaspar Ferreira é o mesmo Gaspar Ferreira Reimão, autor de um Roteiro de Navegação e Carreira da Índia, impresso em 1612 por Pedro Craesbeeck. Cf. VITERBO, F. (1988) – Trabalhos náuticos dos Portugueses: séculos XVI e XVII por Sousa Viterbo. Reprodução em fac-símile do exemplar com data de 1898 da Biblioteca da Academia das Ciências. Introdução de José Manuel Garcia. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, p. 147. 12 BOCARRO, op. cit., p. 324. 13 Cf. doc 14, em apêndice: .AHU, Índia, 20 de Fevereiro de 1617, Auto da consulta feita por Gaspar Ferreira, piloto mór, e Paulo Rodrigues da Costa, sobre a aptidão de Marçal Luís para piloto da Carreira da Índia. (apud IRIA, op. cit., pp. 35 – 37).

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Ao passar do Cabo14 as naus São Felipe e São Boaventura, que tinham partido em conserva15 de Portugal16 dous dias depois das outras, encontraram a Capitania isolada. E todas tres Em conserva fizeram a viagem por fora17 por ser tarde posto que avia muita falta de mantimentos dos soldados Principalmente na nao Sao fellipe por vir nella muita gente. Mas os particulares E padres da Companhia que vinhão na mesma nao acodirão com seus mantimentos aos neçessitados de maneira que não ouve falta nem aos doentes que forão muitos E mortos em cantidade do mal de loanda18 que he doença mui serta naquela paragem.19

Deste modo, e em conserva, as naus São Felipe, São Boaventura e Nossa

Senhora da Luz chegaram a Goa a 7 de Novembro com mui trabalhosa viagem pella tardança com que as naos partirão de Lisboa, e tão arriscadas a arribar20 como em 1613 por causa dos ventos escasos e da corrente das Agoas.21 A viagem fora trabalhosa, como já vimos, com muita gente morta de doenças. Dos mais de tres mil soldados, que se embarcaram em Lisboa n’estas cinco naus, não chegaram á India mil e quinhentos.22 Ao que parece, por não virem em conserva com as outras, a nau almiranta23 e a de João Soares Henriques,24 arribaram e foram invernar á costa de Melinde; a almiranta a Mombaça.25

Com efeito, diz-nos Bocarro que a nau de João Soares Henriques, indo arribada para invernar em Melinde, chegou a elle em dezembro. Onde surgiu26, e mandando a terra, esteve muitos dias fóra com determinação de invernar27 em Mombaça, pela melhor commodidade que n’ella ha para tudo: e levando-se para o fazer, tendo a barquinha28 em terra, corriam tanto as aguas para o estreito, que depois de andarem dois dias feitos ao mar com mui bom vento, quando tornaram a reconhecer a terra, parecendo-lhe estavam já em Mombaça se viram outra vez em Melinde, e indo para terra de noite deu a nau29 em uma restinga30 que corre em Melinde duas leguas ao mar, onde botou logo o leme fóra, e ficou em seco n’ella. 14 O cabo da Boa Esperança. 15 Ou seja, navegando em companhia de outro ou outros navios. 16 A 10 de Abril de 1614. Cf. MALDONADO, op. cit., p. 125. 17 Através do Índico Central, por fora de Madagáscar, o que permitia escapar às monções, mas que implicava uma viagem que, apesar de ser mais rápida, praticamente não tinha pontos de referência nem escalas de apoio. 18 Escorbuto, que atacava geralmente nas paragens da Guiné e Angola. 19 AHU, Carta do Vedor da Fazenda Pedro Correia de Azevedo a Felipe II. Índia, 25 de Dezembro de 1614. 20 Desviar-se da rota que levavam, por causa do tempo; regressar ao porto de saída ou seguir para outro diferente daquele a que se destinavam. 21 AHU, Índia, 25 de Dezembro de 1614, doc. cit. 22 BOCARRO, op. cit., p. 326. 23 A nau Nossa Senhora dos Remédios. 24 A nau Nossa Senhora de Guadalupe. 25 A Nossa Senhora dos Remédios, comandada por Paulo Rangel de Castelo Branco, naufragou na Barra Goa, a 28 Janeiro de 1616, de acordo com a Relação da British Library, que nos diz que a nao de que era capitão Paulo Rangel de Castel Branco invernou em Mombaça e foi a Goa a [?] de Maio de 1615 e estando carregada para vir para este Reino [Portugal] no anno seguinte se perdeo na barra de Goa e não se salvou a fazenda. Cf. MALDONADO, op. cit., p. 126. 26 Aportou, ancorou no porto. 27 Aguardar, em Mombaça, por tempo favorável de modo a prosseguir viagem. 28 Pequena embarcação com painel de popa, mas com o fundo chato. 29 A 31 de Outubro de 1614 e, ao que parece, por erro do piloto. Cf. MALDONADO, op. cit., p. 126. 30 Ponta de areia ou pedra que se afasta mais ou menos do litoral e que descobre, às vezes, na maré baixa.

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O que vendo os officiaes, deram algumas bombardadas, a que não acudiu ninguem da terra; e cortando o mastro, para poder mais aliviar, a nau se encostou logo. Com que todos se deram por perdidos; porém ainda assim se salvou toda a gente, que foi para Mombaça e d’ahi veiu para Goa, e alguma fazenda.31

31 BOCARRO, op. cit., p. 325-326.

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A permanência em Goa

Mesmo reduzidos a metade, os efectivos militares transportados pela Armada de 1614 foram decisivos para a boa conclusão das campanhas militares que decorreram no Norte do Estado da Índia. No entanto, para este estudo não interessam por enquanto as vicissitudes e os sucessos que o vice-rei experimentou. Interessa sim saber que, por as naus terem vindo tarde, assim foi tardio o aviamento que se lhe deu.32

Sabe-se que o vice-rei tentou deixar as naus prontas para partirem para Lisboa

antes de se dirigir para as guerras do Norte, deixando na sua ausência dom Frei Cristovão de Lisboa, arcebispo de Goa, na finalização do apresto das naus. Como o Cambaia, de onde vinham as principais exportações têxteis para Portugal, estava de guerra, tractou [o Vice-Rei] de as mandar negociar com as roupas do Balagate, de que não faltavam muitas sortes, esperando juntamente que de Cochim viesse a cafila com as de Tutucorim, Negapatão e Bengala, e mais drogas e fazendas do Sul; procurando e ajudando da sua parte tudo o que podia para que as naus fossem muito ricas; porque bem conhecia que conforme o que rendessem em Portugal á fazenda de sua Magestade, haviam de ser os soccorros que lhe mandassem a este Estado. Mas nem só de panos se carregavam as naus da Índia. Faltavam os carregamentos de especiarias que tanto lucro davam à Coroa. No entanto, só a 9 de Dezembro de 1614 - mais de um mês após da chegada da Armada - é que finalmente partiu de Goa uma frota composta por uma galé e sete navios, comandada por Jorge de Castilho, para trazer pimenta de Cochim e de Coulão, destinada aos navios de Dom Manuel de Coutinho.33

Quando o apresto ficou finalmente completo, faltavam roupas de Cambaia com

cafila particular, pelo Mogor estar de guerra mas haviam, em compensação, muitas drogas do Sul e fazendas da China, das que tinham chegado na frota dos galeões de Miguel de Sousa, e João Caiado. As mercadorias da China eram de muitas sortes, todas mui requestadas em Portugal e suas conquistas e contornos.

Embarcada foi tambem alguma pedraria particular de diamantes, que posto não

era em tanta copia como depois que foram descobertas as minas d’elles no reino de Golconda, nunca deixava de haver alguns que se levavam e compravam, mas tão caros que se ficava interessando n’elles mui pouco.34

32 BOCARRO, op. cit., p. 327. 33 Idem, pp. 335-336. 34 Ibidem, p. 367.

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A viagem de retorno a Lisboa

Acabadas de aprestar, as naus partiram em fevereiro de 615; porém tão avolumadas e empachadas35 que a poucos dias de viagem tornaram a arribar á barra de Goa36, d’onde as duas, capitaina, e de dom Manuel de Vasconcellos, mandaram recado ao arcebispo do estado em que vinham.

Ainda de acordo com Bocarro, o arcebispo Cristóvão de Lisboa mandou logo a

dom Diogo de Coutinho, capitão de Cochim, que tinha vindo a Goa vêr o dito seu irmão, fosse com todos os seus poderes, e fizesse desempachar as naus, pois tambem lhe convinha por parte de seu irmão fossem muito boiantes e desembaraçadas, sem respeito á fazenda, nem interesse de ninguem. Fel-o assim do Diogo Coutinho, e depois de lançar ao mar muitos fardos, que fora melhor a quem não tinha onde os agasalhar poupar o que n’elles gastou, tornou a despedir as duas naus do dito mez.37 As duas naus, a Nossa Senhora da Luz e a São Filipe encontraram então, a poucos dias de sua partida e perto das ilhas das Maldivas, a outra nau de Luiz Ferreira Furtado, em que ia por capitão Nuno da Cunha.38

Em apuros, a São Boaventura tinha aberto uma agua,39 que fazia tanta que a não podiam vencer. Bocarro relata que desenganados os que iam n’ella, mandaram recado ao capitão mór que quizesse receber a gente na sua nau, pois não tinham outro remedio para salvarem as vidas. O capitão mór, examinada a verdade, e achando ser na fórma que os da nau diziam , lhe disse que se viessem mui embora, que os recolheria de mui boa vontade; como em effeito vieram em algumas bateladas40 que se fizeram41, o que se acabou de fazer a 22 de Março de 1615, em altura de 6 graos da banda do Norte,42 com que ficou a nau despejada sem pessoa alguma. Com os passageiros, tripulação e a parte mais valiosa da carga da São Boaventura repartidos pelas duas naus sobreviventes, Dom Manuel Coutinho vendo-se com tanta gente, e considerando a pouca agua que levava, antes que entrasse em mais necessidade d’ella mandou encaminhar a Armada para Angola, para se provèr de tudo o de que fosse falto.43 Assim, tanto Gaspar Ferreira, piloto da capitânia, como Marçal Luís, piloto da São Filipe, tomaram Angola, apesar de as duas naus se terem apartado com os grandes temporaes que tiverão, na altura do Cabo da Boa Esperança. De Angola partirão ambas as duas em companhia ate a alltura das terceiras44 donde com grande temporall se apartarão.45

35 Atravancadas, não permitindo que as pessoas andem ou trabalhem à vontade. 36 A frota partiu a 9 Fevereiro, mas tanto a São Boaventura como a Nossa Senhora da Luz arribaram a Goa, donde partiram definitivamente a 15 Fevereiro de 1615. 37 BOCARRO, op. cit., p. 367. 38 Ou, de acordo com outras fontes, o capitão Manuel d’Almada Freire. Cf. MALDONADO, op. cit., p. 126. 39 Entrada de água para o interior da embarcação, fosse por rombo, fosse por má calafetagem das juntas. 40 Carga e pessoas transportadas por uma só vez num batel ou em qualquer outra embarcação. 41 Idem, p. 368. 42 MALDONADO, op. cit., p. 126. 43 BOCARRO, op. cit., p. 368. 44 Arquipélago dos Açores. 45 Cf. doc. 14, já citado.

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A arribada à ilha Terceira da nau São Filipe

Assolada pelas tempestades, a nau São Filipe apartou-se, a 31 de Outubro, da nau capitânia Nossa Senhora da Luz, a cerca de 150 léguas46 a sudoeste da Terceira.47 A nau capitânia ficara atravessada,48 como que lhe soccedera algum desastre. Inquietos, os comandantes da São Filipe e de uma caravela que vinha em conserva das duas naus tentaram socorrê-la mas não puderam arribar sobre a nao por ser o temporal muy forte, e sam filippe vir ainda mais piadoza, de maneira que não podião ser bons a ninguem.49

A caravela, em que vinha por capitão dela paulo Rodriguez da Costta, chegou a

Angra na tarde de 5 de Novembro, anunciando que as naus da Armada vinhão mui desbaratadas, e faltas de mantimentos e gente, fazendo muita agoa. Pouco depois, passadas duas oras chegou defronte do porto a nao são phellipe sao tiago, num estado miserável e em risco de se perder.50

Com efeito, a tripulação da São Felipe vinha amotinada, sem obedecer ao capitão,

com muita gente morta, e a viva tam doemte que não vinha de prestar asim no serviso continuo da bomba,51 como no ordinario da Nao. Surgindo defronte da Terceira, a tripulação quis por força ancorar a nau no porto de Angra e desembarcar o mais rápido possível.52 No entanto, o Provedor das Armadas achou que, se a nau entrava, não podera tornara a sair segundo os temporaes correrão, e se perdera, pelo que, por sua ordem, usou o patrão da ribeira de Angra de huma cautella, que fingindo os vinha anchorar, dobrou a nao fora da ponta de Santo Antonio e descahiu53 de modo, que logo ficou gilaventeada54 do porto.

No dia seguinte deu Deus huma calma, e tempo tam quieto, que Manuel do Canto

de Castro pôde prover a Nao de muitos mantimentos e Refresco,55 saindo do porto de Angra, ao meio dia, um barco com 23 homens pera o serviso da Náo, e a tarde outro em que foi o escrivão da Náo e despinseiro Satisfeitos com os mantimentos que levavão.56

46 Cerca de 890 km. 47 Cf. AHU, Carta do Contador da Fazenda da Terceira e Ilhas de Baixo para o Rei sobre a arribada da nau São Filipe à Terceira e do seu provimento. Açores, 7 de Novembro de 1615, doc. 1, em apêndice. 48 Recebia o mar de través, ficando o costado do navio exposto ao vento e ao mar, ficando o seu andamento reduzido ao mínimo. 49 Cf. AHU, Carta do Provedor das Armadas nas ilhas dos Açores ao Rei sobre o provimento da nau São Filipe bem como do naufrágio da nau Nossa Senhora da Luz, na ilha do Faial, e das acções que tomou para o salvamento da fazenda. Açores, 14 de Novembro de 1615, doc. 4, em apêndice. 50 Cf. AHU, Carta do Almoxarife da Ilha Terceira ao Rei sobre o provimento da nau São Filipe, o naufrágio da capitânia e sobre os gastos que se fizeram com o provimento e o envio de avisos a Lisboa. Açores, 21 de Novembro de 1615, doc. 5, em apêndice. 51 Serviço às bombas de esgoto que escoavam a água infiltrada no porão, operação que mantinha o navio a flutuar. 52 Cf. doc. 1, já citado. 53 Desviar-se da rota, em consequência do vento ou do mar, embora mantendo o mesmo rumo. 54 A nau perdeu barlavento, ficando para o lado para onde ia o vento. 55 Cf. doc. 4, já citado. 56 Cf. doc. 1, já citado.

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Desembarcaram da nau cerca de 70 homens que quasi mortos57 muitos e os mais delles mal, foram internados no hospital do Espirito Santo e, como não lhes deixaram ficar as suas fazendas com eles, ainda por cima ficaram pobrissimos.58 Conforme lhe ordenava o seu Regimento, o Provedor requisitou um patacho que estava surto no porto de Angra, para que este pudesse levar à Corte, em Lisboa, a notícia da chegada da Armada. Previdente, o Provedor ficou à espera da nau capitânia por a muita nesesidade que trazia, tendo mesmo preparados os mantimentos necessarios para a sua provisão.59 Infelizmente, Manuel do Canto de Castro esperou em vão. A nau capitânia Nossa Senhora da Luz naufragara no Faial, no mesmo dia em que a São Filipe partira para Lisboa, a 7 de Novembro. Das cinco naus que Filipe II esperava no ano de 1615,60 apenas uma conseguiria voltar a salvamento:61 a São Filipe.62

57 Cf. doc. 4, já citado. 58 Cf. doc. 1, já citado. 59 Idem, já citado. 60 Cf. BA, 8 de Julho de 1615, Alvará de D. Filipe II sobre o despacho das fazendas que vêm nas naus da Índia. Ms. Av. 54-IX-28, nº 106. 61 Não sem que, no entanto, não se deixasse de verificar a morte do seu capitão, Manuel de Vasconcelos, algures entre os Açores e o continente. A São Felipe entrou ao serviço em Março de 1611, durando 4 anos e 8 meses, durante os quais fez duas viagens completas Lisboa – Índia e arribando uma vez. Foi desmantelada em Novembro de 1615, após chegar a Lisboa, por ser considerada como incapaz de navegar. Tanto a Nossa Senhora de Guadalupe (5 anos e 7 meses a navegar) como a São Boaventura (6 anos a navegar) entraram em serviço em Março de 1609, ambas com uma arribada a Lisboa e uma viagem completa; a Nossa Senhora dos Remédios entrou em Março de 1610 e durou cerca de 6 anos. A Nossa Senhora da Luz era, de todas a nau com menor tempo de navegação (2 anos e 7 meses), tendo entrado em serviço em Abril de 1614. Cf. DISNEY, A. (1981) – A decadência do Império da Pimenta: comércio português na Índia no início do século XVII. Lisboa: Edições 70, pp. 207 – 209. 62 SOUSA, M. (1947) - Ásia Portuguesa por Manuel de Faria e Sousa (Cavaleiro da Ordem de Cristo e da Casa Real): tradução de Maria Vitória Garcia Santos Ferreira, vol. VI (que contém as partes III e IV do 3º tomo). Porto: Livraria Civilização, Biblioteca Histórica – Série Ultramarina, p. 51.

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O naufrágio da nau capitânia Nossa Senhora da Luz

Depois que ficara atravessada, a Nossa Senhora da Luz separara-se, como já vimos, da São Filipe e da caravela que as acompanhava desde Angola. A situação era cada vez mais desesperada: mesmo com a artelharia quasi toda allijada63, e muita fazenda deitada pela borda fora, a nau tinha cerca de 30 palmos de agoa64 no interior. Passageiros e tripulação, ja a so com a esperança de salvar as vidas, viam como única salvação o lançarem a nau contra a primeira pedra que encontrassem o que, desastradamente, acabaram por fazer num local alcantilado, a norte da baía de Porto de Pim, onde quebrarão o garopes da nao, que defendeu de não tocar o Costado onde se não podera salvar pessoa alguma; e discorrendo ao longo da Rocha a Nao, veyo alcançar huma anchora defronte do porto pim, onde lhe acudirão muitos barcos da terra.

O capitão mór, procurando salvar alguma fazenda da Nao, tratou de não deixar

dezembarcar a gente, ordenando mesmo que se guarnecessem as bombas, e gamottes65 de modo a que se pudesse impedir o afundamento da nau, pelo menos até ao amanhecer. A intenção de Dom Manuel Coutinho viu-se frustada pelo recrusceder do temporal, de modo a que muita gente se lhe lançou aos barcos de maneira que a Nao veyo garrando66 sobre a amarra67 e deo a costa aonde chamão a Carrasca da bando do porto pim68 e veyo dar atraves nas pedras, onde em continente69 se fez em miudos pedaços.

A agitação do mar lançou fora muita quantidade de fazendas e matou mais de

150 pessoas70 e as mais que escaparam puderam só salvar alguma cousa de mão. Entre os que sobreviveram contavam-se o capitão mór da São Boaventura, Nuno da Cunha, Dom Diogo de Vasconcellos e o bispo da China, Frei João Pinto. O piloto da Nossa Senhora da Luz, que também se salvou, vendo a perdição, e as muitas viagens que tinha feito á India a salvamento, dizia que pudera mais a má fortuna de Nuno da Cunha71 do que a sua boa.72

63 Carga, âncoras e/ou peças de artilharia deitadas ao mar para aliviar o peso do navio, mantendo a sua flutuabilidade. 64 Cerca de 6,6 metros, o que nos parece um exagero. 65 Vasilhas de madeira que eram usadas para ajudar a esgotar a água dos porões. 66 Arrastou a âncora sob a acção de vento ou estado de mar. 67 Cf. doc. 5, já citado. 68 Cf. AHU, Copia da carta do Capitão Mór da Ilha do Faial ao Provedor das Armadas nas Ilhas dos Açores sobre o naufrágio da nau Nossa Senhora da Luz, das acções tomadas para a salvaguarda da fazenda e pedindo a sua assistência para as mesmas, Açores, 10 de Novembro de 1615, doc. 6, em apêndice. 69 De imediato. 70 Cf. doc. 5, já citado. 71 Não resistimos aqui a transcrever uma passagem que dá uma ideia da “má fortuna” de Nuno da Cunha: Andando [Nuno da Cunha] com os seus baixéis por aqueles mares da Índia, desgovernados eles (creio que com uma tormenta) o advertiram de que se desviasse de um penedo onde iam despedaçar-se, e ele respondeu irado: “Como? Que me desvie? Desvie-se o penhasco, porque Nuno da Cunha jamais se desviou”. (…) Posto miseràvelmente sobre aquele penhasco, tudo perdido, dizia: “Ah Nuno, quem há-de suportar agora as tuas impertinências?”, porque no modo de se servir tinha muitas cerimónias. (apud SOUSA, op. cit., p. 52). 72 BOCARRO; op. cit., p. 368.

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Quanto ao capitão mór, acabou por ser o derradeiro, que quis sair da nao cuidando se tivesse inteira, e custara lhe a vida, porque o salvou hum nadador ja meyo afogado, e sem acordo.73

Alguns dos tripulantes da nau naufragada, sobreviventes ao naufrágio e

pertencentes quer à tripulação da São Boaventura, quer à tripulação da Nossa Senhora da Luz são identificados numa consulta real de 22 de Fevereiro de 1617. Entre eles contam-se Manuel dos Anjos, Sebastião Vogado, Amaro Gonçalves e João Carvalho, respectivamente piloto, sota-piloto,74 condestável75 e guardião76 da nau São Boaventura, bem como Martim Álvares, estrinqueiro,77 Francisco Ribeiro, guardião, João Álvares, condestável,78 Estevão de Viana, escrivão, Amaro Lopes, meirinho,79 todos da companha da nau capitânia.

73 Cf. doc. 5, já citado. 74 Pessoa que, não tendo ainda carta de piloto, possuía razoável prática e conhecimentos de navegação, ajudando o piloto a desempenhar as suas funções, e tomando o seu lugar caso tal se tornasse necessário. 75 Oficial, directamente subordinado ao capitão, que, a bordo, superintendia nos bombardeiros e na artilharia. 76 Oficial de marinheiros que imediatamente se seguia ao contramestre e que tinha ao seu cargo o arranjo do navio, manobras no convés, aparelho e todo o serviço da amarra. 77 Marinheiro que lidava com a estrinca, aparelho de eixo horizontal destinado a manobras das vergas – especialmente de papa-figos – de mastaréus e de outros que demandassem grande força. 78 cf. IRIA, A., op. cit., pp. 37, 39 e 46 79 Cf. GUEDES, op. cit., p. 158.

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O salvamento da carga da Nossa Senhora da Luz

O naufrágio da capitânia era, nas palavras de Dom Manuel Coutinho um

miseravel expectaculo pera ver e contar.80 Como espectáculo que era, atraíu de certeza a grande maioria da população da ilha ao local do sinistro, tanto mais que o temporal deu também com hum navio de sam thome a costa no porto de porto pim, no dia 9 de Novembro. Entretanto, saía à costa muita caixaria, e fardos de mercadoria. Impunha-se salvaguardá-la, não só dos roubos efectuados pelos náufragos e população, mas também dos efeitos da água do mar, a que eram especialmente sensíveis os panos e roupas que se haviam de lavar com água doce.81

Após o naufrágio, o capitão mor da nau cuidou de avisar o Provedor das Armadas, instando-o a que acudisse logo por serviço de deos e de sua magestade já que a sua presença era necessária pera a fazenda perdida e remedio dos homens que ali estavam.82 Manuel do Canto de Castro, notificado a 13 de Novembro, tratou logo de tomar as iniciativas necessárias para o arranque imediato das operações de salvamento da carga da nau afundada, fazendo conçertar huma caravella pera levar alguns buzios83 que mergulhassem, e salvassem alguma fazenda. Na caravela seguiram igualmente o patrão, e carpinteiro, e outros ministros, e homens do mar pera que não ficasse por ele a salvação de alguma couza se a Deus a desse.84

Entretanto, Manuel do Canto de Castro mandava igualmente beneficiar e por em boa guarda a fasenda que se salvasse da nao, artelharia e mais cousas della, avisando mesmo o Provedor da Fazenda da Ilha de São Miguel, João Trigueiros,85 do naufrágio, pedindo-lhe que também se dirigisse para o Faial, de modo a o poder assistir no salvamento da nau.86 O Provedor avisou também o corregedor das ilhas dos Açores, o juiz desembargador João Correia de Mesquita,87 que na altura se encontrava em São

80 Cf. AHU, Cópia da carta do capitão mór da Armada de 1614 ao Provedor das Armadas nas ilhas dos Açores sobre o naufrágio da nau Nossa Senhora da Luz, pedindo a sua intervenção no salvamento da fazenda e socorro da tripulação. Açores, 11 de Novembro de 1615, doc. 3, em apêndice. 81 Cf. doc. 4, em apêndice. 82 Cf. doc. 3, já citado. 83 Mergulhadores que, no mar do Oriente, se empregavam na apanha de ostras perlíferas, e que eram utilizados igualmente na reparação das obras vivas das embarcações ou na salvamento de cargas afundadas. 84 Cf. doc. 5, já citado. 85 Com poderes sobre os Capitães-donatários e Corregedores no que tocava ao bem da fazenda e às averigoações das contas e negocios que pertencião a real fazenda. Sobre as provisões e alvarás do Provedor da Fazenda cf. MALDONADO, M. (1990) – Fenix Angrence. Transcrição e notas de Helder Fernando Parreira de Sousa Lima. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, p. 36. 86 Cf., neste caso, AGS, Secretarias Provinciales, livro 1473, fl. 64, Carta de el-Rei para o Provedor da Fazenda das ilhas dos Açores, pedindo informações sobre os naufrágios de duas naus, nas ilhas do Faial e de São Miguel, s/d. 87 Cf. o Regimento do poder dos Corregedores nestas ilhas dos Acores, transcrito em MALDONADO, op. cit. p. 64 - 70. Curiosamente, apesar de ser obrigatório o registo, no Livro do Tombo da Câmara, da entrada do Corregedor no respectivo concelho, a presença de João Correia da Mesquita não pôde ser confirmada no referido livro da Câmara da Horta, já que o seu tomo III (precisamente o que respeita aos anos de 1615 - 1616) se encontra desaparecido da BPADH. Não duvidamos de que este naufrágio tenha sido registado no Livro do Tombo, já que Macedo, que o consultou em meados do século XIX, se refere à fazenda recolhida por Bartolomeu de Vasconcelos. Cf. MACEDO, A. (1981) – História das quatro ilhas que formam o Distrito da Horta. Reimpressão fac-similada da edição de 1871. Vol. I. Angra do Heroísmo: SREC/DRAC, p. 123.

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Jorge para que se dirigisse igualmente para o Faial.88 Finalmente, mandou notificar o Rei do sucedido e aconselhou-o a fazer transferir as mercadorias recuperadas do Faial para a Terceira visto esta última ilha ser impenetrável aos corsários que poderiam facilmente acometer o Faial se viessem a ter conhecimento do valor que lá se encontrava. Queixou-se também, um pouco amargamente, do facto dos seus conselhos não serem escutados e dos regimentos de navegação dos reis portugueses, anteriores a Filipe II, não serem seguidos à letra o que ocasionava, amiúde, naufrágios e outras tragédias semelhantes.89 Passaram todos aqueles notáveis à ilha do Faial, estabelecendo nas casas que tinham sido do capitão Jerónimo Dutra Corte Real uma Casa da Índia provisória, enquanto Dom Manuel Coutinho ficava alojado no Mosteiro de São Francisco90.

As operações de salvamento, que se desenrolavam ordenadamente, acabaram

por levantar problemas de ordem financeira, visto que o rendimento das ilhas se revelou insuficiente para poder suportar os custos de um salvamento desta envergadura, tendo de se recorrer ao dinheiro que se encontrava depositado para a rendição dos cativos.91 O Corregedor fez vir até ele a pedraria e cousas de vallor manuais soneguadas, por se terem manifestado algumas pessoas de terem e averem salvo do naufragio da dita nao algumas das ditas cousas as quoais comvinha inventariar com suas marquas E litreiros, pelo que João Correia da Mesquita as depositou em mão de pessoa abonada aonde estivessem seguras athe serem jnviadas a Caza da India.92 Assim, perante ele compareciam todos os que, de alguma forma, se tinham relacionado com a carga.

Uns tinham-na pura e simplesmente roubado das praias onde tinha dado à costa.

Outros, tinham-na guardado, visto que os seus legítimos donos não se contavam já entre o mundo dos vivos. Para minimizar os roubos era atribuída, como prémio a quem manifestasse pedraria, uma percentagem sobre o valor da entrega. Tal deu azo a que, durante o naufrágio, se tivesse lançado pedraria ao mar, no intuito de a recuperar mais tarde e de alcançar o respectivo prémio.93 Entre as mercadorias recuperadas encontravam-se dezasseis bizalhos94 com os respectivos sinetes a lacre vermelho.95

88 Cf. AHU, Treslado do auto da junta em que se reuniram o Provedor das Armadas, o Bispo de Angra e o Mestre de Campo, em que se decidiram as acções a tomar relativamente ao naufrágio da nau capitânia Nossa Senhora da Luz. Açores, 20 de Novembro de 1615, doc. 2, em apêndice. 89 Cf. doc. 4, já citado. Cf., igualmente, BPADPD, FEC, Provedoria das Armadas, t. II, doc. 24, fls. 72-76, Alvará de el-Rei para o Provedor das Armadas, mandando-lhe providenciar o salvamento da fazenda e pimenta da nau Nossa Senhora da Luz, s/d. 90 Cf. GUEDES, op. cit., p. 157. 91 Cf. AHU, Carta do Contador da Fazenda da Ilha Terceira e Ilhas de Baixo para o Rei sobre o embarque das fazendas e a artilharia recuperadas da Nossa Senhora da Luz e dos gastos feitos com o benefício das mesmas. Açores, 20 de Fevereiro 1616, doc. 10, em apêndice. 92 Cf. AHU, Treslado do auto feito pelo Corregedor das Ilhas dos Açores sobre a entrega, nas casas que serviam de Casa da Índia no Faial, da pedraria e mais mercadorias salvadas do naufrágio da nau capitânia. Açores, 4 de Dezembro de 1615, doc. 7, em apêndice. 93 Cf. GUEDES, op. cit., p. 156. 94 Sacos de couro com diamantes, esmeraldas, safiras e demais pedras preciosas. 95 Pertencentes a Felipe Dinis Pacheco, a seu filho Valentim Dinis, a Duarte Gomes, a Manuel Lopes Pereira e a Manuel de Sousa, da nau São Boaventura.

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Estes sacos de pedraria,96 bem como as peças de ouro guarnecidas de pedras preciosas, foram encerrados num saco de lona que, depois de lacrado com o sinete de armas do desembargador, foi guardado numa arca de três chaves em presença de João Correia de Mesquita e de Fernão Feijó Pita.97

Da praia, onde se montara vigilância, a mercadoria grossa foi levada para a Alfândega da Horta, onde foi arrumada em caixotes feitos com a madeira sobrante da nau, ignorando-se, portanto, os sinais exteriores que permitiriam identificar os respectivos proprietários.98 Entre as tarefas que se empreenderam de imediato, encontrava-se a lavagem e o dessalgamento das fazendas e tecidos, e o levantamento de dez peças de artilharia. A maior parte destas mercadorias, bem como a artilharia, seguiu para Lisboa a bordo de duas urcas99 que, comandadas por Bartolomeu de Vasconcelos, chegaram à Horta a 29 de Janeiro de 1616.100 A fazenda que ficou no Faial, ficou-o por não ter lugar nas urcas ou por se encontrar submersa, aguardando a ocasião de ser salva por mergulhadores101. Em Lisboa procedeu-se ao despacho da pedraria, fazendo-se novos registos e inventários das pedras entregues aos proprietários, depois de conferidas as marcas com as apresentadas pelas pessoas que tinham reclamado a posse.102

O descalabro da Armada de 1614 enfureceu Filipe II. Com efeito a corrupção e a incompetência verificadas, ainda na Índia, aquando da concessão de lugares a bordo,103 seguidas da negligência na perda da São Boaventura104 e do infortúnio do naufrágio da capitânia eram mais do que o Rei podia tolerar.

96 Contendo, certamente, rubis, pedras-bezoar, diamantes, esmeraldas e topázios. 97 Cf. doc. 7, já citado. Cf. igualmente: - AHU, Inventário da Pedraria embarcada a bordo da nau capitânia, Índia, 28 de Novembro de 1615. - AHU, Inventário das cousas que manifestou o Padre Manuel Gomes, passageiro da nau capitânia, Índia, 28 de Novembro de 1615. - AHU, Do que ficou na ilha do Faial da nau que aí naufragou vinda da Índia o ano passado, Índia, 28 de Novembro de 1615. - AHU, Livro em que se escrevem os caixões novos que se usam para o embarque das fazendas tiradas do naufragio da nau capitania. Códice 2045. 98 Cf. GUEDES, op. cit., p. 155-156. 99 Embarcações de fundo plano, muitas vezes de casco dobrado, de origem flamenga, usadas para transporte de mercadorias. 100 Cf. Carta do Rei ao Vice-Rei da Índia pedindo informações sobre os sucessos militares na Índia e pedindo maior cuidado no aprestamento das naus, 6 de Fevereiro de 1616, doc. 8, em apêndice. 101 Cf. ENES, M. (1983) – A provedoria das Armadas no século XVII (algumas notas). In Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol. XLI. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, pp. 147-173. 102 Cf. GUEDES, op. cit., p. 157. 103 Com efeito tinham chegado ao Rei queixas de se não darem logares nem licenças a muitos soldados velhos, que se vinham despachar a este reino, nas naus da armada de que veio por capitão mór Dom Manuel Coutinho, dando-se a alguns que ficaram n’essas partes que os venderam, e a outros que nas ditas naus vieram e que nunca o tinham servido. Cf. Carta do Rei ao Vice-Rei da Índia sobre o desconcerto que houve na atribuição de lugares na Armada de 1614 que regressava da Índia. 26 de Fevereiro de 1616, doc. 11, em apêndice. 104 Apesar da São Boaventura estar em risco iminente de se afundar, parece que a nau condenada pela tripulação se manteve à tona de água com as velas em riba sem ter quem a governasse assim á vela como ia, vindo dous dias seguindo as outras, athé que se ficou por detrás, sem a verem ir ao fundo o que foi a 22 de Março de 1615, cf. MALDONADO, op. cit., p. 126. Houve até quem disse que a via tres dias depois de larga: que foi causa de se pedir mui estreita conta ao piloto e mais officiaes, cf. BOCARRO, op. cit., p. 368. Manuel dos Anjos, o piloto da nau São Boaventura foi mesmo preso, só sendo libertado em 1617, cf. IRIA, op. cit., p. 37.

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Para cúmulo, existiam ainda suspeitas de que os oficiais da Coroa nos Açores não tinham procedido com a maior honestidade na arrecadação das fazendas.105 Só de Dom Manuel Coutinho, que acabou por ser preso, tiraram-se sete devassas,106 sendo acusado, entres outras coisas, de quebrar o Regimento ao arribar a Angola e aos Açores e de ter um número excessivo de pedras bezoar107 nas suas caixas de liberdade.108

Mas as devassas foram mais longe e chegaram até à Índia. No inquérito que Filipe II mandou tirar pelo Doutor Gonçalo Pinto da Fonseca sobre o mau aviamento das três naos, o rei queria especialmente saber se as ditas naos forão conçertadas de carpintaria e callafeto109 como convinha e se houvera nisso alguma falta e quem deu causa a ella ou a consemtio e desimulou. Para além disso, Filipe II queria igualmente saber se no modo de caregar as ditas naos houvera desordem ou exçesso e quem o causara ou o consentira e se com efeito tinham partido de Goa sobrecarregadas e tarde.110

105 Tanto que, antes da recolha da fazenda salvada da nau capitânia, o Rei mandou tirar uma devassa por Bartolomeu de Vasconcelos dos exçessos que o Corregedor (…) cometeo nas fazendas da mesma nao que Sairão nas prayas da dita Ilha. Cf. AHU, Parecer do Rei sobre as consultas feitas pelo Conselho da Fazenda relativas aos excessos do Corregedor das Ilhas dos Açores praticados aquando do naufrágio da Nossa Senhora da Luz. Açores, 29 de Junho de 1616, doc. 12, em apêndice. Entretanto, sabe-se que Estácio Machado, escrivão da Alfândega de Angra foi preso por furto da fazenda da Nossa Senhora da Luz, cf. GUEDES, op. cit., p. 158. 106 Cf. AHU; Devassa contra Dom Manuel Coutinho sobre o naufrágio da nau capitânia, Reino, 29 de Setembro de 1617. 107 Linschoten afirma que as pedras-bezar crescem dentro do estômago de um carneiro ou bode, e criam-se em volta de uma palhinha delgada que está no meio (…) a pedra é muito lisa e plana por fora, tendo uma cor esverdeada escura (…) esta pedra-bezar é muito preciosa e muito usada na Índia contra todos os venenos e enfermidades. Cf. LINSCHOTEN, J. (1997) – Itinerário, viagem ou navegação para as Índias Orientais ou Portuguesas: Edição preparada por Arie Pos e Rui Manuel Loureiro. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, p. 270. 108 Cf. GUEDES, op. cit., p. 154. 109 Estopa com que se tapam as juntas do tabuado, cobertas depois com breu, para evitar que a água por elas entrasse. 110 AHU, Treslado da devassa que o doctor gonçalo pinto da fonseca tirou per orde Sua magestade sobre o mao aviamento das tres naos do ano de 615 de que foy capitão mor Dom manoel coutinho, Índia, 24 de Dezembro de 1616. Cf., igualmente doc. 8, já citado.

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O tesouro do Pegu

Aquando do salvamento das fazendas da nau, a recolha de bizalhos e,

consequentemente, das pedras preciosas que neles vinham, ultrapassou tudo o que se poderia esperar ou imaginar.111

Com efeito, para além do contrabando normal, realizado quer pelas tripulações, quer pelos passageiros, a Nossa Senhora da Luz transportava um tesouro, saqueado ao Reino do Pegu,112 por um aventureiro português, Filipe Brito de Nicote.113 Nicote servira como mercenário ao serviço do Rei nativo Min Razagri, integrando o exército que, a partir do Reino do Arracão, invadira o Pegu nos inícios de 1600. Min Razagri saqueou o território e transportou parte do tesouro com ele, deixando Filipe Brito de Nicote como seu lugar-tenente. O aventureiro traiu-o posteriormente, construindo a fortaleza de Santiago do Sirião e alargando o seu domínio a toda a região do Pegu. Mais tarde, Nicote envolveu-se em novas guerras e alianças com os reis locais, nomeadamente com os reis de Ava e do Tangu, conseguindo apresar, entre 1609 e 1612, o tesouro de Razagri. Nicote enviou então o produto do saque para o Sirião, donde partiu um amostra desse mesmo tesouro, sob escolta, para Goa, em 1614.114

A amostra enviada por Nicote a Goa era constituída por pedras preciosas – rubis,

esmeraldas e diamantes – isoladas ou engastadas em peças ricas, quase todas em ouro. Mas, em Goa, as coisas não correram nada bem para os emissários de Filipe Brito de Nicote. Com efeito, os objectos foram apreendidos115 e postos à guarda do Inquiridor da Ouvidoria do Cível.

Os objectos preciosos foram depois arrumados em caixões e entregues à guarda de Jorge Gonçalves, mestre da Nossa Senhora da Luz, existindo mesmo os autos do

111 Cf. GUEDES, op. cit., p. 145. Cf., igualmente: - AHU, Consulta do Conselho da Fazenda, Açores, 13 de Abril 1616. - AHU, Declaração das pessoas que entregaram pedraria, Casa da Índia, Documentos por Ordenar, 6 de Junho de 1616. 112 O Pegu correspondia a um Reino situado no actual espaço geográfico da Birmânia, que compreendia as províncias de Baçaim, Rangune, Henzavadi, Martabão, Prome, Tongo e Sirião. O Pegu desenvolvia um importante comércio marítimo com a Malásia, a Indonésia, com a Índia e a China. Confinava, a norte, com o Reino de Arracão e a sul com o do Sião. Entre as suas produções mais importantes contavam-se o arroz, o almiscar, a prata, o lacre, os rubis e o benjoim. Cf. MOUSINHO, M. (1990) – Breve discurso em que se conta a conquista do reino do Pegu na Índia Oriental feita pelos portugueses em tempo do viso-rei Aires de Saldanha, sendo capitão Salvador Ribeiro de Sousa, chamado Massinga, natural de Guimarães, a quem os naturais do Pegú elegeram por seu rei no ano de 1600: Introdução e notas e actualização do texto de Maria Paula Caetano. Lisboa: Publicações Europa-América, pp. 29 – 32. Cf., igualmente, MANRIQUE, S. (1997) – Breve relação dos reinos de Pegu, Arracão, Brama, e dos impérios Calaminhã, Siammon e Grão Mogol: apresentação e notas de Maria Ana Marques Guedes. Lisboa: Cotovia/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 113 A história das movimentações deste tesouro bem como a sua ligação com a Nossa Senhora da Luz estão descritas exaustiva e magistralmente em GUEDES, op. cit., num artigo que constitui leitura indispensável para a compreensão e interpretação da problemática que envolve este naufrágio. 114 Cf. GUEDES, op. cit., p. 146 – 149. 115 Num processo conduzido por Domingos Cardoso de Melo, procurador da Coroa, Pedro Correia de Azevedo, Vedor da Fazenda Geral, Belchior Frausto Soares, Executor Geral das Dívidas à Fazenda Real, Manuel Correia de Andrade, Escrivão do Executor, Salvador Videira, Inquiridor do Juízo da Ouvidoria do Cível e Gregório Pima, Contador, todos Oficiais da Coroa na Índia. Cf. GUEDES, op. cit., pp. 158–159.

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embargo de ouro e pedraria, onde se descriminam as peças enviadas do Sirião e o seu embarque, em 1615, a bordo da nau capitânia.116

116 Cf. GUEDES, op. cit., p. 150.

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As mercadorias da Nossa Senhora da Luz

De acordo com os registo de carga da Nossa Senhora da Luz, as mercadorias que vinham a bordo da nau capitânia não diferiam muito do que era usual encontrar em qualquer outra nau da Carreira da Índia de retorno a Portugal. As mercadorias dividiam-se em quatro grupos de coisas miudas: panos, drogas, pedraria e porcelanas.117 Panos

Os panos eram constituídos por panaria de algodão, chader,118 beirame, mamona, sinabafo, toucas, beatilhas, toalhas brancas com ou sem banda de seda e tolhas bordadas. A bordo haviam ainda damascos, alcatifas e brocados119. Especiarias e drogas

Para além das especiarias que eram embarcadas por conta do monopólio da Coroa, como a pimenta, vinham ainda a bordo canela, gengibre, cravo, maça,120 cardamomo, noz moscada, sândalo,121 aloé, ruibarbo, almíscar,122 incenso, mirra,123 benjoim,124 âmbar,125 laca,126 lacre127 e anil.128

117 Cf. MATOS, A. (1994) – Na Rota da Índia: estudos de história da expansão portuguesa. Macau: Instituto Cultural de Macau, pp. 18-20. 118 Pano branco de lençol. 119 Pano de seda, manufacturado na China, da cor da prata e do ouro, com lindos desenhos e bordados. Cf. LISNCHOTEN, op. cit., p. 124. 120 Pericarpo da noz moscada, duro como madeira, coberto por flores, no auge da maturação. Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 239 121 Usado contra febres coléricas. Beneficiava, além disso, o estômago irritado, combatendo também as febres ardentes, se aplicado conjuntamente com água de rosas. Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 249. 122 Secreções de origem animal. Diz Linschoten que o almíscar era produzido a partir de bichos como raposas ou cães pequenos, que são mortos e esmagados à pancada, para depois lhe apodrecer o sangue e a carne, serem cortados em pedaços. Com pedaços de pele, de carne e de sangue juntos, enchem bolsinhas feitas de pele, cosendo-as depois em volta, para assim serem vendidas e transportadas. Estas bolsinhas têm normalmente o peso de uma onça e os portugueses chamam-lhes papos. O almíscar fortalecia o coração tremente e frio, remediando todas as suas maleitas, se for bebido ou ingerido; purifica as manchas brancas dos olhos; seca os catarros húmidos; fortalece a cabeça e cura velhas dores de cabeça, provenientes de expectoração, cf. op. cit., p. 244. 123 Produtos de origem vegetal, constituídos pela seiva de determinadas árvores do Médio Oriente. O incenso era usado contra diarreias, contra doenças da cabeça, catarros, náuseas e vómitos, e nas pessoas que cospem sangue; destrói abcessos ocos e cura feridas recentes e que sangram. A mirra era utilizada para provocar fluxos e expulsar o fruto do ventre, assim como para tosses antigas, diarreia e hemorragias. Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 247. 124 Produto de origem vegetal, constituído pela seiva de determinadas árvores de Sumatra, Java e Malaca. Era utilizado na composição de outros materiais aromáticos e fortalecia o coração, a cabeça, o cérebro; seca os húmores supérfluos da cabeça, aviva os sentidos e os seus eflúvios são úteis para afastar as doenças. Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 246. 125 O âmbar fortalece a cabeça e o coração, consumindo pela secura todos os maus líquidos supérfluos do estômago. Era igualmente útil contra todas as impurezas e sujidades, ajuda quem sofre de epilepsia, é indicado contra desmaios e levantamentos da madre, ingerido e injectado Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 244.

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Pedraria

Vinham embarcadas nas Nossa Senhora da Luz e na São Boaventura várias centenas de bizalhos, muitos deles oficialmente registados e outros mais que provavelmente contrabandeados.

Os bizalhos continham, para além de diamantes, rubis,129 safiras, diamantes,

turquesas, granadas, olhos-de-gato,130 jacintos, aljôfar,131 pérolas, topázios, alaqueca132 e pedras-bezoar. Porcelanas

Após a invasão mongol que levou à China a Dinastia Yuan (1280-1367), a

produção de cerâmica do Império do Meio quase que se industrializou através da criação dos fornos imperiais de Ching-te Chen, na província de Kiangsi, e que depressa se tornaram o centro de fabrico de cerâmicas de todo o país. Foi durante esta Dinastia que o uso do óxido de cobalto como pigmento, com a utilização de diferentes gradações de azul em linhas de largura e forma variadas, deu origem à prestigiada porcelana azul-e-branca.133 A produção deste novo tipo de cerâmica conheceu o seu auge com a Dinastia Ming (1368-1644), tendo-se tornado comum o aparecimento de marcas de reino a partir do período Hsuan-te (1426-1435).134

Na transição para o século XVII, com a entrada nos circuitos comerciais asiáticos

da Companhia Holandesa das Índias Orientais, as porcelanas chinesas conheceram um período de grande massificação na sua produção.

126 Secreções de insectos hemípteros, Coccus laca, a partir da seiva de árvores. Usada na decoração exterior de mobiliário e de pequenas peças de madeira. Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 241-242. 127 Laca pulverizada e derretida. Depois de tingida, era consolidada em pauzinhos que serviam para lacrar cartas. Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 242 128 Pigmento azul, de origem vegetal. 129 Os rubis classificavam-se, de acordo com o número de quilates ou a sua pureza, do mais valioso para o de menor valor em: carbúnculos (rubis de grande valor, com mais de 25 quilates), toques (rubis de grande valor, assemelhando-se aos carbúnculos), espinelas (rubis de menor valor, da cor do fogo), balais ou balax ,(rubis de menor valor, de cor rosada), jacintos, granadas e robazes. Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 268. 130 Ágatas. 131 Pérolas de muito pequena dimensão, subproduto da apanha das ostras perlíferas. O aljôfar era vendido à onça, Utilizado em farmácia e medicina, o aljôfar era levado em grande quantidade e a baixos preços para Portugal e para Veneza. Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 272. 132 Também chamada pedra-de sangue, pois estanca o sangue rapidamente. Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 269. 133 As técnicas de esmaltagem e de vidrado monocromático, tão apreciadas nas dinastias posteriores, foram desenvolvidas nos reinados do período Sung. 134 As marcas de reino, ou nianhao, em número de 6 ou 4, indicavam o nome do Imperador reinante à altura do fabrico da peça. As marcas de reino adornaram especialmente os esmalte touts’ai do período Ch’eng-hua (1465-1487), e os esmaltes policromados do período Wan-Li (1573-1620). Cf. GRAESSE & JAENNICKE, E. (1987) – Les marques des porcelaines, faïences et poteries: Europe, Extrême-Orient. Paris: Les Éditions de l’Amateur, p. 226.

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Assim, as porcelanas passaram a produzir-se de dois modos: as destinadas ao serviço do Imperador e da sua corte eram de estilo refinado e decoradas, de modo a provocarem um estado de espirito introspectivo, de acordo com a filosofia taoísta, enquanto que as produzidas para o uso corrente e para exportação eram de forma e decoração muito singela e casual.135

Os fragmentos de porcelana azul e branca, selectivamente recuperados no local do naufrágio, formam um conjunto bastante coerente tanto a nível tipológico como cronológico. As porcelanas estudadas separaram-se, no entanto, em dois grandes grupos, conforme a espessura da sua pasta seja grossa ou fina. A coexistência de porcelana de pasta fina com porcelana de pasta grossa é característica de um período de transição, com os artesão chineses a tentarem adaptar-se ao aumento da procura europeia, correspondente aos primeiros anos do século XVII. Nalguns casos, a base das peças típicas deste período mantem-se espessa, enquanto que as paredes são mais finas e delicadamente curvadas.136

Actualmente, os locais de naufrágio que apresentaram porcelana chinesa, quer sob a forma de peças inteiras, quer sob a forma de fragmentos, totalizam apenas vinte sítios em todo o Mundo.137

Descrição sumária dos fragmentos de porcelana recuperados do local do naufrágio

1. PIM 99/1

Corresponde a um fragmento do bordo de um prato ou travessa, de pasta fina. 2. PIM 99/2

Corresponde a um fragmento do bordo e bojo de um boião ou frasco, de pasta fina. Apresenta na sua aresta superior uma depressão em meia lua, onde se encaixava a tampa ou cobertura do recipiente.

3. PIM 99/3

Corresponde a um fragmento não identificado, de pasta grossa.

135 Estas porcelanas são fabricadas no interior do país, de uma espécie de terra que é muito dura, a qual é partida em bocados ou moída, e depois posta de molho em água, dentro de recipientes de pedra de cantaria, feitos para este efeito, E quando está bem amolecida e muito mexida, como se bate o leite para fazer manteiga, fazem do que está à superfície as peças mais finas, e do que fica mais abaixo peças mais grossas, e assim por diante. E pintam-nas, fazendo nelas figuras e retratos que quiserem, e assim são secas e cozidas no forno. De acordo com Linschoten, a porcelana mais fina não podia sair do país, sob pena corporal, pois destinava-se exclusivamente aos senhores e governadores chineses, sendo as peças tão finas, que nem um copo de cristal se igualava a elas. Cf. LINSCHOTEN, op. cit., p. 125. 136 DESROCHES, J. (1998) – Cerâmicas orientais e porcelanas. In AFONSO, S. et al. (1998) – Nossa Senhora dos Mártires: a última viagem. Lisboa: Editorial Verbo/Expo’98, p. 234. 137 Idem, p. 236.

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4. PIM 99/4

Corresponde a um fragmento não identificado, de pasta grossa. 5. PIM 99/5

Corresponde a um fragmento não identificado, de pasta grossa. 6. PIM 99/6

Corresponde a um fragmento não identificado, de pasta grossa. 7. PIM 99/7

Corresponde a um fragmento não identificado, de pasta grossa. 8. PIM 99/8

Corresponde ao fragmento de uma base de um prato ou travessa, de pasta grossa. Apresenta na base uma aresta de fundo. 9. PIM 99/9

Corresponde a um fragmento não identificado, de pasta grossa. 10. PIM 99/10

Corresponde a um fragmento não identificado, de pasta grossa. 11. PIM 99/11

Corresponde a um fragmento não identificado, de pasta grossa. 12. PIM 99/12

Corresponde ao fragmento de uma base de um prato ou travessa, de pasta fina. Apresenta na base uma aresta de fundo. 13. PIM 99/13

Corresponde ao fragmento de uma base de um prato ou um outro recipiente, de pasta fina. Apresenta, na base, uma aresta de fundo. A decoração mostra uma suástica, o símbolo budista do coração de Buda, Wan em chinês, representando a longevidade eterna.138 14. PIM 99/14

Corresponde a um fragmento não identificado, de pasta fina.

138 CF. DESROCHES, op. cit., p. 251.

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15. PIM 99/15

Corresponde a um fragmento da base de um recipiente, de pasta grossa. 16. PIM 99/16

Corresponde a um fragmento do gargalo de um boião ou frasco.

17. PIM 99/17

Corresponde à base de um prato. O fundo azul pálido figura um pássaro e uma flor à sua direita, estando ambos cercado por elementos vegetais. Este motivo, que associa uma flor e uma ave é um tema clássico da pintura chinesa e constitui uma categoria específica dita nian hua, flores e pássaros. Trata-se da iconografia mais difundida,139 a seguir à representação de gamos. Embora os seus bordos sejam relativamente finos, a pasta da base é bastante espessa, apresentando na sua face inferior traços em hélice e marcas arenosas junto ao pé circular, bem como perfurações causadas pela expansão de gases por sob o vidrado. 18. PIM 99/18

Corresponde ao fragmento da base de um prato, de pasta fina. Profusamente decorado, apresenta um crisântemo, símbolo do Outono e da jovialidade, associado ao disco solar. O crisântemo, flor do nono mês, indica uma vida fácil e reforma de serviços públicos.140

139 Peças decoradas com motivos da avifauna foram encontradas nos naufrágios do San Augustin (1595), do San Diego (1600), do Mauritius (1609), do Witte Leeuw (1613) e do Banda (1615). CF. DESROCHES, op. cit., p. 245. O naufrágio do Witte Leeuw é o que maior diversidade apresenta, relativamente a este motivo. Cf. STÉNUIT, R. (1979) – Le Witte Leeuw: fouilles sous-marines sur l’épave d’un navire de la Compagnie Hollandaise des Indes Orientales, coulé en 1613 a l’île de Sainte-Hélène. In Neptunia. Paris: Association des Amis du Musée de Marine. pp. 3 – 16, e STÉNUIT, R. (1988) – Ces mondes secrets où j’ai plongé. Paris: Éditions Robert Laffont, Collection “Vecu”, pp. 345-362. 140 CF. DESROCHES, op. cit., p. 251.

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Localização do sítio do naufrágio Aquando do início da pesquisa documental, a localização do naufrágio, dada pelas relações das Armadas da Índia,141 circunscrevia-se ao Faial, ilha em que nau dera à costa. Uma investigação mais aprofundada no Arquivo Histórico Ultramarino revelou que o naufrágio ocorrera num trecho de costa, algures a oeste de Porto Pim, num sítio denominado por Carrasca.142 Com a microtoponímia do local do naufrágio identificada, a equipa de prospecção da campanha de 1998 tentou localizar, no terreno, quaisquer destroços que pudessem vir a circunscrever ainda mais o sítio. Infelizmente, o nome Carrasca caíra em desuso e nem as entrevistas orais, conduzidas na cidade da Horta e no trecho de costa que se estende desde o Porto Pim até ao termo da localidade do Pasteleiro, se revelaram frutíferas. Com efeito, nem pescadores, nem antigos pilotos do porto nem mesmo os demais residentes da zona se lembravam de haver alguma vez existido uma Carrasca na zona considerada. Investigações posteriores revelaram que o topónimo tinha realmente existido, estando ainda em uso no início do século XIX, já que se apontava a existência de um forte de Santa Bárbara, no local da Carrasca.143 A cartografia da zona, feita a partir de um levantamento de 1769 indicava o local preciso da implantação do forte da Carrasca.144 No entanto, após uma curta inspecção do local, verificou-se que este há muito deixara de existir, não restando quaisquer vestígios da sua localização presente. Cotejando-se os documentos coevos em que se descreve o local do naufrágio, bem como comparando a carta manuscrita do século XVIII com a carta cartográfica actual do local, foi possível definir aproximadamente o trecho da costa a poderia corresponder a Carrasca do século XVII.

141 Cf. por exemplo, GUINOTE, P., FRUTUOSO, E., LOPES, A. (1998) – Naufrágios e outras perdas da “Carreira da Índia”: séculos XVI e XVII. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, p. 241. Neste caso, é referida apenas a ilha do Faial como local do desastre e mesmo a data do evento aparece errada. 142 Cf. doc. 6, já citado. 143 CARITA, R. (1995) – Arquitectura Militar nos Açores: ilha do Faial: iconografia e informações dos Arquivos Militares. In O Faial e a Periferia Açoriana nos Sécs. XV a XIX. Horta: Núcleo Cultural da Horta, p. 170. 144 AHU, Cartografia Manuscrita, Açores, Enc. II., Levantamento cartográfico, militar e hidrográfico da baía da Horta e de Porto Pim, Francisco Xavier Machado, 1769. O documento foi-nos indicado por Patrick Lizé.

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Caracterização do sítio do naufrágio

Da posse da informação documental que posicionava a Carrasca, dois

mergulhadores do CNANS realizaram um primeiro mergulho prospectivo, partindo da costa e contornando para leste uma cintura de rochedos que se prolongava em direcção a sul.

O sítio prospectado desenvolvia-se ao longo da linha de costa,145 num trecho

compreendido entre a praia de Porto Pim e a Ponta Furada. A zona é delimitada a sudeste pelo Monte da Guia, de 145 metros de altura, e a leste pela praia de Porto Pim e pelo Monte Queimado, de 86 metros de altura máxima. Ao longo da baía de Porto Pim destaca-se uma muralha à entrada da praia, o forte do Reduto da Patrulha e o forte de São Sebastião,146 estando a zona totalmente incluída na Área de Paisagem Protegida do Monte da Guia.147

Virado a sudoeste, este trecho de costa é muito castigado pelos temporais de

Inverno, quer pela exposição aos ventos dominantes, que pela sua baixa profundidade. A variação da batimetria faz-se de forma suave, com um fundo que desce gradualmente até aos –15 metros, na zona a sul da costa do Pasteleiro, e por um fundo que se mantém constantemente abaixo dos –3 metros no interior de toda a bacia definida pela praia de Porto Pim, onde o leito marinho é formado exclusivamente por sedimentos móveis, do tipo arenoso.

Defronte da Carrasca, os fundos apresentam-se bastante irregulares, havendo uma

cintura de escolhos e rochedos submersos que forma como que um esporão, que se prolonga para sul. No limite exterior desta cintura de escolhos, o fundo cai para –12 metros, sendo o leito marinho bastante acidentado, apresentando um fundo misto de areia e rochedos. Neste caso, por oposição ao fundo arenoso da bacia da baía de Porto Pim, predomina a fracção rochosa, sendo a sua fracção móvel constituida por pequenos seixos rolados e por sedimentos arenosos.

A partir da batimetria dos –6 metros a equipa foi recolhendo, ao longo do trajecto,

alguns dos muitos fragmentos de porcelana azul e branca que jazem por sobre o sedimento. Os fragmentos distribuíam-se por toda a área pesquisada, encontrando-se em maior quantidade entre os –6 metros e os –15 metros, numa área justamente a sudoeste da zona mais exterior do recife. Em mergulhos posteriores, efectuados na mesma zona, foi detectada uma extensa área de concrecção em que, por sob uma camada de 5 a 10 cm de areia e seixos, foi comprovada a existência de centenas de fragmentos de porcelana azul e branca, de artefactos em bronze e de vários outros objectos não identificados, todos intimamente ligados entre si por produtos electrolíticos de natureza ferrosa, formando uma zona concrecionada com cerca de 50 m2 de área, a 8 metros de profundidade.

145 Orientada de este para oeste. 146 O antigo forte da Cruz dos Mortos. 147 Cf. Dec. Regional 1/80/A de 31 de Janeiro.

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Conclusões A abundância de material cerâmico característico do período considerado e de proveniência geográfica bem definida, leva-nos a concluir que o local do naufrágio da nau capitânia Nossa Senhora da Luz coincide realmente com a área estudada.

Embora seja de presumir que os vestígios arqueológicos se encontrem presentes apenas numa reduzida parte da área considerada, não é de excluir que os padrões de dispersão da zona tenham originado uma área mais alargada de potencial valor arqueológico, tanto mais que o processo de naufrágio foi anormalmente violento.148 No entanto, a descoberta de zonas de concreção aponta para que a área em causa corresponda, com forte presunção, ou ao local de embate, encalhe e destruição do navio ou a uma área de deposição de grande parte da carga do navio.

Seja como for, o valor do potencial arqueológico da zona é inegável. A existência de fracções de solo arenoso poderá contribuir para a preservação de parte do casco do navio, à semelhança do que aconteceu, aliás, com os destroços da Nossa Senhora dos Mártires.149

148 Para uma avaliação da importância de uma análise de sítios dispersos cf: - MUCKELROY, K. (1975) – A Systematic Approach to the Investigation of Scattered Wreck Sites. In The Journal of Nautical Archaeology and Underwater Exploration. London: Academic Press. 4.2: 173 - 190 - MUCKELROY, K. (1998) – The Archaeology of Shipwrecks. In BABITS, L. & TILBURG, H. eds. Maritime Archaeology: A Reader of Substantive and Theoretical Contributions. New York: Plenum Press, The Plenum Series in Underwater Archaeology, pp. 267 – 290 - OXLEY, I. (1998) – The Investigation of the Factors that Affect the Preservation of Underwater Archaeological Sites. In BABITS, L. & TILBURG, H. eds. Maritime Archaeology: A Reader of Substantive and Theoretical Contributions. New York: Plenum Press, The Plenum Series in Underwater Archaeology, pp. 523 – 529 - REDKNAP, M. & BESLY, E. (1997) – Wreck de mer and dispersed wreck sites: the case of the Ann Francis (1583). In REDKNAP, M., ed. (1997) - Artefacts from Wrecks: Dated Assemblages from the Late Middle Ages to the Industrial Revolution. Exeter: Oxbow Monograph 84, p. 191 - 207. 149 O que, arqueologicamente, seria da maior importância, já que o único vestígio de uma nau da Índia até agora estudado em Portugal é o que corresponde aos destroços da presumível Nossa Senhora dos Mártires (1606), afundada na embocadura do rio Tejo, em São Julião da Barra. Em relação aos parcos vestígios de navios de origem portuguesa, investigados arqueologicamente fora do país, cf.: - AURET, C. & MAGGS, T. (1982) - The Great Ship São Bento: remains from a mid-sixteenth century wreck on the Pondoland Coast. Pietermaritzburg: Annals of the Natal Museum, vol. 25 (1), Outubro, pp. 1 – 39. - AXELSON, E. (1985) - Recent Identifications of Portuguese Wrecks in the South African Coast, especially of the Sao Gonçalo (1630), and the Sacramento and Atalaia (1647)”, in Estudos de Historia e Cartografia Antiga, Memórias, 25. Lisboa, pp. 43-61. - CHYNOWETH, J. (1968) - The Wreck of the St. Anthony, Journal of the Royal Institute of Cornwall, 5:4, pp. 385-406. - L’HOUR, M., RICHEZ, F. & BOUSQUET, G. (1990) - Decouvert d’un East Indiamen de l’ E.I.C. a Bassas de India, atoll français de l’Ocean Indien: le Sussex (1738). Cahiers d’Archeologie Subaquatique, 10, Frejus, 1991, pp. 175-198. - MAGGS, T. (1984) - The Great Galleon São João: remains from a mid-sixteenth century wreck on the Natal South Coast. Pietermaritzburg: Annals of the Natal Museum, vol. 26 (1), Dezembro, pp. 173 – 186. - MELLO, U. (1979) - The Shipwreck of the Galleon Sacramento – 1668 off Brazil. International Journal of Nautical Archaeology. Londres: 8:3, pp. 211-223.

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A existência de anfractuosidades e de um relevo rochoso acidentado, no leito marinho da zona em causa, bem como a ocorrência de grandes áreas de concreção, potenciam a recuperação de pequenos objectos da carga, em estado de maior ou menor preservação.150

150 Cf. MUCKELROY, K. (1998b) – The Analysis of Sea-Bed Distribution: Discontinuous Sites. In BABITS, L. & TILBURG, H. eds. Maritime Archaeology: A Reader of Substantive and Theoretical Contributions. New York: Plenum Press, The Plenum Series in Underwater Archaeology, pp. 471 – 489.

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Recomendações

Recomenda-se que: - Seja mantido sigilo, quer sobre o naufrágio em si, quer sobre os achados

verificados, já que o valor venal dos potenciais destroços é incalculável; - Sejam desenvolvidos, até à exaustão, os trabalhos de pesquisa documental e de

arquivo, com o fim último de caracterizar e situar historicamente o naufrágio considerado;

- Se proceda à elaboração de um plano de intervenção arqueológica de

prospecção e de escavação, com o fim de delimitar e caracterizar a zona de interesse arqueológico potencial, para o que se deverão associar as entidades locais,151 regionais,152 nacionais153 e internacionais154 relevantes.

151 Câmara da Horta, Museu da Horta e/ou outras. 152 Direcção Regional da Cultura, Centro de Conservação e Restauro dos Açores, Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores e/ou outras. 153 Instituto Português de Arqueologia, Marinha Portuguesa, representada pela Polícia Marítima e pela Capitania do Porto da Horta e/ou outras. 154 Institute of Nautical Archaeology e/ou outras.

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Apêndice documental

Os documentos seguintes são fornecidos a título de exemplo e ilustram bem o enorme acervo documental associado a este naufrágio. Na transcrição dos documentos manuscritos adoptaram-se os seguintes critérios:

- Os documentos foram transcritos em linha contínua, separando-se os fólios por

dois traços oblíquos.

- O uso das maiúsculas e minúsculas, bem como o da pontuação, foi respeitado.

- Separam-se as palavras juntas e uniram-se as várias sílabas da mesma palavra.

- Mantiveram-se as letras duplas.

- Mudou-se o til para a primeira letra do ditongo.

- Desenvolveram-se todas as abreviaturas, assinalando a itálico os caracteres em falta ou subentendidos, mas manteve-se a forma original dos numerais.

- O til nasalado foi substituído pela sua forma actual, assinalando-se a itálico o m

ou n, conforme o caso.

- O u foi substituído pelo v, sempre que se julgou correcto e de acordo com a moderna grafia, embora o j não fosse substituído pelo i.

- Foi colocado entre [] tudo o que foi por nós interpretado ou acrescentado ao

texto original.

- Foi colocada a palavra [sic] a seguir aos erros do próprio texto original.

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Documento nº 1 AHU, Açores, 7 de Novembro de 1615 Carta do Contador da Fazenda da Terceira e Ilhas de Baixo [Manuel Pacheco de Lima] para o Rei [Filipe II] sobre a arribada da nau São Filipe à Terceira e do seu provimento. Senhor Em 5 do Presente aPareceo a vista desta ilha hua Nao que na grandeza pareseo ser da India ordenei o fosem reconhecer, veo o patram com reposta do capitam em que me avisava ser a Nao S. felipe de viaiem com muita gemte morta; e a viva tam doemte que não vinha de prestar asim no serviso comtinuo da bomba, como no ordinario da Nao, e que de mantimentos vinha tam nesesitado que não tinha nenhus, e me fasia a saber que se de tudo o não proviamos com brevidade não çoo a Nao não Podia seguir viaie mas antes toda a gemte estava amotinada pera avir amcorar neste porto. E porque o provedor da fasenda de Vossa Magestade e o corrregedor estam ausentes em outras ilhas em seu serviso, mostrei a carta ao bispo e ao mestre de camPo e a manuel do Camto provedor das armadas e por asemto que se fes foi ordenado fose socorrida a Nao com toda brevidade de todo o nesesario comforme a posibilidade da terra, na execusam do neguoçio ouve tanta diligensia, que ao manheser do dia seguinte e – 6 – do mes partio hu barco grande com mantimentos e ao meio dia outro com 23 homens pera o serviso da Náo, e a tarde outro em que foi o escrivão da Náo e despinseiro Satisfeitos com os mantimentos que levavão, e com muita abundancia que levarão a Náo a vender vai bastantemente provida, e aquella mesma noite desapareseu que oie 7 do mes não se tem vista della. O que aguora me dá Senhor mais cuidado he a Náo Capitaina que tendo asentado tomarem esta ilha por a muita nesesidade que tras, em dia de todos os Samtos 150 leguas desta ilha se apartarão e não temos vista della, pera cuio provimento estamos prestes, e se lhe metera dentro em 12 oras, e com igual cuidado se não comsente ficar se nada em terra. Os doemtes que ficam são muitos e os mais delles muito mal, e como lhe impedimos ficarem fazendas ficam pobrissimos mas no ospital se tem cuidado delles, que pera semelhantes ocasions lhe dá Vossa Magestade 80$ cada ano. Este pataxo vai com mea cargua, e por não lhe deixarmos tomar o reste lhe prometemos – 20$ - da fazenda de Vossa Magestade des mil se lhe deram loguo a demasia sendo Vossa Magestade servido se lhe paguem nesa çidade, o mesmo mestre dirá como procurei se fose loguo a iuntar com a Náo e aguora vai arriscado a encontra la. noso Senhor a Catolica peçoa de Vossa Magestade guarde. desta çidade de Amgra ilha terceira a 7 – de Novembro 1615 Manoel Pacheco de Lima

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Documento nº 2 AHU, Açores, 20 de Novembro de 1615 Treslado do auto da junta em que se reuniram o Provedor das Armadas [Manuel do Canto de Castro] o Bispo de Angra [Agostinho Ribeiro] e o Mestre de Campo [Gonçalo Mexia] e em que se decidiram as acções a tomar relativamente ao naufrágio da nau capitânia Nossa Senhora da Luz. Treslado de hum Auto que o provedor das Armadas Nas ilhas mandou fazer sobre a junta que se fez com o Bispo e mestre de campo dom gonsalo mesia sobre o avizo que se manda a sua Magestade do naufragio da Nao Capitanja da jndia nossa senhora da lux de que era Capitam mor dom manoel Coutinho. Anno do nassimento de nosso senhor Jeshus Christo de mil seissentos e quinze aos vinte dias do mes de novembro do dito anno na cidade d’Angra desta ilha terzeira nos paços Episcopaes, do senhor dom Augustinho Ribeyro Bispo deste Bispado de Angra E ilha dos assores do Conselho de sua magestade sendo elle presente E dom gonsallo messia mestre de Campo E castelhano do Castello sam filiphe do monte do brasil da dita çidade E governador da gente do presidio do dito Castello E bem assj Manuel do Canto de Castro fidalgo da casa del Rej nosso senhor provedor de suas Armadas Naos da jndia Mina E guiné em todas estas ilhas dos Assores E capitam mór em esta capitanja de Angra desta dita ilha hi por o dito Manuel do Canto de Castro foi dito e tratado com elles que elle tinha avizo de dom Manuel Coutinho capitam mór das Naos de viagem da jndia este presente anno por carta sua que presenteou porque o avizava em Como por caso fortuito a Nao capitanja nossa senhora da lux em que elle vinha tinha dado a costa em a ilha do faial junto a porto pim Costa da dita ilha onde elle ficava E que della sahia mujta fazenda pedindo lhe encaresidamente aCudisse Com toda a brevidade a dita ilha a mandar por em Cobro a dita fazenda Per assi Convir ao serviço do dito senhor, Como milhor Constava da dita carta pello que Elle como provedor que era das Armadas E Náos da jndia em todas estas ilhas tinha obrigasam de acudir ao avizo do dito capitão mor para nella Com o Corregedor que ja la devja estar segundo Recado seu tivera da ilha de sam george onde // Estava ao tempo do naufragio da dita Nao mandar aproveitar beneficiar E por em boa guarda a fasenda que se salvar da dita Nao, Artelharja E mais cousas della E mandar acudir E prover em todo o mais necessario principalmente per de presente não aver Causa mais urgente que o jmpidisse pois das Naos que se esperavão que eram tres huma que era sam Boaventura se perdera na viagem antes de dobrar o Cabo E a outra sam feliphe tomara este porto onde ele provedor a mandara prover E se tinha seya já chegada ao Rejno ou perto delle E agora se não esperava em esta ilha Armada alguma em que seja necessario sua assistensia pera a prover Pello que ficava livre a poder acudir a dita ilha como de feito estava embarcado pera ella esperando somente tempo E por sima de tudo era tambem muito jmportante avizar a sua Magestade do sucesso E naufragio da dita Nao, Como Por seu Regimento lhe era mandado faser E porque em Cousas E materjas tam jmportantes E de tanto pezo se nam podia tomar Rezolusão sem pareser dos ditos senhores Bispo E Mestre de Campo como pessoas tam jnteresantes no serviço do dito senhor lhes pedia E da parte do dito Senhor Requerja Como tam experimentados E zelosos de seu serviço assentasem com elle o que se devya faser nesta materja que mais Conviesse ao serviço do dito Senhor E praticado tudo Resolverão que o primejro era aviZarem a sua Magestade Com huma Caravella na forma do Regimento do dito provedor escrevendo todos de Conformidade

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ao dito senhor E segundaryamente eram de pareser que // Elle Provedor fizesse a jornada a dita ylha do faial pera onde estava embarCado E aviZasse ao provedor da fazenda que estava em a ilha de sam Miguel que acudisse tambem a dita ilha do faial na forma do dito Regimento pera que alj Com o corregedor que se entende ja la estaria Conforme tem avizado da ilha de sam george donde o tomou este Recado pera ahi todos em Conformidade do dito seu Regimento tratarem da salvasam da fazenda da dita Nao, E beneficio della E que sendo necessareo desta ilha alguma Cousa os aviZassem pera de qua aCudirem com o que mais Convier ao serviço do dito Senhor de que mandaram faser Este auto em que todos assinarão E eu fernão feyo pitta escrjvão da fazenda E Armadas em estas ilhas que o escrevj o Bispo de Angra dom gonsalo messia Manuel do canto de castro o qual treslado de auto Eu fernão feyo pitta escrjvão da provedorya E Armadas em estas jlhas dos Assores tresladei bem e fielmente do proprio auto a que me Reporto E o subscrevj E Consertej com o provedor das Armadas manuel do Canto de Castro que aqui asinou Comigo em Angra aos xxj dias do mes de novembro de bj[tos] E quinZe anos pagou nada por ser do serviço de sua Magestade ConCertado Manuel do Canto Fernão Feyo pitta

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Documento nº 3 AHU, Açores, 11 de Novembro de 1615 Cópia da carta do capitão mór da Armada de 1614 [Manuel Coutinho] ao Provedor das Armadas nas ilhas dos Açores [Manuel do Canto de Castro] sobre o naufrágio da nau Nossa Senhora da Luz, e pedindo a sua intervenção no salvamento da fazenda e socorro da tripulação. Copia da Carta que dom Manuel Coutinho capitam mor das Naos da viagem da jndia escreveo da ilha do faial a Manuel do Canto de Castro provedor das Armadas E Náos da jndia em estas ilhas dos Açores Sabado sette dias de novembro foi deos servido que a Nao nossa senhora da lux em que eu vinha por capitam mor fizesse naufragio nesta Costa do porto de porto de pim miseravel expectaculo pera ver e Contar vossa merse acuda loguo por serviço de deos E de sua magestade porque sera muito efeito de jmportansia suposto que o capitam mor da terra E Almoxarife E mais ministros da terra fazem mais do que pode E isto não tem mais que enCareser senão que acuda vosa merse E acuda porque he necessario pera a fazenda perdida E Remedio destes homens que aqui estam. E ajnda que Eu não tenha servido a vossa magestade em nada mas fiado em sua boa Condisam E animo grande me atrevo a pedir lhe merses de que sera com esta hum Rol E lugar E comodidade de se poder fiar de mim sera mui grande beneficio E merse E sera mui grande pera mim E pagarei pontualmente a pe quedo na forma de se ordenar nosso senhor oje onze novembro de seissentos e quinZe dom manuel Coutinho. o qual treslado de Carta eu fernão feyo pitta escrjvão do provedor das Armadas em estas ilhas dos Asores tresladei da propria carta que ficou ao provedor manuel do Canto de Castro que aqui asinou E com quem a corri E a sobrescrevj E asinej aos xxj dias do mes de novembro de bj e xb annos ConCertado Manuel do Canto Fernão Feyo pitta

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Documento nº 4 AHU, Açores, 14 de Novembro de 1615 Carta do Provedor das Armadas nas ilhas dos Açores [Manuel do Canto de Castro] ao Rei [Filipe II] sobre o provimento da nau São Filipe bem como do naufrágio da nau Nossa Senhora da Luz, na ilha do Faial, e das acções que tomou para o salvamento da fazenda. Senhor Com o pataxo que inviei de avizo da chegada da Nao Sam filippe a esta jlha escrevi a Vossa Magestade em como esta Nao se apartou vespera de todos os sanctos da Nao capitania Nossa Senhora da Lux de que vinha por capitão mor dom Manoel coutinho, e que a dita Nao ficava amainada couZa de 150 legoas a loeste desta jlha, e atravessada, como que lhe soccedera algum desastre. Sam filippe, E a Caravella não poderião arribar sobre a Nao por ser o temporal muy forte, E Sam filippe vir ainda mais piadoZa, de maneira que não podião ser bons a Ninguem, E se Deus a levou a salvamento a essa çidade (como confio) bem empregada foy minha diligençia, porque elles parecerão a vista deste porto 5ª feira 5. de Novembro, tratando de metter a Nao no porto, onde, sem falta, se entrava, não podera tornara a sair segundo os temporaes correrão, E se perdera, E pera este effeito vinha a gente aMotinada, E não obedeçião ao Capitão, E foy necessario, por minha ordem, uZar o patrão desta Ribeira de huma cautella, que fingindo os vinha anchorar, dobrou a Nao fora da ponta de Santo Antonio e descahiu de modo, que logo ficou gilaventeada do porto: jsto se acabou de fazer a mesma 5ª feira. A 6ª seguinte dia deu Deus huma calma, E tempo tam quieto, que pude prover esta Nao de muitos mantimentos e Refresco, E 50. homens da terra, E lhe deZembarquey ao pe de 70 homens quasi mortos, E isto andando a 7. e 8. legoas deste porto com tanta brevidade, que quando foy a boca da noute a Nao comessou de faZer sua viagem pera esse Rejno sobrevindo logo grande temporal, que durou 5. ou 6. dias, mas serviu lhe a Nao em popa; sera bem guiada com o favor de Deus. Esta mesma noute da 6ª feira pera o sabbado chegou a Nao capitania milagroZamente a jlha do fayal, que esta 30 legoas a loeste desta jlha com 30 palmos de agoa; ja a artelharia quasi toda allijada, e muita fazenda so com a esperança de salvar as vidas invistindo a primeira pedra que achassem, E assim de noute invistirão a terra por huma Rocha alcantillada, onde quebrarão o garopes da Nao, que defendeu de não tocar o Costado onde se não podera salvar pessoa alguma; E discorrendo ao longo da Rocha a Nao, veyo alcançar huma anchora defronte do porto pim, onde lhe acudirão muitos barcos da terra, E dom Manoel procurando salvar alguma fazenda da Nao, tratou de não deixar deZembarcar a gente, que sustentassem as bombas, e gamottes ate amanhecer, E neste tempo veyo crescendo mais o mar, E temporal, e muita gente se lhe lançou aos barcos de maneira que a Nao veyo garrando sobre a amarra e veyo dar atraves nas pedras, onde em continente se fez em miudos pedaços, E o mar Lançou fora muita quantidade de fazendas: e da gente dizem que são mortas 150 pessoas. Dom Manoel foy o derradeiro, que quis sair da Nao cuidando se tivesse inteira, e Custara lhe a vida, porque o salvou hum Nadador ja meyo afogado, e sem acordo. Eu tive aviZo seu em o tempo dando lugar, que foy a 13 deste mes em que me dava conta de tudo, encareçendo me que acodisse a esta neçessidade logo fis conçertar huma caravella pera levar alguns buzios que mergulhem, E salvem alguma fazenda, E o patrão, E Carpinteiro, E outros ministros, E homens do mar pera que não fique por mim a salvação de alguma couZa se a Deus der.

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Neste porto de pim ha huma grande praya onde a Nao fez Naufragio onde tem saido muita caixaria, e fardos que se a de adoçar as Roupas, e fazer se com ellas muitas diligençias, que avia eu mester, e os que me acompanhão cada hum çem olhos, mas não ficara nada por mim na diligençia, e lealdade, que devo. O Corregedor destas jlhas estava mais perto na jlha de Sam George, e porque elle, e seos anteçessores são a pessoa que Vossa Magestade manda, que me assista particularmente nestes Negocios, e joão correa da Mosquita, que hora he Corregedor he hum ministro de que eu tenho muita satisfação, sendo avizado no mesmo Recado meu, tenho por Carta sua, que se arriscava a passar a jlha do fayal ainda que lhe custasse a vida pois estava della 7 legoas: mas correrão taes temporaes, que andava o mar tão brabo, que duvido podesse passar, posto que podendo, ainda que seia com grande risco de sua vida o tera feito. Eu fico embarcado a feitura desta a acodir a esta neçessidade, E daquella jlha avizarei a Vossa Magestade do estado de tudo: Resta agora, que Vossa Magestade me mande ordem se esta fazenda a de esperar na jlha do fayal, ou vir a esta jlha terzeira porque ha aqui duas couZas, huma o bollir com ella, e faZer outra escalla, E Custos, e perigo do mar; a outra que tenho por mais perigoZa a pouqua conta em que os imigos tem a jlha do fayal, que com muita façilidade a entrarão muy pouquos cossarios sem defensa, E sabendo que esta ahy esta fazenda probabelmente a acometterão. Se Vossa Magestade he servido, que eu arme dous, ou 3. Navios com gente desta çidade, e passe a fazenda as caZas da Alfandega, E AlmaZens della fa lo ey, ou mande ver em que forma a poderey guardar, e do que Vossa Magestade assentar, me mande aviZar com tempo. E mande me Vossa Magestade escrever, que o sirvo muito bem, E ha muitos annos, E sou bem afortunado em seu serviço pella bondade de Deus. Não se me satisfaz dos conselhos com os avizos, e Repostas, que convem ao servisso de Vossa Magestade E assim me he neçessario mandar procurar huma Reposta de huma carta, como se fosse huma grande comenda: Governo me nestas couzas pellos Regimentos dos Reis passados, que Vossa Magestade não tem quebrados, e quando se fizera tudo o que contem Nelles, pode ser que forão as couZas mais a caminho, porque elles frequentavão muito esta Navegação, e tinhão muito pouquas perdas e perigos, e ca onde estou com o pouquo que sei, podera advirtir a Vossa Magestade de alguans [sic] couZas, que se não conseguem, mas não tenho authoridade para tanto. Deus goarde a Catholica, e Real pessoa de Vossa Magestade escrita em Angra da jlha terzeira a 14 de novembro de 1615 Manoel do Canto de Castro

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Documento nº 5 AHU, Açores, 21 de Novembro de 1615 Carta do Almoxarife da Ilha Terceira [Jerónimo Fernandes Coelho] ao Rei [Filipe II] sobre o provimento da nau São Filipe, o naufrágio da capitânia e sobre os gastos que se fizeram com o provimento e o envio de avisos a Lisboa. Senhor Vosa Magestade sabera que a este porto chegou huma Caravela dizendo que vinha de angolla, em companhia da nao capitania E outra náo são phellipe sao tiagoa as coais vinhão vinhão [sic] mui desbaratadas, E faltas de mantimentos E gente, fazenfo muita agoa, E dahj a duas oras chegou defronte do porto a nao são phellipe sao tiago E desembarcou o escrivão E despensejro por ordem do capitão em que pedia sacorro o coal se lhe deu por ordem do provedor manoel do canto de castro que vosa magestade tem nesta ilha para os tais provimentos. com a maior brevidade que foi pusivel por ser na forza do inverno. e tão bem se proveo a dita caravela em que se fes custo porque se fez necesario descontar lho de seu frete avisarej do dito em que vinha por capitão dela paulo Rodriguez da Costta e juntamente foi hum pataxo em que foi o avizo e depois vejo hum Recado da ilha do faial que a nao capitania fisera nafrajo [sic] e sahia muita fazenda E o dito provedor da ditas naos tomara a caravela que leva o dito avizo da dita nao. E lhe da sento E sincoenta mil reis por ida E vinda pera que tragua Recado de vosa magestade do que deve de fazer da dita fazenda que se salvou. E porque nestas ilhas tem vosa magestade consinado ao presidio Corenta mil crusados E o Rendimento ser pouco nesta ilha E o dito prisidio estar nella. E da ilha de são miguel se não acode como comvem por ser trinta legoas de mar e da ilha do faial não vir nenhum dinheiro por Resão das igrejas não serem acabadas E nesta ilha ter vosa magestade muitas obrigacõens e aver pouco Remdimento que pera a despesa da dita nao E caravela me vali de dinheiro emprestado por não aver falta E acudj ao presidio Como comvinha ate gora e se vosa magestade me mandar oredem pera que va a ilha de são miguel huma ves no anno pera que faça dar a execusão a provisão que vosa magestade mandou pagar ao presidio E juntamente pera que posa arrecadar toda a fazenda que se achar dever. prometo que sesem duvidas e queixas entre o presidio Eclesiastiquos e mais paguamentos que vosa magestade tem congsinado [sic] nesta feitoria de que fiquo servindo de feitor E almoxerife E juntamente convem ao serviso de vosa magestade E bem de sua fazenda que o porvedor que estiver nestas ilhas E ao diante por que não faza venda do pastel de vosa magestade sem estar presente o feitor nem faça venda de nhua fazenda sem Elle E por me pareser ser emprovel [sic] e proveito da dita fazenda o avizo deus goarde a catholica e Real pesoa de Vossa magestade Escritta da ilha terzeira aos 21 de novembro 615 jeronimo fernandez Coelho

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Documento nº 6 AHU, Açores, 10 de Novembro de 1615 Copia da carta do Capitão Mór da Ilha do Faial [Diogo Pereira de Lacerda] ao Provedor das Armadas nas Ilhas dos Açores [Manuel do Canto de Castro] sobre o naufrágio da nau Nossa Senhora da Luz, das acções tomadas para a salvaguarda da fazenda e pedindo a sua assistência para as mesmas. Copia de huma Carta que o capitam mor da ilha do faial escreveo ao provedor das Armadas E Naos da India em que as ilhas dos Assoris [sic] Manuel do Canto de Castro Pella obrigasam que sei vossa merse tem de acudir as cousas do provimento das Naos da jndia e fazenda della o avizo em como sabado sette do presente chegou a Nao capitania pella manham a esta ilha com temporal e deo a costa aonde chamão a Carrasca da bando do porto pim salvou se quasi toda a gente E a Nao em Continente se fez em mil Rachas sae muita fazenda na Costa na qual fico entendendo aproveitar com todos os demais officiais de justisa que fazemos o que podemos e alguns mais do que podem E com as Companhias da ilha que pera isso mandej vir chegaremos athe onde pudermos E vosa merse ordenara neste particular o que lhe pareser Por serviço de sua Magestade. O capitam mor dom Manuel Coutinho aviza tambem a vosa merse o que cuido fara mais largamente porque tem maes tempo do que eu tenho vindo vosa merse a esta jlha lembro lhe que me tem nella por seu subdito E como tal me pode mandar a quem o senhor guarde como pode Esta Nao capitania diz que se apartou dia de todos os santos de outra Nao que vinha em sua companhia com temporal permitta deos leva la a salvamento oje de novembro dez de seissentos e quinze Diogo pereira de laserda Com este barqo despacho outro pera o corregedor a sam george que cuido la estaraa ajnda o que se não fes loguo por o tempo não dar lugar por ser muito forte que tambem deo ontem com hum Navio de sam thome a Costa no porto de porto pim [Sobrescrito] A Manuel do canto de Castro capitam mor na ilha terseira E provedor das Naos da jndia de sua Magestade do faial A qual carta Eu fernão feyo pitta escrjvão da fasenda E Armadas em estas jlhas dos Açores tresladei bem e // fielmente da propria que ficou em poder do dito provedor das armadas manoel do Canto de Castro que asinou aqui E com elle este corri subscrevj E em Raso asinej oje xxi de novembro de mil e seissentos e quinze anos

Concertado Manoel do Canto fernão feyo pitta

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Documento nº 7 AHU, Açores, 4 de Dezembro de 1615 Treslado do auto feito pelo Corregedor das Ilhas dos Açores [João Correia da Mesquita] sobre a entrega, nas casas que serviam de Casa da Índia no Faial, da pedraria e mais mercadorias salvadas do naufrágio da nau capitânia. Treslado do Auto que mandou fazer o desambarguador João Correa da Mesquita Corregedor desta Comarqua sobre a Entregua da Pedraria que se salvou da Nao Capitaina nossa Senhora da Lus que deu a Costa nesta Ilha do fayal [À margem] Machado Anno do nasçimento de nosso senhor Jesu Christo de mil E seiscentos E quinze annos aos quoatro dias do mes de dezembro do dito anno Nesta villa d[a] orta da ilha do fayal nas Cazas que forão do Capitão Jeronimo dutra Corte Real que ora servem de Caza da India onde se Recolhe a fazenda da Nao Capitaina nossa Senhora da Luz que deu a Costa nesta dita Ilha ahy sendo presente o desembarguador João Correa da Mesquita do desembarguo de Sua Magestade E seu Corregedor com alcada nesta Comarqua E Correissão das Ilhas dos Assores por elle foi dito que na devassa que Vaj tirando da Pedraria E cousas de Vallor manuais soneguadas tem declarado E manifestado algumas pessoas terem E averem salvo do naufragio da dita Nao algumas das ditas coussas [sic] as quoais comvinha Inventariaremsse com suas marquas E litreiros E depositasemsse na mão de pessoa abonada aonde Estivessem seguras athe serem jnviadas a Caza da India ou onde Sua Magestade por seu Recado mandasse pello que mandava que as ditas pessoas// viessem a dita Caza com todas as ditas cousas pera o dito E feito E de como asim o ordenou mandou fazer Este auto que assinou Agostinho Machado [?] d[e] angra Escrivão da Correissão o Escrevj : Correa : E Loguo no dito dia mes E anno atras Escrito nas ditas Casas que servem de Caza da India pareceo perante o dito desembarguador Bento [?] cunhado de francisco da silveira defunto mestre que foi da nao são boa Ventura E manifestou E entregou os Bizalhos de pedraria seguintes Agostinho machado [?] o Escrevj Item hum bizalho numero quoatro com Litrero que diz a fellipe dinis pacheco ou a Valentim dinis seu filho, são boa Ventura com a marqua E contra marca de fora com duas mutras mais no pe donde se ata da mesma mutra Item Outro bizalho numero seis que dis a duarte guomes ou a seu serto Recado com a marqua de fora E com huma mutra Seguinte Item Outro bizalho numero dous com o Litrero que diz a felipe dinis pacheco ou Valentim dinis, Lisboa, são boa Ventura com huma mutra como a seguinte Item Outro Bizalho numero trinta E oito com Litrero que diz a manoel Lopes Pereira marcado com a marca de fora E mutrado com Lacre Vermelho com o sinete Seguinte Item Outro Bizalho numero trinta E seis com Litrero//

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[À margem] Machado Litrero que diz a Manoel De sousa de leão marcado com as Letras de fora E mutrado com Lacre Vermelho do sinete Seguinte Item hum Bizalho Numero Setenta E sete marcado da marca de fora com mutra de Lacre Vermelho do sinete da marca Seguinte Item hum Bizalho marcado com a marca de fora E com hum numero que se não emxergua a mais que o Coatro adiante E o borrão Se não deviza atras ser, hum, Ou sete, E vaj mutrado com Lacre Vermelho do sinete da marca Seguinte Item Outro bizalho numero outenta E hum marcado com as Letras de fora, E mutrado com o sinete da marca Seguinte E Lacre Vermelho Item hum Bizalho numero dous marcado da marca de fora E mutrado com Lacre Vermelho do sinete da marca Seguinte E cos quoais bizalhos que Entregou o dito francisco de de Crasto são por todos dezasseis que Loguo em prezenssa dos ditos officiais atras declarados forão Levados E metidos em hum saquinho de lona E lacrado com Lacre Vermelho com hum Sinete das armas do desembarguador E declaro que os ditos Bizalhos todos Levão hum Litreiro que disem Miguel [?] da Costa, os quoais Litreiros de-//claro a francisco de Crasto que lhos puzera nesta Villa d[a] orta o dito Miguel [?], que dis a Cantidade dos ditos Bizalhos E a pessoa que os entregou E ouve por entregue a dita pedraria no dito saquo ao Almoxarife goncallo nunes dares o quoal foi metido na arca das tres Chaves em prezenssa dos ditos officiais atras declarados E de fernão feijo pita que aqui asinarão com o dito desembarguador Agostinho machado [?] d[e] angra E escrivão da Correissão o Escrevj :: Correa:: Pacheco :: Guoncallo Nunes dares :: francisco de Crasto :: Baltezar Roiz Coelho :: fernão feijo pita :: Agostinho machado Entregou francisco do Reguo E Luis de paiva hum bojão de Almiscar que tem quarenta E cinco papos de Almiscar E leva hum Esento dentro que dis Estão Neste Bojão quarenta E cinco papos d[e] almiscar que pertencem a Antonio d[e] aZevedo morador em Lisboa E em sua auZencia ao doutor damião Vieguas o quoal vinha em duas Boutinhas que se quebrarão que salvou do naufragio francisco do Reguo E luis de Paiva E isto entregou na India Cristovão Lopez Cardoso da marca de fora a quoal fazenda diserão que pertencião as Boletas E os Boiois que elle desembarguador emgertou [sic] a francisco mendes E estão metidas nas Caixas das tres Chaves

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Documento nº 8 6 de Fevereiro de 1616 Carta do Rei [Filipe II] ao Vice-Rei da Índia pedindo informações sobre os sucessos militares na Índia e pedindo maior cuidado no aprestamento das naus da Índia.155 [Sobrescrito – Por el-rey – A Dom Jeronymo de Azevedo do seu conselho, viso-rey e capitão-geral do Estado da India. – 3ª via] Dom Jeronymo de Azevedo, viso-rey amigo, eu el-rey vos envio muito saudar. Vendo a vossa carta feita nos Ilheus Queimados, estando embarcado na armada com que fostes ao Norte, em que me representaes as razões que vos moveram a fazer esta jornada, me pareceram todas mui dignas de ella se emprender, e de vos dar, per o bom modo com que vos dispozestes a isso, agradecimento, como o faço, certificando-vos que o que n’aquella occasião fizestes, se conforma muito com a opinião que de vós tenho, e com a confiança que faço de vosa pessoa. Espero em Nosso Senhor, que haverá sido servido de que fosse de tal effeito para tudo vossa assistencia ao que se pretendia conseguir com a dita armada, que se hajam composto muito como conviesse a meu serviço e a esse Estado, assi as cousas de Cambaia, como as guerras do Melique, para que com isso, postas de parte as dos reys naturaes, possaes converter as forças todas contra os estrangeiros, cujos accommettimentos obrigam a mór cuidado. E posto que não tive nenhum aviso, por mar nem por terra, do sucesso de vossa jornada; como me escrevestes que mo enviarieis, de crer he que seria elle o que se deseja, e que as cartas que com esta nova haverieis despachado, deixariam de chegar por algum caso dos que costumam acontecer em tão largo caminho; e comtudo não posso deixar de vos dizer, que estou com grande cuidado d’este negocio, como o pede a grande importancia e calidade d’elle. E porque na mesma carta me daes conta do tempo em que ahi chegaram as tres naus, das cinco de que foi per capitão mór Dom Manuel Coutinho, e o estado em que desembarcou a gente d’ellas, que tudo procede de partirem tarde; como tambem foi causa de se perderem tão desastradamente, camo sabereis, a capitaina do dito Dom Manuel e a nau São Boaventura, não se haverem despachado d’ahi a tempo conveniente; mandei aqui dar precisa ordem aos meus ministros per quem corre o apresto das ditas naus, que vencendo a difficuldade em que per falta das perdidas se achava minha fazenda, pozessem tal diligencia no aviamento das per que recebereis estas vias, que podessem partir na entrada de março, e que isto mesmo se fizesse sempre ao diante, como tenho por certo que se fará, prazendo a Deus: e para que de lá não haja descuido em partirem da volta, a seu devido tempo e quanto mais cedo puder ser, vos encomendo e mando apertadamente, que de tal maneira façaes d’aqui em diante entender no despacho das naus, que em todo o caso saiam d’esse porto, ou de qualquer outro em que carregarem, tomando poucos dias de janeiro, com qualquer carga que até então tiverem, para que assi se atalhem outras semlhantes perdições, como as de Dom Manuel, que teem causado as impossibilidades de minha fazenda, e o damno a meus

155 Documento 628 – Livro 9º, fólio 21 in BULHÃO PATO, R. (1893) - Documentos remettidos da Índia ou Livro das Monções publicados de Ordem da Classe de Sciencias Moraes, politicas e Bellas-Lettras da Academia Real das Sciencias de Lisboa e sob a direcção de Raymundo Antonio de Bulhão Pato socio da mesma Academia. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias. Tomo III, p. 370-372.

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vassallos e ao commercio d’essas partes, que considerareis, a que convem por todas as vias acudir com remedio efficaz. Escripta em Lisboa a 6 de fevereiro de 1616. – Rey : - O Arcebispo primás.

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Documento nº 9 17 de Fevereiro de 1616 156 Alvará do Rei [Filipe II] ordenando ao Desembargador Gonçalo Pinto da Fonseca a abertura de uma devassa para apuramento dos responsáveis pelo mau aprestamento das naus da Armada de 1614. Alvara per que Vossa Magestade ha por bem que o Desembargador Gonçalo Pinto da Fonseca tire devassa do mau concerto que tiveram as naus, que o anno passado partiram de goa para este reino, e de virem sobrecarregadas como acima se contém; e valerá como carta, e não passará pela chancelaria; vai por tres vias. Por carta de Sua Magestade de 27 de Janeiro de 1616 [Sobrescrito – Por el-rey – Ao viso-rey da India – 2ª via] Eu el-Rey faço saber aos que este alvara virem que tenho entendido que pelo mau comcerto que tiverão as naus que, o anno passado de seiscentos e quinze, partiram do porto de Goa pera este reino, e por virem sobrecarregadas, em saindo d’aquella barra começaram logo a fazer agoa, o que foi causa de se perderem as naus Capitania e Sam Boaventura, e a Sam Philippe vir mui arriscada, e por esse respeito receber minha fazenda e meus vassallos notavel perda; e porque convem muito a meu serviço saber-se com a consideração necessaria de como se procedeo no concerto e carga das ditas naus, e se ouve culpa de alguem de partirem tarde, hei por bem e mando ao Desembargador Gonçalo Pinto da Fonseca tire devassa na conformidade d’este alvara, sabendo mui particularmente, a causa que houve pera as ditas naus virem sobrecarregadas e tam mal comcertadas, e partirem tarde, e como se procedeo no concerto e carga d’ellas como se refere; e depois de tirada a dita devassa a mande serrada por vias nas primeiras naus que pera este reino partirem d’aquellas partes, dirigida ao Conselho de minha fazenda, pera ver n’elle e prover no caso como mais convier a meu serviço; o que cumprirá sem duvida alguma, por este que valerá como carta e não passará pela chancellaria, o qual vai por tres vias. Francisco de Abreu o fez em Lisboa a xbij de fevereiro de seiscentos e desaseis. Diogo Soares o fez escrever. – Rey : - Luiz da Silva.

156 Documento 787 – Livro 10º, fólio 394 in op. cit., Tomo IV, p. 1-2

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Documento nº 10 AHU, Açores, 20 de Fevereiro 1616 Carta do Contador da Fazenda da Ilha Terceira e Ilhas de Baixo [Manuel Pacheco de Lima] para o Rei [Filipe II] sobre o embarque das fazendas e a artilharia recuperadas da Nossa Senhora da Luz e dos gastos feitos com o benefício das mesmas. Senhor [À margem, em letra diferente] Do Contador das Ilhas dos Acores A esta jlha do fayal chegou em 29. de Janeiro o Licenciado Bartolomeu de Vasconcellos com duas Urquas, E ordem de Vossa Magestade para lhe entregarmos as fazendas da Nau Nossa Senhora da Luz. o que estimei muito E que as achasse a ponto de as poder embarquar com tanta ordem E conçerto que não ouve que inovar, ocupandose no fazer tirar dez pessas de artelharia que Leva. E em tomar entrega das fazendas a bordo [?], E ordenando a cargua dellas, tudo como muito bom ministro. A cantidade das fazendas E a sorte dellas, constara dos inventarios E do da Pedraria que Leva o ditto Licenciado E da sua informação E certidão que com esta vaj Vossa Magestade me fara merçe, mandar ver constara de meus procedimentos E o muito trabalho que neste negocio passej com Risco de minha vida, E despeza de minha fazenda E confesso que o Lovor principal deste negocio se deve ao Desembargador João Correa da Mesquita. Pelo muito que fez, não sendo isso parte para que fizesse falta nas obrigações de seu officio [?]. E porque na provizão que trouxe o Licenciado Bartolomeu de Vasconcellos Manda Vossa Magestade que os custos E gastos que estas fazendas fizerem se paguem do Rendimento destas jlhas, o qual he tão limitado, que não alcança as obrigações a que esta applicado. Pelo que foi necessario passar precatorio ao ditto Desembargador mandaSe entregar ao Almoxarife duzentos mil [?] que estarão depositados pertençentes a Rendição dos Cativos para delles se lhe passar conhecimento em forma, para nessa Corte o thesoureiro principal processar a satisfação. Da Certidão dos gastos que o Almoxarife fez com a carga, E descarga E beneficio destas fazendas consta importar duzentos E cinquoenta E tres mil E [?] E so fica por satisfazer a Lavaje, E adocar estas fazendas que assentamos fosse a hum por çento, que não sej o que importara, por não aver lugar E tempo de avaliar as fazendas o qual hum por çento pode Vossa Magestade mandar cobrar na Casa da jndia sendo servido. E em tudo o mais me Remeto ao Licenciado Bartolomeu de Vasconçelos, que dara a informação verdadeira de tudo. Nosso Senhor guarde a Catholica pesso [sic] de Vossa Magestade por Largos annos. Desta jlha do fayal 20 de fevereiro 1616 annos. Manuel Pacheco de Lima [À margem, em letra diferente] 253 V de gastos da fazenda na carga E descarga. E falta satisfazer a Lavagem E adoçar as fazendas.

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Documento nº 11 26 de Fevereiro de 1616 157 Carta do Rei [Filipe II] ao Vice-Rei da Índia [Jerónimo de Azevedo] sobre o desconcerto que houve na atribuição de lugares na Armada de 1614 que regressava da Índia. [Sobrescrito – Por el-rey – A Dom Jeronymo de Azevedo do seu conselho, viso-rey e capitão geral do Estado da India – 3ª via.] Dom Jeronymo de Azevedo, viso-rey amigo, eu el-rey vos envio muito saudar. Tenho entendido que n’esse Estado houve queixas de se não darem logares nem licenças a muitos soldados velhos, que se vinham despachar a este reino, nas naus da armada de que veio por capitão mór Dom Manuel Coutinho, dando-se a alguns que ficaram n’essas partes que os venderam, e a outros que nas ditas naus vieram, que nunca me serviram; e que se não cumpriram muitas das licenças que deixastes passadas das ditas licenças dos ditos logares, quando fostes ao Norte, por ellas serem em mais cantidade que elles. E porque eu quero ser informado particularmente do que n’isto passou, vos encommendo e encarrego muito que na volta d’estas naus me aviseis d’isso com toda a clareza, para o saber, e mandar prover na materia o que houver por mais meu serviço; e n’estas vias vai provisão minha, por que hei por bem que vós provejaes os gasalhados das dittas naus, sem o vedor da fazenda intervir n’isso, na forma que por ella o vereis, para que, com a executardes, cesse qualquer duvida que no negocio podia offerecer-se. Escripta em Lisboa a 26 de fevereiro de 1616 – Rey : - O Arcebispo primás.

157 Documento 659 – Livro 9º, fólio 90 in op. cit., Tomo III, p. 411

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Documento nº 12 AHU, Açores, 29 de Junho de 1616 Parecer do Rei [Filipe II] sobre as consultas feitas pelo Conselho da Fazenda relativas aos excessos do Corregedor das Ilhas dos Açores [João Correia Mesquita] praticados aquando do naufrágio da Nossa Senhora da Luz. Carta de Sua Magestade de 29 de Junho de 1616 Vj duas consultas do Conselho da minha fazenda que me emviastes com vossa carta de hum do prezente Sobre o naufragio que a nao capitaina fez na Ilha do fayal E exçessos que o Corregedor das dos [sic] açores cometeo nas fazendas da mesma nao que Sairão nas prayas da dita Ilha E emcomendovos muito que façais remeter Logo ao Doutor Belchior pimenta a devassa que Bertholomeu de Vasconcellos tirou da perda desta nao com a carta original em que Manuel do Canto de Castro Provedor de minhas armadas nas Ilhas dos acores avizos dos ditos exçessos para que veja tudo E tire as testemunhas que lhe paresse para se acabar de Calebrar a prova da mesma devassa E depois de ellas tiradas E apurado negocio na forma que convem hey por bem E mando que ele apronunçie E proçeda contra os culpados com a Minha justiça; E que Em tirar as fazendas das partes de que não aja dano requera o procurador de minha fazenda o que lhe paresesse justiça porque Eu lhe dou para isso o poder [?] para semelhante Effeito. [Assinatura ilegível]

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Documento nº 13 AHU, Açores, 19 de Outubro de 1616 Parecer do Rei [Filipe II] sobre as consultas feitas pelo Conselho da Fazenda relativas ao salvamento da artilharia da Nossa Senhora da Luz, à devassa tirada por António Álvaro Sanches sobre a perdição da nau São Boaventura Per Carta de Sua Magestade de 19 de outubro d’ 1616 Vj tres consultas do Conselho da fazenda que me inviastes. hua Sobre a artelharia da nao capitaina da armada do Cappitam manuel Coutinho que o anno passado fez naufragio na jlha do faial E esta bem feito o que nesta se aponta /. Outro item he a devassa que tirou o desembargador Antonio Alvaro Sançhes da perdição da nao Sao boaventura da mesma armada E hej por bem que ella se despache em final na Relação, sendo presente o procurador de minha fazenda. E ir se me ha dando Conta do que nisso se for fazendo./. E outro item he as liberdade [sic] que alguns capitaes mores. capitaes e gente da navegação das naus da Jndia [?] como [?] teria esta [?] provida por meus Regimentos, Ej por bem que elles se goardem Com pomtualidade, sem que se alterem em cousa alguma, e vos encomendo muito que alli o façaes cumprir/. [assinatura ilegível]

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Documento nº 14 AHU, Índia, 20 de Fevereiro de 1617 Auto da consulta feita por Gaspar Ferreira, piloto mór, e Paulo Rodrigues da Costa, sobre a aptidão de Marçal Luís para piloto da Carreira da Índia.158 Anno do naçimento de nosso Senhor Jesu christo de mill sejscentos e dezassete em lixboa aos vinte dias do Mes de fevereiro do dito anno na casa onde se fazem alguns neguoceos. do consselho da fazenda que esta no pateo da capella o doutor simão Soares de carvalho Mandou vir perante ssy guaspar ferreira cavalleiro do abeto de santiaguo e pilloto Moor destes Reinos e assy paullo Rodriguez da costa outrossy cavalleiro do abeto de santiaguo e cavalleiro fidallguo da casa de Sua Magestade e lhe deu juramento dos santos evangelhos encomenda lho muito como em Materia tão importante ao serviço de deos e de Sua Magestade decllarasse se marssall luis pilloto da nao nossa senhora do cabo hera siente na dita arte e tinha esperiencia capassidade e as Mais partes necessarias pera poder levar huma nao A jndia e trasela e se na viagem que este anno passado fez a jndia procedeo bem guardando o regimento que lhe foy dado e fazendo todas as obsservações necessarias e que costumão fazer os bons pillotos, e se a arribada, que fez a este Reino na dita nao nossa senhora do cabo foy por não guardar o regimento e por não fazer as obsservações que ate a dita paragem se costumão e se o do roteiro que o dito Marssall luis fez se pode allcanssar o sobredito, e se sabe a deMarcacao da agulha159 e se sem a dita deMarcacão podem os pillotos da jndia seguramente prosseguir a dita viagem e se falltando lhe a dita siencia da deMarcação da Agulha se arriscara a dita viagem e se he necessario saber ler e escrever pera poder cartear, fazer roteiros e conferillos com os que se lhe derem e pera o mais que convem espicullar em tão comprida e dificulltosa viagem// por elles ambos foy dito sob carguo do dito juramento que entendem em sua conssiencia que o dito Marssall luis não he siente na arte nem o pode ser por não saber ler nem escrever e que por este respeito Sua Magestade proibe por provisão sua que não seja ninguem aprovado pera o dito officio sem saber ler nem escrever e que quando costumão examinar pera os ditos officios, o não fazem sem primeiro lhe constar que sabem ler e escrever e que no que toqua a experiençia sabem que a primeira vez que o dito Marssall luis foy a jndia foy por pilloto de huma caravella em companhia do Viso Rey Ruy lourenço de tavora de cuja armada elle guaspar ferreira fora por pilloto Mor e que a jda fora sempre em consserva da dita armada sem se apartar della e que a vinda viera elle dito guaspar ferreira com elle dito Marssall luis na dita caravella, e loguo fizera outra viagem com doM António de taide na nao são fellipe e a jda e a vinda fora sempre em conserva sem se apartar da dita armada e que ao depois tornara na mesma nao são fellipe em companhia de doM Manoell de meneses capitão Moor donde arribarão todas da costa do brasill indo e vindo em consserva da dita armada sem se apartar della e ultimamente fez viagem na mesma nao são fillipe e são boaventura indo sem se apartar della ate perto do cabo da boa esperanssa onde se apartou com os grandes temporaes que tiverão e veo ter a Angolla com a nao capitaina donde partirão ambas e duas em companhia ate a alltura das terceiras donde com grande temporall se apartarão e que sabem que por estes actos e forma em que o dito Marssall luis fes estas viagens se não pode aquerir experiencia bastante pera poder fazer bem o dito officio por ser necessario pera se aquerir cursso de muitos anos e ao depois vereficar se com fazer viagem so o que elle não fez e que no que toqua a viagem da nao 158 apud IRIA, op. cit., pp 35 – 37. 159 Marcação do Sol com a agulha da bússola, a fim de se obter a sua variação.

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nossa senhora do cabo de que foy pilloto e aribou já tem dito na delligencia que por ordem do consselho com elles fez o juiz da jndia e Mina e então decllararão que depois de ver a terra do brasill de oito graos conforme ao seu roteiro pudera jr mais de loo160 ate lhe entrar tempo com que tornando a virar pudera fazer sua viagem ao menos ate mosambique// que no que toqua a demarcação da agulha he muy neçessario saber se por todos os pillotos da carreira da jndia porque os que a não souberem farão com Muita dificulldade a dita viagem e ariscarão as naos e que a dita deMarcação se não pode fazer sem se saber bem ler, escrever, e contar, e que elles ditos pillotos Moor guaspar ferreira e paulo Rodriguez com terem muita experiencçia da dita deMarcação a não podem fazer sem primeiro tomarem a pena na mão e lhe fazerem sua conta que he huma das deficulltosas observações que ha na siencia e que tambem o ler e escrever como ja tem dito he muy necessario pera as mais cousas e que os que la forão antiguamente antes da proibição de saberem ler e escrever tinhão muito cursso aquerido com a continuação de Muitas viagens que fizerão a jndia e ainda então se não sabia a deMarcação da Agulha por ser inventor della Vicente Rodriguez e ao depois se apurar que com isto tinhão por satisfeito e respondido as jnterroguações que lhe havião feito de que eu pero de Morim que ora sirvo de escrivão dos feitos da fazenda de Sua magestade fiz este auto em que asinarão com o dito simão soares de carvalho pero de Morim o escrevy – Simão soares – Paulo Rodriguez da Costa – Gaspar ferreira.

160 Chegado à linha de vento, bolinando.

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Documento nº 15 AHU, Açores, 7 de Novembro de 1618 Parecer de Filipe II sobre duas consultas do Conselho da Fazenda sobre a devassa tirada por Bartolomeu de Vasconcelos sobre o naufrágio da Nossa Senhora da Luz e sobre as madeiras algarvias passíveis de ser utilizadas na construção naval. [Ca]rta de Sua Magestade de 7. de Novembro de 1618 Vy duas consultas do Conselho de minha fazenda que me enviastes com carta nossa de 19. do Mes passado de Octubro. Huma de vinte e sette de Abril do anno passado sobre a devassa que Bertholameu de Vasconcellos tirou na Ilha do fayal do naufragio que ally fez a nao capitaina que o anno de 615. Vinha da India: E Porque eu quero saber o que tem feito na matteria desta devassa O Doctor Belchior Pimenta (a quem a mandey remetter) E o estado em que ella esta. Vos emcomendo ordeneis que elle faca disso huma Rellaçao que me enviareis com brevidade. / . E a outra sobre as Madeiras que se diz ha no Reino do Algarve pera se poderem fabricar naos da Jndia e Navios pera as armadas; E ordenareis que tanto que Vier a dilligencia que se tem mandado fazer acerca dellas pello Provedor da Comarca daquelle Reino, Com Perigonia Luez Medella mestre de carpinteria Se me avize logo do que della constar. [assinatura ilegível]

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A costa da Carrasca 

Pormenor do local do naufrágio 

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A praia de Porto Pim 

Fundo de prato em porcelana chinesa, período Wan Li 

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 Pormenor de fundo de prato 

Vários fragmentos de porcelana chineses, recuperados do local do naufrágio 

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 Natureza dos fundos no local do naufrágio 

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 Local de maior concentração de artefactos 

 

 Parte do inventário dos salvados na nau Nossa Senhora da Luz