a sabedoria da Índia

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livro sobre o pensamento oriental

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    A sabedoria da ndia

    Capitulo I A ndia e Ns

    Pesadelo ou deslumbramento Aos olhos dos ocidentais, a civilizao hindu apresenta-se sob duas perspectivas violentamente contrastantes.

    A primeira, inteiramente negativa, mostra um quadro de desolao econmica e abominao social - superpovoamento, fome, epidemias, misria crnica, injustias em massa, atrasos tcnicos, supersties etc. Sob esse ponto de vista, a ndia um permanente escndalo, um tumor purulento no flanco da humanidade "em marcha para o progresso". Fala-se dos ossurios vivos que so Bombaim e Calcut, dos milhes de leprosos, da sina abjeta dos intocveis, das desigualdades intolerveis, do obscurantismo exacerbado que substitui a instruo para a multido de analfabetos, sem esquecer a condio das mulheres, sinnimo de servido medieval. Corno poderia a ndia ter alguma coisa de importante ou de til para nos ensinar, visto ser to dramaticamente incapaz de resolver seus problemas mais prementes?

    Outra perspectiva, outro olhar: a essa paisagem de pesadelo contrape-se um cenrio ferico, um conto das mil e urna noites, saturado de clichs. a "ndia fabulosa", a "ndia misteriosa", com suas legies de swamis, de iogues, de gurus, de vacas sagradas, de elefantes reais, de marajs tursticos, imenso bazar espiritual, fervilhante de deuses, de faquires, de grandes sbios possuidores de um notvel senso do show-business internacional.

    Esta verso esplendorosa e um pouco teatral destila urna pesada mistura de exotismo tropical, de exibicionismo folclrico, de cobias de toda espcie, onde se encontram, ao mesmo tempo, uma necessidade de liberao sexual disfarada em tantrismo, um delrio de poder atravs do libi da ioga e uma infantilidade bastante pattica, bizarramente vestida com ornamentos msticos e devocionais.

    A ndia do pesadelo econmico e social existe realmente, tanto quanto existe a ndia dos traficantes de poderes sobrenaturais e dos escroques espirituais. Porm o essencial est bem distante disso.

    Uma falncia geral H cerca de vinte anos se v, no Ocidente, uma extraordinria abundncia de revistas e publicaes, bem como uma proliferao de movimentos e de seitas ligados a um vasto e vago domnio onde se acotovelam, misturados, magia, astrologia, ocultismo, parapsicologia, esoterismo, simbolismo e espiritualidade orientais. claro que esse amlgama, profundamente abusivo, provoca confuses e irradia, para o grande pblico, uma imagem inteiramente simplificada e estereotipada, onde os fundamentos do hindusmo se apresentam pura e simplesmente escamoteados.

    A sociedade ocidental contempornea est dominada por uma insatisfao bastante obsessiva que se assemelha muito a uma confisso de derrota e impotncia. O paradoxo histrico que, a despeito das flutuaes e das crises, vivemos na primeira civilizao conhecida onde a

    Andrespor Patrick Ravignant

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    abundncia e a prosperidade tornaram-se inegveis realidades cotidianas. As mais carentes de nossas grandes cidades beneficiam-se de um contexto material principesco, se comparadas aos deserdados do Terceiro Mundo. E, entretanto, as tenses, as ansiedades, o mal-estar chegaram ao auge: drogas, alcoolismo, barbitricos, violncia, dio racial so sintomas flagrantes e provas de que a verdadeira felicidade, a paz interior, no depende absolutamente de condies exteriores.

    A falncia clamorosa e geral das ideologias e dos sistemas religiosos, filosficos e polticos e a desconfiana, mais e mais alastrada e justificada face a todos os proselitismos teolgicos e morais, a todos os militantismos de direita e de esquerda, constituem outra fonte de frustrao e de angstia existencial profunda. O relativismo cientfico caminha lenta, mas seguramente no inconsciente coletivo, tomando cada vez mais difcil a adeso incondicional a uma verdade dogmtica e cada vez menos crveis as antigas pretenses objetividade intelectual.

    Porm o mais chocante, sem dvida, a impossibilidade de as velhas doutrinas transformarem o nosso modo de conscincia, aclararem a nossa percepo do universo, mudarem esquemas inertes em experincia viva, abstraes rgidas em realidade dinmica.

    O infinito atrelado De fato, h duas espcies de motivao, radicalmente diferentes, que nos impelem para a cultura e a espiritualidade hindu.

    Muitos ocidentais tm um apetite de dominao universal, de controle integral do destino e do universo, que no mais pode ser satisfeito com os sucessos tecnolgicos e cientficos, por mais espetaculares que sejam. O sistema solar poder ser visitado, o mistrio dos buracos negros elucidados, os xitos mdicos multiplicados, fontes de energia insuspeitas exploradas, sem que, no entanto, sejam suprimidos os medos, o sofrimento, os conflitos, a solido, o desespero da separao e da morte, to torturantes numa ultramoderna torre de ao e de vidro quanto numa cabana de terra batida.

    Revoltados contra a servido e as limitaes de nossa condio humana e aspirando a um estado sobre-humano, muitos acreditaram encontrar, na ndia, as receitas de uma onipotncia e as frmulas de uma oniscincia que lhes permitiriam desenvolver faculdades extraordinrias, dons paranormais que os elevariam ao posto de demiurgos.

    Esses, em geral, erram de guru em guru, de ashram em ashram, de seita em seita, com uma avidez pueril e vulnervel, sempre aguardando o aparecimento do mestre infalvel, do grande instrutor, da revelao divina e da iniciao suprema. Pem nisso, geralmente, um ardor inquieto, esperando indefinidamente a recompensa miraculosa com a mesma f incessantemente esgotada e renovada - de um apostador da loto. As falaciosas promessas de absoluto em plula, poo ou figuras mgicas so tpicas da mentalidade ocidental, que acredita poder atrelar o infinito, colocar uma focinheira no nada, empacotar a verdade em embalagens congeladas.

    Mais raro so aqueles que vo ao essencial da mensagem da ndia - alm da superfcie gangrenada e mutvel, alm mesmo da brilhante exploso de uma cultura incrivelmente rica e diversificada.

    A dimenso da interioridade Para um moderno ocidental, o que verdadeiramente desconcertante no ensino tradicional da ndia menos a profuso ritualista e multicolorida que satisfaz ao seu gosto pelo exotismo e pelo

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    bizarro do que a dimenso de interiorizao, em completo contraste com o barulho, a violncia, a atividade a todo preo, a perseguio febril aos bens e prazeres, a necessidade desesperada de afirmao pessoal, a impossibilidade de ser sem ter, fazer ou parecer, isto , uma vida incessantemente projetada, arrastada, precipitada para o exterior.

    Se alguma coisa da ndia pode interessar-nos verdadeiramente, esta interiorizao, despojada de seu folclore e restituda sua vocao universal, num caminho onde poderiam ser reconhecidos, ao mesmo tempo, um discpulo de Scrates, um monge cristo ou um mstico sufi.

    Uma felicidade no-dependente De que se trata?

    Visto de fora, o hindusmo aparece como uma massa de tal forma extravagante, confusa e complicada de mitologias, doutrinas, asceses, prticas religiosas heterclitas e contraditrias, termos snscritos quase intraduzveis, que se afigura impossvel discernir nesse magma alguma coerncia, alguma convergncia, um fio condutor simples e nico ligando os contornos tortuosos dessa trama desordenada.

    Entretanto esse elemento existe; ele est nos centros dos ensinamentos mais diferentes e constitui o objetivo ltimo de disciplinas espirituais completamente dspares. a busca de uma felicidade no dependente de circunstncias favorveis ou no, felicidade inimaginvel, para alm de toda expresso, correspondendo a um modo de conscincia libertado dos apegos e dos medos, livre da ditadura dos contrrios (belo-feio, bem-mal, gosto-no gosto etc), desembaraado das angstias do ego, das limitaes do tempo e do vir-a-ser, dos imperativos da relatividade.

    Esse estado, cujo contedo desafia qualquer definio ou descrio, foi batizado de Libertao (moksha). Renem, na realidade vivida, aquilo que os budistas denominam Despertar ou Natureza do Buda, e os cristos, Reino dos Cus.

    Essa felicidade libertadora no tem nada de profundamente estranho, longnquo ou inacessvel. Ao contrrio, constitui o fundamento de nossa natureza: est para o nosso ser fsico, emocional e mental como a gua, em geral, est para um determinado rio ou o ouro para uma jia especfica. Simplesmente est encoberta, oculta pela incessante agitao de suas prprias formas - o conjunto dos processos biolgicos e psicolgicos pelos quais estamos sujeitos mudana e relatividade.

    Esse estado prprio de todo ser vivo, quaisquer que sejam suas origens, destino, nvel cultural, opes filosficas ou crenas religiosas. Aparece espontaneamente, como conseqncia de uma transformao interior que mais ou menos rpida, mais ou menos difcil, s vezes herica, segundo os indivduos, avano progressivo cujas etapas e mtodos variam consideravelmente de uma pessoa para outra.

    Esse trabalho sobre si mesmo no requer absolutamente um estgio de dez anos num ashram de Bengala ou numa gruta do Himalaia. Um ponto capital do ensino hindusta , justamente, que qualquer pessoa pode operar essa transformao, seguir esse itinerrio (Sadhana), onde est e como , sem ter, necessariamente, que desorganizar o quadro de suas atividades e obrigaes familiares, profissionais etc.

    No so suficientes alguns sinais exteriores _ crnio raspado, tnica aafro, votos de pobreza e castidade - para ascender Libertao e ao Despertar. infinitamente mais sutil e mais simples.

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    Ningum se converte ao hindusmo, e mesmo as profisses de f so apenas acessrios bastante vazios de sentido, uma vez que se limitam a exprimir opinies e crenas, em vez de manifestar uma experincia interior.

    claro, a existncia que levamos em nossa civilizao de hiperconsumo e de acumulao neurtica no favorece um encaminhamento "espiritual", e preciso constatar que a maior parte dos cristos ig nora completamente, hoje em dia, a dimenso interior da vida religiosa, reduzida mais e -mais a uma espcie de catecismo socializante e moralizador.

    Quem, afora alguns monges, d um contedo realmente vivo, ntimo, cotidiano a expresses como "presena em si mesmo e em Deus", "morte do Homem Velho" ou "o Reino de Deus que existe dentro de vs"? Que cristo, de qualquer Igreja, aspira a poder dizer, como So Paulo: "No sou mais, Cristo que vive em mim"?

    Deus tornou-se, para ns, objeto de teorias e de hipteses, de afirmaes definitivas ou de contestao radical, s vezes de emoes violentas, positivas ou negativas.

    De fato, temos apenas idias sobre Deus, ao passo que a ndia tradicional, como a Idade Mdia crist, procura viver em Deus, mergulhar em Deus, ser Deus.

    Acima das incompatibilidades teolgicas, das distores semnticas e dos abismos culturais, h um reencontro imenso no seio do inefvel, no incio de um silncio que tambm uma perfeita experincia.

    O nico realismo autntico Para o ocidental interessado no hindusmo, no apenas como curioso ou esteta, uma grande questo vem mente: como passar seriamente prtica sem ir ndia para seguir com assiduidade o ensino direto deste ou daquele mestre qualificado? Como conciliar, em seguida, essa prtica, a realizao pessoal desse ensino, com as mil obrigaes e lutas cotidianas, os aborrecimentos, as tenses, os conflitos muitas vezes insolveis, enfim, toda essa atividade avassaladora que deixa to pouco espao para o recolhimento e a meditao? Como atingir essa paz, essa serenidade, esse centro imutvel de ns mesmos, se temos constantemente a cabea, o corao e o corpo trabalhados, atormentados, perturbados por barulhos lancinantes, vibraes convulsivas, ecos de cataclismas - contnuo leilo do terrorismo, do sadismo, da megalomania, da demncia organizada, da iminncia do apocalipse?

    Quando nos lembram, de uma ou de outra forma, o ensino ligado ao hindusmo, pensamos geralmente: sem dvida, isso admirvel beira do Ganges, mas sejamos realistas; h dvidas a pagar, impostos que aumentam, filhos para criar, perigo de desemprego, concorrncia cada vez mais dura - tantos desejos no-satisfeitos, medos no-apaziguados! Que significa isto de que me falam, felicidade no-dependente, conscincia transformada, Libertao?

    Entretanto, bem disso que se trata, no beira do Ganges, mas no meio de todos os problemas e condicionamentos prprios da sociedade ocidental contempornea. Em ltima anlise, no ser a busca da eternidade o nico realismo autntico, pois que a morte nossa nica certeza?

    A necessidade do pluralismo Neste domnio do trabalho sobre si mesmo, da transformao interior, dos processos do Despertar ou da Libertao, a tradio hindusta reuniu, no curso de milnios, uma soma de conhecimentos,

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    de experincias e, digamos, de competncia pedaggica sem equivalncia no resto do mundo, o que no minimiza, absolutamente, o esprito e a amplitude das outras tradies.

    A ndia soube, ao mesmo tempo, especializar e diversificar ao extremo sua abordagem e seus caminhos, no excluindo nenhum aspecto da vida, englobando todas as energias e todas as aspiraes to bem que podem cohabitar, com mtua tolerncia e profunda harmonia, ascetas mendigos habituados s mais terrveis austeridades e discpulos tntricos que utilizam o desejo, as emoes erticas e os impulsos sensuais como catalizadores do Despertar ou como alavanca para a mutao espiritual.

    No Ocidente, o misticismo cristo relegou sombra, ou mesmo dissidncia ou a clandestinidade, qualquer iniciativa de transformao interior. Na ndia, a efuso emocional representa apenas um caminho a mais, entre outros. Mas nenhuma abordagem seja ela religiosa ou metafsica, ativa ou contemplativa, pretende possuir sozinha as chaves do Reino: a necessidade do pluralismo e da diferena aqui respeitada ao extremo. No tem o Absoluto todos os aspectos - mesmo os mais contraditrios?

    Dito isso, ser necessrio morar na ndia para seguir certos ensinamentos?

    A viagem Fazemos parte, hoje em dia, de uma cultura planetria, onde as diversas tradies se interpenetram e se sobrepem cada vez mais estreitamente. At os anos imediatos ao ps-guerra conhecamos o Oriente apenas atravs de alguns trabalhos de erudio ou de relatos de viajantes e exploradores. Essas obras eram, s vezes, notveis (por exemplo, as de Alexandra David-Neel), mas tinham apenas um carter de informao geral: podia suscitar um interesse apaixonado, motivar expedies China ou ao Tibete. No eram, em absoluto, uns manuais completos de ensino: era necessrio viajar para o local, procurar tal swami, roshi ourimpotch, compreender e assimilar seu ensinamento, o que poderia consumir anos de aventuras e esforos. Tal foi o papel de pioneiros como John Blofeld, nos EUA, Douglas Harding, na Inglaterra, Jean Herbert, Arnaud Desjardins e Jean Klein, na Frana, e Karlfried Graf Drkheim, na Alemanha etc.

    Esses, e alguns outros, so bem mais que simples amantes do exotismo. Tendo sabido integrar o essencial das grandes perspectivas tradicionais do Oriente - vedanta, ioga, budismo, taosmo, sufismo - sem, contudo, renegar suas origens e razes ocidentais, realizaram em si mesmos essa transformao interior que, por sua vez, lhes permitiu ensinar ao mesmo tempo atravs de sries de publicaes e por uma transmisso direta, mais personalizada.

    Por outro lado, a expanso das trocas internacionais ou as vicissitudes do exlio levaram mestres zens, hindus, tibetanos ou sufis a se estabelecerem em diversos pases do Ocidente, onde organizaram grupos de trabalho e comunidades facilmente acessveis. A viagem para um Oriente, alis, cada vez mais ocidentalizado, no mais, para um discpulo do vedanta ou do tantrismo tibetano, uma condio sine quanon.

    O guru e o fsico A palavra guru, sem dvida, est hoje em dia terrivelmente comprometida: exala um cheiro forte de sectarismo e escndalo.

    De fato, como reconhecer, entre a multido de mistificadores, charlates ou escroques, os guias espirituais verdadeiramente qualificados? Este um campo em que as armadilhas so inmeras e

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    as fachadas extraordinariamente pomposas. Todos os critrios conhecidos podem ser falsificados, invertidos. O verdadeiro sbio prefere, muitas vezes, calar-se ou mesmo esconder-se sob aparncias simples e banais.

    Mas o sucesso popular no , necessariamente, sinnimo de mentira e desonestidade. Desconfiemos de sistemas e apriorismos.

    De um modo mais geral, devemos perguntar-nos se a funo de guia ou guru , antes de mais nada, indispensvel, a que corresponde realmente, e se no constitui muitas vezes, na perspectiva mesma de uma conscincia libertada, mais um paradoxo e um obstculo que um auxlio verdadeiramente eficaz.

    Outro elemento contribuir, certamente, para familiarizar mais e mais os pesquisadores espirituais ocidentais com as abordagens tradicionais do Oriente. Trata-se das recentes perspectivas abertas por certos trabalhos cientficos pioneiros, sobretudo no domnio da astrofsica e da fsica nuclear.

    A viso de uma realidade global, nica, de um todo indissolvel onde o observador no pode mais permanecer separado do objeto reservado nem o experimentador do experimento, desemboca nas intuies fundamentais dos antigos rishis vdicos e dos primeiros sbios taostas. Voltaremos a tratar desse assunto mais longamente.

    Modelos ocidentais e orientais A ndia espiritual continua, sob muitos aspectos, exemplar, desde que se desfaa um certo nmero de mal-entendidos e contra-sensos difceis de evitar para um ocidental desatento. Antes de mais nada, conveniente manejar as generalizaes com prudncia: no esqueamos que se trata de um continente mais povoado que a Europa, com uma prodigiosa disparidade geogrfica, tnica e lingstica.

    Na Idade Mdia as naes europias tinham, de Brest a Moscou, de Edimburgo a Npoles, de Hamburgo a Bizncio, um smbolo comum que era um vivo e grande trao de unio: a cruz do Cristo. Nela comungavam peregrinos e cavaleiros, e tambm camponeses, mercadores e at malfeitores, da Inglaterra, de Flandres, da Provena ou da Hungria. sombra dessa cruz encontravam-se figuras de santos e santas que representavam, aos olhos de todos, o estado mais invejvel e o mais maravilhoso destino possvel, a salvao eterna assegurada.

    Na civilizao hindu h algo bastante comparvel, algo que a sociedade ocidental medieval poderia talvez compartilhar, mas que foge completamente dos esquemas e critrios da sociedade ocidental contempornea: a venerao e a devoo com que a ndia, unanimemente, cerca os sbios, os homens e mulheres que em vida ascendem suprema Libertao - conscincia do Despertar e da Eternidade.

    No Ocidente, os modelos que elevamos s nuvens e com os quais procuramos febrilmente identificar-nos so imagens de poder, de glorola, de avidez: estrelas de espetculos, vedetes polticas, milionrios, play-boys internacionais, superespies. Trata-se de valores puramente exteriores, teatrais, quantitativos, mensurveis em curvas de popularidade, em nmero de bens, de ttulos, de conquistas amorosas.

    O sbio e o santo quase desapareceram de nossa cultura como modelos, ao passo que representam infinitamente mais aos olhos da maioria das crianas hindus, que um ministro, um P.D.G. ou um ator clebre. Alis, vem-se comumente dirigentes polticos e poderosos desse mundo prosternarem-se aos ps de um desses "libertados-vivos" (Jivan-Mukta), considerados, s vezes,

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    como verdadeiras encarnaes divinas - como foi o caso da santa bengali M Ananda Mayi, falecida em 1982.

    O mistrio do sbio As pessoas diante das quais se vem tocar o solo com a testa no tm nenhum ttulo, nenhuma funo honorfica, nada que as distinga, primeira vista, de milhes de outras. No dirigem nenhuma igreja oficial, nenhuma seita, no toma parte de nenhuma ao social, no detm nenhum recorde, no executaram nenhum feito excepcional - tangvel, verificvel. No so guias nem oradores, e, no entanto atraem massas considerveis, milhes de homens e mulheres que vm, simplesmente, receber o darshan, isto , simultaneamente, a viso, a graa e a bno do sbio ou do santo.

    No Ocidente compreendemos facilmente o fervor inspirado por um Joo Paulo II, um Martin Luther King ou um Gandhi, que se engajaram em lutas, que se empenharam pessoalmente, encarnaram um ideal. Compreendemos tambm o efeito carismtico deste ou daquele pregador.

    O prestgio incontestado de um Ramana Maharshi nos parece bem mais misterioso. um homem que nada fez de especial (alguns anos de recolhimento e isolamento no tm nada de original na ndia), que falou pouco e pouco escreveu, e cuja existncia, vista de fora, parece insignificante e montona.

    Ora, esse homem simples, inteiramente desprovido de qualquer ambio ou pretenso e que, de resto, jamais fez coisa alguma para estimular ou desencorajar o ardor de seus discpulos, tomou-se, por si s, objeto de culto e peregrinao considerveis. Em seu caso no houve viso celeste, revelao divina ou um rosrio de milagres: somente uma presena inesquecvel, um olhar, um sorriso, uma evidncia de ser que tambm pode ser chamada de plenitude, amor, eternidade.

    Uma transformao radical De fato, o Ocidente sempre esperou, de seus mestres do pensamento, receitas absolutas, respostas definitivas, a equao ltima que permitiria tudo entender e tudo explicar - como a criana espera de sua me a mamadeira salvadora.

    Enquanto nossos filsofos nos abastecerem com sistemas apetitosos, nos saciarem com teorias excitantes, brilhantes, ns nos deixaremos encantar e at mesmo hipnotizar. O que o filsofo , sua vida e seu modo de ser, pouco nos interessa. Que ele seja um homem psicolgica e nervosamente abatido, a arrastar uma existncia em contradio com seus prprios princpios, isso no nos atinge absolutamente. Para ns, os problemas pessoais de um Kant, um Hegel, um Bergson ou um Sartre est fora de questo. O que desejamos um truque, o truque que nos permitir agarrar, fixar, aprisionar a verdade, definitivamente. Pouco importa quem nos ensina o truque, se Jeov, Lcifer, o Grande Manitu, Freud, o K.G.B., Coluche ou a Samaritana.

    O Oriente sabe, h milhares de anos, que no h resposta absoluta formulvel, que a verdade no pode ser aprisionada em conceitos ou apreendida intelectualmente, mas sim vivida, realizada, percebida atravs de uma experincia interior direta, implicando uma transformao radical do nosso modo de conscincia habitual.

    A verdade no uma questo de idia: ela pertence ao domnio do ser e da experincia vivida.

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    Perder nossas limitaes Portanto, na ndia, essa questo de transformao interior e de realizao pessoal que se sobrepe a tudo. Um libertado-vivo (Jivan-Mukta) algum que realizou. Sua eloqncia, sua habilidade intelectual, seu nvel de conhecimento e de cultura so absolutamente secundrios. Sabe-se que as palavras e os conceitos so apenas sinalizaes a indicar o caminho, mostrando um mapa mais ou menos preciso e detalhado: cada um deve, em seguida, explorar o territrio e descobrir o tesouro. "A palavra um dedo que aponta para a lua", diz um provrbio zen; "s os imbecis que olham para o dedo.

    Como no pode ser traduzido em imagens e esquemas, nem reduzido a formas mentais, o essencial brota de uma experincia ntima, s comunicvel por aquela espcie de certeza ou evidncia que se impe no contato com os seres transformados - os libertados ou despertos. Mistura de simplicidade, de transparncia, de no-dependncia e de disponibilidade, de extrema espontaneidade e extrema presena em si mesmo, de inefvel serenidade mas, tambm de contnuo deslumbramento, tal a impresso global da maioria dos testemunhos, mais inesquecveis que discursos ou tratados geniais.

    preciso salientar que essa realizao no , em absoluto, uma busca de originalidade ou de afirmao pessoal, no est a servio de nenhum ideal, por mais sublime que seja. Como veremos, no se trata de procurar uma vantagem qualquer, seja ela o paraso, mas de perder nossas limitaes, nossa ignorncia, e dissipar as projees mentais que nos ocultam o esplendor do Real, impedindo-nos de aderir ao instante eterno, aqui e agora, e que obscurecem a felicidade da nossa imutvel e verdadeira natureza.

    Uma verificao experimental De certa forma, o pesquisador espiritual da ndia est bastante prximo do pesquisador cientfico. Ambos tm em comum a experimentao. A diferena que o campo de experimentao do pesquisador cientfico pertence ao mundo exterior, ao passo que o pesquisador espiritual , ao mesmo tempo, o pesquisador e seu prprio campo de experimento.

    Em ambos os casos, porm, a verificao direta, a certeza vivida, demonstrada, excede consideravelmente as proposies tericas.

    A confiana ilimitada que o discpulo deposita em seu guru (e que uma condio para o sucesso) no tem nada de fanatismo ou f cega. bastante comparvel, efetivamente, ao tipo de relao que se estabelece entre o estudante e seu professor de fsica ou de qumica: enquanto ele prprio no realiza a experincia, o estudante no tem nenhuma prova real de sua validez. obrigado a acreditar em falas alheias e relatos de segunda mo.

    De uma maneira mais geral, no pensamos em questionar as afirmaes e as capacidades de nossos tcnicos e especialistas, pois no estamos absolutamente qualificados para avaliar a autenticidade de sua competncia. Desse ponto de vista, o domnio cientfico e tcnico provavelmente aquele que apresenta no Ocidente, por exigncias comuns de realizaes concretas, um maior nmero de pontos comuns com a filiao tradicional da espiritualidade hindu.

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    Saberamos reconhecer o Buda? H milnios que os hindus tm sob os olhos, a cada gerao, esses homens e mulheres libertados, que constituem provas vivas muito mais convincentes que as frmulas de catecismo ou as histrias de santos desaparecidos h sculos.

    No temos, em nossas periferias e campos, Frncicos de Assis, Teresas de vila ou Mestres Eckart que possam trazer-nos o testemunho direto e a convico imediata. Quando falamos de um sbio, de um desperto, quase sempre atravs de livros, de artigos, de relatos no-comprovveis deste ou daquele viajante. Saberamos reconhecer o Buda? Nosso inconsciente est carregado de clichs pueris, venerveis velhinhos com longa barba branca, seres imaculados banhados por uma luz sobrenatural, dividido entre o jejum, a levitao e o xtase.

    O libertado-vivo pode ter, num primeiro contato, uma aparncia absolutamente banal, corriqueira. A conscincia do despertar no produz nenhum sinal exterior que o diferencie - no tem aurola ou terceiro olho dissimulado numa ruga da testa. Ela no impede a fome, a sede, o sono, o ranger de dentes, as dores de estmago, se bem que esses diversos sintomas no sejam mais percebidos como antes.

    Uma felicidade absoluta No decorrer do tempo, a ndia apresentou inmeras tcnicas de transformao interior, adaptveis a todas as formas de sensibilidade, a todos os tipos de desenvolvimento e compreenso: fsico, emocional, intelectual, ativo ou contemplativo.

    No centro de uma disparidade s vezes desconcertante, essas prticas tm todas um fundo comum que dividem, alis, com todas as grandes tradies - staosmo, budismo, sabedoria de Scrates e de Epicteto, msticos muulmanos e cristos: ser livre libertar-se do que foi adquirido, de toda posse, de todo apego, de todo haver, no somente no domnio material, mas tambm em planos mais sutis, emocionais, culturais, intelectuais - preconceitos, paixes, opinies. Essa entrega, esse abandono vontade divina uma profunda adeso espontaneidade, indizvel mobilidade do real, uma vigilante presena na eterna transparncia do instante atual. acompanhada por uma desapario do sentimento do ego - angstia do isolamento e da separatividade -, aquilo que a tradio crist denomina "morte do Homem Velho" ou, s vezes, "segundo nascimento".

    Para os que viveram essas transformaes e realizaram esse despertar o novo estado aparece como extremamente simples, natural, evidente, trazendo menos solues e respostas definitivas que um desaparecimento das perguntas. , mais ou menos, como uma cura aps longa doena povoada de febres e pesadelos. O Buda mesmo, alis, apresentava-se no como filsofo ou profeta, mas como um mdico capaz de curar o sofrimento: "Vim apenas para ensinar duas coisas: as causas do sofrimento e os meios de suprimi-lo.

    No fundo, o que a tradio hindusta prope a procura mais rigorosa, mais cientfica e, s vezes, mais herica da felicidade - uma felicidade sem contrrios, uma felicidade sinnima de absoluto.

    Captulo II

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    Dados de Base A viso progressista Fundamentada num conjunto de projetos racionalistas e de sonhos cientficos visando uma denominao ilimitada do universo, a civilizao ocidental basicamente progressista. Suas esperanas e seus valores supremos esto sempre situados num futuro mais ou menos hipottico. Seja no plano poltico, econmico, moral ou mesmo religioso, amanh o grande libi, o argumento irrefutvel. Quaisquer que sejam as ideologias e as opes, de direita ou de esquerda, crentes ou no-crentes, por todo lado afirma-se a esperana, se no a certeza, de que amanh ser intrinsecamente melhor do que hoje e que necessrio sacrificar o presente ao futuro - o futuro da democracia liberal avanada, do bem-estar tecnolgico, do paraso socialista, do governo mundial unificado ou do alm consolador.

    Trata-se de uma concepo onde a Histria valorizada sobremaneira - at mesma divinizada e onde o Tempo arvorado em absoluto, includo numa finalidade teolgico ou econmico qual tudo deve ser imperiosamente submetido. O esquema geral "quanto mais voc se reprime hoje, mais voc falar amanh; quanto mais voc infeliz hoje, mais voc ser feliz amanh", pois amanh essencialmente melhor do que hoje. Assim, as angelicais promessas do futuro justificam todos os infernos do presente.

    Esse progressismo (j existente na noo bastante temporal de um Messias ou de um fim do mundo exclusivamente histrico) inteiramente submetido ao culto do deus Tempo consagra tanto o passado quanto o futuro. Basta observar o entusiasmo das comemoraes, a exaltao das memrias, a exumao de acontecimentos esquecidos.

    Para nossa civilizao progressista, o passado aparece como uma lio, o futuro como um ideal, o presente como um problema. Em outras palavras, a realidade vivida aqui e agora sentida negativamente, enquanto as sombras fantasmagricas do ontem e do amanh so aceitas como as nicas dignas de todos os esforos e d todas as lutas. Despoja-se violentamente o presente em nome de espectros passadistas ou de brumas utopistas e procura-se, nos dois casos, violentar o real e negar a vida. Conhecem-se as monstruosidades legitimadas por uma tal acepo - campos de concentrao, torturas, gulags.

    Essa glorificao do futuro projeta, evidentemente, solues exteriores no tempo e no espao: amanh estaro suprimidos os desconfortos, os conflitos, os sofrimentos, graas magia da modernidade triunfante, que tomar sobre os ombros, integralmente, todos os problemas fsicos ou psquicos longevidade, segurana, bem-estar material, harmonia para todos, assegurados do nascimento morte.

    A busca da eternidade As civilizaes tradicionais - como aquela em que est imerso o hindusmo - tm outra preocupao: atingir a eternidade, perceber a realidade temporal atrs da mscara do tempo, o imutvel no centro da incessante mudana, o sem-nome, o sem-forma alm dos nomes e das formas.

    O Ocidente tem, muitas vezes, tendncia de confundir posio tradicional com tradicionalismo.

    O tradicionalismo reivindica, como principal virtude, uma escrupulosa e incondicional fidelidade aos dogmas, ritos e catecismos ancestrais. uma posio monoltica e rgida que geralmente se transforma numa mstica passadista e absoluta, que baseia a verdade em simples argumentos de anterioridade.

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    A posio tradicional prende-se ao que no pertence a nenhum tempo, passado ou futuro, a essa realidade interior que no muda e que est, portanto, alm de toda crena, de toda prtica particular, sem, contudo neg-las. Essa eternidade no depende de pontos de vista ou de opinies contestveis, tributrias de condies culturais especficas e mutveis; depende apenas de uma experincia direta, indescritvel, que cada um deve viver em si mesmo.

    Eis por que, contrariamente ao tradicionalismo, a posio tradicional nada tem de estreitamente formalista ou dogmtico. Mesmo dentro de uma rigorosa observao de costumes e ritos, essencialmente branda, aberta e tolerante.

    O poder libertador do mito No Ocidente, apesar de j ter passado o tempo em que as Igrejas e as seitas guerreavam furiosamente entre si, cada uma continua persuadida de que a nica depositria da verdade. Essa atitude inevitvel no quadro da viso estritamente histrica e temporal que , geralmente, a do cristianismo. Se Deus se manifesta a alguns privilegiados, santos ou profetas, e encarna-se, para sempre, em um ponto preciso do espao e do tempo, atravs de um nico indivduo, a mincia dos relatos adquirem enorme importncia.

    A ndia preocupa-se menos com exatido histrica ou com fatos objetivos do que com mitos.

    Inscrevendo-se, por definio, margem de toda realidade material exterior, o mito oferece uma narrativa maravilhosa, um itinerrio simblico: seu poder libertador proporcional sua faculdade de adaptao, sua capacidade de despertar ressonncias profundas em homens e mulheres de pocas, culturas e sensibilidades completamente diferentes. Ao contrrio da "verdade" dogmtica ou histrica, a verdade do mito nada exclui e nada rejeita. No pretende fornecer uma resposta completa ou definitiva, mas, antes, os segredos dinmicos de um entendimento mais sutil e de interrogaes essenciais: "O que, em mim, assemelha-se a tal deus, monstro ou heri, a tal espao mgico, encantado ou infernal?"

    Desse modo o mito se torna fator de comunho e de identidade, enquanto o dogma, artigo de f, mais separa do que une.

    A tolerncia Na ndia, o termo tradicional aplica-se sobretudo, a um modo de filiao e de transmisso que no mudou desde a origem dos tempos vdicos. A originalidade, a novidade, a virtuosidade dialtica, to importante para os intelectuais ocidentais, so aqui secundrias. Ao contrrio, parece capital adaptar a cada poca, a cada grupo, a cada personalidade as grandes intuies e certezas eternas.

    O resultado uma diversidade prodigiosa e uma tolerncia fundamental em face de outras solicitaes espirituais: budismo, islamismo, cristianismo.

    O proselitismo e o esprito missionrio so inteiramente estranhos mentalidade hindu. Os missionrios catlicos ou protestantes que proclamavam: "Jesus o filho de Deus!" ouviam, geralmente, a resposta: "O senhor tem razo, Krishna tambm!" Alis, freqente encontrarem-se imagens de Cristo piedosamente expostas entre figuras dos grandes avatares e de divindades milenares. Certos movimentos, como o dos Sikhs, representam uma verdadeira fuso entre o islamismo e o hindusmo.

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    Acresce ainda que, a despeito de discusses filosficas - s vezes muito veementes ou mesmo virulentas, opondo os representantes de diversas correntes hindustas e budistas em interminveis combates oratrios -, a ndia jamais conheceu o equivalente das cruzadas ou das guerras de religio, sendo as perseguies apenas episdios raros e marginais, enquanto em diferentes pocas grandes soberanos, como Ashoka ou Akbar, instituram a tolerncia, o dilogo, o respeito mtuo como verdadeiro sistema de governo.

    Os seis pontos de vista ortodoxos A ndia admite seis grandes caminhos ou perspectivas (darsanas) que oferecem diferentes pontos de vista, desenvolvimento e interpretao das escrituras santas. Essas darsanas so chamadas ortodoxas na medida em que reconhecem a autoridade dos Vedas e do conjunto dos textos sacros fundamentais. Os seguintes sistemas so tradicionalmente admitidos: niaia, vaisesica, snquia, ioga, mimansa e vedanta. O jainismo e o budismo no esto a includos, apesar de seu papel e influncia terem sido considerveis na histria espiritual da ndia onde contam, ainda hoje, com milhes de adeptos.

    As darsanas constituem, em suma, modos de abordagem ou de esclarecimento mais complementares que divergentes, mais ou menos como se, para um mesmo territrio, fossem desenhados diferentes tipos de mapas': rodovirio, fluvial, ferrovirio, geolgico etc. Os desenhos no se relacionam entre si, apesar de serem do mesmo local, visto de mltiplos ngulos. As seis darsanas tratam da mesma realidade ltima e universal sob ticas diferentes, cujas aparentes contradies ligam-se simplesmente diversidade dos itinerrios prospectivos: por exemplo, ponto de vista cosmolgico do snquia, ponto de vista religioso da ioga, ponto de vista metafsico do vedanta.

    O religioso e o no-religioso De maneira geral e paralelamente, os caminhos religiosos e no-religiosos no so, aqui, absolutamente exclusivos e incompatveis.

    Na busca do absoluto, inefvel e inatingvel (Brama), a ndia sempre admitiu as boas razes de duas atitudes complementares e opostas: a da efuso devocional e mstica (Bhakti) e o puro conhecimento metafsico (Jnana), perfeitamente ilustrado pelo Advaita Vedanta, ou vedanta no-dualista.

    Simplificando: pode-se chamar a via metafsica de negativa; o clebre "Neti, Neti". O absoluto no passvel de reduo a nenhuma forma; a nenhum esquema, a nenhum conceito: no isto nem aquilo, no a soma dos dois nem algum dos dois, no nada imaginvel ou acessvel, seja pelos sentidos, seja pelo psiquismo.

    Inversamente, pode-se denominar a via devocional de afirmativa, na medida em que proclama a onipresena do absoluto e se extasia diante do espetculo desse absoluto manifestado por toda parte.

    De resto, frmulas como "o absoluto (Brama) no est em lugar algum" ou "o absoluto est em toda parte" so ainda muito relativas. O vivido na experincia libertadora e na conscincia do Despertar ultrapassa e engloba, ao mesmo tempo, a negao e a afirmao.

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    claro que os libertados-vivos (Jivan Mukta), os despertos como Shankara, Ramakrishna, Ramana Maharshi ou M Ananda Mayi, transcendem, com sua realizao interior, qualquer espcie de classificao.

    Este livro se consagra mais particularmente pesquisa do puro conhecimento atravs da experincia metafsica, especialmente o Advaita Vedanta. Outras duas obras desta mesma coleo evocam, respectivamente, as diversas formas da ioga e os "loucos de Deus" da mstica devocional.

    Um templo gigantesco Quando se aborda o hindusmo, importante precisar, com clareza, o sentido e a extenso de certos termos que se obrigado a empregar freqentemente e cujo significado bastante ambguo.

    o caso, entre outros, da palavra espiritualidade, que se encontra a todo o momento.

    Trata-se de um vocbulo que mesmo os hindus utilizam com circunspeco, na medida em que ele habitualmente implica uma rigorosa e desprezvel demarcao entre mundo profano" e "mundo sagrado", como se houvessem certos aspectos privilegiados da vida e do universo que merecessem pertencer ao domnio espiritual, no meio de uma massa de elementos grosseiros, relegados ao plano oneroso e miservel do mundo material.

    assim que o entendemos no Ocidente, onde o espiritual designa um meio um tanto ou quanto fechado, misterioso, separado da vida, bastante triste no seu conjunto, terrivelmente srio e destitudo de humor.

    Na concepo hindu, o espiritual abrange e engloba a totalidade da existncia em suas manifestaes mais elementares, em suas funes mais naturais, em seus impulsos mais secretos. Nesse sentido, o espiritual aquilo que dissolve as antinomias e novas categorias, do gnero sagrado/profano ou divino/no-divino.

    A natureza inteira sentida como um gigantesco templo: das menores partculas s mais longnquas galxias, a integralidade do cosmos um lugar santo. Os edifcios religiosos so apenas evocaes, representaes simblicas, assim como as danas rituais so apenas o eco e a mmica da eterna dana de Shiva, a prodigiosa e infinita sarabanda criadora do espao-tempo, com suas torrentes de energia, seus milhares de sis engendrados e destrudos, sua mirade de espcies e criaturas em incessante metamorfose.

    De fato, no h uma sensao, uma emoo, um pensamento, uma ao, que no seja espiritual, pois o Brama - o absoluto - est em tudo, em todo lugar, sempre, e os seres, as coisas, os acontecimentos transitrios, perecveis, fugazes - so as mltiplas manifestaes, atividades, disfarces e representaes dessa realidade nica.

    O guru Outra palavra-chave do hindusmo, hoje em dia muito malcompreendida e desacreditada, guru.

    Personagem eminentemente tradicional, o guru representa em toda a civilizao da ndia um papel essencial e idntico, atravs das diferentes correntes religiosas e metafsicas.

    No Ocidente, a imagem que se tem do guru (inspirada na prtica de certas seitas) no , absolutamente, lisonjeira: escroque ou iluminado, vivendo faustosamente s custas de vtimas

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    crdulas, abusando de adolescentes desorientados, facilmente manipulveis e reduzidos por ele condio de verdadeiros escravos, esse charlato merece, aos olhos do grande pblico, um tribunal correcional.

    verdade que a condio de guru pode ser usurpada, no Oriente como no Ocidente, por pessoas pouco escrupulosas, vidas de exercer um poder fsico e psquico sobre seus semelhantes. Sempre existiram falsos mdicos, sacerdotes indignos, tiranos domsticos.

    Para compreender a verdadeira natureza do guru e sua vocao bastante especfica, necessrio lembrar que, ao contrrio do que se passa conosco, a transmisso do ensino no tem, na ndia, nenhum carter livresco. O essencial no est nem na erudio, nem na soma de conhecimentos acumulados, nem no brio intelectual, mas na realizao pessoal, no trabalho de transformao interior. A verdade no pode ser fixada em sistemas, aprisionada em textos ou proposies dialticas, mas deve ser realizada e percebida pela prpria pessoa, no mais ntimo de seu ser. E o saber livresco , nesse sentido, uma ajuda de bem pouco valor. Quando muito pode suscitar uma reflexo ou estimular certas interrogaes. Mas o processo de mutao interior, que a conduta espiritual propriamente dita, implica uma tal revoluo e uma tabula rasa das velhas maneiras de sentir, de pensar, de julgar e de reagir, que se torna necessrio, para bem levar a cabo um tal empreendimento e liberar tais energia, uma fonte de ajuda e de inspirao intensa, direta, ao mesmo tempo prtica, viva, personalizada, inteiramente adaptada aos problemas e sensibilidade de cada um.

    aqui que intervm o guia qualificado, quer dizer, aquele (ou aquela) que, tendo realizado essa transformao interior e resolvido suas prprias contradies, estando livre dos mecanismos constrangedores do desejo e do medo, tendo atingido, no centro de seu ser e de todas as coisas, uma paz sem limites, uma serenidade inabalvel, para alm de toda compreenso, pode ajudar os que, prisioneiros de suas angstias, procuram tateando nas trevas.

    claro, a conscincia do despertar - a imerso no absoluto - incomunicvel. Mas o guru pode transmitir uma experincia, indicar as etapas de seu prprio caminho, ensinar os diversos modos prticos que o prepararam para o derradeiro desfecho. Esses modos esto, evidentemente, ligados sua personalidade, intimamente ajustados s suas tendncias, aptides, limites e condicionamentos. Cada pessoa deve, portanto, achar o guia, o mestre cujo modo de ensino corresponde ao seu prprio temperamento, s suas opes, motivaes e linhas de fora mais profundas.

    A procura do guru pode ser longa e fastidiosa. No basta reconhecer e venerar o brilho e a autoridade de um desses despertos para tornar-se seu discpulo. Os laos que se formam entre um buscador e seu guia infinitamente mais sutis, mais ntimos, mais fundamentais. Trata-se, ao mesmo tempo, de morrer e renascer, e aqui o guru aparece ora como cirurgio, ora como parteiro. A imensidade do resultado final implica, s vezes, processos draconianos e necessita, por parte dos discpulos, de um conjunto de disposies de esprito e de corao: ardor, perseverana, coragem, sinceridade, lucidez. No h lugar para o amadorismo ou meias-medidas, nem para complacncias ou equvocos. A sano imediata e a nica vtima a prpria pessoa.

    Os itinerrios so, portanto, infinitamente diversos, e o guru adapta seu ensino no somente ao acaso de cada discpulo, mas a cada fase, a cada etapa, a cada momento.

    A uma mesma pergunta feita por dois interlocutores diferentes o sbio pode muito bem fornecer respostas divergentes, mesmo violentamente contraditrias, pois nenhuma pergunta pode ser isolada de quem a apresentou, de seu contexto e de suas motivaes especficas.

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    De fato, jamais o guru executa o trabalho no lugar de seu discpulo. No lhe fornece nenhuma receita infalvel, nenhuma frmula mgica: ajuda-o a percorrer um certo caminho, indicando-lhe os perigos e os atalhos, os melhores desvios, as armadilhas e os becos sem sada a serem evitados; ensina-o a utilizar-se das armas que lhe permitiro abater o drago que guarda o templo. Mas o discpulo, e s ele, quem deve caminhar, combater, transpor o umbral supremo.

    A confiana As relaes com o guru no esto subordinadas a nenhuma regra. Podem estender-se por anos ou mesmo por toda uma vida, podem ser espaadas ou regulares, tanto quanto podem reduzir-se a um pequeno nmero de encontros, de excepcional intensidade: tudo depende da maturidade do discpulo. s vezes suficiente uma nica entrevista, ou mesmo uma simples troca de olhares, para provocar um verdadeiro abalo interior de onde procede a uma evidncia e que estabelecer uma certeza envolvendo e incluindo a totalidade do ser em nveis bem mais profundos e decisivos que uma simples convico intelectual. O encaminhamento espiritual de Arnaud Desjardins junto a seu guru Swami Prajnanpad durou nove anos, ao passo que Shri Nisargadatta Maharaj conta que se encontrou com seu guru um pequeno nmero de vezes.

    necessrio, da parte do discpulo, uma confiana de um gnero bastante especial, aquela que inspira as empresas mais audaciosas. No se trata de acreditar cegamente nas asseres do mestre e depois fixar-se tranqilamente em posies teolgicas ou filosficas, mas de fazer a teoria transformar-se em prtica, converter as palavras do guru em atos, em novos modos de conscincia e comportamento. como um tratamento mdico: a mais essencial das receitas no passa de um pedao de papel. No ela que cura, mas a constncia e a vontade do doente em segui-Ia. Se este questiona seus termos ou negligencia algum detalhe, a eficcia do tratamento estar comprometida.

    Este problema da confiana primordial. O Ocidente admite e at louva a f que se tem em uma crena ou numa opinio; mas desconfia profundamente da f que dedicada a um ser de carne e osso, como se nisso existisse um culto malso, perigoso ou mesmo indecente e escandaloso.

    As imagens de multides prosternadas aos ps de certos sbios, no Oriente, ofuscam o grande pblico europeu e americano, que v a apenas idolatria e obscurantismo.

    Entretanto, cotidianamente damos provas de confiana radical na competncia de nossos especialistas em inmeros campos onde o menor erro tcnico pode desencadear conseqncias trgicas e irreparveis - mutilaes, doenas, morte. A vida seria possvel se, constantemente, tivssemos que duvidar do concessionrio que nos vende o carro, do qumico que manipula os medicamentos etc.?

    sua maneira, o guru igualmente um especialista competente, mas sua especialidade o absoluto, a eternidade - o meio de passar de um estado de ignorncia, de iluso, de confuso, de disperso mental, de excitao emocional a esse estado de liberdade interior, de pura conscincia e de felicidade que nossa verdadeira natureza original.

    Um comprometimento total Num clebre versculo do Upanishad, o discpulo, dirigindo-se ao guru, diz sob forma de orao:

    "Do irreal conduza-nos ao real, das trevas conduza-nos luz, da morte conduza-nos imortalidade". Em outros termos, faa com que vejamos o ser imutvel e autntico atrs das

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    aparncias enganosas, faa com que saiamos de nosso sono obscuro, desperte-nos para o puro conhecimento, a realidade ltima e inaltervel, ns que nos debatemos no transitrio e no perecvel.

    A saudao ao guru - que os hindus chamam pranam -, que tanto choca os ocidentais, no se destina a um homem ou uma mulher enquanto indivduos, mas a uma conscincia transformada, inteiramente estabelecida em Brama, definitivamente morta para todo impulso ou projeo egosta, para toda emoo de medo ou avidez, para todo conflito e separatividade.

    De fato, diante de seu prprio Eu realizado (Atman), manifestado, visvel que o discpulo se prosterna, ou diante de uma prefigurao viva de sua prpria realizao espiritual a ser atingida. O ritual exprime e concretiza, de certo modo, o reconhecimento de uma realidade indestrutvel e presente que engloba e transcende, ao mesmo tempo, a pessoa do discpulo e a do guru. um ato que simboliza a ddiva completa do discpulo, seu comprometimento integral no caminho da libertao. Pois, nessa aventura interior que na ndia chamada Sadhana, no pode haver comprometimento parcial e condicional do contrrio se tornaria uma pardia, uma caricatura, alguns trejeitos a que se chamaria orao, algumas encenaes que se denominariam ioga e estados um tanto nebuloso que se tomariam por meditao.

    A transparncia do guru Seguidamente se diz que, quando o guru e o discpulo esto juntos, no h duas pessoas, mas apenas uma: o discpulo.

    Se conseguir verdadeiramente libertar-se dos medos, das frustraes, dos arrebatamentos emocionais, das projees do inconsciente, o sbio no est mais dominado por critrios e julgamentos subjetivos, escravizado aos poderosos mecanismos das simpatias e antipatias, do "gosto-no gosto". Seu ego desapareceu, o que no significa, absolutamente, que ele se torna invisvel e se desfaz no ter (ele est, ao contrrio, admiravelmente presente), mas sua conscincia no est mais identificada com os processos fsicos e mentais, todos eles relativos e fugazes - corpo, sensaes, emoes, idias -, pois seu ser um com todas as coisas e todas as criaturas atravs de suas flutuaes, diferenas e contradies.

    O guru compreende que, fundamentalmente, no outro seno o discpulo, pois que o percebe em sua ltima e infinita realidade, sem separao, sem dualidade, a no ser aquela que o prprio discpulo projeta e da qual resultam todas as suas angstias.

    O guru v o discpulo tal como ele : manifestao instvel do ser total e nico. O discpulo, cuja percepo est deformada por seus julgamentos, emoes, simpatias e antipatias, pelas projees de seu inconsciente, tm do guru uma viso fragmentria, falseada pela intensidade de seus receios, de suas obsesses, de suas perguntas mltiplas e contraditrias. atravs desse espelho deformante de sua mente que ele interpreta o comportamento do sbio: "Ele me aprecia, me rejeita, me ignora, prefere um outro" etc. E segue os ensinamentos de um guru quase inteiramente imaginrio.

    Tal justamente, um dos objetivos essenciais de toda orientao espiritual: conseguir dissipar as camadas de nvoa fantasmagrica que envolve todos os nossos contatos e experincias a fim de ver simplesmente o que .

    Cada um de ns vive num mundo particular, inteiramente fechado e subjetivo, herdado de imagens residuais do passado, de medos recalcados, de sonhos desfeitos, de frustraes

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    acumuladas. como uma contnua miragem, um filme terrivelmente trepidante e barulhento cujo turbilho de seqncias recobre e escurece a transparente realidade do instante presente.

    O que vemos no tal ser, tal acontecimento, mas a opinio que deles temos, os desejos e medos que nos inspiram, as lembranas felizes ou infelizes a eles associadas. Nenhuma circunstncia , em si mesma, boa ou m, nenhum indivduo , em si mesmo, belo ou feio, admirvel ou infame. Enquanto o mundo revelar-se a ns atravs desse filtro de julgamentos e qualificaes, desse caleidoscpio emocional, no viveremos na realidade, mas nas projees de nosso prprio ego, vido e ansioso.

    Esse universo, aque chamamos orgulhosamente "nossa personalidade", que consideramos como nosso mais precioso tesouro, cuja contestao por outra pessoa parece-nos insuportvel, , na realidade, uma priso que nos mantm implacavelmente fechados em ns mesmos, sem abertura ou comunicao, pois dialogamos apenas com o eco deformado de nossas prprias solicitaes e lamrias.

    O guru conseguiu evadir-se das masmorras do ego e acordou para o mundo real, fazendo malograr a ditadura do eu e do meu. Ex-prisioneiro, conhecendo bem a planta da priso, seu regulamento administrativo, as horas de ronda, os momentos e as zonas de menor vigilncia, a altura dos muros e a profundidade dos fossos, pode facilitar a evaso de outros cativos.

    Psicoterapia e espiritualidade Existe um certo parentesco entre um guru e um psicoterapeuta, na medida em que qualquer trabalho de transformao interior necessita de uma verdadeira limpeza do inconsciente: nenhum resultado espiritual durvel pode ser obtido com a represso e o recalque, que extravasam numa compensao neurtica que beira a histeria.

    Mas o papel do psicoterapeuta consiste apenas em ajudar seus semelhantes a se sentirem um pouco melhor ou um pouco menos mal no interior da priso; pode-se sempre melhorar as condies do encarceramento, at mesmo criar um conforto macio e uma rotina tranqilizadora. O psicoterapeuta raramente toma conhecimento da funo e da realidade alienante do ego, do qual ele nem suspeita possa algum libertar-se.

    Para o guru, sentir-se um pouco melhor ou um pouco menos mal em sua cela bastante ridculo. Tanto o psicoterapeuta quanto o guru devem ter um conhecimento profundo e detalhado do espao mental. Mas o primeiro mostra esse conhecimento procurando tornar o local suportvel, enquanto o segundo convida-nos a sair do labirinto, a desertar definitivamente desse lugar de tormentos.

    Outra diferena capital est no fato de que, quaisquer que sejam sua escola e seu mtodo, o psicoterapeuta no absolutamente obrigado a ter resolvido seus problemas e suas contradies pessoais, o que, com certos pacientes, torna muitas vezes inevitveis uma implicao pessoal, impresses e reaes negativas. Em resumo, o psicoterapeuta no est pessoalmente ao abrigo das perturbaes e delrios que trata nos outros. Ao passo que o guru - se verdadeiramente qualificado.- cortou definitivamente, no fundo de seu ser, o n grdio das tenses, conflitos e angstias. As emoes, desejos e medos do discpulo o atingem ou lhe dizem respeito tanto quanto o relato de um pesadelo ou terrores noturnos feito por uma criana atinge a seus pais. Sua imperturbvel neutralidade, sua perfeita transparncia interior permitem-lhe ouvir com uma pacincia e disponibilidade sem limites, porque nada esperando nem admirao, nem gratido, nem vantagens de qualquer espcie -, o dom que ele faz, totalmente livre e gratuito, merece apenas o nome de amor.

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    A ausncia de ambio Esse aspecto deve ser destacado porque constitui, se no um critrio, pelo menos um indcio srio de autntica realizao interior. O verdadeiro guru nada faz para aumentar o nmero de seus discpulos, nem mesmo, alis, para ter discpulos. Absolutamente indiferente censura e ao elogio, ao dio e adulao, est livre de qualquer noo separadora, a comear precisamente pela de guru e discpulo. O guru s existe aos olhos do discpulo. Aos olhos do sbio h apenas uma realidade nica, que se manifesta por uma infinidade de vibraes fsicas e psquicas.

    No Ocidente, conhecemos alguns homens e mulheres que as circunstncias tornaram clebres sem que tivessem, eles mesmos, qualquer ambio a esse respeito. Mas centenas de sbios e de santos, cujo comportamento e ensino foram igualmente notveis, continuam para sempre no anonimato. Qualquer comparao nesse domnio seria absurda. Shri Nisargadatta Maharaj, a quem um visitante perguntou o que pensava de Shri Babaji, respondeu: Mas que idia, perguntar-me isso. Pode-se perguntar ao espao de Bombaim o que ele pensa do espao de Poona? Os nomes so diferentes, mas o espao no. A palavra.

    Babaji apenas um endereo. Quem vive nesse endereo?"

    O paradoxo do guru Existe algo que poderamos denominar 'paradoxo do guru e que Krishnamurti denunciou com um rigor impiedoso e uma acuidade notvel.

    Sua grande crtica que todo mestre espiritual, qualquer que seja sua prpria liberdade interior, apenas acrescenta mais condicionamentos aos anteriores, substitui as antigas dependncias por novas. A Libertao uma rejeio de toda imagem, de todo valor admitido, de todo esquema preestabelecido. Como se pode atingir a adeso ao real - ou seja, ao puro desconhecido, ao inatingvel instante presente - com essa fixao em doutrinas, tcnicas, rituais, disciplinas, e num indivduo sobre o qual seriam projetados fatalmente as obsesses e os sonhos? A caracterstica da ignorncia deixar-nos obnubilar por noes mortas e estereotipadas - psicolgicas, religiosas, morais -, de olhar sempre com os olhos do passado, que nos impede de ver a vida tal como ela . No apegando-nos desesperadamente aos conceitos de espiritualidade, de divindade, de despertar que poderemos recuperar-nos e despertar efetivamente. alguma coisa que devemos conseguir sozinhos, sem intermedirios, sob pena de errar de imagem em imagem, de alienao em alienao. "Se encontrardes o Buda, matai-o!", diz um provrbio zen.

    Digamos desde j que seria bastante tolo pretender, aqui, justificar ou condenar quem quer que seja. A questo, alis, no est colocada nesses termos. Querer explorar tal ou qual proposio de Krishnamurti para estabelecer uma tese "antiguru" seria, de qualquer maneira, basicamente contrria ao ensino mesmo de Krishnamurti.

    O importante a atitude interior: todo mtodo pode conduzir a uma rotina e a um entorpecimento. Mas a ausncia de mtodo pode igualmente ser considerada um mtodo. Krishnamurti considerado por muitos como uma autoridade venervel, apesar de ter sempre rejeitado toda espcie de autoridade, a comear pela sua. E entre seus seguidores ouve-se constantemente: Krishnaji diz... Krishnaji pensa..."

    No fundo, o problema no decidir se necessrio ou se no necessrio um guru, pois isso significa permanecer na periferia mais superficial das coisas e contentar-se em julg-las pelo lado de fora. O problema eminentemente pessoal, particular, irredutvel a generalizaes.

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    Para desembara-los de falsos conceitos , diz Nisargadatta Maharaj, eu vos fornecerei outros conceitos, que so como uma agulha, com a qual podeis extrair um espinho do p. Mas, se deixardes a agulha no p no lugar do espinho, o que ganhastes?

    Uma vez que meus conceitos cumpriram seu papel, necessrio rejeit-los. Jogai fora o espinho e a agulha." (Nisargadatta Maharaj, Sois, Les Deux Ocans)

    O aprendizado da no-dependncia A Libertao (Moksha) caracteriza-se por um estado de no-dependncia absoluta, difcil de ser compreendida - ou mesmo admitida - pela imensa maioria de indivduos cuja existncia , do primeiro ao ltimo momento, uma trama de dependncias fsicas, materiais, afetivos e culturais. Dependncia de uma famlia, de um meio, de bens emocionais, de uma situao adquirida, de bens acumulados, de uma imagem a sustentar, de preconceitos e hbitos inextirpvel, de secretas angstias e terrores ocultos; dependncia de certos princpios, do que se deve e do que no se deve fazer, de ter ou no ter, de parecer ou no parecer; dependncia do que se quer obstinadamente conquistar ou conservar.

    O sbio aquele que compreendeu que, ao despojar-se de tudo, at mesmo de seu prprio ego, desembaraou-se ao mesmo tempo de todos os fardos que o oprimiam, consentindo em uma total no-dependncia relativamente a tudo o que antes governava sua vida, reduzindo-a a um cego encadeamento de aes e reaes - como se conseguisse desintoxicar-se de hbitos perversos e inteis, que os outros homens consideram vitais e indispensveis.

    Em seu novo estado, seu principal papel como guru consiste em guiar seus semelhantes aqueles que o solicitam com ardor e seriedade - da dependncia para a no-dependncia. uma misso pedaggica comparvel dos pais que ensinam seus filhos a usar progressivamente suas prprias asas.

    Aqui, o guru ajuda o discpulo a conduzir uma transformao interior no fim da qual ele no ter mais necessidade de qualquer espcie de ajuda, portanto, antes de mais nada, no ter mais necessidade de seu guia. Resumindo, pode-se dizer que o guru ensina o discpulo a desembaraar-se dele para melhor juntar-se a ele, pois necessrio que o guru e o discpulo desapaream como tais para serem um na realidade ltima de todas as coisas.

    O guru interior Na ndia a devoo ao guru tem fundamentos e prolongamentos que ultrapassam de muito a prpria pessoa do instrutor, mesmo se ele for um libertado vivo, um autntico Jivan Mukta. O guru de carne e osso, cujo ensinamento se segue, considerado como a simples manifestao fsica, a expresso concreta, exterior, de um Guru interior (ou Sad Guru) que , no discpulo, como uma fonte intuitiva de suprema sabedoria e de quem o guru de carne e osso apenas um poderoso reflexo projetado no mundo dos fenmenos. As palavras que alargam e fecundam a conscincia do discpulo repercutem numa conscincia latente, adormecida, porm presente. Para que tenham um poder transformador e libertador, necessrio que provenham, no de uma boca exterior, mas do mago mais profundo daquele que escuta - do corao mesmo de seu ser.

    Esse guru interior, cada um de ns o traz consigo, e ele que se exprime cada vez que uma palavra de sabedoria nos toca ou esclarece, mesmo por uma frao de segundo.

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    Mas temos em ns tantas outras vozes teimosas, febris, clamorosas, que procuram fazer ouvir seus gemidos, seus pedidos de socorro, suas exigncias, que acabam abafando, com sua constante dissonncia, esse canto calmo e doce que em ns murmura nos confins do silncio.

    Muitas vezes o papel do guru exterior simplesmente o de fazer cessar o rudo e dizer: "Agora escutai! Escutem, dentro de vosso ser, cantar a eternidade...

    A graa do guru H um outro aspecto determinante, sem o qual todo caminho espiritual- toda Sadhana - toma-se uma distrao intelectual ou uma efervescncia emocional. o que os hindus chamam de "a graa do gum".

    "No verdadeiro ensino, que j no requer o recolhimento fora do mundo", escreve Arnaud Desjardins, " o mundo inteiro que se torna mosteiro ou ashram o mundo inteiro, a cada 24 horas, que considerado a graa do guru operando (00')' O mais hbil, o mais eficaz, o mais genial dos gurus no poderia criar para mim, em seu eremitrio ou mosteiro, condies mais frutferas, mais proveitosas, mais habilmente difceis que aquelas que a vida me proporciona (...). Se minha determinao suficientemente grande, no tenho necessidade do sino ou do gongo do mosteiro, no tenho necessidade de roupas, no tenho necessidade de perceber o guru a 5 ou 25 metros para pr em prtica seu ensino, e a vida no sculo torna-se ainda mais til que no eremitrio. Desperto pela manh num mosteiro amplificado escala do planeta, e a partir da tudo o que me acontece a graa do guru. Todo esse universo no seno a graa do guru operando para ajudar-me a progredir. Posso dizer de tudo: foi meu guru que o quis para mim, para o meu bem. Essa fadiga vai me permitir progredir, esse mal-estar vai me permitir progredir, essa m notcia vai me permitir progredir. Esse contratempo, essa inquietao, tudo o que acontece eu recebo como a graa do guru operando. (Amaud Desjardins, A ia Recherche du Sai, La Table Ronde).

    Essa situao que assimila cada circunstncia da vida a uma prova libertadora, a uma possibilidade de Despertar, desejada e proposta pelo guru, confundese com os grandes arrebatamentos do misticismo cristo: "Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus", Seja feita a Tua vontade, e no a minha"

    Numa tal abertura, no resta o menor lugar para qualquer medo ou qualquer recusa: tudo bno, tudo amor divino, tudo Brama.

    Captulo III Perspectivas Metafsicas Somente o absoluto real O tema filosfico central da cultura ocidental gira em torno de um certo nmero de questes que podem ser formuladas da seguinte maneira: De onde viemos? Para onde vamos? Por que estamos aqui? Quais so o sentido e a finalidade da existncia?

    No Oriente, particularmente na ndia, a interrogao de base bastante diferente: O que ' real? O que a realidade? O mundo real? Sou real?

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    No Ocidente, a minha realidade enquanto indivduo e a do universo que me cerca no so seriamente tratadas - a no ser em alguns exerccios de acrobacia puramente intelectual. Nesse ponto o desenvolvimento do hindusmo de uma exigncia e de um rigor extremo.

    A primeira observao que as teorias mais grandiosas e os sistemas mais hbeis so bastante irrelevantes, pois o pensamento que os concebe um instrumento relativo e limitado. Ora, o intelecto no pode ser dissociado do indivduo, ele prprio tributrio de uma certa posio no espao e no tempo, de critrios subjetivos e de mltiplos condicionamentos, psicolgicos, sociais etc.

    A questo inicial no , portanto, o que necessrio pensar, mas quem pensa, quem est atrs de todo pensamento.

    A dificuldade est em que a resposta seja ela qual for, ser ainda forosamente Um pensamento, portanto subjetiva e no-confivel. Assim, no se pode conceber e formular a verdade objetiva. Mas essa constatao pertence ao formulvel e ao concebvel.

    Pode-se sair desse crculo vicioso?

    necessrio abordar o problema de outro modo.

    Que que no pode ser desmentido ou contradito por nada? Que que inaltervel e imutvel, cuja validade no pode ser posta em dvida em qualquer lugar, poca ou circunstncia? Que que dotado de uma realidade estvel, permanente, invarivel?

    De fato, somente o Absoluto responde a tais exigncias. O que confirma que somente o Absoluto verdadeira e totalmente real. De modo recproco, o real s pode ser o Absoluto.

    Eis a uma proposio bem surpreendente e at mesmo, primeira vista, extravagante, na medida em que parece escarnecer do senso comum mais elementar e das bases da experincia corrente.

    Somente o Absoluto seria real? Todos os fenmenos relativos que compem ao mesmo tempo minha prpria vida, a de milhes de seres que me rodeiam e o conjunto do cosmos seria sem consistncia, ilusrios? Mas se me machuco sinto dor se caio do alto da torre Eiffel morro. Isso no bem real?

    medida que formos aprofundando o ponto de vista da ndia vedntica faremos tbula rasa de todas as idias preconcebidas, de todos nossos hbitos de pensamento, de nossas certezas mais enraizadas. A perspectiva em que se situa o vedanta no-dualista varre o que sempre aceitamos como evidente e irrefutvel.

    Dito isso, nunca ser demais lembrar que seu objetivo liga-se no a um saber, a uma doutrina, a uma construo mental, mas a uma experincia vivida, a uma percepo direta, a uma conscincia transformada, completamente diferentes de nossa maneira usual de conscincia.

    Como voltar fonte? Em sua pesquisa sobre a natureza da realidade (ou sobre o Eu, em snscrito Atma Vichara), os sbios da ndia julgam necessrio partir do ponto preciso em que estamos, neste mesmo momento, para tentar atingir progressivamente a fonte - a origem de nosso ser e de todas as coisas.

    Uma simples observao mostra que, ao nvel do mundo manifestado, todos os fenmenos inscrevem-se e desenvolvem-se dentro de uma tripla dimenso, espao, tempo e causalidade. um quadro universal, do qual no escapa nenhum processo fsico ou psquico. Todo

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    acontecimento implica necessariamente uma localizao no espao, uma sucesso temporal, e resulta fatalmente de um encadeamento de causas e efeitos.

    Essas trs categorias - espao, tempo, causalidade - parecem, primeira vista, ter uma realidade prpria, perfeitamente exterior a mim, que me condiciona estreitamente e me submete a angustiantes limitaes materiais, biolgicas e mentais: separao, isolamento, sofrimento, degradao e morte. Tal , ao menos, o veredicto das aparncias.

    Levando mais longe suas investigaes, bem depressa conseguiram os sbios da ndia desfazer essas aparncias enganadoras.

    O espao O espao, por exemplo, enquanto distncia, volume ou direo referenciava, outra coisa no seno um produto de minha prpria avaliao, de minha prpria escala de medidas, de relaes, de comparaes.

    Um objeto no em si mesmo nem grande nem pequeno. S tem tamanho quando relacionado a alguma coisa, a algo determinado. Poder ser imenso na tica de um micrbio e nfimo na de uma montanha. Qual seu verdadeiro tamanho, sua dimenso intrnseca? No os tem, ou os tem todos.

    Em outras palavras, ele s se manifesta no espao relativo, mensurvel, atravs do meu olhar.

    Isso no significa, absolutamente, que esse objeto no tenha existncia fora de mim, mas sim que no possui forma definida exterior minha conscincia, dissocivel de minhas estruturas mentais e sensoriais. Posso pretender que minha percepo mais "justa", no absoluto, que a de um daltnico? A norma, nesse domnio, apenas uma questo de estatstica.

    Essa relatividade aplica-se tambm ao tamanho e forma do meu prprio corpo.

    Avanando um pouco mais, se o espao, enquanto conjunto de relaes localizveis e mensurveis tributrio de minha conscincia, ento onde estou?

    Quando digo estou em tal lugar, vou a tal outro, eu me projeto, de uma forma ou de outra, para fora de mim mesmo, como se fizesse parte do espetculo.

    Mas onde est aquele que observa, o espectador escondido tanto da paisagem quanto de meu corpo, de minhas sensaes, de meus pensamentos?

    De fato, posso situar apenas o que abarcado pela minha viso, tal elemento relacionado com tal outro, mesmo quando se trata de uma galxia longnqua, da mercearia da esquina, da caneta que escreve estas linhas ou do corao que sinto bater em meu peito. Mas a viso mesma, em relao a que posso situ-la? Ela est em todo lugar e no est em lugar algum. Onde estou eu, o espectador de onde procede a essa viso? Estou em todo lugar e no estou em lugar algum.

    Uma objeo acode sempre ao esprito: o espao existe fora de mim, portanto ocupo nele uma posio precisa, pois 'que ele existia antes do meu nascimento e continuar a existir aps a minha morte.

    Esta afirmao, que parece cheia de bom senso, , na realidade, um enorme contra-senso. Implica, com efeito, a possibilidade, para mim, de ver o que se passa fora da minha presena, de estar quando no estou.

    Sob qualquer ngulo que se examine o problema, acaba-se sendo forado a admitir que o mundo fenomenal percebido como realidade exterior - o universo observvel - inteiramente dependente

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    do observador. Os trabalhos da fsica quntica desembocaram numa perspectiva consideravelmente semelhante.

    Onde estou? Voltemos terra: estou em tal casa, em tal regio, em tal continente, em tal planeta, tal sistema solar, ele mesmo em tal galxia, ela mesma onde, com certeza? Qualquer que seja a natureza dos envoltrios sucessivos e a imensidade das escalas concebveis finaliza-se sempre no infinito, quer dizer, na nossa prpria conscincia, o infinito no sendo nem visvel nem mensurvel.

    O tempo A segunda questo : quando eu sou?

    Ainda aqui o bom senso intervm para soprar-me respostas do gnero estou em tal ano, tal dia, tal hora. O inconveniente que, quanto mais exato quero ser, mais certo estou de enganar-me. Pois, no momento mesmo em que enuncio o instante - a hora, o minuto, o segundo - ele j passou e parece divertir-se comigo. Quando se pretende agarr-la, o instante vivido torna-se essencialmente fugitivo, sempre ainda por vir e sempre j passado.

    Posso ento tentar situar-me relativamente a uma idade, numa progresso evolutiva ao mesmo tempo pessoal e histrica: vivo em tal seqncia de acontecimentos mundiais, em tal encruzilhada de minha vida, entre 'esta e aquela srie de experincias.

    Esse raciocnio feito em termos de itinerrio e de trajetria, como se o tempo fosse, de fato, espao. Meu passado, o do cosmos, est to para trs de mim quanto o futuro est para frente. Um no mais, o outro no ainda, e ambos existem apenas agora, na conscincia que tenho deles neste mesmo instante.

    O incidente de h cinco minutos no e to nem mais perto nem mais longe, to passado quanto a Guerra dos Cem Anos, o fim dos brontosurios ou a formao dos anis de Saturno.

    esta pergunta quando eu sou? h apenas uma resposta: eu sou agora, imediatamente, nem antes nem depois, apenas agora.

    Mas e a memria, e as lembranas? No sero elas uma prova da persistente realidade do passado? Perguntemos, de preferncia, quando funciona a memria, quando surgem as lembranas: s h memria e lembranas no presente. As imagens do passado so apenas formas atuais de minha conscincia.

    Ao mesmo tempo inatingvel e nico real, este agora imutvel, idntico, eterno: sempre houve, sempre haver o agora, e nada alm do agora. Pode se mesmo dizer que a criao inteira apenas o jogo polimorfo, variegado, genialmente inventivo deste eterno agora, suas formas, seus corpos, seus semblantes infinitamente variados.

    A causalidade Depois do espao e do tempo, a causalidade.

    Todo processo - qumico, fisiolgico, psicolgico - desenvolve-se segundo um estrito encadeamento de causa e efeito que, do nascimento morte, parece submeter existncia frula de urna lei implacvel. Tal , pelo menos, a impresso que se tem quando se estudam os fenmenos fragmentariamente: derrubo um copo, ele cai e quebra-se; machuco um dedo, ele sangra; insulto um passante, ele replica; etc.

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    Quando procuramos a causa exata de um fenmeno, esbarramos com srias dificuldades. Por exemplo, no caso do copo que se quebra, qual a verdadeira causa? Seria o peso do objeto? A fragilidade de seu material? As leis de atrao terrestre? Ou, ainda, meu prprio desajeitamento?

    Mesmo quando se isola e se favorece, um pouco arbitrariamente, tal ou qual fator, deve-se determinar de que processo ele conseqncia e assim sucessivamente. Chega-se logo origem das espcies e formao do mundo.

    De fato, nenhum fenmeno pode ser isolado de urna trama de interconexes, de um tecido de causas mtuas e interdependentes que se repetem ao infinito. O que quer dizer que um acontecimento no resulta de urna causa, mas de urna infinidade de causas, onde cada seqncia particular exprime e contm, de urna maneira especfica e nica, a totalidade da criao.

    Nessa realidade global, onde tudo est inextricavelmente ligado, ns que despedaamos, fragmentamos, partimos essa imensidade movente e fluida em coisas, em categorias, em peas de construo mecnica. O que so, efetivamente, os encadeamentos de causas e efeitos fora da conscincia que os descreve e os regulamenta?

    "No ternos necessidade da causalidade", escreve Alan Watts, "para explicar corno um acontecimento influenciado por outro que o precedeu. Imaginemos que olho atravs da fresta de urna paliada no momento em que urna serpente passa do outro lado. Jamais havia visto essa serpente antes, ignoro tudo a seu respeito. Atravs da fresta vejo primeiramente a cabea, depois um corpo muito alongado e enfim a cauda. Depois disso a serpente faz meia volta e retoma no outro sentido. Vejo novamente a cabea e, aps um momento, a cauda. Se chamar a cabea e a cauda acontecimentos, pensarei que o acontecimento "cabea" a causa do acontecimento "cauda", a cauda sendo o efeito. Mas, se eu olhar a serpente em seu conjunto, vejo urna unidade cabea-cauda e seria completamente absurdo dizer que a cabea da serpente a causa da cauda, corno se a serpente comeasse sua existncia pela cabea, a cauda aparecendo em seguida. j sob a forma de um conjunto cabea-cauda que a serpente sai de seu ovo; exatamente da mesma maneira que todos os acontecimentos so um s e mesmo acontecimento. O que percebemos, quando nos referimos a acontecimentos diferentes, so as diferentes seqncias de um fenmeno contnuo. (Alan Watts, L'Envers du Nant, Denoel)

    Quem sou eu? Assim o espao, o tempo e a causalidade aparecem como construes artificiais, corno a fragmentao arbitrria de urna realidade global, de um todo indissolvel, onde a conscincia do observador e o espetculo observado so apenas um.

    Corno o mundo no separvel da conscincia que dele tenho, perguntar "Que o mundo?" urna maneira terrivelmente complicada e torcida de perguntar: "Quem sou eu?"

    Eis a questo, ao mesmo tempo primordial e ltima, da qual todas as outras so apenas prolongamentos, casos particulares. Esse "Quem sou eu?" uma das bases do ensino vedntico.

    Uma observao mais atenta nos mostra que, no plano dos fenmenos fisiolgicos e dos processos psquicos, tudo se modifica incessantemente e nada jamais perfeitamente idntico. Ora, se no existisse em mim uma realidade idntica e imutvel, como poderia eu reconhecer a mudana e a diferena? So necessrias balizas fixas - ao menos relativamente - para detectar o movimento.

    Quando penso''eu", tenho a impresso de saber perfeitamente de quem se trata; no minha experincia a mais evidente e a mais imediata, minha certeza a mais ntima e a mais invarivel?

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    Um esprito bastante hbil pode conseguir fazer-me duvidar de mil coisas - da existncia de Hitler ou mesmo do globo terrestre; de minha prpria existncia, jamais.

    O problema : Quem existe? Quem esse eu cuja permanncia e continuidade me parecem to evidentes?

    Por outro lado, meu corpo no uma coisa isolada, separvel do mundo fsico que o rodeia. Ele o ar que respira, o alimento que absorve, o calor que o banha, o solo que o sustenta, a terra sobre a qual ele anda e repousa, a luz do sol, a alternncia dos dias e das noites, o ritmo das estaes, o conjunto das energias e vibraes que ele recebe e assimila. Nesse sentido posso dizer que, de fato, o cosmos inteiro que o meu corpo, e no somente um pacote de vsceras e rgos envolvido em um "saco de pele", para usar a bela expresso de Alan Watts, como se houvesse uma demarcao radical, uma verdadeira pelcula de nada a isolar a superfcie de minha epiderme do resto do universo.

    Dizer" eu sou o corpo" , portanto, uma enorme iluso de tica, uma perspectiva grosseiramente errada.

    Os nveis sutis Consideremos agora nveis mais sutis por exemplo, o do domnio emocional e afetivo: atraes, repulses, simpatias, antipatias, toda a multido fervilhante e contraditria de impulsos, pendores e paixes de toda espcie.

    Ainda aqui todo processo passional est em contnua mutao. A emoo , antes de tudo, um fenmeno movente e instvel, condenado a desaparecer cedo ou tarde para ceder o lugar a emoes completamente diferentes ou mesmo oposto. O que outrora nos exaltava ou indignava pode muito bem deixar-nos hoje profundamente indiferentes, e inversamente. Aquele ou aquela a quem declaro hoje meu amor eterno pode inspirar-me amanh uma averso incoercvel.

    Onde est, em tudo isso, o eu inaltervel?

    Pertencer ele ao plano mais abstrato das faculdades intelectuais e das idias? Mas que pode haver de mais inconstante, disparatado e mesmo verstil que essa turbilhonante atividade mental, essa sucesso de opinies e conceitos que se perseguem mutuamente?

    s vezes somos tentados a associar o eu e a memria (particularmente o gigantesco e obscuro territrio do inconsciente) como elemento fundamental de permanncia e continuidade.

    Mas as prprias lembranas esto em incessante flutuao, oscilando, baralhando-se, deformando-se com o tempo, ao arbtrio das circunstncias. Jamais temos duas vezes a mesma lembrana. Pois, mesmo quando um acontecimento se grava em ns e de maneira definitivamente indelvel, jamais pensamos nele dentro do mesmo contexto nem sob a mesma luz.

    A evidncia de ser Na sua essncia intrnseca e imutvel, que os hindus denominam Eu (Atman) para distingui-lo do simples eu dos psiclogos, o eu real no pode ser reduzido nem ao corpo, nem s emoes, nem aos pensamentos, nem memria.

    Como perceber, ento, sua verdadeira natureza? Voltemos ao ponto de partida: a certeza de existir.

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    Essa evidncia de ser independente de toda sensao, imagem ou pensamento particular, anterior s palavras, aos conceitos, s formas, aos acontecimentos.

    Acontece a qualquer um, quando est levemente adormecido, esquecer bruscamente quem ou onde est sem que, entretanto, desaparea a certeza de existir - para alm de um nome ou de uma posio determinada.

    Essa conscincia pura de ser insistimos, jamais variou. Hoje, ela idntica ao que era na primeira infncia. exatamente a mesma em todos os lugares e em qualquer circunstncia. O que muda so as definies em que se procura encerr-la. De uma certa maneira, esse simples "eu sou" no pode nem deslocar-se, nem envelhecer, nem alterar-se, nem ser afetado por nada. Est sempre aqui e agora, qualquer que sejam as aparncias exteriores, os dados conjunturais desse aqui e desse agora.

    Esse "eu sou", a raiz do meu ser, est alm do tempo e do espao, alm da forma e do movimento. De resto, se eu no fosse, em minha realidade essencial, sem nome e sem forma, como poderia perceber os nomes e as formas?

    Esse "eu sou", para alm de qualquer qualificao e mutao perfeitamente neutra e estvel, costuma ser associado noo depuro espectador (Drg) ou depura testemunha (Sakshin).

    Esse ser imutvel, que est no fundo de todos os processos fsicos, emocionais, intelectuais, de todos os fenmenos relativos, freqentemente comparado, pelos sbios da ndia contempornea, tela de um filme.

    Claro, trata-se apenas de uma alegoria, mas bastante evocadora. Durante a projeo de um filme, as seqncias desfilam pela tela sem que esta seja vista. Ora, sem a tela no haveria imagem. Essa tela invisvel o suporte imutvel, imaculado, indiferenvel, o elemento de permanncia e de continuidade que sustm a sucesso dos planos e das cenas. o filme que dissimula a tela, que a subtrai aos nossos olhares, mas no pode nem afet-la nem modific-la. "Ela no nem arranhada pelas balas das metralhadoras de um filme de guerra nem molhada no fim de um filme de naufrgio" (Arnaud Desjardins). Neutra, vazia, indeterminada, no pode ser assimilada a uma imagem particular; mas, ao mesmo tempo, inclui todas as imagens, agrega-se a todas as seqncias.

    Outra analogia tradicional a do espelho. Todos objetos so por ele refletidos, indistintamente. Essas imagens so apenas a superfcie espelhada, e esta no absolutamente alterada pelas cenas que nela se desenvolvem.

    Como a tela ou o espelho, o Eu (Atman) sustm e engloba todas as formas particulares sem ser limitado ou subjugado por nenhuma delas.

    Ele o Eu que habita o mais profundo de cada individualidade.

    Permanece sempre idntico a Si mesmo e, entretanto, transparece atravs das mltiplas transformaes do material.

    No nasce nem morre; no cr nem descr.

    Quando o corpo se transforma em p ele no cessa de existir, tal como o ar contido no bojo de um cntaro incondicionvel."

    (Shankara, Le Plus Beau Fleuron de Ia Discrimination, 131, 134, Adrien Maisonneuve).

    Este texto pode ser comparado com uma soberba passagem do Brihadaranyaka Upanishad (111, IV, 2):

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    "No podeis ver Aquilo que o Vidente da viso; no podeis ouvir Aquilo que o Ouvinte da audio; no podeis pensar Aquilo que o Pensador do pensamento; no podeis conhecer Aquilo que o Conhecedor do conhecimento. o vosso prprio Eu que habita dentro de tudo o que existe, e tudo o que existe deve perecer - salvo ele".

    O Brama O Eu (Atman) , portanto, minha mais ntima realidade, o nico que escapa mudana e morte.

    Absoluto, inefvel, indescritvel, irredutvel a palavras e a textos, ultrapassa toda faculdade de percepo e entendimento. Ao mesmo tempo menor que o mais minsculo entre os mais nfimos e maior que o mais imenso entre os mais vastos, ele propriamente incomensurvel, e nenhuma escala de medida lhe pode ser aplicada.

    Infinito, universal, ele a ltima e nica realidade, gerando e englobando ao mesmo tempo minha pessoa e a totalidade da criao. Enquanto tal, os hindus o chamam Brama Atman e Brama so idnticos, so a mesma realidade superior, considerada como centro e fundamento de minha existncia individual (Atman) ou como centro e fundamento da totalidade dos mundos existentes e possveis, manifestados ou no-manifestados (Brama).

    No-dualidade a propsito de Brama que se costuma falar de no-dualidade. Diz-se ainda que ele Um-Sem-Um-Segundo.

    Todo esse universo que a Ignorncia nos apresenta sob o aspecto da multiplicidade .

    No outra coisa seno Brama, para sempre liberto de todas essas limitaes que condicionam o pensamento humano.

    Ainda que a jarra seja uma modificao da argila, ela no se diferencia da argila.

    Em todas as suas partes a jarra tem a mesma natureza da argila.

    Por que lhe dar o nome de jarra?

    Esse nome imaginrio; no corresponde a nada de real.

    Na nica existncia de Brama a idia do universo pura fantasmagoria.

    Naquele que o Absoluto - sem mudanas e sem formas - onde acharamos traos de diversidade?

    Na nica existncia, livre de noes tais como o que v, o visto e a viso.

    Na nica existncia que o Absoluto - sem mudanas e sem forma - onde acharamos traos de diversidade? (Shankara, op. cito 227, 228, 399, 400)

    No plano do mundo fenomenal e relativo estamos profundamente imersos na multiplicidade, subjugados pelas duplas de contrrios (Dvandas), preto-branco, grande-pequeno, ativo-passivo, positivo-negativo, unio-separao, nascimento-morte, e igualmente finito-infinito, particular-universal, ou mesmo absoluto-relativo, unidade-multiplicidade.

    O Brama no pode ter contrrio, seja ele qual for, pois isso seria ainda limit-lo. Ora, todo conceito, por vasto e indeterminado que seja, comporta forosamente o seu contrrio. Eis por que

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    os hindus preferem o termo no-dualidade (Advaita) a unidade, que pode ser oposta multiplicidade.

    Tu s isso A expresso um-sem-um-segundo aponta igualmente para essa realidade suprema e indizvel; impossvel de ser dividida, circunscrita e percebida. Mas as prprias palavras "no-dualidade", "um-sem-um-segundo" pertencem ao domnio da linguagem e do relativo. "Quanto quele que confunde as palavras com Brama, ele todo poderoso, mas 'somente no domnio das palavras!" (Chandogya Upanishad, VII, I, 5).

    O carter inconcebvel, onipresente e incomensurvel de Atman-Brama evocado em outra clebre passagem desse mesmo Upanishad. Trata-se de um dilogo durante o qual um pai instri seu filho:

    - Traz-me um fruto deste nyagrodha.

    - Ei-lo aqui, Senhor.

    - Divide-o.

    - Est dividido.

    - Que vs?

    - Algumas sementinhas, Senhor.

    - Pois bem! Divide uma destas sementes. - Pronto, Senhor.

    - Que vs?

    - Nada, Senhor.

    O pai continua.

    - Meu amigo, esta essncia sutil que escapa nossa percepo, em virtude dela que esta rvore, grande como , se ergue. Cr em mim, meu amigo, esta essncia sutil anima tudo; ela a nica realidade; ela o Atman. Tu mesmo, Cvetaketu, tu s Aquilo. (VI, XII, C 2, 3).

    "Todo este universo Brama", "o Atman Brama", "Tu s Aquilo. - estas frmulas fazem parte do que denominado "as grandes palavras" (Mahavakya) dos Upanishads. Resumem e contm em si todo o ensino do vedanta. Aquele que lhes percebe o verdadeiro sentido para alm de uma estreita compreenso intelectual, quer dizer, que vive diretamente sua realidade imediata, dentro e na totalidade de seu ser, no tem mais necessidade de ler nenhum outro texto, nem, alis, de se fazer nenhuma pergunta...

    As vagas e o oceano Devemos sublinhar um ponto importante, sob pena de dar margem a confuses e contra-sensos que poderiam desfigurar completamente o prprio esprito mesmo desta trajetria.

    Se Brama sem dualidade, sem contrrio, ento no pode ser isolado, separado do mundo relativo e fenomenal, contraposto ao universo das aparncias e da multiplicidade. Se h apenas uma realidade, perfeitamente indivisvel, sem o menor lugar para dois, ento Brama no pode ser outro seno os inmeros processos - tomados, ao mesmo tempo, global e isoladamente - que aparecem, evoluem, misturam-se, transformam-se e depois desaparecem.

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    Em outras palavras, nada do que fazemos, sentimos, pensamos, tememos, desejamos, tornamo-nos, nada disso outra coisa seno Brama.

    Uma das imagens tradicionais mais correntemente evocadas a esse respeito a das vagas e do oceano.

    Enquanto vaga - fenmeno individual, particular, limitado, relativo - surjo do seio da massa lquida para rolar durante algum tempo na superfcie das guas e depois dispersar-me em espuma na beira da praia. Entretanto, essa vaga no outra coisa seno o oceano.

    Enquanto vaga estou fadado mudana e ao desaparecimento.

    Enquanto oceano - conscincia da realidade total e indivisvel - sou tambm a totalidade das vagas existentes ou tendo existido, nascendo e morrendo em todo lugar, a cada instante. .

    Assim o sbio, cuja conscincia est firmemente estabelecida em Brama, sente-se simultaneamente como vaga e como oceano. Enquanto vaga tem sempre uma existncia individual: bebe, come, dorme, pensa, age, sente dor ou prazer. Enquanto oceano imutvel, eterno, onipresente, onisciente, conhecendo " aquilo pelo qual a totalidade do universo conhecido" .

    Esse aspecto do vedanta no-dualista fundamental, pois somos sempre tentados a reintroduzir uma dualidade, distinguindo e opondo absoluto e relativo, Brama e o mundo fenomenal manifestado, Atman e o processo individual perecvel, ou, numa linguagem religiosa, sagrado e profan