koyré (portugues)

11
5/14/2018 Koyr(portugues)-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 1/11 VlC\J ALEXANCREKOYRt ~ q'r, i 3<;: INTRODUCAO A LEITURA DE PLATAO liii,if;; 284438

Upload: kimunifesp

Post on 17-Jul-2015

106 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 1/11

VlC\J

ALEXANCREKOYRt ~ q'r,i

3 < ; :

INTRODUCAO A LEITURA

DE PLATAO

l i i i , i f ; ;284438

Page 2: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 2/11

o DIALOGO

Ler Platao e urn grande prazer. :e . mesmo uma. grande'

alegria. Os seus textos admiraveis, em que ·.uma perfeicao unica

da forma se alia a uma profundidade unica do pensamento,

resistiram ~ usura do tempo. Nao envelheceram, Continuam

vivos. Vivos como nos dias longinquos em que foram escritos.

As questfies indiscretas e perturbantes -0 que e a virtude?

a coragem? a piedade? que querern estes termos dizer?-ques-

toes com as quais S6crates aborrecia e exasperava os seus conci-

dadaos, sao tao actuais - e, de resto, tao embaracantes e

perturb antes - como outrora.

:e por isso, provavelmente, que 0leitor de Platao sente

por vezes urn certo mal-estar, urn certo-embaraco. 0 mesmo,

sem duvida, que sentiam outrora os contemporAneos de

S6crates.

o leiter gostaria de receber respostas aos problemas pos-

tos por SOCrates. Ora, S6crates, na maior parte dos casos, recu-

sa-lheessas respostas, Os.dlalogos=-pelo menos os dialogos ditos

«socraticos», os unicos de que nos ocuparemos aqui 1--",nao

chegam a nenhuma conclusao, A discussao termina inconclusi-

1 Chamam:se ocsocrA.UeOlPoe dloUog09 da juventude e da ma.tu-

ridade de Platao. Ne..ses dlAlogOll, S6erates desempenh1L 0 pa.pel een- _

tral, 0 !problema dlscutldo 16mb>tualrnente urn problema moral e,

geralmen.te, <!B&e8 dlAl<>gosnAG sa ,cresol'vem,. Duma eondusAo ,pos. tUw.

9

Page 3: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 3/11

• vamente por uma confissao de ignorancia. Pelas suas perguntas

insidiosas e precisas, pela sua dialectica impiedosa e subtil,

S6crates depressa nos demonstra a fraqueza dos argumentosdo seu interlocutor, 0infundado das suas opinioes, a inanidade

das suas crencas ... mas logo que, sem folego, este se volta

contra S6crates e Thepergunta por sua vez: «E tu, Socrates,

que pensas?», Socrates foge a resposta. 0 'seu papel nao e,

diz-nos, emitir opinioes e formular teorias. 0 seu papel e exa-minar os outros. Quanto a si proprio, a unica coisa que sabe eque nada sabe.

Compreende-se facilmente que 0 leitor nao se sinta satis-

feito, que se sinta invadido por urn vago sentimento de descon-

fianca, que tenha a impressao, obscura mas muito forte, de

que fazem POllCO dele. .

Os histcriadores e os criticos de Platao 2 quase sempre

nos tranquilizam. A estrutura geral, tal como as particulari-

dades dos dialogos socraticos e, nomeadamente, a ausencia de

conclusao, explicam-se, dizem-nos, pelo proprio facto de seremsocrdticos, ou seja, por reproduzirem, mais ou menos fielrnente,

o proprio ensino de Socrates, as suas conversas livres e nao-

-escolares nas ruas e nas palestras * de Atenas. 0 dialogo socra-

tico, quer seja composto por Platao, Xenofonte ou :esquines '

de Esfeto, nao tern por finalidade inculcar-nos uma doutrina-

que.Socrates, como toda a gente sabe e como, muitas e repeti-

das vezes, ele proprio no·lodiz, nunca possuiu - mas apre-

sentar-nos uma imagem, a Imagem radiosa do filosofo assassi-

nado, defender e perpetuar a sua memoria e, dessa maneira,

trazer-nos a sua mensagem .

. Essa mensagem, dizem-nos, e, sem duvida, uma mensa-

gem filosofica. E os dialogos contern urn ensinamento. Mas esse

ensinamento, digarno-lo mais uma vez, nao e um ensinamento

doutrinal: e uma Ii~ao de metodo, S6crates ensina-nos 0 uso e 0

valor das definicoes precisas dos conceitos empregues na dis-

cussao e a impossibilidade de os chegarmos a possuir sem pro-

ceder, previamente, a uma revisao critica das nocoes tradicio-

nais, das concepcoes «vulgares", recebidas e incorporadas na

Iinguagem. Por isso,.0resultado, aparentemente negativo, da

discussao e de urn valor extremo. :e, com efeito, muito impor-

tante saber que nao se sabe; que 0 senso e a lingua comuns,

embora formem 0ponto de partida da reflexao filosofica, sao

apenas 0seu ponto de partida; e que a discussao dialectica tern

justamente por ·finalidade ultrapassa-los e supera-los.

Tudo isto e verdadeiro, sem duvida. Muito niais verdadeiro

mesmo do que habitualmente se admite. Parece-nos certo,

com efeito, que as preocupacoes .metodicas dominem - e

determinem - toda a estrutura dos dialogos, que ficaram, por

isso mesmo, como modelos inigualados do~nsino filosofico 3;

que a «catharsls» destruidora a que 'procedem constitui a con-

'di~ao indispensavel da reflexao pessoaI, dessa -verdadeira con-

versao, libertadora, da nossa alma a si propria, mergulhada no

erro e no esquecimento de si , a que nos con~ida a .mensagem

de Socrates. Parece-nos tambem evidente que e por essa men-sagem ser uma mensagem de vida e nao somente de doutrina

- e e por isso que, habitualmente, ela nos atinge no meio das

preocupacoes quotidianas da vida - que a imagern, que 0exem-

3 Num certo sentido, 0 dlalogo e a forma propria para a mves-

tiga~ao filOs6fica; porque, peio menos para Pia;tl!.o, 0prOprio pensa-

mento fiIos6fioo, iUJbertand<>-se de todo 0 controle, de -toda a atitoridade

exterior, Jiber.ta-se Igualmente das SU!l;Simi-ta~!!es indivIduals ao aubme-

ter-se ao controle de urn outro pensaanento. 0 dialog<> eresclv...se~

quando os Interlocutores-Investlgadores se pOem de acordo, quer dlzer;

.\iua;ndo S6crates consegue fazer- partilihar ao seu intertocutor a evl-

d~ncla da verdade que ,posSul. 0 diA:lQgO_nao "" resolve quando 0

inter1oeu to r se recu.sa . a -e sse esfor!;o, como no G6rgtas, ou se cou!essa

in<:BlPaz,como no Mt!""".

2 Para al1geirar 0 ·teotto, suprarntmos ·as notas erud1tM. .e as

referenci88: sao inutei" para o .grande ;publl'Co, e 011ilSpoo1ali&taa

110;-10-.8.0;por 81. Quanto a s t;radu~!!es dos te"tos de !Pt at Ao , u eamoa a s

<las Edltioos GuiUaumil Btzd<!!.

• Lu,gares p1lblJ:cos para a ;pratica de exerctctoe flsic08

(N. do T.).

10 11

Page 4: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 4/11

plo, que a existencia de SOCrates ocupam um lugar central no

dialogo.

Contudo,o mal-estar subsiste. Porque, apesar das explica-

C;Oesque Ihe fornecem, .0leitor modemo - tal como 0 contem-

poraneo de S6crates - nao pode admitir que esses protestos de

ignorancia sejam mais que ironia pura e simples. Com razao ou

sem ela, ele continua a achar que, as questoes que poe, Socrates

deveria-e poderia-dar respostas positivas. E nao lhe perdoa

que 0 nao faca. Pensa sempre que trocam dele.

N6s julgamos, pelo nosso lado, que 0 leitor modemo tem

e nao tern, ao mesmo tempo, razao, Tern razao em acreditar no

caracter ir6nico da ignorancia socratica; tem razao tambem em

julgar que Socrates possui uma' doutrina+; terti razao, enfim,

em ver que S6crates troca. Mas engana-se ao julgar que e deleque se troca. 0 leitor moderno nao deve esquecer que e oleitordo dialogo e nao 0interlocutor de S6crates. Porque se Socrates

troca frequentemente dos seus interlocutores, Platao nao troca

nunca dos seus-Ieitores,o leitor moderno (0 nosso) din" provavelmente que comeca

a nao perceber. Bern . .. isso nao e culpa sua: os dialogos per-

tencem a urn genero literario muita especial e desde ha .muito

tempo que ja nao sabemos nem escreve-los, nem le-Ios.

A perfeicao formal da obra plat6nica e urn lugar-comum.Toda a gente sabe que Platao foi nao s6'um grande, um muito

grande fil6sofo, como tambem (ha mesmo quem diga: sobre-

tudo) urn grande, urn muito grande escritor. Todos os seus

crltlcos, todos os seus historiadores, nos louvam unanimemente

o seu incomparavel talentoIiterario, a riqueza e a variedade da

sua lingua, a beleza das suas descricoes, a capacidade do seu

genio inventivo. Toda a gente reconhece 'que os dialogos de

Platao sao composicoes dramaticas 'admiraveis onde, diante de

nos, as ideias e os homens que as trazem se chocam e confron-

tam. Toda a gente, ao ler urn dialogo de Platao, sente que ele

poderia ser dramatizado, levado a cena 5. No entanto, rara-

mente sao dai tiradas as conclusoes que se impoem, e que nos'

parecem ter uma importancia segura para a inteligencia da obra

de Platao. Tentemos entao formula-las, tao breve e tao simples-

mente quanta possivel.

Os. dialogos, acebamos de 0dizer, sao obras dramaticas

que poderiam - e que deveriam mesmo - ser representadas.

Ora, uma obra dramatica nao se representa no abstracto, diante

de plateias vazias. Ela pressupoe, necessariamente, um publico

a que se dirige. Noutros termos, 0drama, ou a comedia,

Implicam 0espectador ou, mais ~tamente, 0ouvinte "_E isso

nao e tudo: es.se espectador-ouvinte tem,· no conjunto da

representacao dramatica, urn papel, e urn papel multo Impor-

tante ..a desempenhar. 0 drama nao e um «espectaculo», e 0

publico que assiste ao drama nao se cornporta, ou pelo menos

nao se deve comportar, como puro «espectador». Deve colaborar

com 0autor, compreender as suas intenC;Oes;,tirar as conse-

.quencias da accao que se desenrola diante de'si; deve com-preender-lhe 0sentido e imbuir-se dele. E esta colaboracao do

ouvinte, do publico, com a 'obra dramatica e tanto mais impor-

tante e maier quanto a obra for mais perfeita e rnais verda-

deiramente «dramatica •. Bern triste, na verdade, seria a obra

teatral em que 0autor se pusesse, de algum modo, a sl proprio

em cena, se comentasse e se explicasse ele proprio T. Ou, inver-

samente, bern triste seria 0publico para 0qual uma determi-

nada explicacao, um determinado comentario autorizado, fosse

necessario,

• ,om S6cr&te.s puramente critlco pa.reo&-n08 mveroslm1l. A

Influ&lcla que exerceu sobre urn esplrlto como 1P1atiio""ria, nessecaso, Ine>qill,cavel.

• 0 que, OOreato, foi feito: 110. tempo >deiC!.cero,os Intelootuals

.rOlllllDl09 fazlam eepreseatar OBdlAlogos. '

.. INIUII1&certa medlda, 0 seu p~l, DO drama. e na ~a

antiga, e desempenhado peilo 1C0ro.Mas, 110 dI&l~, IlIio ha. eoro,

T Par Isso, 6 rldioulo, numa obra d;ramatlea de grMlde enver-

gadura, ICODU) por exem;plo a obra de Shakesq>eare, procurar 0 !pOrta-

-voe do autor, lil no e ipelo eonjunto d", obra que 0 autor se exprime.

12 13

Page 5: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 5/11

Socrates possui umadoutrina que Piatao, sem duvida, conhece

perfeitamente bern, porque e que nos deixa emba~a!tados em

vez de a expor clara e simplesmente? E se lhe objectassemos

que a ausencia de conclusao explfcita faz parte da propria essen-chi do dialogo 1., responderia, sem duvida, que ninguem forcava

PI~tlio a escolher este modo, tao particular, de exposicao, e que

podia muito bern, como n:osproprios fazernos, escrever livr~s e

explicar as doutrinas socraticas de maneira que pudessem ser

compreendidas e apreendidas por todos os seus leitores.

Digamos uma vez mais que 0 leitor moderno tern e' nao

tern, ao mesmo tempo, razao, Tern razao em julgar que 0modo

de exposicao escolhido por PIatao nao tornava a doutrina s_o-

cratica facilmente acessivel. Em contrapartida, nao tern razao

em pensar que PIatao alguma vez a tenha querido tornar tal.

Muito pelo contrario, para Piatao' isso nao era possivel. Nem

mesmo desejavel =. .

Com ef'eito, para Platao, a ciencia verdadeira, a unica digna

desse nome, nao se aprende nos Jivros, nao e imposta de fora

a alma. E nela mesma, e por ela mesma, pelo seu proprio tra-balho interior, que ela a atinge, a descobre, a inventa. As ques-

toes postas por Socrates - ou seja, por aquele que sabe - est i-

mulam-na, fecundam-na, guiam-na (e nisso que consiste a celebre

rnaieut ioa socratica), Mas e era propria que lhes deve dar a

resposta.

Quanto aos que 0 nao podem fazer e que, portanto, nOO

compreendem 0sentido lmplfcito do dialogo, tanto pior para

eles. Pia tao, com efeito, nunca pretendeu que a ciencia e,

a fortiori, a filosofia, sejam acessiveis a toda a gente e que toda

a'gente seja capaz de a cultivar, Ensinou mesmo sempre 0con-

trario ..E e justamente por isso que a dificuldade inerente ao

dialogo - inacabamento, exigencia de um esforco pessoal da

parte do leitor-ouvinte - nao e, para Piatao, urn defeito, mas,

Mas, digamo-lo mais uma vez,0dialogo verdadeiro, Como

sao os dialogos socraticos de Piatao .,0dialogo genera literario

e nao simples artiffcio de exposicao; como acontece com os

de Malebranche ou. de Bruno, e uma obra dramatica D Donde

se segue que, em qualquer dialogo, haao lado das duas perso-

nagens patentes - as dois interlocutores que discutem - uma

terceira, invisivel mas presente e de igualImportancia: 0 leitor-

-ouvinte. Ora, 0Ieitor-ouvinte de Platao, Q publico para 0qual

a sua obra Ioi escrita, era uma personagem singularmente avi-

sada avisada de muitas coisas que, infelizmente, nos ignora-

mos; e que, sem duvida, ignoraremos sempre, e singularmente

inteligente e penetrante. Por isso, cornpreendia muito melhor

do que nos 0podemos fazer as alusoes disseminadas nos

dialogos, e nao se enganava a~rca do valor de elementos que

a nos nos parecem muitas vezes acessorios. Assim, sabia a nn-

portancia das dramatis personae, dos actores protagonistas da

ebradlalogada. Sabia tambem, ;POl' si proprio, descobrir a solu-

~ao socratica - ou plat6nica - dos problemas que 0 dialogo,

aparentemente, deixava Irresolvidos.

Aparentemente ... porque das consideracoes muito simples

e, no fim de contas, banais, sobre a estrutura e 0 sentido do

dialogo, que expusemos, resulta, pareoe-nos, que qualquer

dialogo comporta uma conclusao, Conclusao nao formulada,

sem duvida, por Socrates, mas que 0 leitor-ouvinte tem 0 dever

e a capacidade de tformular.

Receamos que 0leitor moderno nao. esteja inteiramente

satisfeito. Porque, dira talvez, todas estas complicacoes? Se

• Meamo em iPla.tiio, os «diaJogo.s» da ve:.u!ce nao sao verda-

del.ros didlo!108: p. ~. o Timeu, modelo dos pOOIll!lo-diAJQgos medtevc.is

""tre omagisJer. e o discipulus.

" 0 dlAJogo moderno, 0de Berkeley e de Maleibranche, de-Bruno

ou de SebeIling-e·(pOderiamos alongar a Msta~nao <!oexactamente

d.......atlco. Urn dos Interlocutores - Fll6noo ou Te6fIlo au F1loteu bern

designado meamo opelonome -serve de porta-vee: do autor , 0 diAJ.ogo

moderno-COIn a. nnica excep~ao, ~ doa de Gb;lI1eu'(e mesmo

esses . .". ) e de Hume -Ie-.se como qualquer outro llvro.

10. 0que n8.0 serta comptetamente ex~a.cto: assim, na Rep1i.blica,

SOcrates e"IP()e e enema uma doutrina opositlva.

11. 0 ensinamento filos6fico~p~at6nico-e, -em 'ceria medlda,

esoterieo.. 0 que nunca se deve """luecer.

14 15

Page 6: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 6/11

bern pelo contrario, uma vantagem, e mesmo a.maier vantagem,

deste modo de exposicao. Ele contem uma prova e permite

separar os que compreendem dos, muito rnais numerosos, sem

diivida, que nao cornpreendem.

Mas tudo isto pode parecer abstracto e abstruso. Demos

entao alguns exemplos 12.

2

M~NON

Toda a gente conhece 0 dialogozinho encantador que, indo

buscar 0nome ao protagonista principal, se chama Menon.•

Lembremos brevemente 0 seu conteudo e as articulacoes

mestras ,.

Asdrama tis personae, antes demais. Sao pouco numerosas:

alem de SOcrates, ternos Menon, urn fQ,ttdottier;!l tessaliano que

tomou parte na expedicaco dos Dez Mil com Xenofonte e que

nao voltou; Anito, rico burgues de Atenas, futuro acusador de

S6crates; e, por fim, urn escravo an6nimo de Menon.

o dialogo comeea de uma maneira bastante brusca. Menon,

sem mais, poe a S6crates a famosa questao controversa, tao.

debatida nos ctrculos filosoficos de Atenas: «A virtude

(&p&T?j)' ensina-se ou nao? E, se nao, como se adquire? Sera

1 NAo temos lntengAo de fazer aqul nem uma e>QP<>SlgAoem

urn ccmentar to dos d1!U~os que tomaeemos =0exemplos. Esse

comentar io f8.-lo-Ao os nossos leitores-pelo menos esperaml>- lo-

ao lereJJLou reJ.erem iPlatAo. To.marao contaeto, nessa altura, coon os

textos que ettamos ou . .. que fazemos 'alusao,

• .A . -evtrtude antLga:> ( ap<nj -virtU8) e, sabemo-lo ,~, qll6lquer

coisa de multo d1ferente <ia virtude cristA, qualquer coisa de multo

ma.1s vJriJ e de nenhum. modo humilde. Poderiamos perguntal"-IlO6 Be

nAo valer ia malsadoptar, para Itraduzlr esta nogao, urn ~ermo d1fe-

rente de ~vlrtude~, 1P0r exemplo, «'VaJon, "0 6entido em que Be <liz:

«valor e diSClpll", ." urn homem (ou urn soldado) «:valoroso~.

12,. ,Da£eJUOS trf.s: 0 Menon_, 0 Protdgoras e 0 TeBteto;. sem nos

preoouparmos em aegulr a ordem cronol6gica do. sua cornposigAo.

16 17

Page 7: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 7/11

~. . . .

. \.

I~ IIf [I

I

pelo exerdcio ou, se tambem nao for 0caso, donde nos .vrra

ela? Sera um dom da natureza ou tera uma origem ainda

diferente?» A esta avalanche de perguntas, S6crates, bern enten-

dido, e incapaz de dar uma resposta. E rnais, nao 56 se achaincapaz de dizer se a virtude pode ou nao ensinar-se, como

ainda, e e esta a razao dessa incapacidade, ignora 0que ela e,e.nunca encontrou pessoa que 0saiba.

Menon esta um bocado admirado. Como e que S6cratespode dizer tais coisas? Nunca encontrou G6rgias? De resto, e

inutil ir buscar Gorgias para 0caso. Toda a gente sabe 0que

e a virtu de. E, para comecar, ele, Menon. Toda a gente sabe

que ha varias especies de virtudes: a virtude do homem e a da

mulher, a virtude das criancas e ados velhos, a virtude dos

escravos e ados homens Iivres, etc. Cada situacao, e carla accao,

tern a sua pr6pria virtude t.

Sem duvida, responde Socrates. Mas a virtude ela propria

e em si pr6pria?-Menon nao compreende e Socrates ve-se

obrigado a explicar-lhe longamente que, para que todas essas

virtu des 'sejam «virtudes», e preciso, necessariamente, quepossuam uma essencia (oval,,) comum, da qual elas nao sejam

mais que particularizacoes.

Menon compreendeu (ou julgou compreender): a virtude

em sipropria? E muito simples: eo poder de comandar. Adeft-

nic;:ao.de Menon, visivelmente, nao vale nada. Antes de mais,

o poder de comandar nao designa uma virtude a nao ser que

se precise que e 0 poder de comandar [ustamente (0 tirano nao

e urn ser virtuoso); depois, e claro que Menon nao definiu a

essencla da virtude mas, simplesmente, nomeou uma de entre

outras. Por isso, S6crates lhe da mais uma vez uma lic;:aode

Iogica explicando-Ihe que 0facto de 0cfrculo ser uma figura

nao nos autoriza· a dizer que qualquer figura e urn circulo

e que e precise definir afigura de outra maneira (e sem intro-

duzir a noc;:iiode circulo na definic;:ao).

. .Menon, uma vez mais, julga ter compreendido, :e uma defi-roc;:aogeral que Socrates pede? Isso nao e problema: a virtude

nao e mais do que cO desejodas. coisas boas, juntamente com

o poder de as obter», A nova definic;:aonao vale multo mals

que a precedente~. Antes de mais, contem um termo .inutil,

..Desejo das coisas boas" e urn pleonasmo. Toda a gente, comefeito, deseja as coisas boas e apenas essas s, Ninguem deseja

as m a s , a menos, bern entendido, que se engane e julgue boas

as que, de facto, nao'o sao. Alem disso, 6 insuficiente. 0 «poder

obters, como tal , nao e uma virtude (0 Iadrao nao e urn'

homem virtuoso); e precisoportanto acrescentar: de uma r n a -

neira justa.Ora, sendo a propria justica uma virtude, daf decorre que

Menon definiu a virtude par uma das suas partlcularizacees

ou, como diz Socrates, a todo pela parte.

Eis-nos assim chegados ao ponto emq,ue Menon- que jul-gava saber - e obrigado a admitir que, tal como Socrates, naotem it minima, ideia do que possa ser a virtude, Eentao neces-

sana reeomecar a pesquisa. Mas Menon, que, sem duvlda, gos-

taria de acabar com 0assunto, entrinchetra-se atras de outra

questao entao na moda e objecta: como e que se pode procuraro que' se ignora totalmente? Como e que, mesmo que a

encontrassemos, saberiamos se tinhamos encontrado 0que pro-

curavamos?

A objeccao e especiosa eleva longe: implica, com efeito,

que nao sepode aprender nada. Platao, digarno-lo imediatamente,

toma-a extremamente 'a serio, Digamos mesmo mais: Platao

aceita-a. A teoria da reminiscencia explica-nos justamente que a

sltuacao - efectivamente impossivel- de procurar 0. que se

ignora totaImente nunca se realiza. De facto. procuramos sempre3 !Menon tern razao: hA ¢virtudes:> diierentes e mesmo lnCDIIl-

pat ivel s: a vlrtude da muLher nao I I ! > a do h~. tal como a docavalo <lao I I ! > idl!ntica a virtude do clef.... te. 5e ~on IUvesse "",bid<>

a.prof.undar a eua ldela, teda chegado A conc~ao de Ar1St6telea em

que «vlrtude:> e 19uaJ a 'Pea1fel~ao.Mas Menan nao soube aprofund!lll"

esta ldeia: -r-ecueou-se &0 esroreo,

4 it: esea, como se saoe, a cOllvl/cl:Ao .fUndamental de SOOrates:

nlnguem de8eja 0mal aem o ese voluntartamente.

18 19

Page 8: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 8/11

.6 q u e jif' sabemos. Procuramos tomar consciente umsaber

inooiis'ciente. procuramos recordar urn saber esquecido s.

J No Menon, Socrates responde it objecctio evocando urn

mito e Invocando urn facto. 0 mito da preexistencia das almas

permHe~nos' conceber 0saber como uma reminiscencia; e.o

lacto' de' se poder fazer aprender uma ciencia a alguem que a

linara, sem a «ensmar» G, mas. ao contrario, fazendo que ele a

descuera, demonstra que 0 saber. efectivamente, nao e mais

que tim recordar 7.

:e a esta prova pelo facto que Socrates vai proceder daqui

em diante. Fazendo perguntas precisas a urn escravo do sequito

deMenon. tracando diante dele figuras na areia, Socrates faz-lhe

descobrir urnaproposicao fundamental da geometria. 0 escravo

nunca tinhaaprendido matematica, Por isso, de infcio, engana-se,

No entanto, a s perguntas de Socrates, acaba por dar respostas

justas: prova evidente de que as conhece, sem duvida, sem 0

saber. Com efeito, as perguntas de Socrates nao 1he ensinam

nada, apenas lembram it sua consciencia, apenas acordam na

sua alma urn. conhecimento adormecido e inconsciente que elaje i possuia.

Temos agora; entao, material para responder a dificuldadelevantada por Menon. Por isso, pelo menos SOcrates assim

0. pensa, nada nos impede daqui em diante de retomar a pro-

• iDir-se-a mats tarde que elise saber 6 '-toa alma.•.0errno «ensLnan -~,Mox..v-destgna a ac"AG do meStre que

transmite ao ahmo 0.saber- que ,possu1. 0mesllre age, 0 sluno sofre

a = , , 8 . 0 . 0mutre da. 0aluno recebe, 0anestre ensIna a poes!a: 0

a-luno aprende-a, Jm.prlme-a na sua. mem6rla.. l!: de maneira completa-

mente diferente que se ensLna a. cil!<ncia:0mestre expltca •.0aIUIIlOecmpreeade ..

7 . Os historlado1'>es de 'IJIatao .toma.ra:m, ge.raImente. 0 mito da

preexlst l!<ncla. demasJado a serio, multo mals a ser io que 0pr6prlo

Pla!tiI.o, que suIblinha. ;peIo cont*lo, 0 CIlI8cter mUOco desta doutrtnae j·ndica multo daramente que ela nAG r>esowe 1Ilada. Corn e£e1to em

quaIquer extstl!<ncla anterior 0 problema. do saber (da. aqu1s1"~ do

saJber) Be poria exactamente da me:sma manelra. que na nossa exls-

i .!ncla actual . A anamnese plat6nlca faz-nos reen:contrar coDhecl-

mentos que a nossaalm a :possul por sI, desde sempre.

20

cura da definic;ao. ou melhor, da essencia da virtude. Mas Menon

nao esta de acordo. Ouereria voltar imediatamente a sua pri-

meira questao, a saber: «A virtude e uma coisa que se pode

ensinar, ou e u~ dom da natureza, e por que via, enfim, se pode

adquirir?

o desejo de Menon e cornpletamente despropositado, tal

como S6crates nao deixa de 0 sublinhar, pois que leva a querer

estudar as propriedades de uma coisa de que se ignora a na-

tureza. Por isso sera necessario abordar esta questao de vies.

trata-la ex hypothesi, ou seja, Iimitar-se a determinar as con-

dic;oes· necessarias para que a virtude se possa ensinar.

A resposta, entao, e muito simples: para que a virtude se possa

ensinar e preciso que seja ciencia ", porque a ciencia e a unlcacoisa que se pode ensinar D. Entao, se a virtude e ciencia, elapode ensinar-se; e nao pode se for outra coisa. .

Todavia, se a virtude fosse uma ciencia, ensinar-se-ia,

efectivamente. Haveria mestres de virtude, como ha de todas

as outras ciencias. Mas. defacto. nao os ha . Pelo menos, Socratesnunca os encontrou.· E isto nao e uma opiniao pessoal de S6-

crates: e ados atenienses em geral. Anito, que acaba de chegar

• 0 It~o grego hlonj~1jqUer dizer .sa.ber» e no uso corrente

IIIPIJ.ca-se il.s clencla.s e aos oflclos (saber e saoer fazer). No entanto,

e mais partlcularmente reser.vado para designar 0conhecimento te6-

rico. a cil!<nclaproprlamente dita, 'Por qposl"ao ao «saber 'Pratlco~, ~'Xv'l'

Mantennos a .tradu"ao «"Cleocla:>porque e tradiclonaI, embora d< ' ! ao

termo em que&tao umsentldo urn pouco mais Umitado e precis(J do

que aquele que tern em ,grego.

·D iPara eompreender a afirnna"ao de !S6crates. que poderla

parecer surpreendente ao leitor moderno .(e nao 0era rnenos, de resto,

para 0sen Interlocutor), que poder.ia objecbar' que se ensmam muitas

coisas que -nin . . s a o c:ci@oncias:Jo,a.is como urtes, oficios, ete., 'que .se

a,prende a falar. a da'n"ar, a fazer musica etc., ete., e p r ec l so ter em

conta 0 earacter alnbf;guo do terroo b:la~~p.1j que noUSQ corrente

deslig.na. justamente " " u d o o que se ·en.slna. l!: preclso terean conta

tgualmente 0facto de que S6crates ironiza a eusta de ~non: com

efelto. acaba; de nos mostrar que 0que e' vel'daideiramente «·cU!ncla>

fa ,geametr.1a) na o se podoeda ensinar I( btadJXElV) no sentido h..bltuaJ

do tenno. Por 1880, justameillte Be a vlrtude far ci4§ncia 6 que nao

21

" _ -_. _'_ -

Page 9: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 9/11

·1,

e, provavelmente, de sesentar ao lado de Menon, 'vai, diz S6-

crates, conflrmar-no-lo >t_

Explicam entao a.Anito de que e que se trata: Menon «estadesejoso de adquirir aqueJe talento e aquela virtude que fazem

que se governe bern a casa e a cidade, que se honre os pais,

que .se saiba receber concidadaos e, estrangeiros e despedir-se

deles como homem honrado». Em resumo, Mencnquer adquirir

o que os Gregos chamavam «a virtude politica» (1TO).ITIXf) &PEn)

ou, em termos modernos, quer tornar-se urn homem de

bem, urn gentleman. A quem se deve entao dirigir? Por acaso

a aJgum dos que se dlio por mestres da virtude, ou seja, a

algum sofista? Anito exclama: Que Deus o.nao permital Nao,

sobretudo nada, de sofistas porque, ernbora gracas a Deus

nunca tenhafrequentado nenhum, Anito sabe pertinentemente

que eles e 0seu ensino nao valem nada, Sao verdadeiraniente

uma peste e um flagelo, Entao, a quem se dirigir? Anito pensa

que nao e necessario procurar um "mestre. «Que ele se dirija

ao primeiro dos cidadaos honrados de .Atenasque aparecer,eles Ihe ensinarao essas normas de virtude que eles pr6prios

aprenderam dos seus predecessores. Gracas aos Deuses, Atenas

nunca teve falta de cidadaos honrados». Socrates esta de acordo,

mas 0problema nao esta ai. Essas pessoas honradas sao capazes

de ensinar a virtude? Anito pretende que si_?I,e, no .entanto,

podera ser eenstnadas-, e que nao poderta haver «professores de

~vlrtuoo:> como had e poesla, de muslea. ou de ,glnastl<:a. E que se cia'

pudesse sex enslnada como estae ul tl.ma.s era. entao que ",ao serda

uma verdadelra <JCl&lci3..>. Em <:ontra/pa.rtida, ee se admitir - 0que

6 lmJpossivel de negar -e-que a yerdadelra. ci6ncia, a maternatica, e

mesmo a. fllOBOfia, sa o objecto de enstno e se se flxar a no<;8.o de

ensmo neste sentldo, en<tao serao unlcamente as .,U!ncaaS que pOderao

ser ensinadas, e ~ra?, os oficios e as a.rtes que nio 0p O O . e r a q . ser.

Isto, diga-se de \passagem, arrutna desde jll a lP""etensa.o do sofista

de eastoar a vintude, . .

10 Anlto, rico bul'gul!s de Atenas, personagem constderavet e

«consldemda.:>, represents. 0eontormtemo social. em todo 0seu horror.

Mi6non representa. 0 lnteleotua.l cevoJuldo:>. socrates aeha que, no

il'undo, eles sao rpedeLta.mente identic"",. .

2 2

nenhuma das grandes personagens da hist6ria de Atenas, nem

Temistocles, nem Tucfdides, nem Aristides, nem Pericles, a sou-

beram ensinar a quem quer que fosse; nem mesmo aos seus

filhos. Ora, te-la-iam sem duvida feito se isso fosse possivel.

~ portanto razoavel concluir que se tratava de coisa impossivel

e que a virtude nao e ensinavel. Anito nao sabe que responder.Por isso zanga-se e acusa S6crates de denegrir Atenas e os sens

bomens de Estado,

Anito nao assistiu ao principio do dialogo, as perguntas e

distincoes de Menon. 0 que vele .quer dizere que a virtude

se adquire pelo usa, pela lmitacao dos pais e dos antepassados,

exactamente como as boas maneiras que se «ensinam» deste

modo as criancas. Erro compreensivel da parte de Anita: para

ele, virtude e tradicao, costumes recebidos, sao uma e a mesma

coisa.Acritica do conformismo social e, para ele, umcrime: e

S6crates nao vale mais que urn sofista ".

oA , discussao retoma-se com Menon. Se a virtude nao e

ensinavel, nao e ciencia. Menon concede-o facilmente. De resto,

ha multo tempo que e desta opiniao, tal como 0seu mestre

G6rgias, que sempre trocou dos colegas que prometiam ensinar

a virtude, cA ilnica coisa que se deve procurar e formar ora-

dores», A virtude tambem nao e urn dom da natureza como a

beleza ou a forca, Menon esta igualmente de acordo, Entao

a que e? Continuamos a nao 0saber. S6crates nota" no entanto,

que talvez nao se tenham ainda esgotado todas as posstbihdades

de definir a virtude, E, nomeadamente, poder-se-ia admitir que

ela e eopiniao justa» ( O P 9 T ) l i6 ~ ot ) , ou seja, quaIquer coisa

como uma crenca ou uma conviccao cega, mas justa.

Com efei to, para a prat ica, para a accao, a opiniao verda-

deira e 0equivalente do 'saber. A unica coisa que, praticamente,

a distingue dele e a sua instabilidade enquanto nao for «enca-

deada por um raciocfnio», 0que, justamente, a transformaria

11 Anito nllt) deixa de ter razao. No fundo, do ponto de vista.

do confonnlsm.oe cia tradl~llo surper"Uciosa, a crttica ..oerlltica 6 a.lnda.

mals destruUva que a .dos BO.tlstas. A fIl0s0fla 6 uma coisa perlgoaa..

2 3

Page 10: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 10/11

em ciencia. Mas, mais uma vez, para a pratica, a opiniao verda-

deira - desde que a possuamos - e suficiente, Pode-se assim

admitir que e porque possufam 'a opiniao verdadeira que. 0.5homens de Estado puderam, por urn lado, governar as cidades

com sucesso, mas, por outro, justamente porque 56 possufam

a opiniaoverdadeira e nlio. a ciencia, foram incapazes de trans-

mitir a virtudeaos seus sucessores. Com efeito, «no.que toea

a ciencia nlio diferem em nada dos profetas e dos adivinhos

porque estes tambem dizem muitas vezes a verdade mas sem

nada entenderem das coisas de que falam» .. .no. mesmo modo,

aqueles .que po.ssuem a virtu de, ela ohega-lhes por um favor

divino, sem Intervencao da inteligencia, e sera sempre assim

a menos que, por acaso, se encontre urn homem de Estado que

a transmita a outros.» Ora este seria entlio entre os seus colegas

«como urn homern real entre as sombras». .

..Assim, porranto, conclui Socrates, a virtude parece-nos

ser, naqueles em que se mostra, 0 resultado de urn favor divino,

o que se passa ao certo? 50 0 seberemos com certeza se, antes

de procurarmos saber como e que a virtude chega ao homem,

comecarmos por investigar 0que e a virtude em si.»

Mas faz-se tarde, S6crates tem que fazer noutro Iado, Por

isso vai-se embora deixando os seus interlocutores e pedindo

a Meno.n que «acalme» 0seu h6spede Anito.

.0 dialogo, aparentemente, termina por urn fracasso,

E mesmo urn fracasso duplo, Tal como no princfpio, conti-

nuamos a nlio saber 0. que e a virtude, nem se ela se pode

ensinar. SOcrates .apenas' conseguiu «arrefecer. Menon, mos-

trando-Ihe a sua ignorancia, e enfurecer Anito.

Sem duvida, Mas de quem e 'a. culpa? N6s, que assistimos

ao didlogo, nao hesitamos ern reconhecer que a responsabilidade

do. fracas so. nao cabe a Socrates mas unicamente a Menon.

Foi gracas a ele, com efeito, que a discussao se travou e desen-

rolou a revelia do. born senso, atacando 0. problema de saber

se a virtude pode ser ensinada antes de saber 0. que ela e em si

mesma; e foi ainda Meno.n que, nao tendo. compreendido nada

da li!<ao.que Socrates }he tiniha dado (0 episodic do escravo),

24

reCUSOuabordar 0. estudo do problema principal e desvio.u

a converse para 0mau caminho.Meno.n nao compreendeu nada da li!<ao.de Socrates . .: e

demasiado. pouco: das 1i~oes de S6crates, deveriamo.s ter .dito.Porque nao.e uma, sao.varias li!<oesque SOcrates Ihe da, e e~sas

1i~es nlio the apro.veitam abso.lutamentenada. No ~do, ISS0

nao nos espanta. ,Po.rquenos, que as co.mpreendemos, compreen-

demos tambem a razlio. da sua inco.mpreenslio. '

Antes de mais, Menon nao. sabe pensar. Nao. sabe 0. que e

uma defini9ao. nem urn cfrculo vicio.so e, por mais que S6crates

tho explique, e incapaz de aprender. ...

Por isso, nao nota que Socrates, ao propor assimilar a vir-

tude a uma «opiniao verdadeira», tr098 dele (mas nao de n6s):

com efeito, como se poderia saber que uma opiniao e «verda-deira>, ou seja, conforme a verdade, sem possuir a verdade, ou

seja, a ciencia? N6s compreendemo-lo.; mas nao. Meno.n... 0 que

dizes e muito interessante, Socrates>, e tudo 0. que eleacha

para responder. Meno.n nao compreende nada: nem ~esmo

a ironia Ifero.zda comparacao dos homens de Estado atemenses

com os «adivinho.s"· e da afirma~ao que a virtude Ihes vern por

urn «dom dos deuses>. E quando. S6crates, a esses falsos homen~

de Estado, opoe a imagem do homem de Estado verdadeiro.,

daquele que possui 'll cienci'll'~, ~le nota que cesta muito

bern dito, Socrates>.

Menon nao sabe pensar: porque nao aprendeu, Porque

pensar, quer dizer, pensar justamente, raciocinar eorrectamente,

de acordo com a verdade, e precisamente isso que forma a

ciencia. E isso aprende-se e ensina-se (e nos, que passamos pela

dura escola tie Platao n, saberno-Io melhor que ninguem), Mas

Meno.n, amigo. e discipulo de G6rgias, nao 0. fez. 0 que ele

aprendeu nao. foi 0 raciocinio correcto mas 0. discurso per-

suasive. Nao. e fi16sofo, e apenas ret6rico. A verdade nao lhe

interessa. Nao. e a ela que procura, mas ao sucesso.

u l!l 0bomem de !Estado, 0~el.JfjlOsofo da RepUbUcG e dO

PoUttco.1S 0 metodo 01. dialectl<:a plat6ntca eexadamoot<! 0 dB. clM<:la:

prOblema, lformul~lI.o dB. ibljp6tese, dlscussAo das suas lmiPJjca~Oes e

<:onsequ6nelas, ()()D!ront~ com um dado lndiBoUtivel.

25

Page 11: Koyré (portugues)

5/14/2018 Koyr (portugues) - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/koyre-portugues 11/11

Ii'

M~non nao sabe pensar: justamente porque a verda de nao

!he interessa. Porque pensar , procurar a verda de, procurar

acordar na alma a «recordacao» do saber esquecido, e urna

coisa diffcil, e urn assunto serio e implica esforco. E e .porisso que 0 pensamento pressupoe urn amor, uma paixao da

verdade. Por isso, educacao intelectual. e educacao moral VaG

necessariamente a par.

Pensar e urn assunto serio, Ora, precisamente 0que Menon

nao e, e serio. A pergunta que faz a Socrates - a virtude pode .

ensinar-se?;a objeccao que the ifaz-como procurar 0que

se ignora? .sao, sabemo-lo bern, questoes entao na moda e,

na boca de Menon, questoes retoricas. Menon nao as poe para

obter uma resposta mas, pelo contrario, para po.der discorrer

a sua vontade. Por isso, 'fica 'dolorosamente surpreendido por se

encontrar subitamente «entorpecido» e «paralisado» pelas per-

guntas de Socrates: Entorpecido e paralisado e nao, uma vez

liberto do erro, «encorajado» e «empurrado» para a procura da

verdade. A dura e dificil pesquisa dialectica da essencia da

.virtude repugna-lhe. :e por iSso que nao compreende a lic;;ao

oontida na interrogacao ao escravo. Por isso, e por outra razao,

muito masprofunda ainda, e que contern a explicacao Uiltima

do seu b~?: a essencia da virtude nao the interess'aabsolu-

tamente nada.

Menon e a virtude: esta aproximacao ji por si e comica:

Com efeito, toda a gente conhece 0nosso Menon, amigo e aluno

de sofistas, ele proprio sofista sempre que pode, especulador,

aventureiro, soldado improvisado, de resto, born rapaz, amavel e

instrufdo. E ninguem ignora que 0 problema da virtude 0 deixa

. inteiramente frio. 0 que procura e muito diferente, sao as «boas

coisass. da ·vida: sucesso, riqueza, poderio ...

Ou, se se preferir, 0que Menon chama virtude e vid~

.virtuosa, vida digna de ser vivida, e exactamente aquilo a que

o comum dos mortais-e Anito-di esse. mesmo nome, a

saber: a posse de todas essas «boas coisas». Por Isso, «ensinar

it vir tude» quer dizer, para ele, ensinar uma tecnica que nos

conduza a esse fim desejado,

Como poderia ele compreender a tlic;;aode Socr~tes? Os

pensamentos de ambos movem-se em planes diferentes. .

26

Esta lic;;aoe no entanto muito clara. Por isso nos a com-

preendemos bern. Com efeito, se S6crates pl>de «ensinar» a

geometria ao escravo de Menon, foi porque na alma do escravohavia vestfgios, marcas, germes do -saber geometrico. Esses'

gerrnes, esses semina scientiarum. inatos a alma, como dois

mil anos mais tarde ~lhes chamara Descartes, as perguntas de

Socrates puderam acorda-los, faze-los germinar, dar frutos. Mas

conseguiram-no porque oescravo, convencido da sua ignorancia,

quis fazer 0 esforco necessarlo para «se relembrar» das ver-

dades «esquecidas».

Acontece 0mesmo, exactamente 0mesmo, no que diz res-

peito. a virtude, Menon, se tivesse podido, ou querido, realizar

o esforco de pensamento que Socrates Ihe pedia, teria com-

preendido - como nos compreendemos - que 0deal do homem

de Estado verdadeiro, capaz de transmitir e de «ensinar» a sua

virtude, e, para Socrates, urn ideal vafido. ,E que, por conse-

quencia, 0 raciocfnio pelo qual Socrates nos demonstra que a

virtude nao e ciencia - urna vez que nao se ensina - nao e para

tomar a letra. N30 'seensina, mas pode-se ensinar. Tal como

mais tarde sera dito, de non esse ad mm posse non vallet am-

sequentia. E e, de resto, aosclutamente verdade que nao haja

mestres da vir tude e que ela nao seja ensinad~? Que faz entao

Socrates? Nao e claro que toda a sua acc;;ao- incluindo a dis-

cussao com Menon e Anito-nao e mais que urn ensino da

virtude? Ou, se se preferir, da sabedoria *, que nao e mais quea ciencia do bern?

Menon .nac compreendeu a lic;;ao? :e que na sua alma nao- 'ou ji nlio""' :'ha vestigios da ideia do bern. Por isso, para nos,

a conclusao (nao formulada) do dialogo, a resposta a ques-

tao posta por Menon, e absolutamente clara: sim, a virtude

ensina-se, visto que e ciencia HMas nao se ensina a Menon.

Bempre que aparecer 0 terrno sabedoria,' ele sera a trad~aode sageB86. iDo mesmo modo, sabia ~·lo-a de sage. A menos que

1 1 & 1 8 in&c~oes em contrArio. (N. do T.). .

H !Dado que a. vlrtude ~ cillncia, eLa. se podera ser enslnada

comoae ensl.namas ciencias, quer dizer, par urn esrorco de deseoberta

da. pa.rte do ·a.!unoe niio par uma edu~iio impasta pelo mestre.

De dentr o e n40 de ifora.

27