dissrtaÇÃo reforma psiquiatra importante

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  • 8/13/2019 DISSRTAO reforma psiquiatra importante

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL UFRGS

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS IFCH

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA PPGS

    Jaqueline Russczyk

    O FRUM GACHO DE SADE MENTAL E OS ARGUMENTOS SOBRE A

    REFORMA PSIQUITRICA NO RIO GRANDE DO SUL:RELAES SOCIAIS E PRINCPIOS DE JUSTIFICAO

    PORTO ALEGRE2008

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    JAQUELINE RUSSCZYK

    O FRUM GACHO DE SADE MENTAL E OS ARGUMENTOS SOBRE A

    REFORMA PSIQUITRICA NO RIO GRANDE DO SUL:

    RELAES SOCIAIS E PRINCPIOS DE JUSTIFICAO

    Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduaoem Sociologia do Instituto de Filosofia e CinciasHumanas da Universidade Federal do Rio Grande doSul. Inserida na linha de pesquisa Sociedade,Participao Social e Polticas Pblicas.

    Orientador: Prof. Dr. Marcelo Kunrath Silva

    PORTO ALEGRE

    2008

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    JAQUELINE RUSSCZYK

    O FRUM GACHO DE SADE MENTAL E OS ARGUMENTOS SOBRE A

    REFORMA PSIQUITRICA NO RIO GRANDE DO SUL:

    RELAES SOCIAIS E PRINCPIOS DE JUSTIFICAO

    Esta dissertao foi julgada e aprovada para a obteno do ttulo de mestre do Curso

    de Ps-Graduao em Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    Porto Alegre, 03 de outubro de 2008.

    Cinara Lerrer Rosenfield (coordenadora do curso)

    Apresentada banca examinadora integrada pelos seguintes professores (as):

    Soraya Maria Vargas Cortes (PPGS/UFRGS)

    Tnia Steren dos Santos (PPGS/UFRGS)

    Fernanda Rios Petrarca (Ps-Doutoranda/PPGS/UFRGS)

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    AGRADECIMENTOS

    Ao professor orientador Marcelo Kunrath Silva.

    Aos professores Jos Carlos Gomes dos Anjos e Soraya Maria Vargas Cortes.

    Aos colegas Bianca de Oliveira Ruskowski, Francinei Bentes Tavares, Leonardo

    Rafael Santos Leito e Lcio Centeno.

    Aos colegas de Mestrado, Turma 2006/01, do Programa de Ps-Graduao em

    Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    A todos aqueles que contriburam concedendo as entrevistas e as informaes

    necessrias para a realizao desta pesquisa.

    Muito obrigada a todos pelas crticas e sugestes a respeito deste estudo, pela

    disponibilidade de subsdios e materiais (livros, revistas, artigos, teses e dissertaes), pelo

    companheirismo e aprendizado.

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    Aprender no acumular certezasNem estar fechado em respostasAprender incorporar a dvidaE estar aberto a mltiplos encontros.(FREIRE, Paulo. In: Refletindo sobre o Ato de

    Aprender).

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    RESUMO

    Esta dissertao tem como tema os argumentos produzidos nas disputas envolvendo asconcepes sobre sade mental, presentes nas justificaes e aes dos atores sociais

    envolvidos nas discusses referentes Reforma Psiquitrica, no Rio Grande de Sul, em um

    contexto de Contra-Reforma Psiquitrica. O presente estudo tem como finalidade verificar se

    a partir de determinadas relaes sociais entre os atores sociais que as justificaes e as

    aes so produzidas. O objeto deste estudo so as relaes sociais e os argumentos

    produzidos pelos integrantes do Frum Gacho de Sade Mental de Porto Alegre. Utiliza-se a

    anlise relacional, bem como o referencial terico de Michel Foucault e a sociologiapragmtica de Luc Boltanski. Foi verificado, a partir do questionamento de como a

    configurao do Frum Gacho de Sade Mental incide sobre os princpios de justificao

    mobilizados pelos atores sociais pertencentes ao grupo, que h concepes diferenciadas

    sobre sade mental dentro do Frum e h a prevalncia de determinados princpios de

    justificao no discurso porque h uma prevalncia de determinados atores sociais que

    veiculam este discurso. Para a realizao desta pesquisa, foram entrevistados dez

    representantes do Frum Gacho de Sade Mental de Porto Alegre e utilizou-se como

    procedimento metodolgico a observao, bem como a entrevista com o uso de um roteiro

    escrito. Aps a realizao das entrevistas, efetuou-se a anlise de contedo.

    Palavras-chave: argumentao, justificao, relaes sociais, Reforma e Contra-Reforma

    Psiquitrica, sade mental.

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    ABSTRACT

    The subject of this thesis is composed by the arguments produced in disputes

    involving conceptions about mental health present in the justifications and actions of social

    actors involved in discussions relating to Psychiatry Reformation in Rio Grande de Sul, in a

    context of Psychiatry Counter-Reformation. This study aims to check whether it is from

    certain social relations among the social actors that justifications and actions are produced.

    The object of this study is composed by the social relations and the arguments produced by

    members of the Forum Gaucho of Mental Health in Porto Alegre. It is used the relational

    analysis as weel as the theoretical reference to Michel Foucault and to the Luc Boltanskis

    pragmatic sociology. It was found from the question of how the configuration of the Forum

    Gaucho of Mental Health focuses on the principles of justification employed by social actors

    belonging to the group, that there are different ideas about mental health within the Forum

    and there is the prevalence of certain principles of justification in the speech because there is a

    prevalence of certain social actors who portrayed the speech. To carry out this survey, ten

    representatives of the Forum Gaucho of Mental Health in Porto Alegre were interviewed and

    it was used as a methodological procedure the observation, as well as the interview using a

    script writing. After the nterview completion, it was the analysis of content.

    Keywords: arguments, justification, social relations, Reformation and Counter-Reformation,

    mental health.

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    RSUM

    Ce mmoire est a comme sujet les arguments produits dans les litiges qui impliquentles conceptions sur la sant mentale, prsente dans les justifications et les actions des acteurs

    sociaux impliqus dans les discussions relatives la maladie mentale au Rio Grande de Sul,

    dans un contexte de Contre-Rforme Psychiatrique. Cette tude vise dterminer si c'est

    partir de certaines relations sociales parmi les acteurs sociaux que les justifications et les

    actions sont produites. L'objet de cette tude est compos par les relations sociales et les

    arguments produits par les membres du Forum Gaucho de Sant Mentale Porto Alegre. On

    utilise lanalyse relationnelle ainsi que la rfrence thorique de Michel Foucault et lasociologie pragmatique de Luc Boltanski. Il a t constat qu partir dune mise en cause sur

    la manire dont la configuration du Forum Gaucho de la Sant Mentale se concentre sur les

    principes de la justification employe par les acteurs sociaux appartenant au groupe, qu'il y a

    des ides diffrentes sur la sant mentale au sein du Forum et quil existe une prvalence de

    certains principes de la justification dans le discours une fois quil y a une prvalence de

    certains acteurs sociaux qui dpeint le discours. Pour bien mener cette investigation, dix

    reprsentants du Forum Gaucho de la sant mentale Porto Alegre ont t interviews et on a

    utilis comme procdure mthodologique l'observation, ainsi que l'interview avec l'utilisation

    d'un script crit. Aprs l'achvement des entretiens, on a fait l'analyse de contenu.

    Mots-cls: arguments, justification, relations sociales, Rforme et Contre-Rforme, sant

    mentale.

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    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1: categoria e cdigo dos entrevistados ....................................................................... 17Quadro 2: conceitos dimenses componentes indicadores operacionalizao .............22

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    SUMRIO

    INTRODUO ....................................................................................................................... 101 A CONSTRUO DA LOUCURA COMO PROBLEMA SOCIAL" .................... 24

    1.1 AS RESPOSTAS INSTITUCIONAIS OFERECIDAS PARA O PROBLEMA SOCIALDA LOUCURA ....................................................................................................................... 301.1.1 O Contexto Brasileiro .................................................................................................... 301.1.2 A Situao da sade mental no Rio Grande do Sul .................................................... 372 A CONTESTAO S CONCEPES HEGEMNICAS SOBRE A LOUCURA .. 44

    2.1 O CURSO DAS CONTESTAES EM SADE MENTAL NO PROCESSO DA

    REFORMA PSIQUITRICA .................................................................................................. 49

    3 A ARTICULAO ENTRE A ANLISE RELACIONAL E OS PRINCPIOS QUEORIENTAM OS ARGUMENTOS E AS AES DOS ATORES SOCIAIS ................... 554 DIVERSIDADE DISCURSIVA E A CONFIGURAO DAS RELAES SOCIAIS:

    A INCIDNCIA ENTRE AS JUSTIFICAES ................................................................ 71

    4.1 O FRUM GACHO DE SADE MENTAL .................................................................. 714.2 OS ARGUMENTOS MOBILIZADOS NO INTERIOR DO FRUM E NO ESPAO

    PBLICO ................................................................................................................................. 804.3 COMO AS RELAES SOCIAIS INCIDEM SOBRE AS JUSTIFICAES E ASPROVAS ACIONADAS .......................................................................................................... 87

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 98

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................102

    APNDICE ROTEIRO DE ENTREVISTA ...................................................................110

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    INTRODUO

    Este estudo tem como tema os argumentos em disputas envolvendo as concepessobre sade mental, presentes nas justificaes e aes dos atores sociais envolvidos nas

    discusses referentes Reforma Psiquitrica de 1992, no Rio Grande de Sul. A rede da

    poltica em sade mental marcada pelo confronto entre duas comunidades que possuem

    concepes contrapostas sobre a loucura e o seu tratamento, ou seja, aqueles que apiam a

    Reforma Psiquitrica e os que se posicionam contra ela. Cada comunidade configura uma

    sub-rede em que so produzidos argumentos e justificaes que definem posies sobre a

    poltica.Dentro da comunidade apoiadora da Reforma, destaca-se um grupo pelo fato de este

    ser o principal articulador dos debates e aes referentes s questes de sade mental no Rio

    Grande do Sul, o Frum Gacho de Sade Mental. Devido heterogeneidade de seus

    integrantes, em seu interior h diferentes noes e embates de argumentos sobre a sade

    mental. Como unidade de anlise optou-se por pesquisar o Frum Gacho de Sade Mental.

    O fator decisrio na escolha foi a sua complexidade identitria, pois h usurios, familiares1e

    profissionais com posicionamentos diferenciados, bem como se evidenciam crticas, em nvel

    nacional, de que os usurios deveriam construir um grupo prprio e independente devido s

    demandas diferenciadas e necessidade de maior autonomia de pensamento em relao aos

    profissionais de sade e familiares. No entanto, esse discurso no se reproduz no Rio Grande

    do Sul.

    As aes e a elaborao dos argumentos relacionados sade mental so construdas a

    partir da configurao de certas ligaes entre as pessoas e, durante a construo dos elos, se

    conformam determinados posicionamentos. Seguindo esse entendimento, Callon (2004)

    afirma que os atores sociais so ligados por projetos e interesses, e na rede que os ajustes

    feitos definem os caminhos a serem tomados. A informao produzida medida que a

    negociao avana e, portanto, no existe a priori.

    Est-se diante de um processo em que os indivduos e grupos tentam mobilizar apoio

    para seus objetivos e influenciar as atitudes e aes dos que os seguem. A realidade vai se

    estruturando na situao e, assim, impossvel antecipadamente apreender o que ser do

    resultado da ao. Nesta pesquisa, pretende-se identificar os atores sociais envolvidos para

    1 Atualmente, conforme relatado em entrevista, no est ocorrendo a participao de familiares no FrumGacho de Sade Mental.

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    compreender e identificar as justificaes exteriorizadas. Com isso, almeja-se entender as

    concepes, as contestaes e os acordos sobre as noes de sade mental a partir de

    discursos formulados sobre ela, em um processo poltico de disputa.

    Tem-se como proposta deste estudo indagar como a configurao das relaes sociais

    teria fora sobre os argumentos acionados e quais caractersticas evidenciadas das relaes

    entre os atores sociais explicariam justificaes utilizadas sobre a Reforma. O ponto central

    deste estudo , alm de identificar os princpios de justificao evocados pelos atores sociais,

    analisar porque alguns argumentos se impem em detrimento de outros. A partir disso,

    formulou-se a seguinte pergunta norteadora do estudo:

    Como a configurao do Frum Gacho de Sade Mental incide sobre os princpios de

    justificao mobilizados pelos atores sociais pertencentes ao grupo, na defesa das posiessobre a Reforma Psiquitrica de 1992 no Rio Grande do Sul?

    Pretende-se abranger como o Frum Gacho de Sade Mental foi formado, ou seja,

    quais so os atores sociais envolvidos, quais so as posies e funes desempenhadas e

    estabelecidas entre os atores sociais, como as justificativas acerca da sade mental so

    construdas e ativadas e quais so as provas mobilizadas. Assim, objetiva-se entender a

    conformao do Frum Gacho de Sade Mental e sua influncia sobre os princpios de

    justificao acionados pelos atores sociais abarcados, em um contexto especfico decontestao e disputa pela poltica de sade mental no Rio Grande do Sul.

    Os atores sociais e entidades-chave nesse processo de disputa2 so os que vm se

    posicionando contrrios Reforma: Sindicato Mdico do Rio Grande do Sul (SIMERS),

    Sociedade de Apoio ao Doente Mental (SADOM), Secretaria Municipal de Sade de Porto

    Alegre, Sociedade Gacha de Sade Mental e Lei, Conselho Municipal de Entorpecentes

    (COMEN), Hospital Esprita, Associao Stabilitas; e aqueles favorveis Reforma:

    Secretaria Estadual de Sade do Rio Grande do Sul, Frum Regional de Sade Mental daRegio do Vale do Taquari, Coordenao de Sade Mental de So Loureno do Sul, 13.

    Coordenadoria Regional de Sade, Instituto Franco Basaglia, Equipe Tcnica da Casa de

    2Esses atores sociais e entidades foram identificados a partir da construo de um Grupo de Trabalho (GT) paradiscutir a Contra-Reforma Psiquitrica (Projeto-Lei 40/2005). A construo de um GT um procedimentocomum de um processo em que se prope um Projeto-Lei como, por exemplo, o PL 40/05. A comisso votantedeve ser composta por 12 Deputados e preciso, no mnimo, sete votos para se obter a aprovao. Foi naAudincia Pblica de 05.10.05 que se decidiu pela organizao do GT, sendo o mesmo compostovoluntariamente pelas entidades acima citadas que direta ou indiretamente tratam da matria. Essas entidadeselaboraram o seu estudo e encaminharam os resultados ao Deputado Relator Jos Farret. Aps nove meses de

    estudo do GT, foi encaminhado pelo Deputado Relator o parecer contrrio ao PL 40/05. Em 14.06.06, o parecerfoi votao, sendo aprovado o parecer contrrio ao PL 40/05. Atualmente, o processo encontra-se arquivado.Essas informaes foram adquiridas junto Comisso de Sade e Meio Ambiente da Assemblia Legislativa doEstado do Rio Grande do Sul.

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    Sade Mental CAPS I de Rio Pardo, Equipe do CAPS Panambi, Associao dos Usurios e

    Familiares do Centro de Ateno Integral Sade Mental de Viamo, Equipe Tcnica do

    Centro de Ateno Psicossocial Infncia e Adolescncia (CAPSIA) do Municpio de Santa

    Cruz do Sul, Trabalhadores de Sade Mental do Municpio de Santa Maria, Prefeitura

    Municipal de Igrejinha/Secretaria Municipal de Sade e Assistncia Social/Servio de

    Ateno Integral Sade Mental/Centro de Ateno Psicossocial I, Prefeitura Municipal de

    Novo Hamburgo/Secretaria Municipal de Sade/Departamento de Sade Mental,

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS/Departamento de Psicologia Social,

    Frum Gacho de Sade Mental, Centro de Ateno Psicossocial de Lajeado, Conselho

    Regional de Servio Social, CAPS lcool e Droga de Santa Cruz do Sul, Servios

    Residenciais Teraputicos Morada So Pedro e Morada Viamo, Prefeitura Municipal deTrs Coroas/Secretaria Municipal de Sade e Assistncia Social, Associao de Familiares,

    Amigos e Bipolares (AFAB).

    A perspectiva terica adotada a abordagem relacional, utilizada neste estudo como

    instrumento fecundo para apreender os atores sociais envolvidos no Frum Gacho de Sade

    Mental e/ou nas disputas envolvendo as discusses sobre a Reforma Psiquitrica de 1992.

    Esta abordagem possibilita apreender como, por que e por quem determinados argumentos

    so produzidos e/ou mobilizados, evitando um tratamento que toma as justificaes comoalgo independente em relao configurao das relaes entre os atores sociais que as

    adotam e as empregam. As diferentes justificaes acionadas legitimam, ao mesmo tempo, os

    argumentos e os atores sociais que as mobilizam, bem como a utilizao de determinado

    argumento ocorre justamente por ser algo j considerado legtimo.

    O outro aporte terico adotado neste estudo, e em articulao com a anlise

    relacional, a sociologia pragmtica de Luc Boltanski. Com isso, pretende-se lanar novos

    olhares sobre as diferenas em relao s noes de sade mental presentes entre os atoressociais. No entanto, no se intenciona aderir a um quadro terico sem fazer o exerccio da

    crtica, pois necessrio considerar os limites e possibilidades do referencial terico utilizado,

    confrontando-o com a realidade emprica no momento da pesquisa.

    Nesse sentido, enquanto problema social, tem-se a existncia de denncias de formas

    de confinamento torturantes, abandono e omisso na busca por cura ou soluo para os males,

    bem como de desassistncia. Compete visualizar quais agrupamentos e linhas de interesse se

    conformam em um processo poltico, como o usurio se insere nessa participao, quais so

    os atuais discursos e como se configuram a emergncia de vises de mundo e as

    possibilidades de acordos. Ou seja, busca-se analisar em que medida o saber mdico se

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    reveste de outras formas de medicina ou em que grau outros saberes e vivncias tm espao

    no desenrolar das argumentaes e na defesa de posicionamentos.

    Conforme Dias (2007), os temas que abarcam a Reforma Psiquitrica e a

    desinstitucionalizao tm sido alvo de estudos investigativos, revelando o interesse entre os

    profissionais de sade em compreender suas possibilidades, sendo o debate sobre a Reforma

    Psiquitrica marcado por mobilizaes sociais que excedem a discusso reservada aos grupos

    sociais interessados, alcanando a esfera da sociedade gacha. A autora anuncia que h um

    processo ainda a ser realizado, pois por mais que tenha havido avanos no ordenamento

    jurdico-legal e na formulao e execuo da poltica pblica de sade mental, h um processo

    de vir a ser, que se estabelece com o respeito aos desejos proclamados dos usurios. As

    contradies presentes nas relaes entre os sujeitos e entre estes e o Estado, atravs das suasinstituies, constituem-se em possibilidades de protagonismos e de exerccio dos direitos

    (DIAS, 2007).

    Para reforar o acima exposto, torna-se importante identificar e classificar os tipos de

    argumentos a partir de vises de mundos e objetos evocados para que se possa refletir sobre

    as concepes acerca da sade mental e para se indagar sobre a participao dos diferentes

    atores sociais, ou seja, se a prevalncia de um determinado princpio de justificao no

    discurso do Frum Gacho est relacionada prevalncia de determinados atores sociais queveiculam os argumentos. Desse modo, utilizar a anlise relacional como ferramenta para

    identificar a localizao dos responsveis pela elaborao das justificaes interessante no

    apenas pelo desafio terico-metodolgico que representa, mas tambm por ser uma forma de

    compreenso dos modos de construo possveis dos argumentos dos atores sociais em um

    contexto de desacordo acerca da forma adequada de tratamento da sade mental, bem como

    para analisar se h uma correspondncia entre a configurao das relaes sociais e a maneira

    como se estruturam os argumentos dentro do Frum Gacho e no debate pblico.A partir do que foi exposto, como hiptese elaborada para o estudo, afirma-se que o

    padro de configurao do Frum Gacho de Sade Mental explica princpios de justificao

    utilizados pelos atores sociais envolvidos porque a partir de determinadas caractersticas das

    relaes sociais entre os atores sociais que se constroem as argumentaes e se definem as

    aes tomadas acerca da sade mental. Com isso, assegura-se que os atores sociais

    envolvidos, ou seja, profissionais da sade e usurios, defendem sua viso de mundo acerca

    da sade mental se apoiando em universos e argumentaes distintos. No entanto, mesmo

    havendo universos distintos de justificao, elas podem sofrer alteraes de acordo com a

    situao, prestgio, capacidade de influncia e localizao dentro do grupo.

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    A hiptese se fundamenta a partir da aproximao com o objeto emprico, o que

    permite inicialmente sugerir que existem hierarquias que estruturam as relaes entre os

    atores sociais a partir de uma distribuio desigual de determinados recursos e capacidades

    (possuir um saber tcnico e experincia profissional, ser portador de sofrimento psquico,

    entre outros). A verificao de como as relaes sociais entre os atores sociais se estruturam,

    isto , as posies distintas por eles assumidas um fator importante para a explicao da

    presena de determinados tipos de argumentos apoiados nas cits3. Esses so os argumentos

    analisados a partir dos dados da pesquisa.

    Para este estudo, props-se, como objetivo geral, identificar os atores sociais inseridos

    no Frum Gacho de Sade Mental e, aps, construir as relaes sociais para compreender as

    justificaes sobre sade mental e as aes ativadas em contextos de disputas em queprovas ou objetos so utilizados para embasar os argumentos. Seguem-se como objetivos

    especficos: 1) situar o aparecimento da loucura, para fins de contextualizao do processo

    poltico em questo e de desnaturalizao da mesma enquanto objeto, e, a partir disso,

    evidenciar a formao do Frum Gacho de Sade Mental e resgatar as condies histricas

    que permitiram a Reforma Psiquitrica de 1992 e a Contra Reforma Psiquitrica, ou seja, as

    condies para o surgimento do debate atual; 2) analisar como se constroem os elos entre os

    atores sociais envolvidos, as posies e as funes de cada membro do grupo; 3) mapear eclassificar os regimes de ao e de justificao; 4) compreender a partir dos regimes de ao e

    de justificao elaborados com base nos elos formados e classificados quais so as

    concepes envolvidas sobre sade mental; 5) descrever os objetos ou provas acionadas

    pelos atores sociais para afirmar determinada viso de mundo.

    Para operacionalizar o que se tem proposto para a realizao do estudo, detalha-se a

    seguir os procedimentos metodolgicos a partir da escolha do mtodo, das tcnicas de

    pesquisa e dos instrumentos de coleta de dados. O mtodo compreendido como uma formade recolha ou de anlise das informaes destinada a testar hipteses de investigao (QUIVY

    E CAMPENHOUDT, 2005). Utilizou-se como mtodo de abordagem a pesquisa qualitativa,

    pois sua finalidade compreender a viso de mundo dos entrevistados, as aes e os

    argumentos apresentados pelos atores sociais sobre sade mental, bem como entender a

    configurao e os posicionamentos dentro do Frum Gacho de Sade Mental. A esse

    respeito, Gaskell (2002) sugere o uso da pesquisa qualitativa nas Cincias Sociais para:

    3O termo citfoi cunhado em fins do sculo XI e proveniente do latim (civitas, civitatis). Atualmente, tambm empregado para referir-se ao Estado, do ponto de vista jurdico, assim como para toda construo ideal, como o caso das seis cidades apontadas por Boltanski. As citsso descritas no decorrer deste estudo.

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    [...] mapear e compreender o mundo da vida dos respondentes o ponto de entradapara o cientista social que introduz, ento, esquemas interpretativos paracompreender as narrativas dos atores em termos mais conceptuais e abstratos, muitas

    vezes, em relao a outras observaes. A entrevista qualitativa, pois, fornece osdados bsicos para o desenvolvimento e a compreenso das relaes entre os atoressociais e sua situao. O objetivo uma compreenso detalhada das crenas,atitudes, valores e motivaes, em relao aos comportamentos das pessoas emcontextos sociais especficos (GASKELL, 2002, p.65).

    Bauer e Gaskell (2002) assinalam a importncia de se compreender que o quantitativo

    e o qualitativo no so excludentes, pois cada mtodo ou tcnica tem contra-indicaes,

    vantagens e desvantagens, e esto ligados escolha terica, mas tambm se adaptam ao

    objeto de estudo. A definio do problema de pesquisa influencia a escolha metodolgica, ou

    seja, esta ajusta aquela e vice-versa, sendo que toda metodologia confere potencialidades e

    limitaes aos objetos dos estudos (VCTORAET AL,2000).

    A reciprocidade entre discurso terico e prtica de investigao ocorreu nesta

    pesquisa, pois se considera que a teoria se esgota quando se distancia do real. Seu papel em

    relao aos fatos est na compreenso de determinados acontecimentos das relaes humanas

    cotidianas em contextos de ao (conflitos, alianas, acordos). Com isso, no se

    desconsiderou que novas hipteses poderiam ser formuladas durante o estudo por meio da

    pesquisa emprica, ou seja, de que poderiam surgir conformaes passveis de testes

    especficos a partir de outras construes tericas.

    Portanto, o trabalho de investigao no se limitou constatao emprica de hipteses

    construdas a partir da teoria, mas implicou tambm na observao do contexto a ser

    estudado, para, se fosse o caso, formular novas respostas. Desse modo, a teoria no

    engessou a pesquisa, ao contrrio, ela orientou a formulao de hipteses e estas poderiam

    ter sido refutadas caso no correspondessem realidade. Portanto, um estudo pode revelar que

    determinada aplicao terica no vlida para o contexto estudado, o que implica na busca

    de outros referenciais tericos para o entendimento da realidade social e a formulao de

    novas hipteses a partir de aspectos empricos evidenciados no processo de pesquisa.

    Especificamente, utilizou-se a entrevista e a posterior anlise de contedo. Buscou-se

    direcionar o entrevistado a certos temas especficos, mencionando-os diretamente ou

    conduzindo-o a abordar aspectos relacionados ao tema. Para isso, utilizou-se um roteiro

    escrito4. O mtodo chamado bola-de-neve 5foi utilizado para constituir o Frum Gacho de

    4As tcnicas de entrevista semi-aberta e focalizada tm um nvel menor de estruturao se confrontadas aoutros tipos de entrevista (CORTES, 1998). O roteiro escrito encontra-se no apndice.

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    Sade Mental, ou seja, os prprios entrevistados indicaram com quem se relacionam, bem

    como houve entrevistas realizadas apenas com atores sociais-chave do processo para se

    efetuar a anlise de contedo e analisar os princpios de justificao acionados. Portanto,

    ocorreu um corpus6posterior formao do grupo. Cabe ainda salientar que foi considerado

    pertencente ao grupo o ator social que se afirmou enquanto tal.

    O contato com os entrevistados deu-se por telefone e/ou por e-mail, a partir dos

    informantes j entrevistados que indicavam os prximos pesquisados. O contato com os

    primeiros entrevistados ocorreu facilmente tendo em vista que j havia uma relao

    estabelecida entre pesquisador e pesquisados por conta de uma pesquisa anterior, a

    monografia de concluso do curso de Cincias Sociais na Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul, em que a unidade de anlise foi a dos usurios e alguns tcnicos doMovimento da Luta Antimanicomial de Porto Alegre.

    Foram entrevistadas dez pessoas e os locais de entrevistas foram os mais variados

    desde espaos pblicos da cidade como a Casa de Cultura de Porto Alegre, a Assemblia

    Legislativa (em funo da realizao de uma Audincia Pblica naquele local, aproveitando-

    se assim a oportunidade para se encontrar os integrantes do Frum), at a residncia ou o local

    de trabalho dos entrevistados. As entrevistas tiveram uma durao mdia de uma hora. Alm

    das entrevistas efetuadas foi observada uma Audincia Pblica, ocorreu o acompanhamentoda lista de e-mail no perodo de final de janeiro de 2008 a maio de 2008, assim como foi feita

    uma anlise de revistas e trabalhos acadmicos como Teses e Dissertaes voltados ao tema

    deste estudo.

    Abaixo, apresenta-se uma caracterizao dos entrevistados, bem como, visando

    preservar o anonimato dos mesmos, definiu-se um cdigo para cada um deles, possibilitando

    ao leitor ter uma noo de quem est falando nas citaes.

    5Este mtodo tambm apresenta problemas, tais como: no se pode saber de antemo o universo dosentrevistados; a definio dos pontos de entrada traz o risco de no se chegar a todo grupo; h ainda a

    possibilidade de encontrar durante a pesquisa buracos-estruturais, ou seja, de no haver conexes entre osatores sociais.6Bauer e Gaskell (2002) utilizam a terminologia corpusabdicando o termo amostra. Entre outros motivos, estaopo se d por ser o termo mais adequado por se tratar de estudos sobre representaes, bem como os critrioscomo validade, fidedignidade e representatividade para a seleo de qualquer amostra qualitativa so redefinidose no abandonados.

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    Categoria Cdigo

    Usurio U1

    Usurio U2

    Usurio U3

    Tcnico T1

    Tcnico T2

    Tcnico T3

    Tcnico T4

    Tcnico T5

    Tcnico T6

    Tcnico T7

    Quadro 1: categoria e cdigo dos entrevistados

    Nas entrevistas, os entrevistados falaram livremente sobre os assuntos destacados,

    sendo ento necessria a habilidade do pesquisador para direcionar as respostas ao foco da

    questo (GIL, 1999). Para Ferreira (1986), o controle das perguntas, das condies e contexto

    criado pela pesquisa so fundamentais para a ao da mesma. Um dos principais desafios dopesquisador o aprofundamento do conhecimento da observao sociolgica a fim de que se

    verifiquem possveis erros no andamento da pesquisa, no processo de entrevista, na

    linguagem do questionrio e do entrevistador, na adequao da formulao terica do

    pesquisador ao universo emprico dos pesquisados, nas no-respostas (como o no sei,

    no tenho opinio), no desconhecimento das caractersticas da populao a inquirir, na

    seleo dos entrevistadores e dos entrevistados, entre outros (FERREIRA, 1986).

    Props-se utilizar as entrevistas para a construo da formao do Frum Gacho de

    Sade Mental e a partir disso utilizar a anlise de contedo para compreender como se

    sustentam e quais so as argumentaes e as crticas exteriorizadas. A anlise de contedo

    ocorreu de igual maneira para a avaliao de artigos de jornais e revistas que evidenciaram os

    posicionamentos dos atores sociais, isto , a pesquisa documental foi utilizada. Com o uso

    dessa tcnica, estudaram-se alguns materiais que forneceram elementos importantes para a

    pesquisa, visando-se formar um panorama de informaes complementares que embasaram a

    construo deste trabalho.

    Quivy e Campenhoudt (2005) afirmam que a construo do discurso e o seu

    desenvolvimento so fontes de informaes a partir das quais o investigador tenta construir

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    um dado conhecimento. O conhecimento pode advir do locutor (por exemplo, a ideologia de

    um jornal, as representaes de uma pessoa, entre outros) ou das condies sociais em que

    esse discurso produzido (um modo de socializao ou uma experincia conflituosa).

    Lozares (2007) ainda afirma que Los datos relacionales pueden obtenerse tambin por

    cuestionarios, por documentos, archivos o por la observacin u otros mtodos etnogrficos

    (LOZARES, 2007, p.10).

    As temticas estudadas pela anlise de contedo compreendem as representaes

    sociais, a anlise da expresso (forma de comunicao, estado de esprito do locutor e

    disposies ideolgicas), as formas como os discursos se articulam uns com os outros. Os

    objetivos para os quais esse mtodo adequado dizem respeito: anlise das ideologias, dos

    sistemas de valores, das representaes; anlise dos processos de difuso e de socializao;e anlise das estratgias em um conflito, decises, reaes, impactos e reconstituio de

    realidades passadas no-materiais como as mentalidades e sensibilidades (QUIVY E

    CAMPENHOUDT, 2005).

    Metodologicamente, Boltanski utiliza as seqncias curtas de ao porque elas

    permitem um levantamento emprico da situao de disputa (DODIER, 1993). Assim, a

    abordagem de Boltanski tambm foi utilizada como recurso metodolgico no sentido de

    verificar as passagens entre competncias heterogneas de uma mesma pessoa nas diferentessituaes ocorridas, como o embate pblico acompanhado em funo da Audincia Pblica e

    a partir dos argumentos trazidos pelos atores sociais nas entrevistas. Portanto, o objeto de

    pesquisa so as mltiplas cenas da vida cotidiana, captadas por meio das lgicas de aes

    diversas e mobilizadoras de diferentes aspectos.

    Conforme anteriormente ressaltado, para Boltanski, o passado j est dado e no , em

    si, o objeto de pesquisa. Assim, optou-se por utilizar igualmente as abordagens de Foucault,

    autor que permite entender a situao como um processo, ou seja, tendo uma temporalidadelonga. Assim sendo, o resgate histrico do aparecimento da loucura, da Reforma Psiquitrica

    e da Contra-Reforma Psiquitrica das condies para o surgimento do debate possibilita

    reconstituir o embate poltico, sendo til para fins de contextualizao e de desnaturalizao.

    No h nenhuma contradio em compatibilizar uma proposta de uma anlise que

    incorpora a historicidade e a proposta de uma anlise centrada em processos pontuais,

    localizados, ou seja, situacionais. A inteno neste estudo de compatibilizar a proposta de

    Boltanski com a de Foucault. Este por entender a situao como um processo, com uma

    temporalidade longa, rompendo com a compreenso da histria como um discurso contnuo e

    sugerindo um novo entendimento da histria como ruptura e descontinuidade sem uma

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    subjetividade fundadora. Isso til para situar a loucura enquanto problema social que toma

    suas diferentes feies historicamente, inclusive chegando aos tempos atuais como objeto

    ainda de disputa. J Boltanski no nega a importncia do passado, mas para efetuar os seus

    estudos, tem a preocupao voltada para o como, ou seja, para o levantamento emprico e

    situacional do embate ou o sentido que as pessoas atribuem aos seus atos.

    Tanto Boltanski como Foucault afirmam que a compreenso de um objeto ocorre a

    partir dos discursos e das argumentaes, no por meio de um estudo da linguagem, mas

    enquanto prticas que formam os objetos de que falam e criam realidades 7. Embora as idias

    de Foucault sirvam para anlise de discurso, ele no as aplica no nvel lingstico,

    consentindo essa empreitada para o lingista. Seguindo essa linha de raciocnio, Dodier

    (1993) afirma que a reflexo proposta por Boltanski no se centra na linguagem e assimdemonstra o peso dos dispositivos (nomenclatura, objetos, entre outros) no momento em

    que os atores sociais devem julgar uma realidade e, portanto, compreender como os discursos

    esto ligados s comprovaes.

    Boltanski, em sua sociologia pragmtica, questiona o modelo de cincia soberana por

    meio da qual poderamos autorizar-nos a contestar a realidade de um princpio de

    identidade em que os agentes sociais acreditam. Esta idia difere da proposta da sociologia

    crtica, de Bourdieu, por exemplo, em que o autor aponta a necessidade de romper com osenso comum, o que significa ser o socilogo quem problematiza a questo nativa para

    desvendar e desvelar aquilo que no est evidente, havendo uma iluso do nativo, porque este

    no percebe o que est por trs das atitudes e discursos dos sujeitos. Portanto, uma

    sociologia para o nativo (DE BLIC, 2000).

    O mesmo ocorre com a oposio weberiana entre julgamento de fato e de valor, que,

    segundo Boltanski, negligencia as crticas executadas pelos atores sociais. Nessa perspectiva,

    haveria uma oposio entre a realidade desenvolvida pela cincia e as justificaes e motivosexplcitos dos atores sociais. A misso da sociologia de Boltanski seria responder s presses

    argumentativas dos sujeitos engajados em uma disputa e esclarecer o modo dos argumentos e

    os vincular aos princpios de justia, ou melhor, remontar os laos dos argumentos at os

    enunciados de generalidade construdos. Contudo, no interessam todas as situaes possveis

    no mundo social, e sim aquelas em que os atores sociais procuram produzir acordos (DE

    BLIC, 2000).

    7Bardin outro autor que compartilha dessa opinio. Ele afirma que A lingstica um estudo da lngua, a

    anlise de contedo uma busca de outras realidades atravs das mensagens (BARDIN, 1977, p. 44). A anlisede discurso distinta e faz parte da anlise de contedo.

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    A teoria de Boltanski tem suas particularidades: considera simetricamente, por

    exemplo, o relatrio do socilogo e o relatrio dos atores sociais, pois ambos tm pretenso

    de validade, apoiando-se, para tanto, em provas e argumentos, selecionando fatos, invalidando

    objetos e acionando crticas. Desse modo, a autoridade da cincia questionada

    (BOLTANSKI, 1990). A crtica dos socilogos no seria to diferente da produzida pelo

    nativo ou pelos atores sociais engajados nas disputas nas quais eles tambm se apiam em

    um sistema de provas, selecionam fatos pertinentes e tm a pretenso de validade dos

    argumentos.

    O papel da sociologia pragmtica seria compreender e analisar as crticas colocadas

    pelos atores sociais, apresentando novas questes e formulaes tericas, mas extraindo

    dessas a prioridade do socilogo. Nesse sentido, metodologicamente, utilizou-se neste estudoa sociologia pragmtica, ou seja, abordaram-se simetricamente as justificaes e argumentos

    dos envolvidos no debate.

    Por fim, utilizou-se ainda a pesquisa bibliogrfica.Foi realizada a anlise de estudos

    acadmicos e publicaes relacionados ao assunto e rea da pesquisa, bem como a busca de

    materiais bibliogrficos referentes aos diversos fatores levantados na definio do problema,

    das hipteses e dos objetivos. Kaufmann (2004) aborda a questo da dupla funo das

    leituras, afirmando haver dois tipos de leitura necessrios: um sobre a questo tratada (sntesedo que h sobre o assunto); e outro sobre o novo saber em construo na pesquisa, quando o

    objetivo a problematizao. Conforme o autor, no h pesquisa sem leitura, pois nenhum

    assunto novo, e nenhuma pesquisa deve ignorar o saber acumulado.

    A forma de coleta das informaes foi a gravao magntica das entrevistas, com o

    consentimento dos entrevistados. O uso do gravador juntamente com o dirio de campo

    facilitou a observao das expresses do entrevistado, as aparncias, e serviram para auxiliar a

    memria e a ateno durante a entrevista, na observao dos gestos e aspectos do ambiente.Muitas coisas podem ser reveladas aps o gravador ser desligado e, por isso, h a necessidade

    de fazer anotaes posteriores. A sensibilidade do pesquisador foi acionada para compreender

    os humores, cansaos, expresses faciais, sinais de alvio e preocupao e demais gestos do

    entrevistado. Requereu ter familiaridade, enfim, ter anthropological blues8 (DAMATTA,

    8DaMatta (1978) associa a prtica etnolgica ao estilo musical Blue. O Blue se caracteriza por trazer um forte

    sentimento de saudade e tristeza e, portanto, traz consigo uma grande carga afetiva, cuja melodia ganha fora na

    repetio das suas frases de modo a cada vez mais se tornar perceptvel (DAMATTA, 1978, p.6). Assim, oofcio do etnlogo incluiu, entre outras coisas, captar os elementos que se repetem no cotidiano de um grupo e,da mesma forma, no deixar de considerar o lado afetivo e emocional, que podem estar presentes na relaoentre o pesquisador e o pesquisado.

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    1978).

    O dirio de campo foi uma ferramenta de pesquisa complementar atravs da qual se

    visou coletar algumas informaes observadas durante as entrevistas, reunies e eventos

    presenciados (aqui a observao tambm foi utilizada), bem como para anotaes referentes

    anlise de materiais escritos. Tratou-se de uma ferramenta auxiliar para no se deixar de

    registrar informaes significativas na posterior anlise dos dados coletados por meio das

    tcnicas j indicadas. Houve ainda o uso de um roteiro escrito de perguntas sobre noes em

    sade mental, forma de tratamento, relao entre os atores sociais, entre outros elementos

    necessrios para formar a sub-rede e evidenciar os princpios de justificao dos atores

    sociais.

    O trabalho de campo foi realizado para esta pesquisa em quatro meses de entrevistas eanlise dos materiais escritos.No entanto, salienta-se que as leituras referentes ao tema, bem

    como o contato inicial com a temtica da sade mental, deram-se ainda no curso de

    Graduao em Cincias Sociais, a partir de um trabalho realizado para a Disciplina de

    Pesquisa Qualitativa, 2002/2, ministrada pelo professor Ari Pedro Oro, do Departamento de

    Antropologia/IFCH/UFRGS. Nessa ocasio, optou-se em pesquisar uma instituio

    psiquitrica de Porto Alegre, tendo como foco de anlise como os profissionais daquele

    hospital promoviam a ressocializao dos internos e o que entendiam por ressocializao.Devido ao fato de em 2003/2 ser estagiria do Centro de Educao Patrimonial e

    Ambiental Solar Paraso, rgo vinculado Secretaria do Meio Ambiente e Secretaria da

    Cultura do Municpio de Porto Alegre, soube-se da existncia do Movimento da Luta

    Antimanicomial de Porto Alegre. Foi-se construindo um problema de pesquisa que a partir do

    amadurecimento do estudo, em 2004, resultou na monografia defendida junto ao

    Departamento de Antropologia da UFRGS e intitulada Sade Mental em Movimento:

    Construindo Novos Sentidos, que versou sobre as concepes de sade e doena entre osusurios integrantes do Movimento da Luta Antimanicomial em Porto Alegre. Atualmente,

    outras indagaes ocorrem e, na medida em que foram aprofundadas, elaborou-se este estudo.

    Pelo problema de pesquisa deste estudo, estabelece-se um quadro analtico que se

    estrutura e sistematiza-se da seguinte maneira:

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    Conceitos Dimenses Componentes Indicadores Operacionalizao

    Relaessociais

    Configuraodo Frum

    Gacho deSadeMental

    Quem so osatores sociais

    UsurioTcnico

    Anlise relacional

    Posies ePapis dosatores sociais

    HierarquiasSimetriasFunes

    Tipos derelaessociais

    Com quem serelacionam

    Relaes: amizade,parentesco,profissional

    Princpios deJustificao

    Argumentose Provas

    Cidades/cits eObjetos

    Inspirada:crena, sacrifcio,graa, criatividade

    Anlise de contedo

    Domstica:bens, aes

    personalizadas,tradio, hierarquias,

    presentesOpinio:imagem,

    reconhecimento,honra, valor, meios de

    comunicaoIndustrial:

    saber, competncia,eficcia, tecnologia,

    pesquisas epublicaes,

    diplomas, dadosCvica:

    leis, cidadania,direitos, decretos

    Mercantil:dinheiro, subsistncia,

    rendaPor Projeto: conexese relaes

    Quadro 2: conceitos dimenses componentes indicadores operacionalizao

    Enfim, foram apresentadas nesta introduo a construo do problema de pesquisa,

    com os objetivos, hiptese e relevncia do estudo, bem como, uma apresentao do

    referencial terico utilizado e as opes metodolgicas. Enfatizou-se o tratamento simtrico

    das falas dos entrevistados, em consonncia com a sociologia pragmtica de Boltanski. Fez-se

    a opo pelo uso da entrevista e anlise de contedo, o que foi descrito ao longo deste tpico

    com as devidas contribuies de Foucault e Boltanski. Com base em tais consideraes, tem-

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    se a utilizao da entrevista como primordial para construir a formao do Frum Gacho de

    Sade Mental e compreender as justificaes e as concepes acerca da sade mental, em que

    atores sociais-chave foram identificados e entrevistados.

    Considera-se importante ainda apresentar ao leitor nesta seo como se organiza esta

    dissertao. No primeiro captulo, visando desnaturalizar a loucura enquanto objeto, traz-se a

    anlise do surgimento da loucura enquanto problema social a partir do seu contexto mundial,

    e, a seguir, como a questo da ateno loucura se apresenta no Brasil e no Rio Grande do

    Sul. A seguir, no captulo dois, situam-se as atuais contestaes as concepes hegemnicas

    da loucura e as polticas que nelas se fundamentam. Dentro desse processo, situa-se tambm o

    de discusso e implementao da Reforma Psiquitrica no Brasil e no Rio Grande do Sul. No

    captulo subseqente, apresentam-se as consideraes sobre o referencial terico utilizado noestudo. No ltimo captulo, operacionalizam-se os dados de campo articulados com o

    referencial terico sugerido. Por fim, nas consideraes finais, so sistematizados de forma

    conclusria os resultados da pesquisa.

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    1 A CONSTRUO DA LOUCURA 9COMO PROBLEMA SOCIAL"

    Neste captulo, aborda-se a emergncia da loucura enquanto problema social desde o

    contexto mundial com suas vrias disputas em torno deste objeto, e, em mbito local Brasil

    e Rio Grande do Sul a partir das respostas institucionais oferecidas a esse problema

    social. Discorre-se neste captulo sobre o histrico da loucura, pois se consideram as

    condies estruturais j existentes para assim explicar as relaes sociais e a influncia destas

    no comportamento dos atores sociais e nos princpios de justificao ou argumentos acerca da

    loucura. Afirma-se isso tendo em vista que a ocorrncia de determinadas relaes sociais

    ocorre dentro de uma estrutura especfica vigente.No entanto, destaca-se que este estudo diz respeito s relaes sociais como fonte

    explicativa da produo das justificaes sobre sade mental. Assim, a desnaturalizao da

    loucura e entendimento desta como um objeto construdo socialmente, e, por isso mesmo,

    objeto de disputa ao longo da histria, so abordados neste estudo para situar o campo de

    contestao, bem como para localizar as aes e os atores sociais atuantes, como o caso dos

    integrantes do Frum Gacho de Sade Mental, principal agente propositivo e crtico das

    polticas de sade mental no Estado. nos anos de 1960 e 1970 que os estudos e interesse em relao s instituies

    psiquitricas se acentuaram. Salientam-se pelo menos duas correntes terico-metodolgicas,

    no mbito das Cincias Sociais, voltadas ao estudo da doena e do doente mental. Nos anos

    60, nos Estados Unidos da Amrica (EUA), destaca-se o interacionismo simblico,

    representado por Erving Goffman. O autor descreve o cotidiano nos manicmios e o modo

    como pessoas consideradas diferentes interagem no dia-a-dia. o responsvel pela teoria da

    rotulao, segundo a qual o sujeito, ao entrar no manicmio, perde sua identidade e rotuladocomo doente mental pela instituio. Esse estigma, que acompanha o indivduo, construdo

    a partir de um comportamento entendido como desviante, com conseqente reao da

    9Hoje, os termos empregados para se referir loucura so variados, como, por exemplo, sofrimento psquico,que, segundo Duarte (1998), utilizado pela Psicanlise. Esse autor tambm utiliza a designao perturbaofsico-moral, pois entende que fatores sociais e biolgicos se influenciam mutuamente, dependendo do contextode cada indivduo. Outros termos so: perturbao mental, problema mental, sofrimento mental e doentemental. EmHistria da Loucura, Foucault afirma que a loucura foi naturalizada pelo saber psiquitrico, a partirdo sculo XIX, no conceito de doena mental, se constituindo como objeto de saber exclusivo da psiquiatria.

    Atualmente, no ocidente, o estudo sobre a doena mental no est delimitado especificamente a nenhuma rea deconhecimento, e, conforme a definio da Organizao Mundial da Sade (OMS, 2001), sade mental designa

    bem-estar bio-psicossocial, no se restringindo ausncia de transtornos mentais.

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    sociedade, que atribui ao sujeito caractersticas de doente (GOFFMAN, 1963, 2003; SOUZA,

    1999).

    A outra abordagem a de Michel Foucault. O interesse deste autor no est voltado

    para a ao social ou na interao entre os sujeitos, e sim em mostrar como o tratamento

    destinado ao indivduo considerado louco e s instituies que o recebem so produtos

    histricos. As instituies tm finalidades especficas no transcorrer da histria. Primeiro, o

    enclausuramento ocorria apenas para conter o sujeito desordenado e no havia interesse no

    conhecimento patolgico. Depois, a concepo mudou, acreditando-se que o enclausuramento

    teria efeitos teraputicos. Enfim, assumiu-se o entendimento de que a loucura tambm pode

    ser resultado desse isolamento em manicmio (SOUZA, 1999). Para Michel Foucault

    interessa, ento, compreender o surgimento da loucura como resultado de processos sociais ede discursos que se legitimam e originam um saber que necessita ser desnaturalizado.

    Conforme Foucault (2006), h um princpio de descontinuidade e de exterioridade nos

    discursos. Estes devem ser pensados em um perodo determinado historicamente. Ao analisar

    o discurso sobre a loucura, deve-se abranger sua apario, sua regularidade e avaliar o jogo de

    relaes sociais. A nfase na produo dos acontecimentos pensada para investigar o que

    ocasiona o surgimento de dada questo, ou seja, ocorre uma reavaliao do passado luz de

    preocupaes e compromissos com questes do presente.Veyne (1995) questiona o que seria materialmente a loucura, haja vista que admite tal

    existncia material fora de uma prtica que a torna loucura. Em outras palavras, a loucura,

    embora tenha materialidade, no pode ser reduzida a tal aspecto, visto que, para Foucault

    (2003), ela uma criao social que vai alm de uma descoberta. importante apontar que h

    flexibilidades e diferenas histricas quanto ao que se considera loucura ou anormalidade e

    em relao s explicaes e tratamentos utilizados em sade.

    Para autores como Helman (2003), a cultura pode ser a prpria causa da perturbaomental, influenciando a apresentao clnica, determinando a forma como a enfermidade

    reconhecida, rotulada, explicada e tratada em cada sociedade. So as crenas sobre o modo

    ideal de reger a vida e as relaes com as outras pessoas que definem o que normal ou

    anormal para dado grupo ou sociedade. No entanto, Helman (2003) afirma que o enfoque na

    cultura no basta, pois tambm necessria uma anlise dos fatores institucionais e

    estruturais, das discriminaes de diferentes tipos, da infra-estrutura social, entre outros.

    O modo como a loucura foi tratada, julgada e descrita difere de sociedade para

    sociedade, de poca para poca e de sintoma para sintoma (PORTER, 1990). Para Porter

    (1990), hoje ainda no se tem uma concordncia com relao natureza da doena mental, ou

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    seja, o que ela , o que a causa, sua forma de cura. Assim sendo, h uma diversidade de

    explicaes e de fabricao da loucura as categorias, como, por exemplo, a categoria

    loucura, somente existem se as relaes entre as pessoas pertencentes a um grupo ou

    sociedade fizerem com que as categorias existam ou, caso contrrio, isso no se torna

    relevante e, conseqentemente, no se constitui enquanto problema social.

    Porter (1990) afirma que para a tradio intelectual ocidental foram os gregos que

    inicialmente deram sentido loucura como um problema, passando-se a exigir explicaes e

    valorizando-se a razo10. A arte era uma das maneiras que dava sentido loucura, forando o

    impensado a ser falado pelo drama, o drama da vingana, dos conflitos rivais do amor e do

    dio, entre outros, e assim restaurar a ordem. Outras explicaes, agora via medicina

    naturalista grega, baseavam-se em causas e efeitos fsicos centradas em rgos como ocorao ou o crebro, e as curas eram atribudas a medicamentos.

    Na Idade Mdia, na Europa, a voz do louco era abafada e somente se tornava um

    problema quando as manifestaes exteriores eram muito perturbadoras da ordem. No fim

    desse perodo, a lepra, que era a grande preocupao em sade at ento, submergiu

    gradualmente do mundo ocidental. No entanto, as estruturas encarregadas de comportar os

    leprosos permaneceram. Nelas, estavam excludos e asilados, os loucos, os pobres, entre

    outros. Alm disso, novos locais de internao foram construdos para internar os ditosloucos, at ento internados tambm nos hospitais gerais11(FOUCAULT, 2003).

    Porter (1990) assinala ainda que na Idade Mdia a crena crist era a nfase

    explicativa sobre a loucura, ou seja, era tanto um castigo divino como algo sagrado. A

    existncia dos bobos da Corte justificava-se pelo fato de ele ser considerado como

    instrumento de Deus para que este fosse ouvido, sendo que recebiam privilgios de loucos

    para subverter a normalidade e pronunciar verdades proibidas aos cortesos polticos

    (PORTER, 1990, p.23)O Iluminismo reforou a convico grega na razo. Conforme Porter (1990):

    A importncia crescente da cincia e da tecnologia, o desenvolvimento daburocracia, a formalizao da lei, o florescimento da economia de mercado, adifuso das letras e da instruo tudo isso contribuiu para esse processo amorfo,

    10Deve-se, no entanto, acrescentar que as doenas mentais so de todos os tempos e culturas, desde a medicinaprimitiva, em que a doena mental dependia de causas sobrenaturais, at a medicina do Oriente, em que a doena tambm pecado, resultado de uma impureza, sendo Deus quem a envia como forma de punio. Pode-seapontar ainda que h as peculiaridades da medicina da ndia Antiga, da medicina chinesa, da medicina japonesa,

    da medicina hebraica, da medicina rabe, entre outras (ver Plicier, 1973).11 Conforme Plicier (1973) o primeiro estabelecimento a ser exclusivamente destinado aos loucos foi omanicmio de Valncia, em 24 de fevereiro de 1409. Tem-se ainda como referncia, agora na Frana, oshospitais gerais Salpetrire e Bictre, criados por Lus XIV em 1656.

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    porm inexorvel, de valorizar a racionalidade, conforme entendida por aquelesmembros da sociedade que pensavam corretamente, que tinham o poder de impornormas sociais (PORTER, 1990, p.24).

    A partir da metade do sculo XVII, na Europa, se dava uma redefinio e negao dasformas tradicionais de loucura religiosa, juntamente com a cristianizao. Na Reforma e na

    Contra-Reforma, as manifestaes de feitiaria so reinterpretadas. Na segunda metade do

    sculo XVII, o caos gerado pela Reforma e Contra-Reforma religiosa leva os lderes da Igreja

    a providenciar cada vez mais as instituies para manter presos os perturbadores.

    Ao final do sculo XVIII, na Europa, em um contexto de Revoluo Francesa,

    cresciam as denncias contra as internaes dos doentes mentais e marginalizados sociais. A

    populao de internados era muito elevada em alguns pases europeus, e a construo denovos hospitais ou a ampliao dos j existentes urgia, tendo em vista a sua superlotao e

    condies precrias e os maus-tratos. O sonho da cura despontava bem como o desejo do

    retorno dos indivduos curados sociedade. ainda no sculo XVIII que floresce a psiquiatria

    depois de j haver um grande nmero de internos nos manicmios (PORTER, 1990).

    Conforme Dias (2007), determinadas formulaes contriburam para a construo das

    idias difundidas pela Revoluo Francesa. Pode-se assinalar a concepo do liberalismo,

    poltico e econmico, que lana as bases do Estado Liberal; a crtica aos iderios

    mercantilistas e a preconizao do liberalismo econmico, e o conceito de soberania popular

    que defende a liberdade e a igualdade entre os homens. A partir desse marco terico, rompe-

    se a vinculao da Igreja com o Estado e institui-se a figura da Repblica, viabilizando a

    compreenso dos direitos do homem, em 1789, com a admisso da Declarao dos Direitos

    do Homem e do Cidado. Cabe salientar ainda que as instituies psiquitricas eram

    entendidas como naturais e imprescindveis, o que ainda foi pensado aps a Revoluo

    Francesa, e, em certa medida, at os tempos atuais.

    O sculo XIX decisivo para o desenvolvimento da psiquiatria. Pinel12 props, na

    Frana, um novo modelo de assistncia, que influenciou tambm a psiquiatria no Brasil. A

    nfase era dada na correo moral, vigiando e classificando os chamados loucos com base em

    seus gestos e atitudes (PLICIER, 1973). No sculo XIX, o tratamento moral foi abandonado

    devido intensificao das abordagens baseadas no darwinismo social13 e devido

    12Pinel surpreso com as condies sub-humanas obtm autorizao da Comuna de Paris para libertar os asilados.As idias de Pinel foram publicadas no seu tratado mdico filosfico sobre a alienao mental, considerado

    como o primeiro livro antipsiquitrico. Disponvel em www.wikipdia.com. Acessado em outubro de 2007;Plicier (1973).13Ligado Teoria Evolutiva de Charles Darwin em que os organismos melhor adaptados ao meio tm maischances de sobrevivncia do que os menos adaptados. Assim, indivduos da mesma espcie apresentam

    http://www.xn--wikipa-ml7t.com/http://www.xn--wikipa-ml7t.com/
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    deteriorizao das condies de vida nas cidades, o que ocasionou o descrdito quanto

    curabilidade, haja vista que a situao asilar, com o tempo, se agravara (RESENDE, 2001).

    Desse modo, ganharam espao as teorias organicistas, que defendiam que a degenerescncia

    se transmitiria hereditariamente, constituindo desvios patolgicos, ou seria que precocemente

    adquirida por causas diversas, como alcoolismo, intoxicao, entre outros.

    Na seqncia, as descobertas no campo da neurologia e da microbiologia apontaram a

    possibilidade do comportamento anormal do crebro ser o explicativo das atitudes tidas como

    irracionais. Na virada do sculo XIX at meados do sculo XX, perderam credibilidade as

    explicaes de algumas das teorias anteriores, e delineou-se uma psiquiatria em que a

    problemtica da doena mental se deslocara da localizao corporal para o universo simblico

    do indivduo. Seguiram-se, naquele momento, as contribuies de Freud surgimento daPsicanlise em 1890, sendo seu apogeu as dcadas de 50 e 60 sobre consciente e

    inconsciente14, dois eixos fundamentais da teoria psicanaltica (RESENDE, 2001; SILVA

    FILHO, 2001).

    Aos poucos, os psiquiatras instituram como seus os direitos de tratar os doentes

    mentais, em detrimento aos direitos dos leigos, do clero e dos mdicos profissionais em geral.

    Isso ocorreu mesmo no sendo homognea a psiquiatria quanto defesa de suas teorias sobre

    os cuidados e noes sobre sade e a doena mental15

    , tendo apenas como ponto comum adimenso dialtica mdico paciente, ou seja, o entendimento de que a doena est dentro do

    indivduo (PORTER, 1990).

    Helman (2003) refora essa idia dizendo que em um mesmo pas pode haver

    dificuldades entre os psiquiatras quanto padronizao dos conceitos de diagnsticos. Fatores

    como a personalidade, a experincia e o treinamento do psiquiatra, sua classe social, etnia e

    idade, a formao cultural do psiquiatra e afiliaes religiosas ou polticas, o contexto que

    variaes em todos os caracteres, no sendo, portanto, idnticos; porque ocorre transmisso hereditria dessescaracteres, somente os que apresentam variaes vantajosas chegam fase adulta (LOPES, 1994). Srgio Carrara(1996), ao estudar a transformao das concepes acerca da sfilis, aborda o quanto ela foi entendida comohereditariedade mrbida no contexto de darwinismo social, atribuindo a todas as pessoas consideradas comdefeitos uma inferioridade biolgica transmitida pela descendncia.14O conceito de inconsciente fora usado por Leibniz em anos anteriores ao uso de Freud, tambm sendo usado

    por Hegel para construir sua dialtica hegeliana. No entanto, preciso diferenciar a idia de inconsciente, comofalta de conscincia, de inconsciente como base de uma categoria psquica na composio da personalidade.Disponvel em www.wikipdia.com. Acessado em outubro de 2007.15O mesmo aplica-se psicologia. A psicologia a cincia dos fenmenos psquicos e do comportamento. nosculo XIX que estabelece mtodos e princpios tericos. Contudo, no existe uma s teoria psicolgica e sim huma multiplicidade de correntes e paradigmas. Como perodos da histria da psicologia tm-se o filosfico-

    especulativo tem sua origem no pensamento grego e vai at fins do sculo XIX , e a psicologia cientfica coma afirmao do mtodo experimental como procedimento adequado problemtica psicolgica, tendo WilhelmWundt como iniciador usando como objeto de pesquisa o conceito de comportamento. Disponvel emwww.wikipdia.com. Acessado em outubro de 2007.

    http://www.xn--wikipa-ml7t.com/http://www.xn--wikipa-ml7t.com/http://www.xn--wikipa-ml7t.com/http://www.xn--wikipa-ml7t.com/
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    ocorre o diagnstico, entre outros, podem ser determinantes de anormalidade e normalidade,

    j que envolvem valores e formao do profissional. Nas tomadas de decises, as presses

    sociais ou polticas e opinio dos colegas de trabalho podem influenciar no diagnstico (por

    exemplo, os dissidentes polticos soviticos eram freqentemente diagnosticados como sendo

    portadores de um tipo de esquizofrenia).

    H a descrena de que os loucos no curam em hospcios e muitas vezes essa idia a

    mesma em relao tambm a psiquiatria (PORTER, 1990). Como sugere Porter (1990):

    Hoje se discute muito se a psiquiatria e a psicanlise so de fato cincias, eantipsiquiatras como Thomas Szasz argumentam que a psiquiatria est a servio deuma ideologia repressiva, que a doena mental inveno, iluso, da psiquiatria.

    No meu objetivo, porm, transformar em vtimas os pioneiros da psiquiatria.Especialmente no passado, quando os prprios psiquiatras foram muitas vezesmarginalizados, mal compreendidos e vilipendiados pela sociedade em geral pelosimples fato de suas idias serem consideradas to loucas quanto s dos prpriosloucos (PORTER, 1990, p.10).

    As primeiras crticas aos hospitais psiquitricos surgem aps a II Guerra Mundial, a

    partir da experincia de mdicos e enfermeiros com prisioneiros dos campos de concentrao

    nazistas. Inicia-se um questionamento sobre a participao desses profissionais em

    instituies psiquitricas. Esse movimento gera mundialmente a construo do iderio de

    defesa dos direitos e de cuidados aos portadores de transtorno mental. Os direitos so gerados

    em certas circunstncias, ou seja, h uma historicidade, como no sculo XX, quando aps

    vrios eventos e truculncias cometidas entre os povos, pela primeira vez, as naes tomam

    como princpio de direto internacional a promoo e proteo dos direitos humanos.

    Entretanto, os direitos aprovados no so absolutos, os Estados podem aceitar leis que

    restrinjam o exerccio dos mesmos (DIAS, 2007).

    Como se procurou mostrar neste tpico, a compreenso da loucura assume diferentes

    facetas conforme sua poca histrica. Como caractersticas discursivas ou de classificao,

    inicialmente loucura significava desrazo, ou seja, atitudes associadas desordem. Assim,

    os loucos eram aqueles que apresentavam comportamentos desviantes para a sociedade.

    Aps, a loucura passou a ser entendida como uma das formas prprias da razo cujo sentido

    se encontra no campo da razo. Assim, a loucura tornou-se sinnimo de alienao ou

    alienao mental, relacionando-se a aspectos psicolgicos ou assumindo outro tipo de

    loucura, ligado ao amor ou paixo desesperada e retratado em obras como as de William

    Shakespeare. Por fim, a loucura caracterizada como doena mental.A ateno voltada loucura tambm se altera em cada contexto especfico de disputas

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    de poder. Dos cuidados familiares ou sob vigilncia comunitria passando para uma

    concepo religiosa ficando sob os cuidados dos religiosos preocupados com a moral crist

    (correo/salvao e caridade/assistncia), chegando at mesmo a ser considerada como um

    caso de polcia portanto, de ordem pblica e de encargo do Estado 16(FOUCAULT, 2003).

    As respostas institucionais em cada momento histrico sobre a questo da loucura so trazidas

    no tpico abaixo com o demonstrar das especificidades brasileira e gacha.

    1.1 AS RESPOSTAS INSTITUCIONAIS OFERECIDAS PARA O PROBLEMA SOCIAL

    DA LOUCURA

    1.1.1 O Contexto Brasileiro

    Enquanto na Europa a emergncia do capitalismo mercantil exigia um novo homem, e

    aqueles que no se adequavam a tais exigncias eram abandonados prpria sorte, no Brasil a

    doena mental permaneceu silenciosa por muito tempo. No se julgava necessrio intervir,porque ela era vista como aspecto da singularidade do sujeito, e no como patologia. A

    presena ou ausncia de trabalho era a principal referncia para estabelecer as fronteiras do

    normal e do anormal. No Brasil imperial,as formas de organizao do trabalho eram agrcolas

    de subsistncia, para consumo ou troca nos mercados da poca. quando surgem a idia de

    lucro e a necessidade de preparar o indivduo para o trabalho que Resende (2001) situa o

    surgimento da loucura como uma categoria de problema social.

    Nos anos da Repblica Velha (1889-1930) a assistncia sade estava atrelada sentidades religiosas destinadas aos pobres17. O Estado s intervinha quando as capacidades

    desses agentes excediam e foi assim que se construram os primeiros hospitais psiquitricos.

    16 Segundo Porter (1990) as instituies-prises esto sendo agora fechadas e a assistncia comunidade(descarcerizao) a resposta atual para os doentes mentais(PORTER, 1990, p.26).17 Os critrios classificatrios utilizados sobre os sujeitos eram leigos, pois o saber mdico ainda no erasolicitado para a categorizao dos males que afligiam os internados. A visita mdica ocorria eventualmente, eas nominaes dos internos eram sujeito perigoso, criminoso, condenado, vagabundo, entre outras. Coma criao da Sociedade de Medicina, enfatizou-se a necessidade de tratamento adequado, segundo prtica

    adotada na Europa, onde a psiquiatria j se afirmara enquanto medicina cientfica e positiva diante dasdescobertas da bacteriologia, da imunologia e da neurologia. As formas de tratamento utilizadas eram

    basicamente a clinoterapia (repouso no leito) e a praxiterapia (o trabalho reproduzindo a vida de umacomunidade rural, fosse em instituies fechadas ou em ambientes abertos) (RESENDE, 2001).

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    At meados sculo XIX, h redefinio da composio da fora do trabalho, tem-se o

    encerramento do ciclo escravo e a instalao das indstrias com conseqente formao de um

    operariado urbano. Faz-se necessria a adoo de estratgias para a reproduo das condies

    de vida das classes trabalhadoras, que emergem com a instalao do modo de produo

    capitalista. Isso o que determina as primeiras aes estatais no setor de sade. Portanto, a

    sade pblica foi uma medicina de cidade, visando o controle de epidemias e do aumento da

    populao nas cidades18, ao mesmo tempo em que serviu para o Estado assegurar os seus

    interesses de instituir-se como poder central (DIAS, 2007).

    Dias (2007) avalia a trajetria das polticas de sade e de sade mental no Brasil e

    aponta que estas surgiram no no aspecto dos direitos e dos cuidados aos sujeitos, mas sim

    sob a gide da beneficncia e da preocupao com as condies para a reproduo da fora detrabalho. Conforme a autora:

    A poltica de sade tem uma amplitude que extrapola o prprio setor, pois desde oseu nascimento na primeira repblica at o perodo de democratizao do pas,esteve no cerne dos debates e da constituio das polticas sociais desenvolvidas

    pelo Estado brasileiro (DIAS, 2007, p.55).

    O saneamento era a nfase na sade pblica e havia um debate neste campo em que a

    medicina era distinta das aes sanitrias, pois a primeira era para a cura individual atravs da

    clnica, da patologia e teraputica, e a segunda para prevenir doenas, prolongar e promover a

    sade atravs da higiene e da educao sanitria, com o propsito de cuidar os problemas de

    sade. Havia uma articulao do pensamento sanitarista com a concepo de eugenia, isso ,

    visava-se sanear os aglomerados urbanos e rurais e produzir novos comportamentos sociais

    para refrear os efeitos da miscigenao racial, considerada um risco social a pobreza

    precisava ser isolada. Isso influenciou a sade mental dos sujeitos, que foram isolados

    socialmente e considerados incapazes de compor a mo de obra necessria ao modo deproduo capitalista (DIAS, 2007).

    A preveno eugnica se materializou atravs da criao de hospitais e colnias

    agrcolas pblicas para portadores de transtornos mentais, tuberculose, hansenase, sendo o

    perodo da Proclamao da Repblica at 1941 caracterizado como o da hegemonia do setor

    pblico nas aes relativas assistncia psiquitrica (DIAS, 2007). Entretanto, essa

    concepo no seria imune a contradies. A prtica psiquitrica, no Brasil, assimilou os

    18Tm-se as vacinas contra a varola obrigatria via legislao; primeira lei de acidentes de trabalho, em 1919;em 1920 ocorre a criao do Departamento Nacional de Sade Pblica; em 1923 d-se a promulgao do cdigosanitrio; em 1924 ocorre o primeiro Congresso Brasileiro de Higiene (DIAS, 2007).

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    valores da sociedade, encarregando-se de retornar os indivduos curados e aptos para o

    trabalho. nesse aspecto que reside a contradio, porque o modelo de tratamento que havia

    era o das colnias e de aprendizado do trabalho agrcola, sendo que a realidade externa

    revelava o desenvolvimento da urbanizao e o incio da industrializao (RESENDE, 2001).

    Assim sendo, a criao das instituies destinadas a abrigar os loucos precedeu ao

    nascimento da psiquiatria. Em 1852, inaugurou-se o Hospcio D. Pedro II, no Rio de Janeiro,

    marco institucional da assistncia psiquitrica no pas, sendo que a administrao hospitalar

    permaneceu subordinada Santa Casa de Misericrdia. aps a Proclamao da Repblica

    que o Estado brasileiro assumiu a assistncia s pessoas diagnosticadas como doentes mentais

    (RESENDE, 2001).

    Em 1930, tem-se como marco o papel centralizador do Estado e novo cicloeconmico. Foram criadas instituies como o Ministrio da Educao e Sade Pblica, em

    que a educao entra como a ferramenta mais apropriada para propagar o pensamento

    higienista. Inclui-se assistncia mdica previdenciria, destinada aos trabalhadores urbanos

    organizados atravs da criao dos Institutos de Aposentadoria e Penses IAPs. No ps-

    guerra, o Brasil iniciou o perodo econmico, poltico e social denominado de

    desenvolvimentista. Nesse momento, 1945-64, o governo considerou o setor sade como

    estratgico para o desenvolvimento econmico, sendo uma das quatro bases do plano Salte(sade, alimento, transporte e energia). A sade foi o nico setor social relacionado aos

    problemas do desenvolvimento devido ao entendimento de que ela era a precondio ao

    aumento da produo e da riqueza social, j que a classe trabalhadora era vista como setor

    rentvel (DIAS, 2007).

    A partir da dcada de 50, tem-se a nfase no modelo assistencial hospitalocntrico de

    alta tecnologia e da prtica especializada ocorre a promulgao do decreto de 1946 que

    estimula a construo de hospitais psiquitricos pelos governos estaduais, visa-se consolidar apoltica macro-hospitalar pblica como principal instrumento de interveno sobre a doena

    mental. A poltica se concretiza com aumento dos hospitais e da populao institucionalizada;

    d-se tambm a acelerada industrializao com o estmulo do governo na produo de

    medicamentos como os psicotrpicos (DIAS, 2007).

    A psiquiatria foi incorporada como assistncia sade em 1950 com o auxlio das

    drogas antipsicticas que surgem no Brasil, em 1955. Na dcada de 60, sobretudo nos EUA,

    desenvolveram-se instrumentos tcnicos para encontrar os possveis suspeitos de transtorno

    mental. Testes breves de personalidade eram utilizados para a realizao de

    psicodiagnsticos, como Cornell Medical Index e o Minnesota Multiphasic Personality

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    Inventory, com a integrao de servios mdicos e servios assistenciais. Na dcada de 70,

    recomendava-se a regionalizao dos servios, devido crtica ao macro hospital e busca de

    alternativas hospitalizao integral (RESENDE, 2001; SILVA FILHO, 2001).

    O setor sade segue permeado pela disputa por legitimidade entre a sade pblica,

    com seu modelo campanhista, e a ateno mdica previdenciria, curativista e privada. No

    governo Joo Goulart, o Ministrio da Sade prope a criao de um Plano Nacional de

    Sade e a Municipalizao dos servios de sade no Brasil. Foi a primeira vez em que se

    discutiu a organizao dos servios mdicos, tendo-se uma nova concepo de planejamento

    em sade, o que gerou um crescimento das redes de sade pblicas estaduais e municipais. O

    atendimento de Pronto-Socorro passa a justificar-se para atender a populao excluda do

    sistema previdencirio (DIAS, 2007).Mas, nos anos de 1964-85, com a Ditadura Militar, houve um desmantelamento dos

    poderes estaduais e municipais e intensificao da centralizao das aes de sade. Tem-se

    como estratgia a medicalizao social, sem precedentes na histria do pas. Como padro de

    sade, existem cuidados mdicos individuais e a construo de hospitais, laboratrios e

    servios privados, a multiplicao de egressos das faculdades de medicina e de odontologia.

    Em 1966 o INPS Instituto Nacional de Previdncia Social substitui os Institutos de

    Aposentadoria e Penses, e em 1979, ocorre o primeiro Congresso Nacional de Trabalhadoresem Sade Mental, em So Paulo (DIAS, 2007).

    No Governo Geisel (1974-79) h uma crise econmica, desestabilizao do mercado

    internacional, aumento da divida externa, fim do perodo do milagre econmico, aumento de

    salrios e elevao da taxa de inflao, sistema hierarquizado e regionalizado em

    concordncia com as recomendaes da Organizao Mundial da Sade (OMS)19. Durante a

    abertura desse governo, ocorre um decrscimo na destinao dos recursos; a criao do

    INAMPS (Instituto Nacional da Assistncia Mdica da Previdncia Social) responsvel pelaassistncia mdica. Porm, a presena institucional do INAMPS em todos os estados como

    representante do poder central dificultou ainda mais a capacidade do poder local de formular e

    deliberar sobre polticas de sade (DIAS, 2007).

    Do mesmo modo, essas iniciativas incrementaram a privatizao no setor da sade,

    sendo que a ateno primria sade propiciou o desenvolvimento da oferta de servios

    ambulatoriais bsicos populao excluda do acesso a equipamentos sociais como forma

    19 A Organizao Mundial da Sade (OMS) enuncia um parecer sobre a sade mental nos pases emdesenvolvimento e recomenda a descentralizao no atendimento, criao de formas de prevenir, tratar ereabilitar, e condena a construo de hospitais psiquitricos para a clausura de doentes mentais (DIAS, 2007).

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    tambm de compensar o grau de privatizao da assistncia mdica ampliada pela criao do

    INAMPS. O Plano Integrado de Sade Mental estabelecido e prev a formao das

    primeiras equipes multiprofissionais de sade mental nas coordenaes estaduais de sade.

    No entanto, concretamente, a oferta de servios no foi satisfatria, pois, no campo da sade,

    a dcada de 1970 foi marcada pela pouca destinao oramentria (DIAS, 2007).

    Dias (2007) aponta ento que at os anos de 1980, tem-se a preocupao com o

    desenvolvimento da Nao. Do mesmo modo que h uma disputa entre sade coletiva e o

    atendimento mdico individualizado, h ainda como caracterstica a interconexo do interesse

    do capitalismo mundializado com a nfase ora na hospitalizao ora na ateno primria, com

    destaque na sade mental e reao a lgica centralizadora da sade e do modelo

    hospitalocntrico e manicomial na sade mental. As foras que sustentavam o regime militarvo perdendo sua hegemonia ao mesmo tempo em que ocorrem reaes de segmentos sociais

    devido crise econmica, social e poltica advindas da queda do produto interno bruto, da

    acelerao inflacionria, da reduo na capacidade de investimento econmico e da

    acelerao da desigualdade social.

    Em fins do regime ditatorial, as relaes entre sociedade e Estado passam a ter as

    caractersticas de estado de direito, pluralismo poltico e sistema de representao partidria,

    criando as condies histricas para o processo de democratizao. As mudanas ocorridasmarcaram a formulao de nova concepo de sade e de sade mental, de novos desenhos

    institucionais, alterando a poltica e a relao dos segmentos sociais envolvidos com a gesto

    da sade. um momento tambm de crise da Previdncia Social com expanso da cobertura

    de beneficirios sem a respectiva criao de novas fontes de financiamento que assegurassem

    os recursos necessrios. Assim, as crticas ao modelo de sade vigente se intensificam por

    parte dos movimentos populares emergentes (DIAS, 2007).

    Ainda nesse perodo, o Ministrio da Previdncia e Assistncia Social incrementou omodelo de cuidados mdicos individuais como padro de sade pautando um crescimento

    da produo quantitativa de atos mdicos, com conseqente grande nmero de construo de

    hospitais financiados pelo setor pblico e compra de vagas no setor privado. Esse perodo,

    denominado de privatizao da assistncia mdica previdenciria, uma caracterstica da

    reorientao da poltica nacional de sade por uma prtica curativa, individual, especializada

    e sofisticada, em detrimento de medidas de sade pblica, de carter preventivo e de interesse

    coletivo. Concomitantemente, tem-se um impulso ao modelo da internao psiquitrica

    (DIAS, 2007).

    Conforme seguimento dos estabelecidos pela Organizao Mundial da Sade (OMS) e

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    devido s mudanas na poltica estatal, em 1981-91, tem-se a reduo no nmero de hospitais

    psiquitricos. Em 1982, a Portaria n 3.108 regula as mudanas no modelo assistencial em

    sade mental, ou seja, este deve ser predominantemente extra-hospitalar, ser exercido por

    equipe multidisciplinar, incluir numa estratgia de ateno primria de sade, utilizar recursos

    intermedirios entre o ambulatrio e a internao integral como hospital-dia, hospital-noite,

    pr-internao, penso e oficina protegidas, restringir a internao aos casos estritamente

    necessrios, promover a implantao progressiva de pequenas unidades psiquitricas em

    hospitais gerais (DIAS, 2007).

    Mas o contexto desse perodo ditatorial de crise econmica e poltica, incio de

    organizaes sindicais, retorno do pluripartidarismo e vitria da oposio nas eleies diretas

    para governadores em 1982. Ocorrem mobilizaes de movimentos sociais com a luta por

    variados temas, alta inflao, com mnimo investimento. E, ainda, a filantropia como

    responsvel pela oferta de servios hospitalares, analfabetismo, acesso sade caracterizado

    pela discriminao existente entre os segurados cujos servios tinham maior volume de

    investimento e, mesmo assim, insuficiente e os dependentes da oferta de rudimentares

    servios estatais (DIAS, 2007).

    No setor sade, o governo anuncia a crise econmica e sua incapacidade de financi-

    la, intensificando o debate nos movimentos sociais, nas categorias profissionais e no campoacadmico comprometido com as mudanas sociais. Ocorrem denncias das condies de

    sade da populao e propem-se alternativas para a construo de uma poltica de sade

    democrtica, tendo como componentes essenciais a descentralizao, a universalizao, a

    participao da populao e a unificao no setor (DIAS, 2007).

    Emergem, ento, as condies propcias para a criao do Sistema nico e

    Descentralizado de Sade (SUDS), atravs de decreto em 1987. As aes integradas de Sade

    vo ganhar maior expresso nacional, constituindo-se em importante estratgia no processo dedescentralizao da sade e contemplando a participao na estrutura da sade atravs dos

    colegiados representativos para acompanhamento da poltica de sade as Comisses

    Interinstitucionais de Sade no mbito nacional, estadual e municipal, que formaram as bases

    para os Conselhos de Sade, nas trs esferas de governo, a partir da Lei 8.142, de 1990

    (DIAS, 2007).

    O SUDS alterou o papel do INAMPS que passou a ter funes de planejamento

    oramentrio e acompanhamento do sistema de sade deixando de ser prestador de servio.Mas a Unio no aplicou seu discurso de descentralizao, o municpio ficou num papel

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    coadjuvante, como prestador e executor de servio. O SUDS sobrevive at a aprovao da Lei

    Orgnica da Sade, em 1990, que por sua vez ocorreu porque as foras sociais organizadas

    em prol do movimento de Reforma Sanitria conseguiram incorporar suas premissas na

    Constituio Federal de 1988 que foi, assim, a base para a Lei Orgnica da Sade Sistema

    nico de Sade SUS, na forma das Leis Federais 8.080/90 e 8.142/90. A sade fica calcada

    nos princpios de universalizao, descentralizao, participao e na noo de que a sade

    um direito de todos e dever do Estado (DIAS, 2007).

    Segundo Dias (2007), no setor da sade mental, os usurios, os familiares desses e os

    trabalhadores em sade mental passam a reivindicar alteraes no modo de ateno vigente.

    Como exemplo, tem-se o Movimento Antimanicomial reivindicando ampliao ou criao de

    espaos participativos. O Movimento Social produz uma luta no campo poltico e doconhecimento, pois faz o debate sobre a conquista de direitos de parte da populao e

    estabelece novas categorias tericas, filosficas e prticas no campo da Sade Mental, que

    sugerem a necessria incluso do portador de transtorno mental no espao dos cidados.

    Assim,

    [...] o hospital psiquitrico passa a ser traduzido como uma instituio manicomialem decorrncia de seu modo operandis geres uma conseqente degradao nosindivduos pela massificao do atendimento a partir das classificaes nosolgicas,o que cria uma despersonalizao dos sujeitos; utilizao de espaos restritivoscomo medidas teraputicas, gerando uma dupla mortificao; desconhecimento domotivo da internao por parte do prprio indivduo internado; ausncia de

    privacidade e de liberdade de expresso; violao de correspondncia; negao dasexualidade; infantilizao; acesso atividade como prmio e a interdio civil(DIAS, 2007, p.59).

    Dessa maneira, a Reforma Psiquitrica foi estabelecida nos anos 90 no contexto de

    democratizao poltica e de Reforma Sanitria e implementada na conjuntura do debate

    sobre a reforma do Estado. Ou seja, os desafios para implantao da Reforma Psiquitrica

    foram colocados pela situao de alterao no papel do Estado j que pde se instalar uma

    poltica de sade mental em um contexto de ajuste estrutural com retrao do Estado na

    efetivao das polticas sociais e desmonte dos direitos sociais (DIAS, 2007).

    O momento histrico brasileiro de contradies, o que propicia um ambiente frtil s

    lutas sociais. A conquista do direito da escolha livre dos governantes ocorre num contexto de

    ajuste econmico e de reforma das estruturas do Estado, implicando em retrao do

    financiamento das polticas sociais e no agravamento da desigualdade social. Ocorre um

    distanciamento aos princpios da Reforma Sanitria, tais como a descentralizao naprimeira dcada do sculo XXI a contra-reforma do Estado apoiada pelos organismos

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    financeiros internacionais como o Banco Mundial, que propugna diretrizes divergentes dos

    projetos de Reforma Sanitria; e ainda, em 1990 o Governo institui o SUS e ocorre a criao

    do Programa Sade da Famlia PSF (DIAS, 2007).

    A partir de 1990, os organismos internacionais pautam as polticas econmicas e

    sociais dos pases da Amrica Latina. Suas orientaes abrangem tambm o campo da sade

    mental procedentes da Organizao Mundial da Sade (OMS), a Organizao Pan-Americana

    de Sade (OPAS), agncia para a Amrica Latina e Caribe, e as Naes Unidas. Pode haver

    sintonia entre os postulados do movimento pela Reforma Psiquitrica com os ordenamentos

    institudos mundialmente pelas agncias multilaterais. Destaca-se a Conferncia Regional

    para a Reestruturao da Ateno Psiquitrica na Amrica Latina (OPAS, 1990) que passou a

    ser identificada com a Declarao de Caracas (DIAS, 2007).A declarao de Caracas passou a ser um importante parmetro na elaborao de

    polticas na rea de sade mental que contemplam a ateno de base municipal e ambulatorial

    e na avaliao de que o modelo centrado no hospital psiquitrico no produz condies para o

    desenvolvimento de sade mental para as populaes. Outra declarao importante a da

    Organizao das Naes Unidas (ONU) que, em 1991, adotou os Princpios para a Proteo

    de Pessoas com Enfermidade Mental e para a Melhoria da Assistncia a Sade Mental,

    explicitando que toda pessoa com uma enfermidade mental ter o direito de exercer todos osdireit