crátilo - estudo e tradução

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS ÁREA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA GREGA LUCIANO FERREIRA DE SOUZA PLATÃO Crátilo Estudo e Tradução Exemplar Revisado São Paulo 2010

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULASREA DE PS-GRADUAO EM LNGUA E LITERATURA GREGA

    LUCIANO FERREIRA DE SOUZA

    PLATO

    Crtilo Estudo e Traduo

    Exemplar Revisado

    So Paulo2010

  • 2PLATO

    Crtilo Estudo e Traduo

    Luciano Ferreira de Souza

    Exemplar Revisado

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Antnio Alves Torrano

    So Paulo2010

  • 3Para ser imortal, uma obra precisa ter tantas qualidades, que no fcil encontrar algum capaz de valorizar todas; entretanto, uma qualidade reconhecida e valorizada por determinada pessoa, outra

    qualidade, por outra pessoa. Assim, no decorrer dos sculos, em meio a interesses que variam continuamente, obtm-se afinal a cotao da obra, a medida que ela apreciada ora num sentido, ora em

    outro, sem nunca esgotar-se por completo.

    Schopenhauer, A Arte de Escrever

  • 4AGRADECIMENTOS

    Ao professor Jos Antnio Alves Torrano, que desde o incio apontou os caminhos, na

    maioria das vezes os mais difceis.

    Camila Zanon, minha amiga do grego, mente compatvel, que dispensou

    momentos preciosos de seu tempo para aguentar as lamrias extremadas de quando pensava

    em desistir, e de excitao mxima, quando nove entre dez frases vinham acompanhadas da

    palavra Crtilo, que sempre acreditou no meu trabalho como tradutor, que me deixa as

    melhores lembranas do rduo caminho de aprendizado da lngua grega, sempre disposta a

    encarar horas ininterruptas de estudo, que facilmente resume o que se entende por amizade.

    Ao Jerry, amante de Plato, que durante todo o percurso prometeu que leria o dilogo

    para discuti-lo comigo... pois , acabaram-se as desculpas.

    Lvia, linguista promissora, que contribuiu neste trabalho com seus comentrios

    mais sutis, sem se dar conta que contribua.

    Aos professores Daniel Rossi Nunes Lopes e Adriano Machado Ribeiro, participantes

    da banca de qualificao, pelas crticas e sugestes.

    queles que, direta ou indiretamente, contriburam para a concluso desta pesquisa,

    que j agradeci de alguma forma, mas manterei o anonimato.

    CAPES, por viabilizar financeiramente a concluso desta pesquisa.

  • 5RESUMO

    O presente trabalho tem como objetivo oferecer uma interpretao sobre o problema da

    chamada correo dos nomes, presente no dilogo Crtilo de Plato. Partindo da discusso

    entre Scrates e seus interlocutores, Hermgenes e Crtilo, sobre a questo, que

    aparentemente est apenas num mbito lingustico, veremos como se d a transio para o

    plano ontolgico e gnoseolgico da questo dos nomes. Minha proposta de leitura, portanto,

    mostrar como Plato faz surgir, a partir de cada uma das teses apresentadas, a sua prpria

    teoria sobre a questo dos nomes. Por fim, apresento a traduo do dilogo como

    complemento do trabalho.

    Palavras-chave: Plato Filosofia Linguagem Ontologia Traduo

  • 6ABSTRACT

    The present work aims to offer an interpretation on the issue of so called correction of

    names present in Plato's Cratylus. From the discussion between Socrates and his

    interlocutors, Hermogenes and Cratylus, wich is apparently a linguistic context, we will see

    how is the transition to the ontological and gnoseological level on the issue of names. My

    proposal of reading, therefore, is to show how Plato, from each of the arguments put foward,

    raises his own theory on the subject. Finally, I present a translation of the dialogue as a

    complement to the work.

    Key-words: Plato Phyilosophy Language Ontology Translation

  • 7NDICE

    Introduo........................................................................................................................................ 08

    1. SOBRE A CORREO DOS NOMES, OU O ORCULO DE CRTILO (383a 391c)....................................................................... 09

    1.1 As duas teorias de nomeao........................................................................................ 121.2 Primeiro argumento sobre verdade e falsidade nos nomes........................................... 161.3 O Relativismo de Protgoras........................................................................................ 181.4 Nomes x Essncia: um esboo da Teoria das Formas?................................................ 20

    2. SOBRE ETIMOLOGIAS, OU O ORCULO DE SCRATES (391d 427c)................................................................ 24

    2.1 Etimo[mito]logias (391d 401a).............................................................................................. 27 - Zeus, Crono e Urano........................................................................................................ 32- Onomatomancia, ou a inspirao de utifron.................................................................. 34- Deuses, Numes, Homens e Heris................................................................................... 35- Alma e Corpo................................................................................................................... 39

    2.2 Etimo[teo]logias (401b 407d)................................................................................................ 41- Hstia............................................................................................................................... 41- Reia e Ttis...................................................................................................................... 42- Poseidon, Pluto e Hades................................................................................................ 43- Demter e Hera............................................................................................................... 44- Persfone, Apolo e a onomatofobia popular grega......................................................... 46- Leto e rtemis................................................................................................................ 49- Dioniso e Afrodite.......................................................................................................... 50- Palas e Atena.................................................................................................................. 51- Hefesto e Ares................................................................................................................ 52

    2.3 Etimo[logo]logias, segundo argumento sobre verdade e falsidade nos nomes (407e 408d)......................................................................... 53

    2.4 Etimo[cosmo]logias (408e 410e)......................................................................................... 56

    2.5 Noes morais (411a 421e).................................................................................................. 58- As aporias da justia...................................................................................................... 58- Outras etimologias........................................................................................................ 59- A virtude, o vcio, o movimento e a alma..................................................................... 60- O nome, a verdade, a falsidade e o ser.......................................................................... 64

    2.6 Etimo[tipo]logias, ou os nomes primitivos (422a 427c).................................................... 65

    3. SOBRE O CONHECIMENTO DOS NOMES, OU O SONHO DE SCRATES (427d 440e)................................................................. 69

    3.1 Terceiro argumento sobre verdade e falsidade nos nomes.................................................... 723.2 Onomatomimese.................................................................................................................... 743.3 O Sonho de Scrates............................................................................................................. 77

    4. CONCLUSO................................................................................................................... 81

    Plato Crtilo: Traduo......................................................................................................... 83

    Bibliografia..................................................................................................................................... 193

  • 8INTRODUO

    O presente trabalho sobre o Crtilo possui dois objetivos claros. Por um lado, ele

    oferece a traduo integral do dilogo; de outro, ele prope a sua interpretao que, em linhas

    gerais, pretende discutir como os temas que nele so tratados articulam-se em funo de uma

    estrutura que permite uma compreenso total do dilogo. Evidentemente, falamos em uma

    interpretao, pois sabemos que a bibliografia dedicada ao dilogo, alm de extensa, mostra-

    se extremamente variada, e no pretendemos com esse estudo apresentar um comentrio que

    seja definitivo, objetivo que seria inalcanvel a qualquer comentador ou tradutor de qualquer

    texto, seja ele antigo ou moderno, mas uma outra interpretao, que somada quelas

    existentes, possa contribuir de algum modo para os estudos platnicos.

    Tendo em vista que o Crtilo pode ser comodamente dividido em trs partes, este

    estudo tambm ser assim dividido. No primeiro captulo, intitulado Sobre a correo dos

    nomes, ou o orculo de Crtilo, o objetivo mostrar como as duas teses acerca da correo

    dos nomes so apresentadas, definidas e defendidas por cada um dos interlocutores de

    Scrates, e qual a sua reao face a elas, ao indicar, aps pass-las pelo crivo do exame

    dialtico, seus pontos positivos e seus pontos falhos.

    O segundo captulo, Etimologias, ou o orculo de Scrates, far a investigao do

    excurso central do dilogo, analisando-o a servio da compreenso de suas duas outras partes.

    No faremos o exame detalhado de cada etimologia proposta, pois, a meu ver, privilegiar o

    comentrio, ao invs da investigao lingustica, mostrar-se- mais profcuo aos objetivos

    pretendidos. Para tanto, cotejar essa parte central com outras obras literrias se far

    necessrio, observando como a prtica etimolgica tambm se d em outros autores e,

    partindo da comparao, extrair dela o contedo filosfico que acreditamos existir, sem ater-

    se ao mbito puramente lingustico.

    A proposta do terceiro captulo, Sobre o conhecimento dos nomes, ou o sonho de

    Scrates, investigar como a partir de um contexto aparentemente lingustico, Scrates

    argumentar a favor de uma teoria com consequncias ontolgicas e gnoseolgicas. A

    concluso do trabalho se dar na tentativa de ligar as trs partes acima descritas, focando a

    unidade do dilogo enquanto instrumento de reflexo filosfica, numa perspectiva de integr-

    lo como pea fundamental ao corpus platonicum.

  • 9I

    Sobre a correo dos nomes, ou o orculo de Crtilo

    (383a - 391c)

    Comparando o incio do Crtilo1 a outros dilogos platnicos, deve-se primeiramente

    observar o seu comeo um tanto inconvencional. Em nosso dilogo, o encontro entre as

    personagens se d por afinidade temtica, pois saibemos, a partir de sua primeira frase, que a

    discusso, , j se iniciara antes que Scrates tomasse parte nela, indcio que nos

    dado pelo uso da partcula , frequentemente traduzida por ento, cuja funo retomar

    algo que se dissera anteriormente, de modo a conclu-lo. Embora no tenhamos acesso

    contedo da conversa nem a forma como se realizava, nem os seus detalhes

    Hermgenes, com a anuncia de Crtilo, o responsvel por compartilh-la conosco,

    , aos leitores do dilogo e a Scrates, permitindo-nos conhecer o contedo

    desse que trata da correo dos nomes.

    Antes de entrarmos definitivamente no objeto do dilogo, convm conhecer quem so

    seus personagens. O que sabemos a respeito do Crtilo histrico nos foi transmitido pela

    Metafsica de Aristteles. Em seu texto2, o Estagirita relata que Plato, em sua juventude, teria

    se tornado primeiramente familiar a Crtilo e s opinies de Herclito,

    , opinies que atestavam que todas as coisas

    sensveis estariam sempre em fluxo, , e que no existiria o

    conhecimento a respeito delas, . Em outra passagem3,

    Crtilo teria levado ainda s ltimas consequncias a ideia do fluxo perptuo contida na

    mxima heraclitiana de ser impossvel entrar duas vezes em um mesmo rio,

    , pois ele acreditava que nem mesmo uma vez,

    ' , se poderia nele entrar.

    A crena na mobilidade das coisas sensveis, tal como cria Herclito, acarreta,

    veremos, a impossibilidade de um discurso verdadeiro, ou seja, nada poderia ser

    verdadeiramente afirmado, ou conhecido. Curiosamente, Crtilo, partidrio radical de suas

    1 Parte das tradues apresentadas so minhas, salvo quando indicado em nota.

    2 Aristteles Metafsica, A.6, 987a31.

    3 Aristteles Metafsica, A.5, 1010 a7.

  • 10

    teorias, teria abandonado o uso das palavras e, dado o testemunho de Aristteles, limitado-se

    somente a apontar o dedo, , quando quisesse referir-se s coisas

    por elas nomeadas. interessante notar que tal afirmao a seu respeito ganha uma certa

    notoriedade em nosso texto, por uma indicao que nos dada por seu autor. Na maior parte

    das vezes em que Crtilo participa da discusso, Plato faz uso de um pronome demonstrativo

    junto ao seu nome, como que indicando, ou apontando para ele no momento da fala, afim de

    deixar claro que Crtilo est presente, . Nestes casos, o uso de tal demonstrativo

    seria gramaticalmente dispensvel, uma vez que sabemos que os debatedores se conheciam, e

    a forma para referir-se ao outro no necessitaria de tal construo, sutileza que entendemos

    como uma forma de ironia platnica-socrtica para caracterizar o personagem que d nome ao

    dilogo. Alm disso, outro trao marcante de sua personalidade, consequncia desse

    abandono do uso das palavras, a sua permanncia em silncio durante quase todo o dilogo,

    elemento importante para a sua composio dramtica, que tambm ser, em momento

    oportuno, alvo da ironia socrtica. Quanto sua defesa das opinies de Herclito, basta-nos,

    por ora, citar sua ltima frase no dilogo, onde ele, aps a concluso do debate, atesta

    explicitamente sua simpatia por tais, confirmando o que Aristteles escrevera a seu respeito:

    mas eu, [Crtilo] tendo investigado as coisas, mais elas me parecem ser da maneira que

    Herclito diz,

    .

    Embora esteja presente como debatedor com Scrates, Hermgenes j figurara em

    outros textos4. No Fdon 59b5, ele aparece como um dos acompanhantes de Scrates nos

    ltimos momentos que antecederam a sua execuo. Xenofonte, em seu Simpsio I 3 ss.6,

    tambm o cita com seguidor de Scrates. Hermgenes, entretanto, no se assemelha aos

    interlocutores dos primeiros dilogos. Sua aparente ingenuidade em relao defesa de sua

    tese, transforma-o num personagem de extrema relevncia no Crtilo, j que devemos

    ressaltar que em sua segunda parte, a ordem das etimologias examinada proposta por ele e

    4 Uma descrio mais precisa de Hermgenes e sua ligao com Scrates pode ser encontrada em Delibes, F. S. Hermogenes Socraticus, Faventia 21, 1999, p. 57-64.

    5 Alm de Apolodoro, de sua terra, estavam presentes Critbulos e seu pai, e ainda Hermgenes

    6 Sabendo que estavam na companhia de Scrates, Critbulos e Hermgenes

  • 11

    seguida por Scrates sem contestao.

    Mas do que trata nosso dilogo? Como indicado em seu subttulo, a investigao se d

    acerca da correo dos nomes, . Devemos, de antemo, entender

    qual significado atribudo por Plato a esses dois termos: correo e nome. Quanto ao

    primeiro, , no devemos pens-lo no sentido de que algo estaria errado e devesse

    ser apresentado de maneira correta ou corrigida, mas sim em seu sentido de retido, de carter

    probo, verdadeiro. O que se investiga no dilogo essa correo dos nomes, essa verdade

    dos nomes cuja unicidade temtica a descoberta de sua verdade se manifesta na

    multiplicidade oriunda dessa mesma unicidade, ou seja, a infinitude dos nomes existentes, o

    que nos leva a entender esses dois termos como anlogos, ou seja, todas as vezes em que o

    termo correo empregado por Scrates, devemos entender que ele fala da verdade dos

    nomes, concepo diferente daquela apresentada por seus interlocutores.

    Estabelecida assim a sinonmia entre correo e verdade, segundo termo que serve de

    subttulo da obra, falta-nos ainda explicar como Plato compreendia o seu primeiro membro,

    , dos nomes. O que era, afinal, para o autor do Crtilo, aquilo cujo peso da

    tradio consagrou traduzir por nomes?

    A resposta aparentemente simples. No h um termo grego correspondente quilo

    que em portugus entendemos pelo termo genrico palavra. O grego agrupa desde

    nomes prprios, substantivos, adjetivos e at mesmo verbos, e Plato far uso indistinto dele

    ao referir-se tanto a uns quanto a outros, chamando-os todos por 7. Assim, ao

    estabelecermos a mesma relao de sentido entre os vocbulos correo e verdade, e

    termos em mente que quando o filsofo refere-se a nomes, ele refere-se ao que

    compreendemos por palavra, podemos afirmar que o objetivo do dilogo, em seu sentido

    mais amplo, saber o que vem a ser a verdade dos nomes, independente daquilo que

    entendemos hoje por uma categoria gramatical especfica atribuda a qualquer termo.

    7 A distino entre nomes e verbos, no sentido de predicao, ser exposta e resolvida posteriormente no dilogo Sofista 262a.

  • 12

    1.1 As duas teorias de nomeao

    Duas teses aparentemente contrrias so apresentadas no incio do dilogo: a primeira,

    defendida por Crtilo, sustenta a existncia de uma uma correo , que

    traduzo por nascida por natureza (383a). A expresso, formada a partir de dois termos cuja

    origem comum o verbo grego , que em seu sentido primeiro significa brotar, fazer

    crescer, apesar de sua redundncia verificada tambm quando traduzida para o portugus,

    literalmente natural por natureza, torna-se para Crtilo reveladora do carter essencial de

    sua tese. Para ele, a relao entre o nome e a coisa nomeada se manifesta por algo intrnseco

    ao ser, que faz parte dele, e somente por ele, pelo nome, pode ser revelado; tal correo se d

    quer entre os gregos, quer entre os brbaros, , termo que nada tem

    de pejorativo em Plato, pois indica os no falantes da lngua grega, tanto do tico como dos

    outros dialetos. A tese naturalista de Crtilo , podemos dizer, universal, j que atribuda

    relao nome/coisa8 em qualquer que seja a lngua pela qual se manifeste.

    Por outro lado, a tese reivindicada por Hermgenes diz que a correo dos nomes no

    se faz de outra maneira seno por conveno e acordo, (384d).

    Basicamente, esta teoria nos diz que existe a possibilidade de se atribuir qualquer nome a

    qualquer coisa, exemplificada pelos nomes dados aos escravos, cuja mudana para outro

    poderia ser feita sem que houvesse qualquer prejuzo nem para a coisa nomeada, nem para

    aquele que nomeia. Assim como a tese defendida por Crtilo, a relao nome/coisa, segundo

    Hermgenes, tambm tem pretenses de ser universal, embora ela tenha o homem como

    limitao.

    Talvez por isso a tese de Crtilo seja formada a partir da negao de um dos princpios

    da tese de Hermgenes, ou seja, aquilo que alguns determinam nomear qualquer objeto, por

    conveno, , no um nome, . O nome dado a Scrates e

    o seu prprio nome seriam corretos, pois revelariam a natureza de seus possuidores, uma

    semelhana intrnseca entre o nome e a coisa nomeada, verificada na raiz dos nomes que lhes

    foram atribudos:, do grego poder, autoridade; no entanto, que poder ou

    autoridade seriam esses comum a Scrates e Crtilo, ocultos no significado de seus nomes, de

    8 A relao nome/coisa deve ser entendida como a denominao de tudo aquilo que existe ou possa existir, e no somente da coisa como um objeto, ou seja, o uso do termo em nosso estudo se estende domnios diversos, alm daqueles limitados materialmente.

  • 13

    acordo com teoria de nomeao cratiliana, mera conjetura; por outro lado, Crtilo afirma

    que o nome dado a Hermgenes no Hermgenes e, por isso, no um nome correto por

    natureza. No entanto, nenhuma explicao para tal afirmao lhe dada, mas apenas um

    tratamento irnico, , de sua parte, que em seu silncio, no esclarece o significado

    desta obscura assertiva. A entrada de Scrates no dilogo, atendendo ao pedido de

    Hermgenes, justamente para resolver essa aporia inicial, ou seja, decifrar o orculo de

    Crtilo, (384a), qual Scrates prope uma investigao em

    conjunto, (384c), afim de que se verifique qual dos dois tem razo, Hermgenes

    ou Crtilo.

    Entretanto, o estudo do nomes pela via socrtica est alm de decidir entre uma ou

    outra tese. A posio socrtico-platnica em relao a forma como se dar o exame j est

    clara em sua primeira fala no dilogo. Fazendo uso de um provrbio que diz que difcil

    aprender como so as coisas belas, ", ele menciona

    Prdico de Cos9, que ensinaria algo sobre a correo dos nomes ao preo de cinquenta

    dracmas. No dispondo do valor e talvez de interesse para tal exibio, Scrates prope

    investigar o que ele teria aprendido com a exibio de uma dracma, a verdade acerca da

    correo dos nomes, (384b), desfazendo assim o

    carter antilgico das teorias apresentadas e abrindo via para a formulao de uma nova viso

    sobre o estudo dos nomes que, como acima mencionado, foi estabelecida a partir da

    correlao entre correo e verdade, ambas significando a mesma coisa.

    Quanto afirmao de Crtilo de que o nome dado a Hermgenes no seria o nome de

    Hermgenes, Scrates, por ora, a explica como sendo mera zombaria. O nome Hermgenes

    indicaria uma descendncia divina, cuja origem seria o deus Hermes, divindade

    mitologicamente conhecida por sua relao com o ganho e a riqueza. Hermgenes, em

    contrapartida ao seu rico irmo Clias, tambm citado no dilogo, no teria sido o herdeiro

    dos bens paternos, de onde surgiria, segundo a tese de Crtilo, a impossibilidade de

    denominar-lhe de tal maneira, pois se no existe essa ligao natural entre ele e a divindade,

    9 Conhecemos Prdico de Cos do dilogo Protgoras, onde ele apresentado como um especialista na arte dos sinnimos. Creio que a sua presena no Crtilo no seja gratuita, uma vez que a atividade etimolgica que Plato desenvolver adiante poderia muito bem ser confundida com a atividade sinonmica do primeiro. O fato de Scrates no ter presenciado a sua exibio de cinquenta dracmas mantm um afastamento entre os dois modos de tratar os nomes, um afastamento entre a logomania do primeiro e as analogias propostas pelo outro.

  • 14

    no existiria tambm um vnculo entre ele e seu nome10. A resposta de Scrates visivelmente

    irnica. Na verdade, creio que ela no dirigida a Hermgenes, mas sim a Crtilo, pois, de

    uma forma velada, ela apresenta a primeira etimologia do dilogo, aparentemente com o

    objetivo de amenizar a angstia causada em Hermgenes. No entanto, creio que o objetivo

    real de Plato aqui silenciar momentaneamente os dois debatedores de Scrates, para que se

    inicie o exame dialtico da questo. Primeiramente a Crtilo, a quem Scrates d a pista de

    que desenvolver uma investigao dos nomes cuja naturalidade estar presente, ou seja, se

    far de acordo com os princpios de sua teoria de nomeao, o que lhe permite portar-se

    apenas como ouvinte. Em seguida a Hermgenes, que dever assumir o papel de debatedor,

    mas que no dever, por enquanto, questionar a respeito da formao dos nomes.

    Apesar da proposta de Scrates de investigar a verdade acerca dos nomes como uma

    terceira opo questo, necessrio expor qual o significado de cada uma das duas teses

    apresentadas por seus debatedores. Em teoria, elas aparecem como sendo contrrias; na

    prtica, elas apresentam elementos que as tornam estruturalmente semelhantes: ambas tratam

    da relao nome/coisa e o seu modo de atribuio (natural ou convencional); ambas se

    exemplificam atravs de nomes prprios (os nomes dados aos personagens do dilogo e os

    nomes dados aos escravos), e ambas levam em considerao aquele que nomeia (gregos ou

    brbaros, Scrates, Crtilo ou Hermgenes). O que as diferem, entretanto, so as suas bases:

    uma est centrada no conceito de phsis, natureza; a outra, no conceito de nmos, costume.

    Estes dois termos j se faziam presentes no pensamento grego antigo anterior a Plato.

    O termo phsis, comumente traduzido por natureza, encontra suas primeiras definies

    desde Homero e tambm entre os filsofos pr-socrticos. Deve-se, entretanto, compreender

    que no existem paralelos entre o que hoje se entende por natureza e o que o conceito

    representava na poca. Phsis11 indica aquilo que por si brota e por si cresce, surgindo como

    princpio de tudo, permitindo a compreenso dos seres em diversos aspectos, tanto divinos

    quanto humanos. Assim, as relaes humanas (nas cidades, com os deuses e com o cosmo) era

    explicada com base nesse preceito original, de onde as coisas surgem.

    Quanto ao termo nmos, um dos primeiros sentidos que lhe atribudo o de uso,

    10 Alm dessa relao com os bens materiais, o nome Hermes, por extenso de sentido, significa aquilo que difcil de interpretar, obscuro ou ininteligvel, de onde poderamos deduzir que o comportamento oracular de Crtilo em relao ao nome Hermgenes talvez seja oriundo dessa dificuldade de compreenso.

    11 O termo tambm possui a mesma raiz do verbo , citado anteriormente.

  • 15

    costume, e posteriormente a lei escrita". A oposio entre os dois termos clara: o nmos

    tem algo de convencional, de arbitrrio, e sua arbitrariedade equivale a uma artificialidade,

    que no se mantm da mesma forma, ligada sobretudo ao homem; a phsis, por sua vez, se

    revela como algo imutvel, que independe da influncia humana, agindo de maneira

    autnoma. Esses termos, enfim, so os pilares que sustentam tanto a teoria de nomeao de

    Hermgenes quanto a de Crtilo.

    Retornando ao texto, Hermgenes reformular a sua tese e negar a existncia de uma

    correo natural do nome, afirmando que tal procedimento s possvel por costume e por

    uso dos que o empregam e estabelecem o uso do nome,

    (384d). Sua posio pode ser assim entendida: um falante qualquer, ao

    identificar um objeto, pode selecionar um termo em seu vocabulrio e atribuir-lhe como

    nome. Assim, ele poderia atribuir um nome a um objeto e logo em seguida mud-lo para

    outro, e do mesmo modo Scrates ou qualquer outro homem. Embora sua afirmao seja

    categrica, Hermgenes no parece estar muito confiante nela, pois se mostra disposto a

    aprender e a ouvir, quer com Crtilo, quer com qualquer outro,

    , ' , caso exista um outro

    modo de correo.

    A argumentao conduzida por Scrates tomar outro vis. Para refutar a tese de

    Hermgenes, ele precisa tambm estabelecer algumas bases para a sua exposio:

    primeiramente, deve-se definir o que um nome, que para seu interlocutor aquilo por que

    uma coisa chamada, , ' (385a). Em seguida,

    ele quer saber de Hermgenes se existe algum tipo de variao entre a forma como nomeiam

    um indivduo particular, , ou uma cidade, ; a tese de Hermgenes se mostra

    inconsistente quando ele admite como premissa de sua defesa que qualquer indivduo

    independente da comunidade a qual ele pertence pode modificar a seu bel-prazer o nome

    atribudo a determinado objeto, ou seja, a teoria convencionalista de correo dos nomes foge

    do padro aceitvel pela convencionalidade socrtica dos nomes, de que deve haver uma

    conveno pblica. Scrates refutar tal raciocnio admitindo um relativismo na atribuio

    dos nomes, varivel de indivduo a indivduo e de cidade para cidade, exemplificando-o com

    a maneira de nomear um cavalo ou um homem. Tal argumento poder e ser assimilado

    tese do homem-medida de Protgoras. Entretanto, antes de contest-lo, um outro argumento

    intercalado: a possibilidade do discurso verdadeiro ou falso.

  • 16

    1.2 Primeiro argumento sobre a verdade e a falsidade nos nomes

    O tema do discurso falso e do discurso verdadeiro aparece em trs partes distintas do

    Crtilo. Alm da tratada agora, ele ser apresentado na discusso sobre as etimologias dos

    deuses Hermes e Pan e na argumentao final entre Scrates e Crtilo. Apesar de trat-las

    separadamente, para manter a sequncia da leitura, veremos, em nossa ltima exposio,

    como elas se completam. Em resumo, elas podem ser entendidas assim: de 385b a 385c,

    Scrates definir como se d o reconhecimento do discurso falso e do discurso verdadeiro;

    aps defini-lo, ele recorrer ao mito para exemplific-lo e contextualiz-lo; na ltima

    discusso, uma aparente aporia se revelar, e tentaremos mostrar como as consequncias que

    surgem dela sero importantes para a compreenso do dilogo.

    O trecho onde o tema exposto no trata somente do discurso tomado como um todo,

    , mas tambm de suas partes, 12. O argumento de Scrates baseia na

    possibilidade de se dizer algo verdadeiramente ou falsamente, , ou

    seja, na existncia de um discurso verdadeiro, , e outro falso, .

    Logo, o discurso que diz como so os seres, , seria verdadeiro, e o seu

    contrrio, que diz como eles no so, , falso. O discurso, neste caso, abriria duas

    possibilidades: a primeira, dizer aquilo que , a outra, aquilo que no . O discurso, tomado

    como um todo, segundo Scrates, permite que isso ocorra. No entanto, ele vai alm ao afirmar

    que tambm o nome, por ser a menor parte do discurso, , tambm

    pode ser verdadeiro ou falso. Como uma parte do discurso, verdadeiro ou falso, os nomes

    tambm so enunciados, , ou de modo verdadeiro, ou de modo falso, e passam a ser o

    nome da coisa nomeada uma vez atribudos. At aqui, Hermgenes concorda com toda a linha

    de raciocnio apresentada; entretanto, ela gera algumas dificuldades.

    A primeira delas se refere ao nome que diz a coisa como ela ou como ela no .

    Dizer como o nome descrever o ser nomeado-o de forma verdadeira; o contrrio, dizer

    como ele no , descrev-lo de forma falsa. O nome traria consigo ento a descrio do ser.

    Dessa descrio resulta uma dificuldade ontolgica: fazer com que Hermgenes aceite, como

    ele de fato aceita, que possvel descrever um ser atravs de seu nome, quer ele seja

    verdadeiro ou falso. Se voltarmos ao incio do argumento, onde Scrates havia perguntado

    12 A questo da diviso entre o todo e a parte discutida em detalhes no Teeteto, 204a e ss.

  • 17

    sobre a possibilidade de dizer de maneira verdadeira ou falsa, constataremos que Hermgenes

    est, na realidade, concordando com a possibilidade de dizer o no-ser, aquilo que no . Mas

    no sabemos que a atribuio do ser ao no-ser a possibilidade de dizer aquilo que no

    resolvida por Plato somente no dilogo Sofista, na clebre cena do parricdio?

    Goldschmidt13 resolve assim a questo: o nome, tomado isoladamente, no nem

    verdadeiro, nem falso. somente enunciado no conjunto do discurso, que ele participa da

    verdade e do erro. O argumento do autor explica que somente o discurso, visto como um

    todo, pode ser verdadeiro ou falso14. Mas por que Plato incluiria aqui essa discusso? Creio

    que, de certa forma, essa passagem explica muito o processo que Scrates desenvolver no

    tratamento das etimologias, justificando-o. Os nomes l analisados so descries dos seres,

    ou seja, eles indicam o mundo extralingustico por meio do signo lingustico. Ao

    descrevermos Crtilo no incio do dilogo, chamamos a ateno ao uso que Plato faz do

    pronome demonstrativo que acompanha o seu nome. L o processo era o mesmo, ou seja, para

    indicar algo exterior ao mundo lingustico antes de iniciar-se a discusso sobre os nomes

    Hermgenes, para referir-se a ele, coisa nomeada, faz uso do pronome para indicar o ser

    junto ao nome, que o meio lingustico para indicar algo que lhe exterior. Os nomes, na

    seo etimolgica, so tomados isoladamente, (eles no fazem parte do inicial discutido

    entre Crtilo e Hermgenes, questo que introduzida por Scrates)15 e, embora alguns deles

    possam parecer falsos, eles na verdade no o so, pois apenas podem descrever de um modo

    falso o ser ao qual faz referncia. O autor supracitado, no entanto, no leva em considerao

    essa caracterstica dos nomes, de descrever os seres, o que achamos ser primordial para o

    entendimento do dilogo. A recorrncia ao mito, para explicar a afirmao oracular inicial de

    Crtilo, de que Hermgenes no seria o nome dado a Hermgenes, por exemplo, tornar-se-

    mais clara quando tratarmos das etimologias de Hermes e Pan, pois atravs da descrio

    proposta para os nomes desses deuses, poderemos constatar que o nome atribudo a

    Hermgenes pode realmente descrev-lo de uma maneira falsa.

    13 GOLDSCHMIDT, Victor. Essai sur le Cratyle: Contribuition l'histoire de la pense de Platon. Vrin, Paris, 1940, p.52.

    14 Essa a posio de Plato no Sofista.

    15 Apesar de ignorarmos o contedo prvio discutido entre Crtilo e Hermgenes, creio que podemos afirmar que no se tratava do exame etimolgico dos nomes, pois poderemos verificar a surpresa que algumas anlises causaro em Hermgenes, quando o processo for feito adiante por Plato .

  • 18

    Constatamos, ento, que h uma espcie de justificativa teoria de Crtilo neste

    argumento, relativa sua afirmao de que Hermgenes no seria o nome de Hermgenes.

    Uma vez que h a possibilidade de atribuir um nome a algo de maneira falsa, Crtilo tem

    razo ao afirmar, pelo que vimos, que o nome de Hermgenes no seria correto. Entretanto,

    essa , como veremos, uma justificativa socrtica, pois para Crtilo impossvel existir um

    nome que seja atribudo de maneira falsa. Como este est confinado ao silncio, necessrio

    que ele aguarde a sua vez de falar, para expor aquilo que ele pensa a respeito de tal raciocnio.

    Contudo, podemos entrever, a partir daqui, que a defesa socrtica da correo natural do nome

    ganhar ares platnicos, e no se mostrar to condizente com a formulao inicial de Crtilo.

    1.3 O relativismo de Protgoras

    Admitida a possibilidade do falso e do verdadeiro nos nomes, Hermgenes reforar a

    sua tese partindo do princpio que havia sido anteriormente negado por ele, de que haveria

    uma conveno pblica (385d-e):

    : , , ,

    , , , . [385e]

    [] ,

    , .

    Hermgenes: Eu ao menos, Scrates, no conheo outra correo do nome que esta: cada coisa

    pode ser chamada por mim pelo nome que eu atribui, e por ti por um outro, que tu atribuste. Desse

    modo, [e] tambm vejo, s vezes, cada uma das cidades16 atribuindo nomes distintos s mesmas

    coisas, tanto os gregos diferentemente de outros gregos, quanto estes dos brbaros.

    Scrates estabelecera uma atribuio do nome que deveria ser feita tanto por um

    particular quanto por uma cidade. Seu interlocutor retoma esta premissa, alegando que a

    arbitrariedade do nome pode estar tanto nele quanto em Scrates, na maneira como cada um

    nomeia, e tambm dentre os gregos, que o fazem diferentemente de outros gregos e estes dos

    16 Grifo meu.

  • 19

    brbaros. Hermgenes, para justificar a sua tese e podemos ver aqui outra sutileza platnica

    para fazer com que Scrates continue a refut-lo a conduz para fora dos muros de Atenas,

    talvez por saber que seria impossvel a Scrates saber como seria a forma de nomear entre os

    brbaros, j que ele jamais havia deixado a cidade. A tentativa de exteriorizar os preceitos de

    sua tese ser contestada por Scrates pela via contrria, ou seja, pela interiorizao conceitual

    que ele promover, o que dar incio a refutao da tese de Protgoras.

    A tese protagoriana que diz que o homem a medida de todas as coisas,

    , colocada no Crtilo de maneira um pouco diferente, no

    to completa, como quando colocada no Teeteto (166d). Os seres, se so possuidores de uma

    essncia particular, denunciaria um certo relativismo varivel de indivduo a indivduo, e tal

    como cada um visse a verdade de uma coisa, tal essa verdade apareceria para ele. Hermgenes

    afirma encontrar-se em aporia, , em relao aos dizeres de Protgoras, e Scrates o

    far ver porque. No Crtilo, a tese protagoriana ser explicada a partir da diviso entre

    homens nobres e vis, sensatos e insensatos, e tal como as coisas lhes paream ser, tal elas

    pareceriam (386b). Ora, se a verdade para cada indivduo aquilo que ele pensa que ela ,

    como realmente saber o que a verdade, se os seres no se assemelham a si mesmos, sendo

    uns sensatos e nobres, e outros insensatos e maus?17. De que forma a verdade proferida por um

    insensato to verdadeira quanto quela proferida pelo sensato? Como um nome, proferido

    por quem quer que seja, revelar a verdade da coisa nomeada, se essa muda de homem para

    homem, todos eles afirmando aquilo que lhes parece ser a verdade? Diante dessa

    impossibilidade, necessrio afastar-se dos dizeres de Protgoras para a continuidade da

    investigao.

    Mas Protgoras no ser o nico a ser refutado. A posio sustentada por Eutidemo18, a

    saber, que as coisas so semelhantemente e sempre para todos, tambm ser recusada por

    Hermgenes. Plato no entra em detalhes sobre os dizeres de Eutidemo, nem sobre a sua

    formulao, nem quanto sua refutao, mas a utilizar sobretudo para concluir que as coisas

    possuem uma essncia estvel, (386e), que

    17 Em Protgoras (290), a frmula apresenta uma pequena variao: todas as suas crenas so verdadeiras para voc e todas as minhas crenas so verdadeiras para mim, no importando se eu nomeio um objeto com um nome e outra pessoa com outro nome. No existe, pela tese protagoriana, algum que seja mais sbio do que outro, assim como no h, em nossa passagem, algum que seja mais sensato que outro.

    18 Eutidemo, 293cd e 297e e ss.

  • 20

    independe da imaginao, , dos homens, por possurem, dando crdito a Crtilo,

    uma essncia que por natureza, .

    1.4 Nomes x Essncia: um esboo da Teoria das Formas?

    Para justificar que, longe da opinio dos homens, as coisas possuiriam uma essncia

    estvel, que seria por natureza, Scrates leva o conceito de estabilidade ao campo das aes,

    , ou seja, dentre as mais diversas atividades desenvolvidas pelo homem, a sua

    realizao, , h de ser segundo a natureza, (387a). Os exemplos

    dados so as aes de cortar e queimar. Existiria um modo correto e natural para cortar ou

    queimar cada coisa, e cada coisa deveria ser cortada ou queimada a partir desse modo natural,

    conferindo-lhes um modo eficiente de realizao. Por outro lado, se cortada ou queimada

    contra a natureza, , no desempenharia bem o papel proposto, ou seja, a plena

    realizao de sua funo.

    Assim como o cortar e o queimar so aes que devem ser realizadas de um modo

    natural, tambm h de existir um instrumento que lhe concebido naturalmente, com o qual

    se realizar a ao. O falar, enquanto ao, tambm dever ser realizado de um modo natural,

    e com um instrumento que lhe natural. Assim, a analogia feita tomando o falar como ao

    e, do mesmo modo que para outras atividades, como o tecer ou o furar, existe um instrumento

    com o qual a ao se faz bem para tecer, existe uma lanadeira que separa e distingue os fios

    da trama; para furar, existe um furador deve existir tambm para o falar, um instrumento

    pelo qual a ao realizada. Esse instrumento o nome, , que enquanto instrumento,

    , tambm possuiria uma funo. Mas qual seria a funo do nome enquanto

    instrumento? Segundo Scrates, sua funo distinguir a essncia e ensinar uns aos outros,

    (388c), de maneira

    semelhante lanadeira, que separa os fios da trama, ,

    transformando-o em um instrumento mediador a verdade, atravs do qual possvel discernir

    as coisas que so.

    Qualquer instrumento dever possui algum que faa uso dele; assim como o tecelo

    dever utilizar bem a lanadeira, o nome tambm dever ser bem utilizado por algum. O

    ponto colocado agora por Plato o tema da tecnicidade, ou seja, a maneira de utilizar um

  • 21

    instrumento qualquer deve ser feita por algum capacitado para a tarefa, ou seja, por algum

    que possui a arte, , para bem utiliz-lo. A lanadeira dever ser utilizada por

    um tecelo que, por sua vez, depende do trabalho do carpinteiro, construtor do objeto e

    possuidor da arte, ou tcnica; o usurio do furador depender do trabalho do forjador, aquele

    que far, com arte, o objeto utilizado; da mesma forma, o instrutor, , far bom

    uso do nome, que deve ter sido criado por aquele que possui a arte para tal fim. Mas quem

    aquele que pode ser considerado como o arteso dos nomes e, uma vez tendo-os feito, os

    atribuiu s coisas?

    Diante da ignorncia de Hermgenes em reconhecer quem seria tal artfice, ou

    demiurgo dos nomes, Scrates o indaga se no seria (388e) que nos lhes

    transmitiria, e a resposta de seu interlocutor vem sob a forma de um provvel, .

    No deveramos esperar aqui uma resposta to vacilante, uma vez que sabemos que

    o pilar da tese convencionalista por ele defendida. O que Plato faz nessa passagem jogar

    com os dois significados de , que ora pode ser compreendido por lei, ora por

    costume. Neste trecho, creio que esteja em questo o primeiro sentido, o de lei, pois, do

    contrrio, se pensarmos que o que ele tem em mente o significado costume, a resposta de

    Hermgenes no seria marcada pela indeciso, uma vez que esta a posio que ele vem

    defendendo desde o incio do dilogo. Devemos compreender que a traduo correta para

    nesta fala de Scrates , portanto, a lei, pois aqui que ele introduz o legislador dos

    nomes, , que se confunde agora com a funo do arteso. Em resumo, o

    argumento pode ser assim esquematizado:

    AO (tecer, falar) INSTRUMENTO (lanadeira, nome) USURIO (tecelo, instrutor)

    ARTESO (carpinteiro, ).

    Uma vez que cada instrumento concebido por natureza para a fabricao de cada

    objeto, tambm o nome dever ser concebido por natureza para nomear as coisas. De onde se

    tira tal concluso? em torno da forma do nome, , que gira a

    argumentao. Se aquele que cria qualquer instrumento contempla a forma em si do

    instrumento fabricado, por exemplo, a lanadeira em si, , ser a partir

    dessa forma que ele criar um outro instrumento caso esse se quebre. Assim, mantendo a

    analogia, o legislador dos nomes dever contemplar aquilo que o nome em si,

    , e a partir dessa forma, criar os outros nomes.

  • 22

    Esse argumento tem sido muitas vezes apresentado como um esboo da Teoria das

    Formas desenvolvida em Repblica19. Entretanto, Plato ir alm de reconhecer apenas o

    criador dos nomes, indo de encontro tambm quele que faz uso deles. O conhecedor da

    forma adequada de cada objeto, tanto em territrio helnico, quanto entre os brbaros, o seu

    usurio. Assim como no caso do fabricante de liras, cujo conhecedor da forma adequada que

    lhe foi colocada o citarista, aquele que tambm saber qual a forma adequada de um leme

    produzido por um carpinteiro ser o seu usurio, o piloto; da mesma maneira, aquele que

    saber quem far bom uso do nome, criado pelo legislador, ser aquele que melhor far uso

    dele, usurio que Scrates nos apresenta como sendo o homem que hbil em perguntar e

    responder, , ou seja, o homem dialtico,

    (390c). Ora, ao afirmar que o melhor usurio dos nomes o dialtico, Plato,

    primeiramente, limita o bom uso deles queles que o utilizam em busca da verdade, excluindo

    todos aqueles que, como os sofistas, os empregam com o fim de persuadir o ouvinte a aceitar

    aquilo que eles consideram como sendo verdade; em segundo lugar, podemos ver neste trecho

    a importncia que Plato d ao uso das palavras, pois a partir delas, enquanto instrumentos,

    que surge a possibilidade do exame dialtico.

    Alm da relao criador/usurio, Plato destaca tambm o tipo de material empregado

    por cada arteso na elaborao de seu instrumento. Assim como o tipo de madeira empregado

    pelo carpinteiro para a confeco de uma lanadeira no ser importante, pois o que est em

    questo o modo como instrumento ser produzido e utilizado, a atribuio do nome tambm

    no levar em conta as letras e as slabas, , utilizadas em sua

    composio, pois o que deve prevalecer a forma primeira, aquela contemplada por seu

    criador.

    A partir de tais analogias, Scrates concluir que a criao e atribuio do nome,

    (390d), no pode ser assunto para qualquer um, nem para homens

    desprezveis, nem para quem calha, ,20 mas para

    aquele que conhece a forma natural de conceb-los e atribui-los s coisas, dando razo a

    19 Sigo aqui a leitura proposta por Luce, The theory of ideas in the Cratylus, onde ele compara essa passagem do Crtilo, da lanadeira em si, com a definio de a cama em si, e mesa em si em Repblica, 596b.

    20 Ora, se a atribuio do nome no pode ocorrer por acaso, no pode ser feita de modo arbitrrio, podemos dizer que a fraca teoria convencionalista de Hermgenes nessa foi refutada em quase sua totalidade por Plato.

  • 23

    Crtilo, que sustenta a tese da naturalidade existente entre o nome e as coisas nomeadas. Essa

    concordncia, como veremos, apenas aparente, pois o que Scrates est fazendo refutar a

    tese convencionalista de Hermgenes, e no defender explicitamente a tese naturalista de

    Crtilo que, como vimos, deve permanecer em silncio durante a exposio. Se esse deve, por

    um lado, silenciar-se, Hermgenes pede para que ele sim seja persuadido por Scrates, sob a

    condio de que este lhe mostre o que vem a ser a correo natural de um nome.

    Temos, nessa primeira parte do dilogo, as bases para a discusso que se seguir:

    sabemos quais so as teses defendidas por cada um dos interlocutores de Scrates, j podemos

    entrever qual ser a sua posio frente a eles, mas uma questo, aquela inicial do dilogo, que

    tanto incomoda Hermgenes, a de que Scrates lhe revele no que consiste a formulao

    oracular de seu nome, esta ainda no nos foi revelada. Ser a partir da anlises etimolgicas

    que Scrates mostrar, tambm de maneira oracular, como se (de)compem os nomes gregos

    em diversas reas do conhecimento.

  • 24

    II

    Sobre etimologias, ou o orculo de Scrates

    (391d - 427c)

    Quem de palavras tem experincia sabe que delas se deve esperar de tudo

    Jos Saramago

    Variadas so as interpretaes concernentes grande parte central do dilogo,

    destinada s anlises etimolgicas, assim como so variados os temas ali tratados. O motivo

    desta controvrsia repousa sobretudo no impasse gerado por seu carter enigmtico. Scrates,

    para decifrar o orculo de Crtilo, prope um novo orculo, um enigma que tem desafiado os

    comentadores e tradutores do dilogo. Embora muitas respostas tenham sido dadas para a

    questo saber qual era o objetivo de Plato ao escrev-la ela permanece em aberto. As

    hipteses j levantadas so inmeras, e as principais podem ser assim resumidas: alguns

    tentam demonstrar que Plato, de uma forma velada, ataca a doutrina de um determinado

    filsofo; outros, alegando que Plato teria forjado uma grande parte das etimologias,

    apresentaria nessa seo um esquema fantasioso, pois, por no encontrarem paralelos nos

    estudos de filologia clssica ou de lingustica histrica, considerariam o excurso como

    desnecessrio para compreenso do dilogo, tornando-se objeto por eles ignorado, sobretudo

    queles da chamada escola analtica. Alm desses21, h os que creem que ela pode ser vista

    como uma grande enciclopdia, onde so discutidas noes religiosas e morais; h ainda

    aqueles que afirmam existir entre as etimologias algum dogma secreto cujo contedo real

    estaria confinado aos frequentadores da Academia.

    Afirmar que Plato ataca veladamente algum filsofo no me parece ser condizente

    nem com sua personalidade, nem como seu modo de exposio, uma vez que seus alvos

    aparecem sempre nomeados. No Crtilo, por exemplo, Prdico, Protgoras, Eutidemo,

    21 Entre os que consideram que as etimologias no possuem qualquer significado filosfico cf. KAHN, Charles H. Les mots et les forms dans le Cratyle de Platon. In: Philosophie et Grammaire dans l'Antiquit. (org. Henri Joly). Bruxelles: OUSIA, 1986. Quanto defesa de que elas, ao contrrio, podem ser interpretadas filosoficamente, ou possuem um carter enciclopdico, cf. SEDLEY, David. Plato's Cratylus. Cambridge Studies in the Dialogues of Plato. Cambridge, 2003 e GOLDSCHMIDT, Victor. Essai sur le Cratyle: Contribuition l'histoire de la pense de Platon. Vrin, Paris, 1940, respectivamente.

  • 25

    Anaxgoras e Herclito ou os seguidores de suas doutrinas no momento da crtica, nos so

    apresentados por seus nomes. Ora, se Plato no se mostra parcimonioso no uso de seus

    nomes, por que haveria de faz-lo em relao a outros?

    Sabemos tambm que a anlise dessa parte do dilogo sob a luz da cincia lingustica

    pouco tem acrescido para a sua elucidao. Tomar o termo etimologia, tal como praticado

    por Scrates, por aquilo que entendemos como etimologia tambm um caminho perigoso.

    Hoje, etimologizar significa buscar o significado e o sentido de uma palavra ou um nome

    recorrendo a uma linha evolutiva do termo, propondo paralelos com a lngua que seria aquela

    de sua origem. Assim, para examinar a etimologia de uma palavra em portugus, por exemplo,

    o etimlogo deve buscar a sua origem remontando-a ao latim, ao grego, ou a outras lnguas

    que compem o nosso vernculo. Esse procedimento no , de forma alguma, o que Plato

    est fazendo em seu dilogo; alis, a palavra etimologia no aparece em nenhum momento

    no Crtilo, pois, se aparecesse, e a interpretssemos por seu significado atual, o filsofo, na

    verdade, haveria de escrever um tratado sobre o indo-europeu, tronco lingustico que

    remontaria origem do grego. Assim, por falta de um termo condizente com a investigao

    praticada por Scrates, que abusaremos do uso do termo etimologia neste estudo, seguindo

    as ressalvas acima.

    A interpretao que diz que as etimologias consistiriam em uma grande enciclopdia

    parece ser mais aceitvel. Plato, ao analisar um nmero considervel de nomes, que

    abrangem diversos campos do conhecimento, do mitolgico ao cosmolgico, do moral ao

    tico, esgota as possibilidades existentes de nomeao em diversos nveis, revelando ao leitor

    do dilogo questionamentos da sociedade grega da poca. Saber se era esse ou no o seu

    objetivo, enquanto filsofo, parece ser mais difcil. Quanto outra, que diz que a seo traria

    consigo algum dogma secreto, restrito aos frequentadores da Academia, deve ser considerada

    como mera especulao, pois se realmente existia algo que se confinava aos limites do circulo

    dos seus frequentadores, ele l jaz.

    Embora essa seja a principal discusso entre os comentadores, e as opinies dadas por

    eles sejam to discrepantes, to diferenciadas uma das outras, antes de analis-las, acredito

    que devemos tentar responder uma outra questo que parece ser to central quanto saber qual

    o objetivo de Plato ao descrev-las no Crtilo. Qual o significado que tem para Plato esse

    etimologizar, esse arguto trabalho de dissecar uma palavra, atingindo s vezes as suas

    unidades mnimas, constatando que elas tambm podem ser plenas de significados?

  • 26

    Creio que tudo o que foi escrito por Plato possua algo que devemos ter como

    filosfico. Todos os dilogos, inclusive aqueles onde ele recorre ao mito a favor de sua

    argumentao, esto indubitavelmente relacionados ao seu pensamento e ao seu filosofar.

    Interpretando a passagem dessa forma, devemos estabelecer o que h de filosfico no estudo

    dos nomes. Se observarmos o dilogo desde seu incio, constataremos que o par mobilidade

    estabilidade se encontra explicita ou implicitamente em todo o texto. As coisas, como disse

    Scrates anteriormente, devem possuir uma essncia estvel. Entretanto, a anlise etimolgica

    nos mostrar que muito daquilo que se apresenta nos nomes est impregnado de movimento e

    fluxo. O representante maior da teoria do fluxo que conhecemos Herclito, e Crtilo, como

    vimos, teria sido um seguidor extremado de suas doutrinas; assim, nada mais cmodo para

    Plato do que refutar a tese convencionalista de Hermgenes fazendo uso da teoria da

    mobilidade dos seres de Herclito. Desse modo, a meu ver, se existe algum que certamente

    podemos dizer que exerce o papel de alvo de Plato no dilogo, esse Herclito, e isso no

    apenas pela ligao histrica que existiria entre ele e Crtilo, mas tambm pelo fato de que o

    que est em jogo no dilogo principalmente o estabelecimento das noes de movimento e

    repouso nos nomes, tanto na forma de conceb-los, como na forma de conhecer os seres

    atravs deles.

    Por isso, o estudo dessa parte do dilogo se far em duas vias: a primeira ser, quando

    possvel, recorrer a passagens da literatura grega, como forma de justificar que a prtica da

    etimologia no pode ser considerada fantasiosa ou somente como uma criao platnica sem

    fim determinado. A outra, evidenciar a oposio entre movimento e estabilidade,

    verificando quais suas consequncias lgicas, ontolgicas e gnoseolgicas para a

    compreenso do dilogo.

    Para nossa anlise, tomaremos os significados existentes para o termo timo, como

    base para a formao de uma palavra, que pode fazer uso de uma forma mais antiga do grego,

    de outro dialeto grego ou de outra lngua, da qual a forma recente, apresentada por Scrates,

    se originou; em outros termos, veremos que Plato acrescentar ao radical das palavras

    prefixos, infixos e sufixos, para dar origem a uma forma hipottica, ou como descrita nos

    dicionrios, forjada pelo filsofo; outras vezes, veremos que apenas a aproximao fontica

    dos termos ser suficiente para que deles surja o significado pretendido por Plato. O uso

    dessas formas hipotticas, que muitas vezes tem sido criticado pelos comentadores do

    dilogo, pois por serem inventadas estariam longe de possuir qualquer significado filosfico,

  • 27

    no deve, acredito, ser considerado invlido, pois fazer uso de uma forma hipottica na prtica

    etimolgica, para explicar uma forma no hipottica, era um recurso utilizado na Antiguidade

    como forma de conceber a verdade do nome. Dessa forma, a leitura que proponho para as

    etimologias pretende abranger, como dissemos acima, trs nveis: a partir dos nomes

    analisados no Crtilo, nosso objetivo ser produzir uma apreciao lgica (relao

    nome/coisa nomeada), ontolgica (os nomes possuem ou no a mesma essncia estvel que os

    seres que nomeiam) e gnoseolgica (possibilidade de se conhecer os seres atravs de seus

    nomes).

    Voltando ao dilogo, vemos que a continuao do exame se faz diante da insistncia de

    Hermgenes em querer saber o que Scrates entende por correo natural dos nomes. A

    soluo que lhe ser proposta que este faa como o seu rico irmo Clias, e v aprender tal

    assunto com os sofistas, pagando-lhes dinheiro e rendendo-lhes graas. O pedido, entretanto,

    mostra absurdo a Hermgenes, j que a sugesto socrtica o faz lembrar tanto de sua j

    descrita condio financeira, como da desconfiana que ele possua face s doutrinas

    proferidas pelos sofistas. Diante da impossibilidade financeira de seu interlocutor, Scrates

    lhe sugerir tomar Homero e outros poetas como guias para a descoberta da correo dos

    nomes, afirmando ser esse o meio de investigao mais correto.

    2.1 Etimo[mito]logias (391d - 401a)

    Recorrer a Homero e a outros poetas do perodo arcaico grego sobretudo fazer uso

    do que eles prprios tinham como fonte para a composio de seus poemas; recorrer a

    Homero no seno recorrer ao mito, essas narrativas heroicas que encarnam, sob a forma

    de um relato simblico, aspectos reais da condio humana22.

    J se verifica o uso de etimologias em Homero e Hesodo, talvez como algo requerido

    pelo poeta e exigido pelo aedo como parte de um processo mnemnico, onde o jogo de

    palavras com sonoridades semelhantes poderia fazer parte de um estoque de frmulas, tal

    como os eptetos, para conduzir a narrao do poema. Citemos, como exemplo, algumas

    ocorrncias desses jogos de palavras tanto em um quanto em outro poeta:

    22 Ou, como nos diz Monique Dixsaut em seu artigo La racionalit projete l'origine, ou: de l'tymologie o recurso ao mito trata-se de uma 'boa persuaso', um suplemento necessrio queles que nada sabem

  • 28

    ...

    ; , ;"

    no te era grato Odisseu,

    quando na ampla Troia te sacrificava vtimas junto

    s naus Argivas? Por que o odeia tanto, Zeus?

    Odisseia, I, 60-62.

    ,

    , '

    ...

    O mensageiro dos deuses a ps, e a esta mulher nomeou

    Pandora, porque todos os que tem Olmpia morada

    deram-lhe um dom...

    Os trabalhos e os dias, 80-82

    ,

    , .

    O pai com o apelido de Tits apelidou-os:

    o grande Cu vituperando filhos que gerou

    dizia terem feito, na altiva estultcia,

    gr obra de que castigo teriam no porvir23.

    Teogonia, 207-210

    Nos exemplos acima, os poetas fazem uso da repetio de uma slaba, semelhante ao

    tema central do verso, afim de que o leitor ou ouvinte, uma vez que tratamos de poesia oral

    se voltasse ao que era primordial no verso, chamando a ateno aos jogos com palavras de

    23 Todas as passagens da Teogonia citadas neste estudo se referem traduo de Jaa Torrano. Grifos meus.

  • 29

    sonoridade ou origem semelhantes, para apresentar caractersticas dos personagens descritos,

    afim de nomear-lhes. Embora este seja tambm o mtodo empregado muitas vezes por Plato

    no Crtilo, ressaltemos que nosso objetivo aqui no portar-se como fillogos, analisando

    morfologicamente cada palavra, mas verificar que o procedimento adotado pelo filsofo no

    dilogo no est distante daquele praticado pelos poetas, o que nos leva a concluir que o uso

    de etimologias, atestado na literatura grega, era um procedimento comum, que revela a

    habilidade daquele que as emprega como um recurso estilstico vivel.

    Antes de entrar no modo especfico de anlise, Plato distingue dois modos distintos

    de nomeao: aquele feito pelos deuses e o feito pelos homens. Os exemplos retirados da

    Ilada so os nomes dados a um rio, denominado pelos deuses Xanto e pelos homens

    Escamandro24; os outros dois se referem a um determinado tipo de pssaro e a uma colina25,

    e Scrates deixa claro que cabe primeira forma de nomeao o modo correto de nomear.

    Conhecemos as reservas que Scrates tem em falar dos deuses, pois o processo que lhe fora

    movido tinha entre as acusaes a introduo de novos deuses na cidade e o no respeito os

    deuses locais e, talvez por isso, a forma divina de nomear seja grande demais para ser por ele

    investigada, o que o leva a recorrer a nomes mais humanos, , ou seja, os

    nomes dados ao filho de Heitor na Ilada, nomes ligados ao domnio da opinio e, portanto,

    mais prximos dos homens. Assim, ser pela investigao desses dois termos que se iniciar o

    exame etimolgico propriamente dito.

    Os dois nomes analisados so, a saber, Astanax e Escamndrio (392d). Conhecer qual

    dos nomes o correto segue agora um critrio diferente daquele empregado anteriormente: se

    antes a questo foi colocada na dicotomia nomear humano e nomear divino, o par aqui

    analisado posto em termos que se distinguem dentro de uma sociedade, ou seja, a relao

    homem/mulher. Segundo Scrates, os homens descritos nos poemas homricos seriam mais

    sensatos, , que as mulheres, e por isso, por serem mais sbios, ,

    nomeariam corretamente o menino de Astanax ao invs de Escamndrio. Aqui, a opinio de

    Homero que levada em conta, e antes de explicar como isso ocorre, Scrates testar seu

    interlocutor indagando-o se ele recorda-se onde encontram-se, no texto homrico, os versos

    aos quais faz referncia, sem cit-los no dilogo. Plato provavelmente os conhecia de cor e,

    24 Para as diferenas entre esses nomes cf. Aristteles, Histria dos animais, III, 12 519a 11-19 e IX, 12 615b 8-11, respectivamente.

    25 Ilada II, 814 e ss.

  • 30

    contando com a ingenuidade do interlocutor de Scrates, promoveu a inverso deles em sua

    explicao, de acordo com os seu propsitos. Ora, como podemos verificar na prpria Ilada,

    Heitor quem nomeia o menino por Escamndrio e no uma mulher:

    ,

    .

    a quem Heitor chamava Escamandrio, enquanto os demais

    Astanax, pois somente por Heitor se salvava lio.

    Ilada VI, v.402-403

    Mas saber o motivo de usar um nome ao invs de outro parece ainda fora do alcance

    de compreenso de Scrates e Hermgenes. Contudo, alegando ter sido o prprio Homero

    quem atribura tais nomes, para dar seguimento ao exame, Scrates analisa o nome de Heitor

    (393a), e sua etimologia indicar uma relao de igualdade entre ele e seu filho, expressa

    atravs de seus nomes. Heitor, , possui em sua raiz o verbo , que em grego

    significa ter, ou seja, Heitor aquele que possui ou detm a cidade, em contrapartida a

    Atanax, , composto das palavras gregas , senhor, e , cidade, que

    faria dele, assim como o pai, o senhor da cidade. Trata-se aqui de diferenciar duas formas

    de nomeao, que Goldschmidt chama de gerao natural, quando o descendente apresenta

    caractersticas semelhantes ao genitor, em oposio a uma gerao no natural, onde o

    resultado da gerao, ou seja, a descendncia, no apresenta caractersticas comuns ao genitor.

    O processo exemplificado assim no dilogo: um animal qualquer, por exemplo um leo ou

    um cavalo, deve necessariamente gerar descendentes que se assemelhem a eles e, por outro

    lado, se descendesse de um cavalo aquilo que naturalmente seria o rebento de um boi, o

    resultado seria uma forma monstruosa. Plato quer, com esse argumento, justificar a

    existncia de uma certa naturalidade nos nomes, de modo que, se o resultado de uma gerao

    natural produzir descendentes semelhantes, o nome dado ao filho de Heitor est correto,

    uma vez que se assemelham. Embora no possuam exatamente as mesmas letras, o que vimos

    ser desnecessrio para o legislador produzir os nomes, a revelao da essncia do ser

    nomeado se faz atravs de seus nomes, e ambos, Astanax e Heitor, significam o mesmo,

    indicando o papel que cada indivduo desempenha dentro de um contexto social ou familiar,

  • 31

    como uma das categorias existentes para justificar o uso do mtodo etimolgico no Crtilo,

    sobretudo no que diz respeito aos nomes prprios.26

    Scrates dar continuidade a anlise tendo em vista agora a casa dos atridas. O

    primeiro nome analisado o dado a Orestes, (394e), nome atribudo corretamente,

    , quer tenha sido dado ao acaso, quer tenha lhe atribudo algum poeta. A origem deste

    nome aquele habita as montanhas, o alpestre, , que revela a brutalidade e o carter

    selvagem de seu possuidor, trocadilho que Plato faz com as trs primeiras letras de seu

    nome. Seguindo as categorias propostas por Levin, o nome de Orestes revelaria uma

    caracterstica individual, expressa sob a forma de um estado emocional do indivduo.

    O nome dado ao pai de Orestes tambm revela a sua natureza. Agammnon,

    (395a), admirvel, , por sua permanncia, , durante os dez

    anos de campanha frente aos muros de Troia, revelador, de acordo com a autora, de uma

    habilidade ou capacidade relacionada a uma ao onde o indivduo nomeado toma parte. O

    nome Atreu, por outro lado, que planejou coisas desastrosas, , contra Tiestes, no

    revela em sua totalidade a natureza de seu possuidor, pois o seu sentido est encoberto,

    , mas queles que conhecem os nomes, o modo que Plato o caracteriza, a

    saber, por sua obstinao inflexvel, audcia e desastroso (, e ,

    respectivamente), suficiente para deduzir que o nome que lhe foi colocado corretamente. A

    mesma correo se aplica tambm aos nomes dados a Tntalo e Plops. Quanto ao primeiro,

    seu nome viria daquele que mais suporta males, , cujo mito nos narra que ele se

    encontra no Hades, onde uma pedra pesa, , sobre sua cabea. O segundo, por ver

    somente o imediato, derivado da raiz do verbo ver, presente na ltima slaba do nome ops

    possuiria tambm um nome correto. O exame desses primeiros nomes revelou, em parte, uma

    relao lgica entre o nome e a coisa nomeada. Entretanto, como dissemos acima, Plato nos

    mostrar que alm deste vnculo, outros dois podem estar presentes nos nomes, um ontolgico

    e outro gnoseolgico, que veremos, se tornar mais frequente nos outros nomes analisados.

    Por isso, Scrates deixa de lado a anlise dos nomes mitolgicos, ao menos os nomes prprios

    atribudos aos heris gregos, para continuar o exame tendo em vista a genealogia hesidica,

    investigando os nomes dados a Zeus, Cronos e Urano.

    26 Sigo, para a anlise dos nomes prprios, as categorias propostas por Susan Levin, Greek conceptions of naming: three forms of appropriateness in Plato and the literary tradition. Classical Philology, v. 92, n. 1, 1997, p. 46-57.

  • 32

    Zeus, Cronos e Urano

    A leitura proposta para as etimologias pretende preencher, como dissemos, o quesito

    lgico-ontolgico-gnoseolgico presente nos nomes. Nos antroponmicos analisados

    anteriormente, a relao lgica prevaleceu, ou seja, dos nomes extrados do contexto

    mitolgico-literrio, verificamos que a relao nome/coisa nomeada revelou, em certa

    medida, a natureza de seus possuidores. Veremos, a partir daqui, como se desenvolvem

    tambm os outros dois itens propostos e, a medida que avanarmos, como eles se fazem

    presentes para a compreenso do valor filosfico das etimologias.

    O nome de Zeus (396a), primeiramente, ser visto como um , uma pequena

    sentena que pode ser dividida em duas partes, e 27. Essas duas formas,

    declinadas no acusativo grego do nome divino, revelariam a sua natureza.

    aproximado do substantivo , vida, enquanto homgrafo para a preposio grega

    , atravs; logo, Zeus aquele atravs do qual, ' , todos os que vivem obtm a

    vida, . A relao de causalidade entre Zeus e os demais seres relatada em outras

    passagens da literatura grega, das quais tomamos duas, guisa de exemplo:

    , ' , '

    ,

    ' .

    Musas Pirias, que gloriais com vossos cantos,

    vinde! Dizei Zeus vosso pai hineando.

    Por ele mortais igualmente desafamados e afamados

    notos e ignotos so, por graa do grande Zeus.

    Os trabalhos e os dias, 1-4

    27 Um , como vimos, formado por sua partes, os nomes.

  • 33

    Foi Zeus,

    que tudo faz e causa tudo,

    pois nada acontece aos mortais sem Zeus.

    squilo, Agammnon 1485-1487

    Assim como para o pai de Orestes houve um nome atribudo corretamente, tambm

    para o genitor de Zeus haveria um nome revelador no somente de sua natureza, mas tambm

    de sua origem. A genealogia prossegue de forma inversa hesidica, de filho para pai: Zeus

    fruto de uma grande inteligncia, , palavra formada a partir de nous pensamento,

    inteligncia e da mesma preposio vista acima, . Aqui, como nos versos de Hesodo, o

    exame se faz sobretudo pela semelhana existente entre a pronncia28 das palavras. Assim, o

    nome de Cronos ser decodificado a partir de dois termos onde a mudana do acento os

    diferenciar, embora saibamos o uso dos acentos nos textos gregos posterior poca na qual

    os dilogos foram escritos.

    Cronos, nos diz Scrates, no tem o significado de criana, , mas de um adjetivo

    que por si puro e no admite mistura acentuado na ltima slaba, revelador de sua

    natureza divina, a inteligncia sem mistura, pura,

    (396b).

    Este filho do cu, , de onde os que estudam as coisas celestes, ,

    julgariam o nome como correto. No somente os estudiosos das coisas celestes, mas tambm

    os que contemplam as coisas de cima, , compem o nome analisado (396c).

    Plato, em relao aos usurios dos nomes que relatam um conhecimento especfico, tambm

    os denominar com um termo especfico, como para esta etimologia, onde os que tratam de

    tais assuntos so chamados .

    Os trs nomes analisados, por fazerem referncia a deuses, e portanto entidades

    28 Apesar de utilizarmos o termo pronncia, devemos ter em mente que aquilo que sabemos sobre a forma como o grego clssico era falado mera conjectura, pois o seu registro se limita ao campo da escrita. Entretanto, tal emprego pode ser justificado pela prpria fala de Scrates ao explicar o termo.

  • 34

    estveis, preencheram os quesitos propostos: h uma relao lgica entre a maneira como so

    descritos e os nomes que lhes so atribudos, ou seja, verifica-se em seus nomes uma

    identidade formal entre a representao do ser e a maneira como ele denominado; por serem

    eternos, possuem um estabilidade em seu ser, ou seja, uma essncia imutvel, livre da ideia de

    mobilidade e, por suas descries, podemos (re)conhecer-lhes como as divindades que so.

    Onomatomancia, ou a inspirao de utifron

    Ao justificar as etimologias precedentes, Plato recorrera ao mito, tal como descrito

    nos versos de Homero, de Hesodo e nas tragdias. Como ainda so muitos os nomes a serem

    analisados, ele busca uma outra fonte para cumprir tal tarefa, e faz com que Scrates nos

    informe a necessidade de pr a prova uma sabedoria que lhe surge repentinamente, sem que

    ele saiba a sua origem. A reposta de Hermgenes, ao perceber a mudana de tom de seu

    interlocutor, ser afirmar que, tal como os inspirados, , Scrates se pe a

    proferir orculos.

    Sabemos por outros dilogos que a inspirao divina um recurso utilizado por Plato

    para manter um afastamento necessrio de Scrates da questo tratada, como para justificar

    algo no condizente com o mtodo dialtico. Em sua fala final, Scrates admite ser necessrio

    fazer uso desta inspirao divina para a anlise dos nomes restantes, embora deixe que se deva

    expurg-la posteriormente, seja com um sacerdote ou com um sofista (396e 397a).

    A interveno de utifron, responsvel por essa inspirao que enchera os ouvidos e

    alma de Scrates em algum momento anterior ao dilogo, uma das mais peculiares do

    dilogo. Por que introduzir aqui um personagem que aparentemente est distante da questo

    discutida? Qual o seu verdadeiro papel no dilogo, uma vez que em diversos momentos

    Scrates alega ser ele o causador dos desdobramentos etimolgicos praticados?

    Conhecemos utifron do dilogo homnimo que pe em cena o adivinho e Scrates a

    conversarem frente ao prtico dos reis, no momento em que ele toma conhecimento da

    acusao que lhe feita, conversa cujo objetivo descobrir o que a piedade. Uma vez que os

    temas discutidos nos dois dilogos no possuem qualquer relao, a discusso entre os

    comentadores de ordem cronolgica. Scrates, ao dizer que passara a manh conversando

    com o adivinho, nos autoriza a dizer que o Crtilo foi escrito por Plato imediatamente aps o

  • 35

    utifron? A resposta tende a ser negativa. Acreditamos que Plato faz uso aqui de tal episdio

    apenas para justificar a presena do adivinho no dilogo, e se seu objetivo apresentar-nos um

    Scrates oracular, nada mais conveniente ao filsofo que introduzir a figura de um

    vaticinador.

    Entretanto, fazer uso desta inspirao divina para descobrir a verdade em relao aos

    nomes possui uma limitao imposta pelo prprio Scrates. Como um alerta, o entusiasmo de

    utifron ser utilizado somente naquele dia, e apenas durante a investigao etimolgica, uma

    vez que no dia seguinte haver a necessidade de procurar aquele que capaz de realizar uma

    purificao, seja ele um sacerdote ou um sofista, sendo este ltimo aquele que Plato, no

    Sofista, 227 e ss., define como um purificador de opinies, que justamente o domnio em

    que se encontram as etimologias.

    Esse entusiasmo provocado por utifron e seus seguidores, veremos, estar presente

    em diversas partes da seo que agora examinamos, tendo fim somente em 428d, quando

    Scrates parece retomar a sua posio questionadora habitual, livre da mediao do adivinho,

    que parece agora o domin-lo. Por isso, cremos que essa investigao onomstica, pelo vis

    mntico, justifique o que acima afirmamos, de que Scrates, para explicar o orculo de

    Crtilo, recorre ao mesmo expediente, ou seja, a produo de orculos, mas se aproveita da

    figura do adivinho para no comprometer o exame dialtico.

    Deuses, Numes, Homens e Heris

    A hierarquia deuses, numes, heris e homens organiza no Crtilo em funo do

    destino que dado a cada um deles: dos deuses imortais aos numes, imortais porque so

    sempre; dos heris identificados aos semi-deuses, que gozam de um destino particular, e

    finalmente os homens, que cientes de sua condio mortal, faz com que Scrates creia que ele

    os demais homens fazem parte de uma raa de ferro tendo o Hades como destino29.

    Os deuses, (397c), so analisados a partir do que os antigos, apresentados como

    astrotelogos, consideravam como deuses e, segundo Scrates, ainda permanecem como

    29 A sequncia apresentada a mesma que vemos tratada no mito das raas em Hesodo e tambm em Repblica III, 392a.

  • 36

    divindades cultuais de alguns brbaros, associadas ao deslocamento que o sol, a lua, a terra e

    os astros fazem ao cruzar o cu, correndo, . evidente aqui a associao entre o nome

    deuses e a ideia de mobilidade. Entretanto, dela surge um paradoxo, pois, se as divindades

    so aquelas que por excelncia apresentam o que h de mais estvel, como associ-las

    diretamente ideia de mobilidade? Creio que o que subjaz nessa definio de ordem

    gnoseolgica. Scrates afirma em diversas passagens sua ignorncia acerca das divindades, e

    que conhec-las, a si mesmas ou as formas pelas quais se chamam, s se realiza quando se

    leva em considerao a opinio dos homens, ou seja, aquilo que existe de mais instvel. Ora,

    se so os brbaros que assim as nomeiam e tambm os gregos, visto que tratamos de

    associar o nome, e no a coisa nomeada, ao conceito de mobilidade plenamente justificvel,

    pois nos parece que as divindades esto fora do alcance da compreenso humana. O objetivo

    de Plato , recordemos, ver o que h de instvel nos nomes dados aos seres, e no nos seres,

    pois sabemos que estes ho de ter uma essncia estvel.

    Assim como recorrera a Homero para a explicao dos nomes prprios, ser a vez de

    Hesodo tornar-se o responsvel pela investigao do termo numes, (397e). Antes

    de analis-lo, uma ressalva em relao ao manuscrito deve ser feita. A fala de Hermgenes

    traz entre colchetes a sequncia de nomes a ser investigada, proposta pela edio utilizada em

    nossa traduo:

    [ ] .

    evidente que [os numes, os heris e os homens] os numes.

    Para melhor entendimento do texto, creio que o ltimo de sua fala est a

    colocado erroneamente, pois ele deve ser entendido como uma rplica de Scrates sugesto

    de anlise de Hermgenes. Logo, a passagem, na fala de Scrates em 397e, deve ser lida da

    seguinte maneira:

    ; , , ;

    Os numes? O que afinal poder significar, verdadeiramente, Hermgenes, o nome numes?30

    Feita esta importante ressalva textual, voltemos ao seu exame. Scrates descreve a

    30 Essa a verso utilizada por Louis Mridier, para a traduo francesa do dilogo.

  • 37

    origem da palavra numes, associando-a sabedoria, , de onde teria surgido o

    termo , referncia feita por Scrates a uma ocorrncia do termo mais antiga que a

    utilizada agora, verificada na mudana do para . Recorrendo a Hesodo para justific-la,

    Plato cita seus versos, com uma pequena alterao:

    Os trabalhos e os dias, 121-123 Crtilo, 398a

    ' , ,

    ,

    , , , ,

    Em seguida, quando a terra a esta raa cobriu Em seguida, quando o destino a esta raa cobriu

    so chamados numes sagrados epictnios, so chamados numes sagrados epictnios,

    nobres, repele males, guardies dos homens mortais nobres, repele males, guardies dos homens mortais

    Os versos hesidicos, que descrevem o mito das raas, so explicados por Scrates por

    colocarem em polos opostos os constituintes da categoria agora descrita, distante um dos

    outros pela correspondncia metlica que os caracterizam, a saber, de um lado os que

    pertencem raa de ouro, boa e bela, agrupando portanto os portadores de uma virtude

    inerente ao deuses, inalcanvel aos homens; do outro lado os homens, indcio para Scrates

    que ele deve pertencer a raa de ferro, por distanciar-se do par virtuoso bom/ belo. Alm

    disso, Scrates estende a etimologia de numes, entendidos como sbios, ao destino do homem

    bom aps a sua morte, pois este, graas quilo que o caracterizou durante a vida, pode tornar-

    se nume.

    Duas etimologias distintas sero propostas para heris, (398c). Scrates inicia

    a explicao aproximando o nome a semideuses, , analogia relevante, na medida que

    explica a diviso existente para os gregos entre as divindades e os homens. O heri aquele

    ser divinizado aps a sua morte, enquanto o semideus, fruto da relao de um deus com uma

    mortal, ou vice-versa, j traz consigo esse carter divino. Embora se situem entre os campos

    da imortalidade e da mortalidade, os heris se inserem num mundo intermedirio entre deuses

    e homens, possuindo caractersticas de ambos, mas sem que haja uma identificao com

    nenhum dos dois polos. Esse carter transitrio o mesmo apresentado em Os trabalhos e os

  • 38

    dias de Hesodo, v. 159-160:

    , , ' .

    A raa divina de homens heris, os quais so chamados

    semi-deuses, gerao anterior sobre a terra sem limites.

    Acreditando que o tratamento etimolgico dos nomes tem por objetivo revelar a

    verdade do nome, a possibilidade de buscar diferentes verdades em um mesmo termo

    associando-o a um mito, por exemplo autoriza Scrates a propor, tanto aqui como em outros

    nomes analisados, mais de uma etimologia. No acreditamos que isso mostre uma certa

    inconsistncia metodolgica por parte de Plato. Se em alguns casos o resultado possa parecer

    inconsistente, devemos atentar que ele se mostra eficaz enquanto mtodo, enquanto revelao

    da essncia do nome analisado. Por tal razo, uma nova etimologia ser proposta para

    heris.

    Assim como estes ocupam uma posio intermediria entre deuses e homens, os heris

    assumiram posio semelhante quando associados a hbeis oradores e dialticos,

    [] , definio que Scrates j havia dado na primeira parte do

    dilogo, ao descrever o homem dialtico como aquele que sabe perguntar e responder;

    caracteriz-los como um gnero de sofistas, , o mesmo que coloc-los em

    uma posio intermediria entre o filsofo e os homens, correspondncia estabelecida com o

    verbo , dizer, semelhante a outro, , falar. Os heris, tomados como sofistas,

    ocupam essa faixa intermediria que separaria aquele que conhece, e portanto sabe, figurado

    no filsofo, e os detentores do senso comum, que habitam o mundo das opinies, os homens.

    Alis, ser esse o prximo termo investigado, e Scrates, alegando estar ainda

    inspirado por utifron, e correndo o risco de tornar-se mais sbio, alerta seu interlocutor

    acerca das possveis alteraes que um nome pode sofrer insero ou retirada de letras

    sobretudo quando oriundo de uma sentena. Segundo Scrates, os outros animais, por no

    examinarem como ateno as coisas por eles vistas, diferem-se do homem, , pois

    este capaz de examinar aquilo que viu, (399c).

  • 39

    Alma e Corpo

    O grupo de palavras analisado por Scrates apresenta, segundo Hermgenes, uma

    sequncia natural dos nomes precedentes. Para ele, existe algo do homem que podemos

    denominar alma e corpo, sendo que para o primeiro termo duas etimologias sero dadas: uma,

    sendo explicada face sua condio divina, outra, sua condio humana. O questionamento

    de Plato sobre a condio do homem e seu destino, alm de discutido em outros dilogos,

    sobretudo no Fdon, tambm tem lugar no Crtilo, na descrio dos termos que agora

    analisamos.

    A primeira explicao de alma, (399e), considerada por Scrates uma

    definio grosseira, , que lhe vem assim de momento. Segundo aqueles que assim a

    nomearam, a alma seria a causa da vida quando presente no corpo, animando-o, , e o

    corpo morreria quando esta o deixasse. Tal definio revela a condio divina da alma, pois,

    se a compararmos ao que havia sido dito em relao etimologia de Zeus, verificamos que os

    dois nomes possuem uma relao intrnseca de causalidade. Todavia, Scrates v no nome

    algo mais inspirador e, face aos seguidores de utifron, sugere que uma outra explicao lhe

    deva ser dada.

    A anlise do termo faz referncia quilo que Anaxgoras acreditava ser a definio de

    alma. Segundo o filsofo, a natureza de todo o corpo seria organizado e mantido atravs de

    um pensamento e de uma alma, de modo a fazer viver e circular, (400a).

    Assim, a alma seria chamada , pois veicula e mantm a natureza, ,

    mas por uma mudana de pronncia foi chamada alma. Essa explicao para alma, tendo

    em vista o pensamento de Anaxgoras, tambm dada no Fdon, 97c:

    Ora, certo dia ouvi algum que lia um livro de Anaxgoras. Dizia este que o esprito ordenador

    e a causa de todas as coisas. Isso me causou alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto,

    vantagem em considerar o esprito como causa universal. Se assim , pensei, eu , a inteligncia ou o

    esprito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor forma.31

    Para explicar a palavra corpo (400c), nome que teve o seu sentido um pouco

    31 Fdon, traduo de Jorge Paleikat.

  • 40

    alterado, Scrates recorre a trs etimologias: (a) o corpo o tmulo da alma; (b) o corpo o

    sinal da alma; (c) segundo os rficos, o corpo o crcere da alma.

    A definio apresentada em (a) joga com a semelhana existente entre as palavras

    e , paralelo encontrado tambm no Grgias 492e-493a:

    Scrates Todavia, como tu dizes, a vida seria prodigiosa. Pois eu no me admiraria se

    Eurpides diz a verdade nesses versos, ao afirmar que:

    Quem sabe se viver morrer,

    e morrer viver?

    E talvez estejamos realmente mortos, pois uma vez escutei de um sbio que ns, neste instante,

    estamos mortos, e o corpo, [soma], o nosso sepulcro, [sema]32

    Em (b) Scrates nos diz que o corpo uma espcie de instrumento da alma, atravs

    do qual indicaria, , e portanto deve ser chamada sinal, , trocadilho com o

    verbo indicar, . Em (c) Plato atribui o sentido da palavra quele que deram os

    rficos, onde o corpo seria no apenas aquele que pe a alma a salvo, , mas tambm

    um crcere ou claustro, , local de sua punio, sem que haja necessidade de mudar

    sequer uma letra33.

    32 Grgias, traduo de Daniel Rossi Nunes Lopes, In: O Filsofo e o Lobo, Filosofia e Retrica no Grgias de Plato. Tese de doutorado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, 2008.

    33 Uma anlise detalhada desta etimologia e suas implicaes para a filosofia platnica, sobretudo em relao a outros dilogos onde o tema tambm discutido, pode ser encontrada em FERWERDA, R. The meaning of the word in Plato's Cratylus. Hermes. CXIII, 1985, p. 266-279.

  • 41

    2.3 Etimo[teo]logias (401b - 407d)

    os descendentes dos deuses,

    parentes de Zeus, a quem pertence o altar

    de Zeus ancestral no Monte Ida, l nas alturas

    (Repblica, III)

    Ao tratar a linhagem anterior aos atridas, Scrates investigara uma parte da

    descendncia divina desses heris (Orestes-Agamnon-Atridas)