contraponto nº96

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JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP ANO 14 N 0 96 Dezembro 2014

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EDIÇÃO ESPECIAL 2014/2015. Capa: Ocupação Prestes Maia (urbana). Contracapa: Ocupação Milton Santos (rural).

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Page 1: Contraponto Nº96

JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP

ANO 14 N0 96 Dezembro 2014

Page 2: Contraponto Nº96

CONTRAPONTO2 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Dezembro 2014

PUCPontifícia Universidade católica

de sÃo PaUloPUc-sP

reitor

vice-reitor

Pró-reitora de Graduação

Pró-reitor comunitário

facUldade de filosofia,comUnicaçÃo, letras e artes

faficla

diretormárcio alves da fonseca

diretora adjuntaregiane miranda nakagawa

chefe do departamento de Jornalismovaldir mengardo

suplentelaís Guaraldo

coordenador do Jornalismomilton Pelegrini

vice-coordenador do Jornalismofrancisco chagas câmelo

c o n t r a Ponto

conselho editorialHamilton octavio de souza, José arbex Jr.,

marcos cripa e Pollyana ferrari

comitê laboratorialluiz carlos ramos, rachel Balsalobre, salomon cytrynowicz, Wladyr nader

editorJosé arbex Jr.

ombudsmanHamilton octavio de souza

secretária de redaçãovictoria azevedo

secretária de produçãoBia avila

editor de fotografialeonardo m. macedo

PUC

E D I T O R I A L

SUMÁRIOcapa: ocupações: Urbana e rural OcupaçãOurbana Avenida Prestes Maia, 911 pág. 3

cristianeM.p.santOs Órfã de Deus pág. 5

paulOrObertO Sonho de união numa cidade de segregação pág. 7

rObertapaiva Luta define história e sonhos de uma mãe pág. 8

ensaiOfOtOgráficO Ocupação Prestes Maia pág. 12

OcupaçãOrural Assentamento Milton Santos é sinônimo de resistência pág. 14

ensaiOfOtOgráficO Ocupação Milton Santos pág. 16

rOseanedOssantOs A mulher com uma estranha mania de ter fé na vida pág. 18

dOnaHeleninHa A vida da doceira do Recanto Feliz pág. 22

ailtOna.desOuza Jamaica em Americana pág. 26

napOleãOb.pereira Luta sem fim pág. 30

simetria design Gráfico – projeto/editoraçãoWladimir senise – fone: 2309.6321

contraPonto é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da PUc-sP.

rua monte alegre 984 – PerdizesceP 05.014-901 – são Paulo – sP

fone: 3670.8205

número 96 – dezembro de 2014

cill Press Gráfica e editorafone: 993.583.533

Fale com a gente

envie suas sugestões, críticas, comentários: [email protected]

Os nossos novos Zumbis, Dandaras e Conselheiros

Se existe algum fato singular que permanece inalterado ao longo dos cinco séculos de his-tória do Brasil, consiste na impossibilidade do acesso à terra por parte da imensa maioria dos brasileiros. Isso vale tanto para as áreas rurais (onde o latifúndio é a força dominante) quanto para as urbanas (submetidas ao jogo desenfreado da especulação rentista). As ocupações con-temporâneas são, nesse sentido, um “anacronismo em permanência”, a evidência irrefutável de relações arcaicas que dominam com um imenso peso a vida contemporânea.

Nos primeiros 300 anos, até 1822, prevaleceu o sistema de sesmarias: as terras pertenciam à coroa portuguesa, que as cedia aos fidalgos, para fins de exploração – desde que fossem católicos, nobres e comprovadamente de “puro sangue” luso ao longo de cinco gerações. Pedro I aboliu o sistema de sesmarias, mas não criou nada no lugar. Configurou-se um vazio jurídico, até 18 de setembro de 1850, quando foi promulgada a Lei de Terras, que regulamentou a propriedade privada da terra no Brasil.

A nova lei tinha um sentido estratégico: com o fim da escravidão colocado claramente no horizonte político da época, tratava-se de impedir a posse da terra aos negros libertos e imigran-tes pobres, contingente destinado a oferecer mão de obra barata aos latifundiários e famílias aristocráticas. Eternizou-se o latifúndio, cuja expressão contemporânea mais desenvolvida é o agronegócio – a apropriação do campo pelo capital financeiro especulativo.

No espaço urbano, o preço da terra significou a valorização das áreas ocupadas pelos donos do poder, dotadas de infraestrutura e atendida por serviços públicos, além da expulsão dos pobres para os morros e periferias. A especulação imobiliária agravou esse processo, ao elevar o preço do metro quadrado das áreas nobres a níveis astronômicos, tendo como contrapartida o abandono e a degradação absoluta das favelas.

Mas onde há exploração há também resistência, como mostram os Palmares e os Canudos. No Brasil contemporâneo, a luta contra o latifúndio criou uma das mais importantes organizações sociais rurais do planeta: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, mola propulsora da Via Campesina. Nas cidades, surgiram organizações importantíssimas de ocupação urbana, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e inúmeras redes cuja existência e militância produziram as memoráveis Jornadas de Junho, em 2013.

A presente edição do Contraponto é dedicada às revoltas contemporâneas e aos seus heróis anônimos, cujas histórias tentamos aqui contar. Gente como Cristiane, Roberta, Paulo Roberto, Heleninha, Jamaica, Napoleão e Rose: brasileiros e brasileiras para quem o único caminho possível é a luta, e que assim tecem um fio de continuidade com o combate que um dia foi travado por Zumbi, Dandara, os Malês, o Conselheiro. Tantos e tantas que trilharam as mesmas sendas. Gente que atribui uma dimensão digna e profunda ao significado daquilo que convencionamos qualificar como “brasileiro”.

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�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Dezembro 2014

Por leonardo sanchez

Ocupação urbanaCONTRAPONTO

Eleito prefeito da frenética cidade de São Paulo em duas ocasiões

– 1938 e 1961 – Francisco Prestes Maia (1896-1965), além de político, foi também um dos grandes urbanistas que a capital paulista teve. Hoje, o prédio que leva seu nome ocupa uma posição de destaque na cidade. Fica na região central, ao lado da estação Luz do metrô e perto de duas das principais atrações culturais de São Paulo: o Museu da Língua Portuguesa e a Pinacote-ca. O edifício, porém, não abriga escritórios ou grandes lojas. O Prestes Maia é uma ocupação do movimento dos sem-teto, funcionando como moradia para quase 400 famílias, espalhadas por 22 andares. Com a compra do edifício pelos empresários Jorge Nacle Hamuche e Eduardo Amorim há mais de 20 anos, o Prestes Maia parou de funcionar, deixando de abrigar qualquer tipo de atividade oficial em seus corredores. A construção, que era lar da Companhia Nacional de Tecidos até sua falência em 1991, não estava mais nos planos da dupla, graças à uma crise no mercado financei-ro e à deterioração de seus arredores. O abandono é visível pela fachada do pré-dio, completamente destruída. O cinza é manchado pelas cores dos grafiteiros que ousaram escalar a enorme estrutra a fim de deixar uma marca nela. Uma vez dentro do prédio, tal desamparo se repete: as paredes são repletas de furos, enquanto as escadas têm os seus degraus quebrados.

Entre os anos de 2002 e 2007, o Prestes Maia já havia sido usado como mo-rada para quase 500 famílias, cujos enxutos salários não permitiam o pagamento de um aluguel em outro lugar. Durante esses 5 anos, os moradores foram matéria prima para inúmeros textos jornalísticos e outros tantos debates sobre o choque entre a espe-culação imobiliária em São Paulo e o direito à moradia. Talvez a grande estrela da ocu-pação, porém, e que acabou atraindo muito mais holofotes que o próprio movimento dos sem-teto, foi a Biblioteca Comunitária Pres-tes Maia. Instalado no subsolo do edifício, o acervo de cerca de 17 mil livros e revistas recebia doações diárias, disponibilizando seus exemplares para os moradores do Prestes Maias e também de seus arredores. Os volumes ocupavam o andar que há anos estava inundado por água e lodo. Junto com a restauração do subsolo, os moradores limparam também os outros níveis, respon-sáveis por mais de 300 caminhões de lixo que finalmente deixaram o prédio graças aos

AvenidA Prestes MAiA, 911 Nos 22 andares do emblemático edifício no centro de São Paulo,

quase 400 famílias sonham com o direito à moradia

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O Edifício Prestes Maia e sua fachada imponente

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novos ocupantes. Tudo isso acabou, porém, quando em 2007 o Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) entrou em acordo com o poder público e decidiu abandonar o edifício. De forma pacífica, as quase 500 famílias deixaram o Prestes Maias sob os olhares da Guarda Civil Metropolitana.

Em 2010, o emblemático edifício passou por uma nova ocupação. Esta, que resiste até hoje, é responsável por forne-cer um lar a quase 400 famílias. O ato de apropriação do prédio ocorreu na primeira semana de outubro de 2010. Diversas fa-mílias sem teto, recentemente despejadas de outras ocupações ou áreas de risco, tomaram quatro prédios da região central da cidade de São Paulo, entre eles o da ave-nida Prestes Maia, número 911. As outras avenidas que ganharam novos moradores naquele mês foram a Ipiranga, a Nove de Julho e a São João. Os quatro edifícios ti-nham similaridades que contribuíram para sua escolha pelo movimento dos sem-teto. Eram antigos, desocupados há anos e com futuro incerto, graças principalmente à falta de pagamento do IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano) pelos seus donos. Dos quatro prédios ocupados, os localizados nas avenidas Ipiranga e Nove de Julho tiveram os novos moradores expulsos nos dias se-guintes. A Ocupação São João abriga hoje cerca de 80 famílias e faz parte da Frente de Luta por Moradia (FLM). A Ocupação Prestes Maia, muito maior, é novamente coordenada pelo MSTC.

Já houveram tentativas de compra do edifício Prestes Maia pela prefeitura de São Paulo. O valor do prédio, nos anos da ocu-pação de 2002, era calculado em 7 milhões

de reais. O governo, porém, teve a opor-tunidade de comprá-lo por um valor bem menor, já que o não pagamento de seu IPTU por Hamuche e Amorim acumulou uma dívida que beirava os 6 milhões. A aquisição acabou não ocorrendo, a dívida diminuiu e a prefeitura até hoje manifesta o interesse em transformar o Prestes Maias em um projeto social. Para a dupla de empresários que detém o imóvel, não faz sentido pagar o IPTU de um prédio ocupado, que portanto não pode ser utilizado. Para os ocupantes, a dívida legitima sua apropriação pelo MSTC. Graças à imprecisão do momento em que o imposto deixou de ser pago e também ao fato de que o Prestes Maia já foi ocupado três vezes, em diferentes épocas, desde a compra por Amorim e Hamuche, justificar um ponto de vista pelo IPTU torna-se no mínimo controverso.

Com as confusões desenhadas pelos impostos, segue a vida na Ocupação Prestes Maia. Considerado uma das maiores ocupa-ções verticais da América Latina, o edifício tem um rígido esquema de organização. Sua administração, localizada no térreo e formada por membros do MSTC, dita o funcionamento da enorme construção. Porteiros são pagos para cuidar da entrada 24 horas por dia, enquanto faxineiras im-pedem que o Prestes Maia volte a se tornar o depósito de lixo que foi durante os perío-dos em que esteve vazio. Existe luz e água no prédio, obtidas por meio de ligações clandestinas, mas que são essenciais para suprir as demandas das quase 400 famílias do imóvel. Com o período de racionamento de água em São Paulo, o Prestes Maia tem sofrido constantes cortes hídricos.

O aluguel, pago por todos os aparta-mentos aos dirigentes do movimento sem teto, garante a permanência das famílias na ocupação. Cerca de 100 reais são desembol-sados todo mês por cada grupo. Desse valor, 50 reais são para a parte de infraestrutura, enquanto 30 são destinados à serviços como os prestados por arquitetos, que devem sempre checar as condições do prédio, e 20 garantem a limpeza do local. Cada andar do Prestes Maia possui um banheiro, que precisa ser divido entre cerca de 12 famílias. Não existem horários determinados para o seu uso, então filas no período da manhã, quando todos saem para trabalhar e os pe-quenos para estudar, são comuns.

A ligação entre o térreo e o último an-dar do edifício é feita por uma estreita e mal iluminada escada, não havendo elevadores. Os moradores da “cobertura” sobem e des-cem as centenas de degraus várias vezes por dia, carregando sacolas de compras e outros objetos. O comércio dentro do Prestes Maia também é comum. Diversas folhas de papel espalhadas pela escadaria anunciam a venda de sucos, salgados e qualquer outro tipo de alimento. Como alguns dos moradores são ambulantes, suas mercadorias encontram no prédio uma parcela de seus consumidores, incluindo crianças, que buscam pelos anda-res locais onde possam comprar refrigerantes e doces. Esses jovens marcam presença no Prestes Maia, mas precisam se adequar às suas regras: nas paredes, junto com as propa-gandas, estão os recados da administração, muitos deles proibindo brincadeiras, como futebol, nas áreas comuns. Existem multas para aqueles que não obedecem.

Os enormes salões de concreto que representam cada andar têm sua vastidão repartida por tapumes. As divisões impõem limites a cada apartamento, estes que são extremamente pequenos. Mesmo assim, a maioria deles é ocupado por famílias in-teiras, com crianças e até mesmo animais domésticos. Em suas fachadas, roupas penduradas para secar, bicicletas e enfeites adornam as entradas.

As tentativas de desapropriação do edifício são constantes. Seus donos continu-am pedindo à justiça que faça alguma coisa em relação à situação do prédio. O Prestes Maia chegou a receber uma ordem de rein-tegração de posse no começo de 2014, que não foi executada porque, como os morado-res se recusaram a sair voluntariamente, seria necessário o auxílio da Polícia Militar, que disse não ter em sua programação o acom-panhamento da ordem judicial. Dessa forma, 400 famílias continuam sua luta diária por moradia, sem abandonar o sonho de ter um local para chamar de lar. Tal sonho se junta à atmosfera agitada do edifício, alcançando todos os seus 22 andares e tornando-se parte da rotina das centenas de pessoas que ali vivem. A Ocupação Prestes Maia respira e cada vez que o faz, resiste.

Antiga Biblioteca Comunitária Prestes Maia, localizada no

subsolo do edifício quando foi ocupado entre 2002 e 2007

Cartaz pendurado no edifício utilizado como forma de protesto

Cartaz na porta da Ocupação Prestes Maia expressa grande desejo de

seus moradores

Intervenção artística na frente da Ocupação Prestes Maia

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A partir do mês de outubro começamos a visitar a ocupação Prestes Maia

para a Edição Especial da Revista Contraponto. Nosso grupo, como todos os outros, encontrou muita relutância por parte tanto da coordena-ção da ocupação como dos moradores que ali residem.

Deparamo-nos com uma realidade muito mais cruel do que imaginávamos – o edifício apre-sentava uma estrutura já danificada pelo tempo, com paredes enlodadas, que acumulavam mofo, sendo isso extremamente prejudicial para todos os moradores, principalmente idosos e crianças, como notamos ao longo do tempo. A ocupação, repleta de pessoas de origens diversas, só possuía uma característica comum a todas, como que a uni-las: a condição endurecida que a vida lhes proporcionou.

Assim, o primeiro consenso a que chega-mos é que há, sim, uma direta participação da sociedade na condição dos moradores ocupan-tes, pois tudo o que lhes impigem, cada vez mais, é que a marginalização social. Todos foram, em algum momento e por alguma razão, desalojados – e, num movimento quase incansável, grada-tivamente expurgados de seus direitos como cidadãos e seres humanos. Sempre em busca de dignidade, mas sem as condições básicas para isso, seguem sem oportunidades de igualar-se a

Por ana luiza corrêa marques, marina saran e nicole Way Gasparini

Órfã de deus

A realidade das pessoas que vivem em ocupações urbanas

Cristiane M. P. dos SantosCONTRAPONTO

“Cristiane poderia ser o diretor Walter salles

ou o JaCk kerouaCk, ambos Com relaCionamentos

Conturbados no âmbito familiar. mas ela não é nem

uma grande esCritora de alguma geração rebelde que vem por aí e muito menos uma

diretora bem suCedida de Cinema. Cristiane é latina,

pobre, nasCida na periferia, moradora de rua desde os onze anos de idade. ela é uma órfã de deus, se este

realmente existe.”

“voCê aCredita em deus? o dia que voCê preCisar,

mesmo, voCê vai ver que ele existe”

(fala de Cristiane)

um futuro escritor ou diretor de cinema – seguem sem saber o que haverá na janta.

Em novembro de 2014, nosso grupo con-cluíra que eram impossíveis resultados positivos em apenas três meses. Porém, em uma de nossas visitas, esta realizada na segunda-feira da primei-ra semana de dezembro, quando já estávamos indo embora deparamo-nos com uma moradora que se protegia de uma fina garoa embaixo do ponto de ônibus. A mulher que observávamos a nossa frente era uma adulta de mais ou menos um metro e sessenta, morena, cabelos longos e com traços faciais desgastados, porém bonitos.

Fomos conversar com ela de forma des-pretensiosa e nos surpreendemos com uma enorme receptividade de sua parte. Por estar com pressa, ela nos passou seu número do celular e marcou de nos encontrar na quinta feira da mes-ma semana. Voltamos ao local, dia e hora com-binados, mesmo sem termos conseguido entrar em contato com a moça pelo número que havia nos fornecido. Perguntamos a alguns vizinhos e, então, fomos informados de que estava em uma galeria de lojas próxima a ocupação. Fomos até ela e, na própria galeria em que a encontramos, fizemos-lhe algumas perguntas.

Começamos pelo seu nome, porque sa-bemos que a perda da identidade começa pela perda do vocativo, pela atribuição de quaisquer

outras atribuições em seu lugar. Chamava-se Cristiane Milha Pereira dos Santos, com 30 anos e residente na Ocupação Prestes Maia. Nascida na Zona Sul, em uma família de seis pessoas – pais, dois irmãos e uma irmã. Seu pai falecera quando ela contava com apenas seis anos - uma típica filha da América do Sul, a América órfã de pai.

Cristiane poderia ser o diretor Walter Salles ou o Jack Kerouack, ambos com relacio-namentos conturbados no âmbito familiar. Mas ela não é nem uma grande escritora de alguma geração rebelde que vem por ai e muito menos uma diretora bem sucedida de cinema. Cristiane é latina, pobre, nascida na periferia, moradora de rua desde os onze anos de idade. Ela é uma órfã de Deus, se é que Ele realmente existe.

Descrevera-nos sua infância até os seis anos como algo bonito. O pai, segundo ela, fora o único que nunca lhe fora hostil de nenhum jeito, tanto verbal quanto fisicamente. Sua mãe lhe batia muito e em seus outros irmãos, durante a infância. Nas palavras de Cristiane, “a gente vivia cheio de roxo. Foi por isso que eu e mais minha irmão fugimos de casa quando eu tinha 11 anos”.

Mais amadurecida, Cristiane compreen-deu os porquês de tanta agressividade por parte de sua mãe. Compreendeu que sua mãe também era uma órfã da América e que, quando ficara

Condições precárias na estrutura física do prédio

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viúva, tinha cinco filhos para criar, não tinha uma casa própria e, agora, também não tinha um teto. Tinham, apenas, um terreno. Ao compreender a situação ecônomica de sua mãe, tudo pareceu muito mais claro, então, para Cristiane, pois compreendera todo o sofrimento de alguém que muito lhe amava.

Na pré-adolescência, fugindo de casa com a sua irmã três anos mais velha (14 anos), a única opção das duas foi morar nas ruas .No começo da vida fora de casa revezavam noites em três lugares: ora dormiam no banco de uma igreja, ora em uma oficina de carros não muito distante da igreja e, outras vezes, na casa de um amigo. No entanto, a hospedagem do amigo não era tão agradável, pois este tentava se aproveitar sexu-almente delas. Nas palavras de Cristiane, “esse amigo não tinha boas intenções e eu não queria, porque nessa época eu ainda era virgem.”

Com 12 anos, Cristiane passou por um dos momentos mais hostis de sua vida: entregou-se à prostituição para poder sustentar-se e à sua irmã. Em um dos programas, foi atraída por um antigo “namoradinho” a uma casa com oito homens. Nas tristes e doloridas palavras dela, “os 8 homens me estupraram, um de cada vez, de todos os jeitos.” No dia seguinte, Cristiane conseguiu fugir pulando o muro com a ajuda da irmã e de um antigo amigo de infância. Não fosse isso, seria morta por eles.

Ao longo de nossa conversa, soubemos que esta não fora a última violência que sofrera por parte do sexo masculino. Ela acrescenta que todas as relações com homens foram abusivas, ex-ceto a com seu falecido pai – “Meu pai foi o único homem que nunca me agrediu, mas acho que isso é normal, né? Digo, é a lei do mais forte.”

Já no mundo da prostituição, conheceu seu primeiro namorado, que se chamava João. João, segundo ela, tinha uma vida razoavelmente confor-tável, pois sua mãe, que era dona de uma das franquias da loja O Boticário, pagava-lhe o aluguel de um apartamento e uma me-sada mensal. Logo no começo do namoro Cristiane mudou-se para junto dele. Parara de se prostituir e se dedicava apenas aos afazeres domésticos.

Tudo fora muito bem até João começar a consumir cocaína e, simultaneamente, a agredi-la. Ele passara a gastar sua mesada e o dinheiro do aluguel do apartamento no vício. Assim, Cristiane precisou voltar à prostituição e João fora internado diversas vezes em cli-nicas de reabilitação. Entre uma internação e outra, ela engravi-dara dele. Tiveram seu primeiro filho, chamado Matheus, que conta hoje com sete anos.

Revigorada após o nas-cimento de seu filho, rompeu definitivamente com João e, por não ter condições para criar Matheus, pediu a uma tia do interior de São Paulo para fazê-lo durante um ano. Durante o ano em que ficou longe do filho, tentara se restabelecer economicamente. Decretou fim à prostituição e começou a trabalhar como revendedora de bebidas alcoólicas em eventos abertos, como shows e festas de rua. Sua mãe e

sua irmã, que acabara de se divorciar do primeiro marido, foram morar com ela.

Tudo parecia ir muito bem, até conhece-ra outro moço, que viera a ser seu namorado! Chamava-se Fábio e conheceram-se num forró. Imediatamente o levou para morar com ela, em sua casa. No entanto, Fábio não contribuía com as despesas da casa nem em sua manutenção, o que acasionava muitas brigas. Segundo Cris-tiane, “ele sempre me batia. Tenho uma cicatriz na perna de um dia que ele veio com uma faca para cima de mim.”

Por não concordarem com a situação a que o relacionamento chegara, a mãe e a irmã saíram da casa de Cristiane. Contudo, o relacio-namento só teve fim quando Fábio, depois de uma corriqueira briga, ateou fogo na casa.

O próximo homem de sua vida, e atual marido, chama-se Sidney, um vendedor ambu-lante. Assim como João, pai de seu filho, Sidney também faz uso de drogas e constantemente é internado em casas de reabilitação para depen-dentes químicos.

Foi através de Sidney que Cristiane to-mou conhecimento da ocupação Prestes Maia, em que reside há quatro anos com seu marido, Matheus (que voltara a morar com ela) e engra-vidara de seu segundo filho quando já residia na ocupação.

No entanto, o nascimento e crescimento de seu segundo filho não foram tão simples. Nas-cera prematuro e, com apenas 11 meses, pegara sua primeira pneumonia devido às infiltrações e mofo das paredes da ocupação, precisando ficar internado por dois meses.

Aos dois anos de idade, ele fora vítima de sua segunda pneumonia que, quase ,o levou a óbito. Cristiane relembra o episódio com os olhos

marejados e nos diz que “ele é um anjinho, sabe? Loirinho, quietinho, tão carinhoso com todos da família que nem parecia já ter sofrido tanto...”

A mãe de Cristiane mora na ocupação, junto dela, desde o ano passado. Antes disso, morava com seu filho mais velho, onde diz ter sofrido violências físicas e psicológicas por parte da esposa dele, que, além disso, só lhe dava co-mida estragada. O casal ainda se aproveitava dos cartões da senhora, fazendo inúmeras compras e deixando todas as dívidas no nome dela. Nas palavras de Cristiane, “o meu irmão do meio é um problema. Usava o cartão dela e fez mais de R$1.500,00 em dívidas. Minha mãe, coitada, falava que minha cunhada batia nela e dava comida estragada. Coitada da minha mãe... Hoje ela tem Mal de Parkinson, colesterol alto e, por isso, toma remédio todos os dias. Graças a Deus que a trouxe para morar comigo.”

Cristiane encerrou a entrevista falando de Deus, o que nos deixou um pouco confusas. Fi-camos pensando, depois, como uma mulher que sofreu tanto na vida consegue acreditar em uma força maior. Ela nos perguntou se acreditávamos em Deus e, em seguida, disse: “O dia que você precisar, mesmo, você vai ver que ele existe.”

Nós, que temos vinte e poucos anos, e que raramente enfrentamos dificuldades, não temos quase ternura e vivemos pelo nosso individualismo tedioso. Cristiane, no entanto, que é uma mulher incluída nas estatísticas de violência doméstica, que nunca teve quase nada de concreto, é cheia de ternura. Talvez seja, de fato, como o verso da música Gente Humilde, de Chico Buarque: “Igual a como quando eu passo no subúrbio. Eu, muito bem vindo de trem de algum lugar, e aí me dá como uma inveja dessa gente que vai em frente sem nem ter com quem contar.

A felicidade nas pequenas coisas do dia a dia

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Por ana luiza corrêa marques, marina saran e nicole Way Gasparini

sonho de união nuMA cidAde de segregAção

A realidade das pessoas que vivem em ocupações urbanas

Paulo RobertoCONTRAPONTO

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Paulo Roberto não se destaca na mul-tidão. Ele é um homem comum, se é

que assim pode-se dizê-lo. De algum modo, a sua aparência simples, que quase reflete os seus 55 anos, e o seu ar misterioso, acentuado pelo modo como fuma lentamente o seu cigarro, torna-o convidativo. Diferente de suas longas e pausadas tragadas, seus passos são apressados. Rapidamente, ele deixa o Edifício Prestes Maia distante. O seu olhar fixo e o seu andar deter-minado incitam a querer entendê-lo um pouco melhor… Quando já está há quase 20 metros da ocupação, abordamos ele: O senhor poderia contar um pouco de sua história?

Ainda sem entender muito do que se tra-tava, ele assentiu com a cabeça e sem dizer mais que cinco palavras indicou que procurássemos um lugar mais calmo para conversar. Debaixo da chuva, o seguimos com passos que se esforçavam para alcançar semelhante rapidez que ele manti-nha. Quando chegamos em frente a um bar de esquina, paramos. De pé embaixo de um toldo, que nos protegia suficientemente da chuva, co-meçamos o que seria uma longa conversa.

Paulistano, Paulo indicou desde o começo a necessidade da “cidade de pedras” de se unir. “Devemos compartilhar juntos, pela necessidade, pelo coletivo ou pela força.” Jogando seu cigarro de lado e se focando nas ideias que defendia, Paulo destacou que em sua história o momento em que o vício por jogos legais (cartas e bingos) dominou a sua vida, foi quando sentiu que a Ocupação seria um relapso.

Quando decidiu fazer parte das mais de 500 famílias que já moram no local, ele repudiou aqueles que estão lá como interessados, lutan-do por interesses pessoas e que subornam as entidades. “Na administração tem muita coisa errada, tem “chefe” externo e interno e o jeito de administrar nunca vai melhorar porque não chegam em um bem comum; a administração interna não tem uma divisão”. Quando o assunto chegou às condições oferecidas no prédio, Paulo não hesitou em contar que existe uma taxa men-sal de condomínio, aparentemente utilizada para pagar a eletricidade, a água e a limpeza.

Hoje, a família de Paulo são os seus vizi-nhos da Ocupação. Seus conhecidos de sangue sequer sabem que lá é o seu lar. “Eu gosto de todas as pessoas , mas tem algumas que não me identifico . Gosto do meu andar no edifício, porque lá é uma família que está na luta pela segunda vez. Seis irmão já moravam no meu andar e eu passei a ser um irmão também. Existem brigas logicamente, mas nos unimos nas comemorações de final de ano , sempre.”

Cada um dos dois irmãos de sangue que Paulo pouco vê trabalham e tem filhos. “Houve uma briga com a minha mãe, ela quebrou o fê-mur, meu irmão levou ela para o hospital e meu irmão me proibiu de visitar minha própria mãe e ela foi para a casa dele. Faz sete anos que não tenho contato com ela.”

Quando a chuva já estava passando e o papo minguava aos poucos, Paulo refletiu sobre a diferença da São Paulo atual e daquela que ele vivenciou 40 anos atrás, “o que eu sinto que mudou na São Paulo da minha infância para a atual é que não existe humanidade mais. Eu gozei minha infância e é importante uma infância saudável, mas não vejo isso hoje em dia”.

De todos os amores que marcaram a vida de Paulo, apenas dois lhe deram filhos. Hoje, ele não tem contato com nenhum de seus prove-nientes. Na época, uma das mulheres exigiu mais do que ele pôde dar, o que incitou uma briga e logo um afastamento de sua ex-mulher e filho. No final da conversa, Paulo ainda acentuou a falta de credibilidade dada à polícia da cidade, “A polícia não existe para os ‘pobres’... Hoje, eu mudei; se a polícia me parar, eu sei me defender, mas também sei que serei discriminado pelos meus trajes de trabalho.”

Selva de Pedra

“quando deCidiu fazer parte das mais de 500

famílias que Já moram no loCal, ele repudiou

aqueles que estão lá Como interessados, lutando por interesses pessoais e que

subornam as entidades. “na administração tem muita

Coisa errada, tem ‘Chefe’ externo e interno e o Jeito

de administrar nunCa vai melhorar porque não

Chegam em um bem Comum; a administração interna não

tem uma divisão”.

“devemos Compartilhar Juntos, pela neCessidade, pelo Coletivo ou pela força.”

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CONTRAPONTO� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Dezembro 2014

Por andré vieira, Gabriel soares, leonardo sanchez

e mariana Presqueliare

Subindo os estreitos degraus da escada que dá acesso ao 21° andar da Ocupa-

ção Prestes Maia, Roberta Paiva carregava uma sacola de salgados ao lado da filha Vitória, de 10 anos, e do cachorro Zequinha. Roberta mora no último andar do enorme prédio, em um pequeno cômodo que divide com seu marido Clóvis José Aguiar Paiva e três dos cinco filhos. Sentada em um antigo sofá ao lado do beliche onde dormem as crianças, ela conta sobre as cidades pelas quais passou durante sua vida, dentre elas Maranhão e São Paulo, onde mora atualmente. Ao baixo som de uma música religiosa, a família reúne-se para contar tudo o que passou até o momento, com bom humor e hospitalidade.

Natural de Belo Horizonte, Minas Gerais, Roberta veio para São Paulo ainda criança, onde se casou aos 12 anos com seu primeiro esposo, com quem teve uma filha aos 16. Após seus pri-meiros anos na capital paulista, voltou para Belo Horizonte e depois mudou- se para o Maranhão, onde permaneceu por 8 anos. Retornou à São Paulo, local onde conheceu Clóvis há 15 anos atrás. “O Maranhão é um estado muito bom, lá o ar é mais puro e as crianças crescem inocen-tes”, porém São Paulo é a cidade que Roberta escolheu para buscar oportunidades e iniciar a sua luta por direitos.

O movimento sem terra faz parte da vida familiar. Segundo Clóvis, foi Roberta quem incentivou as suas idas às reuniões. Enquanto vivia em uma pensão cujo aluguel era caro, ele conheceu um boliviano que o convidou para se unir ao movimento: “A princípio não acreditei, mas a Roberta insistiu, então continuei indo”. O dinheiro da entrega de pão e venda de zona azul não era suficiente para sustentar a família, e a alternativa para pagar a conta era o Bolsa Alu-guel, concedido pela prefeitura. A preocupação do casal era o tempo de espera para conseguir o benefício, já que a maioria das pessoas demoram até 15 anos para conquistá-lo. “Ia haver uma reintegração de posse e por isso seria feita uma reunião com o prefeito, que ia nomear famílias para receberem o Bolsa”. Era a primeira vez que participavam e logo conseguiram o auxílio, ga-nhando dois anos e meio de aluguel. O restante teriam que pagar.

Roberta também narra a história de quando ganhou um apartamento, o qual nunca foi entregue: “fiquei sabendo por amigos, uma mulher mineira vinda do Maranhão ganhou uma casa, só podia ser eu, mas nunca me procuraram, acho que deram pra outra pessoa, mas minha hora vai chegar”.

Durante dois meses moraram próximo à Assembleia de Deus, espaço que frequentavam e recebiam cesta básica. Conseguir um novo lugar para morar não foi fácil. Com o Bolsa Aluguel chegando ao fim, Roberta e Clóvis procuraram os dirigentes do MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro), que encontraram para a família um apartamento no 19o andar do Prestes Maia. “Já

LutA define histÓriA e sonhos de uMA Mãe

Moradora da ocupação paulistana concilia a luta por direitos com o trabalho e a família

estamos há dois anos [na Ocupação Prestes Maia] e tem dado certo”, comentou Clóvis, que agora habita o 21º nível do prédio. Lar de 400 famílias, a ocupação é hoje o abrigo de muitos que não tinham para onde ir. Repleto de crianças e cheio de regras, o prédio foi a opção de muitos para sair das ruas e dar às suas famílias o mínimo de dignidade.

O edifício, cuja administração fica a cargo dos próprios moradores, tem um rígido esquema de organização, que para Roberta é fundamental. “Cada andar tem uma pessoa para cuidar da limpeza e os porteiros são pagos 24 horas para ficar lá embaixo”. No total, a família desembolsa 100 reais por mês para alugar o apartamento em que vive e bancar toda a infraestrutura da qual fazem uso. Multas são aplicadas àqueles que desobedecem as regras e quem é pego roubando ou usando drogas “é convidado a se retirar do prédio pelos moradores mesmo”. Os residentes zelam uns pelos outros em um verda-deiro ambiente de cumplicidade. Não são apenas as doações que Roberta recebe que costumam ser compartilhadas com a vizinhança: o clima de incerteza sob o qual vivem também extrapola os limites do 21º andar.

Com a reintegração de posse do prédio do antigo Hotel Aquarius, que ocorreu em setembro de 2014 e resultou em confronto com a Polícia Mi-litar, a possibilidade de serem expulsos do Prestes Maia se tornou ainda mais presente nas vidas de Roberta e Clóvis. “Aí só Deus”, lamenta o marido, que se diz preocupado com a situação irregular na qual vivem. “Os policiais batem mesmo, o negócio lá [no Hotel Aquarius] foi feio”.

Prefeitura – Roberta se queixa que o atual prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, não fez jus às promessas de abertura de diálogo com os movimentos por moradia. “Ele prometeu muita coisa na campanha que não está cumprindo. Está tendo muita reintegração de posse”. Dessa forma, sua família e a de tantas outras são obrigadas a viver com a expectativa de regularização da situação do Prestes Maia, sem saber ao certo quando e como tal iniciativa ocorrerá. Engajada no MSTC, Roberta acredita nos projetos sociais prometidos para o edifício. O problema das reformas desejadas pela prefeitura, porém, é a diminuição da capacidade do Prestes Maia, que poderia receber somente metade das famílias que hoje vivem nele. “Eu já estou há bastante tempo no movimento e a gente tem que ter esperança”, afirma.

Sobre as conversas com a prefeitura, Roberta sente-se desaminada, justamente pela difícil negociação que a secretaria de habitação vem conduzindo com os moradores do prédio. A proposta inicial da prefeitura foi de esvaziar o prédio para reformar e então apenas 200 famílias retornariam, o que seria aprovado pelo corpo de bombeiros. Os moradores, no entanto, aprovam a reforma, mas reivindicam o retorno integral dos moradores ao edifício. “Se fizessem um projeto social, Minha Casa Minha Vida um CDHU (Compa-nhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) aqui, nem toda a demanda voltaria. Eles querem que volte só metade, mas a gente não ta aceitan-do, a gente quer que volte todas as famílias”.

Filhos – Como qualquer outra mãe em uma grande cidade como São Paulo, Roberta se aflige pela situação precária observada nas escolas paulistanas. A mãe se dedica em ajudar os filhos com as atividades escolares, que segundo ela, ainda não são o suficiente para melhorar o seu desempenho. “Eu comprei um computador para ajudar nos estudos das crianças”, mas isso não é o suficiente. Sentada ao lado deles, abre o livro de tarefas e tenta responder àquilo que sabe. Preocupada com a educação de seus filhos, ela afirma que um deles ainda tem grande difi-culdade para escrever.

Contemplados pelo Bolsa Família, Roberta e Clóvis tiveram o benefício bloqueado no final do ano de 2014, já que para recebê-lo, é neces-sário que seus filhos frequentem pelo menos 90% das aulas. João, de 13 anos, ficou abaixo da porcentagem estabelecida pelo governo. O motivo, porém, foi o despreparo e a abusividade de uma de suas professoras. “Ele foi agredido pela professora, fisicamente e com palavras”, conta Roberta, perplexa. Após processar a escola, a mãe foi orientada pelo Conselho Tutelar a não continuar levando João às aulas, “porque ele po-

Roberta PaivaCONTRAPONTO

“Com o bloqueio do benefíCio do bolsa

família, as Contas fiCam mais apertadas. agora, meu, tem

que ralar mais”(Clóvis José aguiar paiva, marido

de roberta, lamenta o bloqueio do valor que a família reCebe pelo

bolsa família)

“eu Já estou há bastante tempo no movimento e a gente tem que ter esperança”

(roberta paiva, sobre sua partiCipação nos movimentos sem teto)

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e quem não pode”, explicou a mãe sobre o fun-cionamento do uso de drogas e armas na escola. “Estão cansados de oferecer [droga]. Saem da escola e ficam lá, ‘pegando onda’”, contou. Clóvis complementou a esposa, relatando a situação de muitas das meninas: “Elas cabulam aula e ficam lá, até engravidar”. Sem segurança, a vida dos alunos é tangenciada pela ilegalidade, e sua infância é manchada pela violência e pela insalubridade do ambiente escolar. “Se você experimentar é uma vez só.”

Em relação à saúde, as críticas também são vastas. Geralmente recebem a visita da agente de saúde de um posto próximo à ocupação, porém o mesmo se encontra em péssimas condições. Como alternativa, resta o AMA (Assistência Mé-dica Ambulatorial), em que Roberta levou a filha com suspeita de virose para ser examinada. Sem a presença de um médico no local, a menina de 9 anos foi encaminhada para o pronto socorro da Barra Funda, região distante de onde moram. A dificuldade em encontrar um hospital ou posto de saúde adequados para tratamento médico é apenas um dos problemas sociais dos tantos apontados pela família.

Alvos de diversas críticas, inclusive por par-te do casal, programas sociais como Bolsa Família e Bolsa Aluguel ainda são temas polêmicos em debates. Um dos principais pontos levantados em relação a tais políticas públicas são os requisitos mínimos para a entrada e a burocracia presente tanto para obter o benefício como também para renovar sua inscrição. É o que acontece com o casal, cujo auxílio que recebiam do Bolsa Família foi cancelado no mês de dezembro. “A gente tra-balha com vendas. Eu trabalho aqui na Avenida do Estado vendendo Coca, água, pão, açúcar e outros tipos de alimentos, e é esse dinheiro que

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deria sofrer algum tipo de represália”. A lotação das escolas na região e a dificuldade de conciliar os horários entre as aulas dos outros dois filhos e as de João, caso fosse para outra instituição de ensino, fizeram com que Roberta esperasse o desenrolar do processo antes de rematricular o menino. “Ele é muito levado, só que isso não dá o direito de ninguém bater no meu filho”. De acordo com Roberta, após fazer um boletim de ocorrência e submeter a criança a um exame de corpo de delito, um policial, chamado pela pró-pria escola, a encorajou a retirar a queixa, “me ameaçando mesmo”, relatou. O caso está nas mãos de um juiz, que o analisa enquanto João acompanha os estudos em casa, com o auxílio dos pais. “Eu poderia parar, retirar o processo, já que fui ameaçada, mas vou até o fim”, brada Roberta.

Não é somente a falta de infraestrutura e o despreparo das escolas que preocupam Ro-berta. “Meu filho falou pra mim que dentro da escola dele tem uso constante de droga”, conta a mãe. Preocupados com as más influências que convivem lado a lado com suas crianças, Clóvis e Roberta dizem desencorajar o uso de álcool ou qualquer substância ilícita “desde pequenos”. A família, que tem um forte vínculo com a Igreja Evangélica, condena as autoridades por não faze-rem nada para proteger os jovens. “A Cracolân-dia está cada vez mais perto da escola”, comen-tou Roberta, argumentando que o abandono de prédios como o Prestes Maia estimula o acúmulo de usuários de drogas nessas regiões, devido à negligência e à falta de políticas públicas.

A presença de armas de fogo na institui-ção de ensino que os filhos de Roberta frequen-tam também é alarmante. “(Os alunos) trancam a porta do banheiro e dizem quem pode entrar

mantêm nossa casa. Com o bloqueio do benefício do Bolsa Família, as contas ficam mais apertadas. Agora, meu, tem que ralar mais”, comenta Cló-vis com um sorriso no rosto mesmo ciente das dificuldades que a família passa.

A respeito da intolerância de muitos brasileiros quando se trata de políticas públicas que beneficiam a parcela marginalizada da po-pulação, Roberta aponta: “muitos dizem que só votamos na Dilma Rousseff por conta disso, voto nela principalmente por ser mulher. Ninguém sabe que antes dela ser eleita já existia o projeto, e se minha família não cumprir todas as regras, eu não recebo”. Dentre as normas estabelecidas, além de frequência mínima na escola, é necessá-rio tomar todas as vacinas.

Casa própria – Um dos maiores sonhos do casal e, principalmente, o de Roberta é ter uma casa própria. Mesmo perante às dificuldades do dia-a-dia, a jornada de trabalho dura como vendedora ambulante, desempenhada por ela e seu marido de segunda à sábado, a luta para levar seus filhos à escola, preparar café da manhã e jantar diariamente e, sobretudo, conviver com os mais diferentes tipos de pessoas e culturas nada afasta o sonho de Roberta de ter seu próprio espaço. “Se eu pudesse falar com a Dilma, eu pe-diria uma casinha para morar com meus filhos. Eu pediria, também, algum projeto que valesse a pena”. Os sonhos de Roberta são alimentados por uma coisa que jamais lhe faltará, esperança: “Eu tenho esperança que tudo vai mudar e, é a esperança a última que morre”, afirma.

É com o mesmo sentimento de esperança em uma vida mais digna que Roberta fala sobre os filhos. Aos 33 anos, diz que se casou jovem e teve sua primeira filha ainda adolescente, com

Vitória, de 10 anos, é uma dos três filhos que ainda moram com Roberta

Roberta e seu marido preparam o almoço, em balcão que funciona como a cozinha do pequeno apartamento

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“a proposta iniCial da prefeitura foi de esvaziar o prédio para reformar e então apenas 200 famílias retornariam, o que

seria aprovado pelo Corpo de bombeiros”

(roberta paiva Comenta as intenções da prefeitura de são paulo para a oCupação prestes maia)

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Roberta e seu marido Clóvis na frente de seu apartamento no 22º andar do Edifício Prestes Maia

quem tem pouco contato atualmente. Segundo Roberta, a distância é a causa do afastamento entre as duas. Casada, a menina de 18 anos que anteriormente vivia na Espanha, hoje mora no Rio de Janeiro e está grávida. A saudade de Roberta se agrava ainda mais ao lembrar de sua segunda filha, de 16 anos, atualmente desapa-recida, levada para longe da mãe ainda bebê, na maternidade.

A respeito da vida que levam na grande cidade, o casal enfatiza a questão de como o convívio social, círculo de amigos, relação familiar ou até mesmo encontros e desencontros roti-neiros, afetam nossas vidas. Segundo Clóvis, “é o que eu falo com meu filho direto: São Paulo é uma das maiores cidades do mundo, tem que imaginar que aqui tem de tudo. Já me envolvi em situações que não me orgulho e agora sei: as amizades influenciam muito”. Para a família, a vida é feita de escolhas, sejam elas boas ou ruins. É por isso que, hoje, o casal vai regularmente à instituições religiosas, assim como instituições sociais. “Não é raro eu ver um monte de meni-nas perambulando pelas ruas, cabulando aulas, consumindo álcool e tendo relações sexuais sem o menor cuidado com suas vidas. Bom, cada um é cada um, né”, relata Clóvis. “Aqui (em São Paulo) tem tudo do bom, assim como tudo do mau”, completa Roberta.

O desejo de terem seu próprio espaço esbarra em diversos detalhes, no caso do pro-grama Minha Casa Minha Vida, por exemplo, se a família não tiver uma renda abaixo de três salários mínimos, não entra no projeto. Além disso, há sempre a insegurança de uma eventual reintegração de posse. “Se mandassem a gente sair hoje, a gente teria que pegar o bolsa aluguel,

só que você sabe que 300, 400 reais para alugar uma casa com criança é difícil, aí ninguém sabe onde que vai”, diz Roberta sobre o Bolsa Aluguel, benefício que diz ser insuficiente justamente pelos altos preços praticados na capital, mesmo nos apartamentos de baixa renda.

Um dos maiores problemas que o casal sofre é o preconceito. Não é raro a família ser alvo de discursos intolerantes ou de um mau tratamento por participar do MSTC ou de pro-testos ligados ao movimento. O que poderia ser encarado pela população como uma luta por seus direitos básicos é, muitas vezes, repudiado e mal visto. Roberta demonstra sua indignação com a situação: “ninguém sabe como é nossa vida, se as pessoas parassem um pouco para pensar; ninguém gostaria de estar morando numa ocupação”.

A exclusão por parte do poder público e, sobretudo, da mídia, que muitas vezes os maldiz em programas sensacionalistas, é bas-tante presente em suas vidas. “Eu não vejo um que fala bem da nossa causa. Esses programas sensacionalistas não retratam fatos verdadeiros, mas sim o que dono do programa fala que é certo”, afirma Roberta, indignada com a situação vivenciada todo dia. O descaso visto pela família pode ser notado em coisas simples como a troca de um computador com defeito. “Olha, temos um problema. Compramos, não faz tanto tempo, um computador, para as crianças aprenderem, e ele não funciona, daí levamos ele em diversos lugares para a assistência técnica, inclusive na loja, e nada. Em seguida, levamos o caso para o Ministério Público que, mais uma vez, nos decepcionou. Assim, como último recurso, le-vamos o caso para a mídia que fechou a porta

em nossas caras, afirmando que aquilo não era da responsabilidade da emissora”, desabafa Roberta. Essa invisibilidade rotineira na vida da família é mais um exemplo de que existe uma assimetria de direitos entre os cidadãos da cidade de São Paulo.

Ao descrever o dia-a-dia de quem mora em edifícios como o Prestes Maia, Roberta lem-bra o real motivo pelo qual luta diariamente: “estamos aqui para reivindicar o direito que todo brasileiro tem, que é o da moradia digna. As pessoas devem ter mais consciência daquilo que falam, porque isso machuca”. A dificuldade que é dividir um banheiro com 5 famílias em meio a brigas e discussões entre vizinhos é apenas uma pequena parcela da sua rotina diária, que inclui levar os filhos na escola, acompanhar as tarefas de João, que não está estudando, e tocar tanto a pequena venda que tem no estreito apartamento, como o trabalho de vendedora nas ruas. “Aqui é de segunda a sábado, de domingo a gente descansa, se prepara para a semana, vai ao culto, mas nos outros dias é trabalho”, diz Clóvis.

A ocupação nasceu de um grande déficit decorrente nas grandes cidades, a falta de pla-nejamento urbano. Não é de hoje que centenas de pessoas povoam prédios abandonados ou até mesmo as ruas sem conseguir pagar o aluguel ou ter sua casa própria, e isso é gerado por falta de uma infraestrutura acessível que consiga atender a todos. “Há mais de 48 mil prédios abandonados no Estado de São Paulo, e o Governo pouco se mobiliza para mudar isso. Se o Governo ao invés de distribuir Bolsas Aluguel reformasse esses locais abandonados, a situação estaria muito melhor”, desabafa Roberta, que promete não desistir de sua luta e seu sonho.

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Estante usada para apoiar a televisão, outros aparelhos e parte dos salgados que Roberta vende como ambulante

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Roberta posa na frente de seu apartamento, ao lado do marido Clóvis e de três dos cinco filhos que teve. Em seu colo está a filha de uma de suas vizinhas

Desenho feito pela filha de Roberta, Vitória

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Na movimentada avenida Prestes Maia, diversas paredes de concreto apontam em direção ao céu. Todas elas seguem o padrão cinzento da capital paulista, acompanhadas pelo som dos automóveis que deslizam

pelo asfalto da via. De todas aquelas construções, porém, uma em particular se destaca. Com seus 22 andares, a Ocupação Prestes Maia, no número 911, é um edifício enorme, robusto e estampado pelos contornos de grafiteiros que ali deixaram suas marcas.

A ocupação está localizada no coração de São Paulo, bem no centro da cidade. À sua frente fica o metrô Luz, que contribui para o ritmo frenético daquela região, com suas centenas de passantes. Seus olhos muitas vezes se voltam para o curioso Prestes Maia.

Do ponto de vista arquitetônico, o edifício não é mais interessante do que qualquer outro encontrado naquele bairro. O que chama a atenção, na verdade, é seu simbolismo, tudo aquilo que seus 22 andares representam. Em uma das maiores cidades do mundo, os problemas gerados pelo mercado imobiliário são enormes, o que faz do Prestes Maia um lembrete das desigualdades e dos paradoxos paulistanos.

Para entrar no lar de quase 400 famílias, uma modesta porta de ferro na calçada da avenida basta. Aquela é a passagem para milhares de vidas e histórias, unidas por uma mesma luta.

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Por lu sudréCríticos às políticas do governo federal para a reforma agrária, os

plantadores de Americana são exemplos na luta pela terra

AssentAMento MiLton sAntos

é sinôniMo de resistênciA

Localizado em Americana, no interior de São Paulo, com 104

hectares de terra, o Assentamento Milton Santos resiste. A ocupação da Granja Ma-lavazzi, em 2005, foi o primeiro passo para que 68 famílias conseguissem seu pedaço de terra para plantar. Depois de 15 dias dessa primeira ocupação, foram despejados e ocuparam a área da Fazenda Santa Júlia, na região de Limeira.

O Instituto Nacional da Reforma Agrária (Incra) entrou em acordo com os moradores e realocou as barracas de lona para a área do Sítio Boa Vista, no bairro Zanaga, em Americana. Na década de 60, as terras do sítio pertenciam à família Abdalla, que em 1976 foram passadas para o INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) por conta de dívidas com a previdência social. Porém, anteriormente, o grupo Abdalla arrendou o terreno para a Usina Ester, da família Coutinho Nogueira, que usou a área irregularmente para a monocultura da cana de açúcar e alegou ter direito sobre a área.

Do INSS, em 2006, a área foi repas-sada ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), e 68 famílias de camponeses foram assentadas, que soma-das a agregados, totalizam 300 moradores trabalhando em seus lotes. Reconhecidos pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agrope-cuária (Embrapa) como Assentamento Mo-delo da Região em Produção Agroecológica, a situação dos assentados mudou em julho de 2012, quando a Usina Ester e o Grupo Abdalla alegaram ter quitado as dívidas que resultaram na desapropriação.

A época, o Incra foi intimado a cum-prir a reintegração de posse dentro de um prazo de 30 dias, prorrogado por mais 120 após recurso, sob pena de multa diária caso não executasse até o dia 15 de outubro de 2012. Durante esse período, os assentados e militantes apoiadores fizeram uma cam-panha para a presidente Dilma Rousseff assinar o decreto de Desapropriação por Interesse Social, que de acordo com a Lei N°4.132, de 10 de setembro de 1962, é prevista para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social, na forma do art. 147 da Constituição Federal.

Durante o processo de ameaça de reintegração de posse, bloqueios na Ave-

Ocupação ruralCONTRAPONTO

Protesto organizado pelos moradores do assentamento

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nida Anhanguera, Marchas na região de Campinas e um protesto na Secretaria da Presidência da República, na Av. Paulista, foram realizados. Mas os momentos de ascenso dessa luta se deram na Ocupação do Incra em São Paulo, no dia 15 de janeiro de 2013, e na Ocupação do Instituto Lula, no dia 23 de janeiro do mesmo ano. A segunda ocupação ganhou muito espaço na mídia hegemônica devido à simbologia da ocupação do Instituto Lula, evidencian-do a dissidência política e mais radical do pequeno assentamento em Americana, do MST enquanto movimento grande e amplo e luta pela terra.

Com as pressões das ocupações, mas sem o decreto assinado, no inicio de 2013, a Justiça suspendeu a reintegração da área, decisão que ocorreu com base em um recurso suspensivo impetrado pelo INSS e pelo Incra. A Usina Ester recorreu desta suspensão e atualmente o recurso retornou para julgamento dos Desembargadores, em segunda instância, e a situação do assenta-mento é estável.

A Reforma Agrária que custa a chegar – Parte das reivindicações pelas reformas de base dos anos 50 e inicio dos 60, a reforma agrária tem como objetivo

proporcionar a redistribuição das proprie-dades rurais, ou seja, efetuar a distribuição da terra para a realização de sua função social em completude. Em 1964, no inicio dos anos de chumbo, foi criado o Estatuto da Terra, em que o Estado tem a obrigação de garantir o direito ao acesso à terra para aqueles que vivem e trabalham na área. Porém, com o sistema político e econô-mico vigente, que se retroalimenta com o fomento ao agronegócio, o Brasil, terra dos índios e dos camponeses, torna-se da forma mais violenta e desigual, o país dos latifundiários.

Apesar de previsto na Lei 8.629/93, que diz: “a propriedade rural que não cumprir a função social é passível de de-sapropriação”, a realidade é diferente. O Assentamento Milton Santos é apenas um exemplo disso. O Incra é o órgão que estabelece se uma propriedade cumpre sua função social baseado em índices de produtividade. Em 1980, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se originou em oposição ao modelo de reforma agrária colocado pelo regime mi-litar na década de 1970, que perpetuou a colonização das terras.

Em 2002, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente da República

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pelo Partido dos Trabalhadores (PT), e devido a aproximação do partido à época com as lutas populares protagonizadas pela classe trabalhadora e também pelos campo-neses, houve um sentimento de ansiedade em relação as posturas que o novo governo, dos trabalhadores, tomariam em relação a reforma agrária.

Para José Juliano de Carvalho, eco-nomista, professor da FEA USP, membro da Associação Brasileira da Reforma Agrária – ABRA e Conselho Consultivo da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, coloca que nunca foi criada uma lei que funcionava para a Reforma Agrária, e não funcionava porque não era de interesse de quem estava ou está no poder. Segundo o professor, nunca houve uma proposta na reforma agrária que se pudesse chamar re-almente de esquerda, esquerda no sentido de desapropriar a terra de fato, dos bens de produção não serem de posse particular.

Para analisar, atualmente, as políticas agrárias dos governos Lula e Dilma é preciso destacar que o Brasil voltou a adotar o mo-delo primário exportador. Carvalho coloca que a volta à economia primário-exporta-dora com baixa incorporação tecnológica implica em maior vulnerabilidade externa, dependência e subordinação, formando um verdadeiro quadro de “esquecimento” do direito à terra dos camponeses.

Desse modo, os governos do ex-pre-sidente Lula e da atual presidente Dilma Rousseff não apresentaram mudanças estruturais em relação à política agrária. Características históricas da concentração de terras pela colonização se estabelecem, agora, em políticas de governo por meio da opção ao modelo do agronegócio. O primeiro ano do mandato de Dilma Rousseff apresentou o pior desempenho desde os tempos de FHC – 21.9 mil famílias assen-tadas. Esta cifra (primeiro ano de mandato) é inferior aos governos anteriores: FHC (43 mil famílias em 1995) e Lula (36 mil famílias em 2003).

Dados oficiais do Incra (Instituto Na-cional de Colonização e Reforma Agrária) revelam que a presidenta conquistou em 2011 a pior marca dos últimos dezessete anos, contrariando a expectativa dos mo-vimentos sociais do campo. A presidente Dilma está atrás do que Fernando Henri-que Cardoso (PSDB) e Lula realizaram no primeiro ano de seus governos. Em 2011, 22.021 famílias conquistaram lotes em assentamentos, o que representa 51% da marca de FHC em 1995, quando 42.912 foram assentadas. Já em relação ao governo de seu antecessor, Dilma atingiu 61% do resultado de Lula, que em 2003 assentou outras 36.301 famílias.

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Manifestação exigia ações da Presidenta da República

Porque ocupamos o Instituto Lula?“Somos 68 famílias que, depois de anos e anos de luta, fomos assentadas num terreno de 104 hectares

localizado entre os municípios de Americana e Cosmópolis. Este terreno pertenceu à família Abdalla, ricos empresários que perderam a área durante a ditadura militar por dívidas trabalhistas.

Em 2006, o presidente Lula e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) nos instalaram no Sítio Boa Vista. Desde então, para a consolidação deste assentamento, depositamos tudo o que tínhamos: nosso trabalho e nossa vida na produção de alimentos saudáveis, sem o uso de agrotóxicos. Passamos por inúmeras dificuldades para produzir. Mesmo assim, passo a passo, conseguimos estabelecer parcerias com mais de 40 entidades e escolas através do Programa Doação Simultânea. E, hoje, temos orgulho de dizer que somos uma comunidade que fornece mais de 300 toneladas de alimentos para a região metropolitana de Campinas.

Após consolidarmos nossas vidas nesta terra com o suor de anos de trabalho e dedicação, recebemos em maio de 2012 a notícia de que a família Abdalla, aliando-se à Usina Ester, havia recuperado as terras na justiça e ganho o seu direito de posse. A justiça federal, então, emitiu um aviso ao INCRA de que deve-ríamos ser retirados em prazo determinado, caso contrário, haveria a reintegração de posse do terreno.

O INCRA moveu vários recursos em vão. Realizamos audiências com os representantes do órgão, que afirmavam que não sairíamos do assentamento e que, se fosse preciso, seria assinado o decreto de desa-propriação por interesse social. Fizemos reunião com representantes do governo federal; e estes também garantiram que o problema seria resolvido, sem que precisássemos deixar nossas casas. No entanto, o tempo passou e nada mudou. Ao contrário, para a nossa aflição, aproxima-se a data em que assistiremos à destruição do esforço de toda uma vida: nossas casas, nossas plantações, nossos sonhos.

Sabemos que todas as possibilidades jurídicas já foram esgotadas e que o destino de nossas famílias depende, isto sim, da vontade política de quem pode decidir.”

* Trecho do manifesto escrito e divulgado pelos assentados do Milton Santos durante a ocupação do Instituto Lula, em São Paulo.

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Moradores recorrem ao

ex-presidente para

conquistar diálogo

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Quando o concreto da estrada virou terra, percebemos nossa proximidade

ao assentamento Milton Santos. Ao chegar lá, um lugar que respira humanidade e luta, insisti-mos em conhecer a história de mulheres que ali vivem, e Vilma, moradora que nos recebeu, logo lembrou de Rose.

A casa de Roseane dos Santos é a primeira à direita depois da entrada do assentamento e fica bem em frente ao Barracão, área comum dos moradores. Com uma placa indicando que ali atende uma cabelereira, o terreno nos recebe sem qualquer bloqueio, assim como a dona, que só pede para não nos incomodarmos com o fato dela estar lavando roupa, pois uma cliente havia acabado de sair e em breve uma nova chegaria.

Fomos recebidas no fundo da casa. Roupas, utensílios domésticos, brinquedos e ali-mentos recém colhidos se misturam pelo chão, compondo o cenário que também conta com uma mesa, cadeiras, rede e uma improvisada lavanderia, com tanque, pia e a máquina de lavar roupa. Cenário em que Rose, agitada em meio a tantas peças de roupa, começa a nos contar sua história. Com a barra da calça jeans dobrada e acompanhada de sua simplicidade e simpatia, a moça nos mostra que tem facilidade para falar.

Descalça, reveza o olhar entre a roupa e entre aquelas que estão ali para lhe escutar. Aperta os olhos como quem busca lá no fundo da memória sua própria história. Gesticulando as mãos, que guiam a conversa mas também penteiam seus cabelos presos, a figura de Rose torna a parede de tijolos e a casa simples um lugar aconchegante, daqueles que abraçam a família inteira, onde sempre cabe mais um. Por trás de óculos quadrados, seus olhos castanhos não escondem que foram protagonistas de muitos episódios ao longo de 31 anos.

Infância

Rose foi uma das milhões de crianças bra-sileiras que tiveram – e ainda têm – sua infância roubada e seus direitos negados, que cresceram e crescem para se tornarem os famosos “nin-guéns” do poema de Galeano: “Donos de nada”. E exatamente por não possuírem nada, fazem das ocupações de terra um direito, e através delas crescem, criam e sustentam outras crian-ças, essas que, a cada geração, vão retomando sua infância. Paradoxalmente, Rose se anima ao questionarmos sua criação, solta uma risada, diz “que legal”, e nos confia sua história.

Por andressa vilela, lu sudré e Júlia dolce

A MuLher coM uMA estrAnhA MAniA de ter fé nA vidA

Moradora do assentamento Milton Santos, conta sua história de lutas e conquistas

Roseane dos SantosCONTRAPONTO

Pernambucana, Rose não se lembra de praticamente nada do estado. Foi criada em Sergipe, para onde sua família se mudou logo após seu nascimento, em 1983. De Sergipe, fo-ram para a cidade de Limeira, no interior de São Paulo. Sua educação formal é limitada, estudou até a terceira série. “Terceira série do nordeste, que pra mim é como se fosse a primeira série do sudeste. Resumindo: nada”. Sente diariamente as complicações da falta de estudo, da infância sequestrada. “Hoje em dia eles exigem o segundo grau até pra você limpar o chão”.

A circunstância foi a mesma que assola tantas crianças mundo afora: Rose teve que começar a trabalhar antes dos dez anos de ida-de, para ajudar a família. E como se o trabalho infantil já não fosse traumático o suficiente, Rose tem consciência hoje de que o seu trabalho se enquadrou na categoria de escravidão domésti-ca. “Trabalhei muito de empregada doméstica para os outros. Mas não a troco de dinheiro, a troco de um prato de comida e uma roupa que não servia pros patrão, assim era a minha vida no Sergipe”.

A mãe de Rose ganhava, na época, nove reais por semana trabalhando em uma usina, tendo que sustentar cinco filhos com o salário. O pai trabalhava no sudeste como cortador de cana. “Quando podia ele mandava dinheiro,

quando não podia, nós continuávamos na mesma miséria”. Para se tornar uma boca a menos para a família sustentar, Rose começou a trabalhar como empregada.

Enquanto tinha tempo de estudar, tam-bém saía da escola para pedir esmolas e ajudar sua mãe. “Na casa das famílias era assim: eu comia, passava um pouco e chorava, porque comia ali mas sabia que meus irmãos tavam passando fome em casa”. Nesse momento, Rose se emociona pela primeira e única vez durante a entrevista. Se lembra do irmão mais novo, Rivaldo, que nasceu com uma deficiência rara e séria, e seu olhar viaja no tempo – “meu irmãozinho...”.

Voltando ao presente, Rose explica que a situação médica do irmão se tornou insustentável para a mãe. “Meu pai voltou pro Sergipe por um tempo, e minha mãe falou assim: ‘Olha, ou a gente vai junto, ou a gente se separa, porque se é pra todo mundo se afundar, vamos se afun-dar junto’, então nós deixamos o nordeste”. Na época, uma rádio local chamada Rádio Aracajú ajudou com as despesas da viagem de ônibus. O pai havia tentado alugar um cômodo com um conhecido, mas quando chegaram na rodoviária, ele não estava disponível. “Nós ficamos uns dois dias dormindo lá mesmo, com um monte de bagagem, acho que eu tinha uns treze anos na

“muita magia e muita sorte tem as Crianças que Conseguem ser

Crianças” eduardo galeano, esCola do mundo ao

avesso

“trabalhei muito de empregada doméstiCa para os outros. mas não a troCo de dinheiro, a troCo de um prato de Comida e uma roupa

que não servia pros patrão, assim era a minha vida no sergipe”

Rose

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(à esq.) Lote de terra da família de Rose. (acima) Rose se divide entre a entrevista e o serviço doméstico

época.” Rose recorda, com um sorriso, que quem os tirou da rodoviária foi um cego desconhecido. Chegou tocando nas bagagens com o bastão e perguntando se quem estava lá era gente do norte, devido a quantidade de malas. Ofereceu um cômodo vago na sua casa para a família ficar gratuitamente, por alguns dias, enquanto procurava outro lugar para alugar. “Por incrível que pareça, um cego que nunca nos viu, deu toda a sustança pra gente”.

Nessa época, a mãe de Rose passava o tempo todo procurando tratamento para a de-ficiência do irmão. Quando estava grávida, ouviu do médico que teria que “extrair o bebê, porque ele era um bicho”. Segundo Rose, o irmão nasceu com as costas abertas (fechada posteriormente com cirurgia), sem enxergar e com os membros não desenvolvidos. Os pais defenderam a gra-videz e não aceitaram o aborto sugerido pelo médico. “Após o nascimento, minha mãe ficou dois anos e meio no hospital. O Rivaldo veio estra-nho mesmo sabe, mas foi mudando, mudando, e ficou lindo, lindo”. Foi então que decidiram continuar o tratamento em São Paulo.

Rivaldo viveu seus 4 anos e 4 meses en-trando e saindo de hospitais, e a mãe de Rose frequentava mais os centros médicos do que sua própria casa. “Ele na verdade acabou se tornando um Centro de Estudos no hospital da UNICAMP”

– afirma Rose – “Minha mãe teve bastante apoio, algumas pessoas levavam uma caixa de leite, uma cesta básica, mas outros se aproveitaram do caso, iam pra casa tirar fotos do meu irmão e ganhar dinheiro com a desgraça dele.” Conta ainda que inclusive a polícia apareceu em sua casa para entender o fluxo de pessoas que passavam por lá, até que Rivaldo faleceu. “Engraçado que ele só reconhecia a minha voz, não enxergava mas tinha uma audição muito boa. Na juventude eu chegava em casa da balada e ele me esperava de olho aberto, acordado. Me chamava de “Gó”, como todo mundo lá em casa. É uma história triste mas feliz ao mesmo tempo.”

Depois da morte de Rivaldo, a família entrou para o registro dos sem-teto de Limeira e seguiu a vida sofrida. Rose continuou trabalhan-do, dessa vez como vendedora de rua. “Passei a vida inteira trabalhando, acho que se eu fosse contar, já taria aposentada por tempo de servi-ço”, confessa Rose, com um sorriso triste.

Depois de um tempo, Rose conheceu Valmir, hoje seu marido, com quem casou aos 18 anos. “No começo eu odiava ele, gente, odiava, sabe quando você não vai com a cara da pessoa? Mas o Valmir tem uma história triste também, e eu comecei a ficar com ele um pouco por dó. O amor chegou depois, não foi assim a vista. Hoje eu amo ele de paixão, tamo junto há 13 anos”.

Valmir se separou da primeira esposa mui-to jovem, e criou a filha sozinho desde os nove meses de idade. Hoje, a filha de Valmir tem 17 anos, estuda, trabalha com registro e, segundo Rose, não dá nenhum trabalho para a família.

Luta

Com o som da máquina de lavar batendo ao fundo, de vez em quando a guerreira para de contar sua história para “dar conta do serviço”. Entre o tanque cheio de roupa para lavar e tiran-do outras peças da máquina, em um ciclo que parece estar acostumada, Rose nos conta que há nove anos está no movimento de luta dos trabalhadores sem terra. Antes, quando chegou em São Paulo com sua família, achou que a movimentação dos sem terra era para quem não tinha casa, e como esse era seu caso, com um salário ‘mixaria’, decidiu arriscar.

Rose e seu marido foram para a primeira ocupação que daria origem ao Assentamento Milton Santos, a Granja Malavazzi, conhecida

“mas é preCiso ter força, é preCiso ter raça, é preCiso ter

gana sempre”(maria, maria – milton nasCimento)

“passei a vida inteira trabalhando, aCho que

se eu fosse Contar, Já taria aposentada por tempo de

serviço”

Rose e Rykrylly, seu filho mais velho

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CONTRAPONTO20 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Dezembro 2014

como Fazenda Santo Antônio. Depois de 15 dias, foram despejados e ocuparam a área da Fazenda Santa Júlia, na região de Limeira, em conjunto com os outros moradores. Quando o Instituto Nacional da Reforma Agrária (Incra) entrou em acordo com os moradores e realocaram as barracas de lona para a área do Sítio Boa Vista, no bairro Zanaga, em Americana, foi só alegria. Nascia ali, o Assentamento Milton Santos e uma nova esperança de vida digna.

Trocando o ‘L’ pelo ‘R’ em algumas pa-lavras, com um jeito só seu, Rose diz que seu marido sempre gostou de ‘prantio’. Hoje, eles trabalham e plantam juntos, em um hectare de terra, o que equivale a 10.000m². Rose conta que tem gente que fala que o bom de estar no assentamento é não ter patrão, mas pra ela o trabalho é coisa séria. “Não temos patrão mas temos que cumprir nosso horário. Porque se você não cumpre, não vai ter uma produção boa”.

Apesar de assentada e com sua casa cons-truída, não deixa de lado as críticas ao governo e ao próprio Incra. “O INCRA não dá toda aquela assistência que é o direito e lei da gente, então a gente acaba tendo nossas dificuldades, as vezes a gente fica até endividado pra manter o plantio. Nada que a gente planta aqui tem veneno.”

Para Rose, o processo de reintegração de posse da área do assentamento, impetrado pela Usina Ester foi um choque. O que agora mais de 68 famílias chamavam de casa, poderia voltar a ser plantação de cana. “Foi triste. Não tanto pela perda material, mas pelo preço da liberdade. Quando nós chegamos aqui não tinha uma árvo-re, não tinha um pássaro. Só cana, cana, cana, cana, cana”. Relembrando, Rose fala sobre como todos ficaram depressivos no assentamento e diz que ninguém, além dos que passam por essa situação, pode imaginar o que é saber que a polícia pode chegar a qualquer hora e te tirar da sua própria casa. Rose faz parte do grupo de co-ordenação do assentamento e quando a notícia da liminar de reintegração de posse chegou, foi uma das primeiras a ficar sabendo. “Foi como se tivessem tirado meu chão. Como ‘nóis ia’ contar pras famílias?”.

Hoje, mesmo que não resolvida pois corre em segunda instância, a situação do assentamento é estável. O sentimento de felicidade não é com-pleto. A pernambucana ainda tem sonhos para realizar no seu pequeno pedaço de terra. E assim como sentiu o desespero de perder suas casas, diz sentir a dor dos outros. “Nós estamos aqui, ainda no processo de luta. Mas e o Pinheirinho? A gente sente por aquelas famílias. No Pinheirinho aconteceu o que aconteceu. Muitas vítimas desa-parecidas. Eu ainda não durmo direito”.

A mãe conversa sobre tudo com seus dois filhos, e não deixa de lado a importância sobre a luta da qual também foi protagonista. Ela conta que não os levou, ainda pequenos, para as ocupações do Instituto Incra e Lula em São Paulo. Diz que essa luta é dela e que as crianças estão junto com ela mas que quando crescerem, lutarão suas próprias lutas.

Família

Rose engravidou logo após o casamento, mas faz questão de afirmar que foi por planeja-mento e não “por fatalidade”. Conta que sempre quis engravidar aos 18 anos, não importando de qual pai: “Eu sempre coloquei isso na cabeça, só queria cumprir minha gravidez aos 18”. Então nasceu o Rykrylly, primeiro filho do casal, hoje com 12 anos. A ideia do nome veio de um parti-cipante em um programa de televisão chamado “Em nome do amor”, que Rose assistiu quando criança, “quando o vizinho deixava a gente as-sistir televisão na casa dele”. Se encantou pelo nome e nunca o esqueceu, já que ele também se encaixa na tradição familiar dos nomes come-çados com a letra “R”, de Rose e seus quatro irmãos: Roseana, Rivaldo, Renan, Rosely e Rose-meira. “Tem gente que confunde Rykrylly, com Hitlery, ai eu fico doida, nome nazista não, pelo amor de deus”. Já a filha mais nova do casal, hoje com 5 anos de idade – e também planejada – se chama Rihanna, uma homenagem escolhida pela filha de Valmir à cantora pop barbadiana (e também ao ritual da letra “R”).

O sonho de ser mãe também veio carre-gado de sofrimento. Rose tem ovário policístico e já sofreu quatro abortos espontâneos. “Se eu pudesse, eu queria ter uns 10 filhos, mas não pra criar de pequenininho sabe, é porque eu acho tão bonito no natal os 10 irmãos, acho tão bonito família grande”, desabafa a pernambu-cana, ao contar que o parto de sua filha exigiu muito sacrifício. A tímida Rihanna quase morreu durante a cesárea, ficou internada por muito tempo, e Rose perdeu muito sangue durante todo o procedimento, que ocorreu no hospital mais próximo ao assentamento, localizado a 15 quilômetros de distância. Depois disso, ela optou por fazer laqueadura (cirurgia para que a mulher

não possa mais ter filhos), “porque é muito ruim você querer ter filho e não conseguir”.

No final das contas, somam-se dois filhos e não dez. Ainda assim, quando perguntamos o que as crianças representam para ela, Rose trans-borda de amor: “Ó, eu vou falar hein, meus filhos representam tudo pra mim. Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, abaixo de Deus [...] Mas tem hora que dá um nó aqui rapaz, que eu falo umas coisas que não é pra falar, mas eles são tudo. Tudo, tudo, tudo, Não tem preço, não tem nada que pague. Morro por eles, mato se precisar.”

As crianças vão todos os dias para a escola, que fica a oito quilômetros de distância do as-sentamento, mas já existe o projeto de construir uma escola dentro do Milton Santos. Rikrilly, o filho mais velho, “odeia” ir para a cidade. Não vai nem em troca do wi-fi da casa da avó. Rihanna também não é fã da cidade grande, do trânsito e do barulho, o oposto da calmaria do campo. “Aqui é tudo pra eles. Isso aqui é liberdade. Pode não ser riqueza, tem dia que nós temos nossas dificuldades, nem tudo eu posso dar pros meus filhos, mas eu acho que a liberdade não tem preço”, conta Rose, que aprova o fato dos filhos não gostarem de ir para a cidade - exceto quando quer ficar sozinha com o marido, e , nesse caso, é uma briga para tirá-los de casa.

A mãe coruja explica que no bairro onde sua família mora, em Limeira, ela vê muitos usu-ários de drogas e por isso morre de medo que seus filhos fiquem muito na cidade e passem a ter contato com qualquer substância ilícita. “Não vou falar que meu filho não vai mexer com isso, mas to tentando que ele não faça. Tem pais que fala ‘quero comprar casa, carro pra deixar pro meu filho’. Eu não quero deixar casa e carro, eu quero deixar minha dignidade. O melhor exemplo

“nós estamos aqui, ainda no proCesso de luta. mas

e o pinheirinho? a gente sente por aquelas famílias. no pinheirinho aConteCeu o

que aConteCeu. muitas vítimas desapareCidas. eu ainda não

durmo direito”

“o panorama não agrada, mas não há porque se

desesperar. pela simples noção de que é uma dádiva estar vivo,

de que os Caminhos são lindos e é neCessário Caminhar.”

(panorama - forfun)

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Valmir, Rose e Rykrylly

Alimentos recém-colhidos

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é o que a gente é, ser honesto. Se eu deixar casa, deixar tudo, meu filho vai ter só conforto? Não vai trabalhar pra adquirir o que é dele?”, explica a guerreira Rose, contando também que pega muito no pé de Rikrilly por causa desse assunto. “Eu falo todo dia: ‘Rikrilly, a mãe prefere ver você preguiçoso do que na cadeia. Falo pra ele: seja honesto.’”

Rose conta que tenta enxergar o futuro de seus filhos. Rihanna e Rikrilly ajudam a cui-dar da plantação, mas a mãe não quer que eles sejam produtores, mas sim que cuidem do lote, porque apenas através da produção é difícil se sustentar. “Dizer que os sem terra é rico, é mito. O que a gente tem é condição de por um alimento melhor, mais saudável na mesa. Mesmo assim, não troco isso por uma carteira registrada numa firma”.

Se a intenção é criar filhos batalhadores, Rose tem dado um ótimo exemplo. Cheia de dignidade, ela bate no peito para contar que montou um salão de beleza dentro de sua casa para ajudar na renda mensal da família, mesmo quando não tinha gosto por lidar com cabelos. “A ideia veio de precisar”, ela explica. Rose se formou em um curso de cabeleireiros de três meses, que foi pago por sua mãe, já que a horta não é suficiente para o sustento da família. “Você tem tudo, mas acaba não tendo nada”, desabafa, mas ainda sem perder a alegria de nos receber em sua casa. Hoje, um ano depois de formada, Rose conta com orgulho que passou com 8 em corte masculino, 8,5 no feminino e 9,5 em pen-teado e que, depois de tanto praticar, acabou por gostar do ofício.

Logo que terminou o curso, começou a atender clientes em casa. Ela conta que tem con-corrência, mas não liga: “eu deixo o sol pra todo

mundo, não deixo só na minha casa”. Sempre generosa e orgulhosa de suas conquistas, conta que naquele mesmo dia em que estávamos lá, já tinha “feito” 60 reais e que também faz alguns bicos. “Faço corte lá no sindicato dos Vigilantes, no centro de Americana. Gosto mais de plantar do que de cortar o cabelo. No sindicato eu traba-lho segunda à tarde e terça de manhã, no resto do tempo eu to na roça, ou quando aparece um bico eu vou lá e faço. É gostoso você ver o que você planta desenvolvendo né. Cabelo não, você só corta.”

Seus clientes são moradores do assenta-mento, amigos, familiares e também moradores da área de posse, que não faz parte do Milton Santos. Ainda assim, o salão não é uma ajuda suficiente: “Tem dia que não faz nada, tem dia que já faz. Mas dá pra tirar uns 300 reais, mas não passa disso, mas da pra se virar. E tem aquele preconceito. Tipo assim: ‘ah fulano começou agora a mexer com cabelo eu que não vou levar lá’. Eu acho normal, eu entendo né…”.

Rose, entretanto, é incansável e tem ainda outros planos para aumentar a renda familiar. Na entrada de sua casa, alguns tijolos formam uma pequena sala, de mais ou menos 4m². Era lá que Rose pretendia instalar seu salão de beleza, mas agora a ideia é outra: montar um lugar para seu filho Rikrilly trabalhar vendendo lanches. “É pra entrar dinheiro, porque gente, tá difícil viu!”.

Ela explica que não gosta de cozinhar, mas gosta de fazer lanches e como não tem nenhum outro lugar que venda esse tipo de comida no assentamento, teve a ideia de montar um. “Não gosto [de cozinhar], mas faço porque sou obri-gada”. Já sobre o que mais gosta de fazer, a resposta vem fácil: além de ficar com a família, ela diz amar cuidar do lote, e prefere cultivar,

entre tudo o que plantam, alface. “Mas quem mexe mais no plantio é esse aqui ó” (e aponta para o marido).

Valmir, homem de sorriso largo e timidez também, não se sentiu a vontade para respon-der perguntas feitas diretamente a ele. Quando questionamos a Rikrilly o que ele gostaria de ser quando crescer, o menino não titubeou em responder: engenheiro civil. Nesse momento, o esposo de Rose aproveitou a deixa para comen-tar: “A Rihanna vai ser agrônoma, com certeza”, despertando a risada de todos, já que a pequena adora plantar e cuidar da terra, e tem até uma mini enxada vermelha.

Rose conta que apesar de ficar responsável pelo lote, Valmir gosta de cozinhar e só de vez em quando lava a louça, tarefa que ela gosta de fazer. “Eu amo lavar louça. Eu gosto de lavar roupa, só não gosto de por no varal. Quando eu vou pra casa de alguém o pessoal fica doido comigo, né. Eu gosto de lavar louça e amo lavar banheiro. Eu amo demais. Dois servicinho que quase ninguém gosta, né”.

Devota, Rose não esconde sua fé. Em meio as suas palavras, a figura de Deus sempre aparece. Não se zanga até mesmo com a falta de chuva que intervém em sua plantação. “Eu sou muito cristã. Eu não falo que ela [a falta de chuva] atrapalha. Falo que ela vem no tempo dela. Acredito muito em Deus, então tudo é no tempo dele. Se ‘nóis tamo’ na seca, é por ele”. Apesar de ir muito na igreja evangélica, não se diz de igreja nenhuma. Segundo ela, o bom do assentamento é que quando se abre um boteco, abre uma igreja. Aos risos, corrige: “Acho que tem menos boteco. Deus está ganhando”. Na medida que a risada deixa, fala que justamente por ser filha de Deus e ‘trabalhadeira’, pode be-ber uma geladinha às vezes mas “tudo dentro de seu limite”.

Os lugares preferidos da pernambucana são sua horta e o fundo da casa. É lá que ela recebe a família todos os finais de semana. Quan-do pedimos para ela falar alguma característica marcante, pensa e afirma: “Gente, eu amo fazer amizade. Eu adoro ver gente diferente, eu amo ver gente diferente.” Nem precisava contar. Quando é a vez de Rikrilly falar sobre ela, os comentários também são óbvios: “Ela se esforça, ela é trabalhadeira. Uma boa mãe. [...] Pra mim, o lado ruim dela não tem nada”.

Com uma simpatia só dela, Rose é refe-rência de mulher batalhadora, de luta e de mãe. Sua casinha logo na entrada do assentamento é parada obrigatória para os visitantes. Ao contar suas histórias, seu jeito de boa anfitriã é eviden-te. “Vem muita gente de fora, não só do Brasil. Vem gente de outras ocupações. O processo de um e de outro não muda nada, né? A luta é uma só”.

“aqui é tudo pra eles. isso aqui é liberdade. pode não

ser riqueza, tem dia que nós temos nossas difiCuldades, nem tudo eu posso dar pros

meus filhos, mas eu aCho que a liberdade não tem preço”

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Entrada da casa de Rose

Casa da família de Rose

Salão improvisado na casa de Rose

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CONTRAPONTO22 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Dezembro 2014

Por mariana castro e victoria azevedo

A vidA dA doceirA do recAnto feLiz Com 65 anos, dona Heleninha continua muito ativa: cuida da sua chácara, de seus animais e ainda arranja tempo para ir à Igreja e

preparar seus famosos doces

Vamos lá ver minha casa! É bem arru-madinha”. Com dois quartos, uma

sala de televisão, uma cozinha e um banheiro, a casa de dona Heleninha, 65 anos, se destaca por sua limpeza e organização. A televisão, que nunca é ligada, fica em frente a uma cama, que ela diz usar quando seus familiares vem lhe visi-tar, deixando os quartos vazios para que eles se sintam o mais confortáveis possível. Na geladeira, fotos de suas netas e bisnetas, acompanhadas de lembretes que ela mesma escreve para não esquecer de seus compromissos.

Cozinheira de mão cheia, dona Heleninha aprendeu observando sua mãe na cozinha. A geladeira está recheada de doces, os quais ela nos oferece com orgulho: doce de mamão, de banana, de batata, goiaba e abóbora, todos feitos com produtos colhidos por ela ou por alguém dentro do assentamento. “Todo mundo tem que comer doce, mas eu mesma quase não como. Faço mesmo é pra dar pros outros, pros meus vizinhos e amigos e olha lá que eles gostam bastante”. Depois de provar um pouco de tudo e já de barrigas cheias, entendemos a fama que seus doces tem entre seus conhecidos. Ela diz que também gosta de preparar comidas salga-das mas que, para isso, precisa gastar dinheiro comprando os ingredientes. Como vem passando por algumas dificuldades econômicas, acaba se atendo principalmente aos doces.

Este ano, não foi aprovado o projeto que viabilizava a venda das verduras plantadas na horta comunitária às entidades ligadas ao assen-tamento. Diversas famílias perderam sua fonte de renda, sendo dona Heleninha uma delas. Ela nos conta que todos tem um espaço de terra para plantar, mas não há mais quem compre os produtos. Por isso, cultiva pés de amora, banana, entre outros, que utiliza para consumo próprio e para fazer esses doces. Além disso, ela dá a outros moradores do assentamento e reutiliza os frutos atingidos pela seca para alimentar as aves.

Além de visita de amigos e familiares, dona Heleninha nos disse que muitos estudantes da ESALQ (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz) costumam visitar o assentamento e con-versar com os moradores – desde novas maneiras para inovar a produção de cada um, até ensinar novas receitas de alimentos. Além de estudantes, o assentamento costuma receber visitas de técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e ela nos conta como muitos já provaram seus doces e os elogiaram.

Frente a escassez de recursos, nos chama atenção a solidariedade desta senhora, que diz existirem famílias em situações muito piores que a dela. Por não criarem e nem plantarem nada para consumo, eles acabam tirando da horta de Dona Heleninha. “Acho bonito as pessoas virem pedir, mas eles não pedem não.”, diz ela, calmamente, e afirma que nem chega a reclamar com algum organizador do seu núcleo sobre isso.

O funcionamento do “Milton Santos” – O assentamento é subdivido em núcleos, para

que seja mais fácil a forma de organizar a vida dos assentados. Dona Heleninha acha que dividir o assentamento nessas repartições foi uma coisa boa, porque acredita que se existisse apenas um núcleo seria difícil administrar tantas pessoas e suas vidas cotidianas, além de dificultar a cons-cientização política delas e sua organização. Ela mora no núcleo “Recanto Feliz” que, de acordo com ela, é o núcleo mais bem falado do assenta-mento, mas ressalva que não percebe quaisquer tipos de atrito entre os núcleos. “A gente se organiza melhor, pagamos a água sempre sem atraso, os pagamentos estão todos em dia.”.

Todos os núcleos possuem coordenadores, que garantem a comunicação entre eles e sua ar-ticulação política, já que não existe nenhum outro meio de comunicação como um jornal ou rádio. Nas reuniões, onde comparecem moradores do assentamento e, eventualmente, técnicos do Incra, eles tratam de assuntos ligados à ocupação, como futuros projetos e formas de aprimoramento. Exemplo disso é o projeto Pronaf (Programa Na-cional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que tem o intuito de atender os mini e pequenos produtores rurais que desenvolvem suas atividades através de sua força de trabalho e de sua família. Dona Heleninha, entretanto, não pode fazer parte dele, uma vez que é necessário o investimento inicial de uma quantia que ela não tem disponível no momento.

Ela acredita que foi com o intermédio do MST que eles conseguiram aquele pedacinho de chão. Defende que eles são responsáveis por isso em diversas outras regiões, como no Paraná, onde dois cunhados seus conseguiram um sítio por conta deles, “só que lá é um sítio grande, aqui é esse pedacinho.”, reclama ela. O assen-tamento tem um hectar e as divisas da casa de

dona Heleninha são marcadas por grades que ela mesma instalou. “Eu gostaria de ter ajuda, se o vizinho vem aqui e me oferece ajuda eu gosta-ria disso, quem que não gosta de uma ajuda”, confessa ela a respeito, também, da plantação de milho que cuida com tanto esforço.

No forno dentro da casa, uma massa que está tomando forma de pão caseiro divide espaço com cascas de ovos, que ela assa para alimentar as galinhas que cria. Dona Heleninha precisou reiniciar sua criação, que também inclui patos, após alguns animais invadirem o antigo cercado e matarem muitos deles. De sua rotina, faz parte o cuidado com seus animais e com a plantação de milho, que também usa para dar de alimento às galinhas.

Conta que já teve alguns animais de estimação, como gatos e cachorros, mas nunca comprou um, eles é que apareciam em sua casa. Uma vez, seu marido achou um gato pequeno no bairro Zanaga, em Americana, e o trouxe para sua casa; ele era da raça siamesa, e tinha olho azul. Nos disse que o gato cresceu e ficou muito bonito, chamando a atenção de todos que o viam, mas que depois de algum tempo ele acabou morrendo.

Quando seu marido morreu, ela disse que apareceu um gato no mesmo dia e que de tanto que ele miava, ela não conseguia dormir; ao resgatá-lo no dia seguinte, viu que o gato era, coincidentemente, da mesma raça que o que o seu marido havia lhe trazido, um siamês. “E ele era muito bonitinho, era um macho, e pra onde eu ia ele me ia atrás – eu ia busca milho pras galinhas, ele ia junto; ia ficar sentada na sombra, ele me acompanhava; mas até que um dia ele sumiu, e eu também não quis mais ficar com gato”.

Dona HeleninhaCONTRAPONTO

© M

aria

na

Cas

tro

Dona Heleninha e seu sorriso tímido, mas muito sincero

“Às vezes bate aquele negóCio ruim na gente,

ainda mais quando não Chega ninguém dos parentes.

quando eles vem, fiCa tudo muito bem, mas eles vão

embora e a gente sente a saudade, da um aperto, um

vazio na gente”

(dona heleninha)

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23CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Dezembro 2014

Os famosos doces dos quais a dona da casa

tanto se orgulha

Depois disso, em uma das vezes que sua filha foi lhe visitar, levou junto uma cadela, que logo de cara simpatizou com dona Heleninha. Quando sua filha foi embora, a cachorrinha não queria ir, e depois de muita insistência de sua filha, a senhora acabou ficando com o animal. Conta que ela era muito protetora de sua família, e sempre que outra pessoa entrava em sua casa, a cadela ficava atenta para ver se tudo corria bem. Cuidou muito bem do seu novo animal de estimação, até que um dia, quando entrou na Igreja no dia do culto, prendeu a cadela do lado de fora com uma corrente; porém, como chovia forte, e com pena do animal, dona Heleninha soltou a corrente, imaginando que ela fosse voltar pra casa. No entanto, no dia seguinte, a cadela apareceu muito doente e morreu pouco tempo depois. “Pra mim, ela comeu veneno e morreu. Agora também não quero mais arrumar nenhum bicho; só quando eu cercar a chácara, mas pra que isso fique pronto precisa aparecer o dinheiro”, nos conta.

Uma família de fortes laços- Sem aposen-tadoria e na espera, há seis anos, pela pensão devido a morte de seu marido, Sr. Luis, ela conta com a contribuição de suas filhas para manter a vida simples e calma que leva. Mãe de quatro filhas, avó de seis netos e bisavó de quatro, dona Heleninha não abre mão de receber os familiares, que hoje em dia moram no Rio Grande do Sul e em Várzea Grande. Hoje com 43, 39, 37 e 25 anos, suas filhas não completaram os estudos, sem razão aparente, e hoje trabalham em um comércio, um hospital, um colégio e uma lan-chonete, respectivamente. Todas são casadas e duas delas visitam frequentemente a mãe, além de falarem diariamente com ela. A cada 15 dias, dona Heleninha prepara os quitutes, arruma a

casa e abre as portas para elas, de quem fala tão carinhosa e apaixonadamente.

Viúva após o infarto de seu marido duran-te uma viagem a outro assentamento como parte de um grupo de apoio, ela diz sentir muita falta dele, com quem foi casada desde os 20 anos. “As vezes bate aquele negócio ruim na gente, ainda mais quando não chega ninguém dos parentes. Quando eles vem, fica tudo muito bem, mas eles vão embora e a gente sente a saudade, da um aperto, um vazio na gente”.

Moradora do assentamento há oito anos, dona Heleninha veio do Oeste do Paraná a pedi-do de seu companheiro. Eles se conheceram na escola, na qual ela estudou apenas até a quarta série, por dificuldades de transporte - ela e sua família moravam a 11km de distância da sua escola, e ela e seus irmãos faziam esse trajeto diariamente, a pé; havia uma escola próxima de sua casa também, mas nos conta que depois que ela desistiu, não quis mais voltar a estudar. Nascida no Rio Grande do Sul, ela morou com seus pais e onze irmãos e trabalhou no sítio da família até ter sua primeira filha, quando, então, se mudou para o Paraná. Ela nos conta, entre-tanto, que não perdeu o contato com os irmãos. Mesmo morando longe, ela também os recebe em sua casa e só não visita mais os familiares pois a viagem é longa e cansativa. No entanto, tem planos de ir visitá-los assim que tiver recursos suficientes, porque pretende ir de avião para não se cansar tanto no trajeto.

Dona Heleninha explica que o Sr. Luis gostava muito de viajar e nunca quis se assentar em um lugar só. Coordenador do movimento na época, ele gostava mesmo era de acompanhar a luta. “Quando eu tava querendo criar alguma coisa, ele vendia tudo e daí a gente saia”, conta

ela que, ao acampar na região pela primeira vez, cadastrou a chácara em seu nome e disse ao ma-rido que estava cansada de mudanças. Mulher de pulso firme em casa, assim como seu marido na luta. Ela participa das reuniões do assentamento como ouvinte, preferindo não se envolver muito. “Ela é um pouco devagar na luta”, relata uma de suas vizinhas e amiga, Vilma.

Quando se estabeleceram definitivamente no assentamento, o lugar já estava mais estável, ocupado há dois anos. O casal dividia o barraco que, hoje, serve de depósito para ferramentas e o estoque de milho para as galinhas. Pedreiro e carpinteiro, seu marido tinha planos de construir a casa em que agora mora dona Heleninha. Ele veio a falecer, entretanto, antes do término da construção, tendo que ser terminada por pedrei-ros contratados pela recente viúva; a construção, entretanto, foi demorada, pois quando a casa já estava quase finalizada, o pedreiro responsável fugiu com o dinheiro que ela estava lhe pagando, deixando a obra inacabada; só depois de chamar outro profissional é que a casa ficou pronta. Muito organizada e caprichosa, ela dizia que só mudaria para a casa quando estivesse tudo pinta-do e arrumado. Em resposta, disse ela em tom de brincadeira, sua filha falava: “Essa véia ta ousada né, mora debaixo do barraco e agora quer tudo pronto!” Hoje em dia, ela reclama a necessidade de ajuda dos vizinhos para a realização de tarefas simples, como trocar uma lâmpada. “Eu podia ter aprendido muita coisa com ele (Sr. Luis), e não aprendi.”

Sua vizinha de frente, Vilma Pironi, 56, vê dona Heleninha como uma mulher trabalhadora, que não para um segundo - seja trabalhando na sua horta, na limpeza da casa, ou cuidando de suas galinhas. “Ela vive mesmo pra trabalhar”,

“ela gosta daqui. tudo fiCou mais difíCil pra ela quando o

marido faleCeu e ela fiCou sozinha de repente. mas agora ela tá mais

animada, prefere viver aqui”

(vilma pironi)

Um dos trabalhos manuais da senhora é moer o milho que oferece às galinhas

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conta Vilma, e acrescenta que muitas vezes tem receios de ir visitar a vizinha, pois acha que pode acabar atrapalhando-a. Por ter sofrido um infarto e possuir atestado médico, Vilma não pode ser expulsa de seu lote. “Ele pode tá cheio de mato que o pessoal do Incra não pode me tirar daqui.”, mas também acrescenta que o certo mesmo é cuidar de seu terreno e que sua vizinha desem-penha com excelência esta função. Mulher muito tranquila e discreta, dona Heleninha tem poucos amigos dentro do assentamento, pois acaba fi-cando muito dentro da sua casa, com exceção de idas ocasionais à casa de algumas amigas, para conversar. Evangélica há 30 anos, ela frequenta os cultos quatro vezes por semana e diz que nunca gostou de sair para dançar e festejar, e que isso não foi algo imposto pela religião.

Por morar sozinha, recebe com frequ-ência críticas de seus familiares, que tem medo que alguma coisa aconteça com ela. Relata que seu irmão acha muito perigoso ela viver sem ter ninguém para lhe defender, mas dona Heleni-nha diz não ter medo: “Se Deus não guarda sentinela, homem nenhum guarda! Tem vezes até que eu deixo a chave na porta da entrada e não vejo problema nisso”. Vilma, entretanto, nos conta que, por serem as duas sozinhas, elas cuidam muito uma da outra. Se, ao longo do dia, Vilma não vê dona Heleninha do lado de fora da casa, cuidando das plantações e animais, ela já fica preocupada e vai conferir se ela levantou e se passa bem. “Cuidar mesmo. E ela a mesma coisa comigo, por isso eu aviso se vou viajar, pra ela ficar sossegada também.”, diz a protetora amiga.

Para se divertir, dona Heleninha conta que o que mais gosta mesmo é de receber visita dos seus parentes e amigos, e conversar com seus

vizinhos; a televisão que tem em sua casa, ela nem sabe ligar. “Eu gostava de assistir televisão, mas agora não gosto mais; não sei se é uma coisa boa que as pessoas fiquem assistindo sempre televisão, porque acho que muita coisa não presta ali, e também, tem muita coisa negativa lá.”. Conta que, além de cozinhar, gosta muito também de ler; lê, principalmente, a Bíblia, mas também aprecia quando algum vizinho lhe traz uma revista ou cartilha.

As diversas bíblias espalhadas no aparador da cozinha ilustram as falas repetidas de dona Heleninha a respeito do prazer que sente em servir a Deus, e como tem admiração por ele e pela religião. Frequenta os cultos que ocorrem na Igreja que tem dentro do próprio assentamento, com exceção dos domingos, quando costuma frequentar o culto organizado em Zanaga. Conta que seu marido também era religioso, assim como suas filhas. No entanto, afirma que ninguém a influenciou para virar evangélica, seus pais, por exemplo, não o eram e ela entrou para essa religião porque gostava de ler a Bíblia e queria seguir os exemplos descritos nela. A fé de dona Heleninha demonstra um conforto que ela utiliza para enfrentar os desafios do dia-a-dia.

Antes de se mudar para o Milton Santos, ela relata que sofria um seríssimo problema no coração, que a deixou internada no hospital du-rante o período de mudança de seu marido para o assentamento. Ao se mudar para Americana, entretanto, fez exames que comprovaram que não havia mais nada de errado com sua saúde. Desde então, seu maior contratempo médico foi a quebra de um braço, que a deixou engessada por 60 dias. Senhora forte e cheia de energia: uma vida de trabalho, algumas rugas na face e nenhum sinal de derrotismo.

O resto dos assentados se trata no posto de saúde do Zanago onde, em estados emer-genciais, eles são encaminhados para o hospital municipal de Americana. Não há médicos no assentamento e é necessário que algum morador leve, de carro, o doente ao posto. Esta é uma das melhorias que dona Heleninha clama às autori-dades, que praticamente abandonaram aquele povo à própria sorte. Sem hospitais, sem escola e sem água, são inúmeras e mais do que justificá-veis as reinvidicações feitas pelos moradores.

Quando lhe perguntamos se ela tinha per-cebido melhoras no assentamento desde que se mudou pra lá até os dias de hoje, nos respondeu que “ se for pra dizer que melhorou, melhorou muito pouco”. Diz que vai continuar morando na sua chácara porque já esta estabelecida lá, com sua casa, seus animais, sua plantação e seus colegas. Além disso, reforça que, por conta da sua idade, é cada vez mais difícil arranjar um em-prego na cidade e, como não é aposentada, não teria outra fonte de renda. Nos conta que tem uma chácara no Paraná que ganhou de herança e que hoje em dia seu irmão que cuida, mas que não tem uma casa construída dentro do terreno, e até que não se construa nada alí, ela não tem planos de se mudar para lá.

Se houvesse água nos lotes, por exemplo, dona Heleninha relata que faria uma horta em seu terreno e, assim, conseguiria um dinheirinho extra. Ela teve esta idéia em uma das excursões organizadas para conhecer outros assentamen-tos. Seus olhos brilharam ao falar do pomar que lá viu; mas, para regar as plantas e frutas é necessário água, e a que usa para beber, ela mesma precisa comprar. A água das pias e da descarga vem de um poço e, com a seca, foi grande o medo de que não fosse o suficiente,

Dona Heleninha na porta de sua casa: a simplicidade da vida no

assentamento

“eu não tenho tempo livre,”

Conta a senhora. trabalha diariamente em sua CháCara, Cuidando de seus animais e de sua plantação de milho, além dos afazeres da Casa

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A antiga casa de dona Heleninha

e seu marido, que hoje serve de

depósito

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como já ocorreu tantas outras vezes. Entretanto, existe um outro poço dentro do assentamento que ainda não foi ativado, nos conta.

Com relação a energia elétrica, ela se orgulha em dizer que eles foram os primeiros a instalar na região: compraram um poste e man-daram o eletricista ligar, nos conta a determinada senhora. Também há coleta de lixo, porém os funcionários estão em greve devido a conflitos nos seus pagamentos. Assim, o lixo tem se acu-mulado na frente da casa de dona Heleninha, que diz que ateará fogo se a greve se prolongar. Para sua frustração, diversas promessas de me-lhorias no assentamento são feitas, mas nunca de fato cumpridas. “A gente não recebe ajuda do governo. Cortaram meu beneficio do bolsa família faz dois anos. Falaram que iam voltar e nunca voltaram.”, desabafa ela.

Política e o assentamento- Dona Heleninha fez questão de votar nas eleições presidenciais que aconteceram em outubro. Sobre a campanha eleitoral dentro do assentamento, conta que ha-via todos os tipos de santinhos possível espalha-dos pelos núcleos, mas que as pessoas de dentro do assentamento em si não se mobilizaram tanto, foram as pessoas de Americana que o fizeram; ainda, disse que qualquer pessoa pode entrar no assentamento, mas que nunca viu representante de alguma empresa ir oferecer ajuda a eles, só pessoas do governo é que o faziam. Ela votou na candidata reeleita, Dilma Rousseff, porque tinha dúvidas “se a usina iria voltar a mexer com eles, caso o candidato da oposição ganhasse”. Dona Heleninha se refere à Usina Ester S/A, que man-tinha contrato de arrendamento com o grupo Abdalla nessa região, e que em 2013 tentava agir na justiça para conseguir reintegração de posse, expulsando as famílias do assentamento.

No assentamento, segundo relato de dona Heleninha, a maioria das pessoas não vo-tou na candidata do Partido dos Trabalhadores, porque associaram a presidenta à época desse período em que se discutia a possibilidade da reintegração de posse. Para ela “as pessoas cuspiram no prato que comeram, porque por mais que a Dilma não faça nada aqui pra gente, ela não vai mexer com a gente e com o assentamento; e se entrar o outro lá, ele vai mexer com tudo, nós não sabemos como ele ia comandar o país”.

Nos relata que muitas famílias tinham medo de serem despejadas porque não teriam pra onde ir e que, algumas vezes, representan-tes da usina iam até o assentamento, dizendo que o despejo iria acontecer. “Eu sei que não tava bonito o negócio; tinha gente que falava que não ia sair de dentro das suas casas, nem a força, e que preferiam morrer dentro delas”, acrescenta a senhora. Sua filha ligava todos os dias para ela e pedia para que arrumasse suas coisas, pegando somente o essencial, documentos e algumas roupas, e que saísse do assentamento, porque tinha medo que poderia lhe acontecer algum mal. “Minha filha falava que não era pra eu perder minha vida, porque a vida a gente tem só uma, e que era pra eu largar tudo lá e deixar que eles derrubassem tudo. Mas não, graças a Deus; e também, eu não teria pra onde levar a minha mudança e nem teria dinheiro pra pagar um carreto, porque ninguém faz nada de graça pra gente. E, de repente, as pessoas pararam com a ação de despejo porque eles anularam essa ordem judicial, e, então, eles pararam de vir aqui dentro; não sei quem que fez isso, se foi o governo, só sei que parou.”.

Disse que em nenhum momento desse processo agonizante ela teve medo, porque acreditava com toda fé em sua Igreja e sabia que, se Deus havia colocado eles lá, eles iriam ficar até o fim. O mesmo foi dito para a reeleição de sua candidata, “estava orando; era pra Dilma ganhar se fosse a vontade de Deus, e foi o que aconteceu – o povo não deixou o outro ganhar porque se fosse da vontade de Deus ele ganhava, mas não era”.

Muita da confiança que tinha em Dilma é proveniente de seu antecessor, o Lula. “Ele melhorou muita coisa pra gente. Muitas pessoas que moram na cidade nem podiam comer um pedacinho de carne, só dava pra pagar aluguel; se ia ao mercado, acho que toda semana subia o preço e desde que o Lula entrou isso não aconteceu mais; essa Dilma eu não tenho muito conhecimento dela, só ficou quatro anos né, mas tá bom; agora não aumenta o preço das merca-dorias como antes acontecia com o governo do Fernando Henrique Cardoso”, diz ela.

Mas apesar das dificuldades que ela en-frenta dentro do assentamento, Vilma acrescenta que dona Heleninha não tem vontade de ir embo-ra. “Ela gosta daqui. Tudo ficou mais difícil pra ela quando o marido faleceu e ela ficou sozinha de repente. Mas agora ela ta mais animada, prefere viver aqui. Sua ideia é igual a minha: enquanto a gente conseguir fazer a comida e a nossa higiene, a gente fica. Depois que a gente não aguentar mais, aí a gente vai encher o saco dos filhos.” Cidade grande não é pra ela. Com seu sotaque sulista, dona Heleninha nos conta que se sente presa quando vai visitar as filhas. Recentemente, ela precisou passar dois meses no Rio Grande do Sul, após uma cirurgia na bexiga. As escadas da casa eram muito altas, impossibilitando uma fácil circulação. Certamente, é daí que vem sua angústia: “Não via a hora de voltar pra minha casa! Eu não gosto de morar na cidade”.

Ao pedirmos por uma foto, ela timi-damente arrumou os cabelos, revelando uma vaidade antes questionada pela simplicidade em sua fala. O sorriso discreto, a voz baixa e o coração puro podem descrever dona Heleninha, uma senhora de poucas posses mas de uma fé inabalável. A calma transmitida por ela, desde sua fala preocupada a respeito dos problemas do assentamento até o prazer ao apresentar seus doces e especialidades, demonstram traços de uma personalidade que não se deixou enrijecer frente aos conflitos do dia a dia.

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Cozinheira de mão Cheia, dona heleninha gosta mais de Cozinhar

Comidas doCes, Como doCe de

batata e doCe de mamão

dona heleninha gosta de Cuidar de seus animais. hoJe, tem dez

galinhas e onze patos

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CONTRAPONTO26 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Dezembro 2014

Por manoella smith e maria eduarda Gulman

JAMAicA eM AMericAnABaiano de fé inabalável e espírito jovem com muitas histórias

para contar

O chão de terra ramificado por ruas íngremes e irregulares, cercado por

uma plantação verde, queimada pelo sol forte, e por casas simples que se espalham por pequenos lotes de terra, formam o cenário do Assentamen-to Milton Santos, localizado nos municípios de Americana e de Cosmópolis. Um homem magro de pele negra e barba grisalha comprida, sem camisa, usando uma calça jeans surrada, alguns colares no pescoço e um óculos de sol espelha-do, ao perceber a nossa presença em contraste com as características do ambiente, veio ao nosso encontro. Ao caminhar até a porta de sua casa com um sorriso simpático e convidativo, nos abordou e, com seu jeito divertido, Ailton Almeida de Souza despertou a nossa curiosidade e nos concedeu uma visita.

Conhecido por todos como Jamaica, o senhor de 60 anos, mas com espírito jovem, é fã do cantor Bob Marley. Todos que visitam sua casa deparam-se logo na porta de entrada com um altar com fotos, camiseta e adesivos relacio-nados ao rei do reggae e seu país de origem. A música brasileira também conquistou seu coração e Renato Russo é outro de seus cantores prefe-ridos. “A música do Renato é louca, fala tudo da vida!”. E que vida cheia de histórias é a de Jamaica, pai de seis filhos, avô de vinte netos e bisavô de um menino.

Em busca de uma nova vida – O seu berço é a Bahia, mas Ailton sentia mesmo que era mesmo diferente, sentia que aquilo ali não era o seu lugar. Saiu em busca de uma vida nova: o jovem Jamaica, com 17 anos, pegou sua mala de couro e foi para São Paulo. “Baianão, cabeludo, chinelão, pé comido”, ele lembra como chegou. Foi morar no bairro do Limoeiro com o irmão e, no ano seguinte, em 1972, se mudou para a Favela da Mandioquinha, localizada na zona oeste da cidade e lá, “veio uma baianinha, me engracei, aí ela ficou barrigudinha”, ele conta. Ao assumir a criança, Jamaica mudou-se do barraco da favela para uma casa alugada no Jardim das Oliveiras, no distrito de São Miguel Paulista, se demitiu de seu cargo como eletricista em uma firma e arranjou outro emprego. “Aí fiquei por lá, nascendo filho, um atrás do outro. Um ano nasceu dois por ano. Vou explicar por que. Três dias antes de uma fazer um ano, nasceu outro. Então dois por ano, não é?”

Quando tinha 46 anos, uma de suas filhas adoeceu em decorrência a um problema na medula que fez a criança passar quatro meses no hospital e sair de lá em uma cadei-ra de rodas, com problemas motores. Nessa época “tava sozinho, mulher já tinha pedido desquite, abandonado, tava lascado”, Ailton recorda. Nesse mesmo período, um de seus filhos que estava envolvido com o tráfico de drogas, em São Paulo, foi morto. Júnior, de 23 anos e pai de três filhos, foi assassinado a tiros do outro lado da rua de Jamaica, que ouviu os disparos. “Morava no Jardim das Oliveiras, atravessava um córrego, aí ouvi um tiroteio e

depois fiquei sabendo que meu filho estava no necrotério”, ele conta. Três dias depois da morte de Júnior, Jamaica também perdeu o cunhado, marido de sua irmã, “era igual a um irmão para mim”.

Jamaica deu a casa em que morava para a ex-mulher que, em troca, lhe deu um carro Gol, onde ele jogou suas roupas dentro e foi para casa de sua irmã, em Limeira. “Eu estava doido, ia para a beira da pista contar carreta, ‘será que meu filho ta vindo aí, na carreta?’. Porque o Sérgio [seu outro filho] era motorista de carreta”, conta Jamaica, “estava numa depressão, eu estava doi-do, menina, doido mesmo. Minha irmã me levava no médico. E eu ainda trabalhava... trabalhava... trabalhava como ajudante de pedreiro com um velhinho. Tinha sempre um dinheirinho”.

Um dia, seu patrão o questionou, “você é solteiro, por que ainda está trabalhando aqui [em Limeira]?”. Jamaica, que tinha saído da casa da irmã e alugado um quarto para morar, pon-derou sobre a questão e decidiu ir embora para a Granja Malavazi, que estava sendo ocupada pelo Movimento Sem Terra (MST). Fretou uma van para levar seus eletro domésticos e móveis

para encher um barraco que alugou por 60 reais, “o cara [arrendatário] falou, ‘Jamaica, você me dá 50 e depois me dá o resto’”, mas ele garante, rindo, que até hoje o dono não recebeu os dez reais que ficaram faltando.

No meio da entrevista, um menino che-gou na casa e entrou sem pedir licença. “E aí, Mateus? Tava trabalhando? Pega um banquinho e senta por aí. Colega tudo daqui”. Mateus, que veio para o Assentamento junto com Jamaica, nos cumprimentou e ficou para acompanhar a conversa. “Aqui é direto, todo mundo pensa que aqui é uma biqueira sabe? Uma vez entraram aqui e perguntaram o que eu tava vendendo, eu disse: ‘cai fora daqui, vagabundo, se eu tivesse vendendo droga eu não tava em uma vida dessa, eu tava na cadeia ou tava morto’”. Jamaica garante que a casa está sempre cheia, “moro sozinho e com Deus aqui, mas colega não falta”.

Sua participação na luta – Em 5 de dezembro de 2005 o MST foi despejado da Granja Malavazi e seguiu para a Fazenda Santa Júlia, próxima a Limeira. Jamaica, que seguiu o

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Ailton Almeida de SouzaCONTRAPONTO

Jamaica conta sua história

“meu apelido era JamaiCa, porque eu tinha um Cabelão

todo Crespo, que nem o do bob marley mesmo.”

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27CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Dezembro 2014

movimento, ficou lá até 23 de dezembro, quando o próprio Incra (Instituto Nacional Colonização e Reforma Agrária) conduziu as famílias com uma da escolta da Polícia Militar para ocuparem a terra. “A gente fechou a Anhanguera”, Jamaica recorda. Ele foi um dos primeiros moradores a viver no antigo Sítio Boa Vista. Quando chegou ao Assentamento, nove anos atrás, não tinha plantação, não tinha casa, não tinha nada.

No crepúsculo, o sertão virou mar e o mar virou sertão. “Quando chegou sete da noite começou a cair uma tempestade. Tava tudo inun-dado, a terra tombada. O pau quebrou, até meia noite”. Muitas pessoas do movimento foram embora, mas Jamaica permaneceu, mesmo com todas as dificuldades. “Eu vim de lá de Santa Júlia estava 36 horas sem comer, não comi lá e vim embora pra cá sem comer, fumando maconha. Quando foi de madrugada, não aguentei mais e desmaiei”. Ele se lembra que teve de comer leite em pó, no escuro, que uma senhora lhe entregou, “só penso como aquela mulher achou esse leite em pó no escuro, em uma bagunça daquela. É Deus mesmo... me salvou”. É com essa fé que Jamaica vive diariamente. “A vida é

casa nova, reformando ou o aumento do imóvel já existente. Os beneficiários do programa são o agricultor familiar, trabalhador rural e comuni-dades tradicionais, os quais devem situar-se na área rural do município, possuir vias de acesso, soluções para abastecimento de água, esgoto sanitário e energia elétrica. Os morados do As-sentamento estão nesse grupo, porém, ainda não receberam todo o auxílio prometido.

Jamaica estendeu sua fala afirmando que, lá no assentamento, ninguém ajuda o outro, e cada um fica responsável pelo desenvolvimento de seu próprio terreno. Ele persiste na ideia de que “falta à turma ter um pouco mais de ver-gonha e correr atrás do que é da gente. Todo mundo sabe os direitos que a gente têm e, os que não sabem, a gente procura ensinar. Por que os direitos não vêm? Não tem direito ao fomento, porque não vem esse fomento para gente gastar?” E mesmo com todas essas desa-venças, ele ainda acredita, “aqui é bom demais, você precisa ver”.

Ao ser perguntado sobre as ações do MST depois de ocuparem a terra, ele declara: “o MST nada. Não toca em nada, nada. Tirou o apoio

boa”, ele afirma com um sorriso. Boa, porém nunca fácil para Jamaica. No

começo, morou em um “barraco feio, de lona preta” por um ano até que saiu o fomento - ação do governo que visa facilitar o desenvolvimento da região, providenciar auxílio e apoio - entre-gando 15 mil reais para os moradores comprarem o material necessário para construírem as suas casas. “Sem saber de nada, meti o pau, vi os outros fazendo e fui fazendo” e, com 51 anos, Jamaica deu início à construção de sua casa de dois quartos, um banheiro externo, uma sala e uma cozinha. “Minha Casa Minha Vida tem que fazer casa para a gente. Era para ter começado em fevereiro, mas até hoje...”, ele relembra como o programa do governo prometeu construir 70 mil novas moradias e reformar outras 118 mil em um prazo de dois anos mas, por enquanto, nenhuma obra foi iniciada.

O programa “Minha Casa, Minha Vida” do Governo Federal tem um âmbito rural, voltado para a população que vive no campo, denomi-nado Programa Nacional de Habitação Rural. A finalidade é fornecer moradia digna ao agricultor familiar e trabalhador rural, ou construindo uma

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Quintal da casa de Ailton

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daqui. Não se mete não. Começa a se mexer quando quer fazer uma revolução, para ocupar terra, invadir terra, mas depois que passou, não deu nada”. Jamaica deixou explícito que nun-ca recebeu muito suporte, nada de nenhuma militância ou do governo. “Não dão nada pra ninguém aqui, nenhuma força, nenhuma ajuda para levantar uma parede”, acredita. Desde quando ocupou a região, nove anos atrás, a comunidade não recebeu as cestas básicas que foram prometidas e Jamaica afirma que já passou dias em que não tinha o que comer e, até hoje, a situação não melhorou muito. Ele espera que a presidenta Dilma Rousseff faça alguma provi-dência, ou até mesmo o Incra, que mesmo sendo “um direito deles de fazer tudo”, não dá toda a assistência necessária.

Sua casinha simples é sustentada pelos “bicos que faz aqui e ali”. Nos primeiros anos no Assentamento, Jamaica trabalhou como pedreiro em Americana “não tinha ônibus pra gente ir não, a gente ia de pé, uma hora para ir e outra para voltar todo dia”. Chegava tão can-sado que muitas vezes não conseguia preparar o que comer, ia direto dormir na cadeira da sala, para conseguir repetir a exaustiva rotina no dia seguinte. Hoje o ônibus já passa, mas a região ainda é carente de vários serviços de saneamento básico: o caminhão de lixo, por exemplo, ainda não faz coleta no Assentamento. Jamaica conta que seus filhos, embora façam visitas todo mês, o acham louco por ainda morar lá. “Tem que ser louco, não é?”, ele ri.

Jamaica busca outras formas de ganhar di-nheiro além do plantio, pois não consegue extrair muita coisa da terra. Além do que, na maioria dos casos, os moradores não recebem auxílio e pre-cisam pagar as mudas e as sementes com o seu próprio dinheiro, “você tem que tirar do bolso, tirar da barriga para fazer”. “Plantei milho, perdi, plantei amendoim, perdi, a terra é de cana, não dá. Já tem nove anos aí que ela ta desse jeito aí. Terra ruim, ruim”. Hoje, há 56 pés de limão que cercam a sua casa, que Ailton conseguiu comprar com o salário dos seus empregos informais. Ele planta para consumo próprio, pois acredita que o trabalho para escoar a produção em Limeira não compensa, “varejão eu sei onde tem para escoar, mas o cara tem que se matar”.

Processos para uma moradia digna – Foi criada uma Associação dos Pequenos Produtores do Assentamento Milton Santos (APPRAMS) da qual Jamaica e outros moradores participavam, “vendia mandioca, amendoim, banana, que eu plantava”, ele conta. Contudo, a organização não durou muito, “acabou de uma hora para outra. Tem gente que ainda tem bana-na, mas não tem para onde vender e agora está sem escoar”. Como Jamaica nunca dependeu muito da agricultura para a sua sobrevivência, ele admite que a associação não o faz muita falta, embora possua muitas críticas sobre a iniciativa. “Não gostei deles, tem gente até hoje que não recebeu. Se eles tivessem agido melhor..”, ele aponta.

Jamaica sonha em arrumar seu terreno, “óh minha filha, eu quero pegar o fomento para cercar meu lote… plantar, fazer um negócio bo-nito, uma quadra”. Mas encontrou um empeci-lho: não pode cercar sua terra com esse dinheiro. “Não sei por que não pode, eu conversei com o cara do bando e ele só me disse que não podia”, ele diz e exemplifica como a falta de informação prejudica os moradores da região diariamente. Além disso, a quantia recebida do fomento é suficiente apenas para construir a casa.

O Sítio Boa Vista pertence ao Grupo Abdalla, da fábrica de Tecidos Carioba, sendo desapropriado do mesmo em consequência de dívidas dos antigos proprietários. Em 2005, a posse foi repassada para o Incra que, como dito anteriormente, conduziu as 70 famílias, incluindo Jamaica, para o local. Nesse momento, o Grupo Abdalla alegou que o sítio tem um valor maior que a dívida, e solicitou sua terra de volta, pro-pondo dessa forma expulsar as famílias que lá moram. Essa luta judicial pode terminar com a vi-tória do MST e, com a consequente regularização da terra, as famílias passariam a ter propriedade sobre ela. Caso o Grupo Abdalla vença o processo as famílias serão expulsas de suas casas. “O Incra não vai querer me bancar, nada, vai me expulsar da terra até eu ter o direito dela e aí posso fazer o que eu quiser”, afirma Jamaica.

Em junho de 2012, foi concedida a limi-nar de reintegração de posse da área perten-cente ao assentamento. Já em 2013 a Justiça Federal em São Paulo determinou que a terra

Altar em homenagem ao seu filho morto e seu ídolo Bob Marley. “Aí pegaram um filho meu e mataram lá em São Paulo. Tava envolvido com o tráfico lá. Aquele alí (no móvel), o Júnior. Tinha 23 anos e já tinha 3 filhos

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onde está o assentamento é do Instituto Nacio-nal do Seguro Social (INSS), deixando revogada a reintegração de posse. Isso foi uma vitória conquistada com a mobilização dos assentados que fez com que afastasse o risco imediato de despejo. Esses resultados fizeram com que Ailton ficasse otimista em relação à luta pela terra, “vai sair sim, certeza, é direito da gente não é? É isso que eu estou atrás, da papelada”. E ele está correto, pois como redigido no artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

Apesar do espírito juvenil, Jamaica já sente as dificuldades físicas que surgem e o acompanham devido à sua idade. “Estou doen-te, a vista comendo tudo. Caindo as pestanas tudinho, vou no médico e ele disse que não tenho nada”, ele explica com um tom mais triste. Devido à assistência médica precária, seu problema na visão só se agrava e ele não possui nenhum remédio para passar. Sua filha e seu genro são enfermeiros, e também ajudaram sua ex-mulher que estava muito doente, usando cadeira de rodas e faleceu no fim de outubro. Seu outro filho, Sérgio, que dirigia carretas, hoje é advogado, se formou esse ano e Jamaica se enche de orgulho quando fala ao seu respeito. É o mais velho dos irmãos e mora na zona leste de São Paulo com seu filho.

Mesmo morando sozinho, Jamaica sempre tem companhia e sua casa está sempre aberta para seus colegas. Ele conta que as visitas à sua casa não são apenas dos moradores do Assentamento, “aqui vem pessoal da PUC, da USP, vinha direto logo no começo, agora parou. Tem uma professo-ra [da USP] que é muito sangue bom”. O ciclo de relações de Jamaica é, portanto, extenso e igual ao tamanho de sua simpatia: alunos e professores universitários, amigos de todas as idades que moram na região e sua família que sempre vai vê-lo. Com sua energia e seu jeito simples desperta a curiosidade em todos e sempre concede uma visita para quem passa.

A nossa conversa só teve f im quando chegou mais uma rodada de visitas à casa de Jamaica: uma mulher acompanhada de uma menina e de um menino, todos eles seus amigos. “A vida é isso aí...” diz ele por fim, antes de nos despedimos com um “até logo” e com seu convite para voltarmos lá algum dia. A vida de Ailton não é composta apenas por suas histórias - embora elas sejam muitas -, ela se apropria de tudo à sua volta: sua fé, seus colegas que estão sempre em sua casa, sua enorme família e sua luta diária que o tornam em uma pessoa tão singular.

“da vontade até de desistir, mas vou desistir?

depois de nove anos não pode desistir, não sou bobo, só se eu morrer antes. mas

deus não vai deixar.”

“meu nome é ailton almeida de souza. sou de são paulo vim lá da zona leste”

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seus filhos deseje permanecer no assentamento. Alguém deve preservar e cuidar do patrimônio conquistado e da história de sua luta.

No final do ano, fará nove anos que Napoleão conquistou seu pedaço de terra. Sua jornada começou na ocupação da Granja Ma-lavazz, da qual ele e outros assentados foram despejados após 15 dias. Sua próxima escala foi Santa Júlia, aonde também só permaneceu por umas duas semanas. E o destino final foi o terreno concedido pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), seu atual lar. O dia 23 de dezembro de 2005 foi um dos mais importantes episódios de sua história e será lembrado para sempre.

Em um comboio de aproximadamente 150 carros, carretas, caminhões, Napoleão e os outros assentados seguiram o caminho novo e incerto que lhes foi dado. Por volta das sete da noite, enfim, chegaram ao novo lar. A paisagem era composta basicamente por pés de soja e todo resto da área estava sem nada, apenas com troncos pequenos e mal cortados. A usina que ali funcionava havia destruído todo solo que serviria para as famílias. Porém a animação que tinham enquanto tiravam seus pertences dos bagageiros foi se liquefazendo, um temporal com direito a ventania se instaurou por aquelas terras, lavou a alma e tudo que tinham. Não era o começo que esperavam. Na manhã seguinte, revolta-dos pela recepção que tiveram, 200 famílias desistiram da luta. Hoje, 68 famílias guerreiras

Aqueles acostumados com o agitado cenário da metrópole paulistana es-

tranham a tranquilidade encontrada na casa do Seu Napoleão. A alma da casa eram as crianças. A mãe sentada em uma cadeira debaixo da árvore, apenas observava seu filho e suas filhas brincando. Gatinhos e cachorros também participavam das travessuras. Enquanto isso o patriarca da família, Napoleão Brito Pereira, depenava uma galinha para o almoço. Localizada entre os municípios de Paulínia, Americana e Cosmópolis e margeada pela rodovia Anhanguera, sua família é uma entre as 68 que compõem o Assentamento Milton Santos.

Há algo melhor do que acordar com os passarinhos cantando na janela? Para Napoleão, não. Seguindo sua linhagem familiar, na qual seu avô tinha uma fazenda e seu pai um pedaço de terra, sempre foi seu sonho se estabilizar e viver sossegado no campo. ‘’Agradeço a Deus, porque se eu tivesse na cidade, eu não tinha adquirido as coisa de hoje.’’ ele afirma. Como nada cai do céu, sua luta é diária e começa às quatro e meia da manhã. O plantio de banana, a barra-quinha de fruta, a borracharia e a reciclagem estão entre as atividades que esse pau pra toda obra se envolve. Esse pai de seis filhos é um dos poucos que consegue sobreviver trabalhando exclusivamente dentro do assentamento. Apesar do trabalho preencher quase toda a sua rotina, ainda sobra um tempo para se dedicar a religião. Toda terça e sexta-feira, a família vai ao culto da Assembleia de Deus, uma das várias igrejas que existem dentro do Assentamento.

Para Napoleão, é impossível não comparar a sua infância com a de seus filhos. Como era comum na geração passada, seu pai teve muitos filhos, cerca de 17, porém apenas criou 12, os demais morreram. A vida na roça não era fácil, o trabalho entrou na sua vida muito cedo. Estudar não era uma opção. Enquanto isso, hoje o estudo é mais acessível, há muitas oportunidades para se formar. ‘’Queria que no meu tempo fosse assim.’’, lamenta. Suas pequenas e seu pequeno estudam em um colégio que está localizado no próprio assentamento. Transporte é algo que também não falta, o ônibus passa na porta de sua casa, busca e traz as crianças sempre. Mesmo com todas essas facilidades que a ‘’meninada tem’’, eles não se esforçam como deveriam.

Atualmente somente metade de seus filhos moram consigo. ‘’Os filhos a gente sabe que tá com a gente até uma certa hora, mas eles são que nem filho de passarinho, bate asas e vão embora’’. Os mais velhos escolheram um cami-nho oposto ao seu: viver na cidade. ‘’Um trabalha em firma, outro em empresa de ônibus e o outro trabalha numa padaria e numa empresa’’, relata. Os três receberam ajuda do pai que lhes pagou o aluguel de suas moradias. Oportunidades de trabalho, aumento do poder de compra (sendo o carro o item mais desejado), vida agitada, tornam a cidade extremamente atrativa a essa juventude. A ‘’galera nova’’ não tem a mesma vontade que a velha guarda de lutar por um espaço do cam-po. Napoleão espera que pelo menos um desses

continuam escrevendo suas histórias em meio ao assentamento.

O semblante fechado e tímido de Napoleão esconde um combatente que enfrentou muitos percalços ao longo da vida. Apesar da conquista da sonhada terra, o quase sexagenário confessa que não refaria todo esse caminho, pois ‘’é dura a luta’’. A idade avançada provoca o cansaço e a fragilização de sua saúde, bate aquele receio de contrair alguma doença no coração, no pé e até mesmo de Chagas. Restam lembranças dos tempos difíceis do início da ocupação: o sofrimento de viver embaixo de lonas pretas, o medo da tempestade chegar e levar tudo, a falta de luz e água. Nova-mente afirma que os jovens de hoje não lutariam como ele no passado, não há a disposição nem a mesma conexão com o ambiente rural.

O Incra acaba sendo um dos obstáculos que desestimula a luta dos trabalhadores rurais. De acordo com Napoleão, são muitas promes-sas feitas não cumpridas, incluindo seis estufas, seis poços artesianos, encanamento, reforma das casas e o compromisso de inclui-los no programa ‘’Minha casa minha vida no campo’’. Atualmente são escassas as áreas cultiváveis no assentamento, pois o terreno está em processo de degradação física. Essa região era ocupada pela Usina Esther, cujo carro chefe era a produção de cana-de-açúcar. Como a água apenas atende a demanda do consumo pessoal, mesmo com as terras em mãos, os assentados têm que comprar a maioria dos seus alimentos na cidade.

“Agradeço a Deus, porque se eu tivesse na cidade, eu não tinha adquirido as coisas de hoje”

Por letícia dauer e talitha arruda

LutA seM fiMNem chuva, governo ou atrativas cidades impediram Napoleão de

construir sua história no campo

Napoleão Brito PereiraCONTRAPONTO

“o dia 23 de dezembro, quando nóis Chegou aqui, foi bravo’’

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Nenhum assentamento tem uma boa relação com o Incra, no Milton Santos não é diferente. Mais de uma dúzia de técnicos do instituto já os visitaram. O processo é sempre o mesmo, perguntam aos assentados quais são as suas demandas e pedem seus documentos para inseri-los no programa ‘’Minha casa minha vida’’. No final, tudo depende do superintendente que deveria assinar os requerimentos, porém não o faz. Assim a estagnação é eterna, os técnicos aparecem, porém as reclamações, principalmente a falta de água, não chegam aos ouvidos dos dirigentes. Como Napoleão diz ‘’ai vira uma bola de neve’’.

Contrariando o ditado popular, nem sem-pre a grama do vizinho é a mais verde. Ao visitar outros assentamentos, Napoleão relata que estão em condições piores quando comparados ao seu. Como o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) não tem uma boa relação com o Incra, isso dificulta a comunicação com os assentados e impõem certas restrições. No Milton Santos, o dia a dia é mais harmonioso. Por exemplo, a água destinada ao plantio das hortaliças é escassa, mas para o consumo básico não falta. Se acontecer algum problema com o poço artesiano, os mo-radores acionam a prefeitura e rapidamente são socorridos. Além disso, os moradores são muito unidos, raramente ocorrem brigas e ‘’quando acontece alguma coisa tipo quando vem polícia, ai já chega o pessoal pra defender, também te-mos dois advogados que nos defende’’.

“Luta”– A palavra que define o espírito e a trajetória de Napoleão. A cada justificativa ele a aponta como seu único e principal objetivo diário. Lutar e continuar lutando pelos capítulos que es-creveu nesse livro chamado mundo. Hoje, mesmo com a dificuldades que enfrentam, pois os auxílios governamentais são burocráticas, sua vontade é de aumentar sua produção de alimentos como frutas e também obter animais de grande porte, mesmo sabendo que não pode. Com 400 pés de banana atualmente, tem o projeto de plantar mais 500 e 200 de manga. Além do plano de expansão de sua produção agrícola, de mais uma coisa Napoleão tem certeza, nunca mais voltará para a cidade. Dos tempos em que morou em Limeira, lembra apenas da violência e do barulho.

Em relação ao futuro do assentamento, não há muitas expectativas sobre o prefeito de Americana recentemente eleito, Omar Najar (PMDB). Na opinião de Napoleão, ‘’tem um que tá ai se elegendo, mas ele quer ver nóis (assen-tados) bem longe daqui, só pelas costas’’. Najar é substituto de Diego De Nadai (PSDB) que foi cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral. A antiga gestão deixou como legado dívidas internas em torno de R$ 600 milhões. As esperanças estão depositadas no próximo governo da presidenta Dilma Rousseff. Mesmo confessando, meio enca-bulado, que votou no partido de oposição, espera que algo mude na vida dele e de todos que estão naquela situação, mas, se o cenário não mudar, a preocupação rondará suas noites.

“eu sou franCo pra falar pra voCê. se fosse pra mim voltar

lá atrás e refazer tudo de novo, eu não faria, porque é dura a luta

viu’’

IncraO Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) foi fundado para realizar a reforma

agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União. Criado no dia 9 de junho de 1970 pelo Decreto nº 1.110 e implantado em todo o território nacional por meio de 30 Superintendências Regionais.

O objetivo é implantar modelos compatíveis com as potencialidades e biomas de cada região do País e fomentar a integração espacial dos projetos. Outra tarefa importante no trabalho da autarquia é o equacionamento do passivo ambiental existente, a recuperação da infraestrutura e o desenvolvi-mento sustentável dos mais de oito mil assentamentos existentes no país.

Entre os serviços oferecidos pelo Instituto, estão incluídos: a construção e/ou complementação de estradas vicinais e o saneamento básico – através da implantação de sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário -, além de construção de redes de eletrificação rural, visando proporcionar as condições físicas necessárias para o desenvolvimento sustentável dos assentamentos.

Essas obras são executadas por meio de licitações públicas ou convênios com estados ou municípios. Elas ocorrem, ainda, por meio de parcerias com o Ministério de Minas e Energia (Programa Luz para Todos), Ministério da Defesa, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), entre outros.

No meio do caminho tem mais uma pedra – A indicação da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO) a ministra da agricultura é mais um obstáculo aos movimentos sociais. A escolha da presidenta Dilma Rousseff representa um retrocesso ao desenvolvimento do setor primário do país. Abreu está vincula-da à bancada dos ruralistas, cuja principal característica é tratar a terra como uma mercadoria e não como um bem de uso. Esse segmento é responsável pela modernização conversadora do campo, ou seja, apesar da mecanização do campo, as estruturas dos latifúndios, elevada concentração fundiária e monocultura, permaneceram intactas. Entre outras práticas estão o uso excessivo de agrotóxicos, as queimadas, o desmatamento e a especulação da terra.

Além disso, a futura ministra da agricultura comandou junto com Aldo Rabelo (PCdoB) e outros senadores a aprovação do novo Código Florestal, no qual entre seus polêmicos artigos está a redução das faixas mínimas de preservação prevista pelas APPs (Áreas de Preservação Permanentes) e a anistia dos desmatadores. A senadora também era uma das opositoras à Proposta de Emenda à Constituição conhecida como PEC do Trabalho Escravo que prevê a desapropriação de terra onde houver trabalho escravo. Logo não é coincidência que, em 2012, foram descobertos 56 escravos na fazenda Água Amarela, em Araguatins (TO), registrada no nome do seu irmão, André Luis de Castro Abreu.

A casa de Napoleão não seria completa sem seus cães e gatos

Apesar de ganhar pouco com ela, a barraquinha de frutas quebra um galho

Rodovia que dá acesso a casa de Napoleão

Atividade escolar realizada no barracão do assentamento

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JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP

ANO 14 N0 96 Dezembro 2014