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COERÇÃO, CAPITAL E ESTADOS EUROPEUS 990-1992 CHARLES TILLY Tradução Geraldo Gerson de Souza

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COERÇÃO, CAPITAL E ESTADOS EUROPEUS 990-1992

CHARLES TILLY

Tradução

Geraldo Gerson de Souza

LINHAGENS DO ESTADO NACIONAL

R E E X A M E D O S E S T A D O S E C ID A D E S

Lem brem o-nos d a definição de estado: um a organização distinta que con tro la os principais m eios concentrados de coerção dentro de um território bem definido, e em alguns aspectos exerce prio ridade sobre todas as o u tras organizações que operam dentro do m esm o território . (U m estado n a c io n a l , portan to , e sten d e o território em questão a m últiplas regiões adjacentes e m antém um a estrutura própria relativam ente centralizada, diferenciada e autônom a.) H om ens arm ados form am os estados por interm édio da acum ulação e concentração de seus m eios de coerção dentro de um determ inado território, d acriação de um a organ izaçãoque seja distinta pelo menos em parte daquelas que com andam a produção e reprodução no território,

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da apropriação, cooptação ou liquidação de outras concentrações de coerção dentro do m esm o território, da definição de fronteiras e do exercício do poder dentro dessas fronteiras. C riaram estados nacionais quando estenderam os m esm os processos a novos territó rios adjacentes e elaboraram ao longo do processo um a organização centralizada, diferenciada e autônom a.

A form ação e a transform ação da organização do estado resultam em grande parte dos esforços de conquista, e da m anutenção do dom ínio sobre as pessoas e a p ropriedade no território. E m bora os form adores de estados sem pre tenham em m en te m o d e lo s de c o n q u is ta e de d o m ín io , e no m ais das v e ze s sig am -n o s conscientem ente, é raro planejarem a construção passo-a-passo do estado criado por essas atividades. Não obstante, a sua atividade cria inevitavelm ente hierarquias de controle coercivo constituídas de cim a para baixo.

A o fo rm arem e tran sfo rm arem e s tad o s , os g o v ern an tes e seu s ag en tes consom em grandes quantidades de recursos, sobretudo recursos apropriados ao uso militar: hom ens, armas, transporte, alim entos. A m aior parte desses recursos já está inserida em outras organizações e relações sociais: fam ílias, propriedades, igrejas, aldeias, ohrigações feudais, ligações entre vizinhos. O problem a do governante é extra ir dessas organizações e relações sociais os recursos essenciais, assegurando- se ao m esm o tem po de que alguém renovará e cederá recursos sem elhantes no futuro. D o is fatores moldam o processo pelo qual os estados adquirem recursos, e afetam fortem ente a organização que resulta do processo: o caráter da h ierarquia do capital constituída de baixo para cim a, e o lugar dentro dessa hierarquia de um a situação qualquer da qual os agentes do estado tentam extrair recursos.

A gam a de cidades que um pretenso form ador de estado enfrentou na Europa foi m uito g rande. R ecorrendo a m ais um d iag ram a bid im ensional (figu ra 5.1), podem os d ispor as cidades de acordo com a extensão com que as suas atividades se articulam com as de suas zonas interioranas (de um vínculo superficial para um profundo) e segundo a sua posição dentro do m ercado (de um m ercado puram ente local ou reg iona l para um cen tro in te rnac ional de com ércio , p rocessam en to e- a cum ulação de capital). A ssim , no século XIII, F lorença, cu jos com ercian tes e arrendatários exerciam extenso controle sobre a terra, a produção e o com ércio em seu co n tado , se qualificava m uito m ais com o m etrópole do que G ênova, um a conexão in ternacional que apresen tava vínculos m ais fracos com o seu próprio interior. N o século XV, M adrid, m ais fechada dentro de si m esm a e de seu d istrito de C astela, parecia m uito m ais um m ercado regional do que L isboa, cujo dom ínio se estendia tanto dentro quanto fora de Portugal.

E ssa s d is tin çõ es são im p o rtan te s p o rq u e afetam c o n s id e ra v e lm en te os aspectos da form ação dos d iferentes tipos de estado. Quanto m ais a lta for a posição

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Figura 5 . I Tipos de cidades.

de um a cidade dentro do mercado, m aior será a probabilidade de que alguém ao c r ia r um a concen tração de fo rça seja fo rçado a n eg o c ia r com os cap ita lis ta s estabelecidos -nela, ou m esm o que seja um deles. Q uanto m aio r for a sua articulação com o seu interior, m en o r será a p rob ab ilid ad e de q u e um grupo iso lad o de proprietários de terra possa servir de contrapeso ou de in im igo da cidade e m algum p ro cesso de fo rm ação de estado. N os p rim eiros anos d e form ação do e stad o europeu, um a cidade que dom inasse o seu próprio interior e ocupasse uma posição no m ercado internacional ti nha uma grande probabilidade de constituir o seu próprio estado independente, fosse um a cidade-estado com o M ilão ou um a cidade-im pério com o Veneza.

Sob as condições predom inantes na Europa antes de mais ou menos 1800, n as reg iõ es onde p ro life rav a m c idades, o com ércio in te rnac ional e ra in ten so . A lgum as das cidades ocupavam posições centrais nos m ercados internacionais e o cap ital se acum ulava e concentrava. Em tais circunstâncias, ninguém c riava ou m udava um estado a não ser em estreita colaboração com os capitalistas locais. F landres, a Renânia e o vale do Pó ilustram vividam ente o princípio. As condições e ra m d ife ren te s o n d e a s c id ad es e ram esp a rsas ; n e sse s lo ca is , o c o m é rc io internacional desem penhava um papel pequeno na vida econôm ica, poucas cidades ( s e é que algum as)ocupavam posições elevadas no m ercado internacional e as taxas de acum ulação ou de concentração do capital não eram tão rápidas. Nessas regiões, com um ente os estados se form avam sem a colaboração ou a oposição efetiva dos capitalistas locais. N elas reinava a coerção. A Polônia e a H ungria são os m elhores exem plos. No meio, a presença de pelo m enos um centro im portante de acum ulação de capital numa região que de outro m odo seria dom inada pelos proprietários de terras tornou possível u m a trajetória interm ediária para o estado, um a trajetória na

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qual os detentores de capital e de coerção entraram em luta, m as acabaram por negociar um modus vivendi. Aragão e a Inglaterra fornecem exem plos desse caso.

Essas diferenças, na Europa, seguiram um padrão geográfico bem-definido. Em bora as regiões costeiras contassem com um núm ero m aior de cidades, os portos fora do M editerrâneo geralm ente tinham as suas zonas interioranas pouco desen­volvidas, e eram m antidos por regiões mais amplas controladas pelos proprietários de terras. A extensa faixa urbana que se estendia mais ou m enos do noroeste da península italiana até o sul da Inglaterra dom inava o m apa de soberania fragm enta­da, a zona de força capitalista na form ação do estado; quando o com ércio no A tlân­tico N orte, no mar do N orte e no Báltico adquiriu im portância, essa faixa funcionou com o um a espécie de percolador, bom beando para essa região m ercadoria, capital e população urbana do M editerrâneo e dos vários Orientes a que ela estava vin­culada. G randes e poderosos estados nacionais se form aram principalm ente nas franjas dessa faixa urbana, onde as cidades e seu capital eram acessíveis mas não avassaladores. Nas regiões m ais distantes, os estados ocuparam territórios até m aiores, m as até uma época razoavelm ente tardia exerceram apenas um dom ínio episódico sobre as pessoas e as atividades dentro de seu perím etro.

Figura 5.2 Concentração relativa de capital e coerção enquanto determinantes das trajetórias de cres­cimento dos estados.

E ssas c ircunstânc ias con trastan tes determ inaram tra je tó rias de m udança diferentes nos estados. Para tornar mais exeqüível a discussão, vam os esquem atizar de novo (v e r figura 5.2), reduzindo as m uitas trajetórias a apenas três. O diagram a afirm a que, no m omento em que os homens com eçaram a concentrar coerção em diversas partes da Europa, a presença ou ausência relativa de capital concentrado

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predisse (e até certo ponto causou) trajetórias de m udança da estrutura do estado d iferentes; em bora todas as regiões da E uropa tenham acabado por converg ir no grande estado nacional, a verdade é que os estados divergiram durante um longo p e río d o ; po r v á rio s sécu lo s , o estad o co erc iv o , o c a p ita lis ta e o de c o e rç ã o capitalizada progrediram separadam ente no tocante à estru tura e à ação. A pesar de toda a sua crueza, o diagram a perm ite estabelecer algum as distinções ú teis. N os países nórdicos, por exem plo, poderíam os esquem atizar as trajetórias alternativas esboçadas na figura 5.3. N a verdade, para levar a sério o esquem a, teríam os de reconhecer que, em várias épocas, a F inlândia, a Suécia, a N oruega e a D inam arca pertenceram todas a im périos e federações dom inadas por outros, que as fronteiras dos estados e possessões designados por esses nomes oscilaram consideravelm ente em conseqüência de conquista e negociação, que, antes do m eado do século XVII, a D inam arca produziu um a coligação clássica entre poderosos nobres senhores d e terra e um rei possuidor de terras e que, durante todo o tem po desde 900 d.C ., em algum as décadas apenas a Finlândia desfrutou de uma existência independente das potências vizinhas. Com essas qualificações, o diagram a fornece um a oportunidade de d e sc re v e r a fo rm a co m o a D in a m a rca in ic io u o m ilê n io co m o p o tê n c ia conquistadora pouco com ercializada, depois capitalizou-se com o com ércio c res­cen te entre a Europa O cidental e o B áltico até tornar-se m uito mais próspera do que seus vizinhos, enquanto que a F in lând ia continuou sendo po r m uito m ais tem po um estado com ercial atrasado, governado pela força.

Os países nórdicos criaram a sua própria variante de form ação coerciva do estado. Antes do século XVII, com preendiam um a das regiões da Europa in tensa­m ente rurais. M uitas cidades foram fundadas mais sob a form a de postos avançados fortificados do poder real do que com o centros com erciais significativos. A pesar

Figura 5.3 Trajetórias de formação de estado na Escandinávia.

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da im portância inicial de B ergen, Copenhague e outros centros com erciais com o postos avançados de com ércio , em 1500 nenhum a cidade da região tinha dez mil habitantes (deV ries 1984: 270). Com erciantes alem ães dom inaram por m uito tempo

-GooroéfciOescandinavo, a ponto de os conselhos da cidade e a geografia urbana se fragm entarem indistintam ente em setor local e setor alem ão diferentes.

O com ércio escandinavo tornou-se um quase-m onopólio da H ansa. As cidades hanseátícas expulsaram resolutam ente os banqueiros italianos e recusaram -se a criar bancos e instituições de créd ito próprios. Em vez disso, contaram com um com ércio eq u ilib rad o b ila tera lm ente , m uitas vezes em espécie (K in d leb erg er 1984: 44). Som ente com o fortalecim ento do com ércio báitico durante o sécu lo XVI é que com eçaram a aparecer na N oruega, Suécia, F inlândia e D inam arca concentrações sign ificativas de capital e de população urbana. M esm o então, os com erciantes holandeses que sucederam aos alem ães adm inistravam grande p a rte do comércio, do capital e da navegação. N o entanto, os guerreiros da região deixaram a sua m arca em m uitas partes da Europa.

N os séculos em torno de 900 d.C., os vikings e seus prim os fizeram grandes conquistas fora da região N orte e freqüentem ente fundaram estados dom inados por guerreiros-proprietários de terras. Entretanto, em geral foram incapazes de seg u iro m esm o sistem a em suas pátrias. Nelas, a proem inência da silv icultura e da pesca, a rarefação do povoam ento, o desproteção das fronteiras e a raridade de invasões externas se com puseram para garantir a sobrevivência dos pequenos proprietários e f ix a r lim ites à p o ss ib ilid ad e de os guerre iros se transfo rm arem em grandes senhores de terras. Em busca de um serviço m ilitar seguro, os reis suecos fizeram concessões que na verdade só fizeram m ultip licar os pequenos proprietários de terras. A té o século XVII, recrutavam a m aioria de suas tropas por m eio de variantes do m esm o sistema: os nobres (e mais tarde os cam poneses ricos) habilitavam -se à isenção de impostos se servissem como cavalarianos em troca de um serviço real m al-pago, enquanto que as pessoas comuns dividiam a responsabilidade de fornecer infantes e terras para eles e suas famílias. Com exceção dos m ercenários acantona­dos em zonas de guerra e nas províncias de fronteiras, esses arranjos se mantiveram sem grandes desem bolsos de d inheiro por parte da coroa.

A Suécia e a D inam arca m antiveram forças m ilitares im portantes por vários séculos. Sob o reinado de G ustavo Vasa (1521-60) e seus sucessores, a Suécia cons­truiu um form idável poder m ilitar à custa de subm eter grandes setores da econom ia às exigências do estado. A U nião Escandinava, constituída pela D inam arca, Suécia e N oruega (1397-1523), foi form ada em grande parte para a firm ar o poder real contra a dom jnação com ercial dos mercadores alem ães e da L iga H anseática. Entre outras m edidas, Vasa esbulhou o clero de sua propriedade e criou um a igreja p ro­

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testante subordinada ao estado. Gustavo Vasa, a exem plo de seus contem porâneos russos, também desenvolveu a idéia de “que toda a terra pertencia à coroa e os não- n abres que tinham a sua posse tem porária só podiam esperar conservá-la enquanto cum prissem suas obrigações fiscais para com o governo” (Shennan 1974: 63). A busca de dinheiro pelo estado para pagam ento da guerra num a econom ia em grande parte de subsistência causou a expansão da m ineração e da manufatura, a criação d o aparelho fiscal, o início de um a d ív ida nacional de grande vulto, o desrespeito às antigas assem bléias representativas e o crescente envolvim ento do clero (agora p rotestante e nacional) n a m anutenção de registros para a coroa (Lindegren 1985, N ilsson 1988).

A D inamarca, m ais com ercial, até a G uerra dos Trinta Anos financiou os seus conflitos com as rendas das terras da coroa. N a verdade, até 1660 nenhum cidadão com um podia possuir terra na Dinamarca. A guerra entre a Suécia e a D inam arca n a década de 1640 com binou-se com a depressão econôm ica para precipitar um a luta pelas rendas entre a aristocracia dinam arquesa e o rei eleito. Com um golpe de estad o , a coroa estabeleceu um a,m onarquia hered itária e lim itou grandem ente o poder dos nobres. M as isso significou reduzir a cooperação da nobreza. Em con­seqüência, a D inam arca m udou resolutam ente para a tributação, criando inclusive os pedágios lucrativos do Sund. “E nquanto que, em 1608, 67% das receitas do estado dinam arquês consistiam de renda das terras da coroa, m eio século m ais tarde tais receitas som avam apenas 10%” (Rystad 1983: 15). N a verdade, entre 1660 e 1675, para liquidar as suas dívidas de guerra, a m onarquia vendeu a m aior parte de suas terras (Ladewig Petersen 1983:47). Assim , as despesas bélicas no século XVII causaram as principais m udanças de governo tanto na D inam arca quanto na Suécia.

A Suécia (com o a D inamarca) alugou grandes contingentes de m ercenários durante a Guerra dos Trinta Anos, mas voltou a recrutar força nacional tão logo as necessidades de tropa aumentaram no final do século XVII. Carlos XI (1672-97) engenhou o seu go lpe d e estado com base n a retom ada aos m agnatas d a s terras da coroa que seus antecessores haviam vendido para financiar as suas guerras, e na d istribu ição posterior de grande parte dessas terras aos soldados extraordinários que assim tinham de prestar serviço m ilitar em troca dos m eios de subsistência. Por volta de 1708, a Suécia e a Finlândia (mais tarde uma província sueca) contavam com um efetivo de 111 mil soldados numa população total de cerca de dois m ilhões de pessoas (Roberts 1979: 45). A m onarquia sueca tinha constante necessidade de recu rso s financeiros, m as conseguiu pagar as suas guerras sem ir à bancarro ta m ediante a exportação de cobre e ferro, a construção de sua própria indústria de arm as sobre a rica base de m inérios existente, e a extorsão de enorm es pagam entos dos territórios que conquistou. Esse sistem a de tributação funcionou m uito bem

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enquanto perdurou a conquista, mas entrou em colapso com o advento da paz e do

governo estável.Com o assassinato de Carlos XII (1718), a Suécia abandonou o seu ím peto

rum o ao poder imperial. Contudo, mais ou m enos nessa época, a criação de um a grande força militar num a população pequena, num a econom ia relativam ente pouco m onetizada e num a burguesia exígua produzira um aparelho estatal bem grande no qual grande parte das atividades da coroa era exercida pelos burocratas civis e pelo clero. A N oruega (que até 1905 viveu sob o dom ínio dinam arquês, e depois sueco) e a F in lândia (que até 1809 foi um a província sueca e, depois, até 1917 um grão- ducado russo) experim entaram evoluções sem elhantes apesar de suas posições de dependência e de m aior periferalidade com relação aos m ercados europeus. A D inam arca, ao com andar o tráfego do Sund com os pedágios volum osos que ele gerava, ao destinar à m arinha um a porção de seu esforço m ilitar m aior do que seus v izinhos, e ao constru ir um a agricultura para o m ercado no com ércio com os alem ães ao sul, criou um a burguesia mais vasta e um aparelho estatal menor.

M esm o que a sua quantidade tenha aum entado g randem ente com a c o n ­solidação das propriedades depois de 1750 (W inberg 1978), os trabalhadores suecos sem terra nunca estiveram sob o dom ínio dos grandes p roprie tário s rurais. A o contrário, a burocracia do estado estendeu o seu dom ínio d iretam ente aos cam po­neses e trabalhadores do cam po, que m antiveram um considerável poder de nego­ciação; na verdade, na Suécia os cam poneses preservaram a sua representação por meio de um Estado (Estate) separado dos do clero, da nobreza e d a burguesia. Os estados que daí resultaram se organizaram em torno da coerção e ofereceram pouco espaço ao capital, mas não tiveram os grandes senhores territoriais com que con ta­ram os seus vizinhos ao sul.

Portanto, em com paração com o resto da Europa, todas as regiões nórdicas se aglom eraram ao longo da trajetória de intensa coerção que conduzia ao estado. N o o u tro ex trem o , as c id ad es-es tad o e as c id ad es-im p ério s c o m erc ia is da I tá lia seguiram um trajetória nitidam ente diferente, contando com altas concentrações de capital, m as concentrando a coerção de form a menos decidida e m ais tem porária que seus parentes do norte da Europa. O ponto principal é: as trajetórias de m udança nos estados europeus diferiram vividam ente e produziram tipos contrastantes de e stad o . A queles que seg u iram a tra je tó ria de coerção c ap ita liz a d a acabaram predom inando na Europa, e outros estados convergiram para as suas características. N o entanto , antes dessa consolidação tardia do sistem a europeu d e estado, m uitos outros tipos se formaram e funcionaram com bastante eficiência.

D eixem -m e recordar os pontos decisivos. Interagindo en tre si e envolvidos conjuntam ente em guerras internacionais, os governantes de d iferentes partes d a

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E uropa propenderam para atividades sem elhantes: tentaram cria r e usar a capacida­de de guerra em seu próprio benefício. M as cada um o fez nas condições altam ente variáveis estabelecidas pela com binação entre capital e coerção que p revalecia em seu próprio te rritó rio . C om binações a lternativas sign ificaram configurações de classe diferentes, aliados e inim igos potenciais diferentes, resíduos organizacionais da atividade do estado diferentes, form as diferentes de oposição à atividade do e sta ­do, estratégias d iferentes para a extração dos recursos e, portanto, níveis diferentes de eficiência nessa extração. Já que cada interação produziu novos resíduos o rgan i­zacionais e novas relações sociais, a trajetória tom ada por um estado até um certo m om ento lim itou as estratégias abertas aos seus governantes além desse ponto. Por esse motivo, m esm o os estados que ocupavam posições idênticas com respeito à coerção e ao capital em m om entos diferentes se com portaram de modo um pouco diverso. N ão obstante, as grandes distinções separavam as três trajetórias de fo r­m ação do estado: a que aplicava coerção intensa, a que investia m uito cap ita l e aquela onde a coerção era capitalizada.

T R A JE T Ó R IA S C O E R C IV A S

Exam inem os a trajetó ria que passava por in tensa ap licação d e coerção. N a parte européia da URSS atual, as rotas de com ércio eram fracas e careciam de capital. E m 990 d .C ., o p rin c ip a l cen tro de co m érc io e de m an u fa tu ra e ra K iev, que constitu ía o ram al setentrional da grande faixa com ercial que ligava B izâncio à ín d ia , à C hina e ao resto do m undo civ ilizado; K iev ficava tam bém na ro ta de com ércio norte-sul m enos im portante que ligava o B áltico a Bizâncio. No ano d e 988 , d iz a trad ição , o p rín c ip e V lad im ir de K iev h av ia c im en tado a c o n ex ã o bizantina quando aceitou ser batizado em seu ramo do C ristianism o. Os príncipes de Kiev, descendentes daqueles vikings que haviam rum ado para o sul em busca de conquistas, exerciam um a soberania fraca sobre os governantes d e outras cidades- estados russas e ducados regionais. N aesfera local, grande parte da terra continuava sob o dom ínio das com unas cam ponesas; com o no restante d a Europa O riental, os proprietários rurais conseguiram extorquir renda dos cam poneses sob a fo rm a de direitos, laudêm ios, taxas de uso e trabalho em tem po parcial em suas herdades, m as foi com d ificuldade que intervieram na adm inistração das famílias e co m u n i­dades de seus próprios pedaços d e terra. A rarefação do povoam ento facilitou m ais ou m enos aos cu ltivadores a fuga de patrões opressivos e a procura d e refúgio nas terras de outros senhores. O s grandes senhores de terras tam bém sofreram repetidas incursões e conquistas po r parte dos povos nôm ades da estepe. No entanto, num a

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escala m aior, os senhores de terra arm ados relativam ente independentes dom inaram a m aior parte do território.

A oeste, em 990 d.C ., crescia um estado polonês com a conquista de territórios pertencentes nom inalm ente ao Sacro Im pério R om ano. Ele se expandia tam bém para o leste; em 1069, seu grão-duque com andou seus exércitos até K iev e colocou um de seus parentes no trono da Rússia. A noroeste, os estados vikings faziam periódicas tentativas de estender as suas fronteiras às terras reclam adas pela R ússia e pe la Po lônia. Um belicoso estado búlgaro esticava os m úsculos a sudoeste da R ússia. N a m esm a região, os reis da B oêm ia e d a H ungria (este recém -coroado) de fin iam ig ualm en te as suas próprias zonas d e dom inação . E m to rno da o rla ocidental d a E uropa - notavelm ente nas Ilhas Britânicas, na Península Ibérica e na Itália - os invasores arm ados que partiam continuam ente da E scandináv ia e do O riente M édio com um ente se apossavam de terras e criavam estados baseados na agricu ltu ra ; em bora esparsam ente , estabeleciam -se na terra. E m com pensação, quase todo o terço oriental da Europa se consolidou em estados extorquidores de tributo que reclam avam prioridade em grandes territórios mas os governavam com laços bastante frouxos, se é que os governavam.

N o L este , os conquistadores nôm ades ao m esm o tem po am eaçavam a he­gem onia de qualquer estado de vulto e m antinham um forte investim ento na ex is­tência con tínua de estados agrários que pudessem explorar. Q uando aum entaram bastante a sua população e adquiriram força suficiente para fixar-se com o parasitas a estados existentes, alguns deles o fizeram gradativam ente e form aram os seus p róprios estados exploratórios. D e todas essas form as, criaram o padrão leste- europeu de form ação do estado para os miT anos posteriores a 500 d.C. Um após outro, rugiram fora da estepe: búlgaros, m agiares, petchenegues, m ongóis, turcos e m uitos outros povos m enores.

A s invasões a partir do Sudoeste prosseguiram m uito depois da passagem do m ilê n io , a lc an çan d o o seu apogeu na d é ca d a de 1230, q u a n d o os m o n g ó is saquearam Kiev e estabeleceram hegem onia em seus territórios. N esse m omento, os m ongóis estavam prestes a governar a m aior parte da Eurásia, da R ússia à China. É verdade que, na m aior parte de seu território, esse “governo” consistia de pouco mais q u e a ex igência de subm issão form al, a exação de tribu tos, a derro ta dos pretendentes rivais e a prática de incursões m ilitares ocasionais sobre súditos pouco cooperativos. Não obstante, por dois séculos, os príncipes russos pagaram tributo e hom enagem à Horda de Ouro, que estabeleceram a sua capital no baixo Vblga. N a realidade, os cãs da H orda habitualm ente obrigavam os filhos dos príncipes russos governantes a residir na capital m ongol, servindo assim de reféns às condutas de seus pais (D ew ey 1988: 254).

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Do século XV em diante, a freqüência e intensidade dos ataques vindos do Sudeste parece terem declinado à m edida que o império m ongol central entrou em co lapso e os cavaleiros arm ados da estepe voltaram a sua atenção para os estados vulneráveis e mais ricos ao longo de seu flanco m eridional. Quando os tártaros saquearam M oscou em 1571, involuntariam ente m arcaram o final das principais incursões à Rússia. D urante o século XVII, os mongóis zunghares realmente co la ­boraram com os russos na conquista da Sibéria. É bastante provável que a com ­b in ação de doença devastadora (sobretudo pestef na e s tep e eurasiá tica co m a abertura européia das estradas marítim as que ofereciam alternativas viáveis à antiga estrada de caravanas da C hina e índia à Europa diminuiu a am eaça da estepe aos criadores dos estados russos (McNeill 1976: 195-96).

M ais ou m enos em 1400, a Europa do Vístula aos U rais se consolidava em grandes estados, que com preendiam a Lituânia, a república de Novgorod e o reino da H orda de Ouro. A noroeste, a Prússia dos Cavaleiros Teutônicos e um a D in a ­m arca que abrangia tem porariam ente a Suécia e a N oruega dom inavam o B áltico. D urante a primeira m etade do século XVI, os extensos grãos-ducados de L ituânia e M oscou dividiam a região situada acim a da faixa de reinados m uçulmanos que se estendiam desde o leste ao longo do litoral norte do mar N egro até a Hungria, G récia e o Adriático. (Em 1569, a L ituânia unir-se-ia à Polônia, a oeste, interpondo um im enso estado, em bora fracam ente governado, entre a R ússia e o resto da Europa.) O estabelecim ento, no século XVI, de um a rota do m ar Ártico desde a Inglaterra e a H olanda atéA rkhangelsk fortificou as conexões européias do crescente estado russo.

As conquistas de Pedro, o Grande (1689-1725), e de Catarina, a Grande (1762- 96), estenderam as fronteiras da Rússia definitivam ente ao m ar Negro e provisoria­m ente à Estônia, L etônia e Carélia. Esses dois soberanos intensificaram o envolv i­m ento da Rússia na cultura e política da Europa Ocidental. O término das G uerras Napoleônicas deixou a R ússia européia dentro mais ou m enos de suas fronteiras atuais, lim itando-sé com á Prússia, a Polônia, a Hungria e o Império"O tom ano. O estado otomano, ele m esm o um resultado da conquista a partir do leste, com preendia os B álcãs eestend ia-se a o oeste até to c a ra fa ix a delgada de território austríaco que c ircundava o Adriático. Entre os séculos XVI e XVIII, toda a fronteira oriental da E uropa se consolidou em estados que reclam aram o dom ínio de grandes extensões de terra. Ao mesmo tem po, o estado e a econom ia russas m udaram as suas o rien ta­ções do sudeste para o noroeste. Com parados aos estados extorquidores de tributos dos séculos XIII e XIV, esses estados exerceram dom ínio significativo sobre as suas fronteiras e poder substancial sobre as populações em seu interior.

A Polônia continuou sendo, durante séculos, a exceção que provava a regra, o país em que o governante nominal nunca pôde dom inar os grandes proprietários

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de terras e raram ente conseguiu mantê-los coesos num esforço m ilitar sustentado e coordenado. Durante a década de 1760, quando o estado polonês ainda ocupava um território m aior que o da França, o exército nacional con tava apenas 16 m il hom ens, enquanto os nobres poloneses tinham uns 30 mil hom ens em armas. Isso ao m esm o tem po em que as lim ítrofes Rússia, Áustria e Prússia possuíam exércitos de 200 a 500 mil hom ens (R atajczyk 1987: 167). À m edida que se form aram exércitos em massa, o fracasso em igualar-se aos seus grandes vizinhos, ou em pplo m enos aliar-se a um deles, convidou à conquista. No final do século XVIII, a Rússia, a Á ustria e a Prússia engoliram setores adjacentes da Polônia, acabando por não deixar ninguém atrás de si.

A Polônia caiu presa sucessiva da Prússia, da Áustria e da R ússia no século XIX, mas, afora isso, as fronteiras européias da Rússia continuaram relativam ente estáveis até a Prim eira G uerra Mundial, cujo acordo final estabeleceu uma série de pequenas repúblicas, além de um a extensa Polônia, a oeste da recém -form ada U nião Soviética. A Segunda G uerra M undial trouxe algum as dessas repúblicas de volta ao território estadual da URSS e colocou as restantes em sua órbita. D iscutir a for­m ação do estado “russo” é, assim , seguir um a série titânica de m udanças na hege­m onia e no território.

A ntes do século XX, nenhum desses territórios continha um a grande concen­tração de cidades, e poucos se estendiam às regiões de com ércio intenso do con ti­nente. N a verdade, depois de 1300, com a contração do antigo cinturão com ercial que ia da China aos B álcãs (e, portanto, de sua expansão para o norte até o B áltico) e com o bloqueio pelos m ongóis predatórios do acesso ao M editerrâneo e ao m ar Negro, a rede outrora próspera de cidades que abrangia Kiev, Sm olensk, M oscou e N ovgorod se adelgaçou. A revivescência do com ércio, no século XVI, m ultiplicou as cidades, mas não criou nada que se assem elhasse à densidade urbana da Europa O cidental e m editerrânica. O estado russo tom ou form a num am biente pobre de capital.

No entanto, o am biente era rico de coerção. Durante cinco séculos após 990 d.C ., os vários estados que se desenvolveram nessa parte da E uropa operaram a través d a conqu ista , a lim en taram -se de trib u to s e g o v ern aram (a p a lav ra é exagerada) por interm édio de magnatas regionais dotados das suas próprias bases de poder. Sob a hegem onia m ongol, os príncipes am plam ente independentes do N orte dividiram a sua soberania com os senhores de terras que fundiram o dom ínio econôm ico e político dos cam poneses em suas jurisdições. D urante o século XVI, quando os estados m ongóis entraram em colapso, as conquistas russas ao sul e a leste criaram um sistem a de concessões de terra e de trabalho aos guerreiros, de trabalho forçado por parte dos cam poneses, de restrições aos direitos destes de se

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m udarem e de tributações para a guerra; com eçavam a aparecer os traços du radou­ros da servidão russa.

A té esse m om ento , os im peradores russos tentaram governar um ex tenso te rr itó rio com fo rça in su fic ien te . G o v ern aram de m an e ira m uito d ire ta , por in te rm éd io de um a ig re ja e um a no b reza que detinham trem en d o s p o d e res e m antinham a capacidade de controlar as exigências reais. O s czares m oscovitas Ivan III (o Grande, 1462-1505) e Ivan IV (o Terrível, 1533-84) com eçaram a e stabelecer um governo mais direto m ediante o solapam ento do poder dos senhores de terra independentes; em seu lugar, criaram um exército e um a burocracia ligados à coroa a través de concessões im periais de terra aos seus principais oficiais e funcionários. R elata Jerom e Blum,

Ivan [o Grande] e seus sucessores concentraram-se em instituir as forças militares de que ne­cessitavam para conquistar seus príncipes irmãos, para esvaziar as ambições oligárquicas de seus próprios boiardos, para rechaçar as invasões estrangeiras e expandir o seu reino. N eces­sitavam de um exército que fosse tão dependente quanto possível deles, e com cuja lealdade, portanto, podiam contar sempre. Mas careciam do dinheiro para comprar os homens e a leal­dade de que precisavam. Assim , decidiram usar a terra.

(Blum 1964: 170-1.)

E ra essa a estratégia perfeita de aplicação da coerção. Com o a m aior pa rte da terra essencial pertencia a senhores arm ados, sem i-independentes, a reorganização dos czares precipitou batalhas sangrentas contra a nobreza. O s czares venceram . N o processo, os senhores de terra que desfrutavam do favor imperial obtiveram um a vantagem surpreendente sobre os seus vizinhos rebeldes: puderam contar com a fo rça arm ada do governo para f ix a re m suas terras um cam pesinato que de outro m odo seria totalm ente desvinculado. A ssim , a lógica da p rática da guerra e fo rm a­ção do estado num a região de pouco capital levou os governantes a co m p rar os detentores de cargos com a terra expropriada. No final, os governantes da R ússia acabaram por estab e lecer o princíp io segundo o qual som ente os serv idores do e stad o podiam p o ssu ir terras; e m b o ra tenham sido ab u ndan tes as ex ceçõ es e violações, o princípio forneceu mais um incentivo à m ultiplicação de cargos e à co laboração en tre os funcionários e os p roprie tário s ru ra is na ex p lo ra çã o dos

cam poneses.A noroeste a co locação de pequenas fazendas nas m ãos dos de ten tores de

c a rg o que v isavam ap en as lu cro aum en to u a p ressão so b re o s c am p o n eses . C o m b in ad a com a ab ertu ra d e novos territó rio s ao sul e a leste , e ssa p ressão provocou um despovoam ento das antigas áreas d e agricultura sedentária, fa to que fez crescer o incentivo para fixar os cam poneses na região através de m anipulação

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local e decreto im perial; o cham ado Código de R eunião de 1649 codificou um sistem a de servidão que vinha sendo desenvolvido há dois séculos. Além disso, o traba lho escravo, sobretudo em áreas de povoam ento mais recen te , continuou a expandir-se no decurso dos séculos XVI e XVII. Durante o século XVIII, quando ten taram extrair renda tanto dos escravos quanto dos servos, os czares elim inaram p raticam ente a distinção legal entre eles. D epois de um a ten tativa fracassada de tribu tar os cam poneses individuais, Pedro, o Grande, atribuiu aos proprietários de terra a responsabilidade pelo im posto por alm a, um ato que fortalecia a interdepen­dência entre a coroa e os senhores de terra, sem falar do poder, endossado pelo es­tado, que os proprietários rurais detinham sobre os seus servos desafortunados. Um decreto de Pedro, em 1700, afirm ava que todo escravo ou servo libertado devia apre­sentar-se im ediatam ente ao serviço m ilitar e, se fosse recusado para o serviço, devia sujeitar-se a outro senhor. Pedro criou igualm ente uma nobreza distintiva, graduada explicitam ente de acordo com o serviço prestado ao czar. Num grau inim aginável na E uropa Ocidental, a R ússia adquiriu um a hierarquia social definida, suportada e dom inada pelo estado.

C onstitu ída de c im a para baixo, a estru tura em ergente de relações sociais estav a subordinada à coerção. Q uando o estado russo com eçou a em penhar-se seriam ente na guerra com seus vizinhos ocidentais fortem ente arm ados, o esforço para ex tra ir rendas essenciais de um a econom ia pouco com ercializada multiplicou a e s tru tu ra de estado. A o m esm o tem po, a co nqu ista das te rras situadas entre M oscóvia e o Império O tom ano expandiu o aparelho militar, exportou a form a russa de serv idão e propriedade da terra e construiu a burocracia im perial de m aneira p lena e m aciça. Pedro, o G rande, deu início ao grande esforço para elim inar os se p a ra tism o s , su b m e te r to d o s os se to res do im p ério - e su a s ren d as - aos regulam entos m oscovitas e à adm inistração central;

A campanha de Pedro para eliminar o separatismo ucraniano era acompanhada de uma política de extração do máximo de recursos econôm icos e humanos do hetmanato. Foram introduzidos pela primeira vez regulamentos sobre as rotas de com ércio, os monopólios do estado, as tarifas sobre produtos estrangeiros e impostos de exploração e importação. [...] Pedro deu início também a um recrutamento m aciço de cossacos, não para fazer guerra mas para executar as obras públicas imperiais: construção de canais, fortificações e, sobretudo, o projeto predileto de Pedro, a nova capital de São Petersburgo.

(Kohut 1988: 71; ver também Raeff 1983.)

C atarina, a G rande, com pletou a incorporação da U crân ia quando aboliu in te iram ente o hetm anato sem i-independente. A m esm a burocrac ia estendeu-se então a todas as partes do im pério. O desafio da guerra com a França napoleônica,

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que transform ou a estru tura estatal em grande parte da E uropa, fortaleceu o estado russo, aumentou o seu orçam ento, a tributação e o quadro de pessoal, expandiu o seu contingente m ilitar e confinou localm ente um estado profundam ente coercivo.

De m odo m uito sem elhante, o estado russo, o polonês, o húngaro, o sérv io e o brandenburguês se form aram com base em fortes alianças entre príncipe belicosos e senhores de terras arm ados, em grandes concessões de poder governam ental aos nobres e à pequena nobreza, na exploração conjunta do cam pesinato, e restringiu o cam p o de ação do cap ita l do com ércio . R epetidas vezes, os líderes das fo rças conquistadoras que careciam de capitai ofereceram a seus adeptos terras e o produto d a pilhagem , com o único intuito de enfrentar o problem a de conter os g randes senhores de terra guerre iros que eles acabavam criando com essa po lítica . Os m ongóis constituíram exceções porque raram ente se estabeleceram para adm inistrar as suas próprias terras e habitualm ente continuaram a v iver do tributo extorquido p ela perpétua am eaça de um a invasão assoladora.

Em bora o peso relativo da coroa e da nobreza (e, portanto, a extensão com q ue a guerra criou u m a estru tu ra de estado duradoura) te n h a variado co n sid e ­ravelm ente de um estado para o outro, todos esses estados se distinguiram dos seus vizinhos europeus pe la intensa subordinação à coerção bruta. Quando, no século XVI, grandes volum es de grãos da Europa Oriental com eçaram a fluir para o O este, a estrutura existente de dom ínio deu aos grandes senhores de terras condições de lucrar d iretam ente com esses em barques; usaram então o poder do estado p ara con ter os m ercadores e coagir os produtores cam poneses, construindo no processo um a nova servidão. N esse equilíbrio de poder, m esmo a extensa com ercialização não edificou cidades, não criou um a classe capitalista independente, ou um estado m ais sem elhante aos da Europa urbana.

A experiência da S icília curiosam ente se equipara à das potências da E uropa O riental. Durante séculos, a Sicília foi um celeiro, um a fonte rica de grãos para todo o M editerrâneo. "Não obstante, os governantes árabes e norm andos instituíram na ilha um sistem a de aliança com os senhores de terras que estavam na-ativa m ilitar, o qual deixou às c idades e aos capitalistas um cam po de ação m uito pequeno. O rei Frederico II, que subiu ao poder em 1208, subordinou as cidades ao seu m agnífico estado. Relata D ennis M ack Smith:

A submissão das cidades por Frederico ajudou a assegurar que nunca pudesse haver uma classe de comerciantes ou funcionários civ is suficientemente independentes e vigorosos para compensar a aristocracia proprietária de terra; e essa falta de desafio à aristocracia seria depois um fator fundamental para o declínio político, cultural e econôm ico da Sicília. Onde quer que fraquejou o governo forte, foram os nobres e não as cidades locais que preenche­

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ram o vácuo de poder. Foram, portanto, as cidades estrangeiras — Pisa, Gênova, Veneza, Amalfi, Lucca - que dominaram o comércio siciliano.

(M ack Smith 1968a: 56 .)

Esse dom ínio externo sobre o comércio persistiu por seis séculos, com um a conse­qüência: um a Sicília de agricultura rica continuou pobre de capital e sujeita a um a dom inação coerciva.

Com eçam os a perceber um padrão de uniformidade e variação entre trajetórias de form ação do estado que empregam intensa coerção. Todas as regiões da E uropa de intensa coerção principiaram com algum a com binação de duas condições: (1) um esforço m aior para expulsar uma potência extorquidora de tributos, (2) poucas cidades e pequena concentração de capital. A expulsão dos extorquidores de tributos teve um a importância relativam ente pequena nos países nórdicos, a extensão das cidades e do capital foi m aior na Península Ibérica e na S icília do que na Europa O rien ta l e S e ten trional. M as, em toda a parte , a co m b in ação estim ulou um a estratégia de conquista em que os senhores territoriais sim ultaneam ente se aliavam contra os inim igos com uns e lutavam entre si por prioridade dentro de seu próprio território, com o resultado de que o senhor dirigente cedia dom ínio sobre a terra e o trab a lh o a seus cam aradas em troca de assistência m ilitar. N o conjun to , e ssa estra tég ia deixou pouco espaço para um a burguesia autônom a, portanto para a acum ulação e concentração de capital fora do estado.

Com eçaram aí as diferenças. Em algum as regiões (Polônia e Hungria são os ex em p lo s óbv ios) os no b res guerre iros d e tinham g ran d e po d er, in c lu s iv e a capacidade de instalar e depor reis. Em outros (a Suécia e a R ússia são os casos em questão ) um poder iso lado esforçou-se por estabe lecer p rio rid ad e m edian te a construção de um a b u rocrac ia estatal que proporcionou aos nobres e ao c lero grandes privilégios em relação à população com um , mas lhes consignou o serviço do estado. Em outros a inda (vêm à m ente S icília e C astela), um a nobreza cujos m em bros mais ricos e m ais poderosos viviam na capital dos rendim entos tirados de fazendas distantes e das rendas do estado coexistiu com funcionários do estado que controlavam as províncias e contavam com os padres e os nobres locais para fazer cum prir a vontade real. A grande divisão, portanto, separou a prim eira variante das outras duas - aqueles estados em que os proprietários de terras armados e rivais m antiveram por muito tem po sua superioridade foram separados daqueles em que um deles logo estabeleceu suprem acia sobre todos os outros. Em todas elas, os es­tados cresceram carentes de capital, trocaram privilégios assegurados pelo estado por força armada nacional e confiaram intensam ente na coerção para obter aquies­cência às exigências reais.

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T R A JE T Ó R IA S C A P IT A L IST A S

Que contraste com os estados de F landres ou com o norte da Itália! C o n si­derem os o A d riá tico superio r, a reg ião co ste ira q u e vai de R avena a T rieste . D u ran te sécu lo s , V eneza dom inou a re g iã o não só eco n ô m ica m as tam b é m politicam ente. M as, ao sul, as potências rivais lutavam pelo dom ínio da região co s­teira. Ravena, por exem plo , depois de ter sido residência dos im peradores rom ano . e gótico , atravessou o m ilênio sob a fo rm a de república , caiu sob a dom inação veneziana durante os séculos XIV e X V , e a partir de en tão até o R isorgim ento fez pa rte dos dom ín ios do papa. A oeste, um a região de m últip las c id ad es-es tad o sucum biu, no século X IV , às conquistas de Veneza, dando à cidade-im pério um a fronteira com um com a Lom bardia, que prim eiram ente era um estado independen­te e depois um a possessão , sucessivam ente, da E spanha, da Áustria e da I tá |ia un i­ficada. Ao norte, o Sacro Im pério R om ano e seus estados sucessores sem pre se agigantaram e, às vezes, defenderam a costa. A leste, um im pério após outro surgiu e avançou rum o ao A driático. N o ano de 990, o Im pério B izantino exercia um do ­m ínio nom inal sobre a D alm ácia e a região veneziana, enquanto um im pério “ ro­m ano” irreal, estabelecido na Europa C entra l, reclam ava soberania sobre as áreas adjacentes da Itália.

Para sim plificar um a estória m uito com plicada, concentrem o-nos em Veneza e o b se rv e m o s a p e n a s as in te raç õ e s d a c id a d e co m to d as e ssa s p o tê n c ia s co n co rren tes. E x am in arem o s: a in te ração en tre co n cen traçõ es su b s ta n c ia is e crescentes de capital e concentrações fracas e fragm entadas de coerção; a profunda in fluência dos cap ita lis tas sobre qualquer tenta tiva de c ria r um poder co erc ivo au tônom o; a em erg ên c ia de um estado m arítim o in sinuan te , e fic ien te, ra p a z e voltado para a proteção; o enclausuram ento eventual desse estado por potências m aiores baseadas na terra; em sum a, a quintessência da form ação de estado ligada a grande inversão de capital.

A invasão lom barda da Itália (568 d.C .) havia transform ado um a dispersão de barqueiros e produtores de sal num conjunto de povoações de refugiados com fortes vínculos com a Itália continental. Veneza continuou fazendo parte nom inal do Im pério B izantino, enquanto que os lombardos e depois os francos se apoderaram de grande porção do território próximo. A té 990 d.C., quando o Im pério B izantino ating iu seu auge, V eneza serviu principalm ente de estação de transferên cia de p rodutos despachados para a Itália do N orte por m ercadores dentro do sistem a bizantino; a c idade enviou seus próprios com erciantes a P á d u a e a o u tro s m ercados do in terio r, tro ca n d o sa l, peixe e bens p rec io so s d o les te por g rãos e o u tra s necessidades. T odavia, quando se voltaram para o mar, os com erciantes venezianos

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a crescen taram às suas m ercad o rias escravos e tábuas. T am bém estenderam a influência com ercial e política da cidade a grande parte do Adriático.

N o M editerrâneo dessa época, os lim ites à construção de navios e à navegação____significavam que os navios ficavam presos às costas, seguiam um núm ero bem p e q u en o de ro tas d e te rm in a d a s p o r v e n to s , c o rre n te s e re c ife s , ap o rtav am freqüentem ente para tom ar água e outras provisões, escapavam dos corsários com d ificu ld ad e quando os en con travam e, quando v iajavam a g ran d es d istâncias, som ente conseguiam transportar produtos valiosos (Pryor 1988). N enhum estado con seg u iu transfo rm ar-se num a grande p o tência m arítim a sem o b ter ex tensos privilégios em m uitos portos fora de seu território natal. Os estados que conseguiram contro lar m uitos portos obtiveram deles um triplo retorno: acesso às longas rotas de com ércio , negócios nesses portos e o seu uso com o bases de corsários para pilhar o co m é rc io d e o u tras p o tên c ias . D uran te a lgum tem po, V eneza sa tis fez ta is condições e se converteu na m aior potência m arítim a do M editerrâneo. Contribuiu fo rtem en te para que os e s tad o s c ris tão s lib e rtassem do d o m ín io m uçulm ano im portan tes linhas costeiras, o que teve início no século X e não refluiu até os avanços tu rcos do século X IV . Som ente a conso lidação do po d er o tom ano nos séculos X V e X V I com prom eteu seriam ente a dom inação ocidental das costas do M editerrâneo (Pryor 1988: 172-78).

D uran te o século XI, a frota de Veneza com eçou a fazer o seu com ércio no M ed ite rrân e o e a co m b a te r os rivais pelo c o n tro le do A d riá tico - d á lm atas, húngaros, sarracenos e norm andos. As forças venezianas anexaram a D alm ácia em 990, m as po r volta de 1100 perderam -na para o estado húngaro que se expandia; por c inco séculos depoisV dom inaram a a tiv idade com ercial d a D alm ácia , m as sofreram altos e baixos em seu dom ínio político em função da expansão e contração dos estados territoriais a leste. Por terem colaborado com o Im perador Bizantino em g u e rra s c o n tra os seu s in im ig o s , fo ram a q u in h o ad o s com ex ce p c io n a is privilégios no império, inclusive um bairro próprio em C onstantinopla (1082). A exem plo dos m ercadores hanseáticos na E scandinávia e na A lem anha dó’Norte, os com erciantes venezianos chegaram a contro lar um grande se to r do com ércio de longa cabotagem de B izâncio. D urante o século XII, expandiram o seu cam po de ação a to d o o M ed ite rrân eo o rien ta l, m esc lan d o p ro v e ito sa m en te co m ércio , pirataria, conquista e participação nas cruzadas. C om o a própria p rática da cruzada envolvia com ércio, p irataria e conquista, as atividades com plem entavam -se entre si. Por vo lta de 1102, Veneza possuía o seu próprio bairro com ercial em Sídon; em 1123 havia estabelecido tam bém um a base em Tiro.

E m 1203 e 1204, V eneza ob teve o re to rn o de sua e s tra tég ia com binada, quando um doge astuto desviou um a cruzada para C onstantinopla e desferiu um

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g o lp e de m orte no Im p ério B izan tino . O s cavalos de b ro n ze de San M arco , capturados em Constantinopla, ainda representam m onum entos a esse to u rd c fo rc e . Veneza terminou controlando grandes porções (legalm ente, três oitavos) do im pério no final. Então, a cidade assegurou feudos nas ilhas gregas aos membros de suas grandes famílias, sob a condição de que mantivessem abertas as rotas de com ércio.

Durante todo esse período de conquista, os interesses comerciais de V eneza reinaram suprem os. As famílias .dirigentes da cidade eram form adas de com ercian­tes e banqueiros, o conselho governante da cidade representava as principais fam í­lias, o doge era escolhido no mesmo patriciado, as forças m ilitares eram recrutadas na própria população e as políticas diplom áticas e m ilitares favoreciam o estab e­lecim ento de m onopólios comerciais, proteção para seus com erciantes e canalização do com ércio através de Veneza mais do que a criação de um território im perial. Tão logo consolidaram a sua posição superior, as autoridades venezianas relutaram em to le rar a p irataria e em conceder au torização a corsários, um a vez que am bos poderiam am eaçar o seu investimento num comércio pacífico.

A dom inação m arítim a da cidade, por sua vez, abriu novas oportunidades de lucro no transporte seguro de produtos e pessoas. Os donos de navios de Veneza ficaram ricos com o transporte de cruzados, e depois peregrinos, para a Terra Santa. O s custos de fretes no transporte dos cruzados para C onstan tinopla, em 1203, “ alcançaram cerca de duas vezes a renda anual do rei da Inglaterra” (Scam m ell 1981: 108). A lém disso, em troca de todo esse serviço prestado aos cruzados e peregrinos, os governantes venezianos não hesitaram em negociar com os inim igos da Cristandade. D epois queTrípoli (1289) e Acre (1291) caíram sob o dom ínio dos turcos otom anos, por exem plo, Veneza im ediatam ente negociou um tratado com estes para m anter seus direitos com erciais antigos.

D entro do A driático , as cidades rivais foram incapazes de enfrentar V eneza sem a ajuda de potências territoriais. Trieste e Ragusa, por exem plo, tam bém foram cidades com erciais que gozaram de certa independência, m as não conseguiram co n te r Veneza sem ajuda externa. Veneza conquistou T rieste em 1203 e m anteve o p o rto em in cô m o d a se rv id ão pOT m ais de um sé c u lo . D uran te a re b e liã o fracassada de T rieste em 1368, o duque Leopoldo da Á ustria , um velho in im igo de V eneza que co b içav a um a abertura para o A driá tico , enviou um a fo rça de socorro. Em 1382, Trieste conseguiu colocar-se sob a suserania de Leopoldo; então T rieste perm aneceu austríaca (na verdade, continuou sendo o principal p o rto da Á ustria) até o século XX.

Ragusa/D ubrovnik seguiu uma estratégia bastante sem elhante. Ragusa viveu até 1358 sob a suserania nominal de Veneza, porém m anteve relativa independência antes dessa época por cultivar boas relações com os reinos vizinhos da Sérvia e da

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Bósnia, em cujo com ércio os seus homens de negócio desem penharam um papel predom inante. O estado húngaro em expansão expulsou Veneza da D alm ácia na década de 1350 e concedeu a Ragusa um a posição quase independente na periferia de seu im pério. Quando os turcos otomanos conquistaram os Bálcãs na década de 1460, os patrícios-m ercadores de Ragusa tentaram negociar arranjos sim ilares com os novos governantes m uçulm anos. P ro teg idos da conqu ista ita liana por seus sucessivos protetores e com a garantia de grande autonom ia dentro do im pério e slav o e otom ano dev ido à sua posição po lítica , Ragusa funcionou com o um a cidade-estado essencialm ente independente até a invasão napoleônica de 1808.

E m bora as cidades italianas que tinham suas linhas de abastecim ento dom i­nadas por Veneza e as cidades dálmatas sobre as quais Veneza exercia dom ínio di­reto tenham lutado continuam ente para con ter a hegem onia veneziana, Veneza com petiu pelo poder m arítim o mais diretam ente com Gênova, um a cidade-estado sem elhante que dominou os oceanos. No final do século XIII, G ênova se expandiu até o M editerrâneo ocidental e ultrapassou G ibraltar ao longo da costa atlântica do m esm o m odo que Veneza penetrou no M editerrâneo oriental e no m ar Negro; m as G ênova estendeu-se com mais eficiência para o leste do que Veneza para o oeste; as duas potências entraram em conflito principalm ente nos pontos de encontro de suas zonas marítimas. O dom ínio genovês do m ar Negro no final do século XIII b loqueou o acesso veneziano ao com ércio lucrativo que lhe perm itia passar de Trebizonda a China através do território defendido pelos mongóis. Contudo, quando as forças venezianas bloquearam e capturaram a frota genovesa na laguna Chioggia (1380), Veneza manteve prioridade no leste.

D epois da passagem do milênio, quando o com ércio de Veneza no A driático e no M editerrâneo oriental se desenvolveu ainda mais, a cidade chegou a ter um a das m aiores populações da Europa: 80 mil ou mais em 1200,120 mil mais ou m enos em 1300. Embora a M orte N egra (introduzida na Itália pelas galeras genovesas em retorno de Cafa) tenha m atado cerca da m etade da população da cidade em 1347, 1348 e 1349, o número de habitantes oscilou em torno dos 120 mil nos séculos seguintes, na realidade até os dias de hoje. A partir do século XIII, a m anufatura e o com ércio substituíram a atividade marítim a que até então predom inara na cidade. M as Veneza continuou sendo um elo decisivo no com ércio m arítim o e um a grande potência na política m arítim a. Seu império se estendeu, por exem plo, a Chipre até 1573 e a C reta até 1669. As forças da c idade lutaram para m anter o acesso às oportunidades comerciais e lutaram para afastar os rivais com o Gênova. M ais do que qualquer outra coisa, seus governantes ficaram famosos graças à capacidade de travar batalhas pequenas e vitoriosas no m ar a custo relativam ente baixo para os com erciantes, banqueiros e m anufatureiros da cidade.

2 IX

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A natureza do com ércio veneziano facilitou a criação de um estado ex cep­cionalm ente flexível e predatório. Ao contrário dos holandeses, que adquiriram as suas riquezas no transporte de produtos a granel com o grãos, sal e vinho, os vene- z ianos se concen tra ram em artigos de luxo de a lto p reço: e speciarias, sed as e escravos. O que é m ais im portante, carregaram freqüentem ente grandes quantidades de ouro e prata em barras, o cham ado bullion. E ficiência, m onopólio e proteção m ilitar contra os saqueadores, portanto, foram fatores decisivos para o seu sucesso. O bserva G. V. Scam m ell,

m esm o que outras potências imperiais possam ter dedicado grande parte de suas energias e recursos à defesa de algum monopólio particular, com nenhum outro exceto Veneza a sua ad­ministração e proteção se tornaram realmente o propósito total de sua existência, com o esta­do fornecendo os navios para o seu funcionamento e uma marinha e império para a sua sal­vaguarda.

(Scam m ell 1981: 116.)

Tal tipo de estado fez tão poucas guerras quantas foram possíveis, mas praticou essa guerra de m odo im piedoso.

Os doges, particularm ente, tiveram responsabilidade na guerra. O s prim eiros doges haviam sido serv idores do Im pério B izantino. Q uando Veneza se tornou independente do im pério, os doges passaram a atuar crescentem ente com o príncipes e le ito s mas do ravan te soberanos, ag indo sem consu lta form al à com u n id ad e e designando seus sucessores dentro de suas próprias d inastias. C ontudo, com o crescim ento da cidade depois de 990 d.C., Veneza adotou cada vez mais a oligarquia fo rm al. U m a a ssem b lé ia geral, em q u e as g randes fa m ília s tinham um pape! preponderante, elegia o doge. Esse e ra obrigado a consu ltar um conselho que, na teoria, representava a C om una form ada p o r todos os núcleos hab itacionais das lagunas e, na p rá tica , fa lava pe las g randes fam ílias no núcleo cen tra l. C om o aconteceu m uitas vezes, um conselho form ai tom ou form a quando um pretenso soberano enfrentou um grupo de interesses bem -definidos e desiguais cujo apoio ele não podia com andar. Com o tem po, o grande conselho tornou-se mais e mais ex c lusivo ; em 1297, a partic ipação no conselho passo u a ser e ssen c ia lm en te hereditária. Em 1300 e 1310, o conselho rechaçou as rebeliões populares con tra a exclusão dos não-patríc ios de suas deliberações. D esse m om ento em diante, os m em bros da o ligarqu ia lutaram pela preem inência dentro da cidade, mas nunca renunciaram ao dom ínio coletivo sobre o seu destino.

Na verdade, m ais do que um único conselho dirigente, as lutas sucessivas pelo p o d e r p ro d u z iram um a h iera rq u ia v ariável de co n se lh o s , desde os p ró p rio s

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conselheiros do doge à assem bléia geral de todos os habitantes, a qual se lim itava a ra tificar as decisões de seus m em bros mais proem inentes. Por outro lado, Veneza não se c re tav a nenhum a bu ro crac ia ; com itês e le ito s e se rv id o res pessoais dos funcionários faziam a m aior parte da obra governam ental. Em 1200 m ais ou m enos, o doge havia-se transform ado m ais no funcionário executivo da o ligarquia do que num au tocrata escolhido p o r aclam ação popular. Em conseqüência, os capitalistas com erciantes dominavam a p o lítica -d o m éstica e e s tran g e ira -d o estado veneziano.

3Se os interesses com erciais guiaram Veneza, o estado por sua vez regulou a

ativ idade com ercial de seus cidadãos. C onform e observa Daniel Waley,

Era provável que o viajante veneziano que fosse ao Levante a negócios viajasse numa galera construída pelo estado, comandada por um capitão escolhido pelo estado, dentro de um com boio organizado pelo estado e, quando atingia Alexandria ou Acre, poderia muito bem receber ordens para juntar-se a outros venezianos numa compra conjunta, organizada pelo estado, de algodão ou pimenta. A vantagem do último sistem a era que os preços deviam ser mantidos mais baixos se os venezianos não concorressem entre si. O sistem a de comboio para viagens mais longas remonta pelo menos ao século XII. Por volta do século XIII, os arranjos rotineiros permitiam dois com boios de galeras por ano para o Mediterrâneo oriental e, no com eço do século XIV, houve também embarques anuais para Inglaterra e Flandres, para a África do Norte (“Barbaria”) c para Aigues-M ortes (junto à foz do Ródano). O arsenal, o pátio do estado para a construção dc navios, data do com eço do século XIII e os materiais aí usados costumavam ser adquiridos diretamente pela república veneziana.

(Waley 1969: 96 .)

O estad o , com itê ex ecu tivo da burguesia, assum iu seriam en te as suas respon­sabilidades.

N o entanto, o estado veneziano nunca foi m uito grande. O sistem a fiscal se adaptou a um governo fraco. Em 1184, por exem plo, Veneza instituiu um monopólio sobre a produção e venda de sal da laguna de Chioggia; em bora tal m onopólio tenha e stim u lad o um con trabando e fraude insign ifican tes , p roduziu tam bém rendas substancia is sem um a m ão-de-obra avultada. A partir do século XIII, a com una estabeleceu um débito com base em recursos públicos. O M onte Vecchio e os outros M onti q u e lhe sucederam , os títu los que representavam esse déb ito , acabaram tornando-se um investim ento predileto em Veneza e em outros locais. A cidade fez e m p ré s t im o s p a ra f in a n c ia r as g u e rra s , d e p o is p a sso u a c o n f ia r nas tax as alfandegárias e nos im postos sobre o consum o para pagá-los. As grandes confrarias rituais e beneficentes, as Scuole Grandi, em prestaram som as vu ltosas ao estado (Pullan 1971: 138). Com o podia tom ar em préstim os a seus próprios com erciantes e trib u ta r a circulação através de um a econom ia grandem ente com ercializada, o estado criou pouca organização nova para as suas finanças.

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O século XIV envolveu Veneza de modo mais enfático na guerra terrestre e construiu paralelam ente a estrutura de estado. Quando as cidades-estado do norte da Itália com eçaram a expandir os seus territórios, passaram a am eaçar não só as fontes venezianas de provisões industriais no continente com o tam bém o acesso de seus com erciantes às rotas de com ércio vitais através dos Alpes. O s venezianos iniciaram dois jogos fatídicos: a conquista no continente e alianças variáveis com outras potências da Itália do Norte. N o fm al do século, quando as potências transal- pinas com eçavam a fazer incursões sérias à Itália do N orte , Veneza o rgan izou coligações contra a França e aliou-se a potências com o o rei de Castela e o im pera­dor alemão. U m a série de embaixadores permanentes invadiram as principais cortes d a Europa. O avanço dos turcos em torno do M editerrâneo oriental, e m esm o até a Itália, ao mesmo tem po impeliu a cidade para a guerra naval em expansão.

A escala expandida da guerra provocou m udanças na organização da cidade para a guerra. No com eço, Veneza confiava a prática da guerra aos estranhos, os condo ttieri, que em pregavam m ercenários em grande qu an tid ad e. O governo equilibrava a influência do condottiere com o envio de com issários patrícios, os provveditori, que tinham bastante poder sobre as provisões, o pagam ento e algum as vezes sobre a própria estratégia m ilitar (H ale 1979). N ão m uito tem po depois, a cidade recorreu ao alistam ento em seus territórios subm etidos e na própria Veneza, onde as guildas de artesãos e lojistas receberam cotas de rem adores para as galeras de guerra. No decorrer do século XV, Veneza passou a obrigar que convictos e presos equipassem as suas galeras; no processo , as galeras m udaram da trirrem e, que necessitava de três rem adores hábeis, cada um com seu próprio rem o, em cada banco, para o navio com um Temo único e grande por banco, no qual m esm o os p risioneiros inábeis, re lu tantes e a lgem ados podiam a p o ia r o seu peso . H av ia passado há m uito a época da força totalm ente voluntária.

A dilatação da cam panha e o abandono dos soldados-cidadãos trouxeram no­vos encargos Financeiros para a cidade. M ais ou m enos no final do século XIV, Ve­neza estava extorquindo em préstim os com pulsórios, im postos sobre a renda e taxas sobre a propriedade d ireta para pagar as suas dívidas de guerra. Não obstante, esses esforços excepcionais não construíram um a burocracia ex tensa ou perm anente; num a econom ia altam ente comercializada, funcionários e leitos e um pequeno corpo profissional de am anuenses e secretários administravam as contas da cidade sem um grande quadro de pessoal. O estado dividiu muitas responsabilidades com seus c idadãos, com o q u an d o solicitou às Scuole Grandi que levantassem por co n ta p rópria segm entos de um a frota de guerra (Pullan 1971: 147-56; Lane 1973b: 163). Tam pouco as obrigações financeiras sobrecarregaram o aparelho fiscal da cidade. N o com eço do sé c u lo XVII, enq u an to o u tros es tad o s eu ro p eu s acu m u lav am

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d o lo ro sam en te d ív idas de guerra, V eneza na realid ad e ten tav a liq u id a r tem ­pestivam ente todo o seu endividamento a longo prazo (Lane 1973a: 326).

B em antes de 1600, a cidade atingiu seu apogeu de potência com ercial. A partir do século XV, um a concatenação de m udanças reduziu Veneza a um ator de segunda categoria no palco internacional: a exclusão de Veneza dos portos do m ar N egro e do M editerrâneo oriental pelos turcos, o quase-cercam ento do território ve- neziano pelos impérios dos Habsburgos, dos Bourbon e dos turcos, o acesso de­crescente à m adeira de lei, a conseqüente redução de sua indústria naval, a lim itação d a sua capacidade de do m in ar a D alm ácia e a co n co rrên c ia no M ed ite rrâneo acom panhada de pirataria por parte das potências m arítim as do Atlântico com o H o ­landa e Inglaterra. Ao circunavegar a África e penetrar nas rotas de com ércio do oceano Indico, os m ercadores portugueses rom peram a golilha veneziana sobre o co m ércio das especiarias. No final do século XVI, as naus po rtuguesas tran s­portavam de um quarto à m etade de todas as especiarias e drogas que os europeus traziam do Extremo O riente (Steensgard 1981: 131). C ontudo, a dom inação p o rtu ­guesa não durou m uito tem po; dentro de um século, as C om panhias das índ ias O rientais holandesa e inglesa organizadas com eficiência substituíram os seus ri­vais ibéricos (Steensgard 1974).

A entrada do grande navio a vela arm ado no palco do M editerrâneo quebrou a longa hegem onia da galera veneziana. D aí por diante, Veneza continuou dinâm ica e independente, cada vez mais empenhada na m anufatura e na adm inistração de seu território no continente, mas não mais a força que com andava o M editerrâneo. M es­mo no Adriático, outrora praticam ente o lago particular da cidade, as naus vene­zianas do século XVI foram incapazes de conter os m ercadores rivais de R agusa ou conter as depredações dos piratas. No século XVIII, dedicaram -se a expulsar de seu golfo os navios de guerra estrangeiros. M ais ou menos nessa época, não só R agusa com o tam bém Trieste e A ncona competiam ativam ente pelo com ércio no Adriático.

Veneza instituiu um a política geral de neutralidade m ilitar e diplom ática, um im portante nicho com ercial, um a crescente confiança nos territórios do continente enquanto base econôm ica e um a vida pública republicana dom inada pela velha oligarquia. É o que diz Alberto Tenenti acerca do século XVII:

Na difícil escolha entre a independência política e o sucesso com erciai, na sua incerte­za acerca de seu próprio destino, a firme determinação de Veneza ainda ressalta acima de to­dos os seus erros e de suas ações desprezíveis. Em vez de escolher, com o a sua vizinha Ra­gusa, uma vida sem riscos e sem história, a antiga cidade-estado recusou-se a abrir caminho à predominância de qualquer potência, seja ela turca, papal, espanhola ou habsburga.

(T enenti 1967: xvii-xviii.)

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No entanto, essa escolha finalm ente falhou: em 1797, a invasão napoleônica pôs fim ao acordo feito no século XVIII. Veneza e seus territórios continentais tor­naram -se propriedades prim eiram ente da Áustria, depois de um reino napoleônico da Itália e, em seguida, novamente da Áustria. Em 1848, um grupo de insurretos liderado por D aniele M anin assumiu o poder por pouco tempo, mas logo a Á ustria colocou na linha os seus súditos revolucionários. Finalm ente, em 1866, a derro ta da Á ustria frente à Prússia eximiu Veneza de juntar-se ao novo estadõ nacional italiano.

Veneza seguiu um a trajetória h istórica única. N o entanto, a história da c idade tinha algo em com um com Gênova, R agusa, M ilão, Florença, e até com a H olanda, a Catalunha, ou a H ansa. Durante o século XIV, apesar de tudo, B arcelona enviou com erciantes a um lado e outro do M editerrâneo e dom inou Tebas, A tenas e o Pireu. A R epública H olandesa, um a federação m uitas vezes turbulenta de centros com er­ciais, continuou sendo, por m ais de um século, um d o s estados dom inantes d a Eu­ropa. As c idades-estado, as cidades-im pério e federações urbanas, todas se m anti­veram d u ran te sécu lo s com o p o tên c ias co m ercia is e p o lítica s , de ram g ra n d e prioridade aos objetivos com erciais, criaram estruturas de estado efetivas sem gran­des burocracias, inventaram meios relativam ente eficientes de pagar suas dív idas de guerra e outros gastos do estado e construíram instituições que representavam as suas oligarquias com erciais dentro da própria organização de seus estados.

A form ação do estado que fazia grande inversão d e capital d iferiu em três aspectos fundam entais da trajetória de m udança de intensa aplicação de coerção e daquela onde a coerção era capitalizada.

1. A influência das oligarquias com erciais favoreceu o desenvolvim ento de estados o rg a n iz a d o s em to rn o da p ro te ç ã o e e x p a n sã o da em p resa c o m e rc ia l - especialm ente, na experiência européia, da em presa m arítima.

2. As instituições criadas pela burguesia para a defesa de seus próprios interesses na realidade se tornaram de vez em quando instrum entos da adm inistração do estado; Veneza, G ên o v ae a República Holandesa conseguiram uma notável fusão entre o governo m unicipal e o nacional.

3. A d ispon ib ilidade d e capital e d e cap italis tas perm itiu a esses estados faze r em préstim os, tributar, com prar e fazer guerra com eficiência sem criar adm in is­trações nacionais extensas e duradouras.

Até que a escala absoluta da guerra com exércitos e marinhas recrutados entre a população nacional sobrepujou o seu poder m ilitar eficiente mas com pacto , os estados necessitados de m uito capital prosperaram num m undo belicoso. N ão m uito depois que os M edieis, com a ajuda dos exércitos papais, retornaram ao governo de sua nativa Florença, N iccolò M achiavelli escreveu que

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se alguém quisesse estabelecer uma república num país onde houvesse muitos fidalgos, não o conseguiria antes de destruir a todos eles; e quem desejasse estabelecer um reino ou prin­cipado onde predominassem a liberdade e a igualdade, também fracassaria, a menos que afas­tasse dessa igualdade geral um bom número dos espíritos mais ousados e mais am biciosos e ■os transformasse em fidalgos, não apenas no nome mas também de fato, dando-lhes castelos e possessões, bem com o dinheiro e súditos; de tal modo que, cercado por esses, ele pudesse manter seu poder e através desse apoio pudessem satisfazer a sua am bição e os outros pudes­sem ser obrigados a submeter-se a esse jugo ao qual somente a força era capaz de sujeitá-los.

(,D iscursos , I, 55; devo a Richard Frank essa oportuna referência.)

M ais do que qualquer outra coisa, os fidalgos - isto é, os proprietários rurais aristocratas - foram responsáveis pelos estados ricos em coerção, ao passo que os capitalistas - isto é , os com erciantes, banqueiros e m anufatureiros - dom inaram os seus rivais ricos de capital. A s diferenças em suas experiências dependeram da época em que foram form ados, da quantidade de território que tentaram dom inar, do grau com que a agricultura e a m anufatura se tornaram partes expressivas de suas bases econôm icas e do tipo de m ercadorias em que se especializaram .

E sses fatores, por sua vez, dependeram das localizações geográficas e geo- políticas das cidades centrais em cada estado. A presença de grandes zonas inte- rioranas agrícolas, quando ocorreram , favoreceram a form ação de estados territo ­riais m aiores. As c idades portuárias que serv iram basicam ente de m ercados do com ércio de longa cabotagem criaram , m ais freqüentem ente, cidades-estado ou c idades-im pério com base em pequenos territórios dom ésticos. A contigüidade a im périos e estados nacionais extensos favoreceu a sua absorção por esses estados ou adentrada na m esm a lu ta pelo dom ínio de território. N ão obstante, essas varia­ções operaram dentro dos lim ites estabelecidos pe la presença poderosa do capital e dos capitalistas.

T R A JE T Ó R IA S D E C O E R Ç Ã O C A P IT A L IZ A D A

O bviam ente, nem todo o A driático superior ilustra igualm ente bem a trajetória cap italis ta até à form ação do estado. A Á ustria eventualm ente tentou reivindicar um a parcela significativa da costa, inclusiveTrieste, e subordiná-la a um estado que d etinha fortes interesses coercivos em outra parte. O im pério b izantino, o sérvio, o húngaro e o otom ano, todos lutaram com Veneza pelo dom ínio d a Dalm ácia, e os o tom anos levaram a m elhor - pelo menos durante vários séculos. No entanto, a h istória do Adriático superior contrasta de form a aguda com a da R ússia européia.

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No Adriático, a abundância de capital facilitou a instituição das forças arm adas, sobretudo a m arítim a, mas forneceu um estím ulo e um m eio de os cap italis tas resistirem à criação de grandes estados que podiam subordinar os seus interesses aos de uma dinastia. N a Rússia, a escassez de capital concentrado (sobretudo depois da redução, no sécu lo XVIII, dos vínculos com erciais com a Á sia e o Im pério B izantino) e a p resença de senhores-de-terra-guerreiros predispuseram todos os estados que_se form aram a se voltarem para os m eios coercivos. Aqui a grande questão foi saber se os magnatas continuariam a m anter em suas próprias m ãos a soberania fragm entada, ou algum governante isolado estabeleceria de algum a form a um a firme predom inância sobre todos os outros. Quando o estado russo optou pela construção cen tra lizada das forças arm adas, seus esforços deram origem a um estado ponderoso no qual os senhores de terra detiveram grande arbítrio dentro de seus próprios territórios, mas perderam -no frente ao czar.

O destino dos cam poneses - a m aior parcela da população em quase to d a a E uropa antes do sécu lo XVIII - diferiu viv idam ente en tre a região de in ten sa aplicação de coerção e a de grande investim ento de capital. N a maioria das áreas de form ação do estado com intensa coerção, os governantes criaram estados em estreita colaboração com os grandes proprietários de terra que detinham extensos poderes militares e civis. A Rússia, a Polônia, a Hungria e o B randenburgo-Prússia ilustram o processo , que tinha alguns paralelos na S icília e em Castela. N esses estados, a expansão do comércio no século XVI encorajou e capacitou os senhores de terra, apoiados pelo poder do estado, a reduzir à servidão os cam poneses de quem h av iam e x to rq u id o an te rio rm en te am plas rendas; o fa to m ais com um e ra a exigência, feita àquelas famílias de cultivadores que tiravam a própria subsistência de pequenas fazendas a que estavam presos po r lei, de prestarem serviço obrigatório e m al-rem unerado nas propriedades dos senhores. Em outras regiões de in tensa coerção (sobretudo a Escandinávia) onde os senhores de terra nunca obtiveram o m esm o poder po lítico e econôm ico de seus congêneres da Europa O rien tal, os governantes, no sécu lo XVI e m ais tarde, instituíram contro les d iretos sob re o cam pesinato com a a juda do clero e de outros burocratas, assegurando desse m odo a longa sobrevivência dos cam poneses devotados à agricultura de subsistência.

N as regiões de grande inversão de capital, com o a H olanda e algum as da Suíça, o cam pesinato sofreu uma bifurcação. Na presença de m ercados urbanos e c ap ita lis ta s a g re ss iv o s , a ag ricu ltu ra co m erc ia lizo u -se ced o e m u itas v e ze s com binou-se com a indústria rural. Em conseqüência, um a m inoria de cam poneses enriqueceu com as safras orientadas para o m ercado e com o trabalho de seus v izinhos. A m aioria transform ou-se em assalariados pobres, m uitos dos q u a is recorreram à m anufatura dom éstica ou ao serviço de m ascate quando a dem anda

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estava em ascensão. N a com panhia de com erciantes onipresentes, a m inoria e a m aioria produziram um a econom ia rural que abasteceu as cidades facilm ente, foi o b je to de eficiente tributação e caiu sob o dom ínio daquelas c idades que eram centros regionais de comércio. As experiências contrastantes dos cam poneses fo ­ram ao m esmo tem po causa e efeito das trajetórias muito diferentes de form ação de estado na região de grande inversão de capital e na de intensa coerção.

No interstício entre o extremo coe rei vo e o capitalista figuram as trajetórias de coerção capitalizada, os casos em que as concentrações de coerção e de capital ocorreram de forma mais equânim e e num a conexão mais estreita entre si. As Ilhas B ritân icas - Irlanda, E scócia, Ing laterra e G ales - exem plificam esse tipo de trajetória. M ostram igualm ente o quanto a colocação de algum a experiência dentro do d iagram a coerção-cap ital depende dos lim ites tem porais e geográficos que colocam os na experiência. Vistas a partir da Dinam arca em 990, as Ilhas B ritânicas se assem elham a uma zona periférica de conquista e tributo com um império extenso centrado na Escandinávia. Vista a partir da Irlanda no decorrer do período seguinte, a form ação do estado nas Ilhas Britânicas tem um a aparência m uito mais coerciva do que quando é vista a partir do sudoeste da Inglaterra. V ista a partir da Escócia durante os anos de 1500 a 1700, a form ação d o estado se assem elha à concorrência e interação de três estados antes separados com bases econôm icas diferentes - o inglês, o irlandês e o escocês. Esclareçam os, então, que estam os exam inando a região toda durante os mil anos posteriores a 990 d.C. D urante todo o m ilênio, o dram a central foi a expansão de um estado inglês formado inicialm ente na conquista mas logo contrabalançado por um grande porto e uma econom ia com ercializada.

No ano de 990, a Irlanda foi paralisada pela luta entre m últiplos reinos célticos e os dom ínios litorâneos dos nórdicos. Em bora diversos conquistadores nórdicos tenham dividido entre si as ilhas do mar do Norte, a Escócia e G ales continentais foram m ais ou menos unificados sob a liderança dos reis-guerreiros. Um dinam ar­quês, Canuto, estava em m eio ao processo de usurpar ao rei anglo-saxão E thelred um a Inglaterra bastante desunida, que por um a década já havia pago tributo aos d i­nam arqueses. Não só havia pago tributo, com o também sofrera contínuas depreda­ções. Relatando os acontecim entos de 997, diz a Laud Chronicle:

N este ano a hoste [dinamarquesa] contornou o Devonshire até a foz do Severn e lá pilhou, tanto em Cornwall, Gales, quanto no Devon, e aportou em Watchet; causaram grande devastação queimando e matando as pessoas e contornaram de volta o Land’s End até o lado sul, e entraram no estuário do Tamar, e assim subiram até chegarem a Lydford. A í queim a­ram e mataram tudo o que encontraram, e arrasaram a abadia de O rdwul em Tavistock, car­regando para os seus navios uma indescritível quantidades de objetos pilhados.

(Garmonsway 1953: 131.)

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No m esm o m om ento em que outros escandinavos navegavam para a Islândia, a Groenlândia e a Am érica, Canuto e seus incursores transform aram a Inglaterra, tem p o rariam en te , num im pério e x to rq u id o r de tr ib u to que se e s ten d eu a té à D inam arca e à N oruega. Os novos dom ínios eram valiosos: nessa altura, D ublin contava talvez 4 mil habitantes, York 10 mil, Norwich 4 mil e Londres, 25 mil, m uito acim a de q u a lq u e r c idade escan d in av a . York serv iu de im p o rtan te e lo com a E sc an d in áv ia , e L o n d re s , com o re s to do m u n d o . E m b o ra não e s t iv e s s e m interligadas exatam ente com as redes urbanas, as ilhas estavam vinculadas m uito bem às cidades da E uropa continental.

Apenas sessenta anos mais tarde, os norm andos (descendentes dos antigos guerreiros vikings que se haviam estabelecido na G ália) organizaram outra invasão da Grã-Bretanha. A sua conquista da Inglaterra seguiu o padrão característico de distribuir terra sob a form a de feu d o aos soldados, que desse m odo se tom avam agentes regionais (e possíveis rivais) da coroa. C onteve as incursões escandinavas e deu início ao processo pelo qual os governantes da Inglaterra expandiram os seus dom ínios ao m esm o tem po dentro e além da G rã-B retanha. D urante os dois séculos seguintes, as arm as norm ando-ing lesas e escocesas p raticam ente a fasta ram os dinam arqueses e noruegueses do controle do tèrn fõ ríó d àsT lh as B ritânicas.

Quando o jo g o de alianças e heranças aum entou as propriedades “ inglesas” na região que dev ia m ais tarde cham ar-se França, os governantes d a Ing la terra co­meçaram a sua luta com seus prim os normandos. D urante o século XII, tentaram igualm ente estender o seu dom ínio a G ales, E scócia e Irlanda. H enrique II, com seu casam ento com L eonor de Aquitânia, em 1152, tinha fortes direitos ao governo da Inglaterra, da N orm andia, do M aine, daB retagne, do Anjou, da Aquitânia e de grande porção de G ales; nos anos seguintes, e ie estendeu esses d ireitos à E scó ciae a partes da Irlanda. Na adm inistração desse im pério, construiu um a estrutura jud icial régia relativam ente eficaz. N ão obstante, de 1173 em diante, seus filhos, a liadoscom m ui­tos barões e, algum as vezes, com a própria rainha, passaram a contestar o seu poder.

No processo de guerra e de intervenção nas rivalidades dinásticas, os barões com que os reis contavam para as suas guerras adquiriram poder suficiente para enfrentar o rei e um ao outro, extorquindo do m onarca concessões p riv ilegiadas - de form a mais vívida, na M agna Carta. Essa carta de 1215 obrigou o rei a extinguir as obrigações feudais com pulsórias de fornecer recursos para a guerra, a p a rar de a lu g ar m ercenários quando os barõ es não qu isessem lu ta r e a im p o r as taxas p rin c ip a is so m e n te co m a ap ro v ação do grande c o n se lh o , rep re se n tan te do s m agnatas. O c o n se lh o com eçou exercendo um p o d e r perm anen te , fo rta lec id o principalm ente pela sua posição na aprovação de novos tributos. O s reis seguintes confirm aram a M agna C arta repetidas vezes. Não obstan te , os contínuos e sforços

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dos m onarcas ing leses para c ria r um a força arm ada p roduziram um a estru tu ra central duradoura: tesouro real, tribunais e dom ínio.

Eduardo I (1272-1307), po r exem plo, estendeu a d ig n id ad e de cav a le iro com pulsoriam ente a todos os possuidores de terras até o valor de vinte libras por ano , ex ig iu que todos os cavaleiros serv issem nas m ilícias reais, instituiu um a tributação para pagam ento dos soldados a pé, impôs as prim eiras taxas alfandegárias sob re a lã e os couros, construiu um quadro perm anente de pessoal central que assum iu algum as das a tiv idades an terio rm ente realizadas pe los barões e pe los serv idores pessoais do rei e regulamentou as assem bléias separadas dos barões, dos cavaleiros do condado, dos habitantes dos burgos e do clero que atendia aos seus pedidos de dinheiro. (E m 1294, ao se preparar para outra cam panha contra a França, E duardo chegou a aum entar seis vezes o im posto de exportação sobre a lã e ex ig ir a m etade das rendas do clero em taxas [M iller 1975: 11-12].) A criação de um a estru tura estatal central continuou durante todo o século XIV: não só os tribunais reais estenderam a sua jurisd ição a todo o território, com o tam bém os juizes de paz passaram a exercer o poder local na qualidade de agentes com issionados da coroa.

N ão que a estabilidade tenha prevalecido no centro. A final de contas, Eduardo , II m orreu, assassinado, na prisão (1327), Eduardo III faleceu praticam ente sem poder (1377) e Ricardo II, deposto, morreu na prisão (1400), talvez igualm ente a ssa s­sinado. A s casas de L ancaster e de York lutaram durante trin ta anos de guerra civil (as G uerras das Rosas, 1455-85) pelo direito à coroa; essas guerras term inaram com a m orte de Ricardo III pelas forças de H enrique Tudor, que depois subiu ao trono com o nom e de H en riq u e VII. L utas a rm adas pelo poder real e pela sucessão continuaram por três séculos, até que a R evolução G loriosa de 1688 colocou no trono a Casa de Orange.

Ao m esmo tem po, os reis ingleses tentaram repetidas vezes capturar algum territó rio na Irlanda, G ales, Escócia e França. Eduardo I subjugou Gales, bem com o subm eteu a Irlanda e a Escócia à coroa inglesa. Som ente os galeses opuseram um levante mais sério, o de O w en G lendow er (1400-1409). Contudo, os irlandeses e os escoceses opuseram -se tenazm ente ao dom ínio inglês e m uitas vezes receberam apoio dos reis franceses, que ficavam felizes em ver seus rivais ingleses distraídos p o r atividade m ilitar dentro das Ilhas B ritânicas. No curso da resistência, am bos criaram parlam entos que revelaram algum as sem elhanças com o seu congênere inglês. Am bos igualm ente sofreram lutas internas sangrentas pela sucessão real e pelos poderes relativos de reis e barões. A Irlanda continuou sendo uma co lôn ia refratária, mas a E scócia tornou-se por seu próprio direito um a potência européia independente. N ão antes do século XVII a Irlanda e a E scócia sucum biram a um dom ínio inglês relativam ente estável.

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O longo (e no final perdedor) esforço dos reis ingleses para conservar suas possessões francesas manteve o estado em guerra durante a maior parte dos anos de 133J a 1453. A s e x ig ê n c ia s f in an c e ira s d e sse e s fo rç o (p o s te r io rm e n te den o m in ad o G u erra dos C em A nos) con so lid o u a p o siç ão do P a r lam en to e regularizou a divisão entre as suas duas casas. Depois disso, por quase um século, as guerras con tra a E scócia e a F rança (e às vezes travadas ao m esm o tem po) envolveram o Parlam ento no levantam ento de recursos financeiros para o rei, e estabeleceram o seu direito a aprovar a tributação.

A casa baixa, m ais tarde cham ada dos Comuns, congregou represeníantes.dos burgos e dos c o n d ad o s , sendo co n stitu íd o s em su a m aio ria , de um lad o , de com erciantes e, de outro, de proprietários rurais. No século XIII, teve início um a aliança longa, em bora difícil, entre com erciantes e senhores de terra, quando a lã britânica com eçou, prim eiram ente, a a lim entaras m anufaturas têxteis do continente e depois se converteu na base da fiação e da tecelagem locais. A G rã-B retanha . com eçou a lenta mas decisiva passagem da exportação de lã para a m anufatura e exportação de tecidos de lã. Desse m om ento em diante, os com erciantes ingleses se estabeleceram em Flandres e com eçaram a espalhar-se p o r todos os outros locais da Europa. D uran te o século XV, os ingleses tam bém se revelaram in trép idos hom ens do mar; os m arinheiros da costa leste, p o r exem plo, por volta de 1412 reativaram o com ércio do continente com a Islândia (Scam m ell 1981: 4 60). O Intercursus M agnus, um tratado com ercial de 1496, estabeleceu a Inglaterra com o parceiro reconhecido no com ércio internacional flam engo. Em bora os com erciantes i e barcos estrangeiros tenham dom inado o comércio da Inglaterra por m ais meio século, p o rv o lta de 1600 os ingleses estavam com petindo por todo o globo com os espanhóis, os portugueses e os holandeses.

No m esm o período, m arinheiros britânicos, com o os homens de B ristol que navegaram com John C abot (ele p róprio um veneziano), com eçaram a ju n ta r-se aos holandeses, italianos, espanhóis e portugueses na exploração de partes d istantes do m undo e no estabelecim ento das bases de um império com ercial universal. Por volta de 1577, sir Francis D rake estava circunavegando o globo. A coroa participou des­sas aventuras na m edida em que prom etiam rendas adicionais para o governo ou poder m ilitar (A ndrew s 1984: 14-15). Os proprietários de terra britânicos, ajudados pelos cercam entos (enclosures), sancionados pelo estado, dos cam pos abertos e das terras comuns, participaram intensam ente da com ercialização da lã e dos grãos; a Casa dos Com uns passou a representar cada vez mais um a estreita aliança de m er­cadores e proprietários de terra que cultivavam para o m ercado. O crescente poder comercial do país facilitou um increm ento do poder do estado; deu condições a H en­rique VII (1484-1509) e aos últim os Tudors de refrear os escoceses e desafia r a

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França, de expandir os poderes bélicos do estado, de am pliar a tributação e lim itar os exércitos particulares dos grandes senhores.

O cism a de H enrique VIU com relação a Rom a, a apreensão das rendas da igreja e a expropriação dos m osteiros (1534-39) aum entaram as receitas reais e colocaram o clero cooperativo ao lado dos interesses do rei. O engrandecim ento dos Tudors tam bém provocou repetidas rebeliões regionais, inclusive a grande Peregrinação da G raça (1536). Não obstante, os Tudors acabaram por subjugar os grandes aristocratas, com seus exércitos particulares e pretensões a poder autônom o (Stone 1965: 199-270). A comercialização quase ininterrupta do país, a proletari- zação e a expansão econôm ica forneceram um a base econôm ica para a atividade do estado, e a dependência do estado com relação às taxas alfandegárias e aos im postos sobre o consum o tornou mais eficiente essa extração de recursos dessa base - mas som ente quando os magnatas, a coroa e o Parlam ento ti veram condições de negociar um acordo de cooperação.

Durante o século X V I, a Escócia manteve um a ligação m uito mais estreita com a França; quando a jovem Maria, rainha da Escócia, se tornou também rainha da França (1559), os dois reinos se aproximaram m uito mais. M as, então, um a rebelião p ro tes tan te lim itou o poder de M aria na E scócia , onde governou de m an e ira irregular durante seis anos antes de provocar um a nova insurreição e de evadir-se de um a prisão defensiva ordenada por Isabel da Inglaterra; a sua decapitação, em 1586, pôs fim à am eaça de um a Escócia francesa e de um a rainha católica no trono inglês. Contudo, com a morte de Isabel, Jaim e, filho de M aria, que desde 1567 se tornara Jaim e VI da Escócia, ascendeu ao trono da Inglaterra com o nome de Jaim e I. A conexão francesa estava quase dissolvida.

N o reinado de Jaim e I (1603-25) e dos outros S tuarts, as lutas den tro da Inglaterra em torno das rendas reais destinadas a sustentar as guerras continentais p recip ita ram grandes d iv isões constituc ionais , algum as ten ta tiv as dos re is de governar (e sobretudo de tributar) sem o Parlam ento e, no final, uma guerra civil que acarretou a execução de Carlos I. Num sinal dos tem pos, C arlos alienou à C ity de Londres, em 1627, o últim o quinhão de terras da coroa, recebendo em troca um cancelam ento de dívidas passadas e um em préstim o adicional; desse m om ento em diante, o seu crédito esgotou-se e seus pedidos de em préstim os e im postos só fizeram acentuar o conflito com o Parlam ento e seus financistas. Por volta de 1640, ele se apoderou do ouro e prata que estavam guardados na Torre de L ondres e negociou com os ourives e com erciantes seus proprietários em troca de um em ­préstim o garantido por receitas alfandegárias (K indleberger 1984: 51). A tentativa de Carlos de criar e contro lar um exército para esm agar um a rebelião na Irlanda e um a resistência na E scócia acabou por arruiná-lo. D urante a C om m onw ealth e o

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P ro te to rado (1649-60), fragm entos variados do e x érc ito e do P a rlam en to g o ­vernaram o país ao mesmo tem po em que tentavam trazer de volta ao con tro le do estado a Irlanda e a Escócia e lutaram também contra a Holanda e a E spanha. A ’ Restauração, iniciada por um convite do Parlam ento, sob inspiração do exército , a Carlos II, co n firm ou o poder do Parlam ento d en tro do estado b ritân ico , e sp e ­cialm ente no caso de receitas e despesas. A estreita interdependência dos negócios reais e das guerras continentais continuou corçi a restauração dos Stuarts, época em que a Inglaterra ainda lutava com a Holanda em alto mar. A revolução de 1688 causou um a dram ática inversão de alianças; levou ao trono o protestante holandês Guilherm e de O range e sua esposa M aria, fdha do duque de York, enquanto Luís XIV da F ran ça ap o iava os ex ilad o s S tuarts. N esse m om ento , a G rã -B re tan h a retornou à sua histórica rivalidade com a França e no processo fez em préstim os de instituições holandesas. O estado fundou o Banco da Inglaterra em 1694, que devia transform ar-se no veículo de financiam ento da guerra com a França in iciada em 1688 (K in d leb e rg er 1984: 5 2 -3 ). C om o fim da rev o lu ção e a re n o v aç ão do envolvim ento m ilitar britânico no continente, tinha início um a nova era. A Grã- B retanha com eçava a instituir um exército perm anente de vulto, tom ava form a um a burocracia central efetiva e a C asa dos Com uns, que outorgava os im postos, adquiria poder frente ao rei e a seus m inistros (Brew er 1989).

Novas e repetidas rebeliões na Escócia e na Irlanda - envolvendo m uitas vezes pretendentes rivais à coroa inglesa, sem falar da parte ativa da França - lim itaram os poderes bélicos do estado. As guerras e lutas dinásticas com binaram -se para p ro d u z ir g ran d es tran sfo rm açõ es do estado , in c lu s iv e um a u n ião e s táv e l da Inglaterra com a Escócia (1707), a colocação definitiva da casa alem ã de H anover (m ais tarde denom inada W indsor) no trono (1714-15) e o estabelecim ento d e um moclus vivendi en tre a m onarquia e um Parlam ento poderoso que representava os interesses com erciais e agrícolas do país. Uma rebelião em nome do pretendente S tuart ao trono (1715) fracassou amargam ente, bem com o uma segunda rebelião em 1745, que m arcou a últim a am eaça séria à sucessão real na G rã-B retanha. O poder m ilitar b ritânico estava em ascensão: “Por volta de 1714, a A rm ada B ritânica e ra o m aior da E uropa, e em pregava mais trabalhadores do que qu a lq u er o u tra indústria do pa ís” (Plum b 1967: 119).

Em com paração com seus vizinhos continentais, o estado britânico governou através de um aparelho central relativam ente pequeno, suplem entado por um vasto sistem a de patronato e poderes locais no qual governadores de condado, xerifes, prefeitos, condestáveis e ju izes de paz fizeram o traba lho da coroa sem serem em pregados p e rm anen tes; antes das G uerras N ap o leô n icas, so m en te as taxas alfandegárias e os impostos sobre o consum o contavam com grandes núm eros de

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fu ncionários regularm ente designados. A té então , a G rã-B retanha não tinha um exérc ito perm anente e dependia principalm ente da m obilização em tem po de guerra do p o d e r naval para as suas forças armadas. Com exceção da Irlanda, em todos os outros locais da G rã-B retanha o exército tinha um papel relativam ente pequeno no con tro le da população civil, ao contrário das m ilícias cujo papel era relativam ente g rande. N a Irlanda, o governo britânico, em todo o seu período de hegem onia, con tinuava a em pregar força arm ada e a experim entar novos m eios de polícia; na verdade, a G rã-B retanha usava a Irlanda com o um cam po de provas para as técnicas de p o lic iam en to que depo is o estado in tro d u z iria na Ing laterra , em G ales e na E scócia (Palm er 1988).

A G rã-B retanha continuou fazendo guerra na Europa e lutando para im por seu im pério no resto do m undo; o térm ino da G uerra de Sete A nos contra a França (1763) transform ou a G rã-B retanha na m aior potência colonial do mundo. A perda das colôn ias am ericanas (1776-83) não constituiu ameaça ao poder do estado, tal com o haviam sido as derrotas anteriores. R epetidas m obilizações para a guerra com a F rança, sobretudo en tre 1793 e 1815, expandiram enorm em ente a tributação, a d ív ida nacional e a intervenção do estado na econom ia, ao m esm o tem po em que a fo rç a do rei e de seus m in istro s p assava su til mas d e fin itiv am en te para a do Parlam ento. D urante essas guerras (1801), a Grã-Bretanha incorporou a Irlanda (não definitivam ente, mas por m ais de um século) ao Reino U nido. M ais ou m enos no com eço do século XIX, esse Reino U nido se havia transform ado no m odelo de um a m o n arq u ia p a rlam en tar dom in ad a pelos p rop rie tá rio s de te rra s , f in an c is tas e m ercadores.

A ex p an são im p e r ia l c o n tin u o u a tra v é s da rá p id a in d u s tr ia l iz a ç ã o e urbanização do século XIX. D entro da Grã-Bretanha, o estado m udou decisivam ente p a ra a in tervenção d ire ta nos negócios locais; quando, nos sécu los an terio res, legislaram m uitas vezes no sentido de com andar a venda de alim entos, o contro le d a ação coletiva, a assistência aos pobres, ou os direitos e deveres dos trabalhadores, o rei £ o parlam ento quase sem pre haviam incum bido as au toridades locais da in ic iativa e seu cum prim ento. Enquanto que a Grã-Bretanha m anteve as autoridades locais num grau m uito m aior que seus vizinhos continentais, durante o século XIX os fu n c io n á rio s n a c io n a is en v o lv eram -se com o nunca h av iam fe ito an tes em po lic iam ento , educação, inspeção de fábrica, conflito industrial, m oradia, saúde púb lica e num a grande gam a de outras questões. De modo diferencial mas decisivo, o estado britânico encam inhou-se para o governo direto.

A pesar da m obilização ocasional do sentim ento nacional, Gales e a E scócia haviam cessado há m uito de am eaçar a dissolução do estado britânico. M as a G rã- B re tanha nunca conseguiu integrar, ou m esm o atem orizar, a m aio r parte da Irlanda.

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A resistência e rebelião irlandesa atingiu seu ápice logo depois da Prim eira G uerra M undial; através de várias medidas, todas as regiões, com exceção do U lster, a nordeste, m ais ang lic izado e inteiram ente protestante, reuniram -se num estado independente, prim eiro dentro da Com m onw ealth e depois finalm ente fora dela. A luta no e pelo U lster não terminou.

Em bora, em retrospecto, a G rã-B retanha sirva m uitas vezes de m odelo de estabilidade política, um exam e detido da form ação d o estado nas Ilhas B ritânicas m ostra quão perm anentem ente parceiros poderosos batalharam pelo dom ínio do estado e com que freqüência a transição de um reg im e p ara o seguin te ocorreu com violência. A experiência da Irlanda dem onstra a capacidade da região d e criar um estado rela tivam ente fraco ao longo de um a tra je tó ria de intensa coerção. Não obstante, o estado britânico chegou a dom inar grande parte do m undo duran te os séculos XVIII e XIX e continua um a potência m undial até hoje. A história desse estado não é apenas um a conciliação (ou m esmo u m a síntese) entre as h istó rias de Veneza e R ússia, países de aplicação intensa de coerção e grande inversão de capital.

O estado inglês, depois britânico, foi constru ído sobre um a con junção de capital e coerção que, desde cedo, deu a todo m onarca acesso a im ensos m eios de guerra, mas som ente ao preço de grandes concessões aos com erciantes e banqueiros do país. A difícil aliança entre os senhores da terra e os com erciantes reduziu a autonom ia real, m as fortaleceu o poder do estado. A agricultura voltada p ara o m ercado, o com ércio de longo alcance, a conquista im perial e a guerra con tra potências européias rivais com plem entaram -se entre si, estim ulando um inves­tim ento no poder naval e uma facilidade em m obilizar forças terrestres para ação no mar. A com ercialização tanto da econom ia rural quanto da urbana significa que a tributação e o em préstim o para a guerra ocorreram com mais facilidade, e com menos aparelho estatal, do que em m uitos outros países da Europa. Adam Smith colocou isso em term os de uma sim ples com paração entre a Inglaterra e a França;

Na Inglaterra, estando a sede do governo na maior cidade mercantil «lo mundo, o s co­merciantes são de modo geral as pessoas que adiantam dinheiro ao governo. [...] Na França, com o a sede do governo não se encontra numa grande cidade mercantil, os com erciantes não representam uma proporção tão grande das pessoas que adiantam dinheiro ao governo.

(Smith 1910 [1778]; II, 401.)

Por esse aspecto, a Inglaterra esteve mais próxima do que a França da trajetó ria de i form ação do estado com grande inversão de capital. A Inglaterra, para o governo

quotidiano do reino, criou uma notável combinação de fácil acesso ao capital e forte

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dependência dos senhores de terra. Na França pré-revolucionária, em bora grande parte do governo local estivesse igualm ente nas mãos dos nobres e dos padres, o esforço de extração dos recursos de guerra de um a econom ia m enos capitalizada e com ercializada deu origem a um aparelho estatal central m uito mais corpulento do que na Inglaterra.

No entanto, se estudarm os Veneza ou M oscou, podem os ver im ediatam ente grandes semelhançassentre as relações capital-coerção na G rã-B retanhae na França. J á nos habituamos a com parar as trajetórias da G rã-B retanha, França, P rússia e Espanha, definindo-as entre os principais tipos alternativos de form ação de estado. T odavia, dentro do con jun to da Europa, esses quatro estados têm propriedades com uns que os distinguem claram ente da trajetória de grande inversão de capital e da de in tensa ap licação de coerção . N os quatro casos, m onarcas am b ic io so s tentaram , com sucesso variado, esm agar ou enredar as assem bléias de represen­tantes, como os Estados provinciais, durante a estruturação do poder militar, nos séculos XVI e XVII; na França e na Prússia os Estados (E states) sucum biram , na E spanha as Cortes vacilaram e, na Grã-Bretanha, o Parlam ento sobreviveu enquanto baluarte do poder da classe dirigente. Nos quatro casos, a coincidência de centros coercivos com centros de capital facilitaram - pelo menos por um m om ento - a criação de força m ilitar m aciça numa época em que exércitos e m arinhas grandes, caro s e bem -arm ados deram àqueles estados nacionais que lograram criá-los a vantagem esm agadora na busca de hegem onia e império.

Por que Veneza e R ússia não se tornaram a Ing laterra? A pergunta não é ab su rd a ; deriva do reco n h ecim en to de q u e os estados eu ro p eu s em g eral se encam inharam para m aiores concentrações de capital e de coerção, convergindo no estado nacional. Parte da resposta é: eles se tornaram. O estado italiano e o russo que entraram na Prim eira Guerra M undial tinham m uito m ais características dos estados nacionais do que tiveram seus antecessores de um século ou dois antes. M as a resposta mais profunda é que as suas histórias prévias os assustaram . Veneza criou um estado que se curvou aos interesses de um patriciado m ercantil, e esse patriciado descobriu sua vantagem m uito mais na procura dos interstícios do sistem a com ercial europeu do que na colaboração em qualquer esforço de construção de um poder m ilita r volum oso e duradouro . A R ússia criou um estado com andado p o r um p re tenso autocrata, mas totalm ente dependente da cooperação dos proprietários rurais cujos interesses exigiam que o estado não incluísse entre seus objetivos o trab a lh o cam ponês e seus p rodu tos, e su je ito a um a b u ro c ra c ia que p o d e ria facilm ente consum ir qualquer excedente que o estado gerasse. Tipos diferentes de revolução - o Risorgimento e a tomada do poder pelos bolchevistas - im peliram os venezianos e os moscovitas para novos estados que se assem elhavam cada vez mais

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aos grandes estados nacionais da Europa O cidental. No entanto, m esm o os estados sucessores ostentavam as m arcas de suas identidades anteriores.

O retrato esquem ático que G. W illiam Skinner fez da China, a que aludim os anteriorm ente, fornece assim um a idéia incisiva da experiência européia. A juda- nos a reconhecer de que m odo a construção da fo rça arm ada e suas conseqüências organizacionais variaram de um a região da E uropa para outra em função do peso relativo do capital e da coerção, dos sistemas de exploração e dom inação “de baixo para cim a” e “de cim a para baixo” , das cidades e estados. Em bora todos os estados tenham devotado esforços im portantes à guerra e aos preparativos da guerra, âlém desse elem ento com um as suas atividades predom inantes variaram de acordo com as suas posições nas redes de capital e de coerção e suas histórias prévias. Além disso, m esm o atividades sim ilares deixaram resíduos organizacionais diferentes que dependeram do lugar em que ocorreram e da sua quantidade. Contudo, em m edida crescente, as relações com os outros estados determ inaram a estru tura e a atividade de qualquer estado particular. Por causa de suas vantagens em traduzir recursos nacionais em su cesso na g u e rra in te rn ac io n al, o s g randes e s ta d o s n a c io n a is substituíram os im périos extorquidores de tributos, as federações, as c idades-estado e todos os outros com petidores com o entidades po líticas predom inantes-na E uropa e como m odelos de form ação do estado. Esses estados, finalm ente, determ inaram o caráter do sistem a estatal da Europa e se estenderam ao m undo inteiro.

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