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COERÇÃO, CAPITAL E ESTADOS EUROPEUS 990-1992 CHARLES TILLY Tradução Geraldo Gerson de Souza

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COERÇÃO, CAPITAL E ESTADOS EUROPEUS 990-1992

CHARLES TILLY

Tradução

Geraldo Gerson de Souza

3

COMO A GUERRA FEZ OS ESTADOS, E VICE-VERSA

UM A B IF U R C A Ç Ã O D E V IO L Ê N C IA

A despeito da atual acalm ia de quarenta anos na guerra aberta en tre as grandes potências do m undo, o século XX já se firmou com o o m ais belicoso da história humana. D esde 1900, se contarm os cuidadosam ente, o m undo assistiu a 237 novas guerras - civis e internacionais — que mataram pelo m enos mil pessoas por ano; até o ano 2000, esses núm eros im placáveis atingirão o m ontante de aproxim adam ente 275 guerras e 115 m ilhões de m ortos em luta. As m ortes c iv is poderiam facilm ente equiparar-se a esse total. O sangrento século XIX contou apenas 205 guerras e 8 m ilhões de m ortos; o belicoso século XVIII, m eras 68 guerras com 4 m ilhões de mortos (Sivard 1986: 26; ver tam bém Urlanis 1960). Esses núm eros traduzidos em taxas de m ortalidade por mil habitantes dão cerca de 5 para o século XVIII, 6 para o século XIX e 46 - oito ou nove vezes mais - para o século XX. De 1480 a 1800, a cada dois ou três anos iniciou-se em algum lugar um novo conflito internacional expressivo; de 1800 a 1944, a cada um ou dois anos; a partir da Segunda G uerra M undial, m ais ou menos a cada quatorze m eses (B eer 1974: 12-15; Sm all & Singer 1982: 59-60; C usack & Eberw ein 1982). A era nuclear não dim inuiu a tendência dos séculos antigos a guerras m ais freqüentes e m ais m ortíferas.

O fato de os ocidentais com um ente pensarem de m odo diferente resulta talvez de ser cada vez m ais ra ra u m a guerra en tre a s g randes po tênc ias: a F rança, a Inglaterra, a Áustria, a Espanha e o Império O tom ano em 1500; a França, o R eino Unido, a U nião Soviética, a A lem anha O cidental, os Estados Unidos e a C hina no

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passado recente; outros grupos no período interm ediário. A partir do século XVI, declinaram , em m édia, a freqüência, a duração e o núm ero de estados envolvidos em guerras entre grandes potências. Em am arga com pensação, porém , tornaram -se m uito m ais severas - sobretudo se contarm os o núm ero de m ortos por m ês ou por ano (Levy 1983: 116-49). Entre as potências m enores, as guerras aconteceram em quantidade cada vez maior, mas foram razoavelm ente pequenas; entre as grandes po tências, foram em quantidade cada vez menor, mas cada vez mais m ortíferas.

P o d e -se en ca ra r com otim ism o ou com pessim ism o o co n traste e n tre a ex p eriên c ia de lu ta da grande po tência e a de ou tros estados. Com o tim ism o, podem os im aginar que as grandes potências acabam encontrando m eios m enos onerosos de acertar as suas diferenças do que as guerras incessantes, e que o m esm o poderá acontecer com outros estados. Com pessim ism o, podem os concluir que as grandes potências exportaram a guerra para o resto do m undo e evitaram que as suas energias destruíssem uns aos outros em explosões concentradas. Seja qual fo r a p red isposição , percebem os um m undo cada vez m ais beligeran te em que os estados m ais poderosos gozam de um a ausência parcial da guerra em seus próprios territórios e, por conseguinte, tornam -se talvez menos sensíveis aos horrores dos conflitos.

O problem a, no entanto, não é o fato de as pessoas se terem tornado mais agressivas. A m edida que o mundo se tornou mais belicoso, a violência entre as pessoas que se acham fora da esfera do estado declinou de m aneira geral (Chesnais 1981, G urr 1981, H air 1971, Stone 1983). Pelo menos isso parece ser um a verdade no que diz respeito aos países ocidentais, até agora os únicos para os quais dispom os de u m a longa série de testem unhos. E m bora os re la tos de hom icídios, rap tos, e s tu p ro s e v io lên c ia co le tiv a em nossos jo rn a is d iário s possam su g erir co isa d iferente , as chances de m orrer por m orte violenta nas m ãos de um outro c idadão dim inuíram enorm em ente.

As taxas de hom icídio na Inglaterra no século XIII, por exem plo, eram cerca de dez vezes as de hoje, e talvez duas vezes as dos séculos XVI e XVII. As taxas de assassinato declinaram com particular rapidez do século XVII para o século XIX. (C om o os Estados U nidos têm de longe a m aior taxa nacional de hom icídio do m un­do ocidental, pode ser mais difícil para os am ericanos do que para os outros avaliar com o a violência interpessoal se tornou m ais rara em outras regiões; na m aioria dos países ocidentais, o suicídio é dez ou doze vezes tão com um quanto o hom icídio, em bora a taxa de hom icídio da população am ericana se aproxim e de sua taxa de suicídio.) Se não fossem a guerra, a repressão do estado, o autom óvel e o suicídio, as chances de m orte v iolenta de qualquer tipo seriam incom paravelm ente m ais escassas na m aioria dos países ocidentais do que eram dois ou três séculos atrás.

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Pensadores com o M ichel Foucault e M arvin B ecker talvez tenham razão quando atribuem esse fato em parte a grandes m udanças de m entalidade. Todavia, um a contribuição significativa resulta com certeza da tendência cada vez m aior dos estados a controlar, reprim ir e m onopolizar os m eios efetivos de violência. No mundo, em sua m aior parte, a a tividade dos estados criou um notável contraste entre a violência da esfera estatal e a relativa não-violência da vida civil fora do estado.

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Os estados europeus é que com andaram a construção desse contraste. E o fizeram institu indo tem íveis m eios de coerção e privaram ao m esm o tem po as p o p u laçõ es c iv is do acesso a e sse s m eios. N a m aio ria dos caso s, co n ta ram intensam ente com o capital e com os capitalistas enquanto reorganizavam a coerção. No entanto, estados diferentes fizeram -no de form as notavelm ente diferentes.

Não subestim em a dificuldade ou a im portância da mudança. N o decurso da m aior parte da história européia, era fato usual homens com uns (novamente, a forma m asculina da palavra é im portante) disporem de arm as letais; além do mais, dentro de qualquer estado particular, e ra habitual os detentores de poder local ou regional contro larem os m eios concentrados de força que, quando com binados, podiam igualar-se aos do estado ou m esm o sobrepujá-los. D urante m uito tem po, em m uitas partes da Europa, os nobres gozaram do direito legal de fazer um a guerra particular; no século XII, os Usatges, ou Costum es, da Catalunha registraram de form a espe­cífica esse direito (Torres i Sans 1988: 13). Durante todo o século XVII os bandidos (que m uitas vezes consistiam de segm entos desm obilizados de exércitos públicos ou particulares) se espalharam por grande parte da Europa. Na Sicília, os m afiosi, em presários da violência contro lados e protegidos, aterrorizaram as populações rurais até os nossos dias (Blok 1974, Rom ano 1963). As pessoas alheias ao estado m uitas vezes se aproveitaram m uito bem do uso particular dos meios violentos.

No entanto, a partir do século XVII, os governantes tentaram m udar o equ i­líbrio de m aneira decisiva tanto em detrim ento dos cidadãos individuais quanto dos detentores de poder rivais dentro de seus próprios estados. Declararam crim inoso, im popular e inexeqüível para a m aioria de seus cidadãos o uso de arm as, baniram os exércitos particulares e tornaram normal agentes arm ados do estado enfrentarem civis desarm ados. Hoje em dia, os E stados Unidos, por aceitarem a posse de armas de fogo pelos cidadãos, diferem de todos os outros países do Ocidente e pagam o preço em índices de m ortalidade por tiro centenas de vezes superiores aos países europeus; no tocante à proliferação de armas nas m ãos dos particulares, os Estados

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U nidos se assem elham m uito m ais ao L íbano e ao A feganistão do que à G rã- Bretanha ou aos Países-Baixos.

O desarm am ento da população civil aconteceu em m uitas e pequenas etapas: apreensão geral das armas ao térm ino das rebeliões, proibições dos duelos, controles da produção de armas, introdução da licença para o porte de armas por particulares, restrições a dem onstrações públicas de força arm ada. N a Inglaterra, os Tudors ! suprim iram os exércitos particulares, lim itaram o poder principesco dos grandes senhores ao longo da fronteira escocesa, con tiveram a v io lência aris tocrática e elim inaram os castelos-fortaleza que antes sim bolizavam o poder e autonom ia dos grandes m agnatas ingleses (Stone 1965: 199-272). L uís XIII, o m onarca que, no século XVII, com a ajuda de Richelieu e de M azarino, reconstruiu as forças arm adas : do estado francês, provavelm ente demoliu mais fortalezas do que construiu. M as construiu nas fronteiras e demoliu no interior. Para subm eter os m agnatas e cidades que se opunham a essa norma, demoliu regularm ente as suas fortificações, limitou os seus d ireitos ao uso de arm as e, desse m odo, reduziu as p robab ilidades de qualquer rebelião futura mais séria.

Ao m esm o tem po, a expansão dada pelo estado às suas próprias forças ar­m adas superou os arm am entos de que dispunha qualquer de seus antagonistas do­m ésticos. A distinção entre política “interna” e “ex terna”, que antes não era m uito clara, tornou-se relevante e decisiva. A centuou-se a conexão entre a g uerra e a estrutura de estado. Finalm ente, a definição de estado dada por M ax W eber, his­toricam ente contestável, com eçou a fazer sentido com relação aos estados euro­peus: “o estado é um a com unidade hum ana que re iv ind ica (com sucesso) o m ono­pólio do uso legítim o de fo rça fís ic a dentro de um determ inado território” (Gerth & M ills 1946: 78).

A form a exata com o ocorreu o desarm am ento civil estava na dependência de seu ambiente social: nas regiões urbanas, a instalação de um policiam ento rotineiro e a negociação de acordos en tre as au toridades m un ic ipais e nacionais foram importantes no caso, ao passo que, nas regiões dom inadas pelos grandes proprie­tários de terra, a dissolução dos exércitos particulares, a elim inação dos castelos cercados de muros e fossos e a proibição das vendetas se alternaram entre cooptação e guerra civil. luntam ente com a estruturação das forças armadas do estado, o desar­m am ento dos civis aumentou enorm em ente a p roporção de m eios coercivos nas mãos do estado com relação àqueles de que dispunham os antagonistas dom ésticos ou opositores daqueles que no m omento detinham o poder. C onseqüentem ente, tornou-se quase im possível a um a facção d issiden te tom ar o poder num estado ocidental sem a colaboração a tiva de alguns segm entos das próprias forças armadas (Chorley 1943, Russell 1974).

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A criação de forças arm adas por um governante gerou um a estru tura de estado duradoura. E isso aconteceu não só porque o exército se tornou um a organização expressiva dentro do estado m as tam bém porque a sua criação e m anutenção indu­z iram a in sta lação de o rg an izaçõ es c o m p le m e n ta re s : te so u ro s , se rv iço s de abastecim ento, m ecanism os de recrutam ento, órgãos de coleta de im postos e m uitas outras. O principal organism o de arrecadação de impostos da m onarquia prussiana recebeu o nome de C om issariado Geral da G uerra. No final do século XVII, os su­cessivos governos republicano e m onárquico da Inglaterra, preocupados em rebater o poder naval holandês e francês, transform aram os estaleiros reais na m aior indús­tria concentrada do país. Tais organizações construtoras de im périos, com o a C om ­panhia holandesa das índ ias Orientais, converteram -se em elem entos de enorm e influência em seus governos nacionais (Duffy 1980). De 990 d.C. em diante, as prin­cipais mobilizações para a guerra propiciaram os m elhores ensejos para os estados se expandirem , se consolidarem e criarem novas form as de organização política.

A S G U E R R A S

Por que aconteceram as guerras? O fato central e trágico é sim ples: a coerção fu n c io n a ; aqueles que aplicam força substancial sobre seus cam aradas obtêm con­descendência, e dessa condescendência tiram m últiplas vantagens, com o dinheiro, bens, deferência, acesso a prazeres negados aos indivíduos m enos poderosos. Os europeus seguiram um a lógica padronizada de provocação da guerra: todo aquele que contro lava meios substanciais de coerção tentava garantir u m a área segura dentro da qual poderia desfrutar dos lucros da coerção, e mais um a zona-tam pâo fortificada, talvez conseguida aleatoriam ente, para proteger a área segura. A polícia ou o seu equivalente exercia a força na área segura, enquanto o exército patrulhava a zona-tam pão e se aventurava fora dela; os príncipes mais agressivos, com o Luís XIV, reduziram a zona-tam pão a uma fronteira estreita mas fortem ente arm ada, ao passo que seus vizinhos m ais fracos ou mais pacíficos tinham zonas-tam pão e cursos d ’água maiores. Quando essa operação era assegurada por algum tem po, a zona- tam pão se transform ava em área segura, que encorajava o aplicador de coerção a adquirir um a nova zona-tam pão em volta da antiga. Quando as potências adjacentes estavam perseguindo a m esm a lógica, o resultado era a guerra.

N o entanto, algum as condições prévias da guerra variaram. A m arca particular de cada estado na guerra dependia de três fatores estreitam ente re lacionados: a natureza de seus principais antagonistas, os in teresses ex ternos de suas c lasses dom inantes e a lógica da atividade de proteção que os governantes adotavam em

m

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nom e de seus próprios interesses e dos das classes dom inantes. N aquelas regiões em que os antagonistas eram m arinheiros mercadores, a p irataria e o corso sim ples­m ente persistiram , independentem ente do estado form al de guerra e paz, ao passo que , naquelas em que as potências agrárias dom inadas pe los senhores de terra viv iam om bro a om bro, as disputas pelo controle da terra e do trabalho - principal­m en te nos m om entos das b rigas de sucessão - p rec ip ita ram com m uito m ais freqüência o apelo às armas. Quando as pequenas potências m arítim as dispunham de grandes im périos ultram arinos, a proteção dos interesses levou-os a patru lhar as linhas costeiras e, desse m odo, a travar inevitáveis ba ta lhas contra aqueles que cobiçavam o m esm o negócio. Com a m udança básica, no decurso dos mil anos que e s ta m o s e s tu d an d o , d a co m p o s iç ão d e r iv a lid ad es , d a n a tu re za d as c la sse s d om in an tes e das so lic itações de p ro teção , m udaram tam bém as causas carac­terísticas da guerra.

A coerção é sem pre relativa; quem quer que controle m eios concentrados de coerção corre o risco de perder vantagens quando um v izinho cria os seus próprios m eios. N a Europa anterior a 1400, o controle da m aioria dos estados por grupos de paren tesco com pôs a com petição. O nde os governantes form avam um grupo de parentesco, a tendência de grupos m ais prósperos de parentesco se expandirem e buscarem locais para seus herdeiros em núm eros crescentes incitou-os à conquista e , po r conseguinte, aguçou as suas rivalidades. A lém d isso , o casam ento en tre fam ílias governantes m ultiplicou as pretensões de d inastias poderosas aos tronos vagos. N a soberania fragm entada da Europa, os antagonistas - parentes ou não - sem pre estavam à m ão, m as do m esm o m odo quase sem pre um a coligação estava p ron ta a im pedir a expansão indefinida de qualquer centro particular.

A lém d isso , po r m u ito tem p o , e stad o s m aio res , co m o a B o rg o n h a e a Inglaterra, abrigaram antagonistas Internos do soberano vigente, grupos arm ados q u e tinham algum a pre tensão ao gov ern o e que, às vezes, serv iam de a liados im plícitos ou explícitos dos inim igos externos. N a China, quando se form ou o vasto aparelho imperial! um im pério em desenvolvim ento tinha um a série de inim igos, m as nenhum antagonista real dentro ou fora de seus territórios. Os m ongóis fizeram constantes am eaças ao longo da fronteira setentrional da C hina e de vez em quando realizaram incursões devastadoras dentro do império, m as só o tom aram realm ente u m a única vez. Em geral, os m ongóis eram melhores na extorsão de tributos do que teriam sido na operação dos próprios aparelhos do estado. As dinastias chinesas en tra ram em co lap so quando a e sfera adm in istra tiva do im pério fug iu ao seu contro le, quando os senhores da guerra se organizaram nos interstícios do im pério e quando os invasores nôm ades (principalm ente os m anchus) assolaram o território im p eria l e tom aram as rédeas do poder. A C hina se to rnou o local de g randes

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reb e liõ es e gu erras c iv is, m as não de guerra e n tre m ú ltip lo s estados. N esse particular, a Europa manteve o recorde.

Com o transcorrer do tem po, as guerras européias tornaram -se m ais letais e m enos freqüentes. A poiando-se na obra pioneira de P itirim Sorokin, Jack Levy compilou um catálogo das maiores guerras de que participaram as grandes potências - na Europa ou em outras regiões - de 1495 até 1975 (ver tabela 3.1). O seu ca­tálogo, que requer um mínimo de mil mortos em com bate por ano, é m uito m enor que a listagem que Evan Luard tentou elaborar e que com preendia todas as guerras de vulto num período com parável, mas Levy estabelece critérios m ais claros.de inclusão e fornece m aiores detalhes sobre as guerras que relaciona (ver Levy 1983, L uard 1987). N o decurso dos sécu los, o núm ero de guerras en tre as grandes potências, a sua duração m édia e a proporção dos anos de duração dessas guerras caíram de form a relevante (Levy 1983: 88-91, 139). A lista de todas as guerras elaborada por W illiam E ckhard t - guerras entre as grandes potências « outras, internacionais e civis, combinadas - atribui 50 ao século XVIII, 208 ao século XIX e 283 ao século XX até 1987 (Eckhardt 1988: 7; Sivard 1988: 28-31).

Tabela 3.1 Guerras que envolveram grandes potências

S écu loN ú m ero d e

gu erras

D u ração m éd ia

d a s guerras

(anos)

P ro p o rção dos

anos so b g u erra

(% )

X V I 34 1,6 9 5X V II 29 1,7 9 4X V III 17 1,0 7 8X IX 20 0 ,4 4 0X X * 15 0 ,4 53

* a té 1975.

Fonte'. L e v y 1983, L u a rd 1987.

Além disso, a intensidade da guerra mudou consideravelm ente. A fig u ra 3.1 revela algum as das alterações por m eio de um artifício tirado da análise de greves: um sólido cujo volum e representa o núm ero total anual de m ortos em com bate nas grandes potências, e cujas três dim ensões revelam os com ponentes do total de m ortos em com bate. Os três com ponentes são: o núm ero de mortos em com bate p o r estado que se envolveu nas guerras entre as grandes potências durante o ano médio; o núm ero de estados que participaram .dessas guerras durante o ano m édio; e o núm ero m édio de guerras por ano-estado de participação. Assim

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mortos em combate por ano =mortos em combate por estado x anos-estado por guerra x guerras por ano

que é o que mostra o sólido.

F ig u ra 3.1 M agnitudes das g u e rra s en tre grandes p o tên c ia s p o r sécu lo , 1500-1975.

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M ovendo-nos de século para século , vem os que o núm ero de m ortos em com bate por estado aum enta de menos de três mii por ano durante o século XVI para mais de 223 mil durante o século XX. O núm ero m édio de estados envolvidos nas guerras entre grandes potências subiu de 9,4 no século XVI para 17,6 no século XVIII, caindo a ap enas 6,5 no século XX. (O aum ento e d im in u ição rev e la o desenvolvim ento da guerra geral en tre todas as grandes potências ou entre a sua m aio ria , c o n tra b a la n ça d o nos sécu lo s XIX e XX pe la ten d ê n c ia dos e s tad o s o c id en ta is a c o m e ça r co n flito s loca is fo ra do O c id en te ou a in te rv ir n e le s .) Finalm ente, o núm ero de guerras num determ inado ano por estado participante caiu do século XVI para o XVIII, depois se estabilizou: 0 ,3 4 ,0 ,29 , 0 ,1 7 ,0 ,2 0 e 0,20. Isso quer dizer que, no século XVI, os estados que sem pre participaram das guerras de grandes potências estiveram em conflito durante cerca de um ano a cada três (0 ,34); no decurso do século XX, um ano a cada cinco (0,20).

Em conseqüência dessas m udanças, o volum e absoluto de m ortos por ano nas grandes potências ascendeu de 9 400 durante o século XVI para 290 mil no curso do século XX. Se incluirm os as mortes de civis e soldados das potências m enores, esse aum ento com certeza seria m uito maior. Com a aviação, os tanques, os m ísseis e as bom bas nucleares, a taxa de m ortalidade nas guerras d o século XX supera de longe as dos séculos anteriores.

Os núm eros são apenas aproxim ados, mas determ inam o intenso en v o lv i­m ento na guerra, século após século, dos estados europeus (que, do século XVII ao século XIX, form aram quase o total das grandes potências do m undo). Tam bém sugerem que os preparativos para a guerra, o seu pagam ento e a reparação de seus danos preocuparam os governantes durante os cinco séculos em exam e. Além do m ais, nos cinco séculos antes de 1500, os estados europeus concentraram -se quase que exclusivam ente em fazer guerra. D urante todo o milênio, a guerra foi a atividade dom inante dos estados europeus.

Os orçam entos dos estados, os im postos e as dívidas refletem essa realidade. A ntes de 1400, na e ra do patrim onialism o, nenhum estado tinha um orçam ento nacional no sentido estrito da palavra. Nos estados mais com ercializados da E uropa existiam impostos, m as em toda a parte os governantes tiravam dos tributos, rendas, d ire ito s e feudos a m aio r parcela de su as rece ita s. O s so b eran o s in d iv id u a is tom avam dinheiro em prestado, mas habitualm ente em seus próprios nomes e ao arrepio dos parentes colaterais. D urante o século XVI, quando a guerra m ultiplicou os gastos do estado na m aior parte do continente, os estados europeus com eçaram a norm alizar e am pliar os seus o rçam entos, os im postos e tam bém as dívidas. As receitas futuras d o s estados passaram a serv ir de garantia para as dívidas a longo prazo.

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A dívida pública d a França assum iu sérias proporções quando, na década de 1520, Francisco I com eçou a fazer em préstim os jun to aos hom ens de negócio de Paris em garantia das receitas futuras da cidade (Ham ilton 1950: 246). G astou o d in h eiro em suas g randes cam panhas con tra o im perador H absburgo C arlos V. E m bora a dívida nacional francesa oscilasse em função dos esforços de guerra e das po líticas fiscais, de m odo geral ela aum entou assustadoram ente - a ponto de os em préstim os tom ados para custear as guerras do século XVIII terem subm ergido o estado, arruinado o seu crédito e conduzido diretam ente à fa tíd ica convocação dos E stados Gerais em 1789. Os orçam entos e os im postos aum entaram paralelam ente: í o s im postos franceses subiram do equivalente a m ais ou m enos 50 horas do salário de um trabalhador com um p e r capita por ano em 1600 para quase 700 horas p e r : capita em 1963 (Tilly 1986: 62).

A G rã-B retanha sobreviveu sem grandes dívidas nacionais até o reinado de ; G u ilherm e I I I e M aria I I . A G uerra da L iga de A ugsburgo (1688-97) elevou a d ív ida b ritân ica a longo prazo para 22 m ilhões de libras. Por volta de 1783, depois da G uerra dos Sete Anos e da G uerra da Independência A m ericana, havia decuplicado para 238 m ilhões de libras. Em 1939, quando a G rã-B retanha se rearm ou, a d ív ida pública alcançou o total de 8,3 bilhões de libras (Ham ilton 1950: 254-57). A partir do final do século X V II , os orçam entos, as dívidas e os im postos cresceram ao ritm o da guerra. Todos os estados europeus envolvidos em guerras passaram pela m esm a experiência.

Se a guerra im pulsionou os estados, nem por isso exauriu a sua atividade. Ao contrário : im pelidos pelos preparativos para a guerra, os governantes deram início

—de bom ou mau grado a atividades e organizações que acabaram por adquirir vida própria: tribunais, tesouros, sistemas de tributação, adm inistrações regionais, assem ­bléias públicas, e m uitos outros. Escrevendo sobre o século XVI, J. H . Elliott observa:

S e a g u e r ra foi um te m a d o m in a n te n a h is tó r ia d a E sp an h a n o s r e in a d o s d e C a rlo s V e

F ilip e II , a b u ro c ra t iz a ç ã o fo i o u tro . [...] A su b s t itu iç ã o d e um rei g u e r re iro C arlo s V p o r u m

s e d e n tá r io F ilip e II, q u e g a s ta v a o d ia d e tra b a lh o e m su a e s c r iv a n in h a ro d e a d o d e p ilh a s d e

d o c u m e n to s , s im b o liz o u a d e q u a d a m e n te a t r a n s fo rm a ç ã o do Im p é rio E s p an h o l q u an d o p a s ­

so u d a é p o c a d o c o n q u is ta d o r p a ra o te m p o d o S e rv id o r P ú b lico .

(E llio t t 1963: 160 .)

O s serviços de aparelhar os exércitos e m arinhas não foram os únicos que re­sultaram na expansão da estrutura de governo. N enhum m onarca podia fazer guerra sem assegurar a aquiescência da quase to talidade de seus súditos, e da ativa coope­ração pelo m enos de uns poucos decisivos. R epetidas vezes, os governantes env ia­ram tropas para fazer cum prir a arrecadação de tributos, de im postos, os recruta-

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mentos de hom ens e as requisições de materiais. M as permitiram igualm ente que as localidades se livrassem da onerosa injunção de tropas mediante o pagam ento no tempo devido de suas obrigações. N esse particular, os governantes se assem e­lhavam a vendedores de proteção: em troca de um valor, ofereciam proteção contra os danos que eles próprios de outro m odo infligiriam, ou pelo menos perm itiriam que fossem infligidos.

N a e sfe ra do estad o , só m ulto len tam en te se d esen v o lv eu , e n u n c a sea

com pletou, a d iv isão organizacional entre as forças arm adas orientadas para atacar os inimigos externos (exércitos) e tis orientadas para contro lar a população nacional (policia). Os problem as de policiam ento diferem sistem aticam ente entre as áreas rurais (onde, entre outras coisas, grandes porções de terra tendem a situar-se em espaço privado, vedado às autoridades públicas) e as áreas urbanas (onde grande parte da terra é espaço público, acessível a todos); um estilo m ilitar de policiam en­to disponível sob cham ado é adequado para a maior parte das áreas rurais, ao passo q u e nas áreas u rb an as é possível um patru lh am en to e v ig ilân cia s is tem á tica (Stinchcom be 1963). Em conseqüência dessas e de outras diferenças, as cidades, m uito antes da zona rural, desenvolveram de modo geral forças de polícia distintas; e naqueles estados relativam ente urbanos a separação entre as forças de po líc ia e as outras organizações m ilitares ocorreu m uito mais cedo.

Em meio ao século XVII, a m aioria dos grandes estados europeus, p a ra o governo dom éstico , dependiam de m agnatas regionais arm ados e parcialm ente autônom os, e enfrentaram repetidas ameaças de guerra c ivil quando os m agnatas pegaram em arm as contra os soberanos. Nos séculos críticos de 1400 a 1700, os ;; governantes gastaram grande parte do seu esforço em desarm ar, isolar ou c o o p ta r ' os pretendentes rivais ao poder do estado. As m unicipalidades e jurisdições rurais criaram bem antes as suas próprias forças policiais, de pequena monta, mas som ente no século XIX é que os estados europeus instituíram forças policiais uniform izadas, assalariadas e burocráticas, especializadas no controle das populações civis. D esse m odo, não mais concentraram os seus exércitos na conquista externa e na guerra internacional.

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A A P R E E N S Ã O , A F AB R IC A Ç Ã O O U /I C O M P R A D E C O E R Ç Ã O

M ais ou menos em 1502, a maioria dos príncipes europeus já conheciam de cor a lição de Balsac. G rosseiram ente falando, os governantes dispunham de três meios principais de adquirir os meios concentrados de coerção: poderiam apreen­dê-los, fabricá-los ou com prá-los. Antes do século XX, poucos estados europeus fabricaram um a parcela im portante de seus próprios meios coercivos; raram ente possuíram o capital necessário ou a técnica para tanto. Aquelas m anufaturas caras e perigosas com o a pólvora e o canhão foram as principais exceções. D epois de 990 d.C., os estados europeus passaram a evitar a apreensão direta e tenderam a adquiri-la.

* E m francês n o orig inal, “go lpe d e m isericó rd ia” . (N . do T.)

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D iversas m udanças im portantes os impeliram na m esm a direção. Em prim eiro lugar, quando a guerra se tornou m ais com plexa e m ais necessitada de capital, um núm ero cada vez m enor de pessoas da população civil passou a dispor dos m eios de guerra; toda fam ília nobre do século XIII possuía espadas, m as nenhum a do sécu­lo XX possui um porta-aviões. Em segundo lugar, os governantes desarm aram deli­beradam ente as suas populações civis à m edida que arm avam as suas tropas, acen­tuando desse m odo a distinção entre os que controlavam os meios de guerra e aqueles que norm alm ente pagavam a guerra a pedido do m onarca. Em terceiro lugar, os es­tados se envolveram cada vez m ais na produção dos m eios de guerra, o que colo­cou a questão sob outra forma: um a escolha entre apreender e com prar os m eios de p rodução em vez dos próprios produtos. Em quarto lugar, a oposição da m assa da população subm etida à captura direta de homens, alim ento, armas, transporte e outros m eios de guerra foi m uito mais vigorosa e eficiente do que a resistência a pagar os seus custos. E m bora várias form as de recrutam ento tenham persistido até os nossos dias, os estados europeus geralm ente tenderam a um sistem a de arrecadação de im ­postos em dinheiro, pagam ento dos m eios coercivos com o dinheiro assim arrecadado e em prego de alguns meios coercivos para m elhorar a arrecadação de im postos.

Tal s istem a só funcionou bem sob duas condições m uito necessárias: uma econom ia relativam ente m onetizada e a pronta d isponibilidade de crédito . Num a econom ia onde apenas um a peq u en a parcela de bens e serv iços é com p rad a e vendida, prevalece um a série de condições: os coletores de im postos são incapazes d e o b se rv ar ou av a lia r os recu rso s com algum a p recisão , m uitas p esso as têm pretensões sobre algum recurso particu la r e a perda desse recurso é de difícil reparação por parte do perdedor. Em conseqüência, qualquer tributação im posta é ineficiente, claram ente injusta e bastante passível de suscitar resistência. Q uando a disponibilidade de crédito é pequena, mesmo num a econom ia m onetizada, os gas­tos correntes dependem de d inheiro em caixa, e as ondas de despesa só podem o co rre r depois de cuidadoso arm azenam ento . Em tais c ircunstânc ias , qualquer g o v e rn an te que não pode a p re e n d e r õ s m eios de g u e rra d ire tam e n te d a sua população ou adquiri-los em outra parte sem qualquer pagam ento se vê bastante p ressionado a constru ir a força arm ada de seu estado. A pós 1500, quando os meios de guerra v itoriosa se tornaram cada vez mais caros, os governantes da m aioria dos estados europeus gastaram grande parte de seu tem po na obtenção de dinheiro.

D e onde provém o dinheiro? A curto prazo, tip icam ente de em préstim os junto a cap ita lis ta s e de co le tas ju n to às popu lações loca is que se sen tem bastan te incom odadas com as tropas em sua vizinhança. A longo prazo, de um a ou outra form a de tributação. Norbert Elias observa uma estreita relação entre a tributação e a força m ilitar:

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A so c ie d a d e d aq u ilo q u e c h a m a m o s era m o d e rn a se c a ra c te r iz a , p rin c ip a lm e n te no O c i­d en te , p o r u m c e rto n íve l d e m o n o p o liza ção . A o in d iv íd u o é n eg a d o o liv re u so d e a rm as m i­

lita re s , q u e é rese rv ad o a u m a a u to r id a d e c e n tra l d e q u a lq u e r tip o ; d o m e sm o m o d o a tr ib u ta ­

ção d a p ro p rie d ad e e da ren d a d e in d iv íd u o s se c o n c e n tra n a s m ãos d e um a a u to r id a d e socia l

c en tra l. O s m e io s f in a n ce iro s q u e flu em d esse m o d o p a ra e s s a a u to r id ad e c e n tra l m a n têm o

seu m o n o p ó lio d a fo rça m ilita r, en q u a n to essa p o r seu tu rn o m a n tém o m o n o p ó lio d a tr ib u ta ­

ção . N en h u m a d as d u as tem a lg u m tip o de p re c e d ê n c ia so b re a o u tra ; são o s d o is la d o s do

m esm o m o n o p ó lio . Se u m a d e sa p a re c e , a ou tra se g u e -a au to m a tic a m e n te , m e sm o q u e o d o m í­

n io t i o m o n o p ó lio p o ssa às v ez es s e r ab a lad o m ais fo r te m e n te d e um lado d o q u e do o u tro .

(E lia s 1982: II, 104.)

Contudo, o dueto de Elias constitui na verdade duas vozes de um trio. O membro que está faltando, o crédito, liga o monopólio m ilitar ao monopólio da tributação.

Historicam ente, poucos estados grandes conseguiram pagar os custos militares com as receitas normais. Ao contrário, remediaram a necessidade com um a ou outra forma de empréstimo: fazendo os credores esperarem , vendendo cargos, forçando em préstim os de clientes, tom ando em prestado a banqueiros em troca de direitos sobre receitas futuras do governo. Se um governo e seus agentes têm condições de tom ar em préstim os, podem descom binar o ritm o de seus gastos com o das receitas, e aqueles são feitos antes da entrada destas. Esse tipo de gasto antes da receita torna m ais fácil atender às g randes despesas da guerra , um a vez que os gastos com homens, armas e outros requisitos da guerra ocorrem costum eiram ente em ondas, de tem pos em tempos, ao passo que as rendas do estado potenciais e reais costumam oscilar m uito menos de ano para ano. Além disso, um estado que faz empréstimos rápidos pode mobilizar-se m ais depressa que seus inim igos, e desse m odo aumenta as chances de ganhar um a guerra.

E evidente que a disponibilidade de crédito depende de ter o estado pago as suas dívidas anteriores, mas depende muito mais da presença de capitalistas. Estes servem aos estados, quando têm vontade de fazê-lo , com o em prestadores, m obi­lizadores de em préstim os e administradores ou m esm o cobradores de rendas para pagar o s em préstim os. A lgum as vezes os capitalistas europeus reuniram todas essas atividades na figura bastante odiada do arrendatário de im postos, que adiantava j dinheiro ao estado em troca de impostos que ele m esm o cobrava com a autoridade I e a força m ilitar do estado e dos quais separava um belo quinhão para si com o p a g a - ; m ento de seu crédito, do risco e do trabalho. Todavia, m uitas vezes os capitalistas eram os principais organizadores e depositários d a d ív ida pública. A sua atividade favorecia igualm ente a m onetização da econom ia de um estado; algum as das relações m ais importantes estão resum idas na figura 3.2. Não são as únicas relações que influenciam as variáveis do esquema. O acesso direto por parte de um a coroa a

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recursos de venda fácil, por exem plo, tornam -na m ais atraente para os credores, e ocasionalm ente fornece um a alternativa ao em préstim o. Enquanto o ouro e a prata fluíam das A m éricas, os reis espanhóis encontraram em prestadores de boa vontade em A ugsburgo, Amsterdam e em outros locais. N a época da m obilização em massa e dos imensos exércitos de cidadãos que tiveram início com a R evolução Francesa, o sim ples tam anho da população de um estado passou a representar crescentem ente um a facilidade para a práticaxla guerra. Mesmo então, as relações entre a atividade capitalista, a m onetização, a disponibilidade de crédito e a facilidade na guerra eram fonte de im portante diferença entre os estados da E uropa; p roporcionaram aos estados que tinham pronto acesso aos capitalistas vantagens extraordinárias em mover-se rapidam ente para um a base de operações.

F ig u ra 3 .2 C om o a p resen ça de cap ita l facilita a prática d a guerra .

Por conseguinte, a presença ou ausência relativa de cidades m ercantis dentro do território de um estado afetava fortemente a sua facilidade de m obilização para a guerra. O nde havia abundância de cidades não só os em préstim os e im postos fluíam mais rapidamente para os cofres dos estados - graças à m aior atenção que o governo dava aos interesses dos “burgueses” den tro e fora do territó rio - mas também as m ilícias urbanas e frotas comerciais se adaptavam mais prontam ente à defesa e à predação militar. O nde as cidades eram fracas e raras, os governantes ou operavam sem grandes em préstim os ou recorriam a banqueiros estrangeiros que cobravam altos preços por seus serviços, atraíam a cooperação dos m agnatas que controlavam as forças armadas e, além disso, exigiam privilégios em troca, e insti­tuíam pesados aparelhos fiscais no processo de tributar um a população resistente e sem dinheiro.

No decurso do século XVIII, quando se expandiu a escala da g uerra e se generalizou o em prego de m ercenários, a capacidade de fazer em préstim os tornou- se cada vez m ais decisiva p ara o êxito militar. O s com erciantes da A lem anha M eridional, como os Fuggers de Augsburgo, jun taram -se a seus colegas italianos nas atividades de em préstim os aos reis; por exem plo , os Fuggers da A ntuérpia financiaram as guerras espanholas contra a garantia de entregas futuras da prata

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americana. O s em préstim os a longa distância tornavam os m onarcas devedores de e s tran g e iro s a quem não era fácil co n tro lar, m as d av a-lhes co n d içõ es de não re c o n h e c e r as d ív id as , o q u e p roduzia e fe ito s m enos c a ta s tró f ic o s so b re as econom ias locais. No final, as desvantagens superaram as vantagens, e os m onarcas preferiram recorrer a em préstim os dom ésticos. E v iden tem ente , os que pod iam tom ar em préstim os no país eram sobretudo aqueles cujos estados com preendiam im portantes zonas de em presa capitalista. M ais ou menos na época de H enrique IV (1598-1610), a França deixou de depender de outros centros de capital (especial­m ente Lyon, um conduto do capital italiano) para voltar-se para o dom ínio Finan­ceiro de Paris, abandonou os financistas estrangeiros para cair nas mãos dos em - prestadores franceses, desistiu da negociação em troca do pagam ento forçado de im postos (C ornette 1988: 622-4). Em bora a insolvência tenha am eaçado a coroa repetidas vezes durante os dois séculos seguintes, essa consolidação do poder fiscal propiciou à França um a enorm e vantagem nas guerras futuras.

PAG AN D O A S D ÍV ID A S

Fossem os em préstim os pesados ou não, todos os governantes enfrentaram o problem a de ter de pagar as suas guerras sem destruir a capacidade de suas fontes para pagam entos futuros. E adotaram estratégias fiscais m uito diferentes. As receitas governam entais em geral (“im postos”, no sentido amplo do term o) se com põem de cinco categorias amplas: tributos, rendas, im postos sobre a circulação, taxas sobre os estoques e im postos sobre a renda. Os tributos com preendem os pagam entos arbitrários cobrados de indivíduos, grupos o u localidades; o s im postos individuais que são iguais para toda a população ou para as suas principais categorias cons­tituem um tipo especial de tributo. As rendas consistem de pagam entos diretos por terras, bens e serviços fornecidos contingentem ente pelo estado aos usuários parti­culares. (A lguns estados - a Rússia, a Suécia e o Im pério O tom ano, por exem plo - deram um a característica especial às rendas ao concederem a alguns oficiais m ili­tares e funcionáriosci vis as rendas das terras da coroa que eles m antinham enquanto continuassem prestando serviço ao rei.)

Tanto as rendas quanto os tributos podem se r facilm ente cobrados em espécie. As taxas sobre a circulação e sobre os estoques não o podem . As taxas sobre a circulação abrangem os im postos sobre o consum o, as taxas alfandegárias, as taxas de p ed ág io e de tran sp o rte , os im postos sob re tran sação e o u tras taxas so b re transferên cias e m ov im entações; os e sp ec ia lis tas m uitas vezes as denom inam im postos indiretos, p o rque refletem de fo rm a bastante ind ire ta a capacidade de

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pagam ento do contribuinte. As taxas sobre os estoques se dividem sobretudo em im postos sobre a terra e sobre a propriedade; os especialistas cham am -nas muitas vezes im postos diretos. Os im postos sobre a renda (na realidade, um caso especial de taxas sobre circulação) recaem sobre os rendim entos norm ais, sobretudo salários e outras receitas m onetárias.

F ig u ra 3 .3 F o rm as a lte rn a tiv a s d e trib u tação .

Os cinco tipos de im postos form am uma espécie de continuum com respeito à sua dependência da m onetização da econom ia am biente. D iferem tam bém em term os do total de fiscalização perm anente que o arrecadador deve exercer (ver figura 3.3). D e m odo geral, os im postos que exigem pouca fiscalização dependem do em prego ostensivo de força m ais freqüentem ente do que aqueles que exigem fisca lização p e rm an en te , e p o rtan to suscitam o d esen v o lv im en to de quadros especializados de pessoal para estim ativa e cobrança. O s governos que dispõem de fo rça bastante podem arrecadar tribu tos e rendas em econom ias re la tivam ente desm onetizadas, em bora m esm o aqui a capacidade do povo de pagar em m oeda depende da sua possibilidade de vender produtos e serviços a vista. M esm o as taxas alfandegárias estão na dependência da existência de fronteiras bem -definidas e bem- d e fen d id as ; o co n trab an d o - a ev asão de im postos a lfandegários in te rn o s on ex ternos - passou a ser crim e quan d o os estados eu ro p eu s ten taram d e fin ir e defender as suas fronteiras. N a verdade, na época do patrim onialism o e d a cor­retagem , os estados contavam com pedágios cobrados em estradas estratégicas,

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portos ou canais em vez dos im postos alfandegários arrecadados ao longo de um a fronteira controlada (M aravall 1 9 7 2 :1, 129-33).

O s im postos sobre circulação dependem grandem ente da m onetização, porque a m onetização aumenta essas circulações, torna mais fáceis as estim ativas dos fluxos pelos assessores e aum enta a capacidade daqueles que são obrigados a pagar em m oeda. O s impostos sobre os estoques, contra-intuitivam ente, tam bém dependem fortem ente W m o n e tização , pois, na ausência de um m ercado ativo da terra e da propriedade em questão, os assessores não dispõem dos meios de equaüzar a taxa com o valor; quando essa equalização é deficiente, o im posto é ineficaz (ver A rdant 1965). A ssim , a m onetização afeta fortem ente a eficácia com que um estado p o d e ' F inanciar o seu esforço de guerra m ediante a tribu tação , em vez d e ex to rqu ir d iretam ente da população esses meios de guerra. O imposto sobre a renda é um caso : extrem o, que se converte num a fonte duradoura e efetiva de receita governam ental naquelas econom ias ondé praticam ente todo o m undo está envolvido na econom ia m onetária e a maioria dos trabalhadores recebem salários.

N o entanto, os estados áftatnente com ercializados tiram algum as vantagens im portantes dessas relações. D ado um nível adequado de m onetização, as taxas p ró x im as d a ex trem idade su p erio r do co n tin u u m são re la tivam en te eficientes. D ep en d em da m edida e v is ib ilid ad e que um a eco n o m ia c o m e rc ia l a p lica à propriedade, aos produtos e serviços. Os participantes dos mercados j á exercem um a parcela significativa da fiscalização necessária m ediante o reg istro de preços e transferências. Além disso, os cidadãos particularm ente socializados costum am atribuir valo r moral ao pagam ento de impostos; fiscalizam a si m esm os e uns aos outros, condenando os sonegadores de impostos. Por conseguinte, os im postos sobre a circulação, sobre os estoques e especialm ente sobre a renda têm um alto retorno em relação a um determ inado volum e de esforço na arrecadação e se adaptam com m aior facilidade do que outros tributos e taxas às alterações na política do estado. U m estad o que tenta a rrecad ar a m esm a quan tidade do m esm o im p o sto num a - econom ia m enos com ercia lizada enfrenta m aio r resistência, cob ra com m enos efic iência e , portanto, institui durante o processo um aparelho m aior de controle. Se dois estados de tam anho igual mas com graus diversos de com ercialização vão à guerra e tentam extrair som as com paráveis de dinheiro de seus cidadãos por meio das m esm as espécies de im postos, o estado m enos com ercializado cria um a estrutu­ra mais avultada quando faz a guerra e paga os seus custos. O estado m ais com er­cializado, no geral, faz a m esm a coisa com um a organização adm inistrativa menos volum osa.

O abastecim ento direto dos exércitos, a im posição de im postos e a gestão do créd ito real, tudo isso funciona de m aneira m ais fácil nas econom ias com ercia-

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lizadas e detentoras de capital abundante. Todavia, onde quer que ocorreram , mul­tiplicaram os servidores civis d o estado . Um esforço de guerra mais intenso geral­m ente produziu uma expansão contínua do aparelho central do estado - o núm ero de seus servidores em tem po integral, o alcance de suas instituições, o tam anho de seu orçam ento, a extensão de sua dívida. Quando a H olanda e a Espanha, em 1609, e stabe leceram um a trégua na guerra esg o tan te pelas p re tensões h o lan d esas à independência, m uitos observadores de am bos os lados esperaram um alív io na extraordinária tributação que os havia esm agado na década anterior. O que se viu foi que o serviço da dívida, a construção de fortificações e outras atividades do es­tado absorveram facilm ente as receitas liberadas pela desm obilização militar. Os im postos não dim inuíram significativam ente em nenhum dos dois países (Israel 1982: 43-4).

Alguns historiadores referem -se a um “efeito catraca” pelo qual um orçam en­to inflado em tem po de guerra nunca retorna ao nível anterior ao conflito (Peacock & W iseman 1961; Rasler & Thom pson 1983, 1985a). O efeito catraca não ocorre universalm ente, mas aparece com bastante freqüência, sobretudo naqueles estados que não sofreram grandes perdas na guerra em questão. Ocorre por três m otivos: porque o aum ento do poder do estado em tem po de guerra oferece aos funcionários uma nova capacidade de ex tra ir recursos, de em preender novas a tiv idades e de defender-se contra a redução de custos; porque as guerras ou suscitam ou revelam novos problem as que exigem a atenção do estado; e porque a acum ulação de dívida em tem po de guerra impõe novos encargos ao estado.

As d ív idas nacionais se originam em grande parte de em préstim os para e durante as guerras. A possibilidade de tom ar em préstim os para satisfazer os gastos militares afetou fortemente a capacidade do estado de realizar cam panhas m ilitares eficientes. As solicitações da República H olandesa, no século XVII, aos financistas de A m sterdam e de outras c idades com ercia is im portan tes perm itiram que um pequeno estado levantasse rap idam ente enorm es som as para seus ex érc ito s e m arinhas e se tornasse por algum tem po a p o tênc ia dom inante da E uropa. As inovações decisivas haviam ocorrido entre 1515 e 1565, quando os E stados Gerais dos P a íse s-B a ix o s dos H ab sb u rg o s (cu ja s p ro v ín c ia s se ten trio n a is , ap ó s se revoltarem em 1568, tornar-se-iam no final a R epública Holandesa) determ inaram a cobrança de anuidades garantidas pelo estado e asseguradas por novos im postos específicos e que rendiam juros atraentes (Tracy 1985). C onseqüentem ente, “num a em ergência, a República H olandesa poderia levantar em dois dias um em préstim o de um m ilhão de florins a ju ro s de apenas 3% ” (P arker 1976: 212-13). O s títulos de crédito do estado tornaram-se um investimento favorito dos investidores holandeses, cujos agentes taxaram toda a econom ia em seu próprio benefício. N a verdade, a

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palavra “capitalista” em seu uso m oderno parece ter derivado do term o que d esig ­nava aqueles cidadãos holandeses que pagavam a taxa mais alta p e r capita de im-

-p osto , apregoando desse m odo a sua riqueza e sua capacidade de crédito.Os banqueiros holandeses eram tão abundantes, com petentes e independen­

tes que, após 1580, enquanto prosseguia a guerra dos Países-B aixos setentrionais contra os seus antigos senhores espanhóis, os banqueiros conseguiram ganhar di­nheiro em barcando para a Antuérpig a prata desviada da frota espanhola, que desse m odo pagava as despesas espanholas da guerra (Parker 1972: 154-5). Quando, em 1608, a Espanha propôs reconhecer a independência da H olanda se esta se retirasse das índias Orientais e O cidentais, o negociador holandês O ldenbarnevelt “retrucou que m uitas personagens proem inentes da R epública estavam envolvidas dem ais na C om panhia das índias O rientais para que e la fosse dissolvida” (Israel 1982: 9). To­davia, no conjunto, a profusão de com erciantes atuava em benefício do próprio es­tado holandês. Um a econom ia intensamente comercial permitiu que, no século X V II ,

o estado holandês seguisse um cam inho que os vizinhos prussianos acharam obs­truído e que os ingleses, recém-agraciados com um rei holandês, tom aram na década de 1690. Ao adotar as técnicas fiscais holandesas, os ingleses conseguiram reduzir a dependência em que se achavam anteriorm ente em relação aos banqueiros h o lan ­deses e, no final, sobrepujaram os holandeses na guerra.

No século XVII, os holandeses ocuparam um a posição ex trem a no eixo da com ercialização. O utros estados ricos de capital, com o as po tências com erciais italianas de Gênova e Veneza, adotaram técnicas sem elhantes de criação da força m ilitar m ediante crédito público e tributação sobre a circulação de m ercadorias. Nas regiões que aplicavam in tensa coerção, os recursos que poderiam ser usados para a gu erra con tinuavam em b u tid o s na a g ricu ltu ra , e nas m ãos dos m agnatas q u e detinham um a força au tônom a considerável; nesse caso, a ex tração de recursos m ilitares assumiu obviam ente formas m uito diferentes: diversas com binações de expropriação, cooptação, clientelism o, conscrição e forte tributação. Entre os dois extrem os, em áreas de coerção capitalizada, o equilíbrio m aior entre o capital e a coerção perm itiu que os governantes jogassem um contra o outro , usando força a lugada para im ped ir q u e os deten tores de exérc ito s p riv ad o s e de exérc ito s nacionais persuadissem os possuidores de capital privado; com o tem po, enquanto c re sc ia o vo lum e a b so lu to das req u is içõ es m ilita res , a co m b in a çã o deu aos governantes dos estados de coerção capitalizada a vantagem decisiva na guerra; em conseqüência , o seu tipo de estado - o estado nacional - p redom inou sobre as cidades-estado, os im périos, as federações urbanas e outras form as de estado que algum as vezes haviam prosperado na Europa.

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