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COERÇÃO, CAPITAL E ESTADOS EUROPEUS 990-1992 CHARLES TILLY Tradução Geraldo Gerson de Souza

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weberianismo

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COERÇÃO, CAPITAL E ESTADOS EUROPEUS 990-1992

CHARLES TILLY

Tradução

Geraldo Gerson de Souza

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AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

A E U RO PA IN E X IS T E N T E

M il anos atrás, a E uropa não existia. U m a d écada antes da passagem do M ilênio, os quase trinta m ilhões de pessoas que viv iam n a extrem idade oeste da m assa de terra cham ada E urásia não tinham qualquer razão perem ptória para achar que constituíam um conjunto isolado de pessoas, ligadas pela história e pelo destino comum. Tam pouco o fizeram . E verdade que a desagregação do Im pério Rom ano havia deixado um a parte significativa do que hoje conhecem os por E uropa ligada por estradas, com ércio, religião e m em ória coletiva. M as o m undo rom ano negli­genciou um a grande parcela d a região situada a leste do R eno e ao norte do mar Negro. Tam bém o Im pério n ão era , no final, exclusivam ente europeu; havia-se es­tendido em torno do M editerrâneo até a Á s ia e a África.

D o ponto de vista do com ércio e do contato cultural, a “Europa” do m ilênio fragm entou-se em três ou quatro aglom erados ligados bastante frouxam ente: um a fa ixa o rien tal corresponden te m ais ou m enos à R ú ssia européia d e hoje e que m antinha fortes vínculos com B izâncio e com as principais rotas de com ércio que atravessavam a Ásia; um M editerrâneo com partilhado por m uçulm anos, cristãos e judeus e com vinculações m uito m ais fortes com as grandes m etrópoles do O riente M édio e da Ásia; um sistem a pós-rom ano de cidades, aldeias, estradas e rios, mais denso num a curva que se estend ia da Itália central aF lan d res, m asq u e se irradiava pela A lem anha e pe la F rança; talvez um ag lom erado seten trional d istin to que com preendia a E scandináv ia e as Ilhas B ritân icas. (N a verdade, m uitos desses

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rótulos pecara por anacronism o; m as a nós, que precisam os adotar um conjunto enfadonho de convenções geográficas, não nos resta outra alternativa senão usar designações com o “A lem anha” e “Ilhas B ritânicas” sem que se precise advertir alto e bom som que não im plicam vinculação política ou cultural.)

Figura 2.1 A Europa em 406 d.C. (adaptado de Colin McEvedy, The Penguin A tlas o f M edieval H istory, Penguin Boolcs, 1961. Corpyright © 1961 Colin M cEvedy).

N o ano de 990, os dom ín ios m uçulm anos co n tro lavam u m a parce la im ­portan te do antigo espaço do Im pério Rom ano: todas as costas m erid ionais do M editerrâneo e a m aior parte da Península Ibérica, sem contar as inúm eras ilhas m editerrânicas e uns poucos pontos ao longo de sua costa setentrional. U m Im pério B izantino com ligações bastante frouxas estendia-se do leste da Itália à extrem idade oriental do m ar Negro, enquanto ao norte um estado russo um pouco m ais definido se alongava até o Báltico. U m reino dinam arquês exercia seu poder do oeste do B á ltico até as Ilhas B ritân icas, enquan to os p rincipados in stáve is da Po lôn ia, B oêm ia e H ungria controlavam o território ao sul do Báltico. A oeste desses situava- se o Im pério Saxão, que reclam ava a herança de Carlos M agno, enquanto ainda mais longe na m esm a direção Hugo C apeto governava o reino da França.

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N o entanto, nenhum desses nom es de lugar m eio fam iliares poderia disfarçar a enorm e fragm entação de soberania que então predom inava em todo o território que m ais tarde se tornaria a Europa. Os im peradores, reis, príncipes, duques, califas, sultãos e outros potentados de 990 d.C. reinaram com o conquistadores, extorqui- dores de tributos e arrendatários de impostos, e não com o chefes de estado que con­trolavam duradoura e densam ente a vida dentro de seus dom ínios. Além do mais, dentro de suas jurisd ições, antagonistas e pretensos subordinados usaram com u- m ente a força arm ada em seus próprios interesses e dispensaram pouca atenção aos interesses de seus soberanos nom inais. E os exércitos particulares proliferaram em grande parte do con tinen te . Em nenhum lu g ar da E uropa ex is tia algo que se assem elhasse a um a nação centralizada.

Figura 2.2 A Europa em 998 (adaptado de Colin McEvedy, The Penguin A tlas o f M edieval H istory, Penguin Books, 1961. Copyright © 1961 Colin McEvedy).

Dentro do anel form ado por esses estados alastrados e efêm eros, a soberania fragm entou-se mais ainda, ao m esmo tem po que centenas de principados, bispados, cidades-estado e outras autoridades exerciam um controle superposto sobre as pequenas áreas interioranas em volta de suas capitais. N a passagem do m ilênio, o papa, o im perador bizantino e o sacro im perador rom ano reclam avam a m aior parte

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da península italiana, m as, na verdade, quase toda cidade im portante e seu interior adjacente operava com o se fosse um agente político livre. (Em 1200 d.C., som ente a pen ínsu la ita liana com preendia duzentas ou trezentas cidades-estado distintas [W aley 1969: 11].) Salvo pela relativa urbanização das terras m uçulm anas, a corre­lação entre o tam anho dos estados e a densidade das cidades era negativa: onde as cidades pulularam , a soberania se esm igalhou.

A dian te co m eçará a se r e stab e lec id a um a c ro n o lo g ia g ro sseira sob re as m udanças nas cidades e estados no decurso dos últimos m il anos. Entrem entes, no entanto, façam os um com paração arbitrária a intervalos de 500 anos, apenas para term os um a idéia do quanto a coisa m udou. Por volta de 1490, o m apa e a realidade hav iam -se a lterado enorm em ente. O s cristãos arm ados estavam expulsando os soberanos m uçulm anos de Granada, seu últim o território im portante na m etade o c id en ta l do co n tin en te . Um Im pério O tom ano is lâm ico h av ia d esa lo jado os bizan tinos cristãos da região situada entre o A driático e a Pérsia. Os otom anos estavam triturando o poder veneziano no M editerrâneo oriental e avançando para os B álcãs. (A lian d o -se com a am eaçada G ranada, tam bém efetuavam as suas prim eiras incursões ao M editerrâneo ocidental.) A lém d isso , depois de m uitos

Figura 2.3 A Europa cm 1478 d.C. (adaptado de Colin McEvedy, The Penguin A tlas o f M edieval His- tory, Penguin Books, 1961. Copyright © 1961 Colin M cEvedy).

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séculos em que as guerras européias haviam perm anecido regionais, e apenas uma cruzada ocasional envolvera m ilitarm ente os estados transalpinos no M editerrâneo, os reis da França e da Espanha com eçaram a lutar pela hegem onia na Itália.

Em 1490, em torno da periferia européia situavam -se os governantes que dom inavam ex tensos territó rios: não só o Im pério O tom ano, com o tam bém a Hungria, a Polônia, a Lituânia, M oscóvia, as terras da Ordem Teutônica, a U nião Escandinava, a Inglaterra, a França, Portugal, N ápoles. Essas potências viviam em grande m edida de rendas e tribu tos e governavam por interm édio de m agnatas regionais que desfrutavam de grande autonom ia dentro de seus próprios terrenos; os m agnatas freqüentem ente opunham -se ao poder real ou m esmo o rejeitavam . Não obstante, em 1490 todos os grandes reis e duques estavam consolidando e am plian­do os seus dom ínios.

N esse momento, dentro do círculo quebrado dos estados maiores a Europa continuava sendo um a terra de soberania bastante fragm entada. É verdade que um Im pério H absburgo difuso com eçava a estender-se através do continente, enquanto Veneza dom inava um arco im portante do Adriático. No entanto, a zona que vai do norte da Itá lia até Flandres e, a leste, às fronteiras indefinidas da H ungria e da Polônia se fragm entou em centenas de áreas form alm ente independentes: princi­pados, ducados, bispados, cidades-estado e outras entidades políticas que de m odo geral som ente podiam usar a força no interior im ediato em volta de suas capitais; o sul da A lem anha sozinho ab ran g ia 69 c idades liv res , além de seus m últip los bispados, ducados e principados (Brady 1985: 10). R um ina J. R. Hale,

A pesa r da fronteira que um cartógrafo podia traçar em torno da área que a opin ião pública do m eado do século XV adm itia integrar o Sacro Im pcrio R om ano, isto é, a zona essencialm ente germ ânica entre a França e a Hungria, e a D inam arca e o norte da Itália , ele não consegue co lo rir a m ultidão de c idades, de enclaves principescos e territórios eclesiásti­cos m ilitantes que se consideram real òu potencialm ente independentes, sem que p a sse ao leitor um a im pressão de que está sofrendo de um mal da retina.

(H ale 1985: 14.)

O itenta m ilhões de pessoas na E uropa se distribuem em cerca de 200 estados, p re­tensos estados, estadozinhos e organizações sim ilares a estados.

Por volta de 1990, outros cinco séculos m ais tarde, os europeus haviam es­tendido enorm em ente a obra de consolidação. Seiscentos m ilhões de pessoas viviam então dentro do perím etro do continente. Nenhum estado muçulm ano persistia na Europa, em bora um poderoso m undo islâmico prosperasse contenciosam ente ao sul e ao sudeste e im pressionantes vestígios da cultura m uçulm ana perdurassem na Espanha, nos Bálcãs e naTurquia. U m gigantesco estado russo havia-se constituído

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Figura 2.4 O Mundo em 1490 d.C. (adaptado de Colin McEvedy, The Penguin A tlas o f M odem ,H isto- ry to 1815, Penguin Books, 1972. Copyright © 1972 Colin M cEvedy).

a leste e se estend ia até o Á rtico e o Pacífico, enquan to um a ex tensa T urquia atravessava a fronteira asiática até o sudeste. G rande parte do continente se havia transform ado em estados que ocupavam pelo menos 100 mil quilôm etros quadrados, sem contar as colônias e as possessões: as duas A lem anhas, B ulgária, E spanha, Finlândia, França, Grécia, Itália, N oruega, Polônia, R eino U nido, Rom ênia, Suécia, Tchecoslováquia, T urqu iae aURSS ainda não fraccionada. Os m icro-estados, com o Luxem burgo e A ndorra, embora m aiores do que m uitas das entidades políticas .que existiram em 1490, haviam -se transform ado em m eras curiosidades. Se se contasse pelo núm ero de governantes, a Europa inteira dividia-se em apenas 25 a 28 estados.

Levou m uito tem po para que o m apa da Europa fosse dom inado pelos estados nacionais: organizações relativamente centralizadas, diferenciadas e autônom as que reclam avam prioridade no uso da força dentro de territórios am plos, contíguos e claram ente circunscritos. Em 990, nada a respeito desse m u ndode feudos, senhores locais, invasores m ilitares, aldeias fortificadas, c idades com ercian tes, c idades- estado e m osteiros podia prever um a consolidação em estados nacionais. Em 1490, o futuro continuava à frente; apesar do uso freqüente da palavra “reino”, os im périos de um ou de outro tipo reclam avam a m aior parcela da paisagem européia e, em

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Figura 2.5 A Europa em 1990 d.C.

algumas regiões do continente, as federações continuavam viáveis. A lgum tem po depois de 1490, os europeus elim inaram essas oportunidades alternativas e partiram decididam ente para a c riação de um sistema constituído quase que to ta lm ente de estados nacionais com um a autonom ia relativa.

Por ou tro lado, os estados diminuíram em q u an tid ad ee aum entaram em área. P a ra traç a r o m apa das m u d an ç as , tem os de a p lic a r o term o “ e s ta d o ” com generosidade, incluindo qualquer organização que com andava m eios substanciais de co erç ão e rec lam av a u m a p rio rid ad e p e rm a n e n te so b re to d o s os o u tro s aplicadores de coerção dentro pelo menos de um território claram ente circunscrito. Em 990, alguns estados m uçulm anos relativam ente extensos dom inavam grande parte do oeste do M editerrâneo, inclusive o sul da E spanha e a costa norte da África. Entre outros estados de bom tam anho, podemos inclu ir o reino da França, o império saxão, o reino da Dinam arca, a Rússia de Kiev, a Polônia, a H ungria, a B oêm ia e o Im pério B izantino. No conjunto, os governantes dessas entidades políticas cobra­vam tributos dos territórios que se achavam nom inalm ente sob o seu dom ínio. No

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entanto , fora de suas próprias regiões, adm inistravam com dificuldade os seus pre­tensos dom ínios e tinham a sua autoridade continuam ente contestada por potentados rivais, inclusive por seus próprios agentes e vassalos putativos.

C onsiderem os a H ungria, um estado que se desenvolveu a partir da área con­qu istada pelos m agiares, um dos m uitos povos nôm ades arm ados que, vindos da estepe eurasiática, invadiram a Europa. N o decurso do século X, a m aioria dos m a­giares m igraram do Volga e dom inaram os eslavos, que eram em m enor núm ero, lavradores e habitantes das florestas da B acia dos C árpatos, região que hoje deno­m inam os H ungria (Pam lenyi 1975: 21-5). Quando se m udaram para o oeste dos C árpatos, a escassez da pastagem natural fez com que alguns nôm ades predadores se retirassem , ou tivessem reduzida a sua população, ou se extinguissem (L indner 1981). D epois de um século de pilhagem , os húngaros, agora cristianizados, volta­ram -se cada vez mais para a agricultura num território quase desprovido de cidades.

Sua base agrícola não impediu que a nobreza húngara fizesse guerra com seus v izinhos, lutasse pela sucessão real ou participasse do jogo europeu de casam entos e alianças. Além do mais, o seu controle da força arm ada proporcionou-lhes o poder de jo g a r escravos e hom ens livres ind istin tam en te num a serv idão com um . As c idades cresceram no m om ento em que a agricultura feudal prosperou, a s m inas passaram a exportar m etais para o restante da Europa e as rotas de com ércio da região se ligaram às da Europa Central e Ocidental. O capital alem ão acabou por d o m in ar o com ércio e a indústria húngaros. No entanto , as cidades da H ungria continuaram estritam ente subordinadas a seus senhores nobres até que, no século XV, a coroa com eçou a controlá-los.

N o final do século XV, o rei Janos Hunyadi e seu filho, o rei M ateus C orvino, c o n s tru íra m um a m áq u in a de g u e rra re la tiv am en te c e n tra liz a d a e e f ic ie n te , com batendo tanto os turcos belicosos a sudeste quanto os fam intos H absburgos a oeste. Todavia, com a m orte de M ateus, a nobreza contra-atacou e privou o seu sucessor Ladislau dos m eios de sustentar o seu próprio exército. Em 1514, o esforço p a ra organizar um a nova cruzada contra os turcos provocou um a im ensa revolta cam ponesa, cu ja repressão reduziu defin itivam ente o cam pesinato à se rv idão e aboliu os seus direitos de m udar de senhor. Na luta entre os m agnatas que se seguiu aos aco rdos de paz que puseram fim à guerra cam ponesa, o advogado Is tv an Verbõczi acolheu a opinião dos nobres em relação aos costum es húngaros, inclusive as leis de com pensação contra os cam poneses e os provim entos pelos quais

os nobres gozavam de im unidade contra a prisão sem um prévio ju lgam ento legal, estavam su jeitos som ente a um rei legitim am ente coroado, não pagavam qualquer espécie de tributos e só podiam ser recru tados para prestar serv iço m ilitar em caso de defesa do reino. F inalm en­

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te, era garantido o d ireito de rebelião con tra qualquer rei que infringisse de algum m odo os d ire itos da nobreza.

(M cNeill 1975 [1964]: 17.)

O tratado de Verbõczi tornou-se o texto autorizado da lei húngara e “a bíblia da nobreza” (Pam lenyi 1975: 117). Por volta de 1526, a H ungria não tinha um, mas dois reis eleitos e os dois lutavam entre si. Não adm ira m uito que, no m eio século seguinte, os turcos tenham conseguido tomar a metade do território húngaro! Nessa época, evidentem ente, os grandes estados não eram necessariam ente os estados fortes.

O S E S T A D O S E A C O E R Ç Ã O

Por volta de 1490, os m uçulm anos estavam-se retirando de Granada, o seu ú ltim o posto avançado na Ibéria, m as ao m esm o tem po construíam um extenso im pério em torno do M ed ite rrâneo oriental e faziam incursões até os B álcãs. Com eçaram a surgir nos flancos da Europa estados dotados de grandes exércitos e de algum controle judicial e fiscal sobre territórios de bom tam anho, e as cidades- estado principiaram a armar-se para a guerra terrestre com o nunca havia acontecido antes. O m apa europeu de 1490 atribui grandes áreas à Inglaterra, à Suécia, à Polônia, à R ússia e ao Im pério O tom ano, mas tam bém assinala dezenas de ducados, principados, arcebispados, cidades-estado e outros estados-m iniatura.

A q u an tidade de estados d istin g u ív e is depende de decisões d iscu tív e is relacionadas com a própria natureza dos estados da época. São elas: se os 13 cantões suíços (como em 1513) e as 84 cidades livres do Im pério Otom ano (com o em 1521) devem ser contados com o en tidades separadas; se as possessões tecn icam ente autônom as de Aragão e Castela, com o a C atalunha e G ranada, merecem reconhe­cim ento; se a colcha de retalhos dos Países-Baixos constituíam um único estado (ou apenas parte de um estado) sob a hegem onia dos Habsburgos; se os estados tributários sob o controle otom ano pertenciam individualm ente ao sistem a europeu de estado da época. Nenhum conjunto plausível de definições fornece menos de 80 unidades distintas, ou mais de 500. Podem os tomar, arbitrariam ente, 200 com o um núm ero m édio. As cerca de 200 entidades políticas européias da época que detinham um a autonom ia form al controlavam um a média de 24,5 mil quilôm etros quadrados, mais ou menos o tam anho dos atuais El Salvador, Lessoto e Catar.

A população européia de aproxim adam ente 62 m ilhões de habitantes em 1490 distribuía-se num a m édia de 310 mil pessoas por estado. Evidentem ente, as m édias

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obscurecem as enorm es variações: o grande núm ero de estados menores da Europa e suas populações caberiam facilm ente no vasto território da Rússia. Não obstante, a E uropa p r in c ip iav a a co n so lid a r-se em estad o s te rrito ria lm en te d is tin to s e organizados em torno de institu ições m ilitares perm anentes, e a superio ridade m ilitar com eçava a propiciar aos estados m elhores chances de sobrevivência.

Para falar a verdade, apenas começava. Em 1490, os exércitos eram consti­tuídos, em sua grande maioria, de m ercenários contratados para um a cam panha, de clientes dos grandes senhores e de m ilícias de cidadãos. N a França e na Borgonha, os exércitos perm anentes haviam substituído as m ilícias urbanas, mas em outros reinos não muito. As rendas de tributos e as taxas pessoais ainda tinham grande peso nas receitas dos reis. Dentro dos estados maiores, as com unidades, as guildas, as igrejas e os m agnatas regionais detinham grande parcela de imunidade e autonom ia. A administração se concentrava sobretudo nas questões militares, judiciais e fiscais. N a zona central da Europa continuavam a proliferar as jurisdições diminutas. Com o as cidades-estado, ligas de cidades, impérios d inásticos, principados vinculados apenas nom inalm ente a m onarquias ou impérios m aiores, e entidades eclesiásticas com o a Ordem Teutônica, todos coexistissem (em bora litigiosam ente) no continen­te, ainda não era evidente que os estados nacionais, da form a com o os conhecem os hoje, iriam tornar-se as organizações predom inantes da Europa. Não antes do século XIX, com as conquistas de Napoleão e as subseqüentes unificações da A lem anha e da Itália, quase toda a Europa se teria consolidado em estados separados entre si, dotados de forças armadas perm anentes e profissionais e que exerciam um controle considerável sobre as pessoas em áreas de 100 mil quilôm etros quadrados ou mais.

Nos quatro séculos seguintes, m uitos tratados de paz e algum as federações deliberadas reduziram drasticam ente o número de estados europeus. No século XIX, o número tendeu a estabilizar-se. No começo do ano de 1848, por exem plo, a Europa abrigava de 20 a 100 estados, dependendo de com o se contam os 35 m em bros da C onfederação G erm ânica, os 17 estados papais, os 22 segm entos tecnicam ente au tônom os d a S u íça e um as poucas unidades d ep en d en te s m as fo rm alm en te distintas, com o Luxem burgo e Noruega: no A lm anaque de Gotha, o catálogo de nobres e estadistas, a lista alfabética da época com eçava com os dim inutos A nhalt- Bernburg, A nhalt-D essau eAnhalt-Kothan antes de incluir os mais extensos Á ustria, Baden e Bavária.

As principais consolidações aconteceram quando da form ação do Im pério Ger­m ânico e do reino da Itália. M ais ou menos no início de 1890, a lista de estados ha­via diminuído para cerca de 30, nove dos quais eram m em bros do Im pério G erm â­nico. No final de 1918, a contagem estava em torno de 25 estados separados. Em ­bora as fronteiras tivessem m udado significativam ente com os tratados que puseram

AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

fim à Prim eira e à Segunda G uerra M undial, o núm ero e o tam anho dos estados europeus não mudou m uito no curso do século XX. Se, de acordo com Sm all & Sin- ger, contarm os apenas aqueles estados grandes bastante para estabelecer um a dife­rença m ilitar independente, detectam os realm ente um a leve inversão d a tendência a longo prazo: 21 contendores no final das G uerras Napoleônicas, 26 em 1848, 29 (in­cluindo agora M alta, C hipre e a Islândia) em 1980 (Small & Singer 1982: 47-50).

Em contraste com os 24 500 quilôm etros quadrados de 1490, os 30 estados de 1890 contro lavam u m a m éd ia de 160 m il qu ilôm etros qu ad rad o s, o q u e os igualava às atuais N icarágua, Síria e Tunísia. Em vez dos 310 mil habitantes de 1490, o estado médio de 1890 contava cerca de 7,7 milhões. Se o s im aginarm os num a c ircu n ferên cia , os e s tad o s o rig in am -se num ra io m éd io d e 90 a té 230 q u ilôm etros. N um raio de 90 qu ilôm etros, o con tro le d ireto d o in te rio r pelos governan tes de um a ún ica c idade m uitas vezes e ra viável; a 230 qu ilôm etros, n inguém governava sem um aparelho especializado de v ig ilância e supervisão. Além disso, em bora os m icro-estados com o A ndorra (453 km2), L iechtenstein (157), San M arino (62) e m esmo M ônaco (1,8) tenham sobrevivido à grande consolidação, as desigualdades de tam anho diminuíram radicalm ente com o tem po.

Falando de m odo geral, a ú ltim a parcela da E uropa a consolidar-se em estados nacionais extensos foi a faixa de cidades-estado que ia da Itália do N orte, em torno dos A lpes, e abaixo do R eno a té os P a íses-B a ix o s . As criaçõ es sucessiv as da A lem an h a e da Itá lia c o lo ca ram sob c o n tro le n ac io n a l e ssas p e q u en a s m u ­nicipalidades prósperas m as briguentas, e suas regiões interioranas. E com o se os europeus descobrissem que, sob as condições predom inantes a partir de 1790 ou mais, um estado viável necessitava de um raio de pelo menos 160 quilôm etros, e não poderia dom inar com facilidade além d e um ra io de 400 quilôm etros.

A S C ID A D E S E O C A P IT A L

Para perceber com m ais clareza o padrão geográfico, deveríam os estabelecer um a distinção entre sistem as de cidades e sistem as de estados. Os sistem as de ci­dades da E uropa representavam as relações indefinidas entre as concentrações de capital; os seus sistemas de estados, as relações variáveis entre as concentrações de coerção. As cidades européias formavam um a hierarquia frouxa de precedência com er­cial e industrial dentro da qual, em qualquer instante, uns poucos aglom erados de cidades (agrupadas com um ente em torno de um centro hegem ônico único) dom ina­vam claram ente o resto. (N a verdade, a hierarquia européia constituía apenas uma parte de um a rede urbana m ais vasta que ia até a Á sia no com eço do período e que,

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com o passar do tem po, se estendeu à Á frica e à América.) N a sim plificação valiosa de Fem and Braudel, Veneza, Antuérpia, Gênova, Am sterdam , Londres e N ew York foram as capitais sucessivas do sistem a europeu de cidades do século X IV ao X X .

N o que diz respeito à predom inância, a questão crucial não foi tanto o tam anho quan to a centralidade na rede européia de comércio, produção e acum ulação de capital. No entanto, as concentrações de capital e de população urbana se equivaliam tão estreitam ente que o aglom erado de cidades predom inante sem pre era tam bém um dos m aiores. U sando um critério c lasse-tam anho e algum traçado um tanto arbitrário de fronteiras, J. C. Russell delineia regiões m edievais centradas em torno de Florença, Palerm o, Veneza, M ilão, Augsburgo, D ijon, C olônia, Praga, M agde- burgo, Liibeck, Ghent, Londres, Dublin, Paris, Toulouse, M ontpellier, B arcelona, C órdoba, Toledo e Lisboa. As cidades eram mais densas e as regiões correspon­dentem ente m enores na faixa que vai de Florença a G hent, especialm ente em sua extrem idade italiana; m edidas pelo total da população das dez m aiores cidades, as reg iões de V eneza (357 m il), M ilão (337 mil) e F lo ren ça (296 m il) lideram o conjunto (Russell 1972:235). Em 1490, um cálculo mais preciso do “potencial ur­bano” , feito por Jan de Vries, escolhe as regiões centradas m ais ou menos em torno de A ntuérpia, M ilão e Nápoles com o os picos do sistem a urbano europeu, em bora em 1790 predom inasse claram ente a zona circunvizinha de Londres (incluindo as áreas que atravessavam o Canal da M ancha) (de Vries 1984: 160-4).

O sistem a de cidades e o sistem a de estados se espalharam de form a m uito desigual, e de m aneiras contrastantes, através do m apa europeu. No ano de 990, as c idades eram pequenas e se estendiam por quase toda a região situada ao norte dos A lpes. No entanto, eram m ais densas e suas relações m ais intensas num a fa ixa que se estend ia ao norte, de B olonha e P isa através dos A lpes até G hent, B ruges e L ondres. As zonas secundárias de concentração urbana apareciam ao sul da Espanha e ao sul da Itália. As terras m editerrânicas abrigavam um núm ero muito m aior de cidades do que aquelas que costeavam o Atlântico ou o Báltico. As duas m aiores cidades da Europa eram , na época, Constantinopla e Córdoba, não só os principais centros de com ércio m as tam bém sedes respectivam ente do Im pério B izantino e do C alifado Om íada; cada um a contava com um a população que se avizinhava do m eio m ilhão (Chandler e Fox 1974: 11). N o curso do m ilênio seguinte, a faixa central con tinuou sendo a zona européia de m aio r in tensidade u rbana, mas essa faixa am pliou-se, e seu centro de gravidade deslocou-se para o norte, rum o aos grandes portos do Atlântico. D e 1300 em diante, a faixa dè cidades ligadas ao norte dos Alpes cresceu de form a desproporcional.

A p resença ou au sência de ag lom erações u rbanas causou um a p ro fu n d a d iferença na vida social regional e suscitou significativam ente as possibilidades de

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form ação do estado. Sob as condições de produção e transporte predom inantes na Europa antes do século XIX, as cidades maiores estim ularam a agricultura comercial em áreas tributárias que se estenderam por muitos quilôm etros dentro da zona rural. Este tipo de agricultura, por sua vez, favoreceu de m odo geral a prosperidade dos com erciantes, dos grandes cultivadores e dos pequenos proprietários rurais e ao mesmo tem po reduziu a capacidade dos grandes senhores de terra de dom inar as pessoas em suas adjacências rurais. (Todavia, ocorreu um a exceção significativa naqueles locais em que a classe dirigente da cidade tam bém detinha extensões de terra no interior, fato freqüente nas cidades-estado italianas; aí o cam pesinato sofreu o peso total do dom ínio senhorial.)

Além do m ais, as cidades influenciaram profundam ente a dem ografia das reg iões c irc u n v iz in h as . A té recen tem en te , a m a io ria d as c id ad es eu ro p éias experim entaram um declínio natural: suas taxas de m ortalidade superaram as de natalidade. C onseqüentem ente, m esm o as cidades em estagnação atraíram volumes consideráveis de m igrantes das cidades e aldeias próxim as, enquanto as cidades em crescim ento geravam grandes correntes m igratórias. E ssas correntes eram m uito maiores do que o déficit urbano de nascim entos m ais a taxa urbana de crescim ento, um a vez que todos os sistem as de m igração envolviam um a grande parcela de m ovim entação para a frente e para trás; m ascates, com erciantes, em pregados e artesãos flutuavam com freqüência entre a cidade e a zona rural de um ano para o outro ou de um a estação para a outra. O fluxo líquido do cam po para a cidade incluía usualm ente mais m ulheres do que homens, resultando que as proporções de sexo (m achos por 100 m ulheres) eram caracteristicam ente altas no cam po e baixas na cidade. Assim, a cidade foi m arcada pelas próprias oportunidades de casam ento de aldeãos em suas circunvizinhanças.

O im pacto com ercia l e d em ográfico das c id ad es causou um a d iferen ça s ig n ifica tiv a na fo rm ação do estado . D eixem os de lado m om entaneam en te a im portância que as classes dirigentes urbanas e os capitalistas baseados na cidade detiveram enquanto partidários ou opositores dos esforços de expansão do poder do estado ; m ais tarde voltarem os a dar-lhe m aior atenção. A ex istência de um co m érc io in ten so en tre a c id ad e e o cam po o fe receu um a o p o rtu n id ad e aos governantes de arrecadar receitas através de taxas alfandegárias e de im postos sobre co n su m o , e n q u an to a eco n o m ia re la tiv am en te c o m e rc ia liz ad a fa c ilito u aos monarcas o controle dos grandes proprietários de terra à medida que estendiam o poder real às cidades e aldeias.

A lém disso , as relações en tre a cidade e o cam po afetaram o suprim ento potencial de soldados: seriam eles os servos e m eeiros dos m agnatas rurais, os m ercenários de regiões de alta m obilidade e baixa nupcialidade, as milícias urbanas,

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ou os trabalhadores sem terra expulsos por grupos de pressão? As oportunidades de tributação, o poder dos proprietários rurais e o suprim ento de tropas afetaram profundam ente o m odo de form ação dos estados. A través do abastecim ento de alim entos, da m igração, do com ércio, das com unicações e das oportunidades de em prego, as grandes aglom erações urbanas im prim iram a sua m arca na vida social de regiões circunvizinhas e influenciaram assim as estratégias dos dirigentes que tentavam estender o poder do estado a essas regiões. Períodos de cresc im ento urbano apenas acentuaram esses efeitos.

Com algum risco, e negligenciando em grande escala a variação regional, podem os dividir o crescim ento urbano da Europa a partir de 1000 em cinco fases: um período de considerável expansão até mais ou m enos 1350; um a épo^ca de depressão seguida de flutuação não-tendenciosa entre 1350 e 1500; um a aceleração no século X V I; um a redução no século X V II e, finalm ente, um a enorm e aceleração depois de 1750 (Hohenberg & Lees 1985: 7-9). A devastadora dissem inação da peste no século X IV marca a transição da primeira para a segunda fase; a navegação ibérica para a América, o início da terceira fase; o crescimento da indústria algodoeira depois de 1600, o com eço da quarta; a im plosão do capital, das m anufaturas, dos serviços e do com ércio nas cidades, a m udança da quarta para a quinta fase.

Do século X V I ao X V III, m uitas regiões européias, entre elas as zonas interio- ranas de M ilão, Lyon e M anchester, experimentaram a proto-industrialização: a mul­tiplicação de pequenas unidades m anufatureiras, inclusive dom ésticas, e de pequenos com erciantes que as ligavam aos m ercados distantes. D urante essa grande expansão industrial, o capital procurou o trabalho e não o inverso; o trabalho rural proletarizou- se, no sentido de que mudou decisivam ente para o serviço assalariado usando os meios de produção de propriedade dos capitalistas, mas perm aneceu nas unidades dom ésticas e nas pequenas oficinas. Nesse m omento, o capital acum ulou-se gran­dem ente, mas não se concentrou na m esm a proporção. N o decurso dos séculos X IX

e X X aconteceu um m ovim ento inverso: o capital im plodiu, a m anufatura e os tra­balhadores m udaram -se para as cidades e extensas áreas do cam po se desindustria- lizaram. Os m anufatureiros procuraram localizar-se cada vez m ais naqueles lugares em que era possível m inim izar os custos de m atéria-prim a e de m ercado para os seus produtos, adm itindo corretam ente que os trabalhadores viriam até eles às custas de algum outro. A últim a lufada de concentração acelerou enorm em ente a urbani­zação européia e produziu o continente enxam eado de cidades que conhecem os hoje.

As cidades cresceram juntam ente com a população européia, e o núm ero de lugares u rbanos, portan to , m u ltip licou-se m esm o quan d o a porção u rb an a da população se m anteve constante; com base nos testem unhos atuais, apenas não sabem os se a população européia se tornou realmente mais urbana antes de 1350.

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De qualquer modo, a p roporção que vivia nas cidades não aum entou significati­vamente antes do século XIX. Segundo as m elhores estim ativas de que dispom os, a porção de lugares com 10 mil habitantes ou m ais girava em torno de 5% em 990, 6% em 1490, 10% em 1790 e 30% em 1890, em com paração com os quase 60% de hoje (B airoch 1985: 182, 282; de Vries 1984: 29-48).

A escala da urbanização refletiu a história do capital europeu. D urante sécu­los, a m aior parte do capital líquido da E uropa esteve nas m ãos de pequenos co ­m erciantes que trabalhavam dispersos por todo o continente, ou com erciando bens produzidos em outro local ou orientando a m anufatura de produtores form alm ente independentes em aldeias, distritos e pequenas cidades. Os grandes capitalistas, com o os de Gênova, A ugsburgo e Antuérpia, desem penharam um papel im portante na ligação de toda a Europa entre si e com o resto do m undo, mas detinham um a pequena parcela de todo o capital em m ovim ento.

Antes de 1490, a d ispersão dos testem unhos torna difícil oferecer alguns in­formes quantitativos mais detalhados. No entanto, as estim ativas de Paul Bairoch e a recente com pilação de evidências relativas à urbanização européia a partir de 1500, feita por Jan de Vries, possibilitaram alguns cálculos sim ples m as surpreen­dentes. A Tabela 2.1 m ostra a taxa comum prolongada de crescim ento urbano antes de 1490, a aceleração no século X V I e a excepcional urbanização depois de 1790. Por volta de 1980, a barreira dos 10 mil habitantes havia perdido o seu sentido (daí os núm eros especulativos da tabela), e um total de 390 c idades tinham 100 mil habitantes ou mais. Com efeito, as estatísticas de 1980 colocam 34,6% d a população em cidades de no mínim o 100 mil habitantes. A grande aceleração do crescim ento urbano ocorreu depois de 1790, com a concentração de capital no século X IX , o aum ento escalar dos em pregos e a criação do transporte de m assa. N o entanto, na maior parte do período posterior a 1490, as zonas interioranas exclusivas de que dispunham a m aioria das cidades estavam dim inuindo de tam anho.

Tabela 2.1 U rbanização de 990 a 1980 na E uropa a oeste da Rússia.

990 1490 1590 1690 1790 1890 1980

cidades de 10 mil habitantes ou mais III 154 220 224 364 1709 5000?população nas cidades de 10 mil ou mais (milhões)

2,6 3,4 5,9 7,5 12,2 66,9 250?

taxa anual (%) de crescimento a partir da data anterior

— 0,1 0,6 0,2 0,5 1,7 1,5?

% de população em cidades de mais de 10 mil habitantes

4,9 5,6 7,6 9,2 10,0 29,0 55?

km2 por cidade (m il) 44,3 31,9 22,0 22,0 13,5 2,8 1,0?

Fonte: De Vries 1984: 29-48; Bairoch 1985: 182.

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A IN T E R A Ç Ã O E N T R E C ID A D E E E STA D O

As tendências divergentes das cidades e estados m udaram algum as relações c rítica s . Em 990 d .C ., com m ilhares de un idades tip o estado , é possível que houvesse na E uropa um a única cidade de 10 mil habitantes para cada vinte ou trinta “estados” . Em 1490, essa cidade existia para cada um ou dois estados. Em 1890, o e stad o m édio m ítico tin h a cerca de 60 cidades de 10 m il habitantes ou m ais. Som ente essa m udança já provocou alterações fundam entais nas relações entre governantes e governados: alterou as técnicas de con tro le, alterou as estratégias fiscais, alterou as dem andas de serviços e alterou a política.

As cidades m oldaram os destinos dos estados, sobretudo por servirem com o pontos de receb im ento e d istribuição de capital. Por m eio do capital, as classes d irigentes urbanas estenderam a sua influência a todo o interior urbano e através de redes extensas de com ércio. M as as cidades variaram no que se refere à quantidade de capital que suas o ligarquias controlavam ; A m sterdam , no século XVII, fez a ou trora g loriosa B ruges parecer insignificante. A lém disso , o fato de as cidades serem os locais de acum ulação de capital propicia às suas autoridades políticas o acesso ao capital, ao crédito e ao controle sobre o in terior que, se for dom inado e cooptado, pode servir tam bém aos objetivos dos m onarcas. Adam Sm ith expôs o fato central d e form a convincente:

Uma região que abunda em com erciantes e m anufatureiros ... necessariam ente abunda tam bém em um con jun to de pessoas que sem pre dispõem do poder de adiantar, se esco lhe­rem fazê-lo , um a som a m uito grande de d inheiro ao governo.

(Sm ith 1910 [1778]: II, 392.)

Se escolherem fazê-lo : por trás desse qualificativo se escondem séculos de disputa entre os capitalistas e os reis. Não obstante. Adam Sm ith estava totalm ente correto em enfatizar as vantagens financeiras dos estados que operavam em regiões de capital abundante.

Os estados, por sua vez, atuam sobretudo com o receptáculos e aplicadores dos m eios de coerção, especialm ente a força arm ada. H oje em dia, o desenvol­v im ento de estados que investem no bem -estar público , de estados regulam en- tadores, de estados que em pregam grande parte de seu esforço em in terv ir nas questões econôm icas, suavizou e obscureceu a centralidade da coerção. Contudo, du ran te esse m ilên io de h istó ria eu ropéia que estam os exam inando, os gastos m ilitares usualm ente consum iram a m aior parte dos orçam entos do estado, e as forças arm adas constituíram caracteristicam ente o m aior setor do governo, tom ado isoladam ente.

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A s d iferen ças en tre a g eo grafia da fo rm ação do estado eu ropeu e a da construção de cidades colocaram um problem a pungente para qualquer pretenso governante. Abeberando-nos em Paul Hohenberg e Lynn Lees, podem os estabele­cer um a distinção grosseira entre cidades: praças centrais e pontos de redes urba­nas; todas as cidades pertencem a um ou ao outro sistema, mas a im portância rela­tiva dos dois conjuntos de relações varia drasticam ente de um a cidade para outra (Hohenberg & Lees 1985: capítulo 2). O sistem a hierárquico de praça central é o interm ediário do fluxo de produtos com uns com o alim ento e vestuário entre as povoações de um a região contígua; as m atérias-primas e os produtos brutos tendem a deslocar a hierarquia das praças centrais para povoações maiores que servem a m ercados mais extensos, enquanto que os produtos acabados e especializados - sobretudo os produzidos fora do sistema regional - tendem a m udar-se dos lugares m aiores p a ra os m enores. D urante grande parte da história que estam os exam i­nando, alguns produtores prim ários, com erciantes locais, vendedores ambulantes e feiras públicas periódicas vendem um a parte im portante dos p rodutos a seus consum idores.

Por outro lado, as redes urbanas ligam os centros de alto nível de sistemas regionais separados, às vezes afastados entre si por m ilhares de quilôm etros. Em­bora m uito antes de 1500 a m adeira de lei, o trigo, o sal e o vinho tenham viajado grandes distâncias na Europa, as redes urbanas por muito tempo se especializaram na troca de produtos leves e caros com o especiarias e sedas. Os com erciantes e financistas, por disporem de grande quantidade de capital, se tornaram figuras im portantes nas redes urbanas da Europa. D urante séculos, aquilo que Philip Curtin denom ina diásporas com erciais teve um papel decisivo; alguns grupos m ercantis geograficam ente dispersos, com o os judeus, os arm ênios, ou os genoveses, que tinham a m esm a língua, religião, parentesco e (às vezes) origem geográfica reduzi­ram as incertezas do com ércio internacional m ediante a concessão entre si de cré­dito, inform ação de m ercado e tratam ento preferencial (Curtin 1984). M esm o na­queles lugares onde as diásporas comerciais não criaram os vínculos decisivos entre os centros distantes, com erciantes dispersos costum avam m anter relações com seus colegas por meio de viagens, correspondência pessoal, nomeação de representantes locais e contato com conhecidos mútuos.

Pode ocorrer que um governante aplicador de coerção, com um a certa som a de esforços, capture todo o território de um a ou mais hierarquias de praça central, e até rem aneje uma hierarquia de form a a que corresponda mais ou m enos aos limites de seu estado; por volta do sécu lo XVI, foi estabelecida um a co rrespondência aproxim ada entre a Inglaterra e o sistema de praça central de Londres, entre a França e o sistem a de praça central de Paris. No entanto, é raro e difícil um estado encaixar-

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se nos contornos de uma rede urbana de longa distância. As federações, a exem plo das Ligas H anseáticas, e os im périos marítimos, com o Veneza e Portugal, quase o conseguiram durante algum tem po, mas sem pre foram coagidos a com petir ou negociar com governantes territoriais que reivindicavam um ou outro de seus postos de com ércio; a consolidação de um império otom ano por cim a das rotas com erciais mais lucrativas de Veneza condenaram o im pério m ercantil espetacu lar que os venezianos haviam criado nos séculos XII e XIII. P o r outro lado, os estados territoriais cujos negociantes se dedicaram ao com ércio de longa distância sem pre tiveram de enfrentar poderosos atores econôm icos de cujas relações externas eles nunca co n seg u iram um co n tro le total e que , to d a vez que as e x ig ê n c ia s do governante se tornavam insuportáveis, encontraram relativa facilidade de fugir com seu capital para outro lugar de comércio. A duradoura discrepância entre a geogra­fia da coerção e a do capital garantiu que as relações sociais organizadas em torno delas evoluíssem de m aneira distinta.

N o con jun to da Europa, as alterações no con tro le estatal do cap ital e da coerção, en tre 990 d.C. e o período atual, segu iram duas curvas parale las. A princípio, durante a época do patrimonialism o, os m onarcas europeus geralm ente extraíram o capital de que necessitavam, sob a form a de tributos ou rendas, das terras e população que se achavam sob o seu controle im ediato - muitas vezes com limites con tra tua is ríg idos sobre as quan tidades que pod iam extorquir. N o tem po da corretagem (sobretudo entre 1400 e 1700 ou m ais), passaram a depender fortem ente de capitalistas form alm ente independentes para os em préstim os, a adm inistração das em presas produtoras de rendas e a cobrança de impostos. Todavia, por volta do século XVIII, teve início o período da nacionalização ; m uitos soberanos incor­poraram o aparelho fiscal diretam ente à estrutura do estado e reduziram de form a drástica a participação de contratados independentes. O últim o século m ais ou menos, a era da especialização , introduziu um a separação mais aguda entre a orga­nização m ilitar e a fiscal e um crescente envolvim ento dos estados na fiscalização do capital fixado.

Do lado da coerção, ocorreu um a evolução sem elhante. Durante o período do patrim onialism o, os m onarcas recrutaram a força arm ada entre aqueles clientes, vassalos e m ilícias que lhes deviam serviço pessoal - mas no caso tam bém com limites contratuais significativos. N a época da corretagem (de novo sobretudo entre 1400 e 1700) recorreram em crescente m edida às forças m ercenárias que lhes eram fornecidas pelos contratantes, os quais m antinham considerável liberdade de ação. Em seguida, durante a nacionalização, os soberanos incorporaram o exército e a m arinha d ire tam en te à e stru tu ra adm in istra tiva do estado , reco rren d o apenas eventualm ente a m ercenários estrangeiros e alugando ou recrutando a m aior parte

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de suas tropas entre os seus próprios cidadãos. A partir da m etade do século XIX, num a fase de e sp e c ia liza çã o , os estad o s eu ropeus co n so lid a ram o sistem a de soldados cidadãos financiados por vastas burocracias civis, e separaram as forças de polícia especializadas no uso da coerção fora da guerra.

Por volta do século XIX, a m aioria dos estados europeus haviam internalizado tanto a força arm ada quanto os m ecanism os fiscais; reduziram , assim , as funções governam entais dos arrem atantes de im postos, dos contratantes m ilitares e de outros agentes independentes. Seus governantes, então, continuaram a negociar com os capitalistas e outras c lasses o crédito, as rendas, a m ão-de-obra e os m eios de guerra. A negociação, por seu turno, criou novas exigências ao estado: pensões, pagam entos aos pobres, educação pública, planejam ento urbano e m uito mais. N o processo, os estados, em vez de am pliar as m áquinas de guerra, passaram a c ria r organizações de m últiplas finalidades. Seus esforços para controlar a coerção e o capital p ro s­seguiram , mas jun tam ente com um a am pla variedade de atividades de regulam en­tação, com pensação, distribuição e proteção.

A ntes do sécu lo XIX, os estados d iferiam acen tu ad am en te no to can te à sincronização e in tensidade relativas dos dois principais processos de m udança. D urante um século ou m ais, o estado neerlandês alugou grandes exércitos e frotas de navios, adotou p recocem ente a adm inistração estatal das finanças, m as continuou devendo aos capitalistas d e Am sterdam e de ou tras cidades m ercantis. Na verdade, em alguns m omentos o estado neerlandês se decom pôs em suas principais m unici­palidades. Por outro lado, em Castela, as forças terrestres - m uitas vezes alugadas fora da Espanha - predom inaram ; lá a m onarquia conquistou o crédito dos m erca­dores ao convertê-los em arrendatários de im postos e passou a depender das rendas coloniais para reem bolsá-los. Portugal, Polônia, as cidades-estado italianas e os e s­tados do Sacro Im pério Rom ano adotaram outras com binações das duas curvas e, desse modo, criaram estru turas de estado claram ente diferentes

A S F IS IO L O G IA S D O S E ST A D O S

Por que os estados europeus seguiram cam inhos tão diferentes, em bora quase todos eles tenham cam inhado rumo a um a m aior concentração de capital e coerção? D uas razões ocultas explicam a m aior parte dessa com plexidade. A prim eira é a com petição perm anente e agressiva por com ércio e território en tre os vários estados de tam anho igual, os quais fizeram da g u erra um a força p ropu lso ra da h istó ria européia. A segunda reside naquilo que G abriel Ardant denom inou a “fisiologia” dos estados: os processos pelos quais adquirem e distribuem os m eios de realizar as

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suas p rincipais a tiv idades. No que se refere à m aio r parte da h istó ria que nos interessa aqui, os m eios importantes eram sobretudo de coerção, os recursos para a guerra . O s m eios de coerção tinham um a função n a guerra (a tacando os rivais ex ternos), na form ação do estado (atacando os inim igos internos) e na proteção (atacando os inim igos dos clientes do estado). Os m eios coercivos tam bém faziam p a rte do ex erc íc io de ex tração (tiran d o da popu lação subm etida os m eios de atividade do estado) e de justiça (resolvendo as disputas entre os m em bros dessa população). Som ente quando surgiram a produção e a distribuição é que os m eios de coerção deixaram de ser os principais suportes da atividade do estado - e m esm o nesse m om ento o grau de coerção variou de estado para estado. Nas regiões em que os estados instituíram seus próprios monopólios sobre a produção de sal, armas e artigos de fum o, por exem plo, eles o fizeram caracteristicam ente com a fo rça das arm as; com um ente o contrabando se torna contrabando quando os governantes decidem m onopolizar a distribuição da m ercadoria em questão.

O s m eios de coerção com binam arm as com hom ens que saibam usá-las. (Q uero d izer m esm o hom ens; na experiência ocidental, as m ulheres tiveram um a im p o rtân c ia su rp reenden tem en te pequena na construção e uso da organ ização coerciva, fato que certam ente ajuda a explicar a sua posição subordinada dentro dos estados.) Os agentes dos estados têm m ais disponibilidade para concentrar a coerção e para im pedir que outros o façam , na m edida em que (a) a produção de arm as im plica um conhecim ento esotérico, m ateriais raros e capital abundante, (b ) poucos grupos dispõem da capacidade independente de m obilizar grandes quantidades de hom ens e (c) poucas pessoas conhecem o segredo de com binar armas com hom ens. Com o decurso do tem po, os governantes dos estados europeus aproveitaram -se de todas essas condições para instaurar m onopólios das m aiores concentrações de m eios de coerção dentro de seus territórios: exércitos, forças de polícia, arm as, prisões e tribunais.

Os estados usaram a concentração da coerção de m uitas maneiras diferentes. N os p rim eiros sécu los após 990 d .C ., os reis ra ram en te d ispunham de m aior contingente de força arm ada sob seu controle do que os principais soberanos que vieram depois. A logística da alim entação e m anutenção de homens arm ados tornou pro ib itivam ente cara a instituição de exércitos perm anentes. N orm alm ente , um exército real era constituído da pequena força perm anente do rei e das tropas que d e ix av am tem p o rariam en te a v id a c iv il a cham ado dos p a rtid ário s do rei. A presença deste reforçava os vínculos pessoais entre os guerreiros: “A regra geral era que o rei com andasse pessoalm ente toda cam panha im portante. A idade não im portava; O to III tinha 11 anos quando chefiou seu exército contra os saxões (991) e H e n riq u e IV tin h a 13 q u an d o fo i à guerra c o n tra os h ú n g aro s em 10 6 3 ”

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AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

(Contam ine 1984: 39). Os exércitos reais em m archa viviam, em am pla medida, da requisição (que teoricam ente era indenizada pelo tesouro real) e da pilhagem (que não o era); na verdade, a distinção entre esses dois eventos perm aneceu am bígua durante séculos.

As cidades, habitualm ente, organizavam m ilícias de cidadãos que guardavam os m uros, patrulhavam as estradas, intervinham em conflitos públicos e ev en ­tualm ente travavam algum as batalhas contra os inim igos da cidade ou do reino. As m ilícias m unicipais espanho las foram um a exceção ; tiveram um a im portância decisiva na conquista d a Ibéria muçulm ana pelos reis cristãos, fa to que se refle te nos grandes poderes que as municipalidades dom inadas pelos nobres adquiriram depois da R econquista e na cristalização da d iferença entre caballero (cavaleiro) e peón (so ldado a pé) num a div isão social duradoura e geral (Pow ers 1988). Em outras regiões, os reis geralm ente tentaram lim itar a força armada independente de que d ispunham os c id ad ão s , pe la m esm a b o a razão de que os c idadãos p ro ­vavelm ente usariam essa força em seu próprio interesse, inclusive para opor-se às exigências do rei.

Essas várias forças m ilitares enfrentaram m uitos grupos de hom ens armados que não agiam sob o controle direto do rei; en tre outras, os vassalos de senhores particulares que com um ente não eram recrutados para o serviço real, os bandidos (m uitas vezes soldados desm obilizados que continuavam a sua pilhagem sem a aprovação real) e os piratas (que freqüentemente agiam sob proteção real ou cívica). As acum ulações dos meios de coerção eram m odestas mas muito dissem inadas; a concentração era pequena. M esm o assim, os governantes estavam empenhando-se mais em concentrar a coerção do que haviam feito quaisquer outros.

Os estados acabaram por operar m últiplas forças armadas, todas elas buro­cratizadas e mais ou menos integradas à adm inistração nacional. M esm o a Espanha, conhecida pela repetida atribuição de poderes de estado a seus agentes e grandes, em penbou-se seguidam ente para separar suas forças armadas de seu ambiente civil. F ilipe II, por exem plo, colocou intencionalm ente sob o controle direto do governo as forças arm adas cujos com andos, durante o reinado de Carlos V, seu pai, haviam sido quase que posses privadas dos grandes. Por volta de 1580,

toda a institu ição m ilitar foi devo lv ida à Coroa e era adm inistrada pelos m inistros reais; as galeras da Espanha, de N ápoles e da Sicília, depois de um breve e m al-sucedido retorno à contratação em 1574-76, retornaram à administración, o aprovisionam ento das frotas medi- terrânicas e das guarnições da Á frica do Norte era contro lado pelo com issariado real de Se- vilha, as indústrias de arm as e os fabricantes de salitre estavam sob a estrita supervisão real, e a m anufatura de pólvora era um m onopólio do rei.

(Thom pson 1976: 6-7.)

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D urante o meio século seguinte, as exigências de financiam ento e adm inis­tração levaram a Espanha de volta à contratação extensiva e ao controle local; não obstante, as forças arm adas passaram a agir daí por diante com o ram os distintos e diferenciados do estado nacional. Com efeito, no século X IX , o exército espanhol adquiriu tal distinção e autonom ia que interveio repetidas vezes na política nacional com o força isolada (Ballbé 1983).

N a Espanha e em outros países, cedo em ergiu um a divisão acentuada entre o exército e a m arinha, divisão que subsistiu por m uito tem po. Em escala nacional, só m uito tarde - na m aioria dos países, no século X IX - é que se generalizou a separação entre o exército (geralm ente especializado em com bater outras forças armadas) e as forças de polícia (comumente especializadas no controle de indivíduos ou pequenos grupos desarm ados ou providos de armas leves). M ais ou menos nessa época, as acum ulações de força coerciva eram am plas, concentradas e, portanto, m uito desiguais. Por volta do século XIX, os estados haviam conseguido armar-se de form a im pressionante e quase desarm ar as suas populações civis.

A figura 2.6 esquem atiza a relação entre as cidades e os estados em função da interação do capital e da coerção. Acima da diagonal, a coerção superou o capital; abaixo de la , o capital sobrepujou a coerção . A d istinção ap lica-se às c idades individuais; portos europeus com o Am sterdam e B arcelona tip icam ente nadaram em capital em bora dispusessem de aparelhos de coerção relativam ente tênues; por outro lado, sedes de m onarquias, com o B erlim e M adrid , apresen taram m aior volum e de coerção do que de capital.

Figura 2.6 Caminhos alternativos de mudança em caso de concentrações de capital e de poder coerci­vo na Europa, 1000-1800.

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AS CIDADES E OS ESTADOS EUROPEUS

A distinção aplica-se também aos am bientes dos estados. A direção geral da m udança européia na passagem do m ilênio sem dúvida elevou a diagonal, rum o a concentrações cada vez maiores tanto de capital quanto de coerção. No entanto , e s tad o s d ife ren tes segu iram cam in h o s d ife ren tes na m esm a d ireção g e ra l. O B randenburgo-Prússia desenvolveu-se num am biente rico de coerção, po b re de capital, e revelou as m arcas de seu am biente inicial m esmo quando estendeu o seu dom ínio às cidades capitalistas da Renânia. A D inam arca teve usualm ente m aiores concentrações de cap ital à disposição do que o resto da E scandinávia e investiu m enos esforços na construção do poder militar.

Os Cavaleiros Teutônicos (a ordem do Hospital de Santa M aria em Jerusalém ) adotou um cam inho irregular: de cruzados pirateadores na Terra Santa (portanto, envolvidos in tensam ente no m undo p irá tico do com ércio oceân ico ) no final do século X II a governadores de uma grande porção da Transilvânia durante o século X III , depois a conquistadores e co lon izadores da Prússia pagã, onde de ap ro x i­m adam ente 1300 até o século X V I governaram no estilo dos grandes senhores de terra. Os C avale iro s, em mais ou m enos trin ta anos, c ruzaram a linha e n tre a form ação do estado com grande inversão de capital e a fo rm ação com in tensa co erção . O s C a v a le iro s de M a lta (tam b ém co n h ec id o s su c e ss iv a m e n te p o r Cavaleiros H ospitalários de São João de Jerusalém e Cavaleiros de Rodes) tam bém ziguezaguearam , m as term inaram num a localização m uito diferente:

... um a ordem relig iosa nascida na Terra Santa m ais ou menos em 1100, mas que se tran sfo r­mou quase que im ediatam ente numa ordem m ilitar em defesa dos estados latinos do O rien te , e em seguida converteu-se numa carreira m arítim a quando se retirou de C hipre (1291) e de ­pois de R odes (1309) e finalm ente foi fo rçada, em 1530, a devo tar-se in tegralm ente à sua instalação em M alta sob a form a de estado soberano sob a suserania do Réi da Sicília.

(Fontenay 1988a: 362.)

D evotando-se à pirataria legalizada a partir d e sua base em M alta, os C avaleiros seguiram um cam inho que investia mais capital do que os seus antigos v izinhos da Terra Santa. Podem os dizer, assim, que o diagram a é um m apa das m últiplas tra je ­tórias que estados europeus diferentes seguiram em suas diversas interações com as cidades existentes em seus territórios.

O diagram a coerção-capital incorpora o argum ento que delineei no cap ítu ­lo I: os governantes m ais poderosos em algum a região particu lar estabeleceram os term os da guerra p ara todos; o s governan tes m enos im portan tes tiveram de o p ta r e n tre a ce ita r as ex ig ên cias do s v iz in h o s p o d ero so s ou ten ta r e s fo rç o s ex cep c io n a is no sen tid o de se p rep ara rem para a guerra . A g u e rra e os p re ­parativos da guerra levaram os governantes a extrair os m eios de guerra daqueles

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CHARLES TILLY

que m antinham os recursos essenciais - hom ens, arm as, p rov isões ou dinheiro p a ra c o m p rá -lo s - e q u e re lu tav am em ced ê -lo s sem fo rte p ressão ou c o m ­pensação. D entro dos lim ites estabelecidos pelas exigências e com pensações dos ou tros estados, a ex tração e a luta pelos m eios de guerra cria ram as estru turas o rganizacionais centrais dos estados. A organização das p rincipais classes sociais den tro do território de um estado, e as suas relações com este, afetaram sign ifi­cativam ente as estratégias que os governantes em pregaram para extrair recursos, a resistênc ia que enfren taram , a luta daí resultante, os tipos de organização d u ra­doura que a extração e a luta introduziram e, portanto, a efic iênc ia da extração de recursos.

A organização das principais classes sociais, e suas relações com o estado, variaram consideravelm ente das regiões européias que aplicaram intensa coerção (á reas de poucas c id ad es e predom inância agríco la , onde a coerção direta era decisiva na produção) para aquelas onde houve grande aplicação de capital (áreas de m uitas cidades e predom inância com ercial, onde prevaleciam os m ercados, a troca e a produção para o com ércio). As reivindicações que essas classes principais fizeram ao estado, e sua influência sobre ele, variaram correspondentem ente. O su c e sso re la tiv o das d ife ren te s estra tég ias ex tra tiv as, e as e stra tég ias que os governantes aplicaram de fato, variaram portanto de m odo significativo das regiões que usaram intensa coerção para aquelas de grande inversão de capital.

C onseqüentem ente, as form as organizacionais dos estados seguiram tra je ­tórias claram ente d iferentes nessas partes distintas da Europa. O tipo de estado que prev aleceu num a ép o ca e parte determ inadas da E uropa variou g randem ente . Som ente no curso do m ilênio é que os estados nacionais exerceram uma superio­ridade evidente sobre as cidades-estado, os im périos e outras form as comuns na E u­ropa. N ão obstante, a e scala crescente da guerra e o entre laçam ento do sistem a europeu de estado através de relações comerciais, militares e d iplom áticas acabaram por conferir, na g uerra , um a vantagem àqueles estados que podiam d ispor de grandes exércitos perm anentes; os estados que tinham acesso a um a com binação de grandes populações rurais, capitalistas e econom ias relativam ente com ercia­lizadas venceram as guerras. Estabeleceram os term os da guerra, e a sua form a de e stad o passou a p red o m in ar em toda a E uropa. No final, os estados eu ropeus convergiram nesta form a: o estado nacional.

D entro de cada trajetória indicada no diagram a capital-coerção, os prim eiros passos determ inaram os ú ltim os. E m bora as classes d irigen tes urbanas tenham desem penhado funções im portantes na consolidação inicial de um estado dado (com o aconteceu na H olanda), muito depois o estado imprimiu a sua marca na form a das instituições burguesas. Em bora um estado se tenha orig inado da conquista de

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populações am plam ente rurais (como nos sucessivos im périos russos), continuou a o ferecer pouca perspectiva àquelas cidades que m edraram em seu m eio; nessas reg iões, g randes nob rezas se desenvo lveram quando os m onarcas g a ran tiram privilégios fiscais e substanciais poderes locais aos proprietários de terras arm ados, em troca de seu serviço m ilitar perm anente.

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