coerção e consenso na política jacob gorender o pensamento

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Coerção e consenso na política Jacob Gorender O Pensamento Revolucionário: da burguesia ao proletariado O pensamento revolucionário burguês, a partir do século XV até o século XIX, se desdobra em ampla e diversificada frente de disciplinas, de regiões do trabalho intelectual. Na frente da Filosofia, afirma a primazia da Razão diante da Fé, o direito à dúvida metódica, à pesquisa, o afastamento de quaisquer limites de natureza sobrenatural para a esfera do conhecimento. Na frente do Direito, com o jusnaturalismo, afirma os direitos naturais do homem, que nenhuma instituição social pode retirar. Na frente da teoria do Estado - que é explicada de várias maneiras, mas unânime na idéia de que não pode haver um Estado sobre-humano, de origem divina o novo pensamento burguês declara que o Estado nasce da sociedade, por conseguinte, deve ter tais ou quais compromissos com a própria sociedade. Este processo discursivo vai terminar, como se sabe, na teoria do contrato social, de Rousseau, depois de passar por Locke, Spinoza, Hobbes e outros. É a afirmação, portanto, de um direito igualitário dos cidadãos, em oposição aos diretos dos estamentos e dos privilégios estamentais. Cria-se o conceito moderno de cidadão, separa-se a ordem privada da ordem pública. No terreno da Ética, a burguesia apresenta uma nova teoria das relações sociais, justamente a ética do indivíduo, que nela tem o seu centro e soberano. Sob a nova perspectiva, os interesses individuais, ao invés de conflitantes, tendem a se complementar. Desta harmonização dos interesses individuais deveria surgir a própria harmonia social. E finalmente a Economia Política, criada por esse pensamento revolucionário burguês. Uma teoria econômica que veio para se afirmar contra a velha ordem feudal dos privilégios, dos monopólios, dos regulamentos e das prescrições restritivas. Por isto mesmo, proclama, como a mais natural e conveniente para os homens, a liberdade da atividade econômica, a soberania do mercado, a tendência espontânea do mercado de regular os diferentes interesses individuais dos vários produtores. Para a burguesia, que então afirmava sua supremacia, os diversos tipos de coação extra-econômica eram dispensáveis. Tanto para ela, como para a classe dos trabalhadoresos operários que já estavam nas manufaturas e iriam entrar nas fábricas com a Revolução Industrialbastava a coação meramente econômica. O fato dos trabalhadores estarem despossuídos dos meios de produção e de subsistência os forçaria, pela própria necessidade, pelo hábito criado com o passar das gerações, pela obrigação desde a infância, a procurar as fábricas e a considerar natural a circunstância de viver de um salário. Salário que seria regulado, no final das contas, pela existência do exército industrial de reserva, combinado com a procura e a oferta de mão-de-obra no mercado. Em face disso, o que deveria ser o Estado para a burguesia revolucionária? Um Estado liberal, apenas com a função de fazer cumprir

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Coerção e consenso na política

Jacob Gorender

O Pensamento Revolucionário: daburguesia ao proletariado

O pensamento revolucionário burguês,a partir do século XV até o séculoXIX, se desdobra em ampla ediversificada frente de disciplinas, deregiões do trabalho intelectual. Nafrente da Filosofia, afirma a primaziada Razão diante da Fé, o direito àdúvida metódica, à pesquisa, oafastamento de quaisquer limites denatureza sobrenatural para a esfera doconhecimento. Na frente do Direito,com o jusnaturalismo, afirma osdireitos naturais do homem, quenenhuma instituição social poderetirar.

Na frente da teoria do Estado - que éexplicada de várias maneiras, masunânime na idéia de que não podehaver um Estado sobre-humano, deorigem divina — o novo pensamentoburguês declara que o Estado nasce dasociedade, por conseguinte, deve tertais ou quais compromissos com aprópria sociedade. Este processodiscursivo vai terminar, como se sabe,na teoria do contrato social, deRousseau, depois de passar porLocke, Spinoza, Hobbes e outros. É aafirmação, portanto, de um direitoigualitário dos cidadãos, em oposiçãoaos diretos dos estamentos e dosprivilégios estamentais. Cria-se oconceito moderno de cidadão,separa-se a ordem privada da ordempública.

No terreno da Ética, a burguesiaapresenta uma nova teoria dasrelações sociais, justamente a ética doindivíduo, que nela tem o seu centro esoberano. Sob a nova perspectiva, osinteresses individuais, ao invés de

conflitantes, tendem a secomplementar. Desta harmonizaçãodos interesses individuais deveriasurgir a própria harmonia social.

E finalmente a Economia Política,criada por esse pensamentorevolucionário burguês. Uma teoriaeconômica que veio para se afirmarcontra a velha ordem feudal dosprivilégios, dos monopólios, dosregulamentos e das prescriçõesrestritivas. Por isto mesmo, proclama,como a mais natural e convenientepara os homens, a liberdade daatividade econômica, a soberania domercado, a tendência espontânea domercado de regular os diferentesinteresses individuais dos váriosprodutores. Para a burguesia, queentão afirmava sua supremacia, osdiversos tipos de coaçãoextra-econômica já eram dispensáveis.Tanto para ela, como para a classe dostrabalhadores — os operários que jáestavam nas manufaturas e iriamentrar nas fábricas com a RevoluçãoIndustrial — bastava a coaçãomeramente econômica. O fato dostrabalhadores estarem despossuídosdos meios de produção e desubsistência os forçaria, pela próprianecessidade, pelo hábito criado com opassar das gerações, pela obrigaçãodesde a infância, a procurar asfábricas e a considerar natural acircunstância de viver de um salário.Salário que seria regulado, no finaldas contas, pela existência do exércitoindustrial de reserva, combinado coma procura e a oferta de mão-de-obrano mercado.

Em face disso, o que deveria ser oEstado para a burguesiarevolucionária? Um Estado liberal,apenas com a função de fazer cumprir

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as regras do jogo de mercado, porémnão intervindo neste. Um Estado quepuniria aqueles que infringissem asregras, aqueles que violassemjustamente esta ordem burguesa,sinônimo de ordem pública. O Estadoburguês não teria função econômicadireta. Não faria como o Estadoabsolutista, promovendo fábricas,concedendo monopólios e privilégios.

Destoa desse pensamento, é claro, opróprio Hegel. Na sua Filosofia doDireito, o que ele apresenta é oEstado constitucional, mas não liberal,uma vez que escrevia como filósofode um Estado ainda atrasado —naquele momento — sob o aspecto darevolução burguesa.

Estas são as frentes principais dopensamento revolucionário burguês.Talvez eu tenha omitido alguma delas,mas acredito que apresentei as maisimportantes.

Em que frentes se desenvolve opensamento revolucionário proletáriono final do século XVIII — quandoemerge a Revolução Francesa — e notranscurso do século XIX, chegandoaos nossos dias?

Passada a fase das utopias — queconstróem idealmente sociedadescoletivistas autogestionárias — eentrando na obra dos fundadores dosocialismo científico, de Marx eEngels, podemos observar que opensamento do proletariadorevolucionário e sua elaboraçãoteórica se apresentarão também demaneira esquemática nos seguintesterrenos:

Em primeiro lugar, na crítica daEconomia Política. Esta é a primeirafrente, a principal, à qual se dedicaráo grande fundador do pensamentorevolucionário do proletariado: Marx,com a colaboração de Engels. Pelaprópria sistemática da sua concepçãogeral do materialismo histórico, queconfere a instância fundamental aoque chamamos de fator econômico,Marx considerou que devia atacarprimeiramente a Economia Políticaburguesa, que deveria criticá-la. Destacrítica surge o desvelamento dascontradições do capitalismo, surge

uma nova teoria econômica do sistemacapitalista, em que se demonstra queeste sistema não pertence à naturezada espécie humana, e, porconseqüência, é histórico. Ocapitalismo é um sistema que surgeem determinado grau dedesenvolvimento das forçasprodutivas do próprio homem. Porconseguinte é transitório e devedesembocar — pelo desenvolvimentodas contradições internas — nasubstituição por outro sistema, queseria o sistema socialista.

O pensamento do proletariado seapresenta, portanto, em primeiro lugaratravés da crítica da EconomiaPolítica burguesa e de uma teoriaeconômica oposta a ela. É a críticaprincipalmente de Adam Smith e deRicardo, que vai servir de base para odesenvolvimento das teoriaseconômicas posteriores: Kaustsky,Rosa Luxemburg, Lenin, Hilferding,Bukharin e os contemporâneos. Opensamento econômico marxistaassumiu, portanto, um lugar central naelaboração de uma concepçãorevolucionária do proletariado.Apoiados no terreno preparado peloidealismo clássico alemão e já atuandocomo intelectuais orgânicos dentro domovimento operário, Marx e Engelspuderam lançar os fundamentos dadialética materialista e de uma teoriageral da sociedade. Concepçõesnecessárias à edificação de umpensamento revolucionário que sepropunha a ganhar o aval de ciência.

No entanto, é sintomático que Marx seconcentrasse nos trabalhos deEconomia Política e só desenvolvessea teoria do materialismo dialético ehistórico no corpo das obraseconômicas e historiográficas. Já sedisse que O Capital é a Lógica deMarx. Em parte, e somente em parte,Engels procurou suprir esta lacuna.

Daí que a segunda frente maisimportante no desenvolvimento dopensamento do proletariado viesse aser a teoria da revolução. É que,neste terreno, as indagações vinhamcom a imposição da urgência: o queera a revolução na época dascontradições do capitalismo? Qual a

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sua trajetória previsível? Que papelteria nela o proletariado em face dasoutras forças sociais?

Tais indagações vão constituir temade constante polêmica no movimentocomunista até os dias de hoje.

Desdobrando-se da teoria darevolução, vem a teoria do partidorevolucionário. Esta ainda não temlugar elaborado em Marx e Engels.Mas, em seguida, com a IIInternacional, assume lugarproeminente. São sobretudo osteóricos russos, com Lenin à frente,que vão erguer o corpus da teoria do

partido revolucionário. Teoria que,nas suas origens, ficou marcada pelascondições peculiares da lutarevolucionária na Rússia czarista e,mais tarde, da construção dosocialismo na União Soviética.

A teoria do Estado se segue emordem de importância no pensamentorevolucionário do proletariado.Contudo, não podemos deixar deconcordar com Norberto Bobbio queesta é uma frente insuficientementeabordada e menos avançada do que asoutras. A tal ponto que, aindasegundo Bobbio, não existiria umateoria do Estado no universo marxista.

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Mas o próprio pensador italianoreconhece que se Marx não se dedicouà teoria política com tanto afincoquanto à teoria econômica, o que noslegou já é suficiente para lhe dar umlugar eminente, o lugar de umverdadeiro marco na evolução dasidéias políticas. Pois é de Marx a tesede que o Estado não é uma instituiçãopara o bem comum, acima das classessociais, conforme idéia generalizadano pensamento político anterior. Marxfoi o primeiro a declarar que o Estadoé o Estado de uma classe particular.Esta ligação orgânica do Estado comuma determinada classe, com a classedominante, é essencial no pensamentopolítico marxista, é a contribuiçãoespecífica mais importante de Marx. Ofundador do socialismo científicoinverte a relação de Hegel, deEstado-sociedade civil, do Estadocriador da sociedade civil, para asociedade civil-Estado. A sociedadecivil, como o reino em que osindivíduos realizam suas necessidadesmateriais, suas necessidadeseconômicas, é que será a criadora doEstado, a base do Estado. No entanto,Marx, como Engels, assim comoLenin, irão dar ênfase sobretudo aoEstado como instrumento de coerção —o Estado é a coerção legítima. Daípoder funcionar como regulador dosconflitos sociais entre as váriasclasses, porém como um reguladorque age de maneira a preservar aordem existente e o modo de produçãoem vigência, assim como a formaçãosocial que confere supremacia à classedominante. No caso, a classedominante burguesa.

Mesmo liberal, este Estado não seausenta da vida econômica. Suaausência é uma ilusão ideológica, poiso Estado liberal intervém na ordemeconômica ainda que evite a gestãodireta de empresas.

Marx dá novo sentido à palavraditadura, ao falar em ditadura declasse. Originalmente, o termoditadura vem da antiga Roma,designando um governonecessariamente provisório, admitidoem situações conflitivas, convulsivas,que deveria pôr ordem na vida

pública, mas por um prazodeterminado, retirando-se em seguida.O termo foi adotado na literaturapolítica, com esta acepção detransitoriedade, até Marx. Para Marx,ditadura de classe será sinônimo dedominação de classe, designando umasituação duradoura.

Por que a classe dominante exercedominação de maneira discricionária,como uma ditadura? Porque ela faz oque lhe interessa e para isso não hálimite real na lei. As leis obedecemaos interesses da classe dominante ese violam também no interesse daclasse dominante. Mas a ditadura, porsua vez, pode ser exercida sobdiferentes formas políticas. No casoda burguesia, tanto se exerce sob aforma de um regime plenamentediscricionário, como através darepública democrática, através degovernos representativos e que, nalinguagem usual, seriamaparentemente o oposto da ditadura.

Em virtude de semelhanteambigüidade, o termo ditadura dáorigem a numerosas confusões. O fatode, na linguagem mais usual, nós só oempregarmos como expressivo degovernos discricionários, não nospermite compreender que, naterminologia de Marx, ele tem sentidode discricionário para a dominaçãoburguesa geral, não se restringindo àforma que esta assume nos governosautoritários. A ditadura de classe podese apresentar também sob a forma degovernos parlamentaresrepresentativos e constitucionais,obedientes à legalidade.

Com relação ao novo Estadosocialista, a teoria política foi poucoelaborada, tanto por Marx e Engels,como por Lenin. Salienta-se, aí, aidéia da destruição do aparelho doEstado burguês, e a sua substituiçãopor um novo aparelho de Estado. Emseguida a idéia de deperecimento doEstado, ou seja, da sua extinçãogradual. O que significa, de um lado,a recusa da concepção reformista deque o Estado burguês pudesseadaptar-se às necessidades da futuradominação do proletariado. E, poroutro lado, a recusa do princípio do

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anarquismo, segundo o qual o Estadodeve ser extinto de uma vez demaneira imediata, assim que forderrubada a burguesia. Segundo osteóricos marxistas, sendo a revoluçãoum ato autoritário por excelência, oproletariado, que se apossa do poder,não dispensará o Estado comoinstrumento de afirmação dessemesmo poder. O proletariado temnecessidade do Estado, o qual nãopode desaparecer exatamente nomomento da revolução. Trata-se deum novo tipo de Estado, quenecessariamente deve atravessar umatransição: a da extinção gradual.Talvez pela previsão de que o Estadodo proletariado fosse necessário, mastransitório, destinado a se extinguir, éque não se teorizasse sobre o queseria este Estado.

Esta seria uma razão de ordem teórica.Existem também motivos de ordemhistórica, pela forma como ocorreramas revoluções, primeiro na URSS,depois em outros países do LesteEuropeu, na China, em Cuba etc.Neste ponto, eu dou razão a NorbertoBobbio. O que aconteceu, narealidade, em todos esses países, éque o Estado, ao invés de realizar umprocesso de deperecimento, iniciouum processo de expansão. Porque, aocontrário do previsto por Marx e

Engels, o Estado assumiu os bens deprodução em nome da sociedade. Comisso, adquiriu um poder que nuncateve antes em nenhuma sociedadeburguesa. O Estado se expandiu maisdo que se poderia prever. O processode sua extinção não se iniciou aindaem nenhuma sociedade do chamadosocialismo real e uma teorização arespeito ainda está por ser feita.

Estado — Coerção e ConsensoVamos deter-nos, agora, nacontribuição especial de AntônioGramsci.

Em Marx, Engels e Lenin, foi dadaênfase sobretudo à face coercitiva doEstado, o Estado-coerção. As formasconsensuais de dominação de classenão mereceram tanto esforço teórico.Não que se omitisse o problema daideologia. Marx falou dela e declarou

que a ideologia da classe dominante éa ideologia dominante. Neste sentido,os teóricos marxistas estudaram asdiversas ideologias da burguesia, comalgumas incursões no terreno daFilosofia. Estudou-se a Religião, atécerto ponto a Arte, muitíssimo poucoa Ética. Neste ponto, não se podedizer que há uma teoria da Éticasocialista ou algo que mereça estenome. Há certas contribuições, masnão possuem nível teórico à altura doque o marxismo elaborou no terrenoda economia, na teoria da revolução ena teoria política do partido.

Tanto Engels como Lenin notaram asubmissão ideológica do proletariadoinglês à burguesia inglesa. Mas Lenin,em particular, atribuiu isso ao fato deo imperialismo inglês ter adisponibilidade de oferecer migalhas,do que saqueava do seu império, aoproletariado inglês. Subornava,corrompia o proletariado inglês. Maso estudo dos processos ideológicosque tornavam essa submissãoconsolidada, que davam a elaestabilidade, um prolongado grau deduração, isto não foi objeto de estudopor parte de nenhum daqueles grandesteóricos.

É com Gramsci que irão ser estudadosos processos consensuais de direção ede dominação. Ele ressaltou acomplexidade das funções do Estado.O Estado com sua força legitimada, oExército, a Polícia, a AdministraçãoPublica, os Tribunais etc., órgãosdepositários da função de coerção.Esta é uma face. A outra face é aextensão do Estado, que ele chamoude Sociedade Civil, num sentidodiferente de Marx. A Sociedade Civilseria o âmbito em que se moveriam asinstituições destinadas a obter oconsenso das outras classes sociaisque formam com a classe dominanteaquele bloco histórico, que dáestabilidade à formação social. Aquientram a Igreja, os Partidos Políticos,os Sindicatos, as Escolas, obviamentea Universidade, a Imprensa (hoje seincluiriam o rádio e a televisão, comsua tremenda força de comunicação),a Alta Cultura, o Senso Comum — achamada sabedoria popular, com os

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provérbios, o folclore etc. Este seria oterreno onde se formariam asconsciências que aceitariam a ordemvigente. Mas, aceitação, aqui, nãosigniñca submissão passiva eresignação ou ilusão de uma ordemideal. Uma classe subalterna podeaceitar determinada ordem social,mesmo vendo-a injusta. Porém, aoconsiderá-la eterna, impossível demudar, adquire a confiança de quepoderá melhorar sua posição,conquistar reformas. Nesse sentido,ela dá o seu consenso, sua adesão eapoio à existência dessa ordem social.E a isto que Gramsci chama dehegemonia de uma classe dirigente.Uma classe é hegemônica, é dirigente,na medida em que consegue obter o

consenso das classes subalternas, namedida em que supera a visãocorporativa, em que não pensa apenasnos seus interesses imediatos econsegue interpretar os interesses dasoutras classes sob o enfoque do seudomínio, da sua posição desupremacia. Se a classe dominanteconsegue fazê-lo, obtém o consenso.Se ela se restringir a uma visãocorporativa, a interesses imediatos,então perde o consenso.

A burguesia conseguiu o consenso daclasse operária e de outras camadas detrabalhadores com seu vasto trabalho,ideológico e multissecular. Noprocesso de formação de suahegemonia, ganharam a adesão dos

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camponeses e do operariado industrialnascente e puderam realizar assim asua tarefa revolucionária.

É indispensável a função dedominação, a função de coerção, masa função de direção pode precedê-la.Gramsci dizia que uma classe pode serdirigente, antes de ser dominante.Nesse terreno, é que também opensamento de Gramsci se voltou parao papel dos intelectuais e nenhumoutro teórico marxista deucontribuição tão criativa para o estudodo papel dos intelectuais. Porque sãoos intelectuais, exatamente, osfuncionários do consenso. São elesque trabalham como ideólogos para aobtenção do consenso como homensda Igreja, como dirigentes desindicatos, de partidos políticos, comojornalistas, produtores da alta cultura,produtores de arte, seja a grande arteou a arte popular etc.

Mas basta ter o consenso para ter adominação? Aqui a divergência émuito grande entre os intérpretes deGramsci. A obra de Gramsci, comotodos sabem, foi escrita no cárcere emcondições muito penosas, obrigando-oa disfarçar o que escrevia, pois estavasob vigilância constante doscarcereiros. Trata-se de uma obraescrita durante cerca de dez anos, naforma de anotações, sem nenhumapretensão de publicação. Assim, estaobra fragmentária tem contradições,ziguezagues, voltas e reviravoltas. Apropósito do assunto, aqui tratado,uma das interpretações é a de que,para Gramsci, a classe que se tornadirigente, que obtém o consenso, jápode se tomar dominante exatamentepor isso. Semelhante interpretaçãoomite o momento da ruptura, que é omomento revolucionário. Penso queGramsci não via as coisas destamaneira reformista. Pelo conjunto doque escreveu e por certas passagensmuito incisivas, sua idéia era a de queo consenso preparava a dominação. Aconquista da hegemonia prepara aruptura revolucionária, que énecessariamente violenta e nãodispensa a coerção, quer dizer, afunção coercitiva do Estado não podeser dispensada pelo próprio fato deque facilita a obtenção do consenso.

Consenso e coerção fazem um jogo,em que um elemento aumenta à custado outro, em certas conjunturas, mas,em nenhum momento, qualquer dosdois desaparece. Para fundamentaresta teorização, Gramsci se apoiou nahistoriografia das revoluções Francesae Italiana. Duas revoluções, umamuito radical e vinda de baixo, quefoi a Revolução Francesa, e outra,uma revolução de cima, passiva, quefoi a Revolução Italiana, realizadamais por um ato da classe burguesa,através de um Estado italiano, o dePiemonte, e, por conseguinte, comuma iniciativa vinda de cima.

Quero acrescentar que dou razão, sobeste aspecto, a Perry Anderson. Não atudo o que escreveu sobre Gramsci,porque conclui que ele foi umreformista. Na minha opinião,Gramsci foi um revolucionário. Mascreio que Anderson tem razão quandoafirma que o próprio Estado —considerado à parte da sociedade civil— já é consenso, ou pode prefigurartambém o consenso. Nem sempre ele ésomente coerção. O Estadorepresentativo parlamentar pode tercaráter consensual. Por seu própriomecanismo, apela para o consenso dasclasses subalternas, porque lhesoferece um jogo do qual elas podemparticipar: a periodicidade daseleições, a liberdade de organizaçãode partidos originários das classessubalternas, com a possibilidade legaldesses partidos chegarem ao poder,desde que aceitem as regras do jogodo Estado representativo. Assim, nãosó o que Gramsci chamava desociedade civil pode ser consensual,também o Estado como tal pode sê-lo.Eu acrescentaria que o consenso,necessariamente, nem sempre édemocrático, também pode serdespótico. Ou seja, também podeexistir um despotismo consensual.Nos dias atuais, o fundamentalismoxiita não oferece no Irã um consensoao despotismo do aiatolá Khomeini?

A obtenção do consenso nem semprese traduz através de canais ou deformas representativas e democráticas,mas pode ter, em alguns casos,manifestação através de formas

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despóticas. O que varia é a correlaçãoentre coerção e consenso.

Num Estado parlamentar democrático,a coerção é predominantementelatente, manifestando-seostensivamente de maneira tópica, noscasos em que a ordem pública éviolentada. Essa coerção se mantémnum sentido mais geral, como ameaça,uma ameaça legítima, porém, que nãodeixa de existir, e a área do consensoé deixada, por assim dizer, livre: aimprensa é livre, não há censura, ospartidos se organizam legalmente ecompetem livremente nas eleições,embora em condições desiguais, poisos recursos de uns e outros não são osmesmos. Os sindicatos também sãolivres: fazem-se greves, até certoponto admitidas, embora a repressãopolicial, em alguns casos, pratiqueagressões e até assassinatos a líderessindicais. A própria vida universitáriarecupera a sua autonomia, funcionacom um grau de liberdadeconsentâneo com a competição entreas várias idéias. Aproximadamente,esta é a situação atual do Brasil.

Eu diria que nos Estados fascistas ounas ditaduras militares sul-americanas,como a que tivemos no Brasil atépoucos anos atrás, a coerção atingeum máximo, invadindo a área dasociedade civil onde se processa oconsenso. Nestes casos, não só acoerção se torna exposta — intervindoem tudo, generalizadamente, semrecuar diante dos processos maisKorpes, a exemplo da tortura — comoinvade a área do consenso. Então, aImprensa é censurada, os Partidos,como ocorreu na Argentina, sãosuprimidos ou só se permitem doisPartidos, um da situação e outro daoposição. Foi o que se fez no Brasil.Os Sindicatos são controlados demaneira rigorosa, as greves proibidas,as publicações submetidas à censura,o mesmo ocorrendo com o cinema, oteatro, as diversas formas demanifestação artística. A Universidadeé mutilada: determinadas correntes depensamento são impedidas de semanifestarem dentro dela etc.

Assim, temos duas situações típicasextremas: um mínimo ou um máximo

de coerção com a contrapartida de ummáximo ou um mínimo de consenso.

Do Populismo ao Golpe Militar

Partindo desse universo conceitual,vou fazer algumas consideraçõessobre a nossa História recente,referindo-me primeiramente ao que sedenomina em nossa literaturasociológica e historiográfica comopopulismo. Via de regra, este termotem sido entendido como manipulaçãopor parte de uma liderança carismáticade massas recém-urbanizadas, quevieram de áreas rurais ou pequenascidades, ainda destituídas de umaconsciência autônoma no universo dasgrandes cidades.

Os aspectos da manipulação e daliderança carismática existem, porémnão são o fundamental do fenômeno.O essencial — e aqui desejorestringir-me ao caso brasileiro, vistoser este um fenômeno internacional —é que o populismo foi um processo dehegemonia consensual da burguesiaascendente, a partir dos anos 30, paraobter a colaboração do nascenteproletariado com vistas à construçãoda nação burguesa. Foi exatamenteuma política do próprio Estado, tendono seu leme o primeiro e o maior dospopulistas — Getúlio Vargas. Getúlioacreditava que o populismo seriabenéfico tanto para os trabalhadorescomo para a burguesia. Nos anos 30,dá-se início ao processo de transiçãoda liderança da burguesiaagrário-exportadora — de orientaçãoantiindustrializante — para a liderançade uma burguesia industrial, que vaise afirmar já nos anos 30 e que irácrescer celeremente nos anos 40, atéadquirir o domínio pleno nos anos 50,sobretudo no qüinqüênio de JuscelinoKubitschek.

Esta burguesia industrial, com seuspolíticos e estadistas populistas,conseguiu ganhar o consenso em grauelevado dos trabalhadores urbanospara o projeto de uma nação burguesaindependente, através daindustrialização. Assim, o populismoestá essencialmente associado aoprojeto da industrialização burguesano Brasil. É o primeiro projeto

Eu diria que nosEstados fascistas ou

nas ditadurasmilitares

sul-americanas, comoa que tivemos no

Brasil até poucos anosatrás, a coerção atinge

um máximo,invadindo a área da

sociedade civil onde seprocessa o consenso.

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político de hegemonia da burguesiabrasileira. Hoje um projetoabandonado, mas que serviu durantetrês décadas, dos anos 30 até ocomeço dos anos 60. O populismotanto pôde operar no regimeautoritário do Estado Novo, como noregime liberal da Constituição de1946, portanto, sob as condições deum regime parlamentar representativo.

E o que oferecia o populismo aosoperários? O paternalismo estatal, nassuas relações conflitivas com opatronato. Os operários ganhavamuma legislação, que lhes permitiadefender alguns direitos perante ostribunais da Justiça do Trabalho. Ostrabalhadores deixavam de serdesamparados, mas, em troca, osSindicatos ficavam atrelados aoMinistério do Trabalho, e eramconsiderados órgãos de colaboraçãocom o poder estatal. Os Sindicatosperdiam assim a sua autonomia. Osoperários ganharam outrasconcessões: salário mínimo,previdência social, conjuntoshabitacionais, assistência médica etc.Tudo isso não deixou de facilitar aobtenção do consenso dostrabalhadores, em relação ao Estado,inicialmente à revelia da burguesiaindustrial que estava crescendo. Nessesentido, Getúlio Vargas tinha uma

visão mais avançada do que ospróprios industriais, em sua grandemaioria, com a exceção de homenscomo Roberto Simonsen e poucosoutros.A título de referência pessoal, eu merecordo que, ainda jovem, entrando nomovimento antifascista, e logo depoisno movimento comunista, eu tinhaaversão a Getúlio Vargas, quepersonificava o Estado Novo. E meespantei depois, em 1945, ao notarque Getúlio era popular, que dispunhade enorme prestígio entre ostrabalhadores. O movimentoqueremista de 1945 mostrava isto e,depois, a própria eleição espetaculardo ex-ditador. Quer dizer, o ditadorodiado era um homem popular. Elenão havia sido somente um ditador eexercido apenas a função da coerção,mas havia exercido também a funçãodo consenso. Havia conseguido oconsenso de grandes massastrabalhadoras, por ele arregimentadaspara o Partido Trabalhista Brasileiro,que chegou a ser o segundo maiorpartido brasileiro antes do golpe de1964.Getúlio inicia a industrialização nosanos 40, com a fundação de grandesempresas estatais. É com ele quecomeça o setor estatal da economiacom a indústria de base. São os seus

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sucessores que vão levar estaindustrialização adiante. O segundogoverno de Getúlio foi um prólogo dogoverno de Juscelino. Os grandesobjetivos dos planos de metas deJuscelino, como hoje se sabe, jáhaviam sido previamente formuladospor Getúlio, só que eram umaformulação precoce, numa época emque ainda não estavam maduras ascondições para que o País pudesseinterna e externamente implementaruma industrialização acelerada. Aindanão haviam recursos internossuficientes e, do lado de fora, ospaíses capitalistas desenvolvidos —vindo em primeiro lugar os EstadosUnidos — não tinham a disposição defazer pesados investimentos naindústria brasileira. Os EstadosUnidos eram francamente contrários àindustrialização acelerada do Brasil ea Europa ainda estava se recuperandoda n Guerra Mundial. Contudo, oBrasil já possuía um mercado internoatraente para o capital dos países daEuropa Ocidental e do Japão. Ocapital desses países investiu noBrasil e obrigou o capital americano amudar de posição e vir disputar umaposição no investimento industrialdentro do Brasil. Com isso, oqüinqüênio Juscelino pôde realizaraquele salto industrializante que,induscutivelmente, mudou a qualidadeda economia brasileira, e deusupremacia à indústria, já acopladacom setores mais modernos -condizentes com os seus interesses —no comércio e nas finanças.

O governo de Juscelino fez aindustrialização de tal forma, quelegou aos seus sucessores um elencode problemas cruciais. O Estadointerveio na industrialização cominversões maciças, que apelaram paraa inflação, para a emissão depapel-moeda, o que, no fundo,constituiu um imposto forçado,oneroso principalmente para apopulação mais pobre. Ao mesmotempo, as inversões de capitalestrangeiro sob a forma deempréstimos expandiram a dívidaexterna.

O governo sucessivo de Jânio se viu abraços com os problemas imperiosos

da inflação, da dívida externa, dadificuldade de importação de bensessenciais, do déficit orçamentárioetc. Jânio tentou enfrentar taisproblemas com uma renúncia, que, nofundo, era uma manobra para obtermaiores poderes em detrimento doCongresso. Esta manobra fracassou eo poder veio ter às mãos de JoãoGoulart, discípulo direto de Getúlio eo último dos presidentes populistas.

No governo Goulart, há todo um jogoatropelado para deter e anular opopulismo, jogo no qual o próprioJango se compromete para dar umasaída - dentro do modelo recessivo doFMI — à situação de crise cíclica emque entrava a economia brasileira. Apartir de 1962, a economia começa aapresentar índices mais baixos decrescimento. 1963 é um ano em que oproduto per capita decresce. Aeconomia entra num períododepressivo, que vai se prolongar até oano de 1967. Ao mesmo tempo emque a economia se debate em agudasdificuldades, o populismo já nãoconstitui uma receita adequada para aclasse dominante, porque ela não podemais fazer concessões aostrabalhadores. Já estes, diante daerosão do seu poder aquisitivo, fazemreivindicações cada vez maiores, aomesmo tempo que ganham experiênciae consciência política. Ostrabalhadores começam a apresentarreivindicações que ultrapassam ouniverso populista. Assim, opopulismo vai sendo superado pelaclasse operária e pelos trabalhadoresem geral. Ao mesmo tempo, opopulismo já era uma políticadesvantajosa e inconveniente para aclasse burguesa. O populismo deviapor isso mesmo ser descartado por unse por outros.

Este é o drama, o dilema do governoJoão Goulart, que vai ter umdesenlace extremamente infeliz,porque ao mesmo tempo em que ogoverno se debate com essesproblemas, dá-se um impetuosocrescimento do movimento pelasreformas de base. Não aprofundareiaqui o que significou o movimentopelas reformas de base, hojedepreciado pelos analistas porque

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terminou em derrota e não secostumam valorizar as derrotas.Apesar de que, na História, háderrotas mais fecundas do que certasvitórias.

O movimento pelas reformas de basepôs em xeque a classe dominante emtrês pontos fundamentais:

Em primeiro lugar, questionou oprincípio da propriedade privada. Omovimento incentivou, pela suaprópria dinâmica, um grande númerode invasões de terras peloscamponeses despossuídos oudespejados de suas terras, emconseqüência do desenvolvimento docapitalismo no campo. Quem estudaraqueles anos, poderá assinalarcentenas de casos de invasões deterras de Norte a Sul do País. Oscamponeses entraram impetuosamenteno movimento social com as ligascamponesas e, logo em seguida, comos Sindicatos Rurais, que sedisseminaram por todo o País. Daí seoriginou a luta pela reformaconstitucional, de maneira que setornasse viável a desapropriação deterras para a realização da reformaagrária. É o intocável princípio dapropriedade privada da terra que éposto em xeque.

Em segundo lugar, o domínio dasmultinacionais, o domínio doimperialismo. Neste particular, o fatoque considero mais significativo é aaprovação pelo Congresso da lei deremessa de lucros em 1962. Foi umalei que restringiu em 10% a remessaanual de lucros pelo capitalestrangeiro, considerando capitalestrangeiro somente aquele queefetivamente entrou no País. O capitalestrangeiro reinvestido, originário delucros obtidos dentro do País, nãocontaria para as remessas de lucros epara os dividendos. Isto seria limitardrasticamente a remessa de lucros.Não conheço nenhum país capitalistaem que uma lei tão radical houvessesido aprovada. João Goulart, por istomesmo — porque estava no jogo deadaptação com seus adversários, emque ele próprio procurava frear opopulismo —, não sancionou a lei,deixando que ela o fosse pelo

Congresso. Tampouco regulamentouesta lei, depois de aprovada,impedindo assim que ela entrasse emvigor. Jango só irá regulamentar a leiem janeiro de 1964, mais de um anoapós sua aprovação. Além disso, omovimento pelas reformas de basereivindicava a encampação derefinarias particulares, dasconcessionárias estrangeiras deserviços públicos, porque, naquelaépoca, principalmente a eletricidadeera dominada por duas grandesconcessionárias estrangeiras, a Lightand Power e a Amforp.

Em terceiro lugar, porque foi postoem xeque o poder coercitivo doEstado. Surgiram, entrosados com aluta pelas reformas de base, osmovimentos dos sargentos das trêsArmas e também de algumas PolíciasMilitares estaduais que acintosamentedesrespeitavam os regulamentosdisciplinares. Seus representantesfalavam em público nas assembléiasde estudantes, nos Sindicatos eadotavam os pontos de vistanacionalistas e democrático-radicais.E mais o movimento dos marinheirose fuzileiros navais, que fundaram umaassociação considerada ilegal peloMinistério da Marinha. Marujos efuzileiros navais tambémapresentavam reivindicações decaráter profissional e de caráterpolítico. Esta indisciplina, inusitadadurante dois anos ou mais,aprofundou-se dentro das ForçasArmadas e abalou o poder coercitivomáximo do próprio Estado. Além daatuação, que não se pode deixar demencionar, da oficialidadenacionalista, incluindo almirantes egenerais, ostensivamente ao lado domovimento pelas reformas de base.

Isto, é claro, provocou uma reaçãoautopreservadora nas Forças Armadas,porque, como instituição total, elastendem à autopreservação, baseadanos princípios da disciplina rígida eda hierarquia, da subordinaçãoincondicional dos graus mais baixosaos graus mais altos dentro da escalaprofissional.

Nessas condições, não é preciso dizerque o golpe militar de 1964 foivitorioso, pois todos já sabem. O que

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é importante assinalar aqui é amudança de orientação políticafundamental, então ocorrida. Osignificado da ditadura militar,iniciada após o golpe, foi a eliminaçãodefinitiva do populismo consensual eo realce do elemento de força, decoerção do Estado. A coerçãoexacerbou-se e chegou a um pontoextremo, ficando o consenso como umresíduo. No processo de avanço daditadura, da vitória golpista de 1964até o AI-5 de 1969, a Imprensa foisubmetida à Censura, os jornaisoposicionistas foram calados oudeixaram de circular. A Universidadefoi invadida, mutilada, aleijada,numerosos professores foramcompulsoriamente aposentados ecoagidos a saírem do País. Artistasforam coibidos e também obrigados asaírem do País. Cerca de dez milfuncionários públicos civis e militaresforam alijados por processosadministrativos, IPMs ou suspensãode direitos políticos. Parlamentareseleitos pelo voto popular tambémsofreram este processo de expurgo.Governadores perderam os mandatosnos seus estados. Enfim, dá-se acoerção discricionária, sem limites,pois, desde 1964, inicia-se a práticado terrorismo de Estado, com asprisões arbitrárias e torturas. Assim,se estabelece no País uma ditaduramilitar sem que isto fosse previsto pormuitos dos protagonistas do golpe.Porque, não é correto dizer, que todosos participantes ou os principaisparticipantes do golpe militarquisessem desde o início uma ditaduramilitar duradoura. Alguns deles nempensaram nisso, e concordoraminicialmente que as Forças Armadasassumissem o poder, mas pensavamnum poder ditatorial no seu exatosentido filológico, ou seja, de breveduração. Imaginavam que, depois defeita a limpeza do terreno, as ForçasArmadas revertessem o poder aoscivis, com a realização de eleiçõespresidenciais. Assim pensavam, pelomenos, Carlos Lacerda, Adhemar deBarros e Magalhães Pinto,protagonistas do golpe. Masaconteceu algo diferente. Mesmodentro das Forças Armadas não eraintenção, ao menos de um estadista

como Castelo Branco, que seprecisasse de uma ditadura de longaduração. Mas o que aconteceu foiexatamente isso. Não fomos com elaaté o ano 2000, como pretendeu prof.Alfredo Buzaid. Não tivemos umaditadura militar com duração tãoprolongada mas, assim mesmo, durou21 anos. Para isso, ela recebeu todauma doutrinação, da qual a matrizprincipal veio na doutrina daSegurança Nacional elaborada naEscola Superior de Guerra. Estadoutrina forneceu o simulacro delegitimação para a sua vigência. Aditadura militar não foi, no entanto,regressiva, e sim modernizadora,como havia sido o Estado Novo. Elaseguiu aquilo que se chamou demodernização conservadora, termocunhado por Barrington Moore. Deum lado, o arrocho salarial, comopedra de toque da política econômica,junto a toda uma série de outrasmedidas, com a correção monetária,que ensejou o nascimento do mercadode capitais, bem como novas fontes definanciamento estatal, permitindo aoEstado voltar a ser um grandeinvestidor. Por outro lado, a reversãodo ciclo econômico, com os anos dochamado "milagre brasileiro", como oapelidou a Imprensa internacional.

Estes cinco ou seis anos de "milagrebrasileiro", de altíssimas taxas decrescimento econômico, constituíramuma característica específica daditadura militar brasileira na Américado Sul. Foi uma fase de altaconjuntural, que não ocorreu naArgentina, nem no Chile e noUruguai. Não quero me referir aoParaguai, porque ali há uma ditaduratradicional e não, por assim dizer,eventual.

Este "milagre econômico" tirou todaou quase toda a base social daesquerda armada daquela época. Avitória do golpe militar de 64 nãoencontrou resistência, porque opresidente João Goulart evitou a luta ecapitulou, por temer que a ela seradicalizasse e ele perdesse ocontrole, o que poderia colocar aordem burguesa em situação precária.Uma vez que as esquerdas confiaram

O significado daditadura militar,

iniciada após o golpe,foi a eliminação

definitiva dopopulismo consensuale o realce do elemento

de força, de coerção doEstado.

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na liderança de João Goulart, o quehouve foi inação.

As esquerdas, em sua grande parte,entenderam que deveriam reagir com aditadura já consolidada, com asForças Armadas expurgadas de seuselementos rebeldes. Sem o movimentodos sargentos, dos marinheiros, dosgenerais e oficiais nacionalistas, ecom a coerção já estabelecida no seugrau máximo.

Em tais circunstâncias, a tese daviolência revolucionáriaincondicionada, da violêncianão-submetida às determinaçõeshistóricas, ganhou grande parte daconsciência das esquerdas, fazendocom que mergulhassem na lutaarmada. Primeiramente na guerrilhaurbana, depois na rural e emcondições tão desfavoráveis quedificilmente seria admissível e viáveluma vitória.

É claro, dizemos isto depois que tudoocorreu, já fazendo parte da História.Quem entrou na luta pensava navitória e tinha confiança nela,teorizava sobre a grande possibilidadedessa vitória e empenhou a vida paraque ela se concretizasse. Mas hoje noscabe examinar as coisas com umavisão crítica que procura as raízesdaqueles fatos, sucedidos dentro dedeterminado contexto político,econômico e ideológico.

Perspectivas Presentes

Devo dizer, agora, alguma coisa doque está se passando atualmente.Assim, passarei por cima de toda afase do regime militar, porque nãoestarei informando nada de novosobre o fato de que, em certomomento, o último general-presidentefoi substituído por um civil naPresidência da República Civil que,por sinal, foi um dos políticos maiseminentes do próprio regime militar.Hoje vemos que, após a recessão de1981 a 1984, em que a economiabrasileira submergiu numa fase deíndices negativos, passamos àrecuperação de 1985-86 e em 1987voltamos a uma nova fase recessiva.O que, sem dúvida, traz umaconotação de dificuldades, decontradições e de prenúncios críticos.

O que é que podemos sentir dasreações das diversas classes sociaisneste momento, dentro da temáticaque aqui procurei desenvolver?

Da parte da classe dominanteburguesa, é incontestável que ela nãopretende, de forma alguma, voltar aqualquer tipo de política populista; opopulismo pertence ao passado. Tantoassim, que o último dos populistas,Leonel Brizola, é um homemmalsinado, que deve ser isolado emantido numa espécie de guetopolítico, com um pequeno partido,sem possibilidade de atingir aqueleobjetivo em que teimosamente se fixa,que é chegar à Presidência daRepública. Por quê? Será que LeonelBrizola por si mesmo seria uminimigo? Nem tanto, penso eu, porquese examinarmos hoje o discurso deBrizóla, vamos notar dilatadasmudanças com relação ao seu discursopré-64. Naquela época, Brizola foi umhomem que desapropriou — quandogovernador do Rio Grande do Sul —duas companhias concessionárias deserviços públicos norte-americanos, aITT e a subsidiária da Amforp. O quelevou a uma reação drástica doCongresso norte-americano. A linhade comunicação de Brizola com o seupúblico era radical, era uma pregaçãoantiimperialista e antilatifundiáriaradical. E hoje, o que prega LeonelBrizola? Ele prega um programa cujoprimeiro item é o leite dascriancinhas, ou seja, a construção deCIEPEs para tirar as crianças das ruase lhes dar alimentação durante o diainteiro, educação etc. Trata-se de umobjetivo que não podemos reprovar,porém não deve ser isolado deobjetivos que têm em vistatransformações estruturais dasociedade. Sem tais transformações, oleite das criancinhas será algoepisódico e muito limitado.

O que temem as classes dominantescom Brizóla na Presidência daRepública é o que viria após. Porque,depois de um populista, o que poderávir? Só poderá ser alguém maisradical. Mesmo um populistaatenuadíssimo, como é Brizóla, sefracassar na contenção das massas,teria que dar lugar a uma composiçãosocial que levasse o País por um

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caminho de transformação política esocial avançada. Assim, o populismoé uma opção descartada para asclasses dominantes. O que elas têmem vista, na situação atual, é o projetode sociedade em que os trabalhadoresaceitassem — e aqui entra o consenso —o capitalismo, de tal maneira que elesse considerassem sócios dosempresários. Os empresários terão suaparte — sob a forma de lucros — comoempresários e os trabalhadores terãosua parte — sob a forma de salários —como trabalhadores. É o que tem sidochamado de sindicalismo de negóciosou de resultados, em que ostrabalhadores disputam seu quinhão,desde que não se proponham a umapolítica de transformação social. Podeser a política dos sindicatosnorte-americanos, como pode ser apolítica da social-democraciaeuropéia.

Do ponto de vista da estruturafundiária, da estrutura de propriedadeagrária, o que se vê é que a classedominante não pretende fazerabsolutamente nenhuma concessão.Hoje, o que há de legislação agrária,no governo Sarney, encontra-se atrásdo Estatuto da Terra, aprovado como

lei pelo general Castelo Branco, oprimeiro dos generais-presidentes dafase ditatorial. O que vemos, nesteparticular, por parte de setoresexpressivos dos proprietários de terra,é o propósito de abolição dos mínimosdireitos dos trabalhadores rurais.

O processo eleitoral, como sabemos,deu origem a uma Constituinte demaioria conservadora. EstaConstituinte tem realizado seustrabalhos em meio a uma mobilizaçãodos vários estratos sociais como nãohouve em nenhum caso das outrasconstituintes de nossa história. Nestesentido, recordo que a Constituinte de1946 foi centro dos debates políticos eos temas discutidos nas comissões eno plenário recebiam repercussão naimprensa. Em poucos casos, todavia,houve mobilização de entidadespopulares, mobilização realmenteexpressiva. Não existia ainda, naquelaépoca, esta rede, já significativa, deentidades de base, de bairro, sindicais,eclesiais, e de várias outras correntesque se formaram nestes últimos anosno País. Empresários urbanos eproprietários de terras, muitas vezesos mesmos do ponto de vista dasfirmas ou pessoas jurídicas, já não

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confiam somente nos políticos e nosseus Partidos, que eles ajudaram aeleger, e encarregam entidadescorporativas de representá-los noplano político. Assim, no caso dosproprietários de terras, sobressaem aSociedade Rural Brasileira e a UniãoDemocrática Ruralista, surgidaexatamente em tempos recentes, comuma atuação extremamente agressiva,na defesa da intocabilidade de todosos privilégios da propriedade rural.No caso dos empresários propriamenteurbanos da indústria e dos setorescomerciais bancários, financeiros etc.,criou-se a União Brasileira dosEmpresários, como sua principal emais autêntica representante, não sóno plano corporativo, mas também nopróprio plano político. Se levarmosem conta o início de um ciclorecessivo agora, as enormesdificuldades do governo Sarney paraconter os efeitos do início derecessão, como, por exemplo, oprocesso inflacionário recrudescente eo agravamento da questão da dívidaexterna, os atritos com os interessesimperialistas norte-americanos e aprópria falência política e moral, seconsiderarmos todos estes fatores,estaremos dentro de um quadro emque possibilidade de um novo golpemilitar se torna objeto de conjectura.Aí está para confirmá-lo arevivescência da direita, que volta ase mobilizar e que afrontosamente semanifesta, não nos conciliábulossecretos, mas nas associaçõesregistradas em cartório de entidadesvelhas e novas com figuras tambémvelhas e novas.

Isso seria uma demonstração daincapacidade da classe dominanteburguesa de governar senão pelacoerção extremada? Da suaincapacidade de governar através deum regime que permita margemconsensual ampliada, um regimedemocrático, em que as classessubalternas também possam competire disputar ideologicamente com aclasse dominante?

Esta é uma pergunta que apenas

lanço, porque não pretendo ter aresposta para ela. Não penso,tampouco, que estejamos diante dedesenlaces inevitáveis, mas diante deum leque de probabilidades. Creio queo que há de mais perspicaz na classedominante — seus políticos maisclarividentes — compreende atemeridade que seria a reversão para acoerção extremada por uma segundavez, neste final do século XX. Porquea ditadura militar instaurada em 1964pôde se retirar do proscênio através deuma transição que não eliminou atutela militar e que não arranhou aimagem das Forças Armadas, não lhestirou nenhuma das prerrogativasadquiridas, exceto a de seapresentarem como patronosostensivos do País. Os políticos maisperspicazes da classe dominanteconsideram a reversão uma soluçãotemerária. Consideram que a soluçãomais condizente com seus própriosinteresses seria a de prosseguir noprocesso da democraciarepresentativa, com uma Constituiçãoconservadora. Um conservadorismoque chamarei de moderado, porém quepermitirá certo grau de competiçãoideológica entre a classe dominante eas classes subalternas, nos quadrosdemocrático-burgueses.

Não há duvida, fica a indagação dequal a perspectiva que, no final dascontas, prevalecerá. De qualquerforma, a única coisa que possoprefigurar, ou desejar que assim seja,é a de que a esquerda, se tiver deenfrentar futuros ciclones, futurasreversões coercitivas, saia desteprocesso, não enfraquecida como saiuem 1985, consideravelmenteenfraquecida pela derrota em 1964 epela derrota da luta armada de 1968 a1974. Pelo próprio processo socialdos últimos anos, peloamadurecimento de suas lideranças,pelo aprendizado com as derrotashistóricas, pois as derrotas servempara ensinar, esta esquerda poderá sairfortalecida, e capaz de iniciar umprocesso realmente profundo detransformação social.

Jacob Gorender é jornalista, historiador autodidata e professor-visitante doIEA em 1989.