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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo XII (73 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo XII

(73 a.C.)

Maria Galito

2017

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Capítulo XII

681 AUC

Eneias fugiu de Troia, passou por Cartago e meteu-se em aventuras antes de fundar Alba Longa. César também deu voltas para chegar ao destino.

César regressou a Roma no ano em que Crasso e Catilina foram absolvidos de todas

as acusações, no processo das vestais. Porque Cota morreu.

O tio de César exercera o consulado dois anos antes. Foi censor, mas abdicou do cargo por pressão dos tribunos da plebe. Partiu a galope para a Gália, na categoria de procônsul. No regresso a Roma, celebrou um triunfo mas, no dia da marcha, uma velha ferida abriu-se e a escoriação infetou. Dessa lesão acabou por falecer. Foi tudo muito rápido.

Tive pena da sua má sorte. Eu gostava de Cota. Rutília, a mãe dele, partiu para a Grécia após o funeral do filho, para junto do irmão e esta foi a última vez que ouvi falar dos dois.

No colégio dos pontífices, Cota foi substituído por César. Celebrou-se uma assembleia para dar as boas vindas ao novo membro da equipa e, no dia combinado, segui as minhas colegas até à Curia Regia.

Segundo me disseram, César foi o primeiro a chegar. Estava entusiasmado. Conseguira cumprir um sonho antigo que ele alimentava desde os quinze anos: entrar para o colégio de pontífices! Eu estava feliz por ele. Também tremia como varas verdes!

César, até de costas, era atraente! Caminhei em sua direção, mas sentei-me com as vestais. Até ousar mirar em sua direção. Uns olhos de águia pregaram-se a mim e eu esqueci-me de respirar. Baixei as pestanas, engasguei-me e tossi. Tentei controlar os nervos, virando-me para a parede, até recuperar a compostura.

Caros pontífices sejam bem-vindos a mais uma assembleia do nosso colégio. Metelo Pio, o nosso líder, envia-nos cumprimentos da distante frente de batalha.

Como Metelo Pio se mantinha ausente, foi Mamerco quem pediu um aplauso para César. Este agradeceu. Foi cordial nas palavras que dirigiu aos colegas. Manteve a discrição e não fez espetáculo. A sensação era agridoce, por ter sido conseguida por cooptação, pela morte do tio e não por votação, como anos antes. Seja como for, ser admitido oficialmente no colégio de pontífices era uma grande vitória!

Foram atribuídas a César as incumbências gerais do culto de Jove. Enquanto ele vivesse, embora não tivesse sido ungido, ninguém podia substituí-lo no cargo de flâmine de Júpiter. O que originara um imbróglio político e religioso indeslindável, arrastado pela barriga desde os tempos de Sila. Desta vez, porém, o colégio optou por uma solução mista.

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O novo templo ainda estava em reconstrução e as instalações residenciais também. Quando um dia estivessem acabadas, não podiam ser ocupadas por César. Mas os rituais ficavam sob a sua supervisão; pois alguém tinha de gerir os dinheiros públicos afetos às cerimónias de Jove e assegurar que os cultos eram cumpridos conforme as regras. Ele aceitou a incumbência sem mais comentários mas, fisicamente, exultava áurea triunfante!

César é um arrogante! – Sussurrou Catulo, sentado atrás de mim.

Então, conta lá as tuas aventuras. – Pediu Mamerco.

Com todo o gosto. – Prontificou-se César.

E que voz viril ele tinha! Exalava pulcritude. Como um bom vinho, ganhara maturidade com a idade. Suspirei, enrolando no dedo num caracol de cabelo. Só não comecei a voar porque não tinha asas! Belisquei-me para acordar.

Ouvi dizer que foste capturado por piratas, é verdade? – Quis saber Fábia.

César fez um resumo interessante e apelativo sobre as suas façanhas nos mares! Falou com voz de orador, impetuosa e poderosa. Confessou ter sido capturado em Farmacussa, uma pequena ilha no mar Egeu. Os ladrões do mar pediram resgate de vinte talentos pela sua libertação. Ele sentiu-se ofendido por os homens não terem exigido cinquenta. Ficou quarenta dias em cativeiro, na companhia do seu médico e de dois escravos graves. Quando o seu resgate foi pago, os piratas abandonaram-no numa cidade qualquer a leste. Irritado, reuniu uma frota para se vingar de quem o tinha ofendido, capturou os gatunos e mandou-os prender. Recuperou o dinheiro do resgate e foi ter com Junco, o pro-pretor da província da Ásia, para este punir os criminosos de acordo com as leis de Roma. Mas o governador parecia mais interessado no ouro apreendido. César deixou de confiar em Junco, não lhe comprou a fidelidade e ele mesmo mandou crucificar os piratas.

A seguir, partiu para a ilha de Rodes para estudar com o filósofo Mólon, um ex-professor de Cícero. Mas César tinha bichos-carpinteiros e não se acomodou à eloquência (monotonia!) da ilha. Ao ser informado que Luculo comandava tropas para bloquear os ataques patrocinados pelo rei Mitridates na região, organizou um pequeno contingente de homens, pagos às suas expensas e resolveu defender as cidades costeiras, de outros piratas e mercenários, tendo sido aclamado herói por cidadãos locais em função da sua coragem. César só interrompeu as suas atividades quando soube que o tio falecera. Regressou a Roma a tempo de se candidatar às eleições de tribuno militar.

Mas ele está armado em quê? – Perguntou Varrão, com alergia ao novo pontífice.

César é corajoso. Mas é verdadeiramente insuportável! Sempre a elogiar-se, como se fosse a pessoa mais importante do mundo. Não há paciência. – Julgou Isáurico.

Não suporto o seu nariz afiado ao vento. – Rematou Varrão, nas minhas costas.

As histórias do filho de Aurélia eram como as do falecido Mário. Acrescentavam sempre um ponto ao conto. Mas só irritavam a assistência se esta fosse invejosa!

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Como as coscuvilhices eram a alma negra da cidade, os pontífices divertiam-se a cascar em César com línguas viperinas, insultos e calúnias personalizadas, e vangloriavam-se de cometer o crime em nome do bem comum.

César deve pensar que tem o rei na barriga! – Escandalizou-se Catulo, cruzando os braços sobre uma pança de vinho e carnes doces. O orador parecia mouco aos múrmuros à sua volta e perguntou:

Uma vez que estive ausente três anos. Quero ficar a par do que tem acontecido na cidade. Poderei informar-me sobre leis e políticas públicas no Senado. Aqui no colégio pergunto sobre o processo das vestais. Ouvi dizer que duas sacerdotisas foram levadas a tribunal, é verdade?

Licínia e Fábia foram absolvidas. Crasso e Catilina também foram ilibados. – Rematou Mamerco. – Foram feitas as abluções e orações necessárias. Já se concluíram as atas e outras questões processuais. Caso encerrado. Podemos todos seguir em frente. César aquiesceu e avisou:

Subo hoje ao Capitólio, para ver os restauros do templo de Jove. Catulo supervisionava as obras e sentiu-se ofendido:

Eh lá! Eu estou a tratar do assunto, não preciso que metas lá o bedelho!

Podemos colaborar nas obras do templo de Júpiter. O teu pai era meu parente de sangue. Porque não haveríamos de dar-nos bem? – Foi a proposta de César.

Porque eu sou um optimate e tu és um mariano! O meu pai morreu por causa do teu tio! – Atirou-lhe Catulo sem paninhos quentes.

Eu não sou Mário e tu não és Lutácio. Já não vivemos em guerra civil e temos de aprender a conviver em prol da nossa República. – Retorquiu César, sem elevar uma sobrancelha. Ao falar parecia a avó dele, Márcia Rex.

Bom, está na altura de irmos todos para casa. – Anunciou Mamerco. – A minha mulher está à minha espera e eu tenho mais que fazer. A sessão está terminada.

Catulo bufou de irritação e Isáurico fez-lhe companhia até à saída. Mamerco foi-se logo embora. César aguardou pacientemente por mim. Mas ainda teve de esperar, pois a nossa vestal máxima não estava com pressa e eu não podia ir sem ela.

Cumprimentos ao novo colega. – Saudou Fonteia.

Que grandes aventuras, César! – Elogiou Fábia.

Bem-vindo. – Disse-lhe eu com um sorriso. Ele piscou-me o olho.

Discretamente, César convidou-me a visitá-lo no Capitólio dois dias depois. Nem aguardou por resposta. Eu não devia ter ido. Mas fui. Inventei uma desculpa sobre a necessidade de orar a Júpiter Optimus Maximus, para as obras acabarem mais depressa e pedir ao deus para proteger as vestais e a cidade. Para meu espanto, Fonteia aceitou a minha conversa. Nesse dia, eu estava com sorte!

Saí do átrio das vestais, numa hora que levantava menos suspeitas, na companhia de um lictor. Quando subimos ao monte sagrado, o guarda deixou-se ficar à espera, como era

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costume. Entrei num templo em reconstrução, que crescia em altura e comprimento, com o dobro do tamanho inicial.

O novo templo de Jove não era a pirâmide de Quéops, pois os romanos consideravam obsoleto tudo o que era egípcio! Mas Sila ambicionara o melhor para o edifício e para a decoração. Tanto que Catulo encomendara uma nova estátua de Júpiter, inspirada na de Zeus em Olímpia, conhecida como uma das sete maravilhas do mundo.

A empreitada enfrentara vicissitudes e o prazo, para as obras terminarem, fora sucessivamente adiado. Catulo implementara plano arrojado de reedificação, que ele ainda supervisionava ao sabor das emoções, que eram muitas! Portanto, o atraso estava para durar.

Espreitei as antecâmaras traseiras. Onde estava César? Suspirei de antecipação, rebolando as mãos, uma na outra. Hesitei, admitindo que devia partir. O que estava eu ali a fazer?

De repente, César apareceu. Puxou-me para dentro de um cubículo que trancou com toro de madeira. Sorriu-me enquanto sacudia o cabelo. Depois, colocou a lamparina de azeite num buraco da parede. Perguntou-me como eu estava e começou a despir-se. Desprovido de cerimónias, atirou o meu véu às urtigas. Foi então que ele perguntou se eu podia soltar o cabelo.

Bom, eu não consigo fazer as tranças sozinha e depois vão perguntar porque as desfiz durante o dia, quando até durmo com elas. – Expliquei, pois era a verdade.

Talvez um dia eu possa ver-te com o cabelo comprido, caído pelas costas. – Acrescentou, com voz sedutora.

Há tantos anos que não o uso assim…

Estás cada vez mais bonita. – Elogiou-me.

Obrigada, mas não sei…

Se eu era bela? Duvido! Mas César sabia escolher as palavras e eu estava derretida com o que ele dizia. Nos meus sonhos nem tinha pedido tanto a Júpiter Optimus Maximus. Mas por favor, deixem o homem falar!

O seu objetivo era descontrair-me, pois eu estava tensa e preocupada e não conseguia fingir o contrário. Mas ele mostrou-se apreciativo. Fez-me cócegas e eu deixei-me rir.

Vozes exteriores colocaram-nos sob alerta. Ele pousou o dedo indicador direito sobre os lábios. Pestanejei e aguentei em pé, colada ao seu corpo. Ficámos assim, sem trocar uma palavra, enlaçados, enquanto ele me afagava o rosto e eu respirava o cheiro da sua pele.

O coração de César batia a ritmo normal, pelo que não estava minimamente sobressaltado com a situação. Até juntou os seus lábios aos meus, num toque suave, antes de pousar a sua testa na minha, para que me sentisse segura e confiante nos seus braços.

Ouvi-o suspirar já nas minhas tranças, em silêncio. Mas como as vozes se haviam afastado o suficiente para não nos incomodarem, enrolou-se a mim. Só depois colocámos a conversa em dia.

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Então, foste capturado por piratas? Não sei se ele captou a minha desconfiança, mas resolveu confessar-se:

Vou explicar-te o que aconteceu. Mas tens de prometer-me que não contas a ninguém o que eu vou dizer-te.

Claro, César. Podes confiar em mim. – Garanti. Ele beijou-me a pontinha do nariz.

Com César, os factos tinham sempre duas leituras e a superficial não explicava metade da história. Portanto, quando o barco dele foi capturado por piratas da Cilícia, César tinha acabado de sair de Roma, acossado pelos inimigos que tinha na cidade. Portanto, os ladrões do mar não eram a única ameaça (nem a pior) já enfrentada por ele.

Os piratas da Cilícia eram aliados secretos de Sertório. Havia, entre eles, negociações, concessões, direitos de passagem, troca de prata e de escravos. César correspondia-se com o seu amigo, estacionado na Lusitânia. Ele não conhecia aqueles homens em concreto, mas dispunha de informação privilegiada capaz de manipular a situação a seu favor e resolveu aproveitar-se da situação. Não sei se chegou a fazer chantagem com os piratas, mas admito essa possibilidade.

César estava falido e precisava desesperadamente de dinheiro. Resolveu sacá-lo ao rei da Bitínia, um aliado da família desde que Júlio fora governador na província da Ásia. Deu para depreender que o jogo tinha regras e que quem melhor as dominava, vencia.

Enfrentaste a situação sabendo que não corrias risco de vida. – Concluí.

Risco havia! Eu podia ter morrido. Mas preferi ocupar o meu tempo… a testar a qualidade dos meus versos com os piratas… para saber se teria futuro na literatura!

Pois... Ele olhou-me com olhos de águia e gabou-se:

Os piratas pediram um resgate de vinte talentos. Fui valente e garanti-lhes que valia cinquenta! Os meus amigos foram enviados até Mileto para pedinchar ao rei da Bitínia e ele pagou o resgate. O estratagema estava bem montado. O problema é que Junco, ao invés de enviar barcos para capturar os piratas, quis ficar com o meu ouro. Aquele que me dera tanto trabalho a amealhar. Não era justo! – Argumentou, com a sua lógica característica. – Assim os piratas teriam permanecido vivos para contar a história. Não podia ser! Fui obrigado a agir depressa e virei o jogo a meu favor.

Ficaste com os vinte talentos da diferença?

Não, Emília fiquei com tudo. Com os cinquenta talentos do meu resgate e com os saques que eles guardavam nas enseadas. – Rematou, despudorado. A história não era das mais éticas! Mas ele sobrevivera ao perigo, podia ser pior.

Gostas da carreira militar? Não tens medo? – Indaguei ao fim de algum silêncio. Ele sorriu com desprendimento:

Não se pode ter medo da morte.

Dizes isso com orgulho mal disfarçado. – Alertei e ele não calou a sua opinião.

Sou arrogante com quem ousa contrariar-me ou dar cabo de mim! O tio Mário dizia-me que o ataque é sempre a melhor defesa. – Asseverou. Depois agarrou-

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me pelos braços e fez questão de afirmar. – Também não tenho medo de estar aqui contigo, porque gosto de ti e não consigo, não quero estar longe da minha Caia.

Fiz da sua sombra, espelho e deixei-me rir. Ele enrolou o dedo num caracol rebelde de cabelo que me espreitava na testa. Quantas vezes eu sonhara em voltar a vê-lo? Eu não podia queixar-me dos deuses quando estava feliz.

Ainda bem que voltaste são e salvo para o pé de mim. – Reconheci.

Estamos juntos outra vez. Júpiter Optimus Maximus protege-nos, estou convencido disso. – Declarou. Beijou-me o pescoço e saboreou-me os seios. Senti necessidade de o alertar para as horas:

É quase noite. Tenho de regressar ao átrio das vestais. Ele não me largou. Até me perguntou:

Espera. Conta-me como foi o processo de acusação das vestais.

Nem me lembres disso!

Conta-me tudo, Emília.

Fiz-lhe a vontade. Resumi os acontecimentos mais relevantes e fiz referência à lógica de Catão, que servira de base às acusações:

Durante o processo aberto às vestais, no colégio de pontífices, antes de Fábia e Licínia serem absolvidas, Catão levantou a lebre sobre um caso judicial que condenou três sacerdotisas há quarenta anos. Eu e a minha colega consultámos documentação da época e ficámos perplexas com o que aconteceu a Emiliana, Liciniana e Marciana, a última das quais… era da família da tua avó. Sabes alguma coisa sobre o assunto? Ele passou a mão pelo meu rosto, com carinho.

Posso partilhar contigo o que sei, se quiseres. – Avisou.

Sim, para ver se eu consigo entender o que se passou.

Conversámos sobre o tema e esta foi a conclusão a que chegámos. Emiliana não era a mais famosa das três vestais, nem a mais velha. O que, francamente, me surpreendeu!

Liciniana, nove anos antes de ser condenada, já se envolvera em polémica, ao dedicar um altar a Bona Dea, no Aventino, sem pedir autorização ao pontífice máximo. Ele, embora seu primo, não a apoiou nas suas atividades e se virou contra ela, após ter sido pressionado com um Senatus Consultum (que era assunto sério!). O pretor encarregue do assunto, pelo Senado, era um Júlio. Mas o líder da religião resolveu o problema, ao não reconhecer o altar e este foi deitado abaixo. Num período de tensão entre optimates e populares, a rapariga foi muito criticada e não terá engolido mal a afronta. Mas o caso passou.

Liciniana mandara edificar um altar a Bona Dea, porquê? Teria perdido a virgindade e compensado a sua culpa com ato piedoso? Era difícil saber. Até porque ela e Marciana só foram arrastadas para o túmulo por pressão dos tribunos da plebe; e de outro pretor, escolhido após o quaestio, condenar Emiliana, por unanimidade de votos no colégio de pontífices.

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Sabe-se que Emiliana nutria sentimentos pelo irmão de Liciniana. Este foi o primeiro casal a formar-se. Depois, os irmãos de ambos apaixonaram-se, iniciando a sua própria relação. Mas não se encontravam paralelamente. Os quatro calavam segredos em comum e, portanto, marcavam dias em conjunto, para dar menos nas vistas, dando como desculpa questões familiares.

Quem era o amante de Márcia Rex. César não sabia. Mas deu a entender que podia ser o pai de Hélvia. Os textos não eram explícitos. Mas o cavaleiro tornara-se indiscreto após a morte da filha, ou seja, a dada altura confessou o que sabia.

Marciana tinha sido a primeira a ser descoberta? De acordo com os registos fora a última. Sendo assim, o que acontecera?

Emiliana e Liciniana tinham perdido o controlo à situação. É preciso recuar no tempo para perceber porquê. Tudo começou quando Vetúrio descobriu o segredo, pois era amigo do irmão de Licínia. A família dela sempre tivera negócios com a classe dos cavaleiros. O referido equestre era um conquistador de mulheres e não se coibiu de chantagear Emiliana, que era muito bonita. Quis-se aproveitar dela. A vestal atrapalhou-se e, na tentativa de calar o homem, aceitou fazer o que ele queria. Partiu do suposto que Vetúrio não se arriscaria novamente, pois a situação era perigosa também para ele. Mas nunca se deve sucumbir à chantagem! Ele pediu mais.

Ao descobrir que outros homens cobiçavam Emiliana e que só não tentavam a sua sorte por ela ser uma vestal, Vetúrio resolveu tirar rendimento da situação e começou a prostituí-la com homens de elevada condição social. Ele servia de moeda de troca entre a sacerdotisa e os amantes – incluindo António Orador.

Liciniana e Emiliana ainda se mantinham em círculo fechado, circulando entre homens demasiado influentes para serem condenados. A primeira era prima do pontífice máximo. A segunda tinha relações com parentes da amiga. António Orador eram um dos melhores advogados da época e poucos se atreviam a desafiá-lo em tribunal. Ele tinha muito a perder e tendia a encobrir a situação.

Emiliana e Liciniana corriam perigo. Mas foi um prodígio que desestabilizou esta balança instável. Antes de morrer, Márcia Rex contou ao neto que, de repente, a terra ficou rubra e o céu abobadado pelo fogo, do qual começou a cair sangue e leite. Um círculo formou-se em torno do sol! Os romanos ficaram aterrados. Julgaram que o mundo estava prestes a acabar e começaram a exigir respostas aos sacerdotes! Os áugures foram consultados e ninguém sabia explicar o prodígio.

Associou-se o fenómeno à morte de Hélvia, pois tinha havido uma grande tempestade, com raios e coriscos, que pareciam ter provocado a morte da rapariga. O pai da jovem convenceu-se que Júpiter o tinha castigado ou que Vetúrio lhe matara a filha, por não ter cedido à chantagem.

Emiliana era claramente o elo mais fraco desta história. Terá sido abandonada pelo irmão de Liciniana e perdeu o rumo. Deixou-se arrastar pela superstição, julgando que a deusa queria puni-la. Terá concedido favores a outros homens que um Vetúrio, cada vez mais

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ambicioso, lhe impingia. A dada altura, já havia demasiadas pessoas envolvidas no esquema.

Alguém precisava salvar as vestais e os seus amantes mais poderosos. Portanto, Vetúrio precisava ser controlado. Alguém deve tê-lo tentado matar. Quem? Provavelmente o primeiro amante de Liciniana, que era também irmão de Emiliana, pois foi o seu escravo que foi capturado e chibou o conluio. O colégio de pontífices podia recorrer à tortura para arrancar confissões. É por isso que os crimes das vestais eram oficialmente delatados por homens não livres, pois era difícil aplicar a mesma justiça a cidadãos.

O celtibero era um prisioneiro de guerra. Não era fiel ao dono e aceitou contar o que sabia, a troco da liberdade. O seu desejo foi-lhe concedido. Por ele ter contado a verdade? Por ele ter sacrificado quatro pessoas no fórum boário? O escravo matou dois gregos e dois gauleses e enterrou-os vivos, para purificar as vestais e os seus amantes. Isso era claro!

Para encontrar as últimas respostas, foi necessário pesquisar nos registos do templo de Saturno, que tinha anais com informação diversa. Ao que parece, um parente de Catão não fora bem-sucedido na guerra contra a tribo dos Escordiscos na Macedónia – um povo que também derrotara um parente de Luculo e o avô de Pompeu (mas este último quatro anos antes). Os Escordiscos tinham ascendência gaulesa. A Macedónia ficava a norte de Atenas. O escravo celtibero era sobrevivente dos massacres perpetrados pelo avô de Crasso na Ibéria, portanto, não lhe custou minimamente vingar-se. Até pode ter sido incentivado a fazê-lo pelos decênviros dos factos fecundos, após a consulta que fizeram aos livros sibilinos.

Que teia tão complexa! Não admira que tenha sido delatada. Era sufocante para muita gente. – Conclui perante César, no dia em que nos reencontrámos. – Eram três casais apaixonados. De repente, deu para o torto. E se nos acontece a nós?

Não vai acontecer. Somos só dois. Tratei de o confrontar com o que podia ser uma fuga de informação:

A tua tia Júlia sabe? Numa noite de Bona Dea, ela fez-me uma conversa estranha.

Juro que não lhe contei. – Assegurou-me.

Tens a certeza?

Nada fiz para ela adivinhar a verdade. Talvez seja intuição feminina. Ela conhece-nos desde pequenos. Mas nada sabe de concreto, garanto-te.

Tem cuidado. – Pedi, pois tínhamos a cabeça a prémio.

Ponho as mãos no fogo pela minha tia! Mesmo que ela suspeite, cala-se.

Até pode ser. Mas não podes brigar mais com ela, não é? – Trocei. Ele riu-se, como quem perdeu o medo ao perigo. Mas eu ainda o sentia.

Nunca vou deixar que nada de mal te aconteça, meu bem. – Garantiu. – Vamos combinar uma estratégia conjunta, para controlar os imprevistos, queres? – Perguntou. Aquiesci e escutei as suas instruções com atenção, disposta a segui-las. – Eu vou investir no período eleitoral e candidatar-me a tribuno militar. Durante os próximos meses, é melhor não nos vermos. Seria demasiado arriscado.

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Já é imprudente estarmos aqui hoje. Pensando bem, eu nem devia ter vindo. – Reconheci. Há vinte anos que fazia uma brutal gestão das emoções. Conformava-me às condições disponíveis. Ele surpreendeu-se com o meu desapego:

Ora essa! Não tinhas saudades minhas? – Perguntou. Estava a testar-me. – Como assim, não devias ter vindo? Claro que sim!

Fingi-me desentendida. Ele riu-se no meu peito. Assim nos despedimos e fui-me embora.

Durante a campanha política, mantive-me no santuário de Vesta, evitando a confusão dos pregões, dos discursos alvoraçados, da música alta, da propaganda e das falsas promessas. Eu preferia o silêncio das paredes sagradas ao ruído ensurdecedor da turba volátil aos apupos. Fonteia fazia-me companhia. A ela perguntei:

Quando é que o pontífice máximo regressa a Roma?

Não sei. – Respondeu secamente, a costurar a sua roupa.

Julgava que o cargo de pontífice máximo era entregue a senador que vivesse na cidade. Mas Metelo Pio está sempre longe a comandar exércitos.

O homenzinho é gago! É uma sorte que ele não esteja connosco. Eu gosto mais de Mamerco, se queres que te diga. – Foi a sentença dela. Ao espreitar o fogo de Vesta, pediu-me. – Coloca mais lenha na lareira, se faz favor. – Solicitou e eu obedeci, enquanto ela costurava o linho com uma agulha de ferro!

Não lhe apetecia conversar. Respeitei a sua vontade. Fixei o olhar na lareira e pensei em César. Os nossos encontros, sempre tão agradáveis no Capitólio, superavam as minhas expetativas. Eu não me sentia carente ou a morrer de saudades, pois sabia que ele entraria em contacto comigo, mais cedo ou mais tarde. Bem dito bem feito. Voltei a vê-lo após as eleições, que ele ganhou.

Venceste as eleições para tribuno militar, parabéns. – Disse-lhe.

Dez anos depois do que é normal, mas está bem. – Queixou.se.

Tribuno militar correspondia ao primeiro degrau do cursus honorum. Era cargo fundamental para voos mais altos. César gostava de vencer desafios, mas não parecia especialmente satisfeito com o êxito obtido. Deitado sobre a manta que trouxera de casa, mantinha-se calado de olhos fixos no teto. Eu parecia um peixe estendido sobre o seu corpo, com as barbatanas ondulantes e felizes. Estávamos os dois cansados de roçar um no outro.

O que vais fazer antes de ir para a guerra? – Perguntei pestanuda, agitando as barbatanas que eram as pernas. Recebi um beijo de recompensa.

Vou ser advogado de acusação de Junco que regressou da província romana da Ásia. Odeio aquele homem. Pulha! Incompetente! Ele alongou-se nos insultos ao ex-chefe. Quando terminou, perguntei-lhe:

É trabalho pro bono ou vais receber honorários?

Vão pagar-me, claro! – Explicou com regozijo. Tentou beijar-me e eu não deixei. Quis agarrar-me e eu afastei-me. Ele agarrou-me e deixámo-nos rir.

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César e a Vestal 283 Maria Galito

Aurélia vai ficar contente. Já lhe contaste?

A minha mãe não quer que eu regresse ao tribunal de extorsão. Agora que venci as primeiras eleições, ela gostaria que eu assumisse menos riscos políticos. Os advogados fazem muitos inimigos. Senti um calafrio.

Aurélia é uma mulher inteligente, talvez devesses seguir o seu conselho.

Não posso, Emília. Gastei o que tinha na campanha eleitoral. Contraí dívidas! Não posso deixar a minha família passar dificuldades. – Argumentou. Tentei compreender a sua posição e observei-o com ternura:

És um paterfamílias… tão responsável! – Elogiei com lábios pulposos. Ele riu-se. Eu despedi-me. – Mas tenho de voltar ao santuário.

Fica mais um pouco. O Senado dá-me cabo da paciência. Se não fosses tu, eu já tinha pirado do juízo! – Confessou, embora eu soubesse que exagerava.

Eu não posso ficar. E se desconfiam? – Hesitei, na tentativa de me libertar.

Se eu não te deixar ir, o que acontece?

Mordo-te!

Envolveu-nos seus braços. As cambalhotas eram muitas e ele animava-se comigo. Mas a melhor parte é que nos divertíamos. Não era drama, nem obrigação, como acontecia com tantos casais em Roma. Estávamos juntos porque verdadeiramente apreciávamos a companhia um do outro.

Digamos que ainda levei algum tempo a descer ao fórum. Regressei ao Capitólio outros dias para aprender mais leis de Vénus; que eram muitas e eu estava sempre desejosa de aprender mais uma. César também gostava de estar comigo pois divertia-se com as coisas que eu dizia e fazia, e assim libertava-se das tensões em que vivia.

O processo contra Junco começou no mês seguinte. César tratou de defender as alegadas vítimas do ex-governador da Ásia, com recurso a discursos incisivos e factuais. O que eu não sabia é que uma delas era Nisa, a filha do falecido rei Nicomedes. De facto, ela era a representante máxima dos interesses da Bitínia, território que o monarca legara à República romana, em testamento, após a sua morte.

Aquele tribunal assistiu a tudo! Desde a primeira hora que o povo se deparou com um baixo nível de chincalha política. Os discursos em defesa de Junco eram puro lixo. A turba parecia gostar da novela, entretida com a troca de insultos.

A popularidade tinha o seu lado perverso. Os romanos apoiavam os seus benfeitores, mas também adoravam a quem lhes desse espetáculo. Um justo poderia lacrar-se no orgulho e acabar punido pelo público, porque a honra era considerada altiva e a populaça não gostava de cara feia!

Em contrapartida, um culpado podia ser enaltecido pelas massas se fingisse arrependimento, carpisse ou lamentasse a sua sorte, pedisse ao povo que o salvasse e este adorava histórias fatelas. Com base nesta lógica, um mau governante de província podia

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ser enaltecido se distribuísse dinheiro pelas pessoas ou organizasse grandes espetáculos em Roma!

Os cidadãos adoravam bisbilhotices. Se os gregos enchiam os teatros para ver tragédias, os romanos preferiam comédias e entretinham-se com a degradação moral dos senadores. Quem vivia mal, ficava obcecado com a rebaixaria dos privilegiados. Sentia-se vingado quando os mais ricos faziam figuras tristes em público.

Licínia e Fábia eram apupadas em tribunal, como não eram em cerimónias religiosas, pelo que evitavam aparecer. Popília e Perpena eram assíduas nas sessões e apreciavam os discursos, sentindo especial prazer em sentar-se nos lugares a que tinham direito enquanto recebiam os cumprimentos oficiais dos colegas de colégio e de alguns políticos.

Devias ter visto César a defender a sua dama.– Comentou Perpena, ao regressar do tribunal, para me contar as últimas novidades.

É mulher bonita? – Perguntei, preocupada.

Nisa vinha bem vestida, com roupa debruada a ouro. Estava maquilhada e os homens, em torno do tribunal, elogiavam-na repetidamente.

Com que então a nova rainha da Bitínia está em Roma. – Murmurei com ciúmes.

Leste o texto da tabuinha de cera que circulava pela assistência, Perpena? – Perguntou Popília, que parecia ter mais informação.

Sim, está aqui: iniciou o serviço militar na Ásia sob ordens do pretor Minúcio; enviado por ele à Bitínia para mobilizar uma esquadra, deixou-se ficar na corte de Nicomedes, não sem que se espalhasse o boato de ter-se ele prostituído ao rei e rumores aumentaram quando logo a seguir voltou à Bitínia sob a alegação de cobrar uma dívida de um cliente.

Isso é lixo político! – Exclamou Perpena. As acusações eram graves. Tentei manter a compostura:

Mostra cá, se faz favor. – Pedi-lhe, arrancando a peça das suas mãos.

César quer, para si, um reino de clientes! – Advertiu Popília, que era optimate. – Cícero até lhe chama rainha da Bitínia. O advogado gritou, para risota geral: Não digas mais, por favor, todos sabem o que o rei te deu e o que tu lhe deste!

Não acredito nisso. – Foi a opinião de Perpena, que era uma popular. – Nos tribunais vale tudo, até tirar olhos! A ideia é fazer esquecer factos que são simples, O o rei Nicomedes incumbiu Roma de proteger a Bitínia do rei Mitridates, na condição da nossa República colocar a filha Nisa no trono, para manter, no poder, os seus descendentes! César explicou tudo muito bem no seu discurso de hoje.

No dia seguinte, ao espreitar a via-sacra, César passou por mim sem me saudar, inserido num cortejo de asiáticos liderados por uma mulher sobejamente vestida, de cabelos muito bem penteado e coroa de ouro na cabeça. Era uma mulher bonita. Magnânima! Caminhava com confiança e determinação. Ele parecia encantado com ela e só lhe faltava salivar a seus pés!

Esbugalhei os olhos de ciúmes e fui incapaz de conter a raiva por os ver juntos, em Roma, a passear junto ao santuário de Vesta!

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Subi ao Capitólio cinco dias depois, para pedir explicações. Encontrei César sentado na penumbra, de olhar brilhante num cubículo sem candeia acesa. Ele estava de mau humor. Encostado à parede, de pés cravados no chão e olhar visceral, pensava com a energia das fúrias. As narinas abriam e fechavam ruidosamente. Aquele seu ar já teria assustado muita gente! Eu não a temia. Conhecia bem as suas mudanças de humor. Ou assim pensava eu. Havia cada vez mais ódio a faiscar daqueles olhos de águia!

Eu vinha irritada com ele, mas moderei o passo. Pousei a lamparina de azeite no parapeito. Sentei-me. Endireitei o corpo, coloquei as mãos sobre o regaço e esperei. Em todo este processo evitei o olhar de César, para dar-lhe espaço e tempo de se acalmar sozinho, pelo que não lhe interrompi a meditação. Ficámos os dois em silêncio. Molhei os lábios e olhei em volta observando os barrotes de madeira e a rugosidade das paredes. Revolvi as mãos no regaço. Observei que eram pequenas, femininas, sem calosidades nem secura. Até que ele explodiu:

Estou furioso! – Clamou, não num grito, mas num rasgo de garganta. Respirei fundo.

A propaganda dos teus inimigos está ao rubro. Lamento. – Comentei.

Eles não podem fazer isto comigo! Eu sou um patrício romano. – Revoltou-se. – Se o meu tio Mário fosse vivo chicoteava-me, só por os rumores circularem no fórum!

O falecido Mário era famoso pela disciplina férrea que impunha às legiões, no que concerne (ao que chamava de) aos crimes de luxúria e de indolência. O homem de Arpino nem à família poupava! Tanto que a morte de um dos seus sobrinhos ficara impune.

Ao que parece, um legionário fora chamado à tenda do sobrinho de Mário, a quem não podia negar uma ordem. Mas resistiu com veemência à falta de compostura do seu superior hierárquico. Sentindo-se acossado e para defender-se dos abusos físicos, matou-o. Quando foi levado a tribunal marcial, o comandante escutou a história e elogiou-lhe a atitude perante o exército. Não o condenou. Até o condecorou. Fez dele um exemplo de coragem e virilidade. Portanto, o homem de Arpino levava o tema muito a sério. Nunca perdoava falhas desse tipo e educara César com base nesses princípios.

As alegações são verdade? – Perguntei.

Não. É tudo mentira! – Garantiu e eu acreditei.

O teu tio Cota contou-me, há uns anos, que te deitaste com a filha de Nicomedes.

Sim, é verdade. Mas isso foi há muito tempo.

Agora estás a defendê-la em tribunal.

Para ela ser rainha em terra do pai. – Explicou. – Se eu a conseguisse colocar no trono, ficar-me-ia agradecida e eu, um dia, poderia ser um homem rico. Infelizmente, há muitos cães a um osso. Os recursos da Bitínia são cobiçados por homens mais poderosos do que eu, dispostos a tudo para os reclamar para si!

Está bem, já percebi. – Respondi, nem sei bem como. A minha cabeça rodava.

César fizera ouvidos moucos ao bom senso da mãe que o alertara para não voltar à barra dos tribunais. Ele insistira em enfrentar os inimigos e agora reclamava das consequências.

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O rei Mitridates esfola pessoas como se fossem coelhos! Os povos da região caem para o lado, só de ouvir o nome de quem é imune a venenos. A Bitínia preferiu incorporar-se na República romana, a arriscar uma guerra com os vizinhos do Ponto! A minha obrigação é ajudar no processo de anexação e está a ser realizada sob a minha supervisão, para eu ter a certeza que ganho alguma coisa com o assunto. – Esclareceu, sem poupar palavras. – Nisa ajudou-me quando mais ninguém o fez. Graças a ela e ao ouro da Bitínia, a minha família pode hoje viver nalgum conforto. Defendê-la é uma questão de honra! Eu também tenho dívidas para saldar…

Repito, já percebi. Eu sei que a tua situação é difícil, César. – E suspirei. Ele agora estava furioso comigo e lançou-me ferrões de vespa:

Estás a fazer-me uma cena de ciúmes, Emília. Não tens esse direito.

Tenho sim! Sempre estive do teu lado e mereço consideração! – Exclamei, julgando-me coberta de razão. Fortemente dominada pelas emoções, fui incapaz de controlar a minha ira. – Tu já não estás na Bitínia. Mas eu vi como passeavas Nisa pela via-sacra. Eu vi-te do santuário! Vai-te lixar! Arrepender-me-ia de soltar a língua, pois César não me perdoou a ousadia:

Já me chega uma esposa e essa é Cinila! – E disse-o com todas as letras. Levei a mão ao peito. Por momentos o silêncio foi absoluto.

Mas eu… é que sou a tua Caia.

Oh, Emília. Já não temos cinco anos! – Desdenhou, com paternalismo. Engoli em seco. Estaria ele a falar a sério?

O quê?

Não preciso de mais ninguém a chatear-me hoje! Vê se cresces e apareces! Mais do que as suas palavras, que eram frias, o seu corpo afastava-se de mim.

Não podes falar assim comigo. – Defendi-me. – Estou sempre disponível para ti, desafio as convenções para estar aqui contigo. Tens de ser amável para mim e… César deixou bem clara a sua posição:

Hoje não estou num bom dia. Não vim aqui para ouvir queixas e recriminações e birras de garota mimada!

Mas…

Estou a gastar mal o meu tempo contigo! Vê se percebes, nós não somos casados e tu não és a minha Caia! – E foi-se embora.

Deixou-me sozinha, cravada com setas de voz ríspida. Eu ouvira o que ele me tinha dito? Cheguei a duvidá-lo. Mas talvez fosse verdade. Era eu dispensável na sua vida? Ele nunca falara assim comigo antes! Assustou-me e desiludiu-me ao mesmo tempo. Fiquei amorfa, atordoada, sem conseguir raciocinar mais nada.

Abri a porta e parti, engasgada, de orgulho ferido, decidida a não olhar mais para a cara dele! Cavalguei nas pernas para fora do templo de Jove e desci do Capitólio até ao fórum, a galope do meu pensamento arrebatado! Sentia-me tão defraudada, que fui diretamente para o átrio das vestais. Enclausurei-me no cubículo de sacerdotisa e chorei.

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César ferira o âmago do meu ser. A dor era tanta, que eu não conseguia enfrentar o que sentia. Precisava de algo para entreter a mente. Por isso, dois dias depois, entrei no templo de Saturno. Pedi ao funcionário do Tesouro que me deixasse consultar os arquivos. Ele já me conhecia e eu sentei-me onde só havia papiros enrolados em estantes de madeira.

Pesquisei nos anais da cidade, que incluíam registos de nascimento, casamento e óbito dos romanos. Acabei por me esquecer das horas mas, antes que a porta do edifício fechasse ao público, encontrei informação relevante.

O que tinha acontecido, em Roma, na época das acusações feitas a Liciniana, Emiliana e Marciana? No ano anterior à primeira sentença, Mário assumira funções de pretor; pelo que ficou encarregue da justiça em Roma, após dois anos de horrível campanha eleitoral! Venceu as eleições em condições duvidosas, com acusações de suborno. Antes já tentara ser edil, sem sucesso. Portanto, transitou de questor a pretor, o que não era insólito, mas raro para um homem-novo. Mário foi enviado como propretor para a Hispânia Ulterior.

Mário reclamou vitória na guerra da Numância (Hispânia Citerior). O conflito ficava fora da sua jurisdição, mas afetava toda a Ibéria. O comandante fez muitos cativos, entre os quais o celtibero que futuramente delataria as vestais. Segundo os documentos consultados, o escravo foi vendido em mercado aberto e comprado pelo tio de Mamerco. Não admira, portanto, que ele tivesse raiva aos romanos!

Mário fez batalhas à pressa e regressou a Roma antes do fim do ano de 640 AUC. Portanto, estava na cidade por altura do julgamento de Emiliana. Porquê? Ao que parece, ele já não era necessário a Ocidente, estava em negociações com Numídico e tinha-se comprometido a fazer a guerra na Numídia (África).

Mário era um equestre. O ódio dos nobres aos cavaleiros podia justificar-se, em parte, pela ascensão meteórica da raposa de Arpino. Nesta fase ele ainda não casara com Júlia, mas já era detestado pelos Cecílios.

Um dos membros da Gens de Metelo Pio era cônsul em 641 AUC e, como vencera as eleições algum tempo antes, já influenciava as decisões governamentais a um mês de assumir funções. É verdade que Mário fora convidado por Numídico para lutar em África, mas nada garantia que o cônsul seu primo estivesse disposto a aturá-lo. Para os nobres, os equestres tinham de ser travados e rapidamente!

Podia a ascensão de Mário ter alguma coisa a ver com a tragédia das vestais, mesmo que indiretamente?

Uma surpresa! Mânio constava das listas de 641 AUC como filho adotivo! Eu julgava que apenas Mamerco o era! Emiliana era certamente irmã do pai deles. Haveria relação entre os factos?

Dei um pulinho à Domus Publica, para falar com Mamerco. O encontro foi rápido. O irmão de Mânio tinha rotinas fixas e não foi difícil encontrá-lo no tablino, com a cabeça caída entre rolos de papiros, a fingir que não dormia em serviço.

O que estás aqui a fazer, Emília? – Perguntou, quando o acordei.

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Devia dizer-lhe a verdade? Hesitei. Mas eu tinha-o visitado com um objetivo em mente! A curiosidade foi mais forte do que a prudência. Eu precisava da verdade, como de água para a boca.

Tu e o teu irmão foram adotados pelo teu pai, não foram? Ele estava surpreendido, mas sobretudo preocupado com as minhas pesquisas:

Como é que sabes que Mânio foi adotado?

Descobri agora nos registos de Saturno! Vim ter contigo, embalada pela surpresa. – Mas o meu sorriso era abstrato, navegava em sarilhos! – Mânio nasceu no ano em que o seu tio homónimo morreu, não foi?

Consultaste todos os registos do volume? – Pasmou-se. Para eu dispor da informação, fora obrigada a ler bastante! – Quem diria que tinhas paciência para esse tipo de tarefa. Andas a fazer genealogia?

Sim, podes dizer que sim. – Asseverei, ganhando coragem para questionar. – Como morreu o teu tio monetário? O registo estranhamente não o especificava.

Não te metas em assuntos que são maiores do que nós! – Aconselhou Mamerco.

Vocês é que introduziram o tema nas assembleias! Se Catão pôde imiscuir-se no assunto, eu também posso, ora essa! – Rebelei-me. – O teu tio era amante da vestal Liciniana, mas não foi acusado publicamente. O que lhe aconteceu?

Suicidou-se. – Confessou, a custo. – Com peso na consciência. O que aconteceu à irmã desorientou-o e todo o processo deu cabo dele. Fez-se luz na minha cabeça:

O teu irmão é teu primo, não é?

Sim, Mânio é filho de Emiliana e de pai incógnito. Fiquei alarmada para o encadeamento lógico:

Pelos deuses! Emiliana foi castigada, primeiro do que as outras, por estar grávida! É isso, não é? Foi a barriga que a denunciou?

Vamos esquecer o passado! Não o desenterres…

Mas nós ainda vivemos as consequências de tais factos! – Contra-argumentei. Ele hesitou e baixou os olhos. – Andaram anos a contornar um problema que, por não estar resolvido, rebentou novamente. Eu e as outras vestais podíamos ter morrido porque vocês ainda não digeriram convenientemente esta situação! Mamerco passou a mão pelos cabelos, tão pesados quanto a sua consciência:

Emília, não sei o que dizer-te.

Diz-me a verdade. – Pedi-lhe.

A verdade é espúria. – Filosofou.

Emiliana foi condenada à morte. Como sobreviveu o seu filho?

O meu pai salvou o bebé do Tibre, quando este foi abandonado.

Mânio foi abandonado no rio? – Escandalizei-me.

Dentro de uma cesta, é tradição. O Estado não derrama o sangue de uma vestal, nem dos seus filhos. Foi assim que Rómulo e Remo se salvaram. – Explicou Mamerco. – Depois o meu pai casou em segundas núpcias com uma mulher de Fórmia. Para todos os efeitos, Mânio era filho dela e do meu pai. Os registos do

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templo de Saturno são os únicos, atualmente, que ainda fazem mínima referência aos factos. A história era mirabolante!

Mânio é filho de uma vestal. – Balbuciei, enquanto refletia. – É por isso que ele faz vida fora de Roma?

Sim, o meu irmão convive mal com a verdade do seu nascimento. Por sua vontade entrou no exército e, desde então, mantém-se permanentemente em missão nas províncias.

Compreendo. Mas ninguém foge ao seu passado… Mamerco entrou em ebulição, em defesa do irmão (e de toda a família!):

Emília estás absolutamente proibida de contar o que sabes!

Não precisas gritar. Eu prometo não contar. – Assegurei. – Jamais prejudicarei Mânio. Ele sempre foi bom para mim, para os meus sobrinhos e nunca esquecerei o que ele fez pelo meu irmão.

É um homem muito especial. – Reconheceu Mamerco.

Ouve lá, tens de ajudá-lo. O coitado não pode passar a vida atormentado!

Não penses mal dele…

Pelo contrário! Ele é boa pessoa. Nunca tive razões de queixa dele.

Tem-lo assim em tão boa conta?

Agora que conheço a sua história, valorizo-o mais. Ele é um sobrevivente. Mânio não deve ter vergonha de quem é ou das suas origens. Tudo acontece por uma razão e os deuses é que a conhecem. Não se pode contrariar o destino. Penso que ele já sofreu o suficiente, não te parece?

Sim, creio que sim. – Balbuciou, atrapalhado com a nossa conversa. – Ele quer candidatar-se a pretor, talvez apareça em Roma em breve.

Seria o ideal! Mânio precisa refazer a sua vida e sorrir para o futuro. – Advoguei e despedi-me. – Bom, vou-me embora. Até outro dia, Mamerco.

Vai em paz e diretamente para o templo de Vesta!

Eu vou. Não planeio sair de lá tão cedo. – Garanti, num suspiro.

O que tinha eu aprendido com aquela história? Que a verdade era escondida porque ninguém a queria enfrentar, pois era difícil lidar com ela. Emiliana não era uma Reia Sílvia, mas fora envolvida em conflitos que a ultrapassavam. Mânio não era um Rómulo, mas sobrevivera, em bebé, aos rituais religiosos da sua época.

Importava recordar a lenda fundadora de Roma, segundo a qual o rei Numitor de Alba Longa sofrera um golpe militar, liderado pelo irmão Amúlio. A filha do monarca fora entregue ao culto de Vesta, para não ter filhos legítimos que pudessem desafiar o poder do novo rei. Mas a vestal, seduzida pelo deus Marte, dera à luz dois meninos. Amúlio mandou matá-los, mas alguém os meteu numa cesta e eles não se afogaram no Tibre. Os bebés foram resgatados por quem cuidou deles. Os rapazes cresceram entre os pastores. Até Remo ser capturado, já em adulto, por Amúlio. Rómulo foi em defesa do irmão e matou o tio. Os gémeos recolocaram o avô Numitor no trono de Alba Longa e partiram com o objetivo de fundar a nossa cidade.

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A estátua do fórum retratava um animal a aleitar os gémeos. Mas uma loba verdadeira teria comido as crianças. Quem cuidou de Rómulo e Remo foi a esposa de um pastor. Acca Larentia, uma mãe de doze filhos que fundariam o colégio dos irmãos Arvales, para proteger a zona onde fora encontrada a cesta e que se transforara num local sagrado.

Amúlio derivava da palavra Aemilius (Emílio). Portanto, um dos meus antepassados estivera diretamente envolvido na lenda fundadora da cidade de Roma, pelos piores motivos! Numitor era o bom monarca. Amúlio era o usurpador do trono. Reia Sílvia era a vestal da cidade.

Amúlio impusera-se à força através das armas. Ele era o deus Marte. Ao engravidar a sobrinha, cometera incesto. Era esta a verdadeira razão pela qual uma vestal e o seu

amante eram oficialmente acusados de incestum contra o Estado, quando ela perdia

a virgindade. A pena de morte era aplicada aos dois, porque Amúlio e Reia Sílvia não sobreviveram aos eventos.

As vestais tinham como incumbência buscar água à Porta Capena. Reia Sílvia foi violentada num dos seus passeios à fonte. Ela engravidou de gémeos e, quando o rei Amúlio descobriu, mandou-lhe matar os filhos e encarcerá-la, mas não ousou derramar o sangue de nenhum dos três. Era este o motivo pelo qual as vestais eram enterradas

vivas no Campus Sceleratus, nos subterrâneos da Porta Colina.

Portanto, os rituais religiosos romanos tinham uma base histórica. Era uma

interpretação cultural e uma perpetuação ritual de acontecimentos passados que

haviam traumatizado os primeiros habitantes da cidade.

Por Vesta, haveria mais mistérios por deslindar?