adjuro-te, serpens antiqua

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Carlos Orsi Martinho 1 Adjuro te, serpens antiqua Serpens antiqua. Mboi-una. Mboi-guaçu. Cobra grande. Dragão de Midgard. Serpente dos Tempos Antigos. Quantos nomes essa coisa tem? Boiúna. O Grande Parasita. O Verme do Paralelo 14, a cobra de Machu Pichu. E assim por diante. Lúcifer. Baal, Asmodeu. Godzilla. Cthulhu? Sim. Cthulhu esteve aqui. Chegamos a Brasília ontem. Assustador. As cúpulas do Congresso, partidas como cascas de ovo, as duas torres tombadas. A catedral, um esqueleto retorcido, as “mãos postas em prece” de Niemeyer reduzidas a uma paródia, acometidas de Parkinson e reumatismo galopante. Os outros prédios e palácios, todos, arrasados; lagos secos, o vazio nas ruas. Ninguém, em parte alguma, nem mesmo os corpos sem cabeça que encontramos em outros lugares. Soldados estão vasculhando as ruínas em busca de cadáveres ou sobreviventes e indo às cidades satélites, mas não creio que vão encontrar alguém. Foi perto daqui, ao norte, que o Verme eclodiu, o corpo feito de milhares de anéis, cada um com centenas de metros de extensão, pesando toneladas, cego, irracional, prenhe, morrendo, expelindo esporos e zangões pelos poros e pústulas. O que destruiu o planalto central não foi a contaminação, ao menos não a contaminação, mas as convulsões finais da criatura. Nós somos a primeira expedição a entrar em Goiás em quase quarenta anos; desde o Despertar. Eu, pessoalmente, preferiria ter ficado no Rio ou ido a São Paulo. Curitiba não digo, porque os esporos e zangões não suportam muito bem o frio, e os Estados do Sul foram os menos afetados. Curitiba seria quase que uma opção de covardes. Mas havia muito a ser feito no litoral. Vidas a salvar, pessoas a educar. Um país a reconstruir.

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Novela brasileira de ficção científica

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Page 1: Adjuro-te, Serpens Antiqua

Carlos Orsi Martinho 1

Adjuro te, serpens antiqua

Serpens antiqua. Mboi-una. Mboi-guaçu. Cobra grande. Dragão de

Midgard. Serpente dos Tempos Antigos. Quantos nomes essa coisa tem? Boiúna. O Grande

Parasita. O Verme do Paralelo 14, a cobra de Machu Pichu. E assim por diante. Lúcifer.

Baal, Asmodeu. Godzilla. Cthulhu? Sim. Cthulhu esteve aqui.

Chegamos a Brasília ontem. Assustador. As cúpulas do Congresso, partidas como

cascas de ovo, as duas torres tombadas. A catedral, um esqueleto retorcido, as “mãos postas

em prece” de Niemeyer reduzidas a uma paródia, acometidas de Parkinson e reumatismo

galopante. Os outros prédios e palácios, todos, arrasados; lagos secos, o vazio nas ruas.

Ninguém, em parte alguma, nem mesmo os corpos sem cabeça que encontramos em outros

lugares.

Soldados estão vasculhando as ruínas em busca de cadáveres ou sobreviventes e

indo às cidades satélites, mas não creio que vão encontrar alguém. Foi perto daqui, ao

norte, que o Verme eclodiu, o corpo feito de milhares de anéis, cada um com centenas de

metros de extensão, pesando toneladas, cego, irracional, prenhe, morrendo, expelindo

esporos e zangões pelos poros e pústulas. O que destruiu o planalto central não foi a

contaminação, ao menos não só a contaminação, mas as convulsões finais da criatura.

Nós somos a primeira expedição a entrar em Goiás em quase quarenta anos; desde o

Despertar.

Eu, pessoalmente, preferiria ter ficado no Rio ou ido a São Paulo. Curitiba não digo,

porque os esporos e zangões não suportam muito bem o frio, e os Estados do Sul foram os

menos afetados. Curitiba seria quase que uma opção de covardes. Mas havia muito a ser

feito no litoral. Vidas a salvar, pessoas a educar. Um país a reconstruir.

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Só que Emília queria vir a Goiás de qualquer jeito. Investigar a fundo, procurar

respostas. É preciso, disse. Respostas? Como se a realidade já não estivesse se esgarçando

pelas bordas, pensei.

Mas, olhando para ela, concordei.

Eu estava vivendo numa pensão em Berna, trabalhando como assistente numa

pequena clínica de cirurgia plástica – dar aulas, principalmente dar aulas sobre

parasitologia, que era tudo o que queriam ouvir de mim na Europa Ocidental, tinha se

tornado insuportável – quando uma funcionária da ONU me alcançou por telefone. O que

ela me dizia, em português (português!) só viria a ter caráter realmente oficial dentro de

cinco meses, alertou-me. Mas a funcionária supôs que eu quisesse saber com toda a

antecedência possível, para poder estar pronto, caso decidisse aceitar a proposta. Qual

proposta?

– A quarentena sobre o território brasileiro será declarada semipermeável – disse-

me a representante das Nações Unidas. – O quê? Ah, sim. Desculpe o jargão... Isto é,

voluntários poderão entrar, mas não sair, ainda por um período de teste de cinco anos.

Exatamente. Fim do isolamento total. É. Bem... Estamos convidando exilados a voltar,

nesta primeira fase, principalmente médicos, economistas e engenheiros, para preparar o

terreno para a equipe internacional de reconstrução que deverá chegar assim que o

Conselho de Segurança levantar a quarentena em definitivo. Cinco anos. Isso.

Sinceramente, os informes de Buenos Aires e Cidade do Panamá não são nada bons. Vai

ser um trabalho duro.

Que mais eu poderia dizer? Aceitei na hora.

Difícil explicar o que fiz na Europa nos cinco meses seguintes. Deixei empregos,

liquidei meus (poucos) negócios e propriedades, comprei equipamentos. Muitos

equipamentos. A ONU iria fornecer o material-padrão, mas eu queria ter opções.

Fora isso, esperei.

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Encontrei-me com os outros voluntários no avião, que partiu de Lisboa. A viagem

foi mais longa do que seria de se esperar – nenhuma empresa aérea queria comprometer

equipamento de primeira, já que tanto o piloto quanto a aeronave ficariam retidos em solo

brasileiro até o final da fase “semipermeável” da quarentena.

Boa parte dos outros passageiros era composta por “exilados” de fato – gente que

tinha saído do país depois de, como é que costumavam dizer?, “cair na clandestinidade”, ou

profissionais que tinham se tornado persona non grata e entrado numa das infindáveis

listas negras da ditadura. Regime que tinha deixado de existir em dezembro de 1973, o ano

em que a Serpente despertou. Ano em que, para todos os efeitos, o Brasil tinha deixado de

existir.

Alguns dos exilados haviam voltado para casa, cheios de esperança, logo após o

Despertar, antes que o Conselho de Segurança da ONU criasse a Área de Custódia

Internacional, literalmente fechando o país para impedir a propagação do contágio.

Dizem que os russos tinham relutado em concordar com isso, a princípio, mesmo

com toda a cobertura da imprensa internacional acerca de da epidemia.

A URSS tinha lá suas razões para estar agressiva, na época – o acidente nuclear em

Guantánamo acabara de riscar Cuba do mapa, e os boatos sobre a queda de um satélite

militar americano no Planalto Central corriam fortes, a despeito da versão oficial de que se

tratava de um meteoro. Muita gente deve ter se perguntado, o que esses gringos estão

tentando fazer?

O fato de boa parte do sudeste norte-americano ter sido varrido por maremotos e

vendavais radioativos após a explosão (“obliteration”, como dizia a imprensa em inglês) de

Cuba ajudou a reduzir as suspeitas – provavelmente, evitou a eclosão imediata de uma

guerra atômica – , mas não foi o suficiente.

Mas o fechamento finalmente ocorreu, em meados de 1974, depois que os

americanos obtiveram fotos aéreas do Dragão, tiradas por caças-espiões, e que tinham sido

mostradas ao Kremlin. Dado o grau de tensão internacional na época, é possível, mesmo,

que o Despertar tenha sido o argumento que faltava para acalmar o Kremlin e evitar, de

vez, a III Guerra Mundial.

Triste consolo...

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Tivemos sorte de eles não terem concordado em usar as bombas dos dois arsenais

atômicos em nós, imagino.

Só que, no começo, os informes tinham sido tão confusos – falava-se na destruição

de Brasília e em caos no interior do país; falava-se em sublevação popular, em vitória

esmagadora dos comunistas; em infiltração chinesa, vietnamita, até de sobreviventes

cubanos. Falava-se em grandes festas, banquetes, e grandes atentados. Muita gente

acreditou, e voltou.

Eu? Eu, não. Eu fiz o caminho inverso, fugi. Estava no Brasil, no final de 73, numa

cidade da divisa de Minas Gerais com São Paulo. Até poucos dias antes, a crise em torno

do desaparecimento de Cuba era a principal manchete em todos os jornais, com um espaço

menor dedicado ao “bólido” que caíra na região do rio Tocantins, seguido por avistamentos

de “discos voadores” e de “estranhas luzes no céu”.

E então veio o Despertar. Claro, ninguém tinha dado um nome ao fenômeno, ainda.

Tínhamos sentido o tremor e havia imagens na TV: prédios caindo, gente gritando,

morrendo, em Brasília, Goiânia, Anápolis; a onda de destruição se expandia em círculos e

vinha, também, em nossa direção. Na TV, víamos manchas negras caindo sobre as pessoas:

os zangões. Tudo, ainda, em preto-e-branco.

Era a época do videoteipe – transmissões via satélite eram uma espécie de luxo –, e

algumas poucas fitas, registrando a destruição, tinham chegado às retransmissoras.

Censores ainda tentavam vetar parte do conteúdo, mas Brasília, a fonte de toda a

autoridade, tinha deixado de existir. Esse primeiro caos institucional durou alguns dias, até

que o Comando Militar do Sudeste assumisse o governo e requisitasse todos os canais para

o serviço de comunicações de emergência.

Os esporos do Dragão tinham sido carregados pelo vento, saturado a atmosfera. As

pessoas estavam em choque; os saques e a guerra civil ainda demorariam para começar. O

céu tinha ficado amarelo, da aurora ao pôr-do-sol. Eu passava perto de uma praça com

árvores altas, carregadas. Nós, que vivemos aqueles dias, vivíamos em câmera lenta. Sei

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que os filmes modernos sobre catástrofes mostram pessoas se movendo sem parar, lutando,

correndo, fugindo. Mas não era assim: a destruição é hipnótica, como uma cobra egípcia.

Quem está no meio dela simplesmente pára, e olha. Espera sua vez.

Eu caminhava pela praça quando ouvi um zumbido alto, irritante, crescente, e

alguma coisa roçou meu rosto – uma coisa áspera como uma lixa, que passou rápido e

arrancou pele.

Mal havia levado a mão à face e sentido o sangue na ponta dos dedos quando uma

mulher, que caminhava à minha frente, caiu de bruços na calçada, derrubada pelo impacto

de um zangão, uma criatura do tamanho de um gato adulto, que colidira com ela e agora se

agarrava à sua cabeça.

As asas da aberração ainda batiam, uma delas criando ao redor de si um arco de

gotículas de sangue – meu sangue! – quando o ferrão branco se dilatou a partir da base da

carapaça negra e foi se enterrar na nuca da pobre vítima. A mulher ainda tentou girar, ou se

debater, mas as pinças do monstro (que eu não via mas podia imaginar, cravadas na testa,

nos olhos, nos cantos da boca, nas narinas, nos ouvidos) mantinham a carapaça firme e no

lugar. Então o grito de dor, a picada, e o inseto gigante relaxou, rolou de lado, morreu.

Um perfeito zangão.

A mulher se virou, olhou para mim – as pinças do monstro não lhe tinham furado os

olhos, como eu temia – e começou a gritar. E gritar. E gritar.

Foi nesse instante que comecei a fugir. E não parei até ouvir a freada final do táxi

que me levaria do aeroporto ao hotel, em Paris.

A ausência de corpos ou sobreviventes em Brasília, ou no que restou de Brasília,

parece não intrigar muito o grupo de tropas internacionais que nos acompanha. Foram

quarenta anos, afinal. Tempo mais do que suficiente para o clima e a fauna do local

trabalharem. E os sobreviventes, se é que houve algum, também já teriam fugido há anos.

Mesmo assim, e a despeito das mutações registradas ao norte pelos satélites, a área do

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antigo Distrito Federal ainda é uma zona de baixa umidade. Seria de se esperar uma múmia,

pelo menos, ou um pedaço de uma.

Mas não há nada. Nem um dente quebrado debaixo dos escombros – nada.

Comento isso com Emília e ela me diz que estou perdendo meu tempo ao me

preocupar com as “velhas regras”.

– Seria melhor se tentássemos entender as novas – ela sugere.

E por falar em “tentar”, Emília está se empenhando em convencer o oficial

encarregado a nos emprestar um pequeno destacamento para nos acompanhar numa

“incursão científica” rumo norte. Até o trecho Rio Tocantins que corta o paralelo 14; o

ponto exato de onde a Serpente emergiu. São duzentos quilômetros; nossos veículos de

terra são poucos e, em marcha, seriam cinco dias, isso se a mata mutante permitisse. Emília

e eu estamos na faixa dos setenta anos. Os militares estão, compreensivelmente, céticos.

Mas também compreendo Emília. Há algo de emocional nisso, estar tão perto do

monstro: a necessidade de ir até lá, de estar com a criatura, arrancar um pedaço do cadáver,

é quase dolorosa.

Eu me lembro de ter visto as fotos de satélite que os americanos tinham tornado

públicas, no final dos anos 80, com a enorme cratera e o corpo estirado, mutilado, do

monstro. O mais fantástico é que o Verme sequer havia saído de todo de seu buraco: o que

víamos nas fotos era apenas uma parte – metade? um terço? um décimo? – da extensão total

da Serpens Antiqua, termo em latim que havia sido adotada como o nome internacional,

“científico”, do monstro.

O uso dessas duas palavras pelos cientistas não deixava de ser irônico, já que a

expressão havia sido retirada do ritual de exorcismo católico: “adjuro te, serpens antiqua”,

diziam os padres, algo como “exorcizo-te, serpente do tempo antigo”.

E ela estava morta. De acordo com estimativas recentes, feitas a partir de leituras de

infravermelho e radiação obtidas via satélite, tinha estado morta desde 1974, pelo menos.

Descontados os malucos de sempre, com seus best-sellers sensacionalistas sobre

como a eclosão da Serpens prova que a mitologia nórdica, inca, tupi, Lovecraft, Cayce, o

Gênese ou o seu tele-evangelista favorito “estavam certos”, a maior parte das teorias sobre

o ocorrido sustenta que toda a primeira, gigantesca, onda de destruição havia sido causada

pelos espasmos finais do monstro, os estertores; que um dos impulsos mais básicos da

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natureza forçara a criatura a vir à tona e espalhar seus gametas – esporos e zangões – a fim

de preservar a espécie.

A idéia de uma espécie inteira composta de monstros assim sempre me traz

pesadelos. Perto disso, imaginar a Serpens como “Satã” ou o “Arauto do Apocalipse” é

mesmo reconfortante.

Fico imaginando se sou só eu que acho que o “bólido” de 1973 tem algo a ver com

o que aconteceu. Ninguém toca no assunto. Eu achava que as especulações em torno do

satélite militar perdido/meteoro misterioso voltariam com a reabertura da fronteira, mas não

se fala no assunto. Será que só eu me lembro? Ou isso, ou os outros também guardam suas

dúvidas em silêncio.

Foi durante o vôo de volta que conheci Emília. Não fosse por ela, teria sido uma

viagem deprimente. Engenheiros, médicos, arquitetos, economistas e alguns poucos

administradores, eis o que éramos, a princípio. Mas, na verdade? Velhos comunistas,

radicais cansados e socialistas, na maioria, mais um punhado de velhos covardes, como eu,

todos juntos – um grande retorno geriátrico.

Reconheci alguns dos rostos, ou da política brasileira pré-64 ou das passeatas de

Berlim contra a quarentena. E das entrevistas desconcertadas de muitos, quando ficou claro

que os soviéticos apoiavam a proposta americana de criação de uma Área de Custódia

Internacional, da divisa do Uruguai e até o Panamá, dos Andes ao Atlântico, com zonas e

linhas e perímetros de segurança cada vez mais estrita, até a área de quarentena total, que

coincidia com o território brasileiro. Pior, quando descobriram que não se tratava de uma

“proposta americana”, mas de um plano elaborado de comum acordo pelas duas

superpotências e apresentado à ONU com certeza de aprovação.

Fazia sentido, claro. Mesmo sem as imagens obtidas pelos aviões americanos, havia

as fotos das agências internacionais, com vítimas da picada dos zangões vomitando larvas,

outras com a cabeça ou o tórax explodindo em revoadas de insetos alados, parecidos com

traças, mas multicoloridos. Quando a fecundação não levava à morte, havia a deformidade.

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Ou, as deformidades: pois nenhum registro jamais revelou duas desfigurações iguais, ou

sequer semelhantes. Tudo muito eloqüente.

E os vídeos de Brasília devastada, também. O fracasso total das autoridades

brasileiras em lidar com o problema, um colapso muito mais completo do que se poderia

atribuir apenas à folclórica (e muitas vezes superestimada) incompetência militar latina.

Mesmo as equipes de socorro enviadas pela França e pela Argentina tinham desaparecido,

sem deixar traços.

Os russos não estavam dispostos a permitir que os americanos entrassem; e vice-

versa. Ninguém falava, mas as palavras “guerra biológica” estavam no ar para quem

quisesse ver, como se toda a atmosfera tivesse se transformado num grande letreiro néon.

Esse impasse abriu caminho para o que o Le Monde Diplomatique chamaria de “nouveau

protagonisme da ONU nos assuntos estratégicos internacionais”, a pedra fundamental de

uma era de cooperação e confiança entre os povos, etc. e tal.

Deus só permite o mal porque, em sua infinita bondade, sabe que do mal sempre

surge um bem maior, disse Tomás de Aquino. Que, pelo jeito, se esqueceu – ou ele ou Deus

– de levar a opinião das vítimas em consideração.

Por exemplo, os brasileiros que, enquanto isso, respiravam o pólen que depois era

fecundado pelo veneno dos zangões. Como resultado, incubavam monstros.

E morriam ou mudavam.

Antes do vôo de anciões patrocinado pela ONU e após a criação da Área de

Custódia, apenas alguns poucos aventureiros, mercenários ou jornalistas, tinham tentado

violar o perímetro de segurança. Se algum conseguiu, nunca mais foi visto. Havia patrulhas

regulares, claro, e, assim que a tecnologia permitiu, monitoramento por satélite.

Segundo um funcionário da ONU que nos acompanhou em nosso vôo, fazia já três

anos desde que o último zangão tinha sido avistado, por homem ou máquina. O ar estava

limpo de pólen há meses.

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Ainda assim, havia algo de sinistro nessa volta para casa. A esperança do futuro nas

mãos de velhos exilados? Não parecia certo. Eu tentava me convencer de que “velhice” é

apenas uma dor nas costas na hora de amarrar os sapatos, mas havia algo mais: um cansaço.

Talvez não ligado exatamente à idade do corpo, e sim à espera, longa demais. Quarenta

anos. Éramos, não pude deixar de imaginar, um avião-frigorífico cheio de mercadoria

vencida.

Por sorte, Emília estava lá. Graças a ela, os dois martínis que eu havia tomado antes

de embarcar acabaram produzindo um mim um tipo de entusiasmo.

Emília devia ter mais ou menos a minha idade (há coisas que não se perguntam

jamais a uma dama), mas pintava o cabelo de preto – contrariando a convenção de que

senhoras idosas devem preferir cores claras – e, abusando da hospitalidade de bordo,

fumava um cigarro atrás do outro. Disse-me que havia sido convidada pela ONU para

voltar com a primeira turma porque tinha feito carreira na Europa como arquiteta, mas que

seu principal interesse nesse retorno ao Brasil era arqueológico e psicanalítico.

Respondi-lhe que não entendia o que poderia haver de “psicanalítico” na situação.

– Mas você está brincando! – disse ela e, depois de examinar atentamente meu rosto

em busca de um sinal de malícia (que obviamente não estava lá), continuou: – Um símbolo

fálico gigante, uma serpente, um animal que está no centro de duas dúzias de mitologias e

uma dezena de religiões, rompe o país bem no meio, como se o escudo cristalino do

planalto central fosse um hímen enorme; explode em orgasmo, destrói os prédios e as casas

e os palácios do poder patriarcal, espalha pólen e abelhas pelo ar como num livrinho sobre

os fatos da vida, e você não vê o que há de psicanalítico nisso? Sem falar que tudo ocorreu

bem na região do paralelo 14...

– E o que isso teria a ver?

– É exatamente a mesma altura das ruínas de Machu Pichu. E o número de

comunidades hippies e alternativas na área, mesmo sob os militares e depois da ascensão da

linha dura, sempre foi o maior do país. Pense, também, no nome que a mídia internacional

deu ao evento: o Despertar. Isso tudo tem raízes profundas no inconsciente coletivo. Não

me surpreenderia se a Serpens Antiqua fosse, no frigir dos ovos, apenas um sonho de

alguém vestido de bata, deitado na rede, chapado de erva.

– Os efeitos não foram um pouco concretos demais para isso, não?

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Ela se deu uma tragada no cigarro de filtro amarelo e me olhar de lado:

– Você sabe – Emília disse – que, em Guantánamo, o problema não foi só nuclear.

Havia experiências com drogas...

– Sei, sei. Também li os jornais na Europa. MK-Ultra, não é? Uso de lisérgicos para

o controle da mente. Mude a percepção que alguém tem da realidade e isso redefine a

personalidade do paciente. Uma das cobaias pirou e disparou a bomba. O que isso...

– Qual a diferença entre “mudar a percepção da realidade” e “mudar a realidade”?

– Ora, o carro que não vejo é o que tem mais chances de me atropelar!

– Como você pode ter certeza de que o carro que passa na sua frente, enquanto você

está parado na calçada, continua existindo depois da esquina?

Comecei a rir.

– Ora, vamos lá! – prossegui. – Você está soando como um daqueles livrinhos

franceses que se vendem no metrô, “Zoroastro, Nostradamus, Lasers Mentais, a Serpente

Antiga na Babilônia Tropical e os Sinais dos Tempos”...

– Você leu esse? Há insights muito interessantes, a despeito da prosa florida. Gostei,

principalmente, da parte sobre “lasers mentais”.

Fechei a boca e arregalei os olhos, incrédulo. Ela sorria, inocente. De repente não

pude mais me conter, e desatei a rir. Ela tentou ficar com a cara fechada, mas não se

agüentou e também começou a rir. Depois que paramos, perguntou coisas sobre minha

vida.

As tropas internacionais (ou “força multilaterial”, ou o que quer que seja) em

Brasília são compostas por soldados americanos, russos e chineses. Os chineses são os que

falam o melhor português, e o major Liang Guangrui é o oficial mais graduado nesta terra

de ninguém. Sob seu comando direto estão dois capitães, um americano, Michael Lansdale,

e um russo, Znoishe Egorov. O major tem seu próprio “staff” pessoal de chineses, mas os

sargentos e soldados são quase todos russos e americanos.

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Nesta manhã, finalmente, Emília – a quem os chineses chamam “Fan Emao” –

conseguiu convencer o major Liang a enviar um destacamento, por terra, rumo à cratera

aberta pelo Despertar e ao cadáver da Serpens. E, sim, os dois especialistas brasileiros, Fan

Emao e eu, a quem Liang chama de Mai Kairui (não gosto do nome; para meu ouvido, soa

muito como “macarrão”) poderemos ir junto.

A expedição deve partir em dois dias.

Pelo que pude depreender do que Emília me contou depois, minha reputação como

cientista havia sido fundamental para, finalmente, dobrar o major chinês. Quando perguntei

a ela, meio abobalhado, que reputação era essa, Fan Emao sorriu um daqueles sorrisos

cheios de malícia inocente, como o bebê que acaba de pôr na boca algo proibido e

possivelmente venenoso, e disse apenas que eu tinha sido citado como “um dos

parasitologistas mais eminentes da Europa”.

Pensei por alguns instantes em todas as palestras que havia feito e nas teses que

tinha defendido que concluí, entre o surpreso e o divertido, que Emília se mantivera

razoavelmente fiel à verdade.

Teríamos dois jipes, com os tanques cheios, à nossa disposição e seríamos

acompanhados por seis soldados armados, mais dois motoristas. O equipamento científico

que quiséssemos levar teria de ser amarrado aos veículos, juntamente com as tendas, ou

acomodado em nossas próprias mochilas.

Nada havia me preparado para, uma vez fora do avião, já em solo brasileiro, no Rio,

finalmente encontrar os sobreviventes – a terceira geração dos que não tinham partido. Dos

que não tinham tido dinheiro, meios, informação, oportunidade ou inteligência para fugir

enquanto era tempo. Dos que ficaram para trás, sobreviventes da infecção e alterados por

ela. Há, segundo os cálculos da ONU, de seis a dez milhões de brasileiros ainda em solo

brasileiro. A maioria no Rio de Janeiro.

Nós, da diáspora, contando filhos e netos, somos pouco mais de um milhão.

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As mutações (eu e os outros médicos da equipe desistimos de chamá-las de

“deformidades” depois que ficou claro que a transfiguração se dava em escala intracelular,

genética): um homem sem boca; outro, com dezenas de bocas, todas cheias de dentes,

minúsculas, articuladas, espalhadas pelo rosto como feridas bífidas de varíola; outro, ainda,

com meia dúzia de pênis, todos “brotando” a partir de uma massa disforme de carne

esverdeada e pêlos cinzentos na virilha, como flores de um canteiro; uma mulher com duas

fileiras paralelas de seios ao longo do tórax; outra, com fendas e lábios vaginais na palma

das mãos, no umbigo e na sola dos pés, feridas por onde sangrava – menstruava? – a cada

quinze dias.

Vi uma criança com duas orelhas gigantescas nas costas, grandes e abertas como se

fossem asas, e conversei com uma menina pré-adolescente que trazia o ânus entre as pernas

e o sexo, entre as nádegas. Esses foram alguns dos casos que conheci, dentre outros.

Muitos, muitos outros.

Toda a história do Brasil, nos últimos quarenta anos, tinha sido feita por essas

pessoas, essas vítimas, seus pais e avós. Pelos que haviam se organizado em milícias e

tentado romper as barreiras da quarentena; pelos que tinham simplesmente se resignado a

plantar feijão e mandioca no quintal, e talvez rezar, enquanto o mundo desmoronava ao

redor.

Havia histórias de estupros, saque, fogo, canibalismo, linchamentos; de utopias

autocráticas na floresta da Tijuca, de democracia direta nos shopping centers; de orgias nos

quartéis e ordem militarizada nas universidades. Historiadores, antropólogos e sociólogos

viriam, em breve, para recolher esses contos.

Minha função, no Rio, não era ouvir histórias. Ao menos, não esse tipo de história.

Era tratar dos doentes – o que implicava ouvir o que tinham a dizer, mas de uma forma e

num contexto muito mais pessoal –, e pesquisar. No futuro, talvez me chamassem para

organizar uma nova rede de saúde pública. Mas, por enquanto, era preciso aprender.

Descobrir. Tratar.

Eu havia desenvolvido alguns esboços de teoria na Europa, com base nos relatos

fragmentários que vinham das equipes de fronteira, e nas fotografias publicadas. Agora, no

Rio, tinha a oportunidade de conferir o que realmente havia acontecido. Pôr minhas idéias à

prova.

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Uma das primeiras coisas que descobri, em meio ao caos, era que havia pessoas

imunes: homens e mulheres da minha idade, ou um pouco mais jovens ou mais velhos, que

nunca tinham sido incomodados pelos zangões, mesmo tendo respirado o pólen suspenso

no ar, e outros ainda que, mesmo tendo sido picados, não haviam encubado larvas ou

“traças”.

Não tínhamos um tomógrafo conosco, claro, mas com base nos resultados de outros

exames formulei a hipótese de que esses “infectados imunes” partilhariam de uma

peculiaridade específica na conformação do cérebro – um alto desenvolvimento do corpo

caloso, entre os hemisférios.

Também conseguimos isolar, eu e outros cientistas, amostras do pólen da Serpens, o

pó amarelo há anos vinha descendo da atmosfera, misturando-se ao solo ou caindo no

fundo de lagos e caixas d’água. A análise revelou células haplóides, com uma seqüência

genética curta. A teoria dos gametas ganhava corpo.

Infelizmente, todas as carcaças de zangões que conseguimos reunir estavam vazias

de órgãos: nada mais que cascas quitinosas abandonadas – nenhuma amostra de “veneno”.

Somando a pesquisa de laboratório às conversas com meus pacientes – alguns deles,

médicos ou ex-estudantes de medicina –, aprendi que a combinação entre pólen e picada,

quando não encontrava um hospedeiro totalmente imune e nem produzia uma explosão de

larvas ou traças, gerava apenas um tipo de deformidade – neste caso, não se tratava de

mutação: aumento no volume do crânio, com perda de rigidez dos ossos, que assumiam

uma consistência elástica, esponjosa.

A expectativa de vida dos atingidos era curta: dias, se tanto. Relatos de parentes das

vítimas, ou de simples testemunhas, falavam que a morte era sempre precedida por fortes

ataques epiléticos; às vezes, surtos psicóticos.

Exames em cadáveres exumados mostraram larvas mortas, milhares delas,

acumuladas ao redor do cérebro de cada vítima. Formulou-se a teoria de que a mudança na

consistência da caixa craniana fosse causada por uma enzima secretada pelas criaturas. E

que a combinação da enzima com a pressão exercida pelo simples acúmulo de larvas dentro

do crânio inviabilizava a função cerebral, levando a convulsões, à psicose e à morte. Havia

razões fortes para acreditarmos que se tratava do mesmo processo que levava à eclosão do

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crânio, só que ocorrendo de forma muito mais lenta e, talvez por causa dessa lentidão,

culminando não no nascimento de uma ninhada, mas numa espécie de “aborto”..

Já as deformidades variadas – as mutações –, únicas, que enchiam o “ambulatório” e

os “consultórios” improvisados que a ONU destinara a mim e a outros médicos eram

causadas pelas infecções de segunda geração – nas pessoas atacadas não pelos zangões,

mas sim pelas larvas e traças.

As larvas contaminavam como uma verminose típica, misturando-se ao solo ou aos

alimentos. As traças, por sua vez, comportavam-se de forma semelhante ao barbeiro que

transmite o mal de Chagas, picando a vítima no sono e deixando fezes contaminadas ao

lado da ferida. Leves e dotados de asas, esses vetores multicoloridos – sob o microscópio,

pareciam-se, de certa forma, com borboletas em miniatura – tinham muito mais mobilidade

que o barbeiro, e eram, portanto, muito mais perigosos.

A natureza da infecção, como já disse, era genética: mesmo sem nenhum caso

recente para estudar (a última infecção, diziam os sobreviventes mais antigos, teria ocorrido

há quase uma década) eu e meus colegas concluímos que o núcleo das células do corpo da

vítima era atacado pelo antígeno, e seqüências inteiras de bases eram reordenadas e

reativadas. Todas as células do corpo do paciente passavam a ser células-tronco em

potencial: adultos e crianças convertiam-se, na prática, em fetos mutantes.

Em semanas de contato direto com as vítimas, aprendemos mais do que em quarenta

anos de análise de fontes secundárias.

Partimos de Brasília há três dias.

O pequeno destacamento escolhido pelo major Liang para nos acompanhar é

formado, basicamente, por russos. Meia dúzia, sob comando do sargento Kranislav Savin.

Os chineses se fizeram representar por um soldado que é tanto intérprete quanto motorista,

Sun Ronbang. Todos falamos inglês, claro, e a presença de um intérprete me intrigou um

pouco. O major explicou a Emília que, como estávamos em solo brasileiro e a expedição

iria dar apoio a um “eminente cientista” brasileiro, o “senso básico de propriedade” exigia

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Carlos Orsi Martinho 15

que todos os membros da equipe fossem capazes de se comunicar em português. Emília me

disse que, quando chamou a atenção do oficial para o fato de que a maioria dos russos

também tinha algum treinamento (ainda que precário) na língua de Camões, ele apenas deu

de ombros.

Ronbang está aqui para nos espionar, é óbvio. Suponho que o velho medo da

descoberta de dúzias de novas armas biológicas espalhadas à superfície, como outras tantas

goiabas maduras caídas das árvores, ainda perdure na mentalidade militar. E por que não?

Esta “nova era de cooperação”, embora tenha começado há quase quarenta anos, ainda é

bastante tensa.

O capitão americano, Lansdale, tampouco é imune à desconfiança: logo deu um

jeito de que o motorista do segundo jipe fosse um outro americano, um cabo chamado

Landis. Não consigo pôr de lado a impressão de que Landis e o chinês estão travando

algum tipo de duelo de antipatias particular. Nem a de que o que estamos fazendo tem algo

a ver com o meteoro de 1973.

Falei sobre o assunto com o capitão, antes de partirmos.

– Vocês não estão aqui para resgatar algum segredo militar perdido, matar todas as

testemunhas num “acidente” de araque e depois levar “o pacote” de volta para os EUA em

segurança, certo?

Ele quis saber do que eu estava falando, e então expliquei algumas coisas sobre essa

pequena pérola da paranóia dos anos 70. Lansdale, que com certeza ainda usava fralda na

época dos acontecimentos, achou tudo muito interessante.

– Se minha missão fosse realmente essa, você acha que eu diria a verdade? – ele

respondeu, fazendo uma cara de raposa.

– Bem... estamos isolados... Eu não poderia fazer nada a respeito, mesmo... E você

sabe, vilões geralmente adoram falar sobre seus planos, então imaginei que...

– Doutor – o olhar de raposa não se sustentava mais; ele começou a rir. – Eu nem

sabia dessa história de “satélite” até você tocar no assunto. Estou sob ordens da ONU, não

do governo americano. E isto aqui não é um episódio de Bureau Z. Portanto, pare com isso,

certo?

A conversa me deixou um pouco mais tranqüilo, ou menos intranqüilo, conforme se

prefira olhar para a situação.

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Carlos Orsi Martinho 16

À noite, quando acampamos, Ronbang e o sargento russo costumam se aproximar

de Emília e de mim, para conversar. Landis, o americano, também se aproxima, mas não

muito; está, ao que tudo indica, muito compenetrado em seu papel de espião. Kranislav, o

sargento, é da nova geração de militares soviéticos, e não se incomoda em ser chamado de

“russo”, talvez pelo fato de ter nascido na Rússia.

Sun Ronbang, nosso “intérprete” chinês, gosta de falar de política. Condena com

veemência a abertura social soviética da última década, enquanto Kranislav simplesmente

grunhe e chama atenção para o “capitalismo selvagem” que vê crescer na China, a despeito

do regime político fechado. Ao que Ronbang replica, rindo:

– Os governos não existiriam se as pessoas em geral não fossem idiotas demais para

cuidar de si mesmas – e em seguida, aumentando o volume da voz, para ter certeza de que

Landis vai ouvi-lo: – Os americanos, é claro, preferem lobotomizar o povo com raios

catódicos e entupir todos com banha e açúcar. E chamam isso de “democracia”. O regime

da China é, ao menos, mais sincero.

Então ouvimos Landis grunhir alguma coisa em seu “esconderijo”, e caímos na

gargalhada. A conversa que descrevi acima ocorreu há cerca de meia hora. Roteiro

semelhante vem se repetindo todas as noites. Às vezes Emília acrescenta algum comentário

seu. Hoje ela disse algo sobre os governos serem avatares:

– Há algo trancado no porão da mente dos povos, e o governo que perdura é o

governo que dá a esse “algo” um meio de expressão. Cada povo tem sua fera particular;

logo, cada governo é o avatar de um espírito distinto. Não faz sentido comparar países

nesses termos.

As conversas são boas e interessantes, ainda que meio malucas, mas a viagem com

os jipes está sendo longa, lenta e acidentada. A vegetação rasteira, o cerrado, quase que não

existe mais ao norte de Brasília: há um descampado estreito, de poucos quilômetros e que

vencemos rapidamente, mas depois teve início uma floresta densa, aparentemente

impenetrável – não obstante o fato de estarmos conseguindo avançar aos poucos – a mata

mutante.

Há fotos de satélite dessa nova cobertura vegetal, mas nada disso nos ajuda muito.

Temos de abrir caminho, achar espaços para os veículos, lutar palmo a palmo, vencer

rochas, raízes e riachos. É provável que os soldados pudessem ter feito progresso mais

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rápido a pé, mas Emília e eu temos nossas próprias limitações, e de que adiantaria os

soldados chegarem ao corpo da Serpens se não iriam saber o que fazer com ele?

Outro fator que nos está atrasando é minha óbvia curiosidade frente a essa mata.

“Mutante”, sem dúvida, mas como? E por quê? Emília se diz surpresa com o “rigor

arquitetônico” do desenho da selva. Fala em cúpulas, cornijas, ogivas e arcos. Para ela,

estamos entrando numa enorme catedral de madeira.

De minha parte não vejo nada disso. Mas, chamam-se a atenção, por exemplo, os

insetos – ou criaturas semelhantes a insetos. Não sou zoólogo e nem entomólogo, mas sei

que “insetos”, como as abelhas e formigas, têm seis patas; e “aracnídeos”, como aranhas,

piolhos e escorpiões, oito. E que também existem os crustáceos decápodes, como a lagosta.

E ainda há os miriápodes, como as centopéias. Mas não creio que existam centopéias ou

lagostas sociais.

Então, onde classificar uma espécie que se comporta como os insetos sociais, com

“formigueiros” e, ao que tudo indica, “rainhas”, mas cujos indivíduos têm cauda alongada e

ferrão, como o escorpião, e são dotados de doze patas? O que é isso?

E as árvores, também. Quase todas as espécies têm áreas hexagonais, manchas,

vermelhas e douradas, nas folhas; em diversos casos, a consistência dessas áreas coloridas é

quase metálica. Análises que fiz com o equipamento que trouxemos da base em Brasília

revela que se tratam, realmente, de depósitos metálicos, cobre e um pouco de ouro,

misturados a cristais de selênio. Fico a imaginar se essas plantas não estariam

complementando a fotossíntese química com algum processo fotoelétrico. Infelizmente, a

expedição não possui meios para levar um estudo mais detalhado adiante. Terei que

esperar.

Perdoem-me, mas hoje estou confessional.

Revendo as anotações que venho fazendo neste caderno desde que chegamos ao

planalto central, percebo que fui um tanto quanto reticente a respeito de meus motivos para

deixar o Rio de Janeiro e acompanhar Emília nesta viagem ao antigo distrito federal.

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Afirmei apenas que havia concordado em vir depois de “olhar” para a arquiteta. E isso é

verdade, embora não seja, de modo algum, toda a verdade.

Eu queria me afastar do Rio de Janeiro. Queria distância dos sobreviventes. Porque,

veja, eles me faziam sentir culpado. Terrivelmente culpado.

Imagino que nenhum – ou, melhor dizendo, poucos, muito poucos – deles realmente

viessem a mim com uma acusação, velada ou explícita. Repassando aqueles dias com um

mínimo de bom-senso, devo dizer que a emoção mais presente era a gratidão: nos olhos da

criança com asas cartilaginosas; nas palavras da mulher com serpentes douradas no lugar de

fios de cabelo loiro e magotes de vermes marrons brotando continuamente das axilas e do

púbis, minúsculas hidras que geravam cabeças novas a cada depilação; no sorriso aberto da

boca que produzia sêmen em vez de saliva.

Eram-me gratos porque eu os examinava, tocava, falava com eles. Mesmo que não

pudesse, como na maioria das vezes, fazer nada para ajudá-los. Quanto a mim, sentia-me

culpado porque todos tínhamos nascido aqui, mas eles haviam ficado, enquanto eu fugia.

Eles moravam em ruínas de barracos, eu, num prédio restaurado pela ONU. De alguma

maneira, era como se eles tivessem conquistado o direito de estar lá. Eu? Eu era um intruso.

Um covarde. Desertor.

Dizia a mim mesmo que muitos só haviam nascido após o fechamento do país, e

que portanto, para eles, a fuga jamais tinha sido uma oportunidade real; e quanto aos mais

velhos, não era minha culpa se haviam demorado demais para perceber que a situação era

sem esperanças. Talvez o mundo não pudesse ter recebido e absorvido pacificamente uma

diáspora de 90 milhões de brasileiros, mas os primeiros a sair foram bem aceitos. Não era

minha culpa, eu dizia, se eles, todos meus pacientes e seus pais e avós, não tinham sido

rápidos o suficiente.

Então, vim a Brasília para estar com Emília, verdade. Mas, também, para fugir. De

novo.

Emília e eu fizemos amor.

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Estamos juntos há semanas; desde que desembarcamos no Rio, e perante os

militares que acompanhamos até Brasília, sempre fomos um “casal”.

Mas esta foi a primeira vez em que a vi nua. Também, a primeira vez em que toco o

corpo de uma mulher que não é minha paciente em, quanto tempo?, quase quinze anos, meu

Deus! Já li muito sobre sexo na terceira idade, mas nunca antes me havia ocorrido a idéia

de praticá-lo. E não é para entrar em detalhes a respeito – apesar de reconhecer a tentação

de pôr tudo no papel, como um cômico voyeur de mim mesmo – que escrevo sobre isso.

O fato é que o que fizemos, Emília e eu, não foi sexo “da terceira idade”. Conheço

meu corpo. Meus limites. Há vinte anos que tenho consciência plena – e dolorosa – do

estado de cada uma de minhas articulações, da situação lastimável de minhas artérias e dos

restos mortais que atendem pelo nome ridículo de “minha libido”.

Além disso: por mais que eu ame Emília, objetivamente ela é uma senhora de

setenta e poucos anos. Sem implantes, próteses ou plásticas, apenas um pouco de tintura de

cabelo e uma ponte móvel no lugar dos dentes do fundo.

Mas não foram essas as formas que minhas mãos tocaram. Não foi no corpo de uma

anciã que satisfiz desejos que nem sabia mais possuir. E, também, não foram as mãos de

um velho, nem a boca ou o sexo de um velho que...

Fan Emao, como os chineses a chamam, significa “graça e beleza”. Ela faz jus ao

nome de diversas formas, mas nesta noite Emília o mereceu tão literalmente, como apenas

uma menina, uma bailarina de dezesseis, dezessete anos poderia. E eu contemplo minhas

mãos, diante da luz da lanterna, e vejo, talvez, algumas manchas a menos – uma veia

flácida de volta ao lugar? Respiro fundo, meu tórax se amplia, o ar flui para dentro de mim

trazendo um frescor glorioso, um poder, algo que não sinto há – trinta? quarenta anos?

Talvez tudo não passe de impressões subjetivas, claro. Bobagens. A loucura após o

orgasmo. Eu posso estar eufórico e, amanhã, acordar com mais dores do que valeria a pena

contar.

Culpas. Engraçado como umas se sobrepõem às outras, mesmo sem que as

anteriores tenham se resolvido de qualquer forma; sem que nenhuma delas desapareça.

Como facetas que se somam. Culpas brotam umas das outras. São criaturas xifópagas.

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Não digo que o sentimento original tenha passado a existir, de forma consciente, por

causa de minha chegada ao Brasil. É provável que ele tenha sempre estado comigo, tenha

vivido ao meu lado – dentro de mim – desde que vi a mulher ser atacada, décadas atrás, em

Minas, e fugi. Deserção ou homicídio?

Pode ser, mesmo, que eu só tenha voltado ao Brasil por causa disso (“Voltar? Você

está louco? Aquele lugar, desde sempre, desde antes da Serpens, sempre foi uma armadilha.

Nascer no Brasil é, sei lá, uma merda, um puta azar, um castigo pelos pecados de vidas

passadas, cara. Estou feliz na Alemanha. Eu não volto”, tinha-me dito um colega de exílio,

quando lhe contei sobre o convite da ONU).

Assim como é provável que só tenha me conscientizado plenamente do fato quando

esta nova faceta surgiu. Este novo homicídio cometido, agora, inapelavelmente, por minhas

mãos.

Melhor parar de rodeios. Eu conversava com Emília sobre minha ilusão, ou talvez

devesse dizer meu ataque ou meu surto, de juventude da última noite. De nossa noite. Ela

se limitou a sorrir – lisonjeada, suponho – mas insisti, estou certo, disse, de que há menos

rugas ao redor de seus olhos. E meu ombro, acrescentei, direito não me incomoda mais; às

vezes sinto um vazio no lado do cérebro onde registrava a dor.

Eu falava sobre essas coisas: há algo agindo sobre nós, nesta floresta. Talvez

radiação, produzida pelas estranhas folhas fotoelétricas?

Enquanto conversávamos, ocorria uma altercação entre dois dos russos – estamos

juntos há quase uma semana e ainda não lhes decorei todos os nomes: um deles, eu sabia,

chamava-se Ukhal, mas só porque eu o havia tratado da picada de um dos estranhos

escorpiões duodecápodes, sofrida no dia anterior. O veneno da criatura era quase

inofensivo, causando pouco mais que um instante de tontura.

Os gritos chamaram minha atenção, e parei para assistir à luta que se iniciava.

Ukhal e seu adversário xingavam-se em russo. O outro puxou uma faca da bainha

para ameaçar meu ex-paciente. Ukhal, desarmado, em vez de recuar lançou-se, com a

cabeça baixa, sobre o primeiro, e ambos rolaram pela grama. Então o sargento Kranislav

apareceu, agarrou a ambos pelos respectivos colarinhos, ergueu-os, como se fossem

gatinhos brigões, e arremessou-os em direções opostas, agora como se fossem fardos de

roupa suja.

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Um deles, o que estava com a faca, atingiu uma árvore baixa e de tronco fino –

pouco mais que um arbusto – com força tal que derrubou a pobre planta. O solo ao redor

devia estar bem fofo, pois a árvore não curvou e nem se quebrou, simplesmente. Em vez

disso, foi arrancada: desarraigada.

Eu não sabia que o sargento russo era tão forte!

Meu interesse na briga desapareceu assim que vi as raízes da planta, e corri para

estudá-las mais de perto: cada uma delas era composta por uma “trança” de filamentos

delgados, e cada “trança” passava por dentro de uma sucessão de cilindros curtos, ou anéis,

brancos – feitos de alguma substância mineral. Vou fazer testes, mas estou certo de que se

trata de calcário.

Esses anéis de cálcio e carbono não são inteiriços, pois apresentam aberturas nas

laterais; também não têm tamanho uniforme: os de diâmetro maior localizam-se mais perto

do tronco e os menores, na extremidade oposta. Essa estranha carapaça dava às raízes a

forma de uma curva dupla suave e elegante, como um “S” alongado.

E por que me perco, agora, em detalhes assim? Não foi G.K. Chesterton quem disse

que o homem só é capaz de perdoar o que não vê como crime, e que por isso Deus é

necessário – para que o injustificável também tenha perdão?

Sou ateu. Tenho que acreditar que o que fiz foi, de certa forma, justificável.

Eu estava de joelhos no chão, observando essas características, quando ouvi um

grito atrás de mim:

– Cuidado, doutor!

Instintivamente, girei o corpo na direção do som, jogando o punho cerrado para trás.

Senti uma fisgada no bíceps, um pouco acima do cotovelo, e sangue escorrendo; em

seguida, os nós dos meus dedos fizeram contato.

Ouvi um grito abafado e senti o braço tremer sob a energia do impacto. Imaginei se

o ombro não voltaria a doer.

Terminei de girar o corpo e vi o russo cujo nome ainda ignoro caído no chão, a faca

pousada na mão entreaberta. Mais por automatismo profissional que qualquer outra coisa,

fiz um exame superficial no soldado. Estava morrendo, morrendo rápido: meu soco o

atingira bem abaixo da orelha direita.

Eu lhe causara uma fratura grave no o pescoço.

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Por alguma razão, a idéia de uma coluna cervical partida me fez voltar os olhos para

a árvore arrancada; esqueci-me de socorrê-lo. Não creio que qualquer socorro tivesse feito

diferença, mas o fato não muda: ignorei o homem. Em seu último alento, ele não existia,

exceto como inspiração.

Voltei-me para a planta, fascinado. Poderia dizer, fora do mundo.

A coluna quebrada desvendara algo para mim – literalmente: o soldado morria, e

uma venda caiu de meus olhos.

As raízes, em suas fileiras sinuosas de anéis brancos, eram um perfeito ramalhete de

espinhas humanas.

O sargento Kranislav Savin desenvolveu força sobre-humana. Eu desenvolvi força

sobre-humana. Emília está rejuvenescendo. Dagras, o soldado russo que matei, tinha

enlouquecido: segundo Ukhal, ele havia começado a gritar que todos éramos “aves

vermelhas de rapina”, ou “lagartos antropófagos”. E Ukhal, que até o dia em que deixamos

Brasília mal era capaz de contar até dez em francês, a única língua latina que parecia

dominar até certo ponto, agora fala um português perfeito.

Foi ele quem gritou “cuidado, doutor!”, e não parou de usar a proverbial inculta e

bela desde então. Com um leve sotaque gaúcho, eu diria.

Sun Ronbang, nosso “intérprete”, e Peter – descobri seu primeiro nome, finalmente

– Landis estão, ambos, mortos.

Acredito que não por minha culpa. Ao menos isso.

Depois da briga entre Ukhal e Dagras e da morte de Dagras, ontem, o sargento

ordenou uma busca por todo o acampamento. Nenhum motivo específico, imagino, além de

dar aos demais russos algo a fazer. Os corpos foram encontrados sentados, um em cada

jipe. Os assentos dos dois veículos, por baixo dos cadáveres e ao redor, estavam cobertos de

sangue e vísceras. Chamaram-me para olhar, e hoje pela manhã realizei duas rápidas

autópsias. Que posso dizer? Os dois derreteram por dentro e cagaram as próprias entranhas.

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Quando lhe contei sobre isso, Emília disse algo a respeito – que os dois eram

espiões, e que tinham sido enviados um para ficar de olho no outro. Que talvez se

odiassem, e desejassem a morte um do outro.

– Desejos não matam – respondi.

– Mas existe uma relação entre a mente humana e a natureza da realidade – ela

disse. – Afinal, um elétron sabe onde está, ou o que é, até que um cientista decida olhar

para ele?

– Bobagem.

– Quando eu era estudante – disse ela –, tinha uma colega tão arrogante, tão filha da

puta, que sempre que a via pelas costas eu cravava os olhos nela e dizia, baixinho, “tomara

que morra de câncer, sua piranha”.

– E ela morreu? De câncer?

– Oh, não. Até o Despertar, vivia bem e feliz. Depois disso, perdemos contato.

– Mas então...?

– Antes do Despertar. Agora, querido, as regras são outras. Como se você já não

tivesse percebido.

Disse-lhe que não sabia do que ela estava falando.

– Quais, diga-me, são as chances de um médico septuagenário quebrar o pescoço de

um soldado profissional com um único golpe?

A morte de Dagras ainda pesava – pesa – em minha consciência, e o peso é maior

pelo fato de tudo ter sido tão fácil. Apertei os olhos e engoli em seco, fingindo que a luz do

sol e a poeira no ar me incomodavam. Depois, de algum lugar, tirei o que me pareceu uma

resposta espirituosa:

– Ou de uma arquiteta septuagenária acordar um dia parecendo uma moça bem

conservada de quarenta, é isso?

– Exatamente.

– E você tem uma resposta?

– Talvez. Mas você é o médico, não?

Aceitei a pergunta como uma deixa e depois, falando com o sargento, reuni todos os

homens – todos os sobreviventes – para uma bateria de exames físicos.

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Carlos Orsi Martinho 24

Os resultados foram tão impressionantes que não sei se consegui esconder toda

minha surpresa. Médicos com um bom tempo de carreira têm prática nisso, em ler

sentenças de morte com um sorriso amigo nos lábios, mas e quando se trata do oposto?

Porque cada um desses homens está doentiamente saudável. Cada um deles é capaz

de atingir níveis de performance olímpicos em qualquer tipo de esforço físico. Não tenho

dúvidas de que, se tivéssemos uma pista de cem metros aqui, eles seriam capazes de

percorrê-la em pouco menos de dez segundos.

Alguns – Kranislav, eu, um soldado chamado Liutor – têm nível de força e

resistência sobre-humano. Outros, como Ukhal e Evgeny, desenvolveram uma agilidade

mental impressionante; outros ainda – Detz, Andreian, Aleksandr – parecem um pouco

eufóricos demais.

Emília? Ela poderia disputar medalhas em ginástica e no triatlo.

No entanto, apenas Ukhal desenvolveu o que estou chamando de “dom das línguas”.

E apenas ele foi picado pelo duodecápode; estou seriamente interessado em dissecar uma

dessas criaturas.

Não tenho explicações a oferecer. Sinto-me como um cientista de filme B,

atribuindo tudo que desconheço a “misteriosas radiações”, mas sinceramente não vejo outra

explicação.

Emília parece saber, ou suspeitar, de algo, mas não diz nada.

Os exames atrasaram nossa viagem, já que anoiteceu e ainda estávamos nesta

mesma clareira. De qualquer forma, os homens teriam que esfregar os assentos dos dois

jipes antes de partirmos.

Imagino se a base em Brasília, o major Liang e o capitão Lansdale, não está

preocupada. Infelizmente, não há muito que possamos fazer a respeito – o rádio

simplesmente não transmite e o receptor só capta estática vinda das árvores fotoelétricas. O

sinal do celular via satélite não chega a parte alguma.

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Entramos hoje debaixo da sombra do cadáver da Serpens Antiqua, do nosso Cthulhu

tropical. A criatura ainda está a pelo menos um dia de viagem, mas seu corpo, caído ao

norte e, portanto, entre nós e o sol, projeta uma extensa sombra sobre a floresta.

A floresta... Ontem dissequei um dos duodecápodes; essas criaturas estão em toda

parte, literalmente. A despeito da aparência ameaçadora, são até que dóceis. A picada em

Ukhal foi uma estranha exceção. Bem, ontem dissequei um deles, como disse; e acho que

cheguei ao ponto em que a tradição literária exigiria que eu saísse correndo, gritando,

arrancando os cabelos, cometesse suicídio e morresse implorando para que Emília

destruísse todas estas anotações.

Não consigo deixar de lado a impressão de que seria mais correto proceder dessa

maneira. Se o que imagino é real, então até a mais melodramática das reações estaria

plenamente justificada.

Mas olho para mim mesmo – ou melhor, para meus pensamentos, refletidos no

papel – e não sinto horror algum. Pelo contrário, estou curioso; sinto ansiedade, mas uma

ansiedade que não é feita de medo ou de maus presságios, e sim de pura antecipação. Estou

fascinado, como um moleque diante de seu primeiro púbis desnudo. Uma doce hipnose,

cheia de arrepios. E excitado, também.

Voltando ao duodecápode: à primeira vista parece ser um artrópode. Mutante, mas

um artrópode. Tem um esqueleto externo feito de matéria rija, esbranquiçada, quase

transparente. Por baixo há uma polpa, também esbranquiçada, cheia de filamentos e

nódulos – nervos.

Agora, a cauda da criatura, com o ferrão na ponta. Essa parte do corpo é articulada

em três pontos: na junção com o “tórax”, a um terço da extensão e a dois terços.

Bem. Embora o duodecápode tenha um exoesqueleto articulado, dentro da cauda

encontrei três estruturas semelhantes a ossos – ossos vestigiais, atrofiados, mas ossos.

Ossículos. Um em cada segmento. E, de repente, me dei conta de que não estava

dissecando a cauda de um inseto, ou aracnídeo, e, sim, um dedo. O dedo indicador de uma

mão humana.

Juntando isso ao que aprendi sobre as mutações causadas pelas larvas e traças, no

Rio de Janeiro; às raízes do arbusto que foi derrubado outro dia; às impressões de Emília

sobre uma arquitetura inteligente por trás da organização da floresta; e – um último dado

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importante – à total ausência de moradores, cadáveres ou sobreviventes, em todo o antigo

distrito federal, me vejo face a face com a seguinte hipótese: esta mata, flora e fauna

conjugadas, é a população.

Entende?

As pessoas que viviam aqui quando do Despertar, seus descendentes, os corpos de

seus mortos, tudo contaminado. Tudo convertido! Não em aberrações individuais, como no

Rio de Janeiro, mas numa única biomassa, num único ecossistema fechado que interagiu

com o cerrado, alimentou o solo e, ao longo de quarenta anos, produziu um ambiente.

Plantas e polinizadores, parasitas e hospedeiros, folhas e húmus, fotossíntese e

fotoeletricidade.

Tudo ao nosso redor, partes de uma consciência que vem gerando a estranha energia

vital que nos transforma, pouco a pouco, em loucos e super-homens – talvez estágios para

uma assimilação?

Agora me vejo especulando sobre uma outra possibilidade, suscitada pela picada do

inseto em Ukhal; pelo fato de o soldado russo ter passado a falar num português fluente

depois disso. Será que os duodecápodes são os portadores de informação deste organismo,

seus neurônios? Será que os “formigueiros” dessas criaturas são os gânglios nervosos da

mata?

Preciso saber.

Pesadelos. Em epidemia. Uma epidemia de pesadelos. Era isso que eu e os outros

médicos tínhamos enfrentado no Rio de Janeiro, o tempo todo. Agora que, graças aos

duodecápodes, fiz contato com a Unimente, tudo ficou claro.

A Unimente – seu nome não é esse: tirei a palavra de alguma coisa que li, uma

história em quadrinhos, acho, por falta de coisa melhor – tinha estado em órbita durante

eras. Alguém, ao que tudo indica alguém vindo de muito longe, havia colocado o satélite lá

pouco depois da invenção do polegar opositor, para registrar o conteúdo global de todas as

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mentes inteligentes do planeta. A programação da Unimente era simples: mapear a

totalidade da noosfera – a “topografia mental” – do planeta Terra.

Logo nos primeiros milênios, porém, a Unimente percebeu algo desagradável –

parte dos registros tornava tóxica a estrutura orgânica de seus bancos de memória.

Literalmente tóxica. A Unimente era um ser vivo, constituído por circuitos biológicos que

convertiam ondas de pensamento em cadeias moleculares complexas, menores que espirais

de ADN, de forma que toda a atividade mental de um ser humano, da sensação de bexiga

cheia aos pensamentos filosóficos mais sutis, coubesse em algo menor que o núcleo de uma

célula.

O criador da sonda havia projetado a Unimente milhares de séculos antes do

surgimento da civilização humana, e certamente não tinha como saber que rumos a

noosfera terrestre tomaria. A estrutura química da Unimente tinha sido criada, portanto,

com base em conjecturas – conjecturas que se revelaram erradas. Porque, ao longo da

história, primeiro alguns desses bancos de dados, e depois outros e ainda mais e mais outros

foram se revelaram venenosos para o restante da estrutura.

Talvez o criador tivesse previsto esse aumento paulatino de toxicidade, e esperasse voltar

para recolher os registros antes que o problema assumisse proporções mais graves. Se fosse

isso, algo havia dado errado, pois ele não voltara. Tentativas de contactá-lo também

falharam.

O choque mental provocado pela destruição de Cuba tinha sido demais;

literalmente, a gota d’água. A Unimente, que vivia numa órbita variável, subindo e

descendo constantemente para escapar dos radares, naves espaciais e instrumentos

astronômicos, sofreu um colapso em suas funções motoras, e caiu. Despencou, na verdade.

Boa parte de sua massa ardeu na atmosfera, e o que se chocou com o solo, no

planalto central brasileiro, era pouco mais que uma geléia moribunda. Mas havia vida ao

redor, e solo fértil, e nitrogênio, água e carbono. O criador, se não havia previsto todas as

emergências possíveis, tinha, ao menos, programado a Unimente com diretrizes de back-up

para o caso de uma imersão traumática na atmosfera: espalhar o conteúdo já codificado pela

biosfera nativa; e recrutar “unidades móveis” de armazenamento, junto à fauna local, para

dar continuidade ao trabalho de captação e retransmissão.

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Carlos Orsi Martinho 28

No entanto, após a explosão em Guantánamo, a atmosfera terrestre tinha sido

impregnada por uma nuvem alucinógena, radiativa. A Unimente registrara o conteúdo do

cérebro dos americanos da CIA que trabalhavam na base cubana antes da explosão, e os

duodecápodes me mostraram a imagem: tanques e mais tanques de substâncias psicoativas,

experimentais ou já testadas, toneladas de pó e líquido prontas para serem derramadas nos

suprimentos de água potável do mundo livre, assim que a fórmula correta fosse encontrada.

Banido dos EUA, o MK-Ultra tinha continuado a todo vapor em Cuba.

A biologia original da Unimente teria sido imune às drogas e à radiação, mas

naquele momento ela tentava se reconstruir usando a matéria-prima disponível na Terra.

Além disso, todos os seres humanos do planeta (e os golfinhos, chimpanzés e outras

criaturas com acesso restrito à noosfera, também) estavam tendo seus pensamentos afetados

pela contaminação. A película alucinógena era tênue demais, difusa demais para afetar a

consciência coletiva da humanidade, mas o inconsciente coletivo era bem mais sensível, e

acusou o golpe.

Como resultado, a Unimente, ainda tentando se reestruturar para pôr em prática suas

diretrizes de emergência, sofreu um choque final: dividiu-se em duas. O que era – tinha

sido – sua parte saudável ficou na superfície e iniciou o processo de mutação da fauna e da

flora que daria origem à floresta onde estávamos. Passou a atrair moradores de regiões

próximas, de forma lenta e gradual, e a incorporá-los ao sistema nervoso da nova estrutura,

onde ficariam guardados os registros da noosfera antiga.

Já a parte tóxica mergulhou fundo no solo, como um câncer que de repente ganhasse

vida própria, e cresceu, absorveu massa da própria rocha, expandiu-se e emergiu, de forma

explosiva, meses depois – a Serpens.

O pólen e os zangões foram, pura e simplesmente, a estratégia desenvolvida pela

“metade tóxica” para levar sua parte da programação adiante.

Embora a floresta tivesse conseguido capturar a maioria dos infectados por sua irmã

entre os que viviam nas proximidades – num raio que ia até Brasília, mais ou menos – as

vítimas mais distantes estavam fora de alcance: ao optar por se converter numa ecologia

fechada e dar prioridade à diretriz de preservar os dados colhidos no último milhão de anos,

a Unimente saudável havia adiado para mais tarde, para quando sua posição local estivesse

consolidada, a diretriz de buscar mobilidade para fazer o registro bioquímico da noosfera

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presente e futura; tarefa que acabou ficando ao cargo da outra metade, tóxica e

enlouquecida.

O que mais aprendi: a primeira fecundação, causada pelo encontro do pólen da

Serpens com o veneno do zangão, não gera as larvas apenas a partir do tecido cerebral da

vítima e sim – mais ainda, principalmente – a partir do conteúdo da mente atacada. Com as

afinidades específicas da Unimente tóxica, toda a preferência era dada ao inconsciente e ao

subconsciente, In e Sub, os ciclopes idiotas da alma, traduzidos e codificados como genes

mutantes, infecciosos. Virulentos.

O que eu vinha chamando de infecção secundária, portanto, decorre do encontro

entre a tradução bioquímica das fantasias de uma pessoa com a estrutura genética do corpo

de outra, gerando uma versão perversa da “acumulação de dados em unidades móveis” do

programa original. Os dois códigos se fundem e se interpretam mutuamente. Trata-se, de

fato, de uma fecundação: vermes e traças são como espermatozóides, o paciente é o óvulo,

o mutante, o rebento.

Sem cuidar de fato das próprias feridas, interessada apenas em crescer e espalhar a

semente, sem se preocupar com os problemas de compatibilidade entre seu código

alienígena e os minerais brutos que absorvia, a metade louca havia morrido pouco após a

eclosão – mas não sem antes criar um anel de anticorpos ao redor de si, para manter a irmã-

inimiga, a floresta, à distância.

Aprendi tudo isso na tarde e na noite que passei a tarde entre os duodecápodes.

Segui uma fileira deles mata adentro, até o formigueiro – uma estrutura de terra semelhante

a um toco de árvore, com metro e meio de altura. Eu estava certo que a picada de um deles

havia “ensinado” português a Ukhal; estava certo de que outros indivíduos da espécie

teriam outros tipos de informação para dar.

Só não sabia como fazer contato. As criaturas corriam para lá e para cá,

praticamente ignorando minha presença. Ao redor, árvores. Pensei, a transmissão de dados

para Ukhal tinha sido feita por meio de injeção de “veneno” na corrente sangüínea. Seria a

única forma?

Imaginando se não teria nada a perder, ergui um deles com cuidado, pelas patas

dianteiras, coloquei-o na boca e comecei a mastigar. Lentamente. Assim que o sumo

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amargo do primeiro se espalhou em minha boca, outros vieram até mim, os nervos da

floresta, os sentidos incipientes da nova Unimente. Fizemos sinapse. Aprendemos.

Voltei ao acampamento de madrugada. Emília estava acordada, esperando por mim.

Eu havia mastigado um artrópode de doze patas, e dezenas de outros tinham

percorrido meu corpo, descarregando seus conteúdos. Minhas roupas estavam em péssimo

estado, o que deve ter aumentado a preocupação de Emília ao me ver, sob a luz difusa da

lanterna. O sargento Kranislav chegou pouco depois, dizendo que tinha estado à minha

procura.

Apenas sorri: não tinha sido o desejo da floresta que me encontrassem antes que

terminássemos de conversar; era, portanto, mais do que provável que a mata tivesse

desviado o russo de minha posição seguidas vezes.

Por mais tocante (e constrangedora) que a cena do meu reaparecimento fosse,

porém, Fan Emao e Kranislav não tiveram muito tempo para demonstrar a preocupação e a

irritação que certamente sentiam. Um exército de duodecápodes vinha logo atrás de mim,

pronto para invadir olhos, bocas e ouvidos, pronto para partilhar o conhecimento, o poder e

o propósito com os demais.

Outros, eu sei, marcham agora sobre Brasília, em busca de Liang Guangrui, do

capitão Lansdale, dos soldados que ficaram para trás.

Nas últimas quatro décadas, o lado saudável da Unimente havia curado as feridas da

reentrada e consolidado seu novo banco de dados, sob a forma da ecologia especial da

floresta mutante que substitui o cerrado. É, portanto, chegada a hora de passar à segunda

diretriz, mas de forma lógica e ordenada, sem a loucura dos esporos e dos zangões. Para

isso, no entanto, é preciso, primeiro, criar novos agentes de captação – não novas

aberrações mutantes, mas seres humanos, dotados de órgãos especiais para a cartografia da

noosfera, órgãos ocultos, ligados diretamente à floresta e leais ao projeto do criador; este é

o destino dos homens em Brasília, e eu os invejo.

Quanto a nós que estamos aqui, basta aguardar as mutações induzidas pela mata e

pelos duodecápodes terminarem para marcharmos contra os anticorpos, destruirmos o

perímetro e permitirmos que a floresta de que, agora, somos parte, finalmente se aposse dos

recursos e dos arquivos da metade morta.

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O combate não vai terminar nunca.

A Serpens – vista de tão perto – é como uma muralha gigantesca, que se surge de

uma cratera do solo e se estende a perder de vista. Tem, estimo seiscentos metros de altura.

O solo ao redor é só cinza a rocha. Num determinado ponto, a floresta simplesmente

deixa de existir; o perímetro, até esta manhã, era protegido por dezenas de criaturas que só

posso comparar a chimpanzés, mas com garras afiadas nas quatro mãos, e cabeças com

bicos cortantes no lugar da boca. Não passavam de máquinas vivas de rasgar e perfurar;

eram pequenos, porém numerosos e rápidos.

Kranislav e Ukhal, galopando à vanguarda de nossa coluna, esmagaram dúzias sob

seus cascos; Emília, descendo do céu num mergulho rápido, rasgou as costas de outros

tantos com seus esporões de águia. As demais criaturas deixaram seus postos de vigilância

e correram para atacar os dois centauros, abrindo espaço para que eu e o outro russo,

Mosorov, penetrássemos na clareira.

Às nossas costas, ouvimos o som dos fuzis disparando. Uma vez perdido o elemento

surpresa, os dois centauros não confiavam mais apenas nos cascos.

Há uma fenda triangular no corpo da Serpens – provavelmente uma ferida mas,

nesta escala, algo que mais parece uma caverna. De acordo com a floresta, aquele é o nosso

objetivo. Mosorov e eu caminhamos decididamente naquela direção. Nossas novas pernas

não são boas para correr, ao contrário das dos centauros, mas nossos cascos são mais

pesados, e somos mais fortes e maiores: estimo que, depois da última mutação, tenhamos

chegado aos cinco metros de altura.

Se isso for verdade, os dois ciclopes que guardavam a entrada da ferida tinham, pelo

menos, seis. Ambos portavam clavas que mais pareciam estalactites gigantes, ou montanhas

em miniatura. Mosorov e eu estávamos desarmados – somos grandes demais para usar os

fuzis, de qualquer forma.

As pernas são ruins para correr, mas os joelhos invertidos dão uma vantagem

quando se trata de desviar o corpo. O ciclope que me atacou ficou confuso quando baixei o

corpo e me inclinei para trás num só movimento; a clava passou zunindo um pouco acima

da minha testa! Joguei o casco direito à frente, enfiando as duas pontas no lado de dentro da

coxa do monstro, o que não tirou sangue, mas arrancou farpas e estilhaços – o mesmo que

sangue, em se tratando de um monstro feito de terra e pedra animada. Ele caiu para a frente,

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vindo sobre mim, e eu o atingi em cheio com um murro no estômago, o que o fez balançar

para trás, mas ele logo voltou a avançar, aproveitando o impulso para baixar a clava com

força – me acertou na lateral do ombro, pondo meu braço direito para dormir. Ele estava

inclinado, com o queixo um pouco acima da minha testa. Movi a cabeça com rapidez,

primeiro para trás e depois para frente e acima, enfiando os dois chifres no único olho.

Depois disso, foi pura carnificina.

Mosorov também já havia se desembaraçado de seu ciclope, e corria na direção da

fenda. Eu me preparava para segui-lo quando vi alguma coisa brilhar na escuridão – olhos?

Gritei para avisá-lo, mas já era tarde; eu estava perto, e seu sangue cobriu por

inteiro.

Obriguei-me a olhar fixamente para a fenda por onde meu colega tinha

desaparecido: não havia nada lá, só escuridão. E, de vez em quando, o brilho de um, dois,

vários olhares cruéis.

Este é meu último registro. Não sou mais capaz de segurar a caneta sem que meus

dedos doam, e o relato, terminando neste ponto, já deve ser instrutivo o bastante para os

que vierem depois.

A Unimente da floresta nos diz que o cadáver de sua irmã deve ser habitado por

organismos surgidos a partir das moléculas tóxicas dos registros passados – das anotações

bioquímicas de cada crime e de cada obscenidade que já mancharam a noosfera terrestre,

desde o surgimento do homem.

A Unimente insiste que devemos ir até lá, e dar cabo de todos.

Sendo, como somos, parte da floresta, não vejo como poderíamos discordar.

Foi a floresta que tentou purificar a mente do russo que matei, levando-o,

inadvertidamente, à loucura – um processo semelhante ao fez aflorar toda a culpa que eu

sentia sem saber, apagou meus medos, limpou minha alma, reorganizou minha mente e me

preparou para esta Mutação; foi a mata que levou o duodecápode a picar Ukhal, testando a

compatibilidade dos fluidos corporais e da transmissão de conhecimento via ARN; foi a

mata que me rejuvenesceu; que deu a Rombang e a Landis os poderes incipientes que os

dois idiotas preferiram usar um contra o outro; foi a floresta que transformou um punhado

de homens em Gigantes, Faunos e Centauros, e Emília, numa Fúria Alada.

punhado de homens em Gigantes, Faunos e Centauros, e Emília, numa Fúria Alada.

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É, portanto, pela floresta que lutaremos amanhã.