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  • A Mente HumanaCincias Cognitivas e Espiritualidade

    Arthur Shaker

    Coleo Vises Rumo ao Dhamma2011

  • Arthur Shaker Fauzi Eid

    Doutor em Etnologia Indgena pela UNICAMP. Tra-balho de pesquisa cosmolgica e intercmbios culturais, desde 1991, junto comunidade indgena Xavante de Pimentel Bar-bosa (MT). Mestre em Cincia Poltica pela USP. Aperfeioa-mento pela London University, sob orientao do Prof. Dr. Eric J. Hosbawn.

    Introduo ao estudo das lnguas Grega, rabe, Gua-rani. Estgios em Educao e Estudos do Hinduismo (lngua snscrita, canto hindu, mudras, Hatha Yoga) na ndia, Banaras Hindu University; e retiro budista Vipassana na Tailandia.

    Professor em Religies Orientais e Cosmologias Com-paradas. Professor da Faculdade Livre da 3. Idade, nas Facul-dades Integradas Claretianas, SP. Professor e instrutor de medi-tao no Centro de Yoga Narayana, SP. Fundador, Coordenador e Instrutor de meditao budista da Casa de Dharma - Centro de meditao budista Theravada, So Paulo. Coordenador da Meditao da Plena Ateno (Mindfulness) do Ncleo Neuro-cincias, Mindfulness e Sade Casa de Dharma.

    Instrutor de retiros budistas de curta, mdia e longa du-rao (20 dias)

    Escritor Buddhismo e Christianismo: esteios e caminhos, Ed. Vozes/RJ, 1999; A Travessia Buddhista da Vida e da Morte, Ed. Gryphus, RJ, 2003; Os Senhores da criao do mundo Xa-vante - Romhsiwa (tese de doutorado, UNICAMP, 2002); Por dentro do Escuro, Ed. Global, SP, 2011.

    Msico (CDs Bhava Chakra; Interiores do Ser-to).

    arthur.shaker@gmail.comwww.casadedharmaorg.orgwww.arthurshaker.blogspot.comwww.saudemindfulness.blogspot.com.br

  • Introduo: os desafios para as Cincias

    Cognitivas do ser humano

    Considero que a finalidade de todas as Cincias cognitivas que dizem respeito ao ser humano a de oferecer diretrizes para a realiza-o do bem maior que todos os seres humanos - e devemos a incluir tambm os seres viventes no-humanos - almejamos: a realizao da Felicidade, e a superao do sofrimento. Todos ns queremos ser felizes, ningum quer sofrer. E por qu difcil realizar este propsito? Antes de tudo, preciso compreendermos a mente humana. e seus condicio-namentos. Por qu, a despeito de nosso desejo e esforo pela felicidade, ainda assim a mente experiencia sofrimento? H contaminantes que criam venenos na mente? Esses contaminantes so apenas produtos do meio social? possvel libertar a mente desses venenos? Se este for o grande desafio da Educao, como educar a mente neste esforo? Qual o papel da tica? A razo humana seria suficiente para esta realizao? Ou haveria a necessidade de uma prtica mais profunda, um treinamento mental meditativo? Qual o lugar da Sabedoria? Leitura e reflexo cons-tituem a abertura inicial para a Sabedoria.

    Este livro toma como base o conhecimento do patrimnio das Tradies espirituais. A experincia nos mostrou que esta uma via fecunda e til, pois nelas esto os arqutipos que abrem a cognio e prtica humana na direo do propsito maior enunciado no incio des-ta pgina. Na medida do possvel, e necessrio, faremos pontualmente incurses pelo campo da cincia e filosofia ocidental moderna.

    O livro se compe de duas grandes unidades: a primeira, So-phia Perennis, a Sabedoria Atemporal, constitui-se numa coletnea de textos sobre temas e portas variadas em torno das Cosmologias e suas relaes com a condio humana. No pretende ser um tratado geral e orgnicamente estruturado sobre o conhecimento humano. Os textos constituem uma reflexo sobre as doutrinas espirituais e suas Cosmolo-

  • gias comparadas, dentro das quais podemos pensar em Cincias Cog-nitivas, para uma compreenso da mente humana. A segunda unidade, Antropologia dos Mitos e Ritos, procura investigar e mostrar que as vrias formas das tradies espirituais estabelecem verdades e regras de viver e pensar que tornem a vida terrestre possvel, ao mesmo tempo abrindo para a realizao espiritual. E na maioria dos casos, as tradies espirituais apresentam suas verdades na forma de mitos, e suas prticas na forma de ritos. Assim, a compreenso das estruturas dos mitos e ritos pode nos ajudar na reflexo sobre o que seriam vias para uma Cincia Cognitiva da mente e realidade humana.

    Para a realizao do projeto deste livro, partimos conceitualmen-te da Metafsica, conhecimento que lida com a alta e misteriosa ins-tncia da Realidade ltima, os princpios universais que so a raiz de tudo que se manifesta e no se manifesta. Dela descemos instncia da Cosmologia, o domnio e o prprio conhecimento do Cosmos, a realidade limitada da manifestao fenomnica, o lugar da incessante mudana e transformao. Dentro da Cosmologia est a Antropologia e a Psicologia, o domnio e o prprio conhecimento do homem, em sua dimenso transcendente, cosmolgica, social e mental. O Mundo e a Mente humana so espelhos um do outro. Pocuramos transitar por um e por outro, segundo vrios mbitos das sociedades humanas, no tempo e no espao, na tecitura cognitiva para uma cincia da mente humana.

    Por que escolhemos os termos Tradio espiritual e Cosmologias comparadas, ao invs de Religio e Religies Comparada? Os termos Tradio espiritual e Cosmologias comparadas so mais amplos. O ter-mo religio tem certa limitao, pois muitas vezes aparece associado a uma concepo que pressupe a noo de um deus criador, o que no um princpio universal, como podemos ver no caso do Budismo e Taosmo, que seriam tradies ou religies no-testas, o que diferente da noo de atesta.

    Comparar Cosmologias e religies no um trabalho simples. Vejo pelo menos dois grandes desafios: o primeiro diz respeito a um nvel intelectual, o segundo ao nvel prtico-existencial.

    Sobre o primeiro desafio, o intelectual: como percorrer por entre tradies diversas em suas cosmovises? A busca de princpios univer-

  • sais que estariam na base de todas as tradies espirituais , como o prprio nome significa, o propsito da Sophia Perennis. Esta busca foi a motivao que orientou meu esforo e corao durante longos anos em que estes textos foram sendo escritos. Meu corao dizia que essa busca era legtima, como que uma intuio que responde a uma possibilidade real de aproximao das verdades ltimas. Como que o intelecto disses-se: Sim, real e possvel e consistente para a inteligncia.

    Esse percorrer, que ser feito pelos textos, mostrar como isto foi sendo feito, e os frutos disto. H, entretanto, dois extremos perigosos neste percurso: se estagnar e se perder nas diferenas entre as doutrinas espirituais (a armadilha do relativismo que se pretende absoluto), ou forar uma unidade que ignore os paradoxos e certas diferenas muitas vezes insolveis entre elas (a armadilha do universalismo homogenei-zante).

    Talvez uma das diferenas mais complexas que encontramos nas doutrinas espirituais seja a questo da ipseidade ou essncia ltima da realidade. Nos ensinamentos do Canon Pali do Budismo Theravada (que se difundiu pelo sudeste asitico, Sri Lanka, Birmnia, Tailndia, Laos, Camboja), no encontramos suporte para a noo de uma alma, essncia eterna, aquilo que no Hinduismo designado como atman, princpio ltimo. Isto se coloca em confronto com o ensinamento do Buddha sobre anatta, a caracterstica da impessoalidade insubstancial, no-eu, de todos os fenmenos, incluindo a condio humana.

    A tentativa de um dos maiores eruditos hindus, A. Coomaraswa-my, (que teve um papel de bastante influncia em um outro grande pen-sador, Ren Gunon, cujos escritos em muito contribuiram em minhas reflexes), de buscar contornar esse tema do no-eu, utilizando as duas formas de linguagem si mesmo, self (o si mesmo/ego ilusrio) e o Si mesmo (Self verdadeiro) parece um artifcio forado, conforme co-menta um estudioso budista, Marco Pallis, em seu texto sobre Anatta, no Espectro luminoso del budismo (Herder, 1986). O monge budista Thanissaro Bhikkhu tambm apresenta reflexes interessantes, em al-guns pontos crticos sobre este tema, em seu texto Perennial Issues, em The Karma of Questions (Metta, 2002). Argumenta ser questionvel se recorrer aos ensinamentos do Budismo Mahayana (que se difundiu pelo norte da sia Tibet, China, Coria, Japo) para tentar se con-

  • tornar esse ponto sobre a doutrina do no-eu. O Budismo Mahayana argumenta que a tradio budista Theravada teria um carter incom-pleto (viso no aceita pelo Budismo Theravada), e que a completude se encontraria apenas no Budismo Mahayana, no qual um dos pontos bsicos reside na noo de no-dualidade, que identifica a realidade l-tima com a noo de budeidade.

    Considero saudvel a prudncia e o respeito pelas divergncias sobre as diferenas entre as perspectivas das doutrinas espirituais, exa-minando-as com equanimidade e um esprito investigativo, e aceitando os limites de transito entre essas doutrinas. Um exemplo desta atitude saudvel encontramos no relato de experincia de Dalai Lama, convida-do a comentar passagens do Novo Testamento, em uma reflexo compa-rativa entre os ensinamentos do Budismo e do Cristianismo (O Dalai Lama fala de Jesus, Fissus, 2003). Tambm escrevi nesta mesma mo-tivao um livro, Buddhismo e Christianismo Esteios e Caminhos (Vozes, 1999). Ponderar e respeitar os limites envolvidos nesse dilogo interreligioso no significa, entretanto, que devamos inviabilizar a pos-sibilidade de uma construo de uma Sophia Perennis. E isto nos conduz ao segundo desafio.

    A construo do entendimento de uma Sophia Perennis tem um mrito de se constituir num suporte que amplie nossos horizontes sobre os fundamentos de nossa existncia, nosso lugar no Cosmos, e a relao entre o cosmos fenomnico e o transcendente, a Realidade ltima. Mas a construo intelectual tem seus limites. Assim como a realizao desta verdade maior a natureza da Realidade ltima, Nibbana - foi efetivada pelo Despertar e Iluminao do Buddha, tambm para cada um de ns isto s pode ser alcanada atravs de nossa prpria prtica espiritual ex-periencial. E para esta realizao, cada tradio tem sua via prpria, ni-ca, irredutvel aos parmetros das outras tradies. Significa que cons-trues das idias, se por um lado podem ser um suporte ampliador, por outro lado, podem nos enredar num intelectualismo que acabe sendo uma distrao especulativa ao nvel das idias e constructos mentais que nos afastem da experincia direta da verdade. E esta se d no contexto da orientao especfica de cada tradio e seus mtodos de meditao, sabedoria e cultivo de virtudes. Leitura e reflexo constituem os dois n-veis iniciais da sabedoria, ou mais precisamente, do conhecimento, mas a Sabedoria profunda s realizada pela experincia direta da verdade,

  • sinnimo de Iluminao final. Os textos aqui refletidos devem ser vistos neste limite: so modestas aberturas.

    Alguns temas ou aspectos de certos temas aparecem repetidos em certos textos, e isto devido ao fato que os textos foram escritos se-paradamente, ao longo do tempo, cada um sendo uma unidade em si mesma, por isso muitas vezes era necessrio repetir em cada novo texto certos fundamentos. Quando compilados, surgem certas repeties. O correto seria fazer uma copydescagem, suprimindo repeties. Suprimi algumas, e se a urgncia em oferecer esses frutos no pressionar demais, espero prosseguir essa reviso. Por ora, algumas repeties. Conto com sua pacincia e compreenso.

    Esta coletnea reflete um pouco do percurso de minha juventude reflexiva. Espero que estes textos possam lhes ser teis.

    Que todos os seres sejam sadios, pacficos e verdadeiramente fe-lizes!

    Arthur Shaker Fauzi EidFevereiro 2010

  • a Sabedoria AtemporalSophia Perennis

    Cosmologia e Cincias Cognitivas

  • Ensaios

    Eu, a sabedoria, habito com a prudncia, e acho a cincia dos conselhos.

    Meu o conselho e a verdadeira sabedoria; eu sou o entendimento, minha a fortaleza.

    Eu amo aos que me amam, os que de madrugada me buscam me acharo.

    (Provrbios, 8.12,14,17)

  • Sumrio

    a Modernidade aos olhos da Tradio hindu, budista e taosta xx

    A religiosidade indgena e a Natureza xx

    A Espiritualidade indgena e os 500 e quantos anos da ambio ocidental xx

    La Espiritualidad Indgena y los 500 e quantos aos de la ambicin occidental xx

    Indigenous Spirituality and 500 years of Western Ambition xx

    Auw anda pelo sonho - a Espiritualidade indgena e os perigos da Modernidade xx

    O conhecimento de Deus: Cristianismo e Tradies Indgenas xx

    O um e o outro nas religies: tradies indgenas, educao e alteridade xx

    No princpio, no existia nada xx

    Quando no havia nada, brotou uma mulher de si mesma xx

    O desenvolvimento do Budismo no Brasil por meio da Educao xx

    O Lugar do Homem nas doutrinas tradicionais xx

    A Sabedoria do Intelecto e o caminho mtico xx

    Espiritualidade oriental e Educao Humana xx

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    a Modernidade aos olhos da Tradio hindu, budista e taosta

    (1)

    A manh se abriu ensolarada. Ontem, chovera quase sem des-canso, aquela chuva mida e fria, cobrindo o espao de c embaixo das nuvens de um tom melanclico e mido. A modernidade tem sido mos-trada e vivida como algo semelhante. A Idade Mdia teria sido a Idade das trevas, dominada pela ignorncia e opresso de um sistema feudal apoiado pelo obscurantismo de um Cristianismo imposto pela fora de uma f avessa razo e liberdade.

    A partir do sc. XIV d.C. o mundo europeu desencadearia uma srie de movimentos de transformao em todas as reas da existncia, mudanas de tal amplitude que em pouco tempo o mundo medieval europeu ficaria como que algo de um passado longnquo e esquecido. O que se designa por modernidade configura um estado de esprito psi-cocultural que aos poucos se imporia como viso dominante. Na eco-nomia, os grandes descobrimentos abririam canais para uma intensa circulao de produtos que propiciariam a vitalizao do comrcio e a emergncia de uma classe burguesa mercantil que foraria os muros do mundo restrito feudal, colocando merc da industrializao gran-des contingentes de servos desapropriados de seus meios de produo e agora uma massa de proletrios com apenas sua fora de trabalho para vender s portas das indstrias capitalistas.

    Na poltica, a emergncia do Estado-nao, forjado na inspira-o de Maquiavel, com sua noo do Prncipe articulador de talento e condies histricas, inaugurando uma viso secular da orientao poltica. No domnio da cultura, o domnio progressivo da razo con-tra a f religiosa crist, o abandono da religio como viso totalizante, a emergncia de uma viso de Cincia, aberta ao experimentalismo, pesquisa, dvida, tendo a noo de indivduo como instncia real do homem cujos desejos encontravam oportunidade e direito de se desven-

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    cilharem das rdeas dos parmetros cristos limitantes. Classes burgue-sas e individualismo marcaro a ascenso do romance prosaico em que os personagens so agora indivduos, em detrimento do epopico e da literatura referencial e arquetpica.

    Ser original, inovador, novo, so as nfases do moderno, banin-do o tradicional como repetitivo, reiterativo e no-criativo. A Moder-nidade ser defendida como uma aspirao revoluo permanente, o legtimo desejo de constante modificao e inovao. Uma teoria do Progresso surgiria nas especulaes de Darwin, Spencer e Comte, bus-cando um sentido na Natureza e na Histria humana, que fosse uma alternativa para a concepo cosmognica crist de um Deus criador. As especulaes de Darwin sobre as espcies iriam fornecer as refe-rencias para a formulao de uma viso de Evoluo, que atravs da diferenciao e seleo natural das mutaes mais adaptativas encade-aria o processo evolutivo dos seres, do simples ao complexo, do homo-gneo ao heterogneo. Como as ondas coloniais se deparariam com povos de mltiplas formas de viver e pensar distintos dos europeus, os pensadores ocidentais se esforariam em articular suas noes de progresso e evoluo de modo a correlacionar as suas diretrizes eco-nmicas, polticas e ideolgicas com os dados trazidos pela presena de povos com modos existenciais no s distintos como opostos sua concepo de vida.

    Das concepes do evolucionismo sairiam muitas hipteses de autores como Morgan, e sua proposio das etapas do primitivo civi-lizao, que tanto influenciou Engels, em seu ensaio sobre a origem da famlia, da propriedade privada e do Estado. A despeito das diferenas de matizes, a viso da Modernidade aberta pelo mundo europeu ps-s-culo XIV como uma marcha ascendente de crescente expanso, liber-dade e abertura, se constituiria aos poucos como a teoria dominante. O fascnio pelos artefatos tecnolgicos que se superam a cada dia fortifica a viso de uma era de expanso sem limites rumo s estrelas, aberta pela Modernidade. Mas essa breve caracterizao da Modernidade deve ser tomada apenas como linhas gerais introdutrias, seria simplismo con-cluir que daria conta de toda complexidade desse processo heterogneo marcado por rupturas, contradies e impasses desde seu desencade-amento at os dias atuais, j referidos como ps-modernidade em sua etapa de globalizao.

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    Deste vasto tema da Modernidade, destacaremos apenas um de seus paradigmas-emblemticos para exame: o de que a modernidade significou o desencadear de uma libertao que tem na razo um de seus suportes maiores. Vamos examinar esse paradigma e seus vrios significados segundo pontos de vista no-ocidentais modernos, aos olhos dos princpios das tradies milenares asiticas: a tradio hindu, budista e taosta. A compreenso do alto grau de elaborao espiritual que marca o universo cognitivo das milenares trajetrias das tradies orientais exigiria uma explicitao mais ampla. Dado os limites deste texto, teremos de nos restringir a uma sntese dos conceitos necessrios.

    Como ponto de partida, temos de compreender o que significa o conceito de Tradio, de crucial importncia e bastante mal entendi-do, quando no objeto de menosprezo pelo mundo moderno. A palavra Tradio, seu verdadeiro significado e contedo, aos poucos se perdeu no Ocidente moderno, passando a ser associado ao costume, o repetiti-vo e mecnico, o passado. Este conceito foi apropriado por instituies de ideologia abertamente reacionrias, para designar realidades que s na aparncia parecem ter algo a ver com seu sentido verdadeiro. Tam-bm tem sido usado para referir-se ao folclrico, cultivado como remi-niscncia de um passado, ou o atrasado, o fora de poca, ultrapassado pela Histria. O Ocidente, auferindo uma noo valorativa de progresso e evoluo a partir de suas interpretao de um perodo de apenas cinco sculos de sua histria, rotulou o termo Tradio como caractere de po-vos sem escrita e sem domnio tecnolgico, como conjunto de crenas fetichistas e supersticiosas, sem base cientfica, dos povos primitivos. O retrgrado, contra o progresso. Mas vejamos.

    Iniciando pela tradio hindu, de acordo com sua sabedoria, a existncia, o mundo, no podem ser compreendidos quando se perde a inteleco do que possam ser seus princpios fundantes: podemos en-tender o que seja um galho em si, se secionada de sua verdade inclusiva, a rvore? No preciso ter ido escola para percebermos que o nosso mundo se caracteriza por ser uma realidade limitada. Queiramos acei-tar ou no, a todo instante nossa percepo nos relembra que, como seres humanos, somos limitados: doena, morte e finitude andam jun-tas com o homem. Mas o limitado no tem razo suficiente em si. semelhana do exemplo do galho, se o percebemos como limitado em seu contorno fechado porque o tomamos como objeto supostamente

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    destacado da rvore. Mas, ontolgicamente, o que mais limitado s pode ter seu fundamento no que menos limitado, o galho tem na r-vore seu princpio. Abrindo essa operao ontolgica, a rvore por sua vez s existe a partir do espao em que se integra e se nutre. Integrali-zando essa operao, que simultaneamente reintegrativa e cognitiva, chegamos ao Infinito Transcendente, que simultaneamente o ponto de partida necessrio. Partida para a manifestao dos mundos relativos e limitados como o nosso, e ao mesmo tempo chegada, quando se busca o retorno Fonte.

    Este o esteio central de toda a estrutura tradicional hindu, se-gundo seus livros sacros - dos quais os Vda so considerados a autori-dade ltima - e suas autoridades tradicionais legtimas. Toda realidade fenomnica emana da Realidade ltima referida como Brahman. De-signao do gnero neutro na lngua snscrita, Brahman nominalmen-te provm da raiz verbal brih (ou brinh), ser denso, crescer forte, gran-de. Como Absoluto, tambm referido como Ananta, Infinito, como Prnam, Plenitude.

    Brahman, como o Absoluto, o lugar da Possibilidade Universal, dos princpios universais originantes. O termo lugar deve ser consi-derado como apenas um expediente limitado da linguagem, necessrio para oferecer para a mente humana um suporte mnimo de representa-o de uma realidade que de fato nenhuma linguagem pode expressar, dado o carter intrinsecamente limitado da linguagem. O simbolismo espacial expresso no termo lugar deve ser tomado apenas como um suporte aproximativo da realidade apontada pelo smbolo, o que de an-temo j coloca que o acesso cognitivo a um universo metafsico, como o da tradio hindu, passa pela compreenso de seu sistema simblico.

    Em torno do tema de Brahman como Absoluto e Realidade lti-ma, h na tradio hindu uma enorme quantidade de fontes e elabora-o doutrinal. De acordo com um de seus comentadores hindus, Brah-man uma essncia sem dualidade (adwaita) (2). Desta colocao, baseada nos textos-comentrios hindus, destaco a noo de Absoluto como adwaita, palavra formada pelo prefixo a (no) e dvi (dois): no--dualidade. Os hindus consideram a noo de no-dualidade como ontolgicamente acima do conceito de unidade. Para ser mais preciso, como no-dualidade, adwaita aponta para a noo supra-ontolgica

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    de Brahman como Supra-Ser (o que bem outra coisa do que a idia comum de Super-Ser, como apenas aumentativo de ser). Do Supra-Ser procede o Ser como Determinao primeira.

    Se compararmos a concepo hindu de Brahman como Supra--Ser, Realidade ltima, com uma tradio vizinha ndia, a tradio ta-osta da China, encontramos no Tao-Te-King de Lao-Ts algo anlogo, referido como o Tao sem Nome: o Tao, que pode ser expressado, no o Tao perptuo. O nome, que pode ser nomeado, no o nome perptuo. Sem nome, Princpio do Cu e da Terra, e com nome, a Me dos dez mil seres (3). Sua Transcendncia aparece em seus atributos: Chung (oquidade), Yan (abismo e profundidade), Ku Shen (Esprito abismal), Hsu (vazio). O Inominvel, porque como Realidade Suprema nirgu-na, palavra sanscrita que provm do prefixo negativo nis (no) e guna (qualificao): no-qualificado, no-caracterizado.

    Como lugar da Possibilidade Universal, o Princpio Supremo contm em si todas as possibilidades, tanto as de no-manifestao como as de manifestao. So estas ltimas que so chamadas a se manifestarem enquanto Cosmos ou o domnio dos mundos manifes-tos, portanto relativos e condicionados, limitados. O termo hindu tribhuvana, o domnio da existncia condicionada de trplice instn-cia, o corporal, determinado pelo sutil e este pelo informal. A tradio hindu sustenta que toda a estrutura existencial, sinnimo de Cosmos, est fundada em bases metafsicas, entendida aqui como os princpios universais enraizados na Realidade Transcendente ltima. Estes prin-cpios articulam o mundo humano e csmico com o Transcendente, sustentam a vida e transmitem o conhecimento que h milnios orien-ta o modo de viver hindu, entendido o viver em sua complexidade de nveis, como a atividade cognitiva, as prticas rituais, as formas de parentesco, de organizao do espao, do trabalho, e tudo o mais. Esta Realidade Transcendente ltima constitui a Fonte-Cabeceira e a Fonte-Foz do rio existencial da tradio hindu. Toda a existncia csmica - em seus mltiplos planos - uma manifestao relativa de certas possibilidades contidas no Absoluto.

    Parte-se do Absoluto como raiz metafsica ltima, princpio maior do qual decorre a existncia cosmogonica. De dentro da estrutura cosmogonica decorrem os mltiplos mundos, inclusive a sociedade hu-

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    mana, desenrolando-se no tempo e no espao. Este desenrolamento do Cosmos, em seus mltiplos nveis de realidade dinmica a partir de sua raiz o Absoluto, se d segundo um eixo paradigmtico no qual tambm se constituem os correspondentes e analgicos domnios do universo cognitivo hindu. Enquanto categorias cognitivas, os princpios univer-sais que suportam o complexssimo universo de tranados que liga cada aspecto do Cosmos com o Absoluto referem-se ao domnio da Metaf-sica. Termo grego, a Metafsica tem seu equivalente nas referencias cog-nitivas do Vedanta, um dos seis pontos de vista com que se estudam os Vda e que dizem respeito aos suportes intelectivos propiciadores para a aproximao do conhecimento de Brahman como absolutidade e fi-nalidade ltima de toda a tradio hindu.

    Do grego meta, para alm e Fisis, Fsica, a compreenso do termo Metafsica exige que entendamos o que os gregos significavam com o termo Fisis. Para os gregos, o termo Fisis, Fsica, tinha uma acepo bastante diferente daquela que seria utilizada pelos pensadores modernos. Para os gregos designava a Natureza como sinnimo de Cos-mos, no sentido amplo do mundo manifesto e relativo, que em certas linguagens teolgicas tem seu aproximativo na acepo de mundo cria-do, um modo ordenado e limitado de ser, extrado de dentro da indi-ferenciao da substancia primordial. Em outro momento haveramos de analisar a diferena entre essa concepo grega ou hindu de Natureza ou Fisis com aquela utilizada pela Antropologia em sua dicotomia Na-tureza-Cultura, e as implicaes desta diferena. Para os gregos, a Fsica, designando a cincia da Natureza sem nenhuma restrio, ento a cincia que se relaciona com as leis mais gerais do devir, porque Na-tureza e devir so, no fundo, sinnimos e era assim que o entendiam os gregos, nomeadamente Aristteles; se existem cincias particulares referindo-se mesma ordem, so apenas especificaes da Fsica para este ou aquele domnio estritamente determinado (4).

    A Metafsica refere-se ao supracsmico, ao supranatural, ao do-mnio dos princpios que esto para alm do Cosmos, mas que ao mes-mo tempo permitem e sustentam a existncia do Cosmos. Em nosso exemplo da rvore, os galhos, flores e frutos seria a imagem simblica do Cosmos, e a raiz o supracsmico fundante, oculto nas profundezas do invisvel. A Metafsica designa tanto as leis que ligam a Natureza (Fi-sis, o Cosmos ou mundo criado), aos seus princpios transcendentes,

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    como esses prprios princpios universais, assim como conhecimen-to desses princpios que esto para alm da Natureza, da Fisis, como entendiam os gregos e outros povos orientais, como a tradio hindu: Para Aristteles, a Fsica era apenas segunda em relao Metafsica, quer dizer que ela estava dependente desta, no fundo era apenas uma aplicao ao domnio da Natureza dos princpios superiores Natureza e que se refletem nas suas leis... (5). A Metafsica o fio de Ariadne que liga a Natureza aos seus princpios supra-Natureza, o Transcendente. Poderamos agora nos perguntar no qu se corporifica, para os homens, a Metafsica como elo que liga e clarifica os nexos entre a Fonte-Raiz Transcendente e os mundos manifestos e relativos.

    Em nosso exemplo da rvore, este elo, o Tronco, a Tradio, xis Mundi, entendido como o corpo de princpios metafsicos que mantm os nexos de ligao entre o Cu e a Terra, aqui designativos dos Princpios e da manifestao existencial. Povos tradicionais desig-nam, portanto, aqueles povos cuja constituio se funda em uma Tra-dio enquanto um corpo articulado de princpios metafsicos, cuja seiva os alimenta e atravs da qual as verdades superiores so revivi-ficadas para toda a comunidade e cada indivduo, segundo o modo prprio de cada tradio, fornecendo-lhes a base de seu modo de pen-sar e organizar suas vidas, suas artes, cincias, arquitetura. Tradio e Metafsica significam fundamento espiritual de existncia, pois nunca demais lembrar que a vida para os povos tradicionais sempre en-tendida e praticada como breve presena neste efmero plano de exis-tncia, porm segundo regras que garantam certo equilbrio possvel no intercmbio entre o domnio terrestre e o celeste, equilbrio sempre frgil e relativo a exigir reiteradas readaptaes, em virtude de certas tendncias csmicas apontadas pela tradio hindu, e que retomare-mos adiante.

    Como Eixo do Mundo, a Tradio traduz para seu povo as leis metafsicas que regero os mltiplos aspectos da vida deste povo, arti-culando a existncia com o transcendente, de acordo com essas leis, e oferecendo os suportes para o retorno ao original transcendente. Tradi-o significa traduo (das verdades metafsicas para a mente humana) e transmisso (destas verdades e ritos necessrios para o acesso s suas razes transcendentes). O corpo doutrinal de uma Tradio como que expressa a descida do Transcendente no Imanente, evitando que este

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    se torne opaco aos homens e ao mesmo tempo servindo de veculo de apoio para seu retorno sua origem celeste. O corpo de leis metafsicas que fundam e sustentam uma tradio, como os Vda, dito ter uma origem no-humana, apaurushya (6). A Fundao do Mundo se re-velaria atravs do Mito, e o retorno s origens mticas se faria atravs dos Ritos que permeiam cada aspecto da vida de um povo tradicional, garantindo o nexo de sentido entre sua dimenso cosmognica e sua raiz transcendente. Os ritos so orientados pelo corpo doutrinal meta-fsico destas tradies, seja em sua forma oral, como nas recitaes m-ticas indgenas, ou em suas formas escritas, como nos textos sacros da tradio hindu. O Rito re-atualiza o Mito e re-pe os homens no Centro do Mundo, por onde se busca manter o contato com a Realidade funda-dora de suas vidas (7).

    Para a tradio hindu, o Cosmos a manifestao de certas pos-sibilidades contidas no Absoluto. Utilizando uma linguagem platnica equivalente, o Cosmos a manifestao, de modo distintivo, de certas possibilidades contidas nos Arqutipos divinos. Se dito que Brahman nirguna (no-qualificado), tambm dito que , ao mesmo tempo, saguna (qualificado), ou seja, Brahman uma essncia sem dualidade (adwaita), mas no sem relaes (vishistdwaita). No pode ser apre-endido seno que Essncia (asti), mas esta Essncia subsiste em uma na-tureza dupla, como ser e devir (8). Em sua natureza Inominada, como nirguna, Brahman vive no silencioso repouso imutvel, na anteriorida-de do Cu e da Terra. Por isso referido como No-Ser, sinnimo de Supra-Ser, e o princpio do Ser, como sua Determinao primeira. Do mesmo modo dizem os taostas: do Tao sem Nome, o Absoluto, surge o Um, a Unidade Primordial, o Ser como princpio de todos os seres: os dez mil seres nascem do Ser e o Ser nasce do No-Ser.

    Para que as possibilidades de manifestao venham existncia, a Unidade primordial se polariza, surgindo o Dois, os dois princpios fundamentais da existncia, o plo ativo e essencial, designado na tra-dio hindu como Purusha, e o plo passivo e substancial, Prakriti. Reencontramos concepo anloga entre os taostas: o Tao engendra o Uno, o Uno engendra o Dois, o Dois engendra o Trs, e o Trs engendra os dez mil seres. Os dez mil seres levam em suas costas o Yin (obscuri-dade) e em seus braos o Yang (luz), e o vapor da oquidade permanece harmonioso (9).

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    Purusha e Prakriti, Yang e Yin, so os dois princpios polares opostos e complementares de cuja unio em contnuo movimento de unificao e separao brota a multiplicidade do mundo manifesto - os dez mil seres - a Existncia csmica com sua hierarquia de estados do ser. Estes dois princpios polares no existem como princpios pu-ros dentro da existncia fenomnica, mas suportam toda a existncia. A realizao das possibilidades de manifestao se d atravs desse in-cessante processo de unio e ruptura polarizante destes dois princpios cosmognicos, processo dialtico que o fluxo do vir-a-ser, o devir mo-vente em tempo-espao. A cosmologia hindu desdobra uma concep-o do desenrolamento do Cosmos a partir das produes advindas das modificaes de Prakriti, a substancia universal, vista como My, a me das formas, sob a influncia diretora do polo essencial da ma-nifestao, Purusha. Este ngulo da cosmologia hindu desenvolvido pelo Samkhya-darshana, que junto como o Nyya, Vaishshika, Yoga, Mmnsa e Vdnta constituem os seis darshanas ou pontos-de-vista segundo os quais os Vda podem ser estudados.

    Segundo o Samkhya, Prakriti (a substancia universal), sob a in-fluncia ordenadora de Purusha (o plo essencial), produz em sua mo-dificao os outros 23 tattwas ou princpios csmicos. Temos, portanto, os dois plos maiores, Purusha e Prakriti, e outras 23 categorias cons-titutivas do Cosmos. O primeiro deles e o mais importante Buddhi, o Intelecto transcendente. atravs deste Intelecto que o homem pode participar das verdades metafsicas. Seria propriamente a intuio con-templativa. De Buddhi provem ahankra, a conscincia individual que engendra a noo de eu. De ahankra provm a faculdade de sensao e ao, os indriyas, que inclui manas, a faculdade mental humana, ou o sentido interno, cujos atributos so a razo analtico-reflexiva, o pensa-mento, o sentimento, a memria e a imaginao.

    Um ciclo csmico traz em si, enquanto potencialidade, um con-junto de possibilidades de manifestao. O desenrolamento do processo csmico se dar segundo um desenvolvimento no espao e na suces-so (10). O processo csmico ser a atualizao das possibilidades de manifestao contidas em potncia no estado embrionrio do Cosmos, referido como Brahmnda, o Ovo do Mundo. Esse conjunto de possi-bilidades no se distribui embrionariamente de modo homogneo, mas segundo uma hierarquia em que as possibilidades superiores se mani-

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    festam no incio do ciclo csmico, indo para as possibilidades inferiores conforme o ciclo se desenvolve, at sua completao e estancamento. Significa que a tradio afirma um sentido descendente e finito de todo ciclo csmico, o oposto da viso moderna do progresso ascendente e in-definido de evoluo humana, viso esta do evolucionismo darwiniano que no encontramos respaldo em nenhuma doutrina tradicional (11).

    Quando falamos em superior-inferior ou ascendente-descenden-te, devemos nos perguntar em relao quais sistemas de referencias posicionamos os dados. Segundo os hindus, so superiores as possi-bilidades que se manifestaro no incio do ciclo csmico porque so aquelas mais prximas do plo essencial, carregadas, portanto, de maior grau de espiritualidade, e mais prximas da justia e da verdade espiri-tual. A marcha do ciclo csmico e humano a do obscurecimento pro-gressivo da espiritualidade original, e isto porque o desenvolvimento de toda a manifestao implica necessariamente um afastamento cada vez maior do princpio do qual ela procede; partindo do ponto mais alto, ela tende forosamente para baixo, e, como os corpos pesados, ten-de para esse sentido com uma velocidade sem cessar crescente, at que encontra finalmente um ponto de paragem. Esta queda poderia ser ca-racterizada como uma materializao progressiva... (12). Ao invs de evoluo ascendente, a tradio hindu afirma a tendncia descendente--materializante. E isto segundo uma viso cclica do tempo, da Histria e da humanidade, tendo um comeo, desenvolvimento e encerramento, e no retilneo e indefinidamente progressivo ascendente, como supe o Evolucionismo. Tendo um comeo, ter um fim, diz o Buddha. Nos seres, robustez segue a velhice, que falta do Tao. E sem Tao tudo se acaba. O homem vivo brando, o morto duro e rgido. As plantas vivas so flexveis e tenras, as mortas so duras e secas. Daquele que possui muita Virtude se diz que como criana. Tem os ossos brandos e os msculos flexveis... (Tao-te-King, Lao-Ts).

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    Quando a vida era plena, no existia a Histria

    Na poca em que a vida na terra era plena, ningum dava nenhu-ma ateno aos homens dignos, nem selecionava os homens capa-zes. Os soberanos eram apenas os galhos mais altos das rvores, e o povo era como cervos na floresta. Eram honestos e corretos, sem imaginar que estavam cumprindo com o seu dever. Amavam-se mutuamente, e no sabiam que isto se chamava amor ao prxi-mo. No enganavam a ningum, e, no entanto, no sabiam ser homens de confiana. Podia-se contar com eles, e ignoravam que isto fosse a boa f. Viviam juntos livremente, dando e recebendo, e no sabiam que eram homens de bom corao. Por este motivo, seus feitos no foram narrados. No se constituram em histria (13).

    A viso cclica e descendente do ciclo humano aparece formula-da, na tradio hindu, nas Leis de Manu, que divide o ciclo em quatro fases ou yugas: Satya yuga, a idade da Verdade, Treta yuga, Dwpara yuga, e por ltimo Kali yuga, a Idade Sombria, aquela em que esta-mos desde h mais de seis mil anos, agora em sua ltima etapa. Os budistas tibetanos ainda distinguem uma quinta fase cclica no Kali yuga, a Idade em que a corrupo vai de mal a pior (14). Enquanto a Justia e a Verdade reinam no Satya Yuga, j nas fases subsequentes o avano da desespiritualizao acelera-se, na medida em que a durao temporal de cada fase diminui na proporo de 4:3:2:1. A despeito do avano tecnolgico, o ciclo caminha para baixo. A referncia baixo tem mltiplas significaes: materializao, maior dificuldade de aces-so mental s verdades transcendentes, racionalismo, desenfreamento do ignorante querer apossar das coisas, destruio da Natureza, exte-riorizao, corrupo, entre outras.

    Se a tendncia csmica e humana descendente e materializante, por outro lado os hindus consideram que a funo da Tradio a de oferecer os suportes de apoio para a tendncia oposta, a de retorno ao

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    princpio, o que no significa tendncias sucessivas, mas simultneas, embora haja perodos de crise e ruptura, com o desaparecimento de cer-tas tradies, a emergncia de novas tradies revivificantes - (e nesta viso global se situaria a emergncia de tradies como o Cristianismo, o Buddhismo e outras) - e readaptaes em outras. Nisto residiriam as chamadas descidas divinas, os Avataras, que na tradio hindu so as sucessivas encarnaes de Vishnu, a face da conservao divina. No livro do Bhagavad-Gita, assim se refere Krishna, considerado a oitava encarnao de Vishnu: Sempre que o dharma [a Lei, Verdade, a retitu-de, entre outras acepes (15)] declina, filho da dinastia dos Bharata, e h um aumento do adharma (vcio, destruio da verdade), ento Eu me manifesto (sloka 7, cap. 4). Segundo os hindus, a prxima encarnao de Vishnu ser como Kalki-Avatara, que desta vez vir para encerrar com fogo este ciclo da Humanidade, e o fim de um ciclo significa o in-cio de um novo ciclo.

    O caminho ensinado pelo Buddha tem semelhanas e diferenas com relao doutrina hindu. Seu ensinamento conhecido como a doutrina das Quatro Nobres Verdades, que devem ser compreendidas e colocadas em prtica.

    A primeira Nobre Verdade (dukkham ariya saccam): a existncia dukkha, sofrimento:

    Agora, bhikkhus, esta a nobre verdade do sofrimento: nascimento so-frimento, envelhecimento sofrimento, enfermidade sofrimento, morte sofrimento; tristeza, lamentao, dor, angstia e desespero so sofrimentos; a unio com aquilo que desprazeroso sofrimento; a separao daquilo que prazeroso sofrimento; no obter o que se deseja sofrimento; em resumo, os cinco agregados influenciados pelo apego so sofrimento (...) Esta nobre verdade do sofrimento deve ser completamente compreendida (DUKKHAM ARIYA SACCAM, 2009).

    A Segunda Nobre Verdade (dukkha-samudayam ariya-saccam): a causa do sofrimento:

    Agora, bhikkhus, esta a nobre verdade da origem do sofrimento: este desejo que conduz a uma renovada existncia, acompanhado pela cobia e pelo prazer, buscando o prazer aqui e ali; isto , o desejo pelos prazeres sen-suais, o desejo por ser/existir, o desejo por no ser/existir(...) Esta nobre verdade da origem do sofrimento deve ser abandonada (DUKKHA-SAMU-DAYAM ARIYA-SACCAM, 2009).

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    A Terceira Nobre Verdade (dukkha-nirodham ariya-saccam): extinguindo-se a causa do sofrimento, extingue-se o efeito, sofrimento:

    Agora, bhikkhus, esta a nobre verdade da cessao do sofrimento: o de-saparecimento e cessao sem deixar vestgios daquele mesmo desejo, abrir mo, descartar, libertar-se, desapegar desse mesmo desejo (...) Esta nobre verdade da cessao do sofrimento deve ser realizada (DUKKHA-NIRO-DHAM ARIYA-SACCAM, 2009).

    A Quarta Nobre Verdade (dukkha-nirodha-gamini-patipada ariya-saccam): o Nobre ctuplo Caminho (ariya attangika magga)

    E qual, bhikkhus, o caminho do meio para o qual o Tathagata despertou, que faz surgir a viso ... que conduz a Nibbana?

    este Nobre Caminho ctuplo: entendimento correto, pensamento corre-to, linguagem correta, ao correta, modo de vida correto, esforo correto, ateno plena correta, concentrao correta. Esse, bhikkhus, o caminho do meio para o qual o Tathagata despertou, que faz surgir a viso, que faz surgir a sabedoria, que conduz paz, ao conhecimento direto, iluminao, a Nibbana (SAMYUTTA NIKAYA LVI.11, 2009).

    A nfase do ensinamento do Buddha est em purificar a mente da ignorncia, e para isso, toda a prtica tem como fundamento aprender-mos a ver a realidade como ela , sem distores. Significa ver todos os fenmenos corporais e mentais em sua trplice caracterstica: a imperma-nncia (anicca); o sofrimento e insatisfao (dukkha), e a insubstanciali-dade de um eu ou de um meu (anatta). Nesta terceria caracterstica, encontramos a distino mais importante entre a perpectiva budista e a hindu. No ensinamento do Buddha, a noo de um atman, enquanto alma ou princpio permanente considerada uma deluso que deve se abandonada. Um outro aspecto tambm negado pelo Buddha o da existncia de uma entidade suprema denominada de Brahman na tradi-o hindu: quando Buddha se refere a Brahma, (enquanto Criador se-gundo a tradio hindu), este uma divindade tambm sujeito lei da impemanncia. Por isso, no h no ensinamento budista a idia hindu da realizao espiritual como uma unio (yoga) com um Brahman supremo. Isto no significa, entretanto, que no ensinamento do Buddha no haja a noo de uma realidade permanente, incondicionada, Nibbana:

    Existe um no-nascido, um no tornado-a-ser, um no-feito, um no--composto; se no fosse por este no-nascido, no tornado-a-ser, no--feito, no-composto, no seria possvel neste mundo nenhuma evaso do

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    nascimento, do porvir, do fazer, da composio (Coomaraswamy, apud Udana, 1967) (16).

    A lei da impermanncia comanda a trajetria de todos os mun-dos condicionados, em seu turbilho incessante de nascer e morrer (o samsara), seja os mundos celestes, os terrestres ou os infernais. Tudo o que nasce, est sujeito a se decompor, a desaparecer. Embora no encon-tremos nos ensinamentos do Buddha uma referncia explcita noo dos yugas da tradio hindu, a noo de que os ciclos dos mundos sam-sricos, ao rebrotarem, tendem para a decadncia pode ser encontrada no sutta (sermo) 26 do Digha Nikaya (Os sermes longos do Buddha), que junto a outros quatro Nikayas, formam o Sutta Pitaka, uma das trs colees de ensinamentos, que junto com o Vinaya Pitaka (referente aos cdigos de disciplina monstica) e o Abhidhamma Pitaka (referente estruturao sistemtica dos princpios doutrinrios apresentados no Sutta Pitaka), formam o Cnon Pali do Budismo Theravada, considera-da a escola viva mais antiga do Buddhismo primitivo.

    Neste sutta 26 do Digha Nikaya, o Cakkavatti Sihanada Sutta, Buddha conta como o processo de decadncia ocorre progressiva-mente, iniciando-se com uma poca em que reina a lei, a tica, a bem aventurana, para aos poucos ir surgindo os vcios, a perda da tica, da generosidade, da justia, a brevidade do tempo de vida, etc. Neste interessante sutta, o final deste percurso seguido pelo surgimento do futuro Buddha, o Buddha Metteya, ou Maitreya (na lngua snscrita). Embora o processo de decadncia narrado pelo Buddha no aparea dividido formalmente nos moldes dos quatro yugas da dourina hin-du, bem plausvel vermos neste sermo as evidncias da condio de obscuridade espiritual do mundo moderno, agora referido como contemporneo. Mesmo na perspectiva crist, encontramos essa sin-tomtica, nas palavras do Cristo sobre o tempo em haver o endure-cimento dos coraes.

    Colocando agora a modernidade aos olhos da tradio hindu e budista, teremos um outro desenho de significaes sobre este perodo da histria da humanidade. De um lado, certo que a modernidade libertou certas possibilidades contidas originalmente em potenciali-dade no ciclo atual: o desenvolvimento das foras produtivas atravs das quais se potenciou a produo de mercadorias a um nvel vertiginoso,

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    em que a reproduo ampliada do capital exige um sucateamento das coisas em velocidade cada vez mais crescente. Mas libertao a que cus-to, ou dito de outro modo, qual o significado mais amplo desta liber-tao? Imaginemos que em nosso corpo estivesse um germe de uma virulncia mortal, mas que graas ao nosso sistema de defesa imuno-lgico este vrus estivesse constrito. Mas que chegasse o momento em que o sistema imunolgico fosse rompido e o virus se expandisse com violncia. O que estava constrito foi liberto. Neste caso, o corpo seria entregue morte. Significa dizer que a noo de libertao depende dos contextos e significados com que interpretada. Os povos indgenas de vrias partes do mundo tm alertado repetidas vezes, e sob vrios aspectos, sobre algo do que teria sido libertado pelo mundo moderno:

    mame (o criador mtico da humanidade Yanomami e de suas regras culturais) mantinha a xawara (a epidemia do minrio) es-condida. Ele a mantinha escondida e no queria que os Yanomami mexesse com isto. Ele dizia: no! No toquem nisso! Por isso ele a escondeu nas profundezas da terra. Ele dizia tambm: Se isso fica na superfcie da terra todos Yanomami vo comear a morrer toa! Tendo falado isso, ele a enterrou bem profundo. Mas hoje, os nabb, os brancos, depois de terem descoberto nossa flores-ta, foram tomados por um desejo frentico de tirar esta xawara do fundo da terra onde mame a tinha guardado...A xawara do minrio inimiga dos Yanomami, de vocs tambm. Ela quer nos matar. Assim, se voc comear a ficar doente, depois ela mata voc. Por causa disso ns Yanomami estamos muito inquietos (17).

    Sinteticamente, aos olhos das vrias doutrinas espirituais, a mo-dernidade significou a necessria realizao das possibilidades inferio-res contidas desde as origens no conjunto global deste ciclo csmico, necessria, mas nem por isso menos terrvel, porque se funda na pro-gressiva ruptura dos nexos metafsicos entre os princpios transcenden-tes e a existncia terrestre humana. A civilizao ocidental moderna constitui-se por isso em uma anomalia no conjunto das sociedades hu-manas e marca o encerramento deste ciclo humano. Do ponto de vista cosmolgico, o frentico desejo-impulso de desenvolvimento das foras produtivas, a ponto de ser o motor central do mundo moderno, onde o Banco a igreja do mundo atual, subordinando tudo o mais ao seu imperativo, significa uma vertiginosa descida rumo ao plo substancial, cuja expresso psicolgica o apego e a insatisfao crescente em que

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    a mente se v enredada, em sua crescente dependncia a necessidades criadas e alimentadas pelo complexo tecnolgico.

    Para que este motor produtivo pudesse ser liberado, internamen-te o mundo medieval foi desmantelado e os servos transformados em proletrios para a indstria nascente, e externamente, tendo em uma das mos a espada e as canhoneiras, e na outra a cruz, lanaram-se invaso e rapinagem das Amricas, frica e sia, impondo a todos es-ses povos tradicionais o domnio econmico e poltico, junto s vrias tentativas de imposio da catequese crist (18). Se houve libertao, poderamos perguntar se no foi a libertao da violncia da ambio materializante e seus desdobramentos sociopolticos, e de um ponto de vista psicocultural, a libertao de uma concepo mental dessacrali-zante do homem e do Cosmos. Ainda que a difuso do Cristianismo fosse colocada como a dimenso religiosa da expanso colonial, e que a viso crist parea ainda ser um dos esteios da modernidade ocidental (19), de fato a ideologia da modernidade se caracteriza por uma nega-o dos fundamentos metafsicos, e esta negao se mover para todas as reas da cincia, da filosofia e das artes. A explicao crist sobre a criao do mundo passaria pouco a pouco a ser contestada como no--cientfica e apoiada apenas na f e na crena, o que trazia subjacente uma noo ideolgica do que seria uma viso cientfica. A metafsica, no caso a crist, passou a ser considerada como oposta cincia; o obs-curecimento da compreenso do significado da Metafsica no decorrer da histria do pensamento e da filosofia moderna chegou a tal ponto deste termo ser utilizado para designar o que seria incompreensvel ao entendimento humano.

    Do ponto de vista do conhecimento, o obscurecimento da com-preenso da Metafsica acompanha a progressiva ruptura, no Ocidente moderno, dos nexos metafsicos que uniam o transcendente com a exis-tncia humana, o que implicaria em uma desespiritualizao da viso moderna do homem, da sociedade e da Natureza. Esta perda de viso metafsica do homem que caracterizar a emergncia de um tipo de cincia, a moderna, cuja tnica a de que a faculdade humana da razo, aliada s provas empricas, seria suficiente para dar conta da explica-o dos diversos domnios da existncia, enquanto os hindus, em sua complexa estrutura de entendimento, embora dando razo um lugar importante no conhecimento, subordinam sua ao a um domnio de-

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    pendente do Intelecto transcendente, Buddhi, cuja forma de acesso s verdades o da intuio contemplativa e cujo exerccio passa pelas exi-gncias de uma prtica espiritual estruturada, o que significa uma outra noo do que seja a atividade intelectual.

    A perda da intuio e a hegemonia da razo, o que se denominou de racionalismo, terminaria por conduzir ao infra-racional, em que a pr-pria razo passaria a ser negada como forma de conhecimento, em favor no da recuperao da intuio espiritual supra-racional, mas do prima-do da sensao, cujo lugar na estrutura mental humana o mais exterior e passvel de lanar a mente para a disperso. No por acaso que em nossa poca assistimos ao predomnio da explorao das sensaes, vendidas como o verdadeiro modo de realizar a vida. A manipulao das sensa-es atravs de macios apelos dos meios de comunicao de massa cada vez mais sofisticados tecnologicamente um evidente passo a mais destas rupturas para baixo. As revistas lamentam e se indagam por qu avana o nmero de jovens envolvidos e mortos pelas drogas.

    J na poca de Scrates e Plato a capacidade de penetrao metafsica se encontrava bastante obscurecida no mundo grego, e se Scrates foi obrigado a tomar cicuta era porque falava sobre verdades superiores para um povo grego que j no mais conseguia compreend--las. A capacidade de compreenso dos ensinamentos platnicos sobre os Arqutipos divinos se tornava mais enfraquecida com Aristteles e o racionalismo j se amplia bastante. Em Aristteles, o lado intuitivo de Plato j estava mais ausente, e o compensatrio esforo racional de sistematizar o conhecimento metafsico, rebaixando a viso mtica para uma leitura filosfica e lgica, como que para preencher o vazio deixado pela retirada dos deuses do Olimpo, bem visvel. O recolhimento da intuio e a exacerbao do racionalismo no Ocidente j vm do sc. VI aC. Quando o mundo grego e romano se decompem, o racionalismo j estava bastante forte como tendncia do Ocidente. Quando o Cristianis-mo se colocou como via espiritual para o Ocidente de ento, sendo uma via puramente interior, no fazia parte de sua natureza o compromisso de criar um corpo de cincias, pois seu propsito era mais o de oferecer uma via de realizao espiritual do que o de explicar os vrios domnios fenomnicos. Ainda assim, um certo sistema de saber analtico foi cons-trudo, articulando a metafsica crist com fundamentos aristotlicos, o que paradoxalmente contribuir posteriormente para o aprofundamen-

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    to da anterior tendncia racionalista herdada do mundo grego-romano, enquanto o Cristianismo ortodoxo oriental far opes pela via mais intuitiva da herana platnica. Essa diferena de opes, sem dvida est relacionada diferena de predisposio mental destes povos (20).

    Com o Renascimento, a tendncia racionalista e a concomitante difi-culdade de se entender e penetrar na realidade metafsica vai se aprofundar. Na tica metafsica, o que se chamou de Renascimento foi um movimento especfico da Europa ps-medieval, e que tentou recuperar o que era mais exterior do mundo grego, sendo por isso, diz Ren Gunon, a morte de muitas coisas e mais um passo na destruio do saber metafsico no mundo ocidental. Pretendeu-se que a partir do Renascimento e do Iluminismo se inaugurava o esforo de se libertar das travas da superstio religiosa crist e criar um saber cientfico, renegando que o saber anterior fosse cincia. Afir-mava-se implicitamente que todos os outros povos, do extremo-oriente ao extremo-ocidente, no possuam cincias. Mas o fato que, dentro do uni-verso estruturado de tradies como a hindu, os mltiplos nveis do saber possuem seus fundamentos maiores na metafsica espiritual. So saberes do mundo fenomnico segundo vrios pontos de vista, mas todos esses pon-tos de vista e nveis ligam a realidade do mundo existencial com o que lhe ontolgicamente superior e determinante, do corporal subordinado ao sutil e este ao propriamente espiritual, pois esse Eixo que d significado a cada coisa segundo seu plano de realidade. A oposio no estaria entre um saber cientfico e racional (posto como o novo e verdadeiro modo do saber, e inaugurado pela modernidade ps-renascentista) e o saber metafsico ou religioso (posto como dogmticas crenas dos povos tradicionais, em uma anterioridade cognitiva ultrapassada pelo progresso do conhecimento car-reado pelo saber ocidental moderno). Na tica metafsica, a oposio est entre um tipo de cincia, a moderna, carente de nexos entre o mundo feno-menico e seus princpios ontolgicamente determinantes, - estes remeten-do ao domnio metafsico-espiritual -, desconexo esta que tenta explicar o mundo em si mesmo e por si mesmo, e outro tipo de cincia, as cincias tradicionais, que se fundam nestes nexos metafsicos e enxergam o mundo manifesto como presena do Transcendente no imanente, como teofania.

    Neste mesmo balaio de equvocos, tambm est o erro de ponto de vista em colocar cincia como oposio Metafsica (ou religio). apenas na modernidade que se criou esta imagem de conflito cincia--religio. um erro de posio, pois a Metafsica (ou a religio) res-

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    pondem pela realidade dos princpios transcendentes, o supracsmico, o noumenon, enquanto as cincias se referem ao domnio do mundo fenomnico, o Cosmos, o phenomenon. Por no compreenderem esta distino fundamental, os pensadores modernos freqentemente lan-am crticas metafsica ( qual reduzem ao limitado universo aristot-lico) atravs do argumento de que a Metafsica se baseia em um essen-cialismo, pressuposto de que haveria uma essncia das coisas, mas que isso seria desmentido pela realidade, onde nada subsiste, tudo se mostra como processo cambiante, fluxo em que as coisas e seres se constrem na posio e re-posio das relaes dinmicas determinadas pelo con-junto de condies histricas. A concepo metafsica sobre as essncias um tema bem mais complexo, e que merece espao mais amplo do que os limites deste trabalho. Mas algo pode ser ponderado aqui.

    A crtica colocada Metafsica equivocada, pois supe que as doutrinas metafsicas desconhecem o fato de que a realidade fenom-nica apenas um processo mutvel de vir-a-ser. J esclarecemos no de-correr deste texto que as doutrinas metafsicas colocam claramente que o domnio fenomnico marcado pela dialtica do incessante vir-a-ser, do construir-destruir, do surgir-desaparecer, e este o significado eti-molgico do conceito grego de phenomenon. Mas as doutrinas meta-fsicas no restringem a noo de realidade apenas ao mundo feno-mnico. Este apenas a face efmera e manifesta da Realidade Infinita, o lugar dos princpios universais que sustentam ontolgicamente o mundo manifesto, mas que no se confundem com ele. O mundo mani-festo o palco onde se desenrola a pea, o jogo (no sentido do termo in-gls play) entre os seres em sua face ilusria e seus princpios fundantes. Mas simultaneamente, os seres no so apenas personagens ilusrios cujas essncias estariam ocultas por detrs do palco, como se as essn-cias fossem algo material que ao procurarmos dentro da cebola nada encontramos. A essncia se revela na forma, dizia Plotino (21).

    Princpios transcendentes e mutvel Cosmos fenomnico, as dou-trinas metafsicas esto falando de planos diferentes, hierarquicamente integrados dentro do seu corpo cognitivo, mas que passou a ser vivido como conflito apenas no Ocidente moderno porque a relao hierrqui-ca vertical entre ambos foi ignorada e convertida em opostos no mesmo plano horizontal. O pensamento moderno pretendeu com isso renegar o estatuto ontolgico da Metafsica, e, portanto, do supranatural, para a

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    hegemonia de um tipo de conhecimento cientfico fundado em uma ra-zo desprovida de nexo com o transcendente. Mas mesmo essa ruptura sendo posta como fora dominante, o senso humano de crtica em busca da verdade persistiu, ainda que de modo limitado, nas discusses entre a razo crtica e a razo instrumental. Os imperativos materiais do lucro, a despeito das anlises da razo crtica, puxam a razo experimental para seus bem pagos compromissos de instrumentalizao necessria produo ampliada de mercadorias. bem conhecido o quanto a nova cincia foi estimulada e serve aos requisitos das indstrias, incluindo as indstrias culturais que hoje ocupam as atividades dos meios de comu-nicao de massa e a criao da realidade virtual, cujas terrveis impli-caes para a mente humana mereceriam uma reflexo maior.

    A razo crtica, entretanto, tal como exercitada na modernida-de, se v limitada. Pela sua prpria natureza de razo, como ratio, sig-nificando a capacidade humana de estabelecer propores e sentidos entre elementos do domnio limitado em que opera, necessita para isso de princpios que lhe permitam ponderar esses elementos e tirar conclu-ses. Esses princpios, entretanto, no se encontram dados de imediato no emprico, mas esto fundados em um plano ontolgicamente supe-rior ao fenmeno, porque lhe so determinantes. Como a modernidade pretendeu ignorar a determinao dos planos ontolgicos hierrquicos, ignorando por conseqncia a dependncia da razo para com o In-telecto transcendente do qual procede e que lhe permite ascender ao conhecimento desses planos ontolgicos determinantes, o esforo da razo crtica permanece amarrado na superfcie dos problemas.

    A tica uma das dimenses da vida contemporna em que transparece os efeitos desta limitao da razo, quando desconectada de princpios supramundanos. Leonardo Boff, em seu estudo sobre a tica, e observando a trajetria histrica da tica na Grcia a partir de Plato e Aristteles, observa que o ethos anterior (zelado pelo daimon, o anjo bom, a voz intrnseca da interioridade) foi sendo substituido por um sistema racional de princpios em que a razo se tona demasiadamen-te instrumental e analtica, que passa a estabelecer uma tecnocincia ameaadora, no sentido de um abandono dos valores humanos bsicos. Ocorre um desequilbrio entre a tendncia da autoafimao e o da in-tegrao humana: Ao invs de estar junto dos demais seres, colocou-se sobre eles e contra eles. A comeou a auto-exlio do ser humano, pois

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    foi se afastando lentamente da Casa comum, da terra e dos demais com-panheiros e companheiras da aventura terrenal. Quebrou os laos de coexistncia com eles. Perdeu a memria sagrada da unicidade da vida em sua imensa diversidade. Esqueceu a teia das interdependncias, de comunho com os vivos e com a Fonte originria de todo ser. Colocou--se num pedestal solitrio a partir do qual pretende dominar a terra e os cus. Eis nosso pecado de origem que subjaz crise tica de nossa civilizao: nossa autocentrao, nossa ruptura fatal. Esta postura de ar-rogncia gerou a maior tragdia da histria da vida. As conseqncias nos alcanam at os dias de hoje e de uma forma perigosa, pois ela criou o princpio de autodestruio da espcie e de seu habitat natural (22).

    Esta operao fragmentante do conhecimento moderno se irra-diou por todas as reas do saber, tanto nas chamadas cincias naturais, com as interpretaes naturalistas, como das cincias sociais. O mal-estar da fragmentao de quando em vez irrompe e tentativas de integrar os v-rios ramos do saber so esboadas, mas os resultados so irrisrios, pois como integrar ramos quando se renega o tronco e a raiz? Galhos justa-postos no formam uma rvore. A sociedade humana passaria a ser inter-pretada e reivindicada como o domnio dos homens regidos no mais por um fundamento metafsico-espiritual, mas por um contrato social, um acordo entre homens livres, dissimulando a coero impositiva da noo de Estado-nao, cujo modelo europeu se tornou imperativo para todos os povos do mundo, forando as etnias submisso a uma forma de or-ganizao uniformizante e desprovida de qualquer fundamento metafsi-co. E quando alguma etnia indgena reivindica seu estatuto de identidade como um povo-nao com um modo prprio de ser e reger sua vida, de acordo com a tradio instituda por seus criadores mticos, aspirao que muitas vezes vem acompanhada da reivindicao de autonomia, o pressu-posto do contrato por acordo entre homens livres mostra sua efetiva rea-lidade. Se verdade que na fase atual o prprio conceito de Estado-nao vem sendo parcialmente enfraquecido, no para a constituio de uma fraternidade supranacional dos povos, mas pela emergncia de um con-glomerado de corporaes transnacionais que controlam a economia, a poltica e a cultura segundo seus interesses privados materiais.

    Se passarmos do mbito das cincias sociais para o domnio da teorizao sobre o psiquismo humano, vamos observar o surgimento de uma Psicologia propondo-se a construir uma cincia do psiquismo

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    humano, como se ela no existisse j formulada h sculos dentro do corpo de conhecimento de cada Tradio. Tambm a reencontramos a mesma ruptura, no propsito de constituir uma cincia do psiquis-mo sem o princpio metafsico-espiritual que governa o psiquismo. O homem passaria a ser configurado no mais como constitudo por uma complexa sntese do corporal, anmico e espiritual, ou corpo-mente, mas reduzido apenas a uma individualidade psicofsica, o Ego, esta enti-dade ilusria agora erigida em categoria e realidade central do homem, dividido entre uma razo fragmentada e um subconsciente tenebroso.

    Considerado pelos hindus e budistas como realidade ilusria e voraz, necessitando ser compreendido e educado pela maestria de prin-cpios espirituais mais profundos, na modernidade o Ego seria liberado pela negao do estatuto ontolgico do supraegico. Aquele ego, que os hindus e budistas explicam ser apenas um fluxo de agregados imperma-nentes, posto no trono como uma entidade substantiva e com todos os direitos de desejo reinante. Os conceitos s revelam seus significados verdadeiros luz do universo doutrinal em que se ancoram, e se h um fazer cincia, o de trazer s claras a trama oculta destes fenmenos e suas nomeaes, essas palavras, seus ambguos sentidos e seu contexto. Na noite, pode ser visto como cobra o que se mostrar luz do dia como apenas uma corda velha enrolada, exemplifica os hindus e budistas.

    Desconectada a sociedade de sua raiz metafsica, desconectada a razo de seu intelecto transcendente, desconectado o homem de sua natureza luminosa mais profunda e destinao espiritual, o homem mo-derno se v na liberdade da priso do apetite frentico de seu Ego e da manipulao do globalismo de terrveis senhores. Esto a colocadas, de modo sucinto, duas vises, o da modernidade e o da tradio hindu, budista e taosta, com todas suas implicaes, para serem refletidas e aprofundadas. No Tempo, o tempo dir.

    Mas aquele que obedece NaturezaRetorna atravs da Forma e do Sem-Forma ao Vivente

    E no Viventeune o comeo que-no-comeou.

    A unio a Igualdade. A igualdade o Vcuo.O Vcuo infinito.

    No meu fim est o meu comeo.

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    (Chuang Tzu)

    Notas

    (1) Este trabalho faz parte de um conjunto de reflexes e pesquisas que estamos desenvolvendo sobre as doutrinas tradicionais da sia e do mundo indgena. Agradecemos a todos os que tm contribudo para essa realizao.

    (2) Coomaraswamy, Ananda - Hindouisme et Bouddhisme, p.25, France, Ed. Gallimard, 1980.

    (3) Elourduy, Carmelo - Dos grandes maestros del Taoismo, p.101-102, Madrid, Ed. Nacional, 1983.

    (4) Gunon, Ren - A Crise do Mundo Moderno, p.81-82, Lisboa, Vga, 1977. Uma das anlises crticas mais agudas do mundo moderno foi elaborada por Ren Gunon neste livro referido, e do qual muitas colocaes foram aqui incorpora-das. As reflexes crticas de Gunon em sua vasta obra de mais de trs dezenas de ttulos, bem como de outros autores como Ananda e Rama Coomaraswamy, F. Schuon, T. Burckhardt, Martin Lings, Seyyed H. Nasr, W. Stoddart, M. Pallis, que se empenharam em esclarecer as contradies do mundo moderno luz da metafsica tradicional, ainda esto por serem descobertas pelos crculos acad-micos.

    (5) Gunon, Ren - idem, op.cit., l977, p.83. (6) Gunon, Ren - Introduction Gnrale a lEtude des Doctrines Hindoues,

    p.161, Paris, Vga, 1976.(7) Eliade, Mircea - Mito e Realidade, SP, Ed. Perspectiva, 1972. (8) Coomaraswamy, Ananda - idem, op. cit., 1980, p.25-26.(9) Elourduy, Carmelo - idem, op.cit., p.130.(10) O tempo considerado apenas como uma das formas de sucesso, aquela que

    define um dos degraus da manifestao universal, da qual participa o estado humano.

    (11) Sobre uma reflexo crtica do evolucionismo darwiniano, veja Douglas Dewar, The Transformist Illusion, USA, Sophia Perennis et Universalis, 1995. Neste trabalho, com base em um vasto conjunto de dados biolgicos, o autor pe em questo e refuta cientificamente os vrios pressupostos da hiptese evolucionis-ta. Veja tambm Michael Denton, Evolution: A Theory in Crisis; Phillip E. Jo-hnson, Darwinism on Trial; Titus Burckhardt, Mirror of the Intellect, SUNY Albany, 1987.

    (12) Gunon, Ren - idem, op. cit., p.36, 1977. (13) Merton, Thomas - A via de Chuang Tzu, p.102, Petrpolis, Vozes, 1977. (14) Segundo Tsong-Khapa, fundador da ordem de Dalai Lama e de acordo com o

    testemunho de Marco Pallis, cf. referncia em R. Gunon, 1977, nota 1, p.28. (15) O conceito de dharma (dhamma, em Pli) complexo e de difcil traduo

    para as lnguas ocidentais, exigiria maiores elaboraes. Da raiz snscrita dhr,

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    significa o que sustenta, o que suporta, da o sentido de Lei, dever, justia, modo correto de ao, estabilidade. Na anloga raiz grega drus, nome grego do carvalho, est sua acepo de axialidade no smbolo da rvore.

    (16) Coomaraswamy, Ananda K. O pensamento vivo de Buda, p. 241. So Paulo: Li-vraria Martins, 1967.

    (17) Depoimento de Davi Kopenawa Yanomami, Yanomami: a todos os povos da Terra, Ao pela cidadania, CCPY/Cedi/Cimi/NDI, 1990, p.11.

    (18) Sobre isso, veja o excelente trabalho historiogrfico da invaso ocidental sobre a sia em K.M.Pannikar, A Dominao ocidental na sia, RJ, Paz e Terra, 1977. A questo da relao de violncia entre a expanso colonial e o missionarismo cristo merece um estudo parte. Pannikar oferece grande quantidade de da-dos histricos e ideolgicos sobre esse aspecto, mas uma anlise mais complexa necessita ser feita, pois se verdade que as religies semticas so por natureza expansionistas, o modo de associao com a violncia colonialista no s no intrinsecamente necessrio como oposto aos prprios princpios do Cristianis-mo. Sobre isto, veja Buddhismo e Christianismo: Esteios e Caminhos, Arthur Shaker F. Eid. Petrpolis, Ed. Vozes, 1999.

    (19) A despeito do carter sacro do poder poltico ter persistido at a Revoluo Francesa, e ainda que possamos distinguir sob certos aspectos seu contedo no poder imperial durante a Idade Mdia e com as realezas nacionais na Idade Mo-derna (sobre isto veja Os dois Corpos do Rei, E. Kantorowicz, SP, Companhia da Letras, 1998), de fato o poder poltico caminhou para um contedo secular na modernidade. A questo da relao entre poder poltico e o Cristianismo mereceria uma reflexo mais apurada, pois h uma certa fratura estrutural en-tre ambos, dado que por sua natureza espiritual intrnseca, o Cristianismo originalmente uma via espiritual interior, portanto sem um estatuto poltico--jurdico como em outras tradies, como o Islamismo ou o Hinduismo. Sobre as razes metafsicas que teriam levado o Cristianismo a legislar sobre a polti-ca, e as contradies decorrentes, veja Ren Gunon, Aperus sur lEsoterisme Crtien, Paris: Ed.Traditionelles, 1980; F. Schuon, Da Unidade Transcendente das Religies. SP: liv. Martins Ed., 1953; e outras referncias em Buddhismo e Christianismo: Esteios e Caminhos, op. cit.

    (20) Sobre o processo histrico de desespiritualizao do saber ocidental, ver Seyyed H. Nasr, O Homem e a Natureza. RJ: Zahar, 1977.

    (21) Carvalho, Olavo de - Universalidade e Abstrao e outros estudos. SP: Specu-lum, 1983.

    (22) Boff, Leonardo - tica e moral: a busca dos fundamentos, p. 16-17. Petrpolis, Vozes, 2003.

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    A religiosidade indgena e a Natureza

    Para os povos indgenas, todos os seres da Natureza tm esprito. De fato, no vamos encontrar nas lnguas indgenas uma palavra que designe Natureza, ao menos como a concepo ocidental entende por isso, como se fosse apenas um conjunto de espcies biolgicas. Se a pa-lavra bio designa vida, toda a vida est animada, em graus diversos, pela presena espiritual que liga a existncia fenomnica s suas razes transcendentes.

    Tambm no vamos encontrar essa oposio entre uma Natu-reza e a Cultura, que separasse to categoricamente o mundo entre humanos e os outros seres vivos da natureza, oposio criada por uma leitura antropolgica marcada por uma viso desespiritualizada do rei-no dos seres viventes, sobre a qual teria se erguido evolutivamente a conscincia, visto como atributo nico dos homens.

    Para os Mby-Guarani, j no momento de aparecimento do cria-dor Namandu, surge o colibri: Quando se inicia a revelao da consci-ncia do Deus criador Namandu, o colibri lhe traz o nctar celestial, uma expresso metafrica na lngua mby que se refere inspirao di-vina. (A relao dos indgenas com a natureza e os projetos de cooperao internacional, Friedl Grnberg, 2003, mimeo)

    Os criadores mticos primordiais, como os Romhsiwa da cos-mologia Xavante, trazem existncia no apenas os seres vivos, mas tambm as leis que regram as relaes que os seres humanos devem se-guir para com os outros seres vivos, como os animais, as plantas, os rios, etc. (Os Senhores da Criao do Mundo Xavante - Romhsiwa, Arthur Shaker e narradores Xavante, 2002). Toda a vida indgena regida pelos ritos que buscam garantir o mnimo de equilbrio entre os seres viven-tes, afim de que a voracidade humana no ponha em risco a existncia dos outros seres, e do prprio homem. A civilizao ocidental moderna esqueceu desse compromisso, e ao reduzir a chamada Natureza a um

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    algo a sobre o qual no h responsabilidade nem clareza sobre a inter-dependncia espiritual de todos os viventes, abriu com isso o caminho da devastao do ambiente ecolgico, e porque no dizer, do prprio ambiente ecolgico interior do homem. As conseqncias desastrosas dessa ignorncia esto a, alarmantes.

    Possamos rever estas tendncias, construindo um olhar mais s-bio e espiritual sobre a vida, e um respeito aos povos indgenas. Mas no s um olhar. Uma postura, tica, cognitiva e prtica. A sabedoria ances-tral dos povos milenares, como os indgenas, muito tem a nos ensinar.

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    a Espiritualidade indgena e os 500 e quantos anos da ambio

    ocidental

    Carta aos amigos indgenas,

    Amigos. Os povos indgenas tm enfrentado muitos sofrimentos desde que os homens brancos europeus chegaram aqui nas Amricas. Foras escuras esto se movimentando pelo mundo j fazem mais de quinhentos anos, trazendo muita dificuldade para os povos tradicionais de toda parte do mundo. Ainda vamos ter um tempo difcil. Para con-tinuarmos defendendo nossas tradies que vm dos antigos, estamos procurando entender o que so essas foras escuras e como lidar com elas.

    Foi a ambio que trouxe os homens brancos aqui nas Amricas, e na frica e na sia. Sabemos disso. A ambio uma doena que queima dentro da mente dos homens desde os tempos mais antigos. De onde vem a ambio? Temos dentro de ns o fogo dos espritos, esse fogo que vem do Invisvel. Mas quando no entendemos corretamente o que esse fogo e como domin-lo, esse fogo vira ambio que engana e destri. isso que acontece com os homens brancos.

    Esse fogo sabedoria e poder, luz e calor. Os Mby-Guarani en-sinam que amandu Ru Ete, quando criava o mundo, disse a Karai Ru Ete, o dono do fogo, para colocar pelo alto da cabea dos humanos o fogo sagrado, tataendy, para trazer a fora. Mas para esse fogo no criar um calor muito grande e perigoso, amandu disse a Tup Ru Ete, o senhor das guas e do trovo, para colocar no corao dos humanos a temperana, a moderao, yvra emboroy.

    Dominando esse fogo, os xams conseguem viajar e sonhar com outros mundos, mais profundos. Mas, conhecer e controlar esse fogo difcil, precisa de muito esforo e orientao correta. S um povo tradi-

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    cional tem os poderes para isso. Quando falamos tradicional, Tradio, os pensadores modernos ficam agitados, no querem entender. Pensam que coisa atrasada, ultrapassada, contra o progresso. Somos povos tra-dicionais porque o que nos sustenta e dirige so as regras que nossos criadores espirituais trouxeram do magnfico mundo dos espritos. Isto a nossa Tradio.

    Os pensadores modernos dizem que os povos indgenas so mui-to diferentes um do outro, por isso no possvel falar em povos tra-dicionais, pois um no tem nada em comum com o outro. E no tendo nada em comum, no seria possvel reunir os povos indgenas. verda-de que h muitas diferenas entre os povos indgenas, e essas diferenas so importantes e devem ser respeitadas. Os Sioux da Amrica do Norte so diferentes dos ndios Maya da Guatemala, os Xavante do Brasil so diferentes dos Aymara do Peru, so muitos os povos indgenas, com ln-guas e tradies diferentes. Mas todos falam que a origem do seu povo, e dos animais e plantas, uma origem espiritual, metafsica.

    Estou usando palavras para falar desse mundo espiritual, palavras como esprito, espiritual, espiritualidade, fundamentos metafsicos. Eu sei que so nomes que vem da lngua dos homens brancos, no so as palavras da lngua indgena, e por isso no traduzem corretamente o pensamento indgena, e por isso devem ser consideradas com cuidado. Mas servem para nosso incio de dilogo.

    verdade que cada povo indgena tem seu jeito de viver e se co-municar com o mundo dos espritos. Mas a est tambm uma verdade que a base de todos os povos indgenas: todos falam que seus criadores tinham um grande poder espiritual, que tudo que vivo tem seus espri-tos, todos falam que este mundo est ligado ao Invisvel. Os povos ind-genas so diferentes, mas todos vieram do Invisvel. como o arco-ris no cu: so muitas cores, mas todas vm da Luz branca, que passando pelas guas das nuvens, se abre em muitas cores. Ser que o Invisvel no o Grande Mistrio da origem de todos os povos e animais e plantas e espritos?

    Tudo que vivo tem dentro dele esse fogo do Invisvel. esse fogo que faz tudo nascer, crescer e ficar alegre e danar contente. Quando os seres de poder criaram o mundo, eles ensinaram para seu povo as leis de

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    viver de um jeito que esse fogo no queimasse tudo. So as leis da Tradi-o, para defender os humanos, as rvores e animais e conversar com os espritos. Nas tradies antigas da ndia, de onde vem minha formao tradicional, essa Lei que sustenta e est presente em tudo, chamamos de Dhamma (Dharma). Os homens brancos esqueceram dessas leis, o fogo virou ambio e tomou conta do pensamento deles, como uma jibia de boca bem grande comendo tudo sem parar, nunca est satisfeita, at que um dia explode.

    Quando falamos em homens brancos, no estamos falando de raa ou cor de pele, pois lutamos contra qualquer tipo de racismo e pre-conceito. Quando falamos em homens brancos, estamos nos referindo a um tipo de civilizao, a civilizao moderna que os homens brancos comearam na Europa e que foi se espalhando pelo mundo h quinhen-tos anos, e que dominada por uma mentalidade e uma atitude antime-tafsica perante a vida e os povos tradicionais.

    Esta ambio da civilizao moderna uma semente que j estava plantada dentro do mundo desde o seu comeo. Os homens de sabedo-ria da ndia dizem que o mundo nasce j com todas as sementes que vo brotar. No comeo o mundo mais brilhante, brotam as sementes de mais poder e luz espiritual, o mundo estava mais perto da magnfica origem. Por isso, dizem muitos povos indgenas, nos tempos muito anti-gos a palavra era criadora, era s dizer e as coisas apareciam. Os Xavante contam que no tempo dos criadores todos tinham poder, mas havia al-guns seres especiais, que tinham muito mais poder, eram os criadores. Podiam criar s com a vontade, pensavam e se criava os alimentos e os animais, j com os nomes.

    Muitas leis comearam a ser quebradas, isso era inevitvel pela prpria tendncia do mundo, e com isso muito desse poder metafsico foi se perdendo. O ciclo csmico vai se des-enrolando e vo brotando mundos com menos poder e luz, cada vez se afastando mais desse poder metafsico, se materializando em velocidade crescente. At parar, a o fim de um mundo. Muitas tradies j apareceram e desapareceram.

    No que uma tradio se acabe, ela apenas volta para dentro do Grande Mistrio Invisvel. No ouvi nenhum povo tradicional dizer que o mundo vai ficando mais luminoso. Essa idia do progresso e da

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    evoluo foi inventada pelo pensamento do homem branco moderno. Para os povos tradicionais, ao contrrio. A tradio hindu diz que o Cosmos caminha para baixo. Na civilizao ocidental moderna, o ma-terialismo foi crescendo muito, a ambio deles vai tomando conta de tudo, destruindo a Natureza e os povos indgenas. Essa doena hoje j se espalhou pelo mundo inteiro.

    A invaso dos europeus sobre as Amricas, a frica e a sia faz parte dessa tendncia csmica para baixo. Nada por acaso. Diz a tradi-o hindu que estamos j h muito tempo na quarta e ltima etapa desse ciclo, fase chamada de Kali Yuga, a Idade Escura. Esta verdade tambm aparece em muitas tradies indgenas. A espiritualidade do mundo e dos homens vai se perdendo rapidamente, o tempo passa correndo cada vez mais.

    Cada vez mais escuro e pesado, o mundo vai sendo puxado para baixo, como a correnteza do rio arrastando tudo. Para lutar contra essa correnteza, ns, os povos tradicionais, temos os rituais e conhecimentos para defendermos o equilbrio da vida na Terra e mantermos a comuni-cao com o mundo dos espritos. Mas vai chegar o tempo em que no vai dar mais para proteger o mundo.

    Os europeus tambm tinham suas leis espirituais no Cristianis-mo. Mas j faz mais de quinhentos anos que eles comearam a quebrar essas leis e virar as costas para os valores cristos da tradio deles. Os europeus faziam um pouco de comrcio com os povos do Oriente, mas quando um outro povo guerreiro fechou a passagem deles por terra, o comrcio ficou difcil. Ento os grandes comerciantes europeus re-solveram se aliar com os governantes e deram muito dinheiro para os navios procurarem caminhos pelo mar para o comrcio. Comearam as grandes navegaes, procurando terras e riquezas. A ambio comeou a crescer.

    A tradio deles, o Cristianismo, ensinava que eles deveriam vi-ver uma vida de respeito e amizade para com os outros, e que o pen-samento deles deveria estar sempre no Deus. Que no se deveria ter muita ambio com as coisas materiais, mas se esforarem para seguir o exemplo do Cristo e alcanar o cu, onde tudo bom. Mas eles foram esquecendo disso. A tradio deles comeou a enfraquecer. Riqueza e

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    lucro viraram o grande desejo deles. Queriam ter bastante lucro, tomar as terras e as riquezas dos outros, s pensavam nisso. Foi virando uma febre dentro da cabea deles.

    Aquelas sementes da ambio material que estavam guardadas dentro do mundo desde os tempos antigos comearam a querer crescer como fogo na floresta. E foi a civilizao europia que abriu as portas para esses sementes terrveis crescerem com uma fora violenta. Os an-tigos dizem que isso ira acontecer, que ia ter de acontecer, porque as sementes escuras tambm esto dentro deste mundo, iam ter de brotar e crescer e se espalhar at se esgotarem. As histrias dos povos antigos contam que j aconteceram coisas parecidas em outros tempos do pas-sado. Mas agora o perigo muito maior e est ameaando o equilbrio espiritual de toda a Terra. Por isso os antigos dizem que a civilizao moderna a loucura e vai destruir este mundo.

    O lder espiritual indgena Davi Kopenawa, do povo Yanomami, fala que rotukala, o mundo, est cansado. Que vai chegar a hora em que o nosso mundo vai explodir. Falou que um dia os brancos vo lembrar dessas palavras dele, porque a poluio est aumentando, est chegando na floresta, est matando as rvores, est caindo nos rios e matando os peixes. A poluio cai na cidade e vai longe porque o vento leva. Falou que os ndios que esto cuidando deste planeta esto ficando doentes, e quando rotukala cair encima da gente, no vai ter para onde correr e se esconder. A civilizao moderna como uma cobra engolindo os povos indgenas. Quando todos os xams morrerem, o mundo vai virar, vai quebrar, e ningum vai escapar, nem os brancos. O cu vai explodir. Vai cair e achatar a Terra.

    Os europeus no chegaram aqui por acaso. Foi a doena da ambi-o de muita produo material que trouxe os europeus aqui. Para abrir caminho para esta doena, eles comearam primeiro destruindo o jeito antigo da vida deles. O povo deles que trabalhava na terra perdeu o di-reito de trabalhar na terra e foram quase todos mandados embora para as cidades que comearam a crescer. Quando chegavam s cidades eram obrigados a trabalhar nas fbricas que estavam aparecendo. Ajuntavam aquela multido de gente que nem bicho preso dentro daquelas fbri-cas fechadas, escuras, um mau cheiro. Os homens, mulheres, crianas, tinham de trabalhar naquelas mquinas o dia inteiro, fazendo todo dia

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    sempre a mesma coisa. A sociedade moderna gosta muito de mostrar com orgulho seus produtos industriais, fala muito em progresso, de-senvolvimento, mas quem trabalha dentro de uma fbrica sabe que a verdade diferente, que aquilo um sofrimento grande, aquilo no vida de gente. Os povos indgenas nunca aceitaram esse jeito ruim de trabalhar dos homens brancos.

    A doena da ambio material estava crescendo. A eles manda-ram os navios deles encima das terras das Amricas, da frica e da sia. Eles chegaram trazendo em uma das mos a espada e os canhes, e na outra a cruz e a Bblia. Nesses quinhentos anos de invaso, eles diziam que vinham trazer a salvao do Cristianismo, que o Papa tinha benzi-do e dado essa misso para eles. Eles diziam que eram uma civilizao crist, mas na verdade essa civilizao o contrrio de tudo o que cris-to, o contrrio de qualquer espiritualidade verdadeira. Eles viraram as costas para aquilo que eles rezam. Eles comearam a virar as costas em primeiro lugar para a prpria tradio deles. Diziam que eram cris-tos, mas comearam a duvidar da prpria explicao crist deles sobre a origem do mundo. Comearam a duvidar se era verdade mesmo que o mundo tinha sido criado pelo Deus que eles rezavam. Queriam provas.

    A comearam a inventar um tipo de pensamento que chamaram de cincia. Acharam que a viso metafsica crist no era cincia, que no tinha provas, e era s uma crena. Se j no entendiam mais nem a metafsica crist, que a base do mundo ocidental, no iam ter sabe-doria para entender a viso metafsica e espiritual dos povos indgenas, que to diferente do Cristianismo. Para eles os povos indgenas no ti-nham religio, por isso precisavam ser salvos do inferno e levados pelos missionrios para o Deus cristo.

    Os missionrios acreditavam que estavam fazendo um bem ca-tequizando os ndios, muitas vezes pela fora, ajuntando povos indge-nas de culturas diferentes em aldeamentos, proibindo os costumes e a lngua indgena. Alm disso, os ndios tinham de enfrentar a violncia dos colonos brancos e seus governantes, querendo escravizar sua gente, aqueles invasores entrando cada vez mais para dentro de seus territ-rios, roubando suas terras e destruindo suas aldeias. Os missionrios s vezes ficavam chocados com a violncia dos colonos brancos sobre os ndios, porque os colonos diziam que eram cristos, mas agiam com

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    uma brutalidade que era o contrrio de tudo que o Cristianismo ensi-nava. Os missionrios s vezes protegiam os ndios contra a violncia, mas os missionrios tambm tm uma parte de responsabilidade nesta violncia dos invasores.

    Hoje em dia falam que os europeus tambm aprenderam muitas coisas com o contato com povos indgenas. Ser que aprenderam mes-mo? Isso no aparece no pensamento deles. Pelo contrrio, o Ocidente desde aquela poca est sempre inventando um pensamento que no tem nada de espiritual. No pensamento que eles inventaram, os homens, a sociedade e a Natureza no tm mais esprito. Todos os povos tradicio-nais falam que nosso mundo visvel s uma aparncia, uma sombra do outro mundo magnfico e luminoso, o Invisvel. Nosso mundo como um espelho que s reflete um pouco do brilhante mundo dos espritos. So muitos os mundos povoados de espritos enfeitados, esses mundos so como camadas de luz at o Grande Mistrio. Nenhum povo tradi-cional diz que s tem esse mundo material visvel. Nosso mundo s a superfcie de um Oceano Luminoso Infinito.

    Muitos pensadores da sociedade moderna dizem que esse conhe-cimento dos povos indgenas no cincia, s uma crena. Eles estu-daram muito os povos indgenas de toda parte do mundo, mas parece que no entenderam direito. Porque eles chamam de crena a sabe-doria dos povos indgenas? Usam essa palavra crena para diminuir o valor do conhecimento tradicional. Como a cincia moderna no tem mais nenhuma ligao com o Invisvel, querem com isso reduzir a fora da sabedoria indgena com o nome de crenas religiosas. s vezes at dizem que essas crenas indgenas devem ser respeitadas porque so o pensamento dos povos indgenas, mas no fundo muitos deles acham que o conhecimento indgena no tem a mesma fora de verdade da ci-ncia moderna. No fundo, ainda pensam que o Ocidente fez um grande progresso no conhecimento, deixando para trs o conhecimento espiri-tual cristo e criando o verdadeiro conhecimento cientfico. Mas o que esse verdadeiro conhecimento cientfico que eles inventaram?

    Quando estudamos de perto, percebemos que s no pensamen-to dos ocidentais modernos que apareceu esta idia inventada de achar que s existe esse mundo visvel, e que o homem veio do macaco. Eles colocam o conhecimento materialista deles como o cientfico e verda-

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    deiro, enquanto que o conhecimento dos povos antigos seria crenas religiosas e no-cientfico. Mas a verdade outra: so dois tipos de cincias, s que a cincia moderna no liga o mundo visvel com sua Raiz Invisvel. As cincias dos povos tradicionais, pelo contrrio, esto sempre vendo este mundo ligado ao Invisvel. Quer dizer que o conflito no entre cincia e crena religiosa, mas entre dois tipos de cincia: a cincia moderna que no tem esprito e as cincias tradicionais sagra-das. No que a cincia moderna esteja totalmente errada. Ela tem uma viso quantitativa dos fenmenos e baseado nisso ela criou a tecnologia moderna. Mas o problema que sua viso quantitativa s a superfcie dos fenmenos, por isso ela no pode pretender ser a viso nica e a mais correta dos fenmenos, pois ela no tem a qualidade e profundida-de do conhecimento tradicional.

    Por exemplo, o Sol. Para a cincia moderna, o Sol apenas uma massa de gases explodindo e produzindo energia em forma de luz e ca-lor. Mas para os Desna, o Sol mais que isso. De acordo com seus relatos mticos, em seu livro Antes o Mundo no existia, o Sol a criao de Yeb blo, a av do universo, e seu bisneto, Yeb ngoaman. Com seu cetro-marac, yi wa ngo, enfeitado com mah we ihse (araras, mui-tas penas) e com ab pn mihi (sol, brincos), a ponta do basto-marac se transforma em um rosto humano que irradia luz. Era o Sol, sendo criado, aparecendo.

    Estamos hoje vivendo uma grande crise ecolgica. Muitos esto preocupados com a rpida destruio do meio ambiente. Isto porque a civilizao ocidental cortou a ligao entre a Natureza e o Invisvel. Ti-rou da Natureza sua qualidade espiritual e transformou a Natureza em um objeto de consumo, uma matria sem esprito, que serve s como matria-prima para a produo de mercadorias. Muitas medidas esto sendo pedidas para defender o meio ambiente, isto importante, mas preciso mostrar que a Natureza est sendo destruda por causa da grande ambio de consumo que tomou conta do mundo, ambio estimulada pelo industrialismo. Muitos querem salvar a Natureza, mas no querem diminuir seu apetite consumista. O que chamam hoje de crise ecolgica tambm conseqncia da viso antiespiritual do mundo moderno.

    O mundo moderno virou as costas para seu objetivo e responsa-bilidade espiritual pelo planeta. Por isso a Terra est cansada. Por isso os

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    xams dizem que quando eles acabarem, o mundo acabar, porque so eles que ainda lutam para defender o equilbrio espiritual do mundo. Mas tudo neste mundo tem limite.

    No foi