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A crise da sociedade do trabalho 1

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A crise da sociedade do trabalho

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Reitor

Aloysio Bohnen, SJ

Vice-reitor

Marcelo Fernandes Aquino, SJ

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor

Inácio Neutzling, SJ

Diretora adjunta

Hiliana Reis

Gerente administrativo

Jacinto Schneider

Cadernos IHU em formação

Ano 1 – Nº 5 – 2005ISSN 1807-7862

Editor

Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho editorial

Profa. Esp. Àgueda Bichels – UnisinosProfa. Dra. Cleusa Maria Andreatta - Unisinos

Prof. MS Dárnis Corbellini – UnisinosProf. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos

Prof. MS Laurício Neumann – UnisinosMS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos

Esp. Susana Rocca – UnisinosProfa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos

Conselho técnico-científico

Prof. Dr. Gilberto Dupas – USP - Notório Saber em Economia e SociologiaProf. Dr. Gilberto Vasconcellos – UFJF – Doutor em Sociologia

Profa. Dra. Maria Victoria Benevides – USP – Doutora em Ciências SociaisProf. Dr. Mário Maestri – UPF – Doutor em História

Prof. Dr. Marcial Murciano – UAB – Doutor em ComunicaçãoProf. Dr. Márcio Pochmann – Unicamp – Doutor em Economia

Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUCRS - Doutor em Psicologia Social e Comunicação

Responsável técnico

Laurício Neumann

Revisão

Mardilê Friedrich Fabre

Secretaria

Camila Padilha da Silva

Projeto gráfico e editoração eletrônica

Rafael Tarcísio Forneck

Impressão

Impressos Portão

Universidade do Vale do Rio dos SinosInstituto Humanitas Unisinos

Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS BrasilTel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467

www.unisinos.br/ihu

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Sumário

ApresentaçãoSociedade do trabalho e sociedade sustentável

Por Inácio Neutzling .............................................................................................................. 5

O mundo do trabalho em mutação: as reconfigurações e seus impactosPor Marco Aurélio Santana ................................................................................................... 8

A crise e o êxodo da sociedade salarialEntrevista com André Gorz ................................................................................................... 22

“Eliminar o desemprego no capitalismo é uma ficção”Entrevista com Ricardo Antunes............................................................................................ 34

A globalização deve se adaptar às necessidades das pessoas, e não o contrárioEntrevista com Robert Kurz................................................................................................... 39

Pensar outras formas de produção e consumoPor Anselm Jappe ................................................................................................................. 43

O desemprego em massa. O direito à vida não passa mais pelo trabalho assalariadoEntrevista com Paolo Virno ................................................................................................... 45

“Nunca esteve tão longe a distância entre o País que podemos ser e o País que somos”Entrevista com Márcio Pochmann ......................................................................................... 48

“A reforma sindical pode servir de pretexto para uma reforma trabalhista flexibilizadora”Entrevista com Márcio Túlio Viana ........................................................................................ 55

Desemprego, reformas trabalhistas e a democratização das relações de trabalhoEntrevista com José Dari Krein ............................................................................................. 58

“O debate sobre as reformas deve coincidir com um período de desenvolvimentoeconômico”

Entrevista com Sidney Pascoutto da Rocha ........................................................................... 65

“É necessário desvincular emprego e renda”Entrevista com Josué Pereira da Silva ................................................................................... 67

A mulher no mundo do trabalhoEntrevista com Maria Cristina Bruschini ................................................................................ 70

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Unitrabalho: uma parceria entre intelectuais e trabalhadoresEntrevista com Dárnis Corbellini ........................................................................................... 72

“A Economia Solidária deve tencionar o Governo a favor dos trabalhadores”Entrevista com Dalila Maria Pedrini ...................................................................................... 74

“Piqueteiros”: um discurso sobre o poderEntrevista com Jorge Ceballos .............................................................................................. 76

Ócio HumanistaEntrevista com Concha Maiztegui ......................................................................................... 78

A redução do tempo de trabalho e a cultura do tempo livreEntrevista com André Langer ................................................................................................ 80

Ócio humanista e o sentindo do trabalhoEntrevista com Cláudio Gutiérrez.......................................................................................... 83

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Os Cadernos IHU em formação são uma publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que reú-ne entrevistas e artigos sobre o mesmo tema, já divulgados na revista IHU On-Line e nos Cadernos

IHU idéias. Desse modo, queremos facilitar a discussão na academia e fora dela, sobre temas conside-rados de fronteira, relacionados com a ética, o trabalho, a teologia pública, a filosofia, a política, a eco-nomia, a literatura, os movimentos sociais, etc., que caracterizam o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Errata

Na introdução da página 9 do nº 3 – 2005, sobre Max Weber. O espírito do capitalismo, leia-seUFMG, em vez de UFGM; Saint-Cloud, em vez de Saint-Clud; Iluminuras, em vez de Huminuras;l’histoire, em vez de l’hitoire.

Apresentação

Sociedade do trabalho e sociedade sustentável

A sociedade do trabalho é aquela em que aspessoas são definidas e descritas na sua cidadaniapelo trabalho assalariado que possuem. A crise dasociedade do trabalho assalariado se caracterizapor uma crescente “brasilianização”, conceitousado, entre outros, por Ulrich Beck. Mas em queconsiste esta “brasilianização”? A década de 1990é paradigmática para o mundo do trabalho noBrasil. O emprego formal acumulou um déficit es-timado em 3,2 milhões de postos de trabalho, as-sim como o desemprego alcançou índices nacio-nais sem paralelo desde a década de 1930. Entre1989 e 1999, a quantidade de desempregadosampliou-se de 1,8 milhões para 7,6 milhões, comaumento da taxa de desemprego aberto, passan-do de 3% da PEA para 9,6%. No entanto, apesardeste aumento do desemprego, nos anos 1990, aquantidade de trabalhadores, com jornada de tra-balho superior à oficial de 44 horas duplicou, pas-sando de 13,5 milhões para 26,7 milhões de pes-soas ocupadas. Isso significa que cerca de 4,9 mi-lhões de novas vagas deixaram de ser criadas nopaís. Ou seja, cerca de 2/3 do total do desempregoaberto no Brasil poderia ter sido diminuído com aforte redução do sobretrabalho. Essa “brasiliani-zação” na década de 1990, no Brasil, se caracteri-za pela desestruturação do mundo do trabalho.Ela consiste, fundamentalmente, no crescente eelevado desemprego aberto, no desassalariamen-to, no sobretrabalho, no aumento do trabalho in-formal e na geração de postos de trabalho precá-rios. A “brasilianização” do mundo do trabalhoparece indicar que saímos da sociedade de traba-lho sem substituí-la por nenhuma outra.

De um lado, o trabalho foi declarado como ofundamento da sociedade onde todas as pessoas

giram ao redor do trabalho, isto é, têm o trabalhocomo ponto de referência, enquanto, por outrolado, tudo é feito para torná-lo raro. Por exemplo,o aumento da produtividade, por definição, signi-fica sempre, simultaneamente, eliminação do tra-balho humano. A “brasilianização” é uma mani-festação da mutação do mundo do trabalho, im-pulsionada com mais vigor pela indústria pós-for-dista. Ela é a ponta de lança de uma transforma-ção profunda “que abole o trabalho, abole o assa-lariado e tende a reduzir a 2% a parte da popula-ção ativa, capaz de assegurar a totalidade da pro-dução material”. Ou seja, “a economia, cada vezmenos, necessita do trabalho. Objetivamente, otrabalho perde a sua ‘centralidade’”.

Desse modo, é possível afirmar que a socie-dade do trabalho só existe no imaginário das pes-soas, porque todas as forças estabelecidas seopõem a reconhecer esta perda da centralidadedo trabalho, e tudo o que ele implica, pois o podersem entraves que o capital conquistou sobre o tra-balho, sobre a sociedade e sobre a vida de todosvisa precisamente a isto: que o “trabalho” conser-ve na vida e na consciência de cada um, a suacentralidade, ainda que ele seja massivamente eli-minado, economizado e abolido em todos os ní-veis da produção. A glorificação teórica do traba-lho resultou na efetiva transformação de toda asociedade numa sociedade de trabalhadores,numa “sociedade operária”. Ao fazer isso, ela pas-sou a entender o trabalho como emprego, isto é, otrabalho só é “trabalho”, quando é pago. Assim,todos, desempregados e precários em potencial,são incitados a se bater por este “trabalho” que ocapital aboliu. Cada passeata, cada cartaz que exi-ge “Nós queremos trabalho” proclama a vitória do

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capital sobre uma humanidade subjugada de tra-balhadores que não são mais, e que não podemser, outra coisa”. Eis, portanto, o centro do proble-ma e o núcleo do conflito: trata-se de desconectardo “trabalho” o direito de ter direitos e, especial-mente, o direito ao que é produzido e produzívelsem trabalho, ou com cada vez menos trabalho.Trata-se de reconhecer que nem o direito a umrendimento, nem o direito à cidadania plena, nema realização e a identidade de cada um podemmais ser centradas no emprego e depender de terum emprego. Trata-se, conseqüentemente, demudar a sociedade.

Se o “trabalho” não perder a sua centralida-de na consciência, no pensamento, na imagina-ção de todos, este conflito não será solucionado. Eé precisamente isso que todos os poderes estabe-lecidos e todas as forças dominantes se empe-nham em impedir, com o auxílio de especialistas eideólogos que negam que o “trabalho” esteja emprocesso rápido de eliminação. O lugar do traba-lho na imaginação de todos, na imagem delesmesmos e do futuro possível é o início de um con-flito profundamente político: de uma luta pelopoder.

Além disso, temos que reconhecer que há umconflito entre a reprodução da humanidade e daTerra. O nosso planeta suporta, cada vez menos,o nosso crescimento, enquanto nossas sociedadestêm, cada vez mais, necessidade dele. Para geraremprego, renda, é necessário mais consumo que,por sua vez, gera mais produção, que gera maisrenda do trabalho e de novo mais consumo e as-sim vai se constituindo o círculo vicioso da econo-mia. No entanto, o consumo mundial se desenvol-veu a um ritmo sem precedentes no decorrer doséculo XX. A dinâmica consumo-pobreza-desi-gualdade-degradação ambiental se acelera. Senão houver uma redistribuição entre os consumi-dores de alta e baixa renda, se não se abandona-rem os produtos e procedimentos de produçãopoluidores, se não se favorecerem as mercadoriasque são necessárias para os pobres e se o consu-mo ostentatório não deixar espaço à satisfaçãodas necessidades essenciais – os problemas colo-cados hoje pela relação entre consumo e desen-volvimento humano se agravarão.

A esperança de garantir a sobrevivência dahumanidade como espécie, assim como a espe-rança de que, em algum momento do futuro, umaparte razoável dos seres humanos possa atingiruma qualidade de vida semelhante ao atual pa-drão do cidadão médio norte-americano ou euro-peu, duas esperanças que alimentam os sonhosde grande parte da população, são seriamentequestionadas. Não há nenhuma segurança sobreessas hipóteses. A primeira dependerá de umenorme esforço conjunto de toda a raça humana.A segunda tem toda a chance de ser uma falsapremissa. Ou seja, elevar ao nível médio nor-te-americano a qualidade de vida da populaçãoatual da Terra já exigiria os recursos naturais devários planetas iguais ao nosso. Nos mesmos níveisde consumo e desperdício, mesmo que apenasuma parte das nações fosse bem-sucedida nesseintento, o choque ambiental decorrente liquidariaa vida humana.

Por isso, a crítica do trabalho, com base nacrise ecológica, implica a crítica radical da submis-são da sociedade à racionalidade econômica.Emerge aqui a discussão dos limites. A necessida-de de pensar os limites a serem impostos ao mer-cado é conditio sine qua non para evitar a desa-gregação da sociedade e a destruição da biosfera.A delimitação dos limites dentre os quais a racio-nalidade econômica deve operar é, aliás, o pro-blema central da sociedade capitalista desde o seuinício. A subordinação do econômico à socieda-de, isto é, a atividade econômica a serviço dos finsque a superam e fundamentam a sua utilidade,dando-lhe um sentido, eis o núcleo da crítica queemerge da crise da sociedade do trabalho e da cri-se ecológica.

Para que o desenvolvimento da economia ea própria concepção de trabalho ajude na preser-vação do ecossistema e da própria humanidade, énecessária uma mudança radical no estilo ociden-tal moderno de consumo que obstaculiza a autoli-mitação das necessidades que poderia nos levar àautoprodução e à livre escolha do tempo de traba-lho. A autolimitação das necessidades deve servista e percebida pelas pessoas como reconquistada autonomia dos seres humanos, graças ao reori-entamento democrático do desenvolvimento eco-

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nômico, com redução simultânea do tempo detrabalho e a extensão das possibilidades de auto-produção cooperativa e associativa. Uma socie-dade que define o bem como a satisfação máximapelo maior consumo de bens e serviços industriaisdo maior número de pessoas, mutila, de modo in-tolerável, a autonomia do indivíduo. Um tempode trabalho cada vez mais reduzido e flexível podepossibilitar a criação de uma esfera crescente devida comunitária, de cooperação voluntária e au-to-organizada, de atividades autodeterminadassempre mais extensas. Somente por este caminhose evitará que a redução do volume de trabalhonecessário ao sistema econômico se transformeem desemprego, desintegração e “brasilianização”da sociedade.

Uma sociedade sustentável é possível na me-dida em que libertamos o pensamento e a imagi-nação dos lugares-comuns do discurso social do-minante, ousando pensar as potencialidades deoutras experiências exemplares que apostam, efe-tivamente, em outros modos de cooperação pro-dutiva, de troca, de solidariedade, de vida. Tra-ta-se de alargar ao máximo os espaços e os meios

que permitem a produção de socialidades alterna-tivas, de modos de vida, de cooperação e de ativi-dades que se subtraem aos dispositivos do poderdo capital e do Estado. Assim, novos direitos euma nova liberdade emergem como possibilida-de, como, por exemplo: o direito de cada um deganhar a vida trabalhando, mas trabalhando me-nos e melhor, recebendo por inteiro a sua parte dariqueza socialmente produzida. Um outro direitoseria o de trabalhar de modo descontínuo, inter-mitente, sem perder durante estas pausas a rendaplena, de modo que possa abrir novos espaços àsatividades sem fim econômico e reconhecer a es-tas atividades uma dignidade e um valor eminen-te, seja para os indivíduos, seja para a sociedade.Para isso, o desafio é articular políticas que ten-dam a garantir a todos e todas uma renda suficien-te, combinando a redistribuição do trabalho e ocontrole individual e coletivo do tempo e favore-cendo o florescimento de novas socialidades, denovos modos de cooperação e de troca pelos quaisos laços sociais e da coesão social possam ser criadospara além do assalariamento.

Dr. Inácio Neutzling1

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1 Inácio Neutzling é graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nª Sª Medianeira (FASP-SP), graduado em Teologia(Unisinos), mestre em Teologia (PUC-Rio), doutor em Teologia pela Pontifícia Universitá Gregoriana – Itália. Sua tese teve otítulo: O Reino de Deus e os Pobres. As implicações ético-teológicas para o agir cristão. São Paulo: Loyola, 1986. É autor doartigo Sociedade do Trabalho e Sociedade Sustentável: algumas aproximações. In: Cecília Osowski e José Luiz Bicade Mélo (Orgs.). O ensino Social da Igreja e a Globalização. São Leopoldo: Unisinos, 2002, p. 37-82.

O mundo do trabalho em mutação: as reconfigurações e seus impactos

Por Marco Aurélio Santana

Marco Aurélio Santana é professor de Socio-logia na Universidade Federal do Estado do Riode Janeiro. Cursou o Mestrado em Ciências So-ciais na UNIRIO, onde também concluiu o Douto-rado em Sociologia e Antropologia, com a tese in-titulada Esquerda e Sindicalismo no Brasil: o PCB(1945-1992). Santana é autor de diversos livros,em parceria com SOUZA, D. B.; DELUIZ, N.;RAMALHO, José Ricardo; THIESEN, Icléia; BARROS,Luitgarde, entre os quais destacamos: Trabalho eEducação: Centrais Sindicais e Reestrutu-ração Produtiva no Brasil. Rio de Janeiro, Quar-tet, 1999. Homens Partidos: comunistas esindicatos no Brasil. São Paulo; Rio de Janei-ro: Boitempo; MMSD/UNIRIO, 2001. Trabalho etradição sindical no Rio de Janeiro: a traje-tória dos metalúrgicos. Rio de Janeiro: DP&A,2001. Além da fábrica: trabalhadores, sindi-catos e a nova questão social. São Paulo: Boi-tempo, 2003. Sociologia do Trabalho noMundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2004. Vozes do Porto: memória e his-tória oral. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

Introdução

As últimas três décadas do século XX forampalco de transformações rápidas e radicais que var-reram a sociedade contemporânea e cujas reverbe-rações vão sendo sentidas até hoje. Podemos dizerque as épocas de crise e de mudança sempre seprestaram ao aparecimento de prognósticos e ava-liações que, por estarem embasados em uma reali-dade movediça, muitas vezes, acabam por indicar

mais as (des)esperanças ou expectativas dos avalia-dores do que cenários realmente existentes. Nosdias atuais, temos, no mercado de análises, um es-pectro de posições bastante díspares acerca dastransformações sofridas pela sociedade em geral epelo mundo do trabalho em particular. Tais análi-ses têm como um dos dados principais de diferen-ciação a qualificação dos cursos e sentidos dessasmudanças. Para onde nos levariam?

Este artigo visa a indicar alguns eixos dastransformações contemporâneas no mundo dotrabalho e seus impactos na vida social. Nessesentido, tomaremos como foco as mudanças nosprocessos de trabalho, nas formas de contrataçãoe regulação do trabalho e aqueles que seriam seusnovos requerimentos em termos de qualificaçãodos trabalhadores. Não teremos espaço, no âmbi-to deste trabalho, para um tratamento em maiorextensão e aprofundamento de todos os aspectosda questão. Ficaremos bastante próximos daabordagem ensaística.

Mudanças no cenário global

As transformações no mundo do trabalhovêm afetando, de modo intenso, as sociedades in-dustriais em todo o mundo. Formas de produção,consideradas superadas pelo desenvolvimento deum capitalismo monopolista, retornam numa ou-tra dimensão, reincorporadas a uma lógica deacumulação que enfatiza a competitividade e aqualidade. O processo de reestruturação das ativi-dades produtivas, principalmente a partir da déca-da de 1970, inclui inovações tecnológicas e novas

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formas de gestão da força de trabalho. O resultadotem sido um aumento significativo nos índices deprodutividade, profundas alterações no relaciona-mento entre as empresas e nas formas de organi-zação da produção, interferindo nas relações detrabalho e no processo de negociação com as ins-tituições de defesa dos trabalhadores.

Essa reestruturação, no entanto, vista pormuitos como inevitável na racionalidade do mer-cado, tem trazido também graves problemas so-ciais quanto ao nível de emprego e à garantia dosdireitos conquistados pelos trabalhadores ao lon-go do século XX. Ao mesmo tempo que os índicesde desemprego se tornam elevados, inclusive naseconomias centrais, em muitos países do mundo,se aplica uma política de desmantelamento daação do estado nas áreas sociais. Nos países sub-desenvolvidos, a flexibilização das relações de tra-balho só faz aumentar o mercado de trabalho in-formal e o desemprego.

Fala-se em “globalização” da produção in-dustrial. De fato, as empresas multinacionais, embusca de maiores taxas de lucro, estendem suapresença por regiões geográficas e econômicasque oferecem uma força de trabalho com saláriosbaixos e menos dispêndios com benefícios sociais.

No que se refere a inovações tecnológicas ede gestão, estratégias derivadas do chamado“modelo japonês”, embora efetivas em apenas al-gumas grandes empresas no próprio Japão, vêmsendo anunciadas como solução para todos osmales resultantes da falta de competitividade edas dificuldades no controle da força de trabalho.Novas formas de gestão se associam ao anúncioda “modernidade”. No Brasil e na América Lati-na, aparecem como o caminho inexorável da pro-dução industrial e expressões, como “qualidadetotal”, just in time, etc. passam, de repente, a fazerparte do vocabulário das empresas, que impin-gem aos trabalhadores um discurso “civilizador”sobre a necessidade de aderir aos novos tempos.

A exigência de maior competitividade vemintroduzindo estratégias de racionalização e redu-ção de custos com sérias conseqüências para osníveis de emprego. Postos de trabalho, que tradi-cionalmente garantiam estabilidade, se reduziramdrasticamente. A insegurança passou a fazer parte

do cotidiano do assalariado que detém algum tipode emprego formal. Formas precárias de trabalho,de subcontratação, passaram a ser utilizadascomo norma, incorporando-se às práticas das em-presas. Fragilizou-se a instituição sindical comorepresentação legítima dos trabalhadores. O de-semprego adquiriu dimensões mais amplas, mu-dando hábitos e trazendo pobreza e desesperan-ça, e o trabalho informal tornou-se uma alternati-va freqüente para os excluídos do mercado de tra-balho formalizado, principalmente nos paísessubdesenvolvidos.

De forma bastante esquemática, poderíamosindicar, à guisa de introdução, as principais trans-formações na esfera produtiva:

• em um cenário crescentemente globaliza-do, de abertura de mercados e de fortecompetição internacional, as unidadesprodutivas de grande porte ficam mais“enxutas” e aumentam a produtividade (achamada lean production);

• a atividade produtiva passa a exigir traba-lhadores polivalentes/flexíveis que, de possede ferramentas flexíveis, teriam como resul-tado de seu trabalho um produto flexível;

• a parcela do trabalho fora do “foco” princi-pal da empresa passa a ser subcontratadade outras empresas (ou terceirizada);

• o setor industrial perde volume diante dosetor de serviços e a flexibilização das ativi-dades produtivas leva também a um au-mento da precarização nos contratos detrabalho;

• na esfera sociopolítica, os sindicatos pas-sam a lutar para se desvencilhar de umarealidade marcada pelo grande porte, pelaexterioridade às empresas, pela rigidez epelo enfrentamento direto, que os estavalevando a uma diminuição na sindicaliza-ção e a uma dificuldade de competir emvelocidade e adequação aos impasses tra-zidos pela nova realidade. Junte-se a isso odesemprego e a informalização que cor-roem grandemente o poder de agencia-mento das instituições sindicais.

Em meio a tantas mudanças, nem mesmo aidéia de Estado permaneceu intocada. Pelo me-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nos desde o segundo pós-guerra, era visão corren-te a idéia de que o Estado deveria cumprir não sótarefas referentes ao controle e regulação da eco-nomia, mas também de assegurar bem-estar socialaos cidadãos (daí o nome welfare state), o que osobrecarregaria de outros atributos redistributivos.Foi através deste tipo de formulação que o Estadose encarregou do que seriam encargos sociais liga-dos, por exemplo, à educação e à saúde.

Nesse momento de crise da sociedade indus-trial, passa-se a argumentar que o Estado deverestringir sua intervenção na economia e nos seto-res sociais. O Estado de bem-estar social ou Esta-do Providência deveria ceder lugar a um novo for-mato de Estado, o chamado Estado mínimo.

Segundo esta lógica, o Estado deveria redu-zir sua inserção na economia, privatizando suasempresas, enxugando seus quadros e repassandoao setor privado a tarefa de gerir a economia semmuitas regulamentações que impedissem o livretrânsito econômico. Mais ainda, quanto ao queseriam as inserções sociais do Estado, deveria im-perar a chamada lógica do mercado, de modoque deixasse de pesar sobre os ombros dos agen-tes econômicos e dos próprios cidadãos, tornan-do-se mais ágil e dinâmico.

Com este quadro de transformações, ClausOffe lançou seu questionamento acerca da valida-de de se manter a centralidade da categoria traba-lho como chave para o entendimento sociológico.Segundo ele, o trabalho estaria deixando de situ-ar-se como o fato social principal. Dessa forma, asesferas do trabalho e da produção diminuiriam ra-dicalmente sua capacidade de estruturação e deorganização da vida social, abrindo espaço paranovos campos de ação, caracterizados por novosagentes e por uma nova forma de racionalidade.

Podemos perceber, então, que, diante dessenovo contexto, exige-se cada vez mais explicaçõesda parte dos atores envolvidos, e da parte dos pes-quisadores que lidam com temáticas centradas, dealguma maneira, no mundo do trabalho. Em ummomento no qual, em escala planetária, a huma-nidade passa por processos que levam a transfor-mações materiais e simbólicas, a velocidade verti-

ginosa com que muda a realidade tem dificultadoainda mais a sua compreensão e interpretação. Oquadro se agrava ao percebermos que se pode es-tar tentando este movimento com ferramentasteóricas ultrapassadas e que quaisquer formas deproposição e intervenção prático-política depen-dem de análises e conceituações mais precisas.

A sociologia do trabalho, buscando dar contadas transformações quantitativas e qualitativaspor que passa o mundo do trabalho, tem levanta-do uma série de hipóteses com relação às origens,o desenvolvimento e os destinos destas mudan-ças. Essas alterações foram conceituadas por unscomo especialização flexível e por outros comoum novo conceito de produção. Além disso, já fo-ram analisadas pela escola da regulação francesae pelos teóricos do pós-fordismo.

O debate gira em torno da crise e continuida-de do sistema de produção denominado fordis-mo, da emergência e vigência de uma nova formaprodutiva, vinculada a novos padrões de deman-da – a especialização flexível – e dos limites e pos-sibilidades de expansão desta nova forma produ-tiva, muitas vezes identificada com os processosque lhes serviram de base, o toyotismo ou o mo-delo japonês.

Sobressai, no debate, a preocupação com olugar dos trabalhadores em meio à turbulênciaatual. Uma grande atenção é dada ao processo dequalificação/desqualificação ao qual estariamsubmetidos os trabalhadores no processo produti-vo, sobre o que se esperaria deles nesses novosprocessos, e como seriam suas formas de inser-ção. Além disso, para completar, que tipo de res-postas os trabalhadores podem dar em um qua-dro como este?

As interpretações oriundas de tais análisessão importantes, na medida em que constroemum mapa que pode servir de orientação na leiturade processos em curso. As novas formas de gestãodo trabalho e da produção têm se implantado,ainda que, de forma desigual, ao redor do globo.Caberia discutir agora algumas linhas interpretati-vas das transformações mundiais e indicar de queforma as alterações nas lógicas da produção e dotrabalho têm se dado na realidade brasileira.

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A crise do fordismo e a especialização flexível

Os estudos voltados à temática do trabalho,tentando dar conta das transformações do sistemafordista, têm apresentado, para além de algumasespecificidades, posições variadas que podem seragrupadas em dois conjuntos: aqueles que defen-dem a existência de um movimento de superaçãodo fordismo, apontando novos rumos possíveis; eaqueles que sustentam que as mudanças são umareadequação e um ajuste ante a crise do sistemaprodutivo.

Ambas as posições concordam que as mu-danças estão relacionadas com uma crise no siste-ma fordista. É neste contexto que se confrontamnoções, tais como as de especialização flexível ede neofordismo, e que também se verifica quetanto o entendimento da crise como seus possíveisdesdobramentos têm relação direta com a defini-ção do que vem a ser o sistema fordista.

Como lembra David Harvey (1993), a im-plantação do fordismo é muito mais complexa doque faz supor a mera apropriação do nome deHenry Ford para o processo. Sem desqualificar opapel de Ford que introduziu o sistema de um diade trabalho de oito horas com o pagamento decinco dólares aos trabalhadores da linha automá-tica de montagem de carros de sua fábrica nesteprocesso, ele, na verdade, articulou, de forma sin-gular, certas tendências correntes à época.

Para além do uso de inovações tecnológicase organizacionais, bem como do formato corpora-tivo nos empreendimentos de que Ford se apro-priou e que já estavam em curso, muitos desde oséculo XIX, vale lembrar a apropriação que ele fazdas idéias de Frederik W. Taylor, centradas na no-ção de administração científica. Taylor, julgandoo trabalhador um ser indolente (natural ou inten-cionalmente), advogava uma radicalização doprocesso de separação entre a concepção e a exe-cução do trabalho (à gerência caberia o trabalhointelectual, e ao trabalhador, o manual). Defendiauma decomposição minuciosa do processo de tra-balho em movimentos e tarefas fragmentadas e ri-gidamente controladas pelo tempo, resultandoem um maior grau de hierarquização e desqualifi-cação no interior do processo de trabalho. Tudo

isso, disposto em uma linha de montagem e comrecompensa salarial separada do esforço empre-endido pelo trabalhador.

Desta forma, se articulam, como idéias for-madoras da singularidade do fordismo, a separa-ção entre concepção/execução, a fragmentação/rotinização/ esvaziamento das tarefas; a noção deum homem/uma tarefa com especialização des-qualificante; o controle do tempo de execução dastarefas estritamente orientadas por normas opera-cionais em um processo onde a disciplina se tornao eixo central da qualificação requerida; pouca ounenhuma aceitação do saber dos trabalhadores,tendo em vista contribuir para a melhoria do pro-cesso produtivo, e, conseqüentemente, do produ-to; e produção em massa de bens a preços cadavez menores para um mercado também de massa.

O exíguo aproveitamento do saber operárioteria como rebatimento político-organizacional ofato de que os sindicatos, embora aceitos, fossempensados sempre como corpos estranhos, essen-cialmente oponentes e externos à produção, e in-teressados em estimular o choque de interessesantagônicos entre empregadores e empregados.

Por mais geral que seja a forma pela qual ten-temos reconstruir as características do sistema for-dista, dependendo do caminho escolhido, pode-mos refazê-lo de outras maneiras, acrescentando,retirando ou realçando certas noções. É exata-mente pela distinção no entendimento da defini-ção do sistema fordista, de sua crise e de seu desti-no que podemos lançar luz sobre as noções e posi-ções no debate. Isso se faz mais facilmente tendocomo pano de fundo aquilo que seria o paradig-ma da especialização flexível, sistema produtivoque teria superado o paradigma fordista ou pelomenos, em meio à crise, estaria em vias de supe-rá-lo. Para além da sentida fluidez e amplitude naqualificação de processos que caracterizam a cha-mada especialização flexível – levando-se ao riscode que esta própria conceituação permita dizerqualquer coisa que se deseje –, algumas caracte-rísticas podem ser identificadas.

Para este paradigma, tendo Michael Piore eCharles Sabel, no livro The second industrial divi-de (1984), como autores de ponta, a crise do siste-ma fordista foi deflagrada no pólo do sistema que

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é externo à produção, isto é, na demanda e noconsumo, os quais, ao se instituírem sobre novospadrões de exigência, tornaram o fordismo obso-leto a partir de uma de suas bases. A produção emmassa, verticalizada, de produtos estandardiza-dos, teria se defrontado com mercados cada vezmais saturados. Não foi, porém, apenas neste ní-vel que teria havido um estrangulamento. A partirdos anos de 1970, outros mecanismos institucio-nais que davam suporte ao sistema, como as for-mas creditícias e a própria noção de estado debem-estar, só para dar alguns exemplos, tambémcomeçaram a ser repensadas e restringidas.

A resposta à crise não surgia de elementos to-talmente inusitados; antes, viria de uma certa re-cuperação de formas produtivas que sucumbiram,sem se extinguirem, diante do sistema fordista.Aquilo que poderíamos chamar de sistema de ma-nufatura, concorreu com idéias que se articulariammais tarde no fordismo e, devido, sobretudo, à in-tervenção de ordem política, sustentada pela visãoevolutiva com seu rebatimento tecnológico, aca-bou sendo derrotada, embora continuasse a existirao longo do tempo em experiências isoladas.

As idéias do sistema de manufatura, nessenovo contexto, auxiliariam teoricamente a com-preensão das transformações pelas quais passa-mos e, na prática, se implementadas, poderiam le-var à superação da crise da produção em massa.Se fizermos um recorte na teoria da especializaçãoflexível e tomássemos, como indicamos, a satura-ção dos mercados e seus novos padrões de exi-gência como marco de partida, perceberíamos umdos pontos nodais de inflexão do sistema fordista.Sem seus amplos espaços de mercado, tendo quese adaptar à busca de nichos em um grau de con-corrência extrema, as empresas teriam que produ-zir com versatilidade e qualidade.

A produção de bens estandardizados precisa-ria buscar uma tecnologia, um complexo ho-mem/máquina, flexível. Às máquinas e ferramen-tas flexíveis se agregariam trabalhadores flexíveis.A flexibilização no processo de trabalho imporia odeslocamento da relação um homem/um pos-to/uma tarefa e a aproximação das etapas concep-ção, execução e controle, baseando-se na incor-poração progressiva da competência dos traba-lhadores no processo produtivo. Ao trabalhador

parcializado e semidesqualificado ou desqualifica-do do fordismo, se contrapunha o trabalhador“coletivo”, organizado em grupos ou “ilhas” que,com a redução da hierarquia gerencial no interiordo processo e, muitas vezes, subsidiado pelo su-porte microeletrônico, passa a ter sobre si a res-ponsabilidade de agir qualificadamente sobrepontos diversos do processo.

Estes ajustes se estabeleceriam também naestrutura das próprias firmas. Seria sensível umadesverticalização organizacional (desmembra-mento da empresa faz tudo), baseada na focaliza-ção em processos e produtos, com respectiva re-dução no porte e no número dos trabalhadores.Esta desverticalização ou, em muitos casos, des-centralização (conforme ocorrido na experiênciaitaliana), baseando-se na cooperação e na confian-ça, estabeleceria um vínculo interempresas, for-çando uma relação mais estreita entre compradore fornecedor; tendo como pontos principais as no-ções de qualidade e rapidez, esta última funda-mental, tendo em vista que um dos aspectos es-senciais do processo é o just in time, isto é, a capa-cidade de operar com estoques reduzidos de ma-téria-prima com inputs regulados no tempo.

Tendo em vista a inter-relação e a velocida-de das trocas e dos fornecimentos, a proximida-de geográfica tornou-se ponto essencial, e aconstituição de distritos industriais passou a seruma tendência mundial. Como exemplo destesprocedimentos, temos as experiências concretasdas pequenas e médias empresas da região daEmilia Romana, a chamada “Terceira Itália”; daplanta da Volvo, em Kalmar, na Suécia; e do fe-nômeno mais marcante, a experiência da Toyo-ta, no Japão.

Conforme já assinalamos, este tipo ideal dedesenvolvimento industrial, puro na teoria, possuiforma híbrida na realidade. Nesses termos é quevários autores percebem uma série de possibilida-des de implantação e coabitação de processosprodutivos. Se a noção de especialização flexível,de alguma forma se encontra presente nas condi-ções identificadas com o chamado pós-fordismo,ela não o esgota. Um problema é que as chama-das teorias pós-fordistas são tratadas homogenea-mente, não se dando atenção suficiente às suas di-ferentes raízes e implicações.

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Processo de trabalho e qualificação: dadegradação às competências

O debate acerca das modificações no mundodo trabalho tem, como um de seus pontos centrais,aquele que se refere ao papel desempenhado pe-los trabalhadores no processo produtivo. As mu-danças em curso abriram uma série de indagaçõesacerca dos impactos que trariam para as funçõesoperárias na produção.

O livro Trabalho e Capital Monopolista(1977), de Harry Braverman, serviu, ao longo demuitos anos, como lente de análise para a compre-ensão das inserções dos trabalhadores no processoprodutivo. Ele partia da idéia de que o trabalho nosmarcos do sistema capitalista de produção era de-gradado. Haveria uma tendência inexorável no in-terior do processo de trabalho que levaria a umadesqualificação progressiva, como conseqüênciado aprofundamento da divisão do trabalho no ca-pitalismo. Este processo simplificaria ao máximo astarefas, exigindo-se maior especialização parcial; emenor, ou reduzida, qualificação global.

Segundo este autor, o modo de produção ca-pitalista destrói, sistematicamente, todas as perí-cias à sua volta, dando nascimento a qualificaçõese ocupações que correspondem às suas necessi-dades. Toda fase do processo de trabalho é divor-ciada do conhecimento e preparo especial, sendoreduzida a simples trabalho. Nesse ínterim, aspoucas pessoas para quem se reservam instruçãoe conhecimento, são isentas, tanto quanto possí-vel, da obrigação de simples trabalho.

Assim, a modernização tecnológica produzi-ria, no processo de trabalho, dois setores polariza-dos em termos de suas qualificações: de um lado,um pequeno setor de trabalhadores altamentequalificados; de outro, toda uma massa de traba-lhadores desqualificados. Isso se agravaria com aintrodução de novas tecnologias que, ao reforça-rem os delineamentos da divisão do trabalho, in-tensificariam a desqualificação da força de traba-lho. No processo de trabalho capitalista, se que-braria a unidade natural do trabalho, separan-do-se a concepção da execução.

Frutos de tal separação, teríamos a desquali-ficação e o controle, marcando a inserção dos

trabalhadores no processo de produção capitalis-ta. Ambos visariam a assegurar a subordinaçãoreal do trabalho, convertendo força de trabalhoem trabalho real. Além disso, para os trabalhado-res, significariam a redução de seu grau de inter-ferência/resistência, individual ou coletiva, noprocesso.

As gerências teriam aí um papel destacadono sentido de controlar o trabalho e garantir que alógica geral se efetivasse. O aumento do controlegerencial se daria com a correlata diminuição dainfluência operária sobre os meios e a natureza daprodução. O controle sobre o processo de traba-lho passaria das mãos operárias para a dos capita-listas, promovendo uma alienação cada vez maiordos trabalhadores frente ao processo produtivo.

Apesar da análise de Braverman referir-se aum momento no qual o mundo das técnicas deprodução dava passos iniciais em termos de suaautomação e informatização; nem por isso, suasidéias deixaram de vigorar no cenário atual detransformações, já que, para alguns autores, omesmo aparato conceitual pode ser usado emambos os cenários. Para esta perspectiva, as no-vas formas organizacionais ou tecnológicas surgi-riam exatamente da exigência de renovação dastécnicas de controle sobre o trabalho, em um con-texto no qual o trabalho parcelado e repetitivo en-tra em crise de eficiência.

Devemos assinalar, contudo, que outras pes-quisas indicam que as mudanças no mundo dotrabalho trazem consigo fenômenos que podemser relativos a outros processos que não o da des-qualificação. É interessante notar que, em algunscasos, tais pesquisas foram realizadas por autoresque antes defendiam a visão da polarização dasqualificações. Para Horst Kern e Michael Schu-mann (1984), por exemplo, a racionalização naprodução capitalista teria atingido tal ponto que asgerências só conseguiriam aumentar a eficiênciado trabalho se flexibilizassem os rígidos contornosda divisão do trabalho. Eles vão questionar a idéiade que só pela redução radical do trabalho vivoe/ou pela desqualificação, se conseguiria obter omáximo de eficiência.

Esses mesmos autores chegaram a defendera idéia de que nem o mercado, nem o produto, no

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estágio de racionalização da indústria, poderiamse compatibilizar com o padrão de racionalizaçãodo modelo taylorista-fordista. O incremento davalorização do capital não poderia mais se darsem uma nova forma de conceber a utilização damão-de-obra.

Nesse quadro, a introdução de novos concei-tos produtivos garantiria a tendência, diferente-mente do paradigma anterior, para a formação ereprofissionalização da mão-de-obra industrial,bem como para o esmaecimento da rígida divisãodo trabalho. Assim, este novo conceito de produ-ção, representaria uma ruptura com o taylorismoe o fordismo, possibilitando indagar se isso nãosignificaria o próprio fim da divisão do trabalho.

Em muitos estudos, o chamado modelo ja-ponês virou referência como exemplo maior dosefeitos qualificadores do novo paradigma produti-vo que estaria suplantando o fordismo. A formade organização do trabalho, em algumas empre-sas japonesas, estaria fundada em um trabalhocooperativo, de equipe, com ausência de demar-cação das tarefas a partir dos postos de trabalhosob prescrição individual. Dessa forma, teríamos,como efeito central, o surgimento da polivalência,com rotatividade das tarefas.

O trabalhador dessas empresas japonesas se-ria, portanto, o exemplo da polivalência e multifun-cionalidade, dando conta dos mais variados aspec-tos da produção, tais como fabricação, manuten-ção, controle de qualidade e gestão da produção.As qualificações exigidas neste novo modelo pro-dutivo contrastariam com a lógica geral taylorista,na medida em que se exigiria do trabalhador a ca-pacidade de pensar, ter iniciativa e decidir.

Na literatura pertinente, percebemos queuma larga parcela de pesquisadores, apesar dasdiferenças, tem aceitado o fato de que, neste novoquadro produtivo, a qualificação dos trabalhado-res seria uma exigência central para a reproduçãodo sistema, assim como a desqualificação o forapara o momento anterior.

A exigência destas novas qualificações teriacolocado em questão a própria maneira de seconceber a noção de qualificação. Helena Hirata(1994) afirma já se reconhecer que os componen-tes implícitos e não-organizados da qualificação

desempenham papel também importante juntoaos componentes organizados e explícitos, comoeducação escolar, formação técnica e educaçãoprofissional.

Todo este processo levaria, em termos teóri-cos, a uma quase superação da tese da polariza-ção das qualificações, dando surgimento ao cha-mado modelo da competência. Este poderia serdefinido como um novo modelo, pós-taylorista,de qualificação, no estágio de adoção de um novomodelo, pós-taylorista, de organização do traba-lho e de gestão da produção. Nele, a qualificaçãoreal dos trabalhadores passa a constituir-se a partirde características, tais como o conjunto de compe-tências implementados no trabalho, articulandovários saberes, que seriam advindos de múltiplasesferas.

As empresas passariam a utilizar e apropriar-sedas aquisições individuais da formação, sobretu-do escolar. O modelo da competência, que pareceassumir espaço central no debate, ainda está mar-cado por controvérsias. Para alguns autores, entreeles, Helena Hirata (1994), a noção de competên-cia estaria perdendo a multidimensionalidadecontida na noção de qualificação e estaria marca-da, política e ideologicamente, por sua origem(discurso empresarial), deixando de lado a idéiade relação social, essencial na definição do con-ceito de qualificação.

Tendo tal indicação em vista, podemos iden-tificar alguns problemas no tocante à inserção dostrabalhadores no processo produtivo gerenciadopela competência. Ela pode reduzir-se a formasque visem a adequar, pura e simplesmente, a for-mação ao atendimento dos interesses e necessida-des do capital, dando mais importância aos resul-tados do que ao seu processo de construção. Alémdisso, a inserção dos trabalhadores no processopode se dar sob um ponto de vista individualizan-te. No quadro geral da ação e organização dos tra-balhadores, isso pode representar um grande pro-blema, já que acordos individualizados acabampor enfraquecer as práticas e ações coletivas, mi-nando o poder sindical.

O pressuposto do aumento progressivo dosrequisitos de qualificação no novo paradigma pro-dutivo, associado ao aumento do desemprego, le-

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vou alguns analistas à criação do conceito de em-pregabilidade. Em torno de tal noção, que tocatambém ao universo do mercado de trabalho, temtranscorrido parte do debate mais recente sobre aquestão da qualificação versus desqualificação.Empregabilidade poderia ser definida como a ca-pacidade da mão-de-obra de se manter emprega-da ou encontrar novo emprego, quando demitida,em suma, tornar-se empregável.

Na visão de Marcia Leite (1997), a noção deempregabilidade seria um deslocamento da idéiade que o desemprego se daria pelo descompassoentre a população economicamente ativa e a ofer-ta de trabalho. O desemprego seria, para estanova visão, o resultado das inadequações destapopulação às exigências de qualificação do novoparadigma produtivo. A oferta de trabalho estariagarantida para toda a população economicamen-te ativa, conquanto houvesse uma adaptação àsdemandas da nova situação.

Alguns argumentos, no entanto, identificamfragilidades na noção de empregabilidade. Umdeles se refere ao fato de que, apesar de todos osinvestimentos feitos na qualificação profissional,não se tem conseguido atenuar as tendências dodesemprego. A idéia de que a educação, comouma panacéia, seria a saída para este quadro nãotem sustentação ao observarmos o número depessoas capacitadas, com terceiro grau de escola-ridade, que tem encontrado dificuldades para en-contrar emprego. Além disso, o treinamento puroe simples da mão-de-obra não parece ter sido sufi-ciente para aumentar as ofertas de trabalho.

Mais delicada ainda é a ênfase na responsa-bilidade individual do trabalhador por sua situa-ção de desemprego. A partir do momento em quese coloca sobre os ombros do desempregado aresponsabilidade de tornar-se empregável, aca-ba-se por justificar sua exclusão do mercado detrabalho pelo fato de ser inadequado quanto àsdemandas de qualificação exigidas.

O caso brasileiro

O Brasil não escapou, nos anos de 1990, daonda de reestruturação produtiva que já vinha

ocorrendo no mundo industrializado. Novas for-mas de gestão do trabalho, flexibilização, terceiri-zação, entre outras práticas, têm sido experimen-tadas pelas empresas brasileiras.

É verdade que isso vem ocorrendo de mododesigual, e se já é possível identificar alterações noprocesso produtivo propriamente dito, na maioriados casos, podemos constatar que as novas estra-tégias empresariais têm se preocupado mais emcortar custos, eliminando, em definitivo, postos detrabalho, como demonstrado em José RicardoRamalho e Heloísa Martins (1994). A precariza-ção do trabalho pode ser considerada uma ten-dência que se afirma com a abertura de mercado eo aumento da competitividade, além de haveruma tendência à perda na qualidade do empregoe das relações de trabalho.

Para além da quase eterna discussão teóricasobre a possibilidade de transferência de modelosde uma realidade à outra, percebemos que, naprática dos indivíduos, há uma busca incansávelde exemplos ou experiências que orientem ações,mesmo que em contextos renovados. É sensívelna realidade brasileira dos últimos anos, a tentati-va por setores empresariais da implantação de no-vas técnicas de organização e gestão do trabalho eda produção. Ainda que visem ao chamado mo-delo japonês, acabam por contextualizá-lo em ter-mos de interesses empresariais de curto prazoe/ou da situação nacional, muitas vezes, usandoisoladamente métodos e técnicas que antes, arti-culados, compunham o modelo.

O contexto brasileiro não chega a ser o dacrise clássica do fordismo em suas claras referên-cias ao mercado saturado. Aqui, o contexto dasinovações tem relação direta com a tentativa deacesso ao mercado mundial e seus padrões depreço e qualidade dos produtos e a abertura co-mercial atabalhoada promovida durante o gover-no de Fernando Collor. Este processo forçou àcompetitividade uma economia em grande parte,senão em sua totalidade, desenvolvida sob oguarda-chuva protecionista. A estreiteza de mer-cado interno impôs também sua contribuição aesse contexto, tendo em vista que, apesar de po-tencialmente amplo, ele é altamente restringidopela concentração de renda, que transforma o

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quantitativo em qualitativo, abrindo janelas, ni-chos de espaços de consumo e alta lucratividade,duramente disputadas.

Na disputa de tais espaços, entretanto, asempresas estão precisando lidar, nem sempre deforma satisfatória, com problemas que lhes sãotanto de ordem interna como externa. Haveria umescasso dinamismo tecnológico e um correlatoatraso relativo da indústria brasileira. Conforme jáconstatado por Ruy de Quadros Carvalho (1994),isso poderia ser explicado por um padrão de in-dustrialização, marcado pela exploração predató-ria de mão-de-obra barata e de recursos naturaisabundantes e pela manutenção de um protecio-nismo generalizado e ilimitado no tempo.

Deste quadro, resultariam a permanência deprocessos de trabalho convencionais com poucoespaço e aceitação da inovação e o uso predatóriode uma força de trabalho pouco qualificada, quepor isso justificaria seu baixo salário.

No que diz respeito à baixa qualificação e atémesmo à baixa escolaridade da força de trabalhono País, muitas vezes, utilizada como argumentojustificativo dos obstáculos à modernização, deve-mos chamar a atenção para o fato de que as mes-mas foram resultado, entre outros fatores, de umademanda que vinha sendo formada de há muito,por um processo de recrutamento taylorista.

Porém, apesar das limitações, a flexibilizaçãovai ganhando espaço no mundo da produção.Entretanto, isso se dá de forma bastante desigualentre setores produtivos e esferas de relação (em-presa, inter-empresa, regulamentação do traba-lho, etc.), com resultados também variados.

De forma geral, se observarmos a tentativade implementação da flexibilização via introduçãode métodos e técnicas do que já foi chamado denova escola de gestão da produção (modelo japo-nês), perceberemos que ela tem enfrentado bar-reiras, que vão desde o interior fabril até a regula-ção geral, por parte da intervenção do Estado (au-sência de infra-estrutura, política industrial, inves-timento em qualificação profissional, política sa-larial, etc.).

Assim, como constatado por Mário Salerno(1993), a flexibilização na produção foi marcadapela introdução de sistemas, tais como o just in

time, kan-ban e os Círculos de Controle de Quali-dade (CCQs), muitas vezes, isoladamente e comseu sentido transformado. O trabalho, como re-gra, continuou tendo prescrição individual, viacarta de processos, roteiros de fabricação ou or-dens orais. A polivalência pareceu ser antes multi-tarefa do mesmo teor que um desenvolvimento demúltiplas habilidades por uma força de trabalhoaltamente qualificada.

A isso se agregou o fato de que as gerênciasapresentaram uma grande dificuldade em incor-porar a competência dos trabalhadores no proces-so, deixando explícita uma longa herança de au-toritarismo no interior fabril. Com isso, teríamos odesenvolvimento de um processo que adiciona aadoção de novas técnicas e novos métodos às re-lações de trabalho retrógradas, que tem por baseos baixos salários e a falta de procedimentos quevisem à estabilização da mão-de-obra.

A flexibilização avançou muito, aproveitan-do-se da flexibilidade preexistente, na esfera dacontratação do trabalho. Podemos caracterizar esteprocesso como o que John Humphrey (1994) cha-mou de flexibilidade defensiva, que deixa a organi-zação da produção intocada e aumenta, sobrema-neira, a flexibilidade dos contratos de trabalho.

Nesse sentido, vemos pipocar terceirizaçãopor todos os lados e das mais variadas formas, in-tensificando, cada vez mais, o processo de preca-rização do trabalho. O que está ocorrendo é umaverdadeira exportação de tensões, conflitos e daprópria legislação trabalhista para fora das unida-des produtivas, já que, mesmo alocados dentro deseu espaço, os terceirizados são trabalhadores deum terceiro. Isso se explicita mais quando as gran-des empresas transformam as casas de seus fun-cionários em minifábricas para familiares e ami-gos em geral, numa cruel reapropriação do traba-lho doméstico, corroendo, entre outras, a legisla-ção trabalhista e a representatividade sindical.Tudo isso, com um pano de fundo caracterizadopelo desemprego ampliado e de longa duração.

Os trabalhadores, na maior parte das vezes,têm tido pouco espaço para expressar suas posi-ções e imprimir um pouco de suas demandas eperspectivas. Em um contexto como esse, a flexi-bilização tem sido vista com reservas, quando

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não rechaçada pelo movimento sindical, que játraz, ao longo de sua história, uma trajetória naqual, pelas circunstâncias, a pró-ação sempre ce-deu lugar a propostas reativas e à resistência.Apenas em alguns casos e/ou em alguns setoresde ponta, se verifica a intenção de se negociar aimplantação das inovações, dando-lhes, inclusi-ve, novos sentidos.

As diferentes forças atuantes no meio sindicalde nosso país, conforme as suas orientações políti-co-sindicais, têm tentado enfrentar todas essasquestões, apresentando, obviamente, sugestõesde caráter variado e, muitas vezes, antagônico.Não existe, até aqui, uma proposta que unifiqueas diversas posições no movimento sindical nosentido do enfrentamento da crise. Elas possuemleituras diversas do quadro em curso e proposi-ções de intervenção também diferentes. Um dospontos que tem sido recorrente, e polêmico, nodebate no interior do movimento sindical, é a pre-ocupação dos trabalhadores com a qualificaçãoprofissional e com a disputa de espaços nessaárea, questão da qual esteve afastado durantemuito tempo e que, apesar das limitações, foi alça-da novamente ao primeiro plano.

Buscando alternativas: os trabalhadorese suas organizações

Embora haja certo consenso na literaturaacerca da radicalidade das mudanças em curso eque estas teriam duros efeitos sobre os sindica-tos, existe pouco consenso se os impactos seriamtão letais e terminais assim. Uns alegam que háuma crise mundial de sindicalização; outros, qua-lificando diferentemente os números, apontam orelativismo de tal afirmação. Uns indicam que olegado dos sindicatos como elemento central darepresentação dos interesses dos trabalhadoresestá acabado, dando lugar à outras formas iden-titárias e de representação mais parciais; outros,aceitando, em parte, tal indicação, continuamapontando a importância dos sindicatos na con-quista e manutenção de direitos para a classetrabalhadora.

É preciso lembrar que a luta dos trabalhado-res através da história, se deu sempre de formabastante particular e especificada, dependendo,sobremodo, do contexto onde buscava atuar. Decerta maneira, a ação dos sindicatos experimen-tou constantes crises e instabilidades, como é dofundamento da existência de qualquer organiza-ção em busca do ajuste e adequação de suas for-mas de estruturação e intervenção.

A partir disso, podemos dizer que, diante doquadro de mudanças que varrem a sociedadecontemporânea, o sindicalismo não poderia ficarparado, como não está. Talvez não esteja se alte-rando tão rapidamente como gostaríamos, ouprojetamos, mas não podemos dizer que outrasperspectivas não estejam se abrindo, apontandopara diferentes possibilidades. Dentre essas, jásão sensíveis as articulações que têm sido promo-vidas pelos sindicatos dentro e fora de seu uni-verso, buscando incorporar novos temas e de-mandas, ampliando, assim, suas esferas e formasde ação.

Em um contexto que conjuga informalidadee desemprego, ou, para sermos mais diretos, pre-carização e aumento da exclusão, em uma lógicaque visa a destituir os trabalhadores até mesmode seus mais elementares direitos, como sobrevi-veria a máquina de organização sindical sem quemuitas de suas premissas sejam alteradas, nosentido de agilizar sua capacidade de dar contade novas questões, impedindo a corrosão de suarepresentatividade?

A investigação sociológica sobre a crise dosindicato tem levado também à antecipação decenários, desdobramentos e tendências para o fu-turo. As alternativas propostas variam, basica-mente, entre os cenários que enfatizam mudançasnas atividades sindicais mais tradicionais de repre-sentação coletiva e aquelas que sugerem uma am-pliação de atividades no sentido de incluir a repre-sentação de trabalhadores desempregados, pre-carizados ou excluídos do núcleo central da pro-dução e até de um “sindicalismo comunitário que,com outros movimentos sociais, voltar-se-ia paraatender às necessidades dos que se encontram ex-cluídos do mundo do trabalho" (Larangeira, 1998,p.181-3). Isso, a nosso ver, resgataria, em muito,

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uma tradição que foi se enfraquecendo ao longoda história do movimento operário mundial, porconta de sua institucionalização.

Tais indicações, baseando-se em experiên-cias concretas, vão apresentando as novas confi-gurações e práticas que o sindicalismo vem assu-mindo. A idéia de um sindicalismo tipo movimen-to social, avançada por Moody (1997, p. 5), pro-põe um sindicalismo mais dinâmico, aberto às no-vas demandas, de escopo internacional e informa-do por uma política socialista renovada.

Mais que uma estrutura ou uma área deabrangência e jurisdição, bases da organização dosindicalismo de corte industrial, essa idéia traria,em seu bojo, um tipo de orientação. Esse sindica-lismo seria democrático, como a melhor maneirade mobilizar os trabalhadores; militante, no senti-do de que perceberia que um recuo em qualquerdos pontos de sua rede de lutas levaria tão somen-te a mais recuos; lutaria pelo poder e pela organi-zação nos locais de trabalho; seria político, embo-ra agindo independentemente dos partidos; multi-plicaria o alcance de seu “poder político e socialna articulação com outros sindicatos, organiza-ções de bairro ou outros movimentos sociais”; fi-nalmente, lutaria por todos os oprimidos, ampli-ando seu poder neste processo.

Indo ainda mais à frente em termos experi-mentais alternativos, Osterman et al. (2001), emuma análise menos politizada que a de Moody(1997), assinalam que o sindicalismo do futurodeve assumir uma feição de redes ampliadas.Para os autores, “trabalhadores e suas famíliasnecessitam e merecem uma voz forte, indepen-dente e inovativa nos locais de trabalho, em suascomunidades e nas formulações de políticas na-cionais” (Idem, p. 96). Este processo vai reque-rer, além da ampliação de seu escopo, as necessi-dades e os interesses dos mais variados setoresocupacionais.

Mas, para que este tipo de sindicalismo setorne uma realidade, algumas pré-condições de-verão ser preenchidas. Além da mudança nas es-

tratégias de recrutamento e manutenção de mem-bros, no sentido de que terão de recrutar e ficarcom os indivíduos ao longo de toda sua trajetóriaprofissional, ao invés de perdê-los assim que mu-dam ou perdem empregos; deve-se buscar umamodificação nas leis trabalhistas e na cultura ge-rencial, para que incorporem tal possibilidade,permitindo aos sindicatos cumprirem seu novopapel e garantindo aos trabalhadores a liberdadede organização nos locais de trabalho, a mesmaque, aliás, eles já possuem na sociedade civil.

No caso brasileiro, as buscas de alternativastêm apontado também para diversas propostas edireções. Embora ainda se tenha dificuldade deavaliar com maior profundidade os resultadosdesses esforços, já é possível assinalar o desenvol-vimento de experiências múltiplas e variadas, nosdiversos setores que compõem o movimento sin-dical brasileiro. Mesmo que não sejam consen-suais, elas servem de indicativo das movimenta-ções no novo quadro, no qual a exclusão social eo desemprego assumem papel de destaque na lis-ta de preocupações do sindicalismo de nosso país.A este respeito, podemos indicar, entre outras:

A tentativa de articulação com outros movi-mentos sociais, como, por exemplo, os movimen-tos pela terra, por moradia e outros relativos à ci-dadania, justiça etc.

A busca da abertura para novos temas e de-mandas. Tem-se dado, por exemplo, maior ênfa-se em políticas concretas para as questões de gê-nero e raça, de cidadania, dentro e fora dos locaisde trabalho, e para uma maior atenção à educa-ção dos trabalhadores, a qual agora ultrapassa aformação político-sindical, passando também adiscutir a educação geral e profissional.

A incorporação de práticas alternativas deorganização e negociação. Isso pode ser vistoatravés de práticas que visam a inserir os sindica-tos na luta pelas definições de novas instituciona-lidades2, como as Câmaras Setoriais e tentativasrecentes de articulação de organização e açõesno âmbito regional (por exemplo, o Mercosul3).

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2 A este respeito ver Castro (1997).3 Sobre as articulações sindicais no Mercosul e o redimensionamento do sindicalismo latino-americano, ver Castro e Wachendorfer

(1998).

Além disso, tem-se intentado sanar uma dificul-dade já tradicional de nosso sindicalismo que dizrespeito à manutenção de vínculos e organizaçãode trabalhadores desempregados.

A tarefa para os sindicalistas não é das maisfáceis. Terão que, incorporando sua experiênciahistórica – o que constitui um acervo fundamental–, conseguir analisar e atuar corretamente na con-juntura presente, olhando o futuro de forma aber-ta e atenta às novas condições. Nesse sentido, mui-to de sua cultura político-sindical precisa ser colo-cada em questão. O sindicalismo, para sobreviver,em meio a tantas ameaças reais ou virtuais, neces-sita não só ampliar seu espectro com outras de-mandas e preocupações, como também com for-mas diversas de luta e estruturação. Isso pode lheoferecer condições de ser mais propositivo e ante-cipador de cenários, os quais lutará para construirou obstar.

Desse modo, o sindicalismo continuaria a de-sempenhar seu importante papel na luta pela con-quista e manutenção dos direitos dos trabalhado-res, levando em conta incluídos e excluídos domundo do trabalho. Por certo, não há muitas ra-zões para sermos otimistas, mas nem por isso de-vemos nos seduzir por um pessimismo paralisan-te. Nessa nova era das desigualdades em que vi-vemos, os sindicatos não podem deixar de estarpresentes, a um só tempo, garantindo aos traba-lhadores um lugar digno na sociedade e pleitean-do um mundo mais justo e igualitário.

Considerações finais

As mudanças no mundo do trabalho têm exi-gido novos requerimentos de processos e de seustrabalhadores. Como podemos ver em muitos ca-sos, tais requerimentos endereçam suas demandasà qualificação e formação dos trabalhadores, oque, porém, é feito de forma individualizada, solici-tando investimento e empenho pessoal do traba-lhador. A própria noção de educação se vê sobpressão daquilo que seria educar para o trabalho.Não só se submete o que deveria ser uma ótica for-mativa mais plena e crítica a uma perspectiva maisrestrita de determinação da lógica de mercado,

como também se impõe ao trabalhador a necessi-dade (e o risco) de buscar incansavelmente preen-cher requisitos definidos pela lógica empresarial.

Se a educação vem assumindo foro de cen-tralidade nesse debate (e em termos de requeri-mentos práticos), é necessário que a sociedadecomo um todo se indague de que formação seestá falando e necessitando. O fato de que, possi-velmente, tenha ficado para trás a demanda taylo-rista, substituída pelo operário-boi, não pode, porsi só, indicar que as demandas educacionais, fei-tas pelos novos modelos produtivos sejam positi-vas para a sociedade em geral e para o trabalha-dor em particular. Como em todos os demais as-pectos, é a sociedade e não o mercado, quemdeve definir e guiar os eixos de desenvolvimentosocial e econômico. A perspectiva de diálogo en-tre as duas demandas, no qual a social deve terprimazia, parece ser um caminho fértil.

Tendo em vista a centralidade atribuída aotrabalho na sociedade moderna, sua relevânciaem termos da organização social e sua importantedimensão para o pensamento social, uma criseque transforme esse campo tende a trazer modifi-cações também em suas diversas dimensões. É oque estamos presenciando. Podemos percebermudanças substanciais no mundo do trabalho,nas análises sobre ele e mesmo nas formulaçõespolíticas dele oriundas ou a ele direcionadas.

É provável que os trabalhadores e as suasinstituições de representação nunca tenham pas-sado por uma quadra tão adversa. Em um proces-so conjugado, não só se agravam as condições devida e trabalho da maioria da população pelomundo, como também está ameaçada a existên-cia dos organismos responsáveis pela ação quepoderia servir de contraponto a esse processo. Otrabalho vai sendo precarizado, a legislação deproteção a ele diminui, e suas formas de organiza-ção enfrentam sérios desafios.

Algumas questões ainda estão em aberto.Como ficará esta sociedade que vinculou grandeparcela de sua sociabilidade ao trabalho e agoraprescinde dele? Durante muito tempo, foi do tra-balho que espraiaram movimentos universalizan-tes de direitos para toda a sociedade. Será ela,agora, prescindindo daqueles atores, capaz de for-

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mular novos direitos inclusivos ou continuará ace-lerando o passo atual em direção a novas desi-gualdades e ao aumento da exclusão? Enfim, taisperguntas não parecem ter muitas respostas fáce-is, seja no campo da teoria, seja no campo da prá-tica dos agentes sociais.

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A crise e o êxodo da sociedade salarial

Entrevista com André Gorz

André Gorz nasceu em Viena, em 1923. Vivena França, desde 1948. É conhecido internacio-nalmente por seus 16 livros publicados, dos quaisseis foram traduzidos para o português: Estraté-gia operária e neocapitalismo (Zahar, 1968),O socialismo difícil (Zahar, 1968), Crítica da di-visão do trabalho (Martins Fontes, 1980), Adeusao Proletariado (Forense-Universitária, 1982).Recentemente, a Editora Annamblume publicouos livros: Metamorfose do Trabalho. Críticada razão econômica (2003) e Misérias doPresente, Riqueza do Possível (2004).Faltaser traduzido seu último livro, L´Immatériel.Connaissance, valeur et capital. Paris: Gali-lée, 2003 (O Imaterial. Conhecimento, valor e ca-pital). As suas obras mais recentes e, provavel-mente, as mais instigadoras e portadoras de umaabordagem nova e questionadora, são pouco co-nhecidas no Brasil. Estas obras mais recentes co-meçam, agora, a ser traduzidas para o portuguêspelo empenho de Josué Pereira da Silva, profes-sor na Universidade de Campinas (UNICAMP). Noentanto, a divulgação do seu pensamento, desdeos meados da década de 1990, é feita de maneiramais insistente pelo Centro de Pesquisa e Apoiodos Trabalhadores (CEPAT), com sede em Curiti-ba. Nas suas publicações, nos seus cursos e nassuas assessorias, o CEPAT tem divulgado ampla-mente a contribuição teórica de André Gorz para aanálise da grande transformação do mundo dotrabalho na contemporaneidade. E ele, curiosa-mente, tem até inspirado alguns movimentos pas-torais que atuam no meio popular e que buscamentender as mudanças do mundo do trabalho nasociedade brasileira. Nesse sentido, seria interes-

sante analisar o texto-base da Campanha da Fra-ternidade de 1999, para perceber até onde che-gou o pensamento de André Gorz.

IHU On-Line – O Brasil, a exemplo de mui-tos outros países, é bastante atingido peloproblema do desemprego. Uma das solu-ções mais difundidas e defendidas por go-vernos, policiais e economistas é a retoma-da do crescimento. Ora, o senhor diz queisso é insuficiente. Por quê?André Gorz – É preciso, em primeiro lugar, per-guntar-nos: De que crescimento temos necessida-de? O que nos falta e o que o crescimento deveriatrazer-nos? Mas essas perguntas jamais foram le-vantadas. Os economistas, os governos, os ho-mens de negócios reclamam pelo crescimento emsi, sem jamais definir sua finalidade. O conteúdodo crescimento não interessa aos que decidem. Oque lhes interessa é o aumento do PIB, ou seja, oaumento da quantidade de dinheiro trocado, aquantidade de mercadorias compradas e vendi-das no decurso de um ano, quaisquer que sejamessas mercadorias. Nada garante que o cresci-mento do PIB aumente a disponibilidade dos pro-dutos de que a população necessita. De fato, essecrescimento responde, em primeiro lugar, a umanecessidade do capital, não às necessidades dapopulação. Ele cria, muitas vezes, mais pobres emais pobreza, ele, com freqüência, traz rendimen-to a uma minoria em detrimento da maioria, eledeteriora a qualidade da vida e do meio ambiente,em vez de melhorá-la.Quais são as riquezas e os recursos que faltamcom mais freqüência à população? Uma alimenta-

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ção sadia e equilibrada em primeiro lugar; águapotável de boa qualidade; ar puro, luz e espaço;um alojamento saudável e agradável. Mas, a evo-lução do PIB não mede nada isso. Tomemos umexemplo: uma aldeia faz um poço, e todo o mun-do pode tirar a sua água dali. A água é um bemcomum, e o poço a produz porque houve um tra-balho comum. Ele é a maior fonte de riqueza dacomunidade. Mas ele não aumenta o PIB, poisele não dá lugar a trocas de dinheiro: nada écomprado nem vendido. Mas, se o poço é cava-do e dele se apropria um empreendedor privadoque exige de cada aldeão que pague a água queele retira, o PIB aumentará encargos embutidospelo proprietário.Tomemos ainda o exemplo dos camponeses semterra. Se forem distribuídas a 100 mil famílias ter-ras improdutivas nas quais elas produzem suasubsistência, o PIB não muda. Ele também nãomuda se essas famílias repartirem suas tarefas deinteresse geral, trocando produtos e serviçosnuma base mutualista e cooperativa. Contraria-mente, se 100 proprietários expulsam 100 mil fa-mílias de suas terras e fazem desenvolver nessasterras culturas comerciais destinadas à exportação,o PIB aumenta no montante dessas exportações edos salários miseráveis pagos aos agricultores.O PIB não conhece e não mede as riquezas, a nãoser que elas tenham a forma de mercadorias. Elesó reconhece como trabalho produtivo o trabalhovendido a uma empresa que dele tira lucro, ou,dito de outra maneira, que pode revender com lu-cro o produto desse trabalho. Só é produtivo, doponto de vista do capital, o trabalho que produzmais do que ele custa, o trabalho que produz umexcedente – um sobrevalor – suscetível de aumen-tar o capital.Nos países em que a grande maioria da popula-ção é pobre, há poucas pessoas a quem se podevender com lucro. O desenvolvimento de umaeconomia de mercado, criadora de empregos, sópode ser iniciada onde existe um poder político,capaz de inscrever essas iniciativas e suas impul-sões públicas numa estratégia de exportações e dedesenvolvimento. Esse poder existia notadamenteno Japão e na Coréia do Sul. É preciso, porém,lembrar também que o desenvolvimento do capi-

talismo industrial destes países teve lugar antes damundialização neoliberal, antes da revolução mi-croinformática, numa época marcada pelo cresci-mento sustentável das economias do Norte. Osmercados dos países ricos estavam em expansão,suas economias importavam mão-de-obra estran-geira, e as indústrias japonesas primeiro, as corea-nas, em seguida, podiam obter, sem grande difi-culdade, um lugar nos mercados europeus e nor-te-americanos, na condição de bem escolher suaestratégia de industrialização.Ora, após o fim dos anos 1970, as condições mu-daram fundamentalmente. As exportações paraos países ricos já não podiam mais ser o principalmotor do crescimento das economias do Sul, eisso por um conjunto de razões. Em primeiro lu-gar, os mercados do Norte não estavam mais emforte expansão. Em seguida, a mundialização neo-liberal não permitiu mais aos países ditos emer-gentes protegerem suas indústrias domésticas esua agricultura contra a concorrência dos paísesdo Norte. Abrindo-se a estes para atrair investi-mentos estrangeiros, eles caíram numa cilada du-vidosa. As importações vindas do Norte arruina-ram milhões de pequenas empresas semi-artesa-nais e criaram indústrias que forneceram, relativa-mente, poucos empregos e impuseram custos demodernização muito pesados ao país. Com efeito,a era das indústrias de mão-de-obra chega ao seufim. Os baixos salários dos países do Sul não bas-tam mais para assegurar-lhes partes de mercado.Praticamente toda a produção industrial exigeagora uma forte intensidade de capital, isto é, in-vestimentos pesados, e a amortização, a remune-ração e a contínua inversão de capital técnico fixopesa muito mais onerosamente nos preços de re-torno do que os custos de mão-de-obra. Estamão-de-obra relativamente pouco importantedeve ter um nível de produtividade muito eleva-do, pois é do sobrevalor que ela produz, que de-pende a rentabilidade do investimento. Enfim, acompetitividade das indústrias depende, muitomais fortemente do que no passado, de uma one-rosa infra-estrutura logística: vias de comunica-ção, redes de transporte, energia e telecomunica-ção, administrações e serviços públicos eficazes,centros de pesquisa e de formação – em suma, do

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que Marx chamava (em francês) les faux frais [osfalsos custos] da economia. “Falsos custos”, cujo fi-nanciamento deve provir das retiradas bancárias,baseadas no sobrevalor produzido pela indústria.Se examinarem o “milagre chinês”, constatarãoque a China não é exceção nesta ótica. A in-fra-estrutura logística e os serviços estão atrasadosem relação às necessidades da indústria. Gargalosde estrangulamento em matéria de água, de ener-gia e de espaço em particular freiam ou bloqueiamo crescimento, o desemprego aumenta de manei-ra dramática, pois a industrialização arruinou osateliês rurais de produção, que faziam viver maisde 100 milhões de trabalhadores, e a concentra-ção agrária constrange outros mais de 100 mi-lhões ao êxodo. A taxa de desemprego nas cida-des é estimada pelo BIT em torno de 20% e elatende a aumentar rapidamente. As produções chi-nesas não podem, com efeito, igualar em qualida-de as produções do Norte, a não ser que o recursode uma mão-de-obra abundante e um bom mer-cado dêem mais amplamente lugar à informatiza-ção e à automação, mais econômicos em trabalhoe em energia, mas de mais forte intensidade de ca-pital. Na China, como na Índia e no Ocidente, omodelo de crescimento pós-fordista enriquece emtorno de 20% a população, mas gera em torno desi enclaves pós-industriais hipermodernos, comvastas zonas de miséria e de abandono, onde sedesenvolvem a criminalidade organizada e asguerras entre seitas e religiões.O “crescimento” não permite sair da armadilha damodernização neoliberal, salvo para definir parâ-metros fundamentalmente diferentes do que devecrescer, ou seja, a menos de se definir uma econo-mia totalmente diversa. A relação do PNB sobre o“desenvolvimento humano” esboçou, em 1996,uma redefinição desse gênero. Acrescentandoaos “indicadores” habituais de riqueza o estadode saúde da população, a sua esperança de vidae sua taxa de alfabetização, a qualidade do meio

ambiente e o grau de coesão social, um dos paísesmais pobres do planeta: por seu PIB, o Kerala, serevelou como um dos mais ricos.Vou tentar resumir brevemente as razões desseparadoxo. Numa economia em que as empresasprocuram permanentemente retirar umas das ou-tras certas partes do mercado, cada uma procurareduzir os custos, e reduzindo a quantidade de tra-balho que ela emprega, ela procura aumentar asua produtividade. Suponham que, num dadomomento, a produtividade tenha duplicado. É ne-cessária, então, uma metade a menos de trabalhopara produzir um mesmo volume de mercadorias.Mas, o “valor” deste mesmo volume tenderá tam-bém ele a diminuir pela metade e em taxas de ex-ploração constante, o volume do lucro tenderá abaixar na mesma proporção, pois só o trabalhovivo é capaz de criar valor; e, sobretudo, somentea força de trabalho vivo é capaz de criar um valormaior do que o seu próprio, ou seja, um sobreva-lor4. É esta a fonte do lucro. Para que o volume dolucro não diminua, será preciso, ou que a empre-sa, numa produção constante, tenha dobrado astaxas de exploração, ou que ela tenha consegui-do, numa taxa de exploração constante, dobrarsua produção. Na prática, ela procura combinar,segundo a conjuntura, a intensificação da explo-ração e o aumento da produção.O crescimento é, pois, para o capitalismo, umanecessidade sistêmica totalmente independentee indiferente à realidade material do que cresce.Ele responde a uma necessidade do capital. Eleconduz a esse desenvolvimento paradoxal quefaz com que, nos países de PIB mais elevado, seviva cada vez pior, consumindo cada vez maismercadorias.

IHU On-Line – Na base de um contexto his-tórico (uma releitura “arendtiana” do “tra-balho” junto aos gregos), o senhor chega adistinguir as categorias “emprego” e “tra-

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4 O sobrevalor (chamado outrora “mais-valia”, originado do inglês surplus value) é o valor da produção que um trabalhadorrealiza além de suas próprias necessidades e das de sua família. Ele é um excedente econômico (economic surplus, segundo aterminologia de Paul Baran). A proporção de sobrevalor, no total do valor produzido por um trabalhador, é a taxa desobrevalor (taxa de mais-valia), que mede a taxa de exploração.

balho”. Qual é a importância desta decisãoe quais são suas conseqüências?André Gorz – O trabalho, tal como nós o enten-demos, não é uma categoria antropológica. Ele éum conceito inventado no fim do século XVIII.Hannah Arendt lembra que, na Grécia antiga, otrabalho designava as atividades necessárias àvida. Essas atividades eram sem dignidade nemnobreza: eram necessidades. Trabalhar era sub-meter-se à necessidade, e essa submissão tornavao indivíduo indigno de participar como cidadãoda vida pública. O trabalho era reservado aos es-cravos e às mulheres. Ele era considerado como ocontrário da liberdade. Ele era confinado à esferaprivada, doméstica.No século XVIII, começa a tomar corpo uma con-cepção diferente. O trabalho começa a ser com-preendido como uma atividade que transforma edomina a natureza, não como uma atividade quesomente se submete a ela. Além disso, a elimina-ção progressiva das indústrias domésticas – emparticular dos tecelões – pelas manufaturas, fazaparecer o trabalho como uma atividade social,socialmente determinado e dividido. O capitalis-mo manufatureiro exige uma mão-de-obra quelhe forneça trabalho sem qualificação nem quali-dade, um trabalho simples, repetitivo que não im-porta quem deva fazê-lo, aí incluindo as crianças.Assim nasce essa classe social sem qualidade, oproletariado, que fornece um “trabalho semmais”, um “trabalho sem frases”. Cada proletárioé reputado como cambiável por qualquer outro. Otrabalho proletário passa para algo totalmente im-pessoal e indiferenciado. Adam Smith vê nisso asubstância comum a todas as mercadorias, umasubstância quantificável e mensurável, cuja quan-tidade cristalizada no produto determina o seu“valor”.Pouco tempo após, Hegel dá ao trabalho em sium sentido mais amplo: ele não é simples dispên-dio de energia, mas a atividade pela qual os ho-mens inscrevem o seu espírito na matéria e, semantes o saber, transformam e produzem o mundo.Entre o trabalho que, no sentido econômico, éuma mercadoria como qualquer outra, cristaliza-da nas mercadorias, e o trabalho em sentido filo-

sófico, que é exteriorização e objetivação de si, acontradição deve acabar por se tornar evidente. Otrabalho, tal como o compreende o capitalismo, éa negação do trabalho tal como o compreende afilosofia, é sua alienação: o capitalismo determinao trabalho como algo estrangeiro (alienus), nãopodendo ser para e por si mesmo.Marx formulava isso da seguinte maneira: (Tra-balho, salário e capital, 1849). De uma parte,“o trabalho é a atividade vital própria do trabalha-dor, a expressão pessoal de sua vida”.

Esta “atividade vital”, contudo, ele a vende a um tercei-ro para assegurarem-se os meios necessários à sua exis-tência, se bem que sua atividade vital seja apenas oúnico “meio” de subsistência... Ele não considera o tra-balho, enquanto tal, como fazendo parte de sua vida;ele é antes o sacrifício dessa vida. Ele é uma mercado-ria que adjudica a um terceiro. Por isso o produto desua atividade não é o fim desta atividade.

O fim primário desta atividade é o de “ganhar avida”, de ganhar um salário. É pelo salário que re-munera que o trabalho se inscreve como “ativi-dade social” na tela das trocas sociais de merca-dorias que estruturam a sociedade, e que o traba-lhador é reconhecido como trabalhador socialpertencente a essa sociedade.Mas, o aspecto mais importante, do ponto de vistada sociedade, aquele que justifica que se fale desociedade capitalista, é ainda outro: o trabalhotratado como uma mercadoria, o emprego, torna“o trabalho estruturalmente homogêneo ao capi-tal”. Da mesma forma como o fim determinantedo capitalismo não é o produto que a empresapõe no mercado, mas o lucro que sua venda per-mitirá realizar, o fim determinante do assalariadonão é “aquilo” que ele produz, mas o salário quesua atividade produtiva lhe concede. “Trabalho ecapital são fundamentalmente cúmplices além deseu antagonismo, enquanto ganhar dinheiro é seufim determinante”. Aos olhos do capital, a nature-za da produção importa menos que sua rentabili-dade; aos olhos do trabalhador, ela importa me-nos que os empregos que ela cria e os salários queela distribui. Para um e para o outro, aquilo que éproduzido importa pouco, contanto que isso ren-da. Um e outro estão, conscientemente ou não, aserviço da valorização do capital.

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IHU On-Line – Por isso o movimento operá-rio e o sindicalismo só são anticapitalistasenquanto eles põem em questão, não so-mente o nível dos salários e as condições detrabalho, mas as finalidades da produção ea forma mercantil do trabalho que a realiza.De que maneira o trabalho se situa na baseda crise ecológica?André Gorz – O trabalho assalariado não é so-mente para o capital o meio de desenvolver-se,ele é também, por suas modalidades e sua organi-zação, um meio de dominar o trabalhador. Este édespojado de seus meios de trabalho, do fim e doproduto de seu trabalho, da possibilidade de de-terminar sua natureza, sua duração, seu ritmo. Oúnico fim ao seu alcance é o dinheiro do salário eo que ele pode comprar. O trabalho mercantiliza-do gera o puro consumidor dominado que nãoproduz nada daquilo de que ele precisa. O operá-rio produtor é substituído pelo trabalhador consu-midor. Constrangido a vender todo o seu tempo,a vender sua vida, ele enxerga o dinheiro como oque tudo deve comprar simbolicamente. Quandose acrescenta que a duração do trabalho, as con-dições de alojamento e o ambiente urbano sãooutros tantos obstáculos à expansão das faculda-des individuais e das relações sociais, à possibili-dade de desfrutar do tempo de não-trabalho, com-preende-se que o trabalhador, reduzido a umamercadoria, não sonha senão com mercadorias.A dominação que o capital exerce sobre os traba-lhadores, constrangendo-os a “comprar” tudoaquilo de que necessitam, furta-se, num primeirotempo, à sua resistência. Suas compras se dirigemessencialmente a produtos de primeira necessida-de e seus consumos são comandados por suas ne-cessidades vitais, enquanto seus salários lhes asse-guram estritamente a sobrevivência. Eles só po-dem resistir à sua exploração por ações e iniciati-vas coletivas e eles se unem na luta com base “nasnecessidades que lhes são comuns”. É a época he-róica do sindicalismo, das cooperativas operáriase dos mútuos, dos círculos de cultura operária e daunidade e pertença à classe.As lutas operárias, neste estágio, são conduzidasprincipalmente em nome do direito à vida, exigin-do um salário “suficiente” para cobrir as necessi-

dades dos trabalhadores e de suas famílias. Estanorma do “suficiente” é tão pregnante, que osoperários de profissão param de trabalhar depoisque eles ganharam “bastante” para viver segundoseu costume e que os operários pagos por rendi-mento não podem ser constrangidos a trabalhardez ou doze horas por dia a não ser por uma dimi-nuição de seu salário-hora.Mas, a partir de 1920, nos Estados Unidos, e de1948, na Europa ocidental, as necessidades pri-márias oferecem ao capitalismo um mercado de-masiado pequeno para absorver o volume dasmercadorias que ele é capaz de produzir. A econo-mia não pode continuar a crescer, os capitais acu-mulados não podem ser valorizados, e os lucrosnão podem ser reinvestidos, a não ser que a pro-dução de supérfluos ultrapasse, mais e mais, aprodução do necessário. O capitalismo necessitade consumidores cujas compras sejam motivadas,cada vez menos, pelas “necessidades comuns” atodos e, cada vez mais, pelos “desejos individuaisdiferenciados”. O capitalismo precisa produzir umnovo tipo de consumidor, um novo tipo de indiví-duo: um indivíduo que, por seus consumos, porsuas compras, queira se destacar da norma co-mum, “distinguir-se” dos outros e afirmar-se “forado comum”.O interesse econômico dos capitalistas coincidemaravilhosamente com o seu interesse político. Aindividualização e a diferenciação dos consumi-dores permitem, ao mesmo tempo, ampliar osmercados da indústria e minar a coesão e a cons-ciência de classe dos trabalhadores. Elas deveminduzir neles comportamentos e aspirações próxi-mos daqueles da “classe média”. Um dos primei-ros a investigar metodicamente essa transforma-ção da classe operária foi Henry Ford.Em suas usinas, as cadeias de montagem exigiamum trabalho repetitivo, embrutecedor, sem digni-dade, mas os operários desqualificados recebiamsalários invejáveis. O que eles perdiam no plano dadignidade profissional, eles ganhavam no plano doconsumo, que, por necessidade, era substituído, aomenos em parte, pelo “consumo compensador”.O período dito fordista, que durou, com altos ebaixos, de 1948 a 1973, conseguiu combinar aprogressão dos salários, das prestações sociais,

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das despesas públicas e, sobretudo, da produçãoe do emprego. O quase pleno emprego basea-va-se num crescimento da produção mais elevadoque o crescimento da produtividade do trabalho,isto é, superior a 4% ao ano. Na medida em que elatrazia a segurança do emprego e a segurança soci-al, a expansão da economia estava no interesseimediato da classe operária. Com exceção de umaesquerda sindical minoritária, o movimento operá-rio não criticava a natureza e a orientação desta ex-pansão, mas reclamava antes sua aceleração.Ora, a expansão sustentada da produção implica,num regime capitalista, uma aceleração da rota-ção e da acumulação do capital. O capital fixo (in-vestido nas instalações materiais) deve ser rentabi-lizado e amortizado rapidamente, a fim de que oslucros possam ser reinvestidos na ampliação dosmeios de produção.Sob o ângulo ecológico, a aceleração da rotaçãodo capital conduz à exclusão de tudo o que dimi-nui de imediato o lucro. A expansão continuadada produção industrial envolve, pois, uma pilha-gem acelerada dos recursos naturais. A necessida-de de expansão ilimitada do capital o conduz aprocurar abolir a natureza e os recursos naturais,para substituí-los por produtos fabricados, vendi-dos com lucro. As sementes geneticamente modi-ficadas que empresas gigantes estão a fim de im-por ao mundo inteiro, oferecem um exemplo elo-qüente a esse respeito. Elas visam a abolir tanto areprodução natural de certas espécies vegetaiscomo essas próprias espécies, a agricultura e asculturas alimentícias, em suma, a possibilidade,para as pessoas produzirem elas mesmas os seusalimentos. O “trabalho mercantilizado”, isto é, ostrabalhadores e suas organizações não são co-res-ponsáveis por esta pilhagem e esta destruição, anão ser na medida em que eles defendem o em-prego a qualquer preço no contexto existente ecombatem, com este fim, tudo o que diminui deimediato o crescimento econômico e a rentabili-dade financeira dos investimentos.O que Marx escrevia, há 140 anos, no primeiro li-vro de O Capital, é de uma espantosa atualidade:

Na agricultura moderna, bem como na indústria das ci-dades, o crescimento da produtividade e o rendimentosuperior do trabalho são comprados ao preço da des-truição e do estancamento da força de trabalho. Além

disso, cada progresso da agricultura capitalista é umprogresso não somente da arte de explorar o trabalha-dor, mas também na arte de despojar o solo; cada pro-gresso na arte de aumentar sua fertilidade por um tem-po, um progresso na ruína de suas fontes duráveis defertilidade. Quanto mais um país, os Estados Unidos daAmérica do Norte, por exemplo, se desenvolve combase na grande indústria, mais esse processo de destru-ição se cumpre rapidamente. A produção capitalistanão desenvolve, pois, a técnica e a combinação do pro-cesso de produção social, senão esgotando ao mesmotempo as duas fontes de onde jorra toda a riqueza: aterra e o trabalhador.

IHU On-Line – O senhor demonstrou que,em nossa sociedade, o grande problemanão é mais o da produção, mas o da distri-buição. De onde vem esta mudança e quaissão suas propostas para fazer face a estenovo desafio? A independência entre o tra-balho e a remuneração, idéia que o senhordefende, poderia trazer essa mudança?André Gorz – A resposta é muito simples: quan-do a sociedade produz mais riqueza com cada vezmenos trabalho, como poderá ela fazer dependero ganho de cada um da quantidade de trabalhoque ele produz? Esta questão tornou-se mais lan-cinante após a passagem ao pós-fordismo. A “re-volução informacional”, que, de início, se cha-mou de “revolução microeletrônica”, permitiu gi-gantescas economias de tempo de trabalho naprodução material, na gestão, nas comunicações,no comércio atacadista, no conjunto das ativida-des de escritório. Num primeiro tempo (de 1975 a1985), as esquerdas sindical e política tentaramimpor políticas de redistribuição do trabalho e dosrendimentos segundo a divisa “Trabalhar menospara trabalharem todos, e viver melhor”. Elas fra-cassaram e é preciso compreender o motivo.Com a informatização e a automação, o trabalhodeixou de ser a principal força produtiva, e os sa-lários deixaram de ser o principal custo de produ-ção. A composição orgânica do capital (isto é, arelação entre capital fixo e capital de giro) aumen-tou rapidamente. O capital se tornou o fator deprodução preponderante. A remuneração, a re-produção, a inovação técnica contínua do capitalfixo material requerem meios financeiros muitosuperiores ao custo do trabalho. Este último é,com freqüência, inferior, atualmente, a 15% do

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custo total. A divisão entre capital e trabalho do“valor” produzido pelas empresas pende mais emais fortemente em favor do primeiro. Este estácada vez menos inclinado a ceder às exigênciasdas organizações obreiras ou a negociar compro-missos com elas. Seu primeiro cuidado é que suapreponderância no seio do processo de produçãolhe permite impor sua lei. Ele procura, numa pala-vra, o meio de se livrar das legislações sociais edas convenções coletivas, consideradas como co-leiras insuportáveis no contexto em que a “com-petitividade” nos mercados mundiais é o primeiroimperativo. A mundialização neoliberal exige queas leis sociais sejam abolidas pelas leis do merca-do, pelas quais ninguém pode ser tido como res-ponsável. Tal era, aliás, o fim tácito para o qual amundialização tinha sido promovida. Ela deviapermitir ao capital descartar o peso julgado excessi-vo que tinham adquirido as organizações operáriasdurante o período fordista. Os assalariados deviamser constrangidos a escolher entre a deterioraçãode suas condições de trabalho e o desemprego.Na realidade, a mundialização gerou o desempre-go e a deterioração das condições de trabalho si-multaneamente. O emprego estável, de tempo esalário integral, tornou-se um privilégio, reserva-do, nas 100 maiores empresas norte-americanas,a 10% do pessoal. O trabalho precário, descontí-nuo, em tempo parcial e em horários “flexíveis,”tende a tornar-se a regra.A “sociedade salarial” entrou, assim, em crise. Oemprego tinha aí funções múltiplas. Ele era o prin-cipal meio de repartição da riqueza socialmenteproduzida; ele dava acesso à cidadania social, ouseja, às diversas prestações do Estado previdenciá-rio, prestações financeiras para a redistribuiçãoparcial das remunerações do trabalho e do capital;ele assegurava um certo tipo de integração e depertença a uma sociedade fundada sobre o traba-lho e a mercadoria; ele devia, por princípio, seracessível a todos. O “direito ao trabalho” devia serinscrito na maioria das constituições como um direi-to político e de cidadania. É, então, toda a socieda-

de que se desintegra com a precarização e a “flexi-bilização” do emprego, com o desmantelamentodo Estado previdenciário, sem que nenhuma outrasociedade, nem nenhuma outra perspectiva to-mem ainda o lugar da ordem que desmorona.Ao contrário, os representantes do capital conti-nuam, com uma cruel hipocrisia, a elogiar as virtu-des desse mesmo emprego que eles abolem maci-çamente, acusando os trabalhadores de custar de-masiado caro e os desempregados de serem pre-guiçosos e incapazes, responsáveis eles mesmospor seu desemprego. O patronato exige o aumen-to da duração semanal e anual do trabalho, pre-tendendo que “para vencer o desemprego é preci-so trabalhar mais”, ganhar menos e retardar a ida-de de aposentadoria. Mas, ao mesmo tempo,grandes empresas licenciam os assalariados com50 anos de idade ou mais, a fim de “rejuvenescerseu pessoal”.O elogio das virtudes e da ética do trabalho numcontexto de desemprego crescente e de precariza-ção do emprego inscreve-se numa estratégia dedominação: é preciso incitar os trabalhadores adisputarem os empregos muito raros, a aceitá-losnão importa sob quais condições, a considerá-loscomo intrinsecamente desejáveis, e impedir quetrabalhadores e desempregados se unam para exi-gir uma outra partilha do trabalho e da riqueza so-cialmente produzida. Em toda a parte, se invocamas virtudes do neoliberalismo norte-americanoque, ampliando a duração do trabalho, diminuin-do os salários, reduzindo os impostos dos ricos edas empresas, privatizando os serviços públicos eamputando drasticamente as indenizações dosdesempregados, obteve um crescimento econô-mico mais forte do que a maioria das outras na-ções do Norte e conseguiu criar um maior númerode empregos. Não era essa a prova de que a con-tração do volume dos salários distribuídos, o em-pobrecimento da grande massa dos cidadãos, oenriquecimento espetacular dos mais ricos5 nãoeram obstáculos ao crescimento da economia,mas o contrário?

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5 No período de 1979 a 1994, 80% dos assalariados sofreram, nos Estados Unidos, diminuições de sua remuneração, enquanto70% do acréscimo de riqueza produzida, graças ao crescimento durante este mesmo período, foram monopolizados por 5%dos americanos mais ricos.

Não. O segredo do crescimento que conheceu aeconomia dos Estados Unidos no decurso dosanos de 1990, marcados por uma quase-estagna-ção da economia européia, reside numa políticaque nenhum outro país pode permitir-se e que,cedo ou tarde, terá conseqüências duvidosas.Como a dos outros países do Norte, a economiaUS sofre de insuficiência da demanda solvível.Mas ela é a única capaz de atenuar esta insuficiên-cia, deixando acumularem-se as dívidas, isto é,praticamente, criando moeda. Para impedir que ademanda solvível não diminua e que a economianão entre em recessão, o Banco Central encorajaas famílias a se endividarem junto a seu banco e aconsumirem o que eles esperam ganhar no futuro.É o endividamento crescente das famílias de “clas-se média” que tem sido e que permanece sendo oprincipal motor do crescimento. No final dos anos1990, cada família devia em média tanto dinheiroquanto ela esperava ganhar nos 15 meses vindou-ros. As famílias despendiam, em 1999, 350 bi-lhões de dólares a mais do que ganhavam, e esteconsumo, que não era ligado a nenhum trabalhoprodutivo, se refletia num déficit de 400 e depoisde 500 bilhões de dólares por ano da balança con-tábil. Tudo se passava como se os Estados Unidostomassem emprestado no exterior o que eles em-prestavam no interior: eles financiavam uma dívi-da por outras dívidas.Comprando no exterior por quinhentos bilhões amais do que eles vendem, os Estados Unidos irri-gam o mundo de liquidez. Praticamente todos ospaíses querem vender aos americanos mais doque deles compram pelo “privilégio” de trabalharpara os consumidores americanos. Longe de so-nharem em reclamar aos Estados Unidos a apura-ção de suas dívidas, os credores dos Estados Uni-dos fazem o contrário: eles devolvem aos EstadosUnidos os dólares que estes perdem, comprandobônus do Tesouro US e ações em Wall Street.Este espantoso estado de coisas só pode, todavia,durar o tempo em que a Bolsa de Wall Street con-tinue a subir e que o dólar não baixe em relação àsoutras grandes moedas. Quando Wall Street sepuser a baixar continuamente, e o dólar enfraque-

cer, o caráter fictício dos créditos em dólares setornará manifesto, e o sistema bancário mundialameaçará desmoronar como um castelo de cartas.O capitalismo “caminha na beira do precipício”6

Produzir e produzir mais não é, pois, um proble-ma. O problema é vender o que é produzido acompradores capazes de pagá-lo. O problema é adistribuição de uma produção realizada com me-nos trabalho e que distribui menos meios de paga-mento, de maneira irregular e não igualitária. Oproblema é o fosso que não cessa de se cavar entrea capacidade de produzir e a capacidade de vendercom lucro, entre a “riqueza” produtível e a formamercantil, a forma “valor” que a riqueza deve obri-gatoriamente revestir para poder ser produzida noquadro do sistema econômico em vigor.A solução do problema não pode ser encontradanem na simples criação de meios de pagamentosuplementares, nem na criação de uma quantida-de suficiente de empregos para ocupar e remune-rar toda a população desejosa de “trabalhar”, ouseja, em escala mundial, perto de um terço da po-pulação potencialmente ativa do Planeta.Eu mostrarei agora que a solução que consiste emaumentar o poder de compra da população, cri-ando meios de pagamentos suplementares, repar-tidos por todos, não é aplicável no quadro do sis-tema existente. Mas, previamente, é preciso mos-trar que a criação de empregos suplementares emquantidade quase ilimitada, tal como ela é pratica-da nos Estados Unidos, em particular, não criapraticamente riqueza suplementar na escala deuma sociedade, embora ela procure um retorno,geralmente frágil e irregular, de um grande núme-ro de ativos.Todo emprego, com efeito, não é “produtivo” nosentido de que, numa economia capitalista, só é“produtivo” um trabalho que valoriza (isto é, au-menta) um capital, porque este que o fornece sóconsome a totalidade do valor que ele produz.Ora, as famosas “jazidas de empregos”, graças àsquais os governos esperam poder suprimir o de-semprego, são, na maioria, empregos improduti-vos, no sentido que eu acabo de mencionar. É ocaso, em particular, dos serviços a terceiros que

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6 Cf. BRENNER, Robert. New Boom or New Bubble? In: New Left Review, n. 25, jan.-fev. 2004.

ocupam 55% da população ativa dos EstadosUnidos. Segundo Edward Luttwak7, “esses 55%da população ativa trabalham como vendedo-res/vendedoras, servidores/servidoras, mulheres ehomens do lar, empregados/empregadas domés-ticos, jardineiros, baby sitters e vigias de imóve-is, e a metade dentre eles ocupam empregos pre-cários de baixo salário, mais de um quarto sãoworking poor [pobres trabalhadores], cuja re-muneração é inferior ao nível de pobreza, mesmoquando eles ocupam dois ou três empregos”.Tudo se passa como se os 20% mais ricos tives-sem cada um três pobres trabalhadores a seuserviço.Estes empregos de serviços não fazem aumentar aquantidade de meios de pagamento em circula-ção: eles não criam valor, eles consomem o valorcriado de outra forma. Sua remuneração provémda remuneração que seus clientes obtiveram pelotrabalho produtivo, sendo um “ganho secundá-rio”, uma redistribuição secundária de uma partedas remunerações primárias. Este caráter não cria-dor de valor dos serviços a terceiros – eu só falo deseu valor em sentido econômico, não de seu valorde uso ou de satisfação – foi perfeitamente resu-mido por um grande patrão americano. Discutin-do a tese de certos neoliberais, que pretendiamque se iria manter o crescimento, obrigando os de-sempregados a ganhar sua vida vendendo floresnas esquinas das ruas, engraxando sapatos dostranseuntes ou vendendo hambúrgueres, ele con-cluiu: “Vocês não podem fazer girar uma econo-mia, vendendo hambúrgueres uns aos outros”.Com mais freqüência, os empregos de serviçotransformam somente em prestações remunera-das serviços que as pessoas poderiam trocar semserem pagas, ou atividades que elas próprias po-deriam assumir. A transformação em empregos detais atividades, com efeito, não economiza tempode trabalho, não faz ganhar tempo em escala social:ela apenas redistribui o tempo. Uns compramtempo que outros aceitam vender a baixo preço,mas não há, no conjunto, economia de tempo. Ocaráter improdutivo dos serviços comprados evendidos se reflete neste plano.

Não há praticamente limite à extensão desse gê-nero de trocas mercantis. Em World Philosop-hie (Paris, 2000), Pierre Lévy visa a transformarem business todas as trocas sociais e todas as rela-ções interpessoais: “sexualidade, casamento, pro-criação, saúde, beleza, identidade, conhecimen-tos, relações, idéias..., nós estaremos constante-mente ocupados em fazer toda espécie de negócios...A pessoa torna-se uma empresa. Não há mais fa-mília nem nação que se mantenha.” As pessoaspassam, então, seu tempo a se venderem umas àsoutras. Elas são todas não apenas mercadores,mas mercadorias em busca de compradores.É preciso ressituar a reivindicação de um retornode existência nesse contexto. Sua finalidade não éa de perpetuar a sociedade do dinheiro e da mer-cadoria, nem de perpetuar o modelo de consumodominante nos países ditos desenvolvidos. Sua fi-nalidade é, ao contrário, subtrair os desemprega-dos e precários à obrigação de se venderem; de“liberar a atividade da ditadura do emprego” (toliberate work form the tyranny of the job), segun-do a fórmula de Frithjof Bergmann. Como o dizum texto de uma das associações de desemprega-dos mais influentes na França, o retorno de exis-tência deve “dar-nos os meios de desenvolver ati-vidades infinitamente mais enriquecedoras doque aquelas às quais se quer constranger-nos”,atividades que, expansivas para os indivíduos,criem também riquezas intrínsecas que uma em-presa não pode fabricar, que nenhum saláriopode comprar, de que nenhuma moeda podemensurar o valor.Essas riquezas intrínsecas são, por exemplo, aqualidade do meio de vida, a qualidade da educa-ção, os laços de solidariedade, as redes de ajuda ede assistência mútua, a extensão dos saberes co-muns e dos conhecimentos práticos, a cultura quese reflete e se desenvolve nas interações da vidacotidiana – tudo coisas que não podem tomar aforma de mercadoria, que não são cambiáveiscontra nenhum outro bem, que não têm preço,mas cada uma tem um valor intrínseco. É delasque depende a qualidade e o sentido da vida, aqualidade de uma sociedade e de uma civilização.

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7 Turbo Capitalism. New York, 1999.

Elas não podem ser produzidas sob comando.Elas não podem ser produzidas senão pelo movi-mento mesmo da vida e das relações cotidianas.Sua produção exige tempo não mensurado.O retorno social incondicional é reivindicado paratornar acessíveis a todos essas atividades livresnão prescritas, das quais depende a expansão dasfaculdades e das relações humanas. A educação,a cultura, a prática das artes, dos esportes, dos jo-gos, das relações afetivas, não devem “servir aqualquer coisa”. São atividades pelas quais aspessoas se tornam plenamente humanas e enca-ram sua humanidade como o sentido e o fim ab-soluto de sua existência. É somente “acima domercado” que elas também aumentam a produti-vidade do trabalho: elas lhe permitem tornar-secada vez mais inteligente, inventivo, eficaz, mestrede sua organização coletiva e de suas conseqüên-cias externas, e é assim que economiza tempo erecursos. Ele terá este resultado na condição denão ser submetido previamente a um encadea-mento de tarefas predeterminadas, de não ser o“meio” de atingir o aumento da produtividade.Pelo contrário, a atividade produtiva deve ser umdos “meios” da expansão humana, e não o inver-so. É assim que ela será a maior economia de re-cursos, de energia e de tempo.Esta concepção é evidentemente contrária à con-cepção dominante da racionalidade econômica.Ela é vivamente combatida pelos representantesdo capital. Segundo eles, as pessoas são, antes detudo, meios de produção e sua educação, sua for-mação, sua cultura devem ser úteis à sua funçãoprodutiva. O ensino e a cultura devem “servir aqualquer coisa”¸ fornecer à economia forças detrabalho adaptadas a tarefas predeterminadas.Os dirigentes de grandes empresas sabem perfei-tamente que esta concepção instrumental da cul-tura se tornou indefensável e eles o reconhecem,por vezes, dizendo que o que conta entre as pes-soas de que eles necessitam é a criatividade, aimaginação, a inteligência, a capacidade de de-senvolver continuamente seus conhecimentos. Otempo passado no trabalho não mede mais suacontribuição à produção. Este tempo é, muitas ve-zes, menor que o tempo que eles passam fora deseu trabalho, entretendo suas capacidades cogni-

tivas, ou imaginativas, com atividades que “nãoservem para nada”, que são a expansão humanae que só o produzem plenamente na condição denão ser submetido a imperativos estranhos.Tal é a condição que atravessa hoje um capitalis-mo que reconhece no “conhecimento”, no desen-volvimento das capacidades humanas, a forçaprodutiva decisiva e que não pode dispor destaforça a não ser na condição de não servi-la. O di-reito dos homens de existir independentementedeste “trabalho” de que a economia tem cada vezmenos precisão, é agora a condição de que de-pende o desenvolvimento de uma economia doconhecimento (knoledge economy) que se agarrade fato aos fundamentos da economia capitalista.A reivindicação de um retorno de existência des-vinculado do tempo de trabalho e do próprio tra-balho não é, pois, uma utopia. Pelo contrário, elase torna atual, porque o “trabalho”, tal como ele éentendido desde séculos, não é mais a força pro-dutiva principal e que a força produtiva principal,o saber vivo, não pode ser mensurado com os pa-drões habituais da economia, nem remuneradosegundo o número de horas durante as quais cadaum o põe em obra.Dito isso, eu não penso que o retorno de existên-cia possa ser introduzido gradualmente e pacifica-mente por uma reforma decidida “de cima”.Como escrevia Antonella Corsani, “ele não deve,sobretudo, inscrever-se numa lógica redistributi-va, mas numa lógica subversiva de superação ra-dical da riqueza, fundada sobre o capital e o traba-lho”. A idéia por si só do retorno de existênciamarca uma ruptura. Ela obriga a ver as coisas deoutra maneira e, sobretudo, a ver a importânciadas riquezas que não podem tomar a forma de va-lor, ou seja, a forma do dinheiro e da mercadoria.O retorno de existência, quando ele for introduzi-do, será uma moeda diferente da que nós utiliza-mos hoje. Ela não terá as mesmas funções. Elanão poderá servir a fins de dominação, de poder.Ela será criada “em baixo” e carregada por umaonda da base, simultaneamente a redes de coope-rativas enormes de autoprodução (de high-techself-providing, segundo a fórmula de Bergmann),em resposta a uma conjunção de diferentes for-mas de crise que nós sentimos surgir: crise climáti-

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ca, crise ecológica, crise de energia, crise monetá-ria após o desmoronamento do sistema de crédi-to. Nós todos somos argentinos em potencial. Asaída depende amplamente dos grupos e dos mo-vimentos, dos quais as práticas esboçam as possi-bilidades de um outro mundo e o preparam.

IHU On-Line – Se nós nos dirigimos parauma “economia de conhecimentos”, comoocorre que certos bens materiais continuama ter tanta importância, como é o caso, porexemplo, do petróleo? E o que se torna aagricultura, mais particularmente no quetoca aos subsídios? Em seu último livro Oimaterial, o senhor aborda o tema da econo-mia do imaterial. Em sua opinião, esta sig-nifica a crise do capitalismo? Por quê?André Gorz – As expressões “economia do co-nhecimento”, “sociedade do conhecimento”(knowledge society) circulam, há 35 anos, na lite-ratura anglo-saxônica. Elas significam, de umaparte, como já o sublinhei, que o trabalho, pratica-mente todo o trabalho em todos os tipos de pro-dução, exige do trabalhador capacidades imagi-nativas, comunicacionais, cognitivas, etc., emsuma, a contribuição de um saber vivo que eledeve extrair de si mesmo. O trabalho não é maismensurável apenas pelo tempo que nele se passa.A implicação pessoal que ele exige faz com que,praticamente, não haja mais um padrão de medi-da universal para avaliá-lo. Seu componente ima-terial se reveste de uma importância maior do queo dispêndio de energia física.Vale o mesmo para o valor mercantil dos produ-tos. Sua substância material exige cada vez menostrabalho, seu custo é frágil e seu preço tende, pois,a baixar. Para conter essa tendência à baixa, asempresas transformam os produtos materiais emvetores de conteúdos imateriais, simbólicos, afeti-vos, estéticos. Não é mais sua utilidade práticaque conta, mas a desejabilidade subjetiva quedeve dar-lhe a identidade, o prestígio, a personali-dade que eles conferem a seu proprietário ou aqualidade dos conhecimentos dos quais se julgaserem o resultado. Temos, então, uma indústriamuito importante, a do marketing e da publicida-de, que só produz símbolos, imagens, mensagens,

estilos, modas, ou seja, as dimensões imateriaisque farão vender as mercadorias materiais a umpreço elevado e não cessarão de inovar para tirarde moda o que existe e lançar novidades. Esta étambém uma maneira de combater a abundânciaque faz baixar os preços e produzir a raridade – onovo é sempre raro, no começo – que os fará au-mentar. Mesmo os produtos de uso cotidiano e osalimentos são comercializados segundo este mé-todo, por exemplo, os produtos de laticínios ou osde limpeza. O logotipo das diferentes empresasdestina-se a conferir aos seus produtos uma espe-cificidade que os torna incomparáveis, não cam-biáveis por outros. Assim como a importância deseu componente imaterial tornava o trabalho nãomensurável, segundo um padrão universal, a im-portância do componente imaterial das mercado-rias os subtrai, temporariamente, pelo menos, à leido mercado, dotando-as de qualidades simbólicasque escapam à comparação e à medida.Se examinarmos as produções que mais se desen-volveram nos últimos vinte ou trinta anos, consta-taremos a dominação das mercadorias imateriais:notadamente a música da imagem (fotografia, vi-deocâmara, televisores, magnetoscópios e depoisDVD) a comunicação (telefone móvel, Internet). Omaterial é apenas o vetor do imaterial, ele só temvalor de uso graças a este último. Foi principal-mente o consumo imaterial que permitiu à econo-mia capitalista continuar a funcionar e a crescer.Nós temos, pois, uma situação em que as três ca-tegorias fundamentais da economia política: o tra-balho, o valor e o capital não são mais mensurá-veis segundo um padrão comum. Há uns trintaanos, o capitalismo quis superar a crise do regimefordista, lançando-se numa economia do conheci-mento, ou seja, capitalizando o conhecimento e osaber vivo. Fazendo isso, ele criou para si proble-mas novos que não têm solução no quadro do sis-tema, pois, transformar o saber vivo em “capitalhumano” não é um negócio fácil. As empresas sãoincapazes de produzir e de acumular “capital hu-mano” e incapazes, também, de assegurar dura-douramente seu controle. A inteligência viva, tor-nada força produtiva principal, ameaça sempreescapar à sua empresa. Os conhecimentos forma-lizados e formalizáveis, por outra parte, traduzíveis

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em logicismos, são reproduzíveis em quantidadesilimitadas por um custo negligenciável. São, pois,bens potencialmente abundantes, e esta abun-dância fará tender o valor de troca para zero.Logo, uma verdadeira economia do conhecimen-to seria uma economia da gratuidade e da partilhaque trataria os conhecimentos como um bem co-mum da humanidade. Para capitalizar e valorizaros conhecimentos, a empresa capitalista deve pri-vatizá-los, tornar raros, por apropriação privada epatenteação, o que é potencialmente abundante egratuito. E esta privatização e esta rarefação têmum custo muito elevado, uma vez que é precisoproteger o monopólio temporário que a empresaadquire contra conhecimentos equivalentes e no-vos, contra as imitações ou reinvenções, aferro-lhando o mercado contra eventuais concorrentespor campanhas de marketing e por inovações quevencem os eventuais concorrentes pela rapidez.

Os conhecimentos não são mercadoriascomo as outras, e seu valor comercial, monetário,é sempre artificial. Tratá-los como “capital imate-rial” e cotá-los na Bolsa, é assinalar um valor fictí-cio ao que não tem valor mensurável. O que vale,por exemplo, o capital da Coca Cola, da Nike ouda McDonald’s, de todas as empresas que nãopossuem capital material, mas somente knowhow, organização comercial e um nome de marca

reputado? O que vale mesmo a Microsoft? A res-posta depende essencialmente da estimativa daBolsa sobre as rendas de monopólio que essasempresas esperam obter. Diz-se que o desmoro-namento (a falência) do Nasdaq em 2001 empo-breceu o mundo em 4000 bilhões de dólares. Masele teve apenas uma existência fictícia. Se o des-moronamento dos “valores imateriais” demons-trou alguma coisa, é essencialmente a dificuldadeintrínseca que há em querer fazer funcionar o ca-pital imaterial como um capital e a economia doconhecimento como o capitalismo.

A ausência de um padrão de medida comumpara o conhecimento, o trabalho imaterial e o ca-pital, a queda do valor dos produtos materiais e oaumento artificial do valor de troca do imaterialdesqualificam os instrumentos de medida macroe-conômicos. A criação de riqueza não se deixamais mensurar em termos monetários. Os funda-mentos da economia política desmoronam. É nes-se sentido que a economia do conhecimento é acrise do capitalismo. Não é por acaso que se suce-dem, há alguns anos, as obras filosóficas e econô-micas que insistem na necessidade de redefinir ariqueza. Uma outra economia se esboça no cora-ção do capitalismo, que inverte a relação entreprodução de riquezas mercantis e produção de ri-queza humana.

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“Eliminar o desemprego no capitalismo é uma ficção”

Entrevista com Ricardo Antunes

Ricardo Antunes é professor titular de Socio-logia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanasda Universidade de Campinas (Unicamp). Recen-temente, foi Visiting Research Fellow na Universi-dade de Sussex, Inglaterra. Fez Livre-Docência naUnicamp em Sociologia do Trabalho e Mestradoem Ciência Política na mesma universidade. Dou-torou-se em Sociologia pela USP. Publicou diver-sos livros, entre os quais destacamos: A Rebeldiado Trabalho. Campinas: Unicamp,1986); Adeus aoTrabalho? São Paulo: Cortez, 1995); Os Senti-dos do Trabalho. Ensaio sobre a Afirmaçãoe a Negação do Trabalho. 7. ed. São Paulo: Boi-tempo, 2002. Atualmente, coordena a ColeçãoMundo do Trabalho na Boitempo Editorial e Tra-balho e Emancipação na Editora Expressão Popu-lar. Colabora regularmente em revistas e jornaisnacionais e estrangeiros. O professor, escritor epesquisador conversou com IHU On-Line sobreo lugar do trabalho na sociedade contemporânea.

IHU On-Line – A que o senhor atribui o su-cesso do seu livro Adeus ao trabalho?, tra-duzido em várias línguas e em sua 9ª ediçãoem português?Ricardo Antunes – O meu livro foi publicadoem sete países, Brasil, Itália, Espanha, Argentina,Venezuela Colômbia e México. Eu atribuo a suaboa receptividade ao fato de que ele é uma res-posta latino-americana para a crise que se passano mundo do trabalho, onde, em geral, as posi-ções dominantes eram do tipo eurocêntricas, deautores como André Gorz, Habermas, DominiqueMéda ou o norte-americano Jeremy Rifkin, paracitar alguns exemplos. Acho que meu livro foi umaresposta, mostrando que é impensável falar do fimdo trabalho sem olhar para o assim chamado ter-

ceiro mundo, onde se encontram dois terços dapopulação humana que trabalha. O meu livroposterior Os sentidos do trabalho também estáem sétima edição no Brasil e está sendo traduzidopara o espanhol e o italiano. Esta obra correspondea um ano de pesquisa de pós-doutorado, feita pormim na Inglaterra, na Universidade de Sussex.

IHU On-Line – Atualmente, o desempregoatinge, no Brasil, seus mais altos índices. Ogoverno atual não está sabendo dar respos-tas nesse sentido?Ricardo Antunes – Tratar de desemprego impli-ca tratar duas dimensões: a primeira eu chamariade um desemprego estrutural. A lógica do sistemaglobal do capital hoje, da transnacionalização daeconomia da chamada globalização ou mundiali-zação da economia, as empresas na competitivi-dade estabelecida entre elas em âmbito mundialJapão, EUA, Europa, América Latina, Ásia, etc.,têm uma lógica: reduzir o trabalho vivo, ampliar otrabalho morto, ou seja, o maquinário técni-co-científico, reestruturar a organização sociotéc-nica do trabalho, visando a aumentar a produtivi-dade das empresas para poder entrar na lei da sel-va da competição. Essa lógica se intensificou coma crise estrutural do capitalismo, a partir de 1973,normalmente chamada de forma superficial decrise do taylorismo e do fordismo e com o neolibe-ralismo, que é o ideário e a pragmática própria dafase da reestruturação produtiva. Combater o de-semprego e imaginar que se vai eliminar o desem-prego no capitalismo é uma completa ficção hoje.O sistema global do capital oscila entre a necessi-dade de ter o trabalho perene, mas, ao mesmotempo, ter no outro pêndulo, o trabalho supérfluo.Uma parcela da classe trabalhadora é indispensá-

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vel e ambas as parcelas da classe trabalhadora tor-nam-se supérfluas. Esse é o movimento do capi-tal. Em segundo lugar, é também um problemamais conjuntural. Depois do Consenso de Was-hington e da implantação das políticas neolibe-rais, os governos são induzidos a implementaremo mesmo receituário, sejam governos de direita oude esquerda. Esse receituário é o que já sabemos:privatização, financeirização da economia, desre-gulamentação do trabalho, flexibilização das leistrabalhistas, incentivo do mundo privatizado edesregulamentado. Conseqüentemente, já há umfator estrutural que empurra para o desemprego, ea ele é acrescido um fator conjuntural que faz comque o sistema financeiro internacional, os organis-mos bilaterais ou multilaterais como o Fundo Mo-netário Internacional (FMI), o Banco Mundial eoutros, e os governos nacionais dos países domi-nantes da Europa e os EUA, etc. Se eles empurramos governos do mundo para aplicarem políticasneoliberais, acentua o desemprego. Essa é a tra-gédia que embaralhou o governo Lula e da qualele não tem mostrado nenhuma capacidade desair. Prisioneiro desta impulsão estrutural do siste-ma capitalista que impele para o desemprego es-trutural, Lula pratica uma política econômica emsintonia adequada à pragmática neoliberal. O re-sultado é esse que vemos nos jornais desta semana:São Paulo passou de 20% dos níveis de desempre-go. Só na cidade de São Paulo, são mais de 2 mi-lhões de desempregados. Há bairros em São Paulocom mais de 60% de desemprego. E isso não vaidiminuir, é uma ilusão dizer que o País vai crescer,porque a política é totalmente vulnerável à pressãonorte-americana. Este governo, continuando a po-lítica econômica anterior de FHC, continuando apolítica anterior de Collor, todos eles seguindo umapolítica neoliberal, se mostra incapaz de, minima-mente, tentar um projeto alternativo, embora tenhasido o discurso do PT durante 24 anos. Foi só Lulaganhar o poder para desdizer tudo o que disse nopassado.

IHU On-Line – A promessa eleitoral de criar10 milhões de empregos é também uma fic-ção irrealizável dentro do capitalismo?Ricardo Antunes – Era uma manipulação depropaganda eleitoral. Duda Mendonça falou para

ele o que o povo quer ouvir. Para que o Brasil pu-desse criar dez milhões de empregos, ele precisa-ria ter um profundo crescimento econômico comoutra política econômica. Crescimento econômi-co não é sinônimo de emprego. A ditadura militarcresceu muito e havia desemprego. O capitalismopode crescer, empregando pouco. A discussãoatual sobre salário mínimo é grotesca. Falamos de260, 27 reais, o salário mais baixo da América La-tina. O Brasil, que já foi a oitava economia domundo, hoje está na 14ª, 15ª posição. Ter um sa-lário abaixo da maioria dos países da América La-tina é grotesco. O governo Lula está com saláriosbaixos, com o grosso de nossa produção voltadapara o pagamento dos juros e da dívida externa,para os juros do sistema financeiro internacional,imagina que vai alavancar a economia brasileira,criando fundos privados e pensão? Fundindo osistema financeiro internacional e o sindicalismode negócios? É ficção. O resultado é uma tragédia.

IHU On-Line – Olhando para os outros paí-ses da América Latina, como o senhor vêque estão enfrentando a atual situação? Épossível ainda no contexto global que al-gum estado-nação faça mudanças alternati-vas ao poder hegemônico do capital?Ricardo Antunes – É possível sim, e necessário.Se isso não for feito vamos intensificar a barbárieNós já vivemos a barbárie, com 20% de desem-prego em várias capitais. Qual é a alternativa? Va-mos começar pela Venezuela. Quando Chávezganhou a eleição, estava tudo preparado para pri-vatizar a Companhia de Petróleo Venezuelana(PDV), um esquema norte-americano, interessesprivados, os gestores da PDV corrompidos pelaprivatização, todos de acordo. O presidente Chá-vez travou esse processo. Sofreu uma brutal opo-sição e conseguiu reverter o quadro. Está com difi-culdade, mas está buscando uma política de efeti-va participação popular. O governo Kirchner, naArgentina, também é interessante. Foi eleito combaixa votação, tendo menos votos que Carlos Me-nem no primeiro turno. Não houve segundo turnoporque Menem renunciou. Um governo que assu-miu com um apoio popular muito fraco, mesmoassim, chamou o FMI e disse: “Não dá mais para

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fazer o que vocês estão querendo”. A Argentinaera um país com razoável nível de seguridade so-cial. Era um país com um padrão de vida bastanterazoável para os padrões de vida latino-america-nos, e isso foi desmontado pela barbárie da dita-dura militar e depois pelos governos Alfonsín epelo arquicorrupto governo Menem. Kirchner su-biu e disse: “Não dá mais. Primeiro vamos arru-mar a casa e depois vemos o que vamos fazer”.Imagine se o Lula tivesse feito isso com 53 milhõesdos votos. Teria dito: “Não dá mais. Agora eu te-nho 53 milhões de votos, uma população traba-lhadora enorme. Tenho um nível de informaliza-ção do trabalho que é quase de 60%, um nível deindigência e miséria que passa de 30 ou 40 mi-lhões, não posso mais segurar isso, vamos ter quemudar para valer a política econômica, queira ounão o FMI”. Era só articular com a Argentina, Ve-nezuela, Cuba, Índia, China, Rússia. O Lula, aomesmo tempo, que quer conversar com Chávez,Kirchner e Fidel, é o paladino do neoliberalismo.Quer se mostrar ao FMI como mais confiável queFHC, mais realista que o rei, quer ser uma espéciede nome de consenso. É uma piada, porque nes-te campo ou estamos de um lado, ou de outro.Tanto na política interna como na externa é umgoverno amedrontado e servil, em processo deerosão, o que é muito triste e preocupante, por-que os que votamos no Lula imaginamos algu-mas mudanças. O que mudou foi dentro do neoli-beralism, e para pior.

IHU On-Line – O governo argumentou emdiversas oportunidades que não queria viraruma outra Argentina...Ricardo Antunes – É. Não queria que o Brasilvirasse uma Argentina, só que agora, a Argentinaestá conseguindo, devagarzinho, resgatar um mí-nimo de dignidade, e o Brasil está virando o que aArgentina era dois ou três anos atrás. Estamoschegando lá depois de um ano e quatro meses depolítica de governo, fazendo o que o FMI manda.O Lula tinha um capital social e político de 53 mi-lhões de votos para dizer não ao FMI, hoje sua ero-são é avassaladora. O PT se confunde com oPSDB e o PFL na política econômica, nos acordose conchavos e até na corrupção. Eu não tenho ne-

nhuma dúvida que, em 2006, o PT terá uma der-rota fragorosa. É triste, mas é esse o quadro.

IHU On-Line – Nesse contexto, para ondecaminha o trabalho?Ricardo Antunes – Estamos no século XXI. A pri-meira pergunta é: Que sociedade nós queremos?Queremos uma sociedade submissa, voltada paraa acumulação de lucros do sistema financeiro, in-dependente da humanidade ou nós queremosuma sociedade a serviço da humanidade? Essa éa primeira questão. E isso torna profundamenteatual o socialismo. Diferentemente do que ocor-reu no século XX quando o socialismo foi derrota-do, mas, com o Fórum Social Mundial de PortoAlegre e da Índia, com o Zapatismo, o MST, as gre-ves que ocorrem em certas partes do mundo, omovimento social na Bolívia, meses atrás, todosesses movimentos mostram que o descontenta-mento é enorme, e isso coloca uma questão cen-tral: o trabalho que estrutura o capital, desestrutu-ra a humanidade: precarização, globalização, de-semprego, sub-remuneração, exploração do tra-balho, etc. Em contrapartida, o trabalho que es-trutura a humanidade, desestrutura o capital. Odesafio do século XXI é resgatar o sentido do tra-balho para que reconquiste o sentido de dignida-de humana e estruture a humanidade. Para isso,nós temos que desestruturar o sistema de merca-do, de capital. Os apologistas da ordem vão dizerque isso é utópico, ou que não é novo. Nós res-pondemos que isso é o novo, o velho é reciclar oneoliberalismo e achar, como Fukuyama, que eleé inevitável. Entramos no século XXI com os EUA,impondo para o mundo uma política agressiva,destrutiva e terrorista. Vamos aceitá-la? É inevitá-vel? É a mesma lógica que destrói a natureza e oambiente. Nunca nós vivemos no mundo comtanta destruição ambiental. Poluição da água, doar, é uma destrutividade em escala mundial. A ló-gica dos manuais empresariais diz que, para queuma empresa seja racional, precisa enxugar a for-ça de trabalho, flexibilizá-la, precarizá-la e desem-pregar; quanto menos trabalhadores ela tiver emais produtiva ela for, melhor é. Se cada empre-sa, no plano micro, expulsa força de trabalho eavança na racionalização de trabalho, se todas fi-

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zerem assim, a racionalidade tem como resultadouma brutal irracionalidade global. Vamos aceitarisso como inevitável?

IHU On-Line – Portanto, o senhor vê senti-dos bem contraditórios no trabalho?Ricardo Antunes – O trabalho no capitalismo éservidão, é estranhamento, é alienação, é perdade sentido, é necessidade exteriormente imposta,é trabalho compulsório e forçado. Mas, quando seolha a história da humanidade, o trabalho tam-bém é criação, humanização, autoconstituição dogênero humano, o trabalho também é um mo-mento de emancipação. Há uma dialética do tra-balho: ele emancipa, mas também cria servidão; éautônomo, mas freqüentemente é heterônomo.Tem o sentido de emancipação, mas, com fre-qüência, é alienação. No século XXI, temos quepensar seu sentido fundamental: resgatar um tra-balho dotado de sentido, para que nossa vida forado trabalho também seja dotada de sentido. Épura ficção imaginar que o trabalho possa ser des-provido de sentido dentro do trabalho e que nossavida possa ser provida de sentido fora do trabalho.Esse é o núcleo do meu pensamento.

IHU On-Line – Quais são os grandes pensa-dores do trabalho no momento atual?Ricardo Antunes – Eu faço parte de uma linha-gem de autores que resgata esse sentido duplo,vivo e contraditório do trabalho. Então, por exem-plo, eu simpatizo com a obra do francês AlainBihr8, tenho confluência também com István Més-záros, que escreveu o livro Para além do Capi-tal9, obra monumental. Acho também importanteo trabalho que o Robert Castel faz na França, es-pecialmente ao mostrar os laços de sociabilidadeque nascem na esfera do trabalho10. Eu recuso

aqueles autores que fazem um requiem do traba-lho sem fazer um requiem do capital. Eu acho mui-to fácil dizer que se quer o fim do trabalho, e nãodizer que se quer o fim do capital. Fica a idéia deque podemos ter uma sociedade capitalista semtrabalhadores, o que é pura ficção. O que achofundamental hoje é dizer que se quer o fim da so-ciedade destrutiva do capital e o fim do trabalhoalienado, do trabalho abstrato, assalariado, e issoé condição para resgatar uma sociedade paraalém do capital e para além do mercado. Uma so-ciedade onde o trabalho seja dotado de sentidohumano, criativo e societal. Eu tenho tambémuma grande admiração por Robert Kurz, porquefaz uma critica decisiva ao caráter destrutivo docapitalismo. Mas, tenho uma diferença grandecom Kurz: ele acha que o trabalho é sempre alie-nado e que, portanto, deve ser eliminado. Eu, naherança do pensamento de Marx e de Lukács,penso que o trabalho no capitalismo é alienado. Otrabalho, na sociedade feudal é servil, o trabalhona sociedade greco-romana é escravocrata, mas otrabalho também é um momento fundante da ati-vidade humana que permitiu, inclusive, que o ho-mem se humanizasse e se diferenciasse dos ani-mais. Nesse sentido, o trabalho pode ser criação,autonomia e ponto de partida para a emancipa-ção, mas, para isso, é preciso destruir os pilares dasociedade do capital.

IHU On-Line – Qual é sua mensagem para odia Mundial do Trabalho e como a universi-dade entra na hora de pensar o mundo dotrabalho?Ricardo Antunes – O primeiro de maio simboli-za um dia histórico. Um dia em que as forças so-ciais do trabalho disseram para o capital: “Estemundo não nos interessa”. O nosso desafio hoje é

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8 Alain Bihr, doutor em Sociologia, trabalha na Université de Haute Alsace, Mulhouse, e é autor de, entre outros livros, DaGrande Noite à alternativa. O movimento operário europeu em crise. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 1999. Hojepesquisa mais detalhadamente o avanço do movimento integrista na Europa. (Nota da IHU On-Line).

9 Campinas: Boitempo; Ed. Unicamp, 2002.10 Robert Castel é autor do notório livro As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário, Petrópolis: Vozes,

1998. O último livro de R. Castel é L’insécurité sociale. Qu’est-ce qu’être protégé? (A insegurança social. O que é serprotegido?) Paris: Seuil, 2003. A revista Alternatives Économiques, n. 61, 3º trimestre de 2004, publica uma longaentrevista com o autor sob o título Pour un nouvel Etat social (Por um novo Estado social). (Nota da IHU On-Line).

pensar nesta nova polissemia que marca o mundodo trabalho. Como é possível resgatar o sentido depertencimento de classe e reconstruir e redesenharum projeto de sociedade de modo muito amplocom o que eu chamo de “classe-que-vive-do-traba-lho”? A universidade é fundamental nisso tudo,porque, tanto no Brasil quanto na América Latina,

se tentou e, em alguns casos, se conseguiu, destruira universidade pública, porque ela pensa a huma-nidade e o sistema de mercado como a expressãoviva da desumanidade. Mercado não rima com hu-manidade, capital não rima com humanidade; uni-versidade rima com humanidade, por isso ela temum papel importante.

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A globalização deve se adaptar às necessidadesdas pessoas, e não o contrário

Entrevista com Robert Kurz

Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão.Kurz estudou Filosofia, História e Pedagogia. Atu-almente, vive em Nurenberg como publicista au-tônomo, autor e jornalista. Foi co-fundador e re-dator da revista teórica Krisis – Beiträge zur Kritikder Warengesellschaft (Krisis – Contribuições paraa Crítica da Sociedade da Mercadoria). A área dosseus trabalhos abrange a teoria da crise e da mo-dernização, a análise crítica do sistema mundialcapitalista, a crítica do iluminismo e a relação entrecultura e economia. Publica regularmente ensaiosem jornais e revistas na Alemanha, Áustria, Suíçae Brasil. O seu livro O Colapso da Moderniza-ção. São Paulo: Paz e Terra, 1991, também edita-do no Brasil, tal como O Retorno de Potemkin.São Paulo: Paz e Terra, 1994 e Os ÚltimosCombates. Petrópolis: Vozes, 1998, provocougrande discussão, e não apenas na Alemanha.Mais recentemente publicou Schwarzbuch Ka-pitalismus (O Livro Negro do Capitalismo) em1999, Weltordnungskrieg (A Guerra de Orde-namento Mundial) e Die Antideutsche Ideolo-gie (A Ideologia Antialemã) em 2003, não edita-dos em português. Robert Kurz disponibilizou aentrevista a seguir, concedida à IHU On-Line, emalemão, no sítio www.exit-online.org. A tradu-ção da entrevista é da CP Traduções.

IHU On-Line – No Brasil, está crescendo odesemprego em um governo de esquerda doqual se esperava uma solução para esseproblema. Por que o desemprego pareceuma questão sem resolução? Há algum ou-tro modelo alternativo ao binômio emprego– desemprego para nossas sociedades?

Robert Kurz – É uma contradição fundamentalna forma de produção capitalista moderna, que,por um lado, se baseia na permanente transfor-mação da energia humana em capital e, por ou-tro, obriga a concorrência para o desenvolvimen-to das forças de produção, na qual a mão-de-obraé transformada em objeto supérfluo. No passado,esta contradição sempre pôde ser compensadacom a expansão dos mercados. Contudo, na ter-ceira revolução industral da microeletrônica, oefeito de racionalização é durável e maior do queo efeito da expansão. Até hoje, todos os modelospara se vencer esta crise global não obtiveram re-sultado, porque eles não levam em consideraçãoa obsoleta lógica de transformação de trabalhoem capital e somente se ocupam da admnistraçãoda pobreza. Se nos tornarmos improdutivos ecada vez mais recursos ficarem improdutivos, de-veremos, em princípio, questionar categorica-mente os atuais hábitos e formas de produção.Assim sendo, a discussão recua e se torna, de cer-ta forma, maçante.

IHU On-Line – Como o senhor vê a relaçãoentre Estado, mercado e terceiro setor? E ofuturo dos partidos políticos e sindicatos?Robert Kurz – A política como tal se torna ummodelo em extinção. Essencialmente, o Estado ea política respondem unicamente às conseqüên-cias de processos cegos de mercado e concorrên-cia. Se essas conseqüências não forem mais con-troláveis, a competência da política desaparece.Só podemos ser sujeitos da política, se formostambém sujeitos do trabalho e do capital. Quantomais as pessoas se desligarem da lógica traba-

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lho/capital, menos insensatas se tornam as espe-ranças no Estado. Por este motivo, muitos já nãoacreditam mais nos partidos políticos. O fazer polí-tico se tornou hoje, de certa forma, uma rotaçãodesengrenada11. As organizações não-governa-mentais não se constituem alternativa, uma vezque se entendem por meras empresas não-críticasde reparação das sociedades totalitárias de merca-do. Elas deveriam empenhar-se abertamente emopor-se à ordem dos fatos e pensar em um mundoalém do mercado e do Estado, não como organi-zações subalternas de ajuda paralela ou até mes-mo inerentes à administração capitalista da crise,mas sim em contraposição a isso. Os sindicatostambém ficaram sem ação, porque eles só foramconcebidos para a expansão histórica do trabalhoassalariado. Na atual crise global, esta área se tor-nou vacilante. Poderia haver, então, espaço paraa demanda sindical para o Estado e as empresas.Mas em vista das atuais exigências, os sindicatosestão paralisados, enquanto se mantiverem pre-sos à lógica do trabalho assalariado e enquantoassumirem a responsabilidade do sistema vigente.

IHU On-Line – Quais são suas divergênciascom a idéia de flexibilização do trabalho deUlrich Beck e as idéias de trabalho imaterialde André Gorz? Como o senhor vê a reflexãode Paolo Virno e Maurizio Lazzarato?Robert Kurz – Desde alguns anos, novos concei-tos estão sendo trazidos a debate, os quais, toda-via, não contribuem muito para uma análise críti-ca, porque provêm do discurso do gerenciamen-to. A flexibilização, que foi elogiada como métododa auto-realização, é, na realidade, um método deauto-adestramento às exigências alheias do siste-ma em crise. As pessoas devem analisar-se comoseu próprio capital humano, cada eu deve seruma pequena empresa, cada indivíduo deve serum meio único da autovalorização. Ser flexívelparece não significar mais do que degradar-se emum autômato, o qual mecanicamente reage aoscomandos e sinalizações do mercado. É a formamais sutil de desumanização. No mesmo âmbito,encontra-se o conceito do trabalho imaterial, o

qual pertence ao discurso da sociedade intelectualou à sociedade da informação. Em primeiro lugar,uma grande parte das assim denominadas atua-ções/atividades imateriais nos campos da medici-na, da cultura, da educação, das assessorias, etc.são pouco caracterizáveis como capitalistas. Nãose trata, assim, de amplos campos de aproveita-mento do capital, ou seja, transformação do tra-balho em capital, como no passado, na indústriaautomobilística. Ao contrário, estes campos apa-recem segundo a lógica capitalista como custos(sociais ou empresariais). Em segundo lugar, ten-ta-se, de igual maneira, no contexto capitalista, re-duzir e adaptar as potências dos campos imateriaispela racionalização e privatização. Mediante oprocesso cego de desenvolvimento capitalista,possibilidades civilizatórias surgiram, as quais ul-trapassaram o sistema moderno de produção,porque não podem mais ser banidas da lógica tra-balho, valor, produto e capital. O conceito do tra-balho imaterial torna-se, desse modo, uma con-tradição em si, porque as atividades e possibilida-des imateriais se opõem especificamente à abstra-ção capitalista trabalho. Não há sentido em so-mente se modificar o conceito moderno de traba-lho, ele deve ser categoricamente negado.

IHU On-Line – Qual é o papel da universida-de numa sociedade com grandes massas dedesempregados?Robert Kurz – As universidades são as instituiçõesclássicas para a educação. Como todas as institui-ções civis, elas se baseiam na economia da socie-dade de trabalho de massa, ou seja, no aprovei-tamento do capital. Como campos secundários,nos quais a lógica do aproveitamento não foi dire-tamente eficiente, as universidades foram conside-radas como um certo luxo intelectual de pesquisa,formação e reflexão crítica na história da expansãocapitalista. No auge da expansão, na era da indús-tria fordista (indústria automobilística), pareceu porum tempo que até os filhos da classe trabalhadoraem grande escala, teriam acesso às universidades,como se fosse possível substituir os trabalhadoresde massa por intelectuais de massa. Mas isso foi

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11 No original em alemão: Der ganze politische Betrieb ist nur noch ein Leerlauf. (Nota da IHU On-Line )

uma ilusão, porque, afinal de contas, a educaçãocapitalista somente pode existir como ponto elitistana base do trabalho de massa. Desde que a expan-são histórica se transformou em contração históri-ca, também as universidades sentiram a crise glo-bal da terceira revolução industrial. Uma sociedadede massa de desempregados é uma sociedade danecessidade financeira. Para os campos secundá-rios, entre elas a educação, desaparece significati-vamente a financiabilidade. Quanto mais os políti-cos dificultarem a necessidade de investimentos naeducação para a concorrência no mercado mun-dial, mais dificuldades e restrições encontrarão asescolas e universidades. Os administradores, funcio-nários e ideologistas do sistema querem vencer estacontradição, reduzindo a educação social e os con-teúdos. O conceito de elitização se imporá nova-mente, por meio da privatização, das mensalidadescaras e do fomento de menos universidades deponta, o que deverá produzir, em base menor, aqualificação para o mercado mundial, à medidaque os supérfluos da educação serão cortados. Ocapitalismo não pode substituir os trabalhadores demassa por intelectuais de massa, e sim, pela barba-ridade analfabetizada de massa. Entretanto, o es-treitamento social, vinga-se com o estreitamentointelectual nos progrmas curriculares das universi-dades. A ciência deve transformar-se diretamenteem máquina de aproveitamento, a lógica econômi-ca empresarial devora a pesquisa livre, a reflexãocrítica sucumbe como luxo dispensável. Uma cres-cente massa de analfabetos desempregados depa-ra-se com uma pseudo-elite de intelectuais idiotasfuncionais, os quais se declaram incapazes de ge-renciar o grau alcançado de socialização altamentecomplexo e híbrido. As universidades só poderãoretirar-se desta tendência de decivilização, quandose opuserem ao elitismo (Elite-Lobbysmus) e ao re-ducionismo econômico. Deverá haver um movi-mento dos sábios desobedientes, os quais se envol-vam com os novos movimentos sociais, sem levarem consideração a antiga paralisada classe políticade esquerda. Se as chances continuarem igualmen-te menores, a comunidade de docentes e discentespoderá partir para a subversão intelectual e trans-formar a universidade em campo experimentalpara uma cultura de oposição.

IHU On-Line – Quais são os principais desa-fios da globalização?Robert Kurz – Constantemente nos é pregadoque devemos nos adaptar à globalização. Se aglobalização for realmente irreversível, não have-rá volta para a reprodução nacional da sociedade.Mas a tarefa consiste em que a globalização seadapate às necessidades das pessoas, e não ocontrário. A longo prazo, isso só será possível, se asociedade mundial libertar-se do jogo do econo-mismo real e organizar seus amplos recursos emuma nova forma, além do mercado e do Estado.Para se alcançar este objetivo, os movimentoscontrários precisam estar à mesma altura do mo-nopólio de capital. Este é também o desafio decisi-vo dos sindicatos. Eles precisam se libertar de suaforma de organização nacional. Enquanto a formado partido político, em essência, permanecer liga-da ao quadro estatal, e daí por si mesmo ser rea-cionária, a luta social, em princípio, se tornará, deigual maneira, monopólio como a economia em-presarial capitalista. Mas até agora os novos movi-mentos sociais estão ainda orientados no sentidotradicional internacional do que realmente trans-nacional. Isso se explica porque estes movimentosainda se orientam nas formas passadas de regula-mento estatal (nostalgia keynesiana). Estas formasde regulamento não podem, todavia, ser expandi-das para o plano de monopólio de globalização,porque não existe um estado mundial. Com isso,fica claro que atualmente a consciência oposicio-nal se prende às categorias obsoletas do sistemamoderno de produção de bens. Nação, trabalho eproduto precisam ser dominadas. Enquanto osmovimentos contrários ainda se relacionarem po-sitivamente com estas categorias, eles permanece-rão susceptíveis ao populismo nacionalista e àstendências racistas e anti-semitas. Um dos maio-res desafios da globalização é conferir a estas fal-sas alternativas uma forte recusa.

IHU On-Line – Como caracterizaria a socie-dade na qual o grupo Krisis aposta?Robert Kurz – Infelizmente, tenho que dizer queo grupo crise (Krisis) vigente até agora, não maisexiste. O grupo se desfez, porque havia divergên-cias sobre a crítica do Iluminismo social e a forma

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de sujeito moderna masculina. A respeito disso,algumas pessoas queriam ter o mérito de nossapolêmica. A maioria da até agora atual redação deKrisis publica uma nova revista teórica chamadaEXIT!. Tais quebras já conhecemos da história dosesquerdos. Ao que parece, eles não se deixam in-timidar pelas novas exigências. Uns ficam para-dos, outros vão adiante, mas isso não muda nadano caráter social da iniciativa. O novo grupo tam-bém é uma associação livre para a teoria críticafora das instituições acadêmicas. Nós não somos,

no sentido dogmático da palavra, antiacadêmi-cos, mas também contamos com pessoas do servi-ço institucional de ciências. Trata-se de saber se selevará a crítica emancipatória para as universida-des. Isso só será possível mediante uma posiçãoindependente institucional, e não só de conteú-dos. Talvez isso seja o futuro das reflexões críticasintelectuais, a saber, a auto-organização em gru-pos autônomos, os quais se desliguem das tutelasburocráticas.

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Pensar outras formas de produção e consumo

Por Anselm Jappe

Anselm Jappe fez parte do grupo Krisis. NoBrasil, a circulação das idéias do grupo está asso-ciada a Robert Kurz, autor do livro, já clássico, OColapso da Modernização. Paz e Terra, 1992,e um dos editores, até recentemente, da revistaKrisis que propõe uma análise da sociedade con-temporânea em relação à crítica do valor, do siste-ma produtor de mercadorias e seus fetiches. Parao grupo Krisis, a “crise da sociedade do trabalho”,o estado crítico do “capitalismo global de cassino”,as “bolhas do capital financeiro fictício” e a “honraperdida do trabalho” colocam o mundo na encru-zilhada: acirramento da barbárie de um modelosocioeconômico de privações ou sua superação.Aqui reside a importância do Brasil. Para Jappe, oBrasil pode ser o país do futuro “se considerarmossua potencialidade para sair do capitalismo indus-trial e para caminhar em direção a uma sociedadeem que os meios criados pela humanidade não sir-vam mais para mover uma máquina que gira emvão, mas para satisfazer as necessidades e desejoshumanos”. Anselm Jappe é autor do livro, entreoutros, Guy Debord. Petrópolis: Vozes, 1999. Oartigo, a seguir, foi escrito, em italiano e traduzidopela IHU On-Line.

A miséria e o desemprego se espraiam pelomundo afora e se difunde, cada vez mais, a sensa-ção de que vivemos numa época de crise contínuae aguda. Entretanto, nem sempre se leva em contaum fato tão fundamental quão elementar: não sãoas capacidades produtivas que estão em crise.Pelo contrário, se produz muito mais do que seusa, e se jogam, literalmente no mar, os “exceden-tes” alimentares. O que efetivamente está em criseé o mecanismo de mediação, representado pelodinheiro: no capitalismo, se produz somente aqui-

lo que pode ser transformado em dinheiro, o queé vendido no mercado, caso contrário se abando-na a produção, por mais útil que ela possa ser; esomente quem consegue transformar a sua for-ça-trabalho em dinheiro pode aceder aos produ-tos disponíveis, caso contrário permanecem inuti-lizados. Não se quer, então, grandes projetos utó-picos para imaginar outras formas de consumo ede produção: o importante seria uma produçãovoltada para a satisfação das necessidades sociais,e não para satisfazer a cega necessidade do siste-ma baseado sobre o valor, sobre a mercadoria esobre o dinheiro de crescer continuamente. Preci-saríamos de uma produção que se preocupe comos conteúdos ao invés da auto-reprodução tauto-lógica de uma forma vazia: o valor como repre-sentação fictícia do trabalho passado. É evidente,porém, que seria inútil dar conselhos aos gover-nos de como chegar a isso. Na sociedade da mer-cadoria, o Estado não pode ter outra função que ade garantir o mínimo de coesão sem a qual estasociedade, baseada sobre a concorrência, se dis-solveria imediatamente numa guerra de todoscontra todos. Qualquer governo, independente-mente das suas intenções, deve, necessariamente,buscar garantir a valorização do capital e tornar-seescravo dos “mercados”. A estrada da emancipa-ção social não pode passar pela tomada do poderou a conquista do Estado. Este, de qualquermodo, se reduziu quase que inteiramente a umacarcaça vazia. A emancipação social deve passarpor uma longa estrada, feita de múltiplas expe-riências de auto-organização e de reapropriaçãodireta dos recursos materiais e imateriais, lá ondevale a pena. Não se trata mais de pedir “postos detrabalho”, mas de reivindicar o direito de todos auma vida boa, já que os pressupostos para isso es-

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tão dados: o direito de não morrer de sede emmeio à água. A recusa do trabalho não significa,certamente, uma recusa da atividade. Absoluta-mente não se trata disso, mas o contrário: muitasvezes, é a própria sociedade baseada sobre o tra-balho que impede as atividades sensatas, porexemplo, quando o mercado mundial constringemilhões de agricultores no mundo a abandonar osseus campos, porque não são mais “rentáveis”. Arecusa do trabalho não significa igualmente a ex-pectativa de um duvidoso paraíso tecnológico,onde ficaremos olhando somente as máquinastrabalhando no nosso lugar. Significa, sim, nãoaceitar mais que a própria existência dependa davenda da própria força-trabalho, uma venda queprescinde de toda e qualquer consideração doconteúdo do trabalho e que todos devem tentar,mesmo quando esta força-trabalho não é mais re-querida pelos processos produtivos. Na verdade,é a própria sociedade do trabalho, reduzindo,cada dia, o trabalho necessário e declarando paraa maior parte dos seus súditos que ela não maisnecessita dos seus serviços, que trabalha para aabolição da sociedade do trabalho. Uma saídaemancipatória desta situação é possível, mas nãoestá, absolutamente, garantida. Certamente, ossindicatos e os partidos tradicionais de esquerdanão compreenderam esta situação. Isso quandochegam, em muitos casos, a se vender ao “realis-mo” neoliberal, sonhando, no melhor dos casos,com um impossível retorno de um idealizado wel-

fare state (estado de bem-estar social) de trintaanos atrás. Certamente, no Brasil, essas nostalgiassão mais absurdas que em outras partes do mun-do. Pois aqui o capitalismo nunca funcionou nasua forma “clássica”, como integração da popula-ção inteira no ciclo de uma produção maciça e deum maciço consumo de mercadorias. Toda teoriado “desenvolvimento”, que quer introduzir comtrinta anos de atraso aquilo que não funcionounem nos países mais “ricos”, está condenado à fa-lência. Talvez, nisso resida também a chance parao Brasil: ele não deve, necessariamente, passarpor todo o ciclo capitalístico12. Em muitas regiõesdo País, existem ainda tradições pré-capitalistasque nos seus aspectos positivos – por exemplo aconfiança no trabalho ou no espírito de comuni-dade –, poderiam desenvolver um papel emanci-patório. A idéia bizarra que se vive somente paratrabalhar e acumular dinheiro parece estar menosenraizada nas cabeças das pessoas no Brasil doque nos países mais “avançados”. Até que as mu-danças sociais não sejam imediatamente mundia-is, a grandeza do Brasil e as suas riquezas naturaispodem garantir que as tentativas de construir umasociedade diferente não sejam abafadas pelaeventual hostilidade do mundo circunstante. E sese acredita que a campanha e a agricultura devemdesenvolver um papel de primeira grandeza naconstrução de uma sociedade emancipada, entãoo Brasil será uma terra eleita para uma talconstrução.

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12 Esta idéia o autor defende de maneira mais ampliada no relato de uma viagem pelo Brasil e que foi publicado na CartaCapital, 26-4-2000. Esse relato pode ser consultado também no boletim Cepat Informa n. 61, p. 21-29, de 2000.

O desemprego em massa.

O direito à vida não passa mais pelo trabalho assalariado

Entrevista com Paolo Virno

Paolo Virno é filósofo e professor na Univer-sidade da Calábria (Itália). Foi militante nos anos1970 na autonomia operária. Esteve preso duran-te três anos, processado com Antonio Negri, acu-sado de pertencer a uma organização terrorista.Foi absolvido. Paolo é autor de vários livros, entreos quais destacamos: Gramática de la Multi-tud. Buenos Aires: Colihue, 2003; El RecuerdoDel presente. Buenos Aires: Piados, 2003.

IHU On-Line – O que significa estar na erado desencanto? De que maneira o trabalhoe o desemprego contribuem para essa era?Paolo Virno – Quais são os principais requisitosrequeridos aos trabalhadores hoje? Que sejam ca-pazes de mudar rapidamente, prontamente seadaptando a novas regras, que sejam capazes deacompanhar as mais bruscas reconversões produ-tivas, que renunciem a qualquer tradição estável.Atenção, esses requisitos não são o fruto do disci-plinamento industrial, mas, o resultado de umasocialização que tem o seu baricentro fora do tra-balho, modelada pela mudança repentina de usose costumes, pela permanente mudança das for-mas de vida. Pode-se fazer a hipótese que a “pro-fissionalidade” efetivamente requerida no novolugar de trabalho consiste precisamente nos dotesque se adquirem durante uma prolongada perma-nência num estágio pré-lavorativo ou precário. Naespera de um trabalho, aqueles talentos generica-mente sociais são desenvolvidos como também ohábito de não contrair práticas duráveis que, umavez adquiridas, serão, depois de encontrado o em-prego, autênticas algemas. A atual organização do

trabalho conta com aquela forma de subjetividadeque, no passado, era definida como “nihilística”:uma subjetividade na qual predominam a incerte-za das expectativas, variabilidade das colocações,identidades frágeis, desenraizamento, etc. Assim,a globalização faz com que o trabalho seja imbuí-do por sentimentos de desencanto: oportunismo,cinismo, medo.

IHU On-Line – Vivemos numa sociedadeque engendrou milhões de desempregados,além de condições muito precárias paraaqueles que estão trabalhando. Que sinaisde alternativas o senhor vê para humaniza-ção do mundo do trabalho?Paolo Virno – Creio que estamos vivendo umacrise geral da sociedade do trabalho. Esta crisenão coincide com uma contração linear do tempode trabalho como acreditam Gorz e Rifkin. Con-siste, mais precisamente, no fato de que hoje a ri-queza social é produzida, sobretudo pela ciência,pela informação do saber em geral. Não mais, oumuito menos, pelo trabalho feito pelas pessoassingularmente. No entanto, este termo continuavalendo como parâmetro do desenvolvimento eda distribuição da renda. O tempo de trabalho é aunidade de medida vigente, mas não mais verda-deira. Poderíamos dizer o seguinte: a superaçãoda sociedade do trabalho acontece, cada vezmais, nas formas prescritas do sistema social, ba-seado sobre o trabalho assalariado. O tempo emexcesso, ou seja, uma potencial riqueza, se mani-festa como miséria: desemprego estrutural (provo-cado pelos investimentos, não pela sua falta), ili-

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mitada flexibilidade no emprego da força-traba-lho, proliferação de hierarquias, etc.A crise da sociedade do trabalho implica que todaa força-trabalho contemporânea pode ser descritacom as categorias com que Marx analisou o “exér-cito industrial de reserva”, ou seja, o desemprego.Marx entendia que o “exército industrial de reser-va” podia ser subdividido em três tipos: fluido(hoje o chamaríamos de turn-over, aposentado-rias antecipadas, etc.), latente (lá onde, a qualquermomento, pode ser introduzida uma inovaçãotecnológica que dispensa o emprego), estagnada(nos termos atuais: trabalho precário, atípico, etc.)E hoje, fluida, latente ou estagnada é a classe ope-rária empregada como tal. Não há mais nenhumalinha divisória entre trabalho e não-trabalho.

IHU On-Line – No Brasil, o Presidente Lulaprometeu, na campanha eleitoral, a criaçãode 10 milhões de empregos, no entanto, odesemprego aumenta mais que no governoanterior, que não era de esquerda. Até queponto pode ser resolvido o problema do de-semprego no estado-nação na época da glo-balização, por mais que se tenha um gover-no de esquerda?Paolo Virno – Tenho admiração por Lula. Masnão acredito que seja possível refazer etapas jápassadas do desenvolvimento capitalista: não sepode, por exemplo, querer refazer a época do ple-no emprego, ou seja, a época do fordismo e dokeynesianismo. O que está em jogo, hoje, é o es-gotamento do trabalho assalariado e não o seuaumento. O desemprego de massa coloca o pro-blema do “direito à vida”, que não passa maispelo trabalho sob as ordens de um patrão, parce-lado e repetitivo.

IHU On-Line – Por que é importante enten-der o conceito de multidão para poder fazeruma leitura da sociedade contemporânea.Que lugar tem o trabalho na sociedade dos“muitos”?Paolo Virno – As formas da vida contemporâneaatestam a dissolução do conceito de “povo” e arenovada pertinência do conceito de “multidão”.Esses dois conceitos, que emergem como pedrasangulares no grande debate a partir do século

XVII, donde descende boa parte o nosso léxico éti-co-político, se colocam hoje como antípodas. O“povo” tem uma índole centrípeta, convergenuma volonté générale, é a interface ou o reflexodo Estado; a multidão é plural, não se deixa abar-car pela unidade política, não estipula pactos nemtransfere direitos ao soberano, recalcitra em obe-decer, se inclina por formas de democracia não-representativa. Na multidão, Hobbes individuou amáxima insídia para o aparato estatal, “os cida-dãos, então se rebelam contra o Estado, são amultidão contra o povo” e Spinoza viu nela a raizda liberdade. Desde o século XVII, quase sem ex-ceção, prevaleceu incondicionalmente o “povo”.A existência política dos muitos como muitos foiexpulsa do horizonte da modernidade: não so-mente pelos teóricos do Estado absoluto, mastambém por Rousseau, pela tradição liberal, pelopróprio movimento socialista. Hoje, no entanto,as multidões retornam com força, caracterizandotodos os aspectos da vida associada: costumes ementalidades do trabalho pós-fordista, paixões eafetos, modos de entender a ação coletiva. Quan-do se constata este retorno, é preciso evitar ummal-entendido. Não é que a classe operária se ex-tinguiu para dar lugar aos “muitos”, pelo contrá-rio, o caso é bem mais complicado e interessante:os operários, permanecendo como tais, não têmmais a fisionomia do povo, mas exemplificam per-feitamente o modo de ser da multidão. Precários,desempregados, trabalhadores flexíveis, todoseles, me parece, podem ser concebidos como“muitos” irredutíveis a uma Unidade (partido,Estado, soberano). A multidão contemporânea éuma rede de singularidades. Cada um dos “mui-tos” se caracteriza por aquilo que ele tem de únicoe irrepetível na sua existência individual, mas, aomesmo tempo, ele é correlato, intimamente, comos outros “muitos”. Nesse sentido, me parece efi-caz uma expressão de Marx: indivíduos sociais.Tanto mais “indivíduos”, quanto mais “sociais”.

IHU On-Line – O que significa “necessita-mos praticar uma desobediência radical”?Como o senhor a tem praticado em sua vidae que conseqüências isso lhe trouxe?Paolo Virno – A “desobediência civil” represen-ta, talvez, a forma basilar de ação política da multi-

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dão, contanto, porém, que ela seja emancipadada tradição liberal na qual foi encapsulada. Não setrata de não respeitar uma lei específica porque in-coerente e contraditória com outras normas fun-damentais, por exemplo, com a carta constitucio-nal: em tal caso, de fato, a desobediência seria otestemunho de uma lealdade ainda mais profundaao comando estatal. Ao contrário, trata-se de co-locar em questão a própria faculdade de coman-dar do Estado, aquela obrigação de obedecer an-tes mesmo de saber que coisa nos será ordenado.Em outras palavras, é preciso estraçalhar aquele“monopólio da decisão política” que o Estado re-presenta (a definição é de Carl Schmitt). A multi-dão é “antimonopolítica” e, precisamente porisso, desobediente. Quanto a mim, passei trêsanos na prisão, no início dos anos 1980, acusadode “associação subversiva”. Era, porém, um pe-ríodo diferente: mais que “desobediência radical”se tratava, então, de “revolução política”. Portan-to, a desobediência toma o lugar da revolução, jáque o problema não é a “tomada do poder”, masa sua dissolução.

IHU On-Line – Como imagina os próximosanos de nossas sociedades em relação com asua organização política, a conquista da paz,o papel e o lugar que ocupará o trabalho?

Paolo Virno – Espera-nos um terrível período detransição, semelhante, em muitos sentidos, ao doséculo XVII. Uma transição na qual serão construí-das novas instituições internacionais e será refun-dada, por inteiro, a teoria política. O movimentoglobal, a partir de Seattle, exprime muitas caracte-rísticas do trabalho pós-fordista, mas sem conse-guir, no momento, incidir sobre as relações de for-ça. É este o ponto crucial: que formas de luta e quemodelos organizativos para o trabalho precário,intelectual e flexível?

IHU On-Line – Poderia ou deveria a univer-sidade ser um lugar privilegiado para expe-rimentar formas novas de organização so-cial, para ler e entender a multidão, paraapresentar novas definições do trabalho?Paolo Virno - Se é verdade que a ciência, a infor-mação, o saber se tornaram a principal força pro-dutiva, é claro que as universidades são um centronevrálgico de luta política. Elas constituem aquiloque Marx chamava o general intellect, o “intelectogeral” da sociedade. Mais que lugar privilegiadodo pensamento crítico, as universidades represen-tam um componente decisivo da moderna coope-ração produtiva. Não se trata tanto de elaborarnovas definições de trabalho, mas de se organiza-rem como um setor estratégico da “fábrica social”e como intelectualidade de massa diretamenteprodutiva.

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“Nunca esteve tão longe a distância entre

o País que podemos ser e o País que somos”

Entrevista com Márcio Pochmann

Márcio Pochmann é professor do Departa-mento de Política e História Econômica do Institu-to de Economia da Unicamp. Ele é bacharel emCiências Econômicas, especialista em CiênciasPolíticas pela Associação de Ensino Superior doDistrito Federal e em Relações de Trabalho pelaUniversidade de Bologna, na Itália, doutor emEconomia pelo Instituto de Economia da Uni-camp, com a tese Políticas do Trabalho e de Ga-rantia de Renda no Capitalismo em Mudança. Pu-blicou os livros: Políticas do Trabalho e de Ga-rantia de Renda – O capitalismo em mudan-ça. São Paulo: Editora São Paulo, 1995; Traba-lho sob fogo cruzado. São Paulo: Contexto,1999; e-trabalho. São Paulo: Publisher Brasil,2002; Desenvolvimento, trabalho e solidarie-dade. São Paulo: CES, 2002. É um dos organiza-dores do recém-lançado Atlas da Exclusão So-cial. Volume 3: Os ricos no Brasil. São Paulo:Cortez, 2004.

IHU On-Line – O Governo atual está com osmais altos índices de desemprego. Trata-sede uma questão de conjuntura, ou de algomais profundo que o próprio Governo nãoestá sabendo decifrar?Márcio Pochmann – De fato, estamos com umacrise estrutural de emprego no Brasil que foi adi-cionada por elementos de ordem conjuntural.Desde inícios dos anos 1990, o desemprego estácrescendo no Brasil, agravado pelas opções doGoverno atual. Há para mim três motivos: o pri-meiro é a ausência de crescimento econômico.Estamos completando quase 25 anos sem cresci-mento econômico sustentável. Precisaríamos es-

tar crescendo de 5 a 6% ao ano para poder abriralgo como 2 milhões e trezentos mil postos de tra-balho a cada ano, que é o equivalente ao númerode pessoas que ingressam no mercado de trabalhopor ano. Como de 1981 até o ano passado, cres-cemos em média 2% ao ano, temos a geração deexcedente de mão-de-obra. O segundo motivo dizrespeito a uma redução na participação dos salá-rios na renda nacional. Em 1980, essa participa-ção era equivalente a 50%. De todo o ProdutoInterno Bruto (PIB) brasileiro, 50% eram forma-dos de salários. Em 2002, o último dado que te-mos, a participação dos salários na renda nacionalera de 36%. O que significa essa queda? Significauma maior pressão da classe trabalhadora, objeti-vando elevar ou compensar o efeito dessa quedade renda. Temos uma pressão muito grande deaposentados. Eles são 6 milhões que, embora es-tejam aposentados, não abandonam o mercadode trabalho, e isso dificulta o ingresso de jovens,por exemplo. Temos também um aumento consi-derável nas horas extraordinárias. Em 2002, tive-mos 31 milhões de trabalhadores com jornadasacima de 44 horas semanais. Temos menos pes-soas trabalhando mais, o que, obviamente, reduza jornada de trabalho de indivíduos ou até deixaalguns sem emprego. Esses 31 milhões com jorna-das além das 44 horas semanais estariam tirando7 milhões de postos de trabalhos que não estãosendo ocupados, por causa das horas extras. E te-mos 5 milhões de crianças e adolescentes que, emtese, não deveriam estar trabalhando, mas, porforça certamente da baixa renda, terminam bus-cando uma forma de ajudar a família. Tudo issoconstitui essa queda na renda do trabalho. A ter-

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ceira razão diz respeito à forma com que o Paístem se inserido na economia mundial. O Brasilestá transformado num país de especialização ematividades de baixo conteúdo tecnológico e redu-zido valor agregado. Por meio do agronegócio, oBrasil está se especializando, por exemplo, emsuco de laranja e outras atividades que utilizampouca mão-de-obra e têm baixo valor agregadotecnológico, de tal forma que esse tipo de inflexãona economia mundial é pouco geradora de em-prego e os que gera são precários.

IHU On-Line – Qual é a saída que o senhor vêpara cada um desses três fatores que assina-la como responsáveis pelo desemprego?Márcio Pochmann – Em primeiro lugar, o Brasilnão tem um projeto de desenvolvimento nacio-nal. Não se sabe para onde vai. Se nós vamoscontinuar operando dessa maneira ou se vamosfortalecer setores que são intensivos em tecnolo-gias, por exemplo, que melhorariam a inserção doPaís na economia mundial. Existem países comoa China, como a Índia, como a Coréia e como aIrlanda que alteraram a sua participação na eco-nomia mundial, sobretudo porque se concentra-ram em setores que são mais competitivos e ge-ram maior valor agregado, que são setores intensi-vos em tecnologia. Nesse sentido, a constituiçãode um projeto de desenvolvimento precisa levarem consideração as oportunidades que a econo-mia global abre e lamentavelmente não temosaproveitado isso. O segundo aspecto diz respeito aum choque distributivo que precisaríamos ter. Nósprecisaríamos de uma reforma tributária que sig-nificasse a tributação dos ricos e não dos pobrescomo temos atualmente. Os impostos no Brasiloneram fundamentalmente os pobres. Os ricosnão pagam impostos. Isso é um problema refor-mista. A proposta que o governo chamou de re-forma tributária tinha como um dos seus objetivosintroduzir um imposto único de 4%, o qual não foinem discutido, foi descartado. E ao mesmo tempoé absolutamente fundamental avançarmos nosprogramas de transferência de renda sobretudopara a juventude, filhos dos pobres, que não temoutra alternativa que não seja aumentar a escola-ridade, completar o ensino médio, abandonar a

entrada imediata no mercado de trabalho. Issosignifica transferência de renda para que, de fato,eles possam completar o ensino médio, um pro-grama como bolsa-família que garanta renda paraos 4 milhões de jovens que estão fora do ensinobásico e fundamental. Passar renda de quem tempara os que não a têm.

IHU On-Line – Fala-se em redução da jorna-da de trabalho como saída, de fato menospessoas estão cada vez trabalhando mais ho-ras. Que saída haveria para essa situação?Márcio Pochmann – No caso da redução da jor-nada de trabalho, acho que é um componente im-portante, inclusive, na agenda da luta dos traba-lhadores. O primeiro passo a ser dado certamenteé a contenção das horas extras. As empresas, emgeral, pagam já o adicional à hora normal, quan-do se trata da hora extra, então ou se aumentadrasticamente o custo da hora extra, fazendo comque esse custo a mais não seja transferido para otrabalhador, e sim para um fundo que ajudasse afinanciar quem não está sendo contratado, por-que os que trabalham fazem horas extras. Da for-ma como existe a hora extra atualmente, no Bra-sil, o empresário não precisa contratar imediata-mente alguém, porque ele paga um pouco mais àpessoa que está trabalhando: interessa ao traba-lhador e à empresa, mas prejudica aqueles que es-tão sem trabalhar. Eu penso que devem ser tribu-tadas drasticamente as horas extras, só que essatributação adicional iria para um fundo público, enão para o trabalhador. Essa forma desestimula-ria, mas não as evitaria, porque como diz o nomeé hora extraordinária para algo eventual, e nãodeveria ser considerada uma cultura como acon-tece atualmente.

IHU On-Line – Que relações poderíamos es-tabelecer entre o desemprego e a precariza-ção do trabalho no Brasil e as relações doGoverno com o Fundo Monetário Interna-cional (FMI)?Márcio Pochmann – Certamente há uma rela-ção direta, porque os parâmetros estruturais dapolítica macroeconômica não foram alterados. Hábasicamente uma continuidade. Há alterações

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nos detalhes, mas não na essência da política ma-croeconômica, justamente aquela que acredita sero papel do setor público residual na orientaçãodas atividades econômicas em geral. Obviamenteque esse esvaziamento do papel do Estado está di-retamente ligado ao perfil dos postos de trabalhoque são gerados no Brasil. Entre 1992 e 2002,70% das oportunidades de trabalho que foramabertas, estavam associadas a quatro tipos de ocu-pações: trabalho doméstico, trabalho ambulante,trabalho de asseio e conservação e trabalho de se-gurança, ocupações que não demandam grandeescolaridade nem recebem grande remuneração.São muito precárias, em sua maioria à margem dosistema de proteção social ou trabalhista.

IHU On-Line – Que novos empregos pode-riam e deveriam ser criados urgentemente noBrasil? Por que isso não aconteceu ainda?Márcio Pochmann – Não aconteceu e nem vaiacontecer se a economia não voltar a crescer. Ogoverno podia ter tomado a iniciativa de ampliar,por exemplo, o seguro-desemprego, que seriauma forma de, se não aumentar o nível de empre-go, pelo menos evitar que os desempregados ti-vessem um rebaixamento drástico no seu padrãode vida. Outra medida importante seria um gran-de programa de transferência de renda para pes-soas desempregadas de longa duração, associadoà capacitação prática e teórica. Um programapara mais ou menos 2 milhões de pessoas seriaum passo importante do ponto de vista de estimu-lar a economia e garantir algum nível de ocupaçãopara essas pessoas, especialmente me refiro aoEstado, porque o setor privado não tem capacida-de de antecipar gastos, quando não há sinais derecuperação da economia. Por outro lado, tam-bém seria necessário um ajuste drástico no pro-grama Primeiro Emprego que se volta principal-mente para os jovens, mas as opções que se toma-ram para constituí-lo, lamentavelmente não apon-tam para esse sentido.

IHU On-Line – Que possibilidades e que ris-cos o senhor vê nas reformas sindical e traba-lhista que estão na agenda do Governo Lula?

Márcio Pochmann – Trabalho com a hipótesede que o curso das reformas são justamente parafortalecer as entidades de representação de inte-resses de desempregados e empregadores, por-que, do contrário, seria um equívoco, um enfra-quecimento das instituições, já que elas são sus-tentáculos da democracia e um país como o Brasil,que não tem experiência democrática, seria extre-mamente grave enfraquecer ainda mais as institui-ções que representam interesses dos trabalhado-res. A minha grande incógnita é que a perspectivada reforma sindical e trabalhista não aponte paraum projeto nacional de desenvolvimento. A Con-solidação das Leis Trabalhistas (CLT) é uma leiconstituída, tendo em vista um projeto de desen-volvimento do País, que era a industrialização e aurbanização nacional. A CLT normatiza o trabalhoassalariado, que, nos anos de 1930-1940, era resi-dual no Brasil, no setor urbano. A principal ocupa-ção não era assalariada e estava no campo. O quehouve foi o compromisso do País em constituir achamada sociedade salarial, quando ainda o tra-balho assalariado era minoritário. A CLT hoje temvárias décadas de existência, e o assalariamentocontinua como foi. A CLT, se fosse instituída antesdos anos de 1930, provavelmente não teria a efi-cácia que teve, porque o modelo econômico eradesfavorável ao assalariamento. O que está faltan-do na discussão sobre a reforma sindical e traba-lhista é isto: Que tipo de projeto de país nós quere-mos para as próximas cinco décadas? Qual vai sero centro do trabalho? Vai ser trabalho assalariado,autônomo, cooperativo? Isso não está claro. Vaihaver uma mudança que é basicamente interessede assalariados. Hoje a cada dois ocupados um éassalariado. Outros são autônomos, e esse seg-mento não tem representação.

IHU On-Line – José Genoino, ao afirmar queo rumo da política econômica do governonão vai mudar, não estaria matando as es-peranças da representação desses setores?Márcio Pochmann – Com certeza, o Governofederal dá demonstrações de que ele está conven-cido de que, aplicando a mesma política econômi-ca do governo anterior, pode obter resultados di-ferentes. Entendo que será algo inédito se isso

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ocorrer. Estamos condenados a colher resultadosque já sabemos quais são.

IHU On-Line – O que deveria mudar urgen-temente nas universidades para que sejaminstituições que não se conformem em prepa-rar pessoas para o mercado de trabalho, e simquestionem mais esse mercado que expulsapessoas e proponham outras alternativas?Márcio Pochmann – Eu entendo que a socieda-de brasileira, de uma maneira geral, está inconfor-mada com o País que nós temos hoje. Celso Fur-tado disse que nunca esteve tão longe a distânciaentre o País que podemos ser e o País que de fatosomos. O papel da universidade, entre outros, é ode conhecer melhor a realidade brasileira e ofere-cer uma melhor avaliação do Brasil nas suas maisdiferentes áreas de conhecimento. O primeiropasso para transformar a realidade é conhecê-la.Este é o compromisso da universidade: oferecerindicadores que permitam conhecer a realidade,para que o universitário, que tem acesso ao co-nhecimento, possa ajudar a transformar o País.

IHU On-Line – A reforma sindical e trabalhis-ta é algo imperioso para a nossa realidade?Márcio Pochmann – O que há, de concreto, éum projeto de lei por parte do Governo Lula, indi-cando, apenas e tão-somente, a temática do âm-bito sindical. Não há nada sobre a questão traba-lhista de maneira geral, embora o Lula, aindacomo candidato, tenha estabelecido como metado seu governo uma reforma sindical e trabalhis-ta, que seria originária de uma ampla discussão,por intermédio do Fórum Nacional do Trabalho.Ocorre que, nesses dois anos do seu governo, eleconseguiu apresentar um projeto de lei tão-so-mente na questão sindical, porque optou por divi-dir a reforma em duas partes: uma primeira seria areforma sindical, e a outra, uma reforma trabalhis-ta. Tenho dúvidas se esse projeto deverá ser obje-to de votação, em função, inclusive, da situaçãode fragmentação da base do governo. Do pontode vista operacional, não há um projeto de refor-ma sindical e trabalhista, embora essa questão,desde a transição do regime autoritário para o de-mocrático, tenha sido, constantemente, objeto de

discussão e polêmica. Eu, particularmente, partodo pressuposto de que já houve uma reforma sin-dical e trabalhista “branca”, digamos assim:, umareforma que foi feita via mercado. Por conta disso,a proposição da reforma sindical e trabalhista ter-minou sendo um desafio, se de fato seria uma re-forma do ponto de vista formal, à consolidaçãodaquilo que hoje já é uma prática verificada nomercado de trabalho, inclusive pela forma comque operam as representações de interesses sindi-cais no Brasil, sejam patronais ou trabalhadores,ou se, de fato, seria uma reforma que apontassepara um sentido diferente daquilo que já está emcurso no Brasil. Se verificarmos hoje como são asrelações de trabalho, elas pouco podem ser com-paradas com o que eram as relações de trabalhono início dos anos 1980, por exemplo.

IHU On-Line – Considerando a ocorrênciadessa reforma “de mercado”, quais seriamas mudanças que se colocariam comodesejáveis?Márcio Pochmann – Precisaríamos trabalharcom uma reforma inclusiva, porque as proposi-ções que estão em amplo debate, representamuma tentativa que vai em dois sentidos. De umlado, do ponto de vista mais do sindicato dos tra-balhadores, pelo menos daqueles que defendem areforma, porque existem os que são contra qual-quer mudança, há a tentativa de uma volta aopassado, de reforçar as relações de trabalho assa-lariadas, já que essas são as bases do chamadonovo sindicalismo, que é uma experiência do sé-culo XX, ou seja, temos representações de traba-lhadores que são empregados, subordinados, porempresas. De outro lado, temos uma visão maisconservadora ou liberal-conservadora, que apon-ta para um ambiente de desregulamentação domercado de trabalho, com a tentativa de flexibili-zação da CLT para baixo, uma vez que a CLT éuma espécie de linha de proteção à exploração dotrabalho. Ela estabelece um limite mínimo no quediz respeito a direitos trabalhistas, mas possibilitaque sejam flexibilizados direitos para cima. Espe-cificamente, quero dizer o seguinte: a legislaçãotrabalhista define 44 horas semanais, mas não im-pede que haja jornada inferior a isso, desde que

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atenda ao âmbito dos demais direitos, como salá-rio, etc. O que a CLT impede é uma flexibilizaçãopara baixo, isto é, direitos trabalhistas inferioresaos por ela estabelecidos. Isso significa dizer que,se essa visão fosse estabelecida, e houve tentati-vas nesse sentido, inclusive durante o governoFernando Henrique, com o objetivo de flexibilizara CLT, possibilitaria que os direitos trabalhistasfossem suprimidos via negociação coletiva, fazen-do quase que letra morta à própria CLT. Essas sãoas duas visões. A minha preocupação fundamen-tal é em relação a um projeto de país, porque aquestão do trabalho, seja na representação dos in-teresses dos atores sociais, seja na regulação domercado de trabalho, está diretamente relaciona-da a um projeto de País.

A CLT foi portadora de uma visão es-tratégica de futuro

A própria CLT, quando foi constituída, em1943, fruto de várias medidas legais que ocorre-ram anteriormente, é um código de trabalho paraas relações de trabalho assalariadas. O que havianos anos 1930 e 1940 é que, a cada dez ocupadosno Brasil, menos de dois eram assalariados. Entãoa CLT foi feita para um segmento ínfimo naquelemomento. Mas como o Brasil tinha um projeto dedesenvolvimento, que era a urbanização, a indus-trialização, o avanço do emprego assalariado, aconstituição de uma sociedade salarial, a CLT seconsolidou, ao longo do tempo, porque continhauma visão estratégica de futuro. As novas formasde trabalho, a ocupação, passaram necessaria-mente pelo emprego assalariado, cuja base da re-gulação era a CLT. Então, ela foi portadora deuma visão de futuro.

Qual é o projeto de país para os próxi-mos 30 anos?

O que nos falta, neste momento, e eu já fizesse questionamento a vários ministros, é saberqual é o projeto de país para as próximas três ouquatro décadas. Quando estamos tratando de al-

terar o marco regulatório do mercado de trabalho,precisamos olhar não para o ano e nem tendo emvista o que ocorreu nos últimos 15 anos. Precisa-mos olhar o Brasil dos próximos 30 anos. QueBrasil nós queremos? Que tipo de ocupação vaiser fortalecida? É assalariada, autônoma, são no-vas formas de ocupação? Portanto, a legislaçãoprecisaria prever isso, para ela ser portadora dofuturo. Do contrário, nós corremos o sério risco defazer reformas pontuais, modificações constantes,todos os anos, porque a regulação do mercado detrabalho não está tendo essa contribuição estraté-gica. Guardada a devida proporção, é o que ocor-re na questão previdenciária. Todos os anos há re-formas no Brasil, em geral para reduzir direitos,porque não foi constituído um projeto de país, noqual estaria a questão previdenciária. Em síntese,estamos longe de uma reforma sindical e traba-lhista inclusiva que seja, em primeiro lugar, porta-dora do futuro e, em segundo lugar, capaz de darcondições de regulação do trabalho e de represen-tação de interesses para uma série de atores e tra-balhadores que estão de fora da CLT atualmente.Se analisarmos hoje, há uma expansão nas ativi-dades não-assalariadas, como, por exemplo, aagricultura familiar, que não estão submetidas àCLT. Temos um avanço considerável de trabalhoscooperativados, de trabalhos autônomos, freelan-cer, etc. que estão completamente à margem daCLT. Nesse sentido, é fundamental uma reformasindical e trabalhista que inclua todos os trabalha-dores, não somente os assalariados.

IHU On-Line – Temos como definir o que se-ria uma legislação moderna, contemplandoas mudanças no mundo do trabalho?Márcio Pochmann – Talvez se essa mesma per-gunta fosse feita nos anos 1940 para os operado-res do Direito e aqueles que estavam preocupadoscom a questão trabalhista, questionando qual se-ria o futuro do Brasil nos próximos 40 anos, nãohaveria uma resposta clara. O homem construin-do o futuro, passo a passo, em uma longa cami-nhada. O projeto de país, não se sabe, evidente-mente, como será daqui a 30 anos, mas, se hou-ver uma clareza de que precisamos ter um paísmais justo, democrático e com relações de traba-

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lho civilizadas, elas são, em primeiro lugar, regula-das pelo poder público, e não pelo mercado. Emsegundo lugar, passam por representações consis-tentes, inclusive, porque a representação de insti-tuições que representam interesses, constitui abase da democracia em um país, especialmenteno Brasil, onde não temos tradição democrática.Que medidas fortaleceriam as instituições sindicaispatronais e trabalhadoras? Quando olhamos oambiente de trabalho, um a cada dois trabalhado-res não está representado em organismos sindicais,não faz parte das relações de trabalho-empregoassalariado. O mundo caminha quase que inexo-ravelmente para relações de trabalho cada vezmais heterogêneas. O que foi objeto da constru-ção do século XX, a sociedade salarial, tem dificul-dade de se reproduzir justamente pelas enormestransformações no modo de produção capitalista:o surgimento de ocupações que se vinculam mui-to mais à concepção do que à execução, a socie-dade do conhecimento, da informação, e assimpor diante. Em última análise, uma sociedade deserviços, e não mais uma sociedade industrial.

A necessidade de um marco regulatório

Nesse sentido, trabalho com a hipótese determos um marco regulatório do mercado de tra-balho que dê conta de situações muito heterogê-neas. Quando olhamos o Brasil, percebemos queo trabalhador autônomo e o vendedor ambulantedas grandes cidades representam uma situaçãoque não vai desaparecer e possivelmente tende ase consolidar. Esse é um trabalhador que está sub-metido a uma exploração enorme. Ele trabalhalongas jornadas, tem uma incerteza de ganhos,não tem proteção social. Que estatuto do traba-lhador autônomo precisaria ser reconhecido paraque essas formas de trabalho pudessem participarda regulação pública do trabalho? A mesma coisaé a agricultura familiar. Não vai acabar, vai durarpor muito tempo e ainda absorvendo uma quanti-dade expressiva de trabalhadores, de famílias, noBrasil. Que medidas podem dar conta da prote-ção e regulação desse setor? E o mesmo ocorrecom trabalhadores cooperativados e outras for-

mas de trabalho. É fundamental constituir uma re-forma sindical e trabalhista que inclua as diferen-tes formas de manifestação do trabalho, guar-dando suas especificidades. Do contrário, é im-possível acreditar que apenas um marco regula-tório, via assalariamento, seja capaz de dar sus-tentação para situações de trabalho cada vezmais heterogêneas.

IHU On-Line – Isso implicaria a quebra daunicidade sindical?Márcio Pochmann – No meu modo de ver, nãohá unidade sindical no Brasil. O que existe é umaunidade por categoria profissional. Mas isso nãorepresenta a unicidade dos sindicatos, porque te-mos vários exemplos de pluralidade sindical noBrasil, quando olhamos a unidade produtiva, em-presa, ou ramo de produção. A Unisinos, porexemplo, tem vários sindicatos de trabalhadores,possivelmente: o sindicato dos professores, dosfuncionários, das secretárias, dos economistas,dos engenheiros, etc. Não há o sindicato único dauniversidade, seja privada, seja comunitária, sejapública. Há um equívoco, quando se diz que esta-ríamos transitando da unicidade para a pluralida-de sindical. A pluralidade já é praticada no Brasil,porque a forma de concessão da unidade é umaunicidade em que concede um monopólio de re-presentação ao sindicato por categoria profissional.Só que a base da organização laboral e produtiva épor ramo de produção. Nos ramos de produção,não temos unicidade, temos pluralidade.

IHU On-Line – O senhor está convencido deque as reformas não progredirão nessegoverno?Márcio Pochmann – Não que eu esteja conven-cido. Estou apenas trabalhando com os elementosque têm sido apresentados. O Governo federaltem uma enorme dificuldade de tocar reformasque foram concebidas no início da gestão, comofoi o caso da reforma previdenciária e da reformatributária. Estamos no terceiro ano de governo eessas reformas não foram consolidadas, assimcomo há medidas que seriam, para o GovernoLula, no seu entendimento, mais estratégicas doque a reforma sindical e trabalhista. Como é um

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tema muito polêmico, que causa enormes divi-sões sociais, temo que essa medida, esse projetode lei possa ficar para o segundo mandato, casoele venha a ocorrer. Acho difícil que ele seja apro-vado, mas não é impossível.

IHU On-Line – O senhor acha que o chama-do mundo do trabalho está preparado parafornecer subsídios e inflexões que cons-truam novas relações?Márcio Pochmann – Inegavelmente. Qualquertransição de um modelo para outro, observando arealidade internacional, são experiências que sedão pelo menos em algumas condicionalidadesque não sei se estão claras no Brasil. Olhando aexperiência de reformas sindicais e trabalhistas doséculo XX, vemos mudanças importantes na Ale-manha, na Itália e na França, após o fascismo. Fo-ram medidas tomadas imediatamente depois dosegundo pós-guerra, assim como nos anos 1950,a reforma sindical e trabalhista no Japão, e mes-mo, mais recentemente, nos anos 1970, início de1980, a transição para o regime democrático emPortugal e na Espanha, quando ocorreram refor-mas amplas, importantes. Nos anos 1980 e 1990,foram realizadas algumas reformas pontuais, esti-muladas pelas agências multilaterais internacionaisque defendem a flexibilização do mercado de tra-balho. Medidas pontuais têm sido tomadas, e, noBrasil, inclusive, isso ocorreu.

No Brasil, não há um projeto prontocom a visão de início, meio e fim

É claro que a mudança mais ampla tem difi-culdade de se estabelecer justamente porque, emprimeiro lugar, os atores apoiariam medidas nesse

sentido quando soubessem que estaria claro umprojeto amplo, que daria uma visão com começo,meio e fim. É difícil acreditar que alguém assineum cheque em branco sem saber o valor, paraque serve, e assim por diante. Percebo que, noBrasil, não há um projeto pronto com a visão deinício, meio e fim. O fato de ter sido realizado oFórum e ter saído do zero, gerou uma dificuldadede constituir um consenso. Seria muito mais im-portante que o Governo federal tivesse oferecidojá um projeto pronto, do ponto de vista de uma vi-são do todo, para que pudesse ser considerado,avaliado, modificado no interior do Fórum, paraque daí se fosse consolidando essa convergência.Não há um projeto que dê a visão do todo. Certa-mente, os atores ficam receosos em apoiar algo deque não sabem os resultados finais. Em segundolugar, o ambiente econômico sempre foi funda-mental para uma mudança ampla no sistema derelações de trabalho, porque, quando não estáconsagrado o crescimento econômico contínuo eelevado, cria a imagem de que uma reforma podegerar uma equação de soma negativa. Os traba-lhadores ou os empresários podem vir a perdercom a reforma, porque não está garantido o cres-cimento econômico. Deve ser uma equação desoma positiva, em que todos ganhem. Talvez unsganhem mais do que outros, mas não pode haverperdedores. Havendo perdedores, criam-se resis-tências e enormes dificuldades para avançar naaprovação de uma reforma desse tipo. Esses doisobstáculos são muito fortes ainda no Brasil, por-que não há uma visão do todo, uma reforma queseja portadora do futuro e, como não há um con-texto macroeconômico favorável, que viabilize lu-cros e aumentos salariais consistentes com amplia-ção do emprego, cria-se essa resistência maior en-tre os atores.

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“A reforma sindical pode servir de pretexto para

uma reforma trabalhista flexibilizadora”

Entrevista com Márcio Túlio Viana

Márcio Túlio Viana é professor do Departa-mento de Direito do Trabalho e Introdução aoEstudo do Direito na Universidade Federal de Mi-nas Gerais (UFMG). Graduado e doutor em Direi-to pela UFMG, tem sua tese intitulada Do direito deresistir. Obteve o título de pós-doutor pela Univer-sità Degli Studi Di Roma La Sapienza, da Itália, epela Università Degli Studi Di Roma Tor Vergata,também da Itália. Escreveu e organizou diversasobras, entre as quais citamos: Direito de Resis-tência: Possibilidades de autodefesa do em-pregado em face do trabalhador. São Paulo:LTr, 1996; Cartilha do Trabalhador. São Pau-lo: LTr, 2001; Processo do Trabalho Atual.Belo Horizonte: Mandamentos, 2004; Direito doTrabalho: Evolução, crise, perspectivas. SãoPaulo: LTr, 2004.

IHU On-Line – Que aspectos assinalariacomo mais polêmicos no debate da reformasindical e trabalhista?Márcio Viana – O aspecto mais polêmico, para-doxalmente, não está sendo objeto de polêmica –pois passa quase despercebido. É a possibilidadede que a reforma sindical sirva de pretexto parauma reforma trabalhista flexibilizadora, transfor-mando o legislado em negociado. Mas há outrosaspectos problemáticos da reforma sindical. Possocitar três exemplos, dentre vários outros: 1) a ex-cessiva centralização de poder nas cúpulas; 2) atransformação das organizações nos locais de tra-balho em comissões de conciliação prévia, legiti-mando renúncias dos trabalhadores, e em virtuaissindicatos de empresa, negociando diretamentecom os patrões; 3) o fechamento dos sindicatos

para a crescente diversidade da classe trabalhado-ra, que hoje inclui não só empregados, mas tam-bém estagiários, cooperativados, informais e au-tônomos (paradoxalmente) dependentes. A refor-ma sindical, porém, também contém aspectosmuito positivos. Dentre eles, destacaria as açõescoletivas e a prevenção e repressão aos atos an-ti-sindicais. Quanto à reforma trabalhista, aindaestá em início de gestação. O seu maior risco,como disse, é o de se tornar um instrumento paraaprofundar e legitimar a precarização dos direitos.

IHU On-Line – O senhor considera que a re-forma trabalhista está sendo aberta ao de-bate público ou está sendo levada dissimu-ladamente, sem muito debate?Márcio Viana – O debate sobre as duas reformastem envolvido representações expressivas de tra-balhadores e empregadores, mas deixa pratica-mente de fora os juízes, os procuradores e os ad-vogados trabalhistas, além dos segmentos excluí-dos da cidadania. Tendo em vista a proximidadedas eleições, o mais provável é que a reforma tra-balhista seja empurrada para depois, exatamenteem razão de seu provável perfil precarizante.

IHU On-Line – O senhor acha que a atual le-gislação está muito amarrada à era Vargas?Deveria se libertar das marcas dessa era?Em que sentido?Márcio Viana – A legislação sindical ainda guar-da alguns componentes daquele tempo, como oregime da unicidade (só pode haver um sindicatopor categoria na mesma base territorial), a contri-buição sindical obrigatória (o “imposto” sindical)

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e resquícios do poder normativo da Justiça doTrabalho (agora muito reduzido pela EmendaConstitucional n. 45). Esses componentes impe-dem uma plena liberdade sindical. No entanto,em certa medida, também podem ter alguns as-pectos positivos. Por isso, o ideal seria eliminá-los,mas não pura e simplesmente, e sim com a cons-trução concomitante de outros instrumentos desuporte à ação sindical – a começar da proteçãoao emprego. Quanto aos direitos individuais dostrabalhadores, previstos na CLT, têm menos a vercom o regime implantado por Vargas do que comum certo tipo de empresa (fordista) que, pouco apouco, está deixando de existir. Mas é possíveladaptar a CLT à nova empresa (pós-fordista) quesurge, embora haja limites a essa adaptação. Omaior desses limites diz respeito não aos emprega-dos, mas aos que trabalham fora do vínculo deemprego. Eles são cada vez mais numerosos econtinuam desprotegidos. Muitos deles servemexatamente à nova empresa, naquela paradoxalcondição de autônomos dependentes, a que mereferi acima. Desse modo, o maior problema daCLT não é o excesso de proteção, como se diz poraí, mas a falta dela, na medida em que não abarcao universo crescente dos que já não têm, sequer, asituação formal de explorados, expressa pela con-dição de empregados.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião do nego-ciado sobre o legislado?Márcio Viana – O negociado já prevalece sobreo legislado, quando se trata de aumentar as vanta-gens que a lei oferece ao trabalhador. Dessemodo, quando se defende essa idéia, o que sequer é permitir que a convenção coletiva reduzaos direitos previstos em lei. Em outras palavras, oplano é transformar normas imperativas em nor-mas dispositivas. E a justificativa é a de que a forçado grupo compensaria a fragilidade individual –especialmente depois que forem eliminados aque-les resíduos corporativistas. O problema é que omovimento coletivo, mesmo sendo coletivo, está

cada vez mais fragilizado. E essa crise tem razõesmuito mais profundas do que o seu passado var-guista. Dentre outros fatores, ela tem a ver com aglobalização econômica, a nova tecnologia, o fimda ameaça soviética e, sobretudo, a reestrutura-ção produtiva, que organiza a empresa em rede,fragmenta e diversifica a mão-de-obra e semeia odesemprego e o medo. Daí os limites da própriareforma sindical. Na verdade, ela parte de umapremissa falsa: a de que o sindicato está fraco,porque as normas que o regem nasceram num re-gime forte. Ora, a crise do sindicato é um fenôme-no mundial.

IHU On-Line – Alguns afirmam que a CLTtem uma inspiração fascista pela forte inter-ferência do Estado na vida dos sindicatos edos trabalhadores? O que o senhor acha?Márcio Viana – A interferência e a intervençãodo Estado na vida sindical já não existem desde1988, por força do art. 8.º da Constituição Fede-ral. Quanto aos direitos individuais, criados pelaCLT, foram e são uma intervenção necessária doEstado, para reduzir ou compensar um pouco aintervenção do mercado. Esta última intervenção,sim, é que é autocrática. A primeira é democráti-ca, e parte da constatação de que “a verdadeiraigualdade está em tratar desigualmente situaçõesdesiguais”. A propósito, também dizia Lacordai-re13 que “entre o fraco e o forte, entre o rico e opobre, é a liberdade que escraviza, é a lei queliberta”.

IHU On-Line – O novo projeto de reformatrabalhista deve estar relacionado a um pro-jeto de desenvolvimento nacional, ou emépoca de globalização essas questões cami-nham por trilhos diferentes?Márcio Viana – Sim, é preciso não só que hajaesse projeto nacional de desenvolvimento, centra-do no homem, como também que, mundialmen-te, os países se articulem para impedir o dumpingsocial14. Uma idéia sempre presente é a de inserir

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13 Henri Lacordaire (1802-1861), padre francês. (Nota da IHU On-Line).14 Prática comercial ilegal. Consiste na venda de um produto ou serviço por um preço irreal para eliminar a concorrência (Nota da

IHU On-Line).

as chamadas cláusulas sociais nos tratados comer-ciais. Outra idéia, que já vem sendo praticada, é ade sensibilizar o consumidor para que este boicoteos produtos fabricados sem atenção aos direitosbásicos dos trabalhadores e ao meio ambiente.

IHU On-Line – Como o senhor vê a idéia deredução da jornada de trabalho? É possível?Ajudaria a reconceitualizar o trabalho eabrir mais as suas portas?Márcio Viana – Sim, a redução da jornada é mui-to interessante, especialmente para abrir novospostos de trabalho. Para dar certo, entretanto, elaterá de se articular com políticas públicas. O Direi-to, sozinho, não faz mágicas. É preciso dar condi-ções para que a pequena empresa resista a essenovo impacto de aumento de custos. O ideal seriaque essa ação também se articulasse com a de ou-tros países, para manter a competitividade do pro-duto nacional.

IHU On-Line – Pensou-se que o salário va-riável, a jornada flexível e a contrataçãoprecária, gerariam mais empregos e não ge-raram. Quais as conseqüências que esseselementos provocaram nas últimas décadase como reverter a situação?

Márcio Viana – As conseqüências são múltiplas.Um exemplo: com menos poder de compra, o tra-balhador não tem como realimentar o ciclo pro-dutivo, o que acaba gerando um círculo vicioso.Outro exemplo: com o salário variável, a empresajoga o risco sobre os ombros do trabalhador, in-trojetando o próprio poder diretivo e provocando,por tabela, moléstias do trabalho, estresse e enve-lhecimento precoce. Se o salário sempre foi amoeda de troca da subordinação, agora passa aservir para acentuá-la. E nada disso, realmente,gera novos empregos, pois o que se quer é reduziros custos sempre mais. Uma empresa que precari-za as condições de trabalho é logo imitada pelasconcorrentes, o que a leva a precarizar aindamais, sucessivamente. A reversão dessa situaçãopassa por muitos caminhos ao mesmo tempo. Umdeles é o sindicato, que terá de nascer de novo,abrindo-se para a sociedade e articulando as suaslutas com as dos outros movimentos sociais.

IHU On-Line – Gostaria de fazer mais algumcomentário que julgue importante acrescentar?Márcio Viana – É importante ser pessimista nodiagnóstico, mas otimista no prognóstico. Para serotimista no prognóstico, porém, é preciso quecada um de nós, em seu pequeno mundo, trave asua pequena luta. Em alguma medida, maior oumenor, o novo mundo do trabalho e o novo direi-to que se está construindo serão o resultado denossas ações ou omissões.

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Desemprego, reformas trabalhistas e a

democratização das relações de trabalho

Entrevista com José Dari Krein

José Dari Krein é professor no Instituto deEconomia da Universidade Estadual de Campinas(Unicamp) e pesquisador do Centro de EstudosSindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), liga-do à Unicamp. Graduado em Filosofia pela Ponti-fícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), éespecialista em Relações de Trabalho, mestre emEconomia Social e do Trabalho e doutor em Eco-nomia do Trabalho. Foi um dos fundadores doCentro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores(CEPAT), de Curitiba, onde trabalhou de 1994 a1996. Desenvolve pesquisas nas áreas das relaçõesde trabalho e evolução do mercado de trabalho, te-mas sobre os quais publicou vários artigos. É orga-nizador do caderno Trabalho e educação nummundo em mudanças. São Paulo: CUT. 1997.

IHU On-Line – Como o senhor avaliaria o 8ºCongresso Nacional da CUT, do qual parti-cipou?Dari Krein – A diferença dos outros Congressosfoi que, desta vez, se discutiu política, particular-mente o debate da Reforma da Previdência, a Re-forma Sindical, a Conjuntura do Governo Lula,problemas de bastante embate e discussão nopróprio Congresso da CUT. Foi um Congresso de-terminado pelo contexto econômico e político queo País vive. A eleição de Lula é um certo divisor deáguas na trajetória do movimento sindical recen-te, e ela afeta, de uma forma bastante densa, aprópria CUT. A grande maioria das pessoas queestava lá contribuiu para a eleição de Lula. Umabase considerável dessa militância continua apos-tando, acreditando que o Governo Lula será umgoverno de mudanças, que as questões a que es-

tamos assistindo serão transitórias no sentido deenfrentar o Governo Lula, mas que há perspectivade melhora. Há uma necessidade de fazer umaanálise crítica, mas há também a necessidade depreservar Lula. Na parte mais histórica de oposi-ção e nos servidores, há um certo temor maior emrelação às reformas, particularmente na ReformaPrevidenciária. Essas discussões e temores acaba-ram se traduzindo no Congresso. Essa parte de es-querda e dos servidores dá idéia de que essas re-formas não fazem parte do ideário da esquerdabrasileira. São reformas assumidas pelo Governo,mas que não são da nossa tradição, da nossa his-tória. Esse embate esteve muito presente na CUT eestá se reproduzindo agora, pós-congresso.

IHU On-Line – Qual poderá ser o futuro daCUT?Dari Krein – Vai depender muito das discussões etambém das reformas, para sentirmos se haveráum “racha” do movimento sindical ou não, ouseja, se os servidores públicos tendem a adquirir efortalecer as suas próprias organizações com maiorautonomia e distância em relação à própria CUT.Esse embate que apareceu no Congresso não foiresolvido lá e vai continuar presente daqui para afrente na agenda. Nós podemos ter um fortaleci-mento da CUT ou um distanciamento dela em rela-ção aos servidores públicos. Aí a CUT vai perderpoliticamente uma base sindical importante.

IHU On-Line – Que reformas poderiamacontecer na questão trabalhista?Dari Krein – Eu não acredito que haja uma refor-ma trabalhista mais substancial. Deve haver uma

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reforma sindical em alguns aspectos. O ministrodo Trabalho tem feito sinalizações contraditórias,manifestado uma forma bastante dúbia, em rela-ção ao parcelamento do décimo terceiro, aoFGTS. Fala e depois desmente no dia seguinte.Não fala claramente se vai defender uma flexibili-zação dos direitos trabalhistas. No cenário atual,acho difícil que passe uma reforma de flexibiliza-ção. Há a proposição de uma mexida mais subs-tancial no sistema de representação, mas, mesmonesse aspecto, eu não sou tão otimista, achandoque vai acontecer uma reforma. Na minha opi-nião, vai haver reconhecimento do poder de con-tratação das centrais sindicais; vai haver algumamedida que amplie a possibilidade da negociaçãocoletiva e do sistema de representação, mas vãoser reformas bastante pontuais. Mesmo o fim daunicidade, não tenho certeza se passa, mas podepassar uma mudança na base de contribuição dossindicatos, se tiver articulado o fim do imposto, dacontribuição, com a introdução de uma taxa ne-gocial, há a perspectiva de ser aprovada. Eu achoque não sai uma reforma sindical e trabalhistasubstancial, pelo menos no curto prazo, do Gover-no Lula. Todo o debate ainda está para ser feito.O Fórum Nacional do Trabalho ainda não foiconstituído.

IHU On-Line – Segundo o IBGE, o desempre-go em maio atingiu os índices mais altosdesde março de 2002, quais as perspectivaspara os próximos meses?Dari Krein – Comparando, mês a mês, há umatendência mais elevada de desemprego no come-ço do ano, a taxa de abril-maio historicamentecostuma ser a maior do ano. O desemprego é umsintoma da política econômica adotada nos últi-mos anos do Governo FHC e aprofundada nessesprimeiros meses do Governo Lula. Essa políticade priorizar o combate à inflação afetou não só oemprego com essas taxas, como a renda dos tra-balhadores, que, no mês passado, com relação aomesmo mês no ano passado caiu 15%. É desas-troso do ponto de vista social. Há uma queda darenda e uma queda do emprego. Isso tem um efei-to sobre a política econômica e a retomada doemprego. Nós ainda vamos assistir, nos próximos

meses, ao desemprego, batendo recorde em rela-ção aos mesmos meses do período anterior. Anossa tendência é de continuar convivendo comtaxas de desemprego extremamente altas. Em2003, a taxa pode vir a cair no segundo semestre.E, como ela tende historicamente a cair, pode ha-ver uma melhora na perspectiva econômica a cur-to prazo, se o governo reduzir a taxa de juros, nãocomeçar a gastar mais, adotar uma política socialmais agressiva, pode vir a melhorar um pouco.Mas, a médio prazo, eu não vejo desenhada, napolítica econômica de hoje, uma possibilidade deo Lula cumprir a promessa de criar uma quantida-de significativa de empregos. Há necessidade demuitas mudanças antes disso. Esse cenário estáafetando, de forma substancial, a vida dostrabalhadores.

IHU On-Line – Para reverter a atual situa-ção, que metas viáveis haveria a curto pra-zo? A redução da jornada de trabalho seriauma delas?Dari Krein – A redução da jornada de trabalhoestá fora da pauta sindical e da pauta do governo.É uma bandeira importante para ser levada à fren-te pelo movimento sindical, até porque não seconsegue combater o desemprego só pelo cresci-mento econômico. É preciso partilhar o trabalhoútil presente na sociedade. Isso é possível comuma redução da jornada de trabalho, que é umabandeira central do ponto de vista dos trabalha-dores na perspectiva de criar uma sociedade commenor desemprego. Há uma promessa de campa-nha de Lula de redução da jornada de trabalhopara 40 horas semanais, o que é pouco ainda paraenfrentar o problema do desemprego. Teria quereduzir de uma forma mais substancial, e de umavez só. Se fizer gradualmente, causa pouco impac-to. Tem que ser de forma bruta. Espero que o mo-vimento sindical retome essa bandeira e tente co-locá-la na agenda nacional. A tendência hoje éaumentar a precarização. Para reverter o desem-prego a curto prazo, a retomada do nível da ativi-dade econômica ajuda, mas não é suficiente. Umamedida que poderia ser feita é alocar as pessoasnuma série de atividades sociais locais, importan-tes para o bem comum da sociedade, na área de

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infra-estrutura e na área de políticas sociais, am-pliar as políticas sociais de uma forma extraordi-nária e, com isso, dar ocupação para muita genteem diversas áreas. Isso significaria um programapúblico, intensivo, de ampliar os serviços para acomunidade com a contratação de pessoas. Issodeve ser resolvido pelo Estado que tem um papelchave na estruturação desse processo e, a curtoprazo, voltar a inserir a bandeira da discussão dajornada de trabalho. É preciso também incentivara possibilidade de criação de microalternativaseconômicas na área da economia solidária, naperspectiva de ocupar as pessoas em uma outralógica econômica, que não seja pura e simples-mente a lógica do mercado, mas que seja baseadana relação de fraternidade. Tudo isso tem que serarticulado numa perspectiva mais geral e reorien-tar a economia e as políticas sociais e pensarnuma forma de reestrututar o mesmo projeto parao País.

IHU On-Line – Como o senhor avalia os mo-vimentos em direção à reforma sindical?José Dari Krein – O debate da reforma sindicale trabalhista está na agenda da sociedade brasilei-ra pelo menos desde o final dos anos 1970, com aemergência de um novo sindicalismo. Na décadade 1980, a tônica do debate era dada pelo novosindicalismo ou pelas forças progressistas e ela ca-minhou no sentido de democratizar as relações notrabalho e ampliar o sistema de proteção social. Oresultado desse debate está impresso na Constitui-ção de 1988 e também na ampliação do grau deregulação via convenções coletivas de trabalho.Na década de 1990, ocorre uma inflexão destedebate. Após 1994, prevalece a proposição deuma desregulamentação do direito trabalhista ede flexibilização das relações no trabalho. Nessadécada, foram tomadas inúmeras medidas, alte-rando elementos centrais das relações de empre-go como a remuneração do trabalho, pela intro-dução da remuneração maleável, com a introdu-ção do programa de participação nos lucros. Tam-bém tivemos alterações nos critérios de reajustessalariais, o fim da política salarial e, ao mesmotempo, a proibição de os sindicatos, nas conven-ções coletivas, incluírem cláusulas que garantis-

sem mecanismos de reajustes automáticos dos sa-lários. O resultado disso foi que, a partir de 1997,grande parte das categorias teve perda na remu-neração do trabalho.

IHU On-Line – Quais foram as outras conse-qüências dessas medidas?José Dari Krein – Essas medidas flexibilizaramtodo o processo de contratação e despedida dostrabalhadores. Referem-se a contratos com prazosdeterminados, cooperativas de trabalho, contratoparcial, suspensão do contrato, denúncia da con-venção que introduz mecanismos contra a dispen-sa motivada. No caso, a empresa não tem que jus-tificar as demissões, para o que várias medidas fo-ram tomadas, precarizando o mercado de traba-lho e não gerando novos postos. Além disso, tam-bém cresceu muito o trabalho de estagiário e ocontrato de pessoa jurídica, especialmente para asremunerações mais altas, no interior das empre-sas. Então tivemos um segundo bloco de intensasmudanças trabalhistas na área da contratação edespedidas dos trabalhadores. Depois tivemos umterceiro bloco de medidas em relação ao tempo detrabalho. Especialmente duas se destacam: o ban-co de horas, com cuja adoção a compensação dajornada não se dá mais semanalmente, mas anual-mente; além disso, tivemos a permissão dos traba-lhos aos domingos no comércio varejista, em ge-ral. Por último, tivemos medidas vinculadas a for-mas de soluções nos conflitos no trabalho, espe-cialmente com a introdução das chamadas comis-sões de conciliação prévia. Agora os atores sociaispodem resolver passivos trabalhistas passados deforma direta. São adotadas soluções extrajudiciaisprivadas para as soluções dos conflitos.

IHU On-Line – E o ponto relativo à prevalên-cia do negociado sobre o legislado, comoestá sendo tratado?José Dari Krein – Ocorreram pouquíssimas alte-rações no campo sindical do direito coletivo. Masa reforma no campo trabalhista não se tornoucompleta, porque não foi aprovada, no final doGoverno do Fernando Henrique, uma proposiçãoda prevalência do negociado sobre o legislado.Ela chegou a ser apreciada na Câmara de Deputa-

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dos. Ela foi aprovada depois de um impasse, masprosseguiu no Senado. Depois, com a posse deLula, esta medida foi retirada, sob a justificativade que este tema seria objeto de depreciação noFórum do Trabalho. Podemos ver que, na décadade 1990, efetivamente, aconteceu uma reformatrabalhista, que estaria completa, se tivesse sidoaprovada a prevalência do negociado sobre o le-gislado. A questão central em disputa é se avança-mos na perspectiva de ter um modelo de relaçõesde trabalho em que o negociado prevalece sobreo legislado ou se teremos um modelo de relaçõesde trabalho que fortaleça o poder sindical capazde poder intervir no mercado de trabalho para di-minuir as desigualdades de rendimento e possaser um elemento importante na luta por uma dis-tribuição de renda mais justa. Na minha opinião,esses são os dois projetos que estão em disputa nareforma sindical trabalhista.

IHU On-Line – Como o sistema sindicalpode ser fortalecido? Mantê-lo como está?José Dari Krein – Não. Eu acho que o nosso sis-tema de organização sindical é extremamente po-larizado, nós temos, no País, hoje, 18 mil sindica-tos. Grande parte deles não cumpre nenhumafunção social relevante para a sociedade brasilei-ra, para a classe trabalhadora, porque a naturezado sindicato, a sua força, está exatamente na ca-pacidade de mobilização e união de um contin-gente significativo de trabalhadores. Isso possibili-ta ao sindicato ter força para poder defender os in-teresses e ampliar as reivindicações e a luta dostrabalhadores. Hoje todo o poder na organizaçãosindical brasileira está centrado nos sindicatos. Éimportante que haja estruturas mais amplas, commais poder e capacidade de organização dos tra-balhadores, assim como é importante ampliar umprocesso de contratação coletiva, ampliar o con-ceito e a noção da greve na sociedade brasileira,ampliar a possibilidade de os sindicatos se organi-zarem no interior das empresas, o que também éproibido. Há coisas que são fundamentais e deve-riam avançar para se ter um sistema mais demo-crático em relação ao trabalho, porque, na socie-dade capitalista, a relação capital-trabalho é mar-cada pela assimetria. Com base nesse entendi-

mento básico, se construíram, no decorrer da his-tória, especialmente a partir do século XIX, direi-tos no sentido de assegurar uma condição mais fa-vorável nas relações de trabalho. O elo mais frágildesta condição é o trabalhador, logo, a democra-cia pressupõe que os trabalhadores tenham algu-mas garantias, como a de se organizarem coletiva-mente e de se protegerem contra o despotismo doempregador. Nesse sentido, no Brasil, ainda háespaço para avançarmos em regulamentaçõesque dêem maior poder para uma organização sin-dical e garanta um mercado de trabalho maiscivilizado.

IHU On-Line – As entidades dos trabalhado-res têm uma proposta única?José Dari Krein – A situação está complicada. Oprimeiro debate diz respeito ao encaminhamentode uma reforma sindical, uma reforma trabalhistaprioritariamente, e ocorreu no Fórum Nacional doTrabalho, que aglutina representações dos empre-gadores, dos trabalhadores e do Governo. Foi pau-tado pelas entidades trabalhadoras que participa-vam do Fórum, a prioridade era encaminhar a re-forma sindical para depois pensar na reforma tra-balhista, exatamente porque se queriam garantirmecanismos de fortalecimento da organizaçãosindical e do processo de negociação coletiva.Quando se fala em reforma sindical, se fala dosaspectos vinculados à organização fiscal do direitocoletivo, da forma como o sindicato possa estrutu-rar-se para o processo de negociação coletiva, odireito de greve, a forma de solução dos conflitoscoletivos do trabalho. Então a opção foi a de darprioridade à reforma sindical, e o Fórum Nacionaldo Trabalho avançou na perspectiva da elabora-ção de uma proposta de emenda constitucional ede um projeto de lei para alterar a organizaçãosindical brasileira e a negociação coletiva, as for-mas de solucionar os conflitos. Esta proposta estámarcada também por profundas divergênciasexistentes não só entre as entidades envolvidas di-retamente como também na sociedade. Em pri-meiro lugar, há o interesse de uma parte significa-tiva das pessoas que estão na estrutura sindicaloficial de não querer fazer nenhuma alteração.Em segundo lugar, essa parte que não quer mudar

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nada, envolve tanto os sindicatos dos trabalhado-res como os de empregadores. Alguns desse cam-po têm atuado de forma articulada para inviabili-zar uma reforma sindical.

IHU On-Line – Mas o que une estes dois pó-los, que interesses são esses?José Dari Krein – A manutenção da estruturaoficial atual. As manifestações mais presentes dosempresários, apesar de terem subscrito aquelaproposta enviada ao Congresso Nacional, sãocontra a reforma, por duas razões básicas. Em pri-meiro lugar, porque elas vão afetar a sua estruturade representação e as fontes de sustentação dassuas entidades de classe, as confederações empre-sariais. Eles também têm medo de perder o con-trole sobre as suas entidades e de perder a fontede sustentação delas. Desejam manter a estruturade poder já existente, nas entidades já existentes.Em segundo lugar, a oposição empresarial se dápor duas outras razões. Os empresários dizem quenão é prioritário fazer uma reforma na estrutura deorganização das corporações para o setor empresa-rial sem uma reforma trabalhista. Para eles, a refor-ma sindical só tem sentido, se vier de forma conco-mitante com a reforma trabalhista. Isso lhes interes-sa, porque eles querem, via reforma trabalhista, re-duzir os custos do trabalho e aumentar o poder dedeterminar as condições de uso e remuneração dotrabalho no interior das empresas. Outro ponto éque, na avaliação dos empresários, essa reforma,apesar de contemplar interesses deles, eles achamque, em alguns aspectos, fortalece o poder dos sin-dicatos. Na expressão mais clara do Gerdau15, elediz o seguinte: “Não nos interessa fortalecer o po-der sindical, se a gente não tem nada em troca doponto de vista da reforma trabalhista.”

IHU On-Line – Quais são as questões quepreocupam mais os empresários?José Dari Krein – Eles não admitem, e issoconsta no projeto, que haja a possibilidade de or-ganização sindical dos trabalhadores no local detrabalho. Não admitem, como também está no

projeto, que as entidades dos trabalhadores pos-sam representar, junto à Justiça do Trabalho, de-mandas trabalhistas em nome dos seus representa-dos. Eles acham que isso aumenta o poder do sin-dicato. Em terceiro lugar, eles são contra o que éclassificado como atitudes anti-sindicais, o uso dacoerção econômica para impedir a organizaçãosindical, para tentar impedir greves. Em quarto lu-gar, eles são contra o aumento do número de diri-gentes sindicais com estabilidade no emprego. Naavaliação deles, estes aspectos negativos se sobre-põem aos aspectos positivos na reorganização nomodelo de organizações sindicais brasileiras.

IHU On-Line – E quais são as divergênciaspelo lado dos trabalhadores?José Dari Krein – Elas também são muito profun-das. Por um lado, parte deles não quer alteração ne-nhuma no sistema vigente, não quer acabar com aunicidade sindical, não quer acabar com impostosindical, não quer acabar com o sistema confederati-vo existente. A segunda questão, causadora de mui-tas divergências, é que, no modelo sindical propostoas centrais sindicais, há uma centralidade maior.Hoje toda a centralidade está no sindicato de base, eas centrais sindicais vão ser fortalecidas nesse novomodelo sindical. Inclusive poderão estabelecer ne-gociações coletivas, terão um poder maior de enca-minhar as lutas dos trabalhadores. O financiamentodelas vem diretamente para as centrais sindicais,não dependendo mais do repasse dos sindicatos debase, o que fortalecerá as centrais. Um terceiro pon-to polêmico refere-se ao fato de que o projeto, naavaliação de alguns, ao não assegurar a norma maisfavorável de forma explícita, pode abrir espaço parauma flexibilização do Direito.

IHU On-Line – A flexibilização é temida poruma parte dos trabalhadores?José Dari Krein – Parte do movimento dos traba-lhadores acredita que esse projeto prepara o cami-nho para o processo de flexibilização do Direito,essa é outra divergência existente. Há outras diver-gências mais pontuais, como em relação à negocia-

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15 Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do Grupo Gerdau, que controla siderúrgicas em vários países. (Nota da IHU On-Line)

ção coletiva, a possibilidade de entidades nacionaisestabelecerem cláusulas que não possam ser altera-das nas instâncias inferiores de negociação, a pos-sibilidade de substituição de grevista, o fim do po-der normativo da justiça do trabalho, a possibilida-de de julgar os conflitos trabalhistas existentes emuma determinada categoria com base em hábitosprivados ou públicos, se for objeto de vontade co-mum entre as partes. Há uma série de medidas so-bre a organização local de trabalho, como a sua fi-nalidade, por exemplo. Abre-se espaço para a solu-ção de conflitos no interior da empresa, o que au-menta o poder de pressão nela. Há vários outrospontos que preocupam.

IHU On-Line – Considerando esse cenáriocomplexo e contraditório, este é o momen-to adequado para encaminhar as reformas?José Dari Krein – Em primeiro lugar, na reformasindical, temos dois grandes blocos. Um bloco quenão a deseja, argumentando que não é o momen-to, ou porque é contra a lógica da reforma, ou por-que quer manter a estrutura como está. Outro blo-co faz críticas pontuais ao projeto de lei encaminha-do, mas avalia que é melhor realizar a reforma doque deixar tudo como está, que é necessário daruma mexida no sindicalismo, que precisa adquirirmaior representatividade. Mas isso se refere à refor-ma sindical. As entidades dos trabalhadores nãotêm, em absoluto, interesse no encaminhamentodas reformas trabalhistas do cenário atual. A maio-ria das entidades trabalhadoras continua susten-tando que permanece em vigor o patamar do Dire-ito constante na legislação trabalhista brasileira ena Constituição Federal. Por outro lado, com apossibilidade de avanço na conquista de novos di-reitos, por parte dos trabalhadores, o setor empre-sarial não quer fazer a reforma sindical, quer só atrabalhista. Então, a conveniência ou não de fazeras reformas depende da opinião de cada um dosatores, da perspectiva de interesses defendidos.

IHU On-Line – Há um discurso que conside-ra o contexto atual inadequado para as re-

formas, porque os trabalhadores estão fra-gilizados, e reclama prioridade para o deba-te de um projeto econômico. Qual é a suaopinião sobre isso?José Dari Krein – Sem dúvida nenhuma, a re-forma sindical faria mais sentido se estivesse inclu-ída em uma situação mais ampla de encaminha-mento das questões centrais existentes na socie-dade brasileira. A realidade sindical depende docontexto econômico, político que vai se encami-nhar para o País, e não simplesmente da mudançada norma legal do ponto de vista da organizaçãosindical. A crise do sindicalismo não está vincula-da, pura e simplesmente, aos problemas de ordemlegal existentes, ela é mais profunda, está vincula-da à dinâmica do mercado do trabalho, às trans-formações que estão ocorrendo no trabalho. Háuma questão mais estrutural que está em jogo eprecisa ser enfrentada também. Quanto ao con-texto propriamente dito, é uma questão difícil deavaliar, se vamos aguardar outro contexto. Nosúltimos tempos, todos os indicadores dos movi-mentos sindicais mostram um certo refluxo domovimento social organizado como força socialna sociedade brasileira.

IHU On-Line - Mas essa tendência é mundial?José Dari Krein – Tem um componente mundial,mas tem exceções também. É um componentemuito forte na Europa, na América Latina, naAmérica do Norte, mas não dá para dizer que émundial. A Coréia, por exemplo, tem um movi-mento sindical muito ativo nos últimos anos, deampliação de conquistas. Claro que há uma ten-dência mais estruturante, mais geral, que deve serconsiderada. Esse é um lado da moeda. O outrolado está representado pela pergunta: qual é apossibilidade de realizar uma reforma no contextobrasileiro atual, político e econômico, indepen-dente do chamado poder de pressão das partes? Eaí, considerando a eleição do Severino16, a fragili-zação da base de sustentação do governo no Con-gresso Nacional. A possibilidade da reforma se re-duz neste quadro, que é complicado. Eu tenho dú-

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16 Severino Cavalcanti, deputado do PP pernambucano, eleito presidente da Câmara dos Deputados em 15-02-2005. Presidiráa Câmara no biênio 2005-2006 (Nota da IHU On-Line).

vidas se a reforma andará, mas é claro que isso édado pela dinâmica política e social.

IHU On-Line – Em que medida a reformasindical é necessária, considerando o cená-rio atual?José Dari Krein – A questão que está em jogo éque devemos lutar para democratizar as relaçõesde trabalho e ampliar o sistema de proteção socialexistente no País. Nesse sentindo, uma reformatrabalhista, que venha a reduzir direitos, seria umdesastre do ponto de vista nacional. A reformasindical é necessária, sim, mas na perspectiva deampliar a democratização e fortalecer o ator sindi-cal e a negociação coletiva sem alterar o patamardos direitos existentes. A lógica dos discursos con-servadores é a de responsabilizar a legislação pelainformalidade, pelo desemprego; a lógica do nos-so discurso é dizer que a informalidade e o desem-prego não estão vinculados ao patamar de direitosexistentes. Pelo contrário, este patamar apresentaum grau de flexibilidade relativa em aspectos cen-trais, como na relação de emprego. As empresastêm liberdade de demitir, isso é algo inadmissíveldiante do que existe na Europa. Além disso, depoisdo fim da política salarial, os salários variam con-forme o nível da atividade econômica. O própriotempo de trabalho apresenta um grau de flexibili-dade com a possibilidade de utilização do bancode horas e do uso indiscriminado das horas extras.Então já temos um grau de flexibilidade. Por fim, aquestão do emprego está muito mais vinculada àdinâmica da economia do que ao patamar de di-reitos. As empresas jamais irão contratar, mesmoque o trabalho custe 10% mais barato, se elas nãotiverem uma demanda para vender o seu produ-to. Então o emprego e a ocupação dependem mui-to mais das opções de políticas econômicas doque das opções políticas mais gerais, como, porexemplo, repartir os ganhos de produtividade, fa-zer com que o trabalho útil seja redistribuído nasociedade, via redução da jornada de trabalho, re-partir todo o avanço tecnológico produtivo fantás-tico ocorrido nos últimos tempos. Até porque asexperiências históricas recentes de países queadotaram essa postura, indicam por estudos queos resultados não foram os esperados.

IHU On-Line – Em última instância, é preci-so primeiramente discutir um projeto de de-senvolvimento para o País?José Dari Krein – Sem dúvida nenhuma, euacho fundamental a reforma sindical, mas tam-bém acho fundamental ela estar vinculada à dis-cussão de um projeto para o desenvolvimento so-cioeconômico. E ele passa necessariamente pelamudança da política econômica atual, pela mu-dança da lógica com que está sendo enfrentado odesenvolvimento pelo Governo atual. A reformatem que estar inserida em uma lógica geral de re-encaminhamento da sociedade brasileira e o re-encaminhamento da economia social tem que fa-zer parte disso.

IHU On-Line – O senhor disse que, na Euro-pa, as empresas não têm a liberdade de de-mitir como as daqui. Poderia exemplificar?José Dari Krein – A empresa tem regras parademitir, e o mínimo que se exige é que a empresaexplique a demissão. Em alguns países, ela sópode demitir depois de ter informado ao órgãopúblico, e o órgão público ter concordado comeste processo de demissão. A demissão pode serpor ordem tecnológica, por crise econômica, pordisciplina, mas há possibilidade de o trabalhadorquestionar a opção da demissão feita pela empre-sa. Isso lhe dá maior estabilidade no emprego. Aempresa não pode demitir a seu bel-prazer comoocorre aqui.

IHU On-Line – No Brasil, essa liberdade em-presarial surge com o FGTS? Pode-se dizerque ela é incomum?José Dari Krein – Exatamente. No Brasil, te-mos, na rescisão, a possibilidade de demissãopor justa causa. Não existe coisa mais flexível doque isso. Essa situação não ocorre nos chamadospaíses desenvolvidos, mas não é uma coisa geral.Na Ásia e na América, há outra lógica. Mas o quese pode dizer é o seguinte: há uma recomenda-ção da Organização Mundial do Trabalho (OIT),por meio da Convenção 158, orientando os paí-ses membros a introduzirem mecanismos que ini-bam a dispensa motivada, porém o Brasil nãoaceita isso.

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“O debate sobre as reformas deve coincidir com

um período de desenvolvimento econômico”

Entrevista com Sidney Pascoutto

Sidney Pascoutto da Rocha preside o Conse-lho Federal de Economia (Cofecon). Entre outrasatividades, o órgão sistematiza a atuação dos Con-selhos Regionais de Economia e fiscaliza o exercí-cio da profissão. Além disso, o Cofecon acompa-nha e debate as questões sociais e econômicas queafetam o País. É pós-graduado em Finanças Exe-cutivas pela Fundação Getúlio Vargas, mestre emPlanejamento Energético pela UFRJ, onde tam-bém se graduou em Economia. Foi assessor dasPastorais Sociais da Conferência Nacional dosBispos do Brasil no Rio de Janeiro. Sidney Pas-coutto foi entrevistado por telefone, ressaltandoque falava “em nome próprio”, já que o Conselhonão tem posição oficial sobre as reformas, porconsiderar que o debate sobre elas deve ser prece-dido por outras discussões como a construção deum projeto de desenvolvimento nacional.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre o an-damento das reformas trabalhista e sindical?Sidney Pascoutto – O Conselho não tem umaposição oficial sobre esse tema. Falo exclusiva-mente em meu nome. Esse tipo de reforma deveser feito no momento em que a economia está emcrescimento, no momento em que os atores estãocom força para fazer essa discussão. Toda a vezque esse debate é colocado num cenário em queos trabalhadores estão em uma situação de defen-siva, na verdade o que se está querendo fazer éatropelar. O que se quer fazer é aprovar coisas quesão até estranhas aos interesses dos trabalhado-res. Essa é a minha visão.

IHU On-Line – Por que o Conselho não temdiscutido esse assunto?

Sidney Pascoutto – A nossa pauta de discus-sões é enorme, a questão econômica, pura e sim-plesmente, nos absorve demais. Há problemas sé-rios na gestão da economia. Além das questões in-ternas, temos um manancial de outros assuntos,como a questão tributária, por exemplo. Nós esta-mos envolvidos nesse debate. Temos questõesmais voltadas para a política econômica que nosabsorvem muito.

IHU On-Line – O debate sobre a reforma tra-balhista deveria coincidir com um períodode desenvolvimento econômico?Sidney Pascoutto – Não. O que digo é o seguin-te: toda vez que se fazem reformas que mexemmuito de perto com os interesses da maioria dostrabalhadores e numa conjuntura de desempregoe de arrocho salarial, com o movimento sindicalnuma situação de defensiva, os trabalhadores per-dem. Se pensarmos em ciclos, podemos dizer queestamos em uma fase de inflexão dos ciclos: Quan-tas greves ocorreram recentemente? Quantas es-tão ocorrendo? Quantas mobilizações temos hojena sociedade?

IHU On-Line – Mas a atual fase do movi-mento sindical não reflete uma nova confi-guração da economia, que conduz a umnovo perfil das organizações sindicais?Sidney Pascoutto – Essa é a concepção de al-guns, não é? Os patronos dessa política atrelam anecessidade de retomada do crescimento da eco-nomia brasileira à necessidade da reforma traba-lhista e sindical. Eu não partilho dessa idéia. Achoque o problema da reforma da economia brasilei-ra passa fundamentalmente pela volta do Estado

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a desempenhar um papel mais dinâmico nessaperspectiva. O Estado deve voltar a assumir o pa-pel de fazer inversões públicas de uma forma maisefetiva. Acho que temos que ir abandonando aidéia da construção de superávit primário. Nãopodemos continuar achando que é possível reto-mar o desenvolvimento nacional com o superávitprimário do tamanho que ele está. Atrelar o de-senvolvimento à reforma é transferir para os tra-balhadores uma responsabilidade que não é de-les, não é nossa. “A vaca está indo para o brejo”, acada dia ela dá mais um passo em direção ao bre-jo, e, a cada momento, se aponta um agentecomo responsável por isso.

IHU On-Line – O senhor pode exemplificar?Sidney Pascoutto – No início dos anos 1990,era fundamental fazer as privatizações, pois, comelas, viria o dinheiro internacional e ocorreriaminversões nos setores de infra-estrutura... e o queaconteceu? Aponte-me um setor onde efetiva-mente entrou dinheiro do capital internacional viainversões, um setor que tenha sido alavancado.Pelo contrário, o que tivemos foi uma explosão ta-rifária. Hoje os grandes problemas da inflaçãobrasileira são as tarifas públicas, as tarifas adminis-tradas. Depois da fase das intervenções tivemos afase, no começo do governo Lula, que atribuiu àPrevidência a responsabilidade pelo atraso do de-senvolvimento econômico e social. No último do-mingo, o jornal Folha de S. Paulo revelou que nãohá déficit na Previdência, o que existe é irrespon-sabilidade e, no caso de alguns dirigentes, falta dehonestidade intelectual. Basta examinar as rubri-cas definidas pela Constituição de 1988 comoaquelas que definem os recursos que garantem asolidez da Previdência: se elas fossem cumpridas,não teríamos déficit. Quer dizer: a cada momentose escolhe um agente responsável pelas dificulda-des econômicas e sociais, e, com isso, vai sendoempurrado um rol de medidas que tem tudo a vercom o ideário do pensamento único17 e que nãotem dado respostas. Estou, há vinte anos, ouvindo

essa cantilena e, como a minha geração, estou as-sistindo à perda e à corrosão dos nossos direitos.

IHU On-Line – Mas a reforma sindical, porexemplo, não é, de certa forma, uma exigên-cia dos novos tempos?Sidney Pascoutto – É verdade. Mas quandoessa discussão é feita com as organizações sindi-cais em uma situação favorável, tem-se um deter-minado perfil de reforma. Quando essas reformassão encaminhadas num cenário onde os trabalha-dores estão numa situação de defensiva, com cer-teza, disso resultará um outro perfil de reforma.Não sejamos ingênuos nessa discussão.

IHU On-Line – Qual seria o momento idealpara as reformas? O que estamos, de fatoesperando?Sidney Pascoutto – Estamos esperando que aeconomia volte a crescer. O melhor momento se-ria quando isso ocorresse, quando os trabalhado-res voltassem a ter condições de se mobilizarem ediscutirem, sem estarem desesperados em preser-var os seus postos de trabalho. Na situação emque nos encontramos, se o trabalhador for para arua fazer qualquer manifestação, se ele participarde qualquer debate, o patrão manda-o embora,porque tem centenas de milhares de desemprega-dos querendo o lugar dele por um salário menor.Logo, essa reforma não é prioridade, não dá asrespostas ansiadas pelos trabalhadores. E, me pa-rece, uma reforma trabalhista e sindical diz respei-to aos interesses dos trabalhadores. Não se podefazer esse debate, quando esses atores estãonuma posição de fragilidade.

IHU On-Line – As reformas devem ser dis-cutidas somente depois dessa etapa?Sidney Pascoutto – Claro. Do contrário, é comose você me deixasse três semanas com fome e de-pois me mandasse para um ringue lutar box... e euvou fazer o que, nesse ringue? Vou apanhar mui-to, claro. Essa discussão é rica e interessante, masinoportuna. Fazê-la agora seria oportunismo.

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17 Pensamento único: expressão formulada na França para descrever o pensamento neoliberal como único e exclusivo, fora doqual não há salvação, segundo o economista Riccardo Petrella, nos seus artigos publicados no jornal Le MondeDiplomatique. (Nota da IHU On-Line)

“É necessário desvincular emprego e renda”

Entrevista com Josué Pereira da Silva.

Josué Pereira da Silva, doutor em Sociologiapela New School for Social Research, NY, EstadosUnidos, é professor de Sociologia na IFCH, Uni-camp. É autor de Três discursos, uma sentença:tempo e trabalho em São Paulo (1906-1932).São Paulo: Annablume; Fapesp, 1996 e AndréGorz: trabalho e política. São Paulo: Annablu-me: Fapesp, 2002. 228 p..

IHU On-Line – Quais as chaves de leituramais significativas na obra de André Gorzque ajudariam para uma compreensão darealidade do trabalho atual no mundo?Josué Pereira da Silva – A definição do traba-lho com a distinção entre o conceito antropológi-co, como atividade humana e o sentido dado pelasociedade capitalista do mundo moderno ociden-tal. Ele define trabalho de forma muito clara numlivro, em 1988, que está sendo publicado agorano Brasil, no segundo semestre, Metamorfosedo trabalho. O trabalho industrial típico do capi-talismo, da fábrica é o exemplar mais acabado dotipo moderno que tinha o tempo como critériopara medir a produtividade. Esse trabalho estápassando por uma crise. A sua análise é funda-mentada numa crítica da racionalidade econômi-ca. Gorz faz uma crítica do utilitarismo da lógicade mercado e distingue uma sociedade de merca-do, fundamentalista, neoliberal de uma sociedadecom mercado. Um outro aspecto muito valioso ésua sensibilidade para o problema ecológico. Asociedade econômica levada a suas últimas con-seqüências provoca uma destruição de determi-nadas dimensões do ambiente, eliminando recur-sos esgotáveis que não podem ser renovados empouco tempo. É necessária uma perspectiva socialmais ecológica

IHU On-Line – Quais as alternativas que o se-nhor vê em relação ao crescente desemprego?Josué Pereira da Silva – É necessário definir oque é desemprego. Muitas vezes, se associa à au-sência de crescimento econômico. Não é tão sim-ples. O desemprego cíclico, de fato, está relaciona-do com a oscilação da economia. Mas há um de-semprego mais abrangente, que é estrutural e estáassociado ao que o mercado de trabalho deman-da: um determinado tipo de mão-de-obra comqualificação específica, e a população não temessa qualificação. Uma reciclagem que qualifiquea mão-de-obra poderia ajudar um pouco a resol-ver o desemprego estrutural, pelo menos para de-terminadas funções. Há também o desempregotecnológico, para o qual pouca gente chama aatenção. As transformações tecnológicas das últi-mas décadas têm um objetivo claro de pouparemprego. É uma lógica antiga dos anos1980-90,na Europa e no Brasil dos anos 1990. Por exem-plo, o setor bancário do Brasil, há 15 anos, aproxi-madamente, empregava, mais ou menos, o dobrodo que emprega agora e, no entanto, o crescimen-to econômico, no sentido de faturamento do se-tor, foi dos maiores, mas é um crescimento quepoupa mão-de-obra. Uma boa avaliação de quetipo de desemprego nós temos, facilitaria a formu-lação de políticas. Setores como construção civil ereforma agrária poderiam abrir novos empregos.A educação, no sentido de universalizar a educa-ção básica no Brasil, poderia empregar jovens for-mados ou estudantes universitários como educa-dores, como, de certa forma, foi feito na época daditadura, com o Movimento Mobral, mas, é claro,uma coisa menos dirigida ideologicamente. Umainiciativa nesse sentido poderia empregar muitagente e melhorar a qualificação de mão-de-obra,

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seria uma saída interessante. Ao mesmo tempo,isso resolveria o problema de educação e do tra-balho dos jovens. Uma das propostas de AndréGorz é a diminuição do tempo de trabalho juntocom uma política macroeconômica, voltada paraempregar pessoas e aumentar a oferta de traba-lho. Isso exige um planejamento bem mais sofisti-cado e não está ao alcance em curto prazo.

IHU On-Line – Como imaginar uma socieda-de em que trabalho e renda estejam desvin-culados?Josué Pereira da Silva – O próprio Gorz discuteisso e teve até uma mudança de posição recentedesde o livro Metamorfose do trabalho para openúltimo livro dele que se chama Miséria doPresente. Riqueza do Possível. Paris: Galilée,1997. Embora ele faça uma crítica da chamadacentralidade do trabalho contemporânea, eleachava que o direito ao trabalho era político, queas pessoas que quisessem teriam o direito de con-tribuir com a produção social. Mas, recentemente,fundamentado nas transformações tecnológicas ena idéia do conhecimento coletivo, inspirado nosescritos de Marx, compreende que a produção so-cial não pode ser localizada num setor específicoda economia ou da sociedade, mas que a inteli-gência é a força produtiva principal da sociedade,ou seja, toda a capacidade de conhecimento acu-mulado na sociedade. Isso tudo levou André Gorza rever a possibilidade do vínculo entre o trabalhoexercido e a renda recebida. Então, ele se aproxi-mou de idéias como a do economista e filósofoPhillipe Van Parijs, autor de teses sobre renda bá-sica e alocação universal. Aqui no Brasil, o Sena-dor Eduardo Suplicy no livro Renda de Cidada-nia: a saída é pela porta. São Paulo: Cortez :Fundação Perseu Abramo, 2002, também come-ça a levantar essa posição. Nas condições atuaisdo mundo, não dá para poder imaginar o direitode cidadania ter o trabalho como contrapartida. Asociedade está se mostrando incapaz de oferecertrabalho para as pessoas, o direito à vida é anterior.Tanto Gorz quanto Suplicy tiveram uma mudança

de posição. Essa proposta de renda básica está,em Gorz, muito próxima e articulada com a idéiade redução de tempo de trabalho e a idéia de fa-vorecer atividades que tenham valor social, masnão tenham valor de mercado. Seriam três pro-postas: o estabelecimento de uma renda básica,uma política de redução do tempo de trabalho e oincentivo a atividades de valor social, artísticas, ar-tesanais, do terceiro setor, etc.

IHU On-Line – Em relação a reivindicaçõestão importantes no mundo do trabalho, quepapel estão desenvolvendo os sindicatos?Josué Pereira da Silva – É uma situação difícil,porque a crise do sindicalismo está associada comessa diminuição do trabalho. É uma situação pa-radoxal, porque, para que o sindicato se mante-nha forte, é necessário que haja não só um nívelde emprego alto, mas que as pessoas tenham suavida estruturada pela atividade do trabalho, ouseja, trabalhem em tempo integral. Se o tempo detrabalho se reduz drasticamente, as pessoas nãopodem ser mais definidas apenas como trabalha-doras. Aí o sindicato não teria nenhum papel fun-damental na estruturação da vida dessas pessoas.As concepções tradicionais de sindicalismo têmmedo de perder essa força cultural ideológica queo trabalho tem para a sociedade. Foi sobre essavalorização do trabalho que o sindicato se estrutu-rou, coincidindo com a valorização que o capita-lismo deu ao trabalho. O capitalismo, com a inten-ção de conseguir trabalho servente e o sindicatocom a convicção de que o trabalho dá dignidade àspessoas. É muito interessante, mas é um paradoxo.Uma atividade que é considerada uma das princi-pais na sociedade: trabalhar é uma honra, um di-reito, etc, mas, ao mesmo tempo, como o capitalis-mo não consegue oferecer trabalho, quem acabapagando a conta é a vítima do desemprego, por-que ela se sente culpada pelo próprio fracasso. Ossindicatos podem também incorporar setores sociaisque não estão, necessariamente, no mercado detrabalho, mas, para isso, precisaria uma mudançana concepção dos sindicatos.

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IHU On-Line – Alguns estudiosos dizem quetirar o peso dos impostos que incidem sobreos salários, pode melhorar o nível de empre-go. Como o senhor veria essa reforma?Josué Pereira da Silva – Pode acontecer umapequena melhora, mas uma melhora com precari-zação das condições de trabalho, ela pode ter umefeito pior do que existe agora. Criar trabalhosprecários, mal remunerados e sem garantias, nãoé solução. Os Estados Unidos criaram o maior nú-mero de empregos nas últimas décadas e dizemque têm o índice de desemprego mais baixo domundo. O tipo de emprego que os americanoscriaram lá, não é o tipo tradicional com todos osdireitos, são empregos parciais, sem garantias tra-balhistas. Entrar apenas parcialmente no mercadode trabalho, sem os direitos completos, não resol-ve nada, é só precarização. Isso é o que eu achono caso de uma liberalização total das normas tra-balhistas. Tanto é que, nessas discussões, fala-se

até em negociação de tirar os feriados remunera-dos, ou não pagar o trabalho realizado aos sába-dos e domingos, e isso são conquistas que foramfeitas ao longo da história. Essas modificações se-riam um regresso, uma manifestação de capitalis-mo selvagem. E ainda assim, não seria garantia deque o emprego cresça, porque o objetivo das em-presas não é criar emprego, e sim lucro.

IHU On-Line – Quais as conseqüências que aAlca poderia trazer ao mundo do trabalho?Josué Pereira da Silva – Eu não sou um estu-dioso de política internacional, mas estou muitopreocupado com a política dominante dos Esta-dos Unidos. A entrada do Brasil e da América La-tina na Alca dificilmente seria com simetria de po-deres ou de direitos. Eu seria mais favorável auma discussão mais prolongada disso aí para, sefor o caso, entrar de forma mais organizada e maisestruturada, em bloco, como o Mercosul.

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A mulher no mundo do trabalho

Entrevista com Maria Cristina Bruschini

Maria Cristina Aranha Bruschini é pesquisa-dora da Fundação Carlos Chagas, de São Paulo,sobre a questão da mulher no mercado de traba-lho brasileiro. Maria Cristina é mestre em CiênciasSociais e doutora em Sociologia pela Universida-de de São Paulo (USP), com tese intitulada Estru-tura familiar e vida cotidiana na cidade de São Pau-lo. É autora de oito livros, entre os quais citamos:Mulher e trabalho: uma avaliação da décadada mulher. São Paulo: Nobel; CECF, 1985; Mu-lher, Casa e Família: Cotidiano nas Cama-das Médias Paulistanas. São Paulo: Vértice;Fundação Carlos Chagas, 1990; Sexo e Juven-tude: como discutir a sexualidade em casa ena escola. São Paulo: Cortez., 2000.

IHU On-Line – Em que tipo de trabalho asmulheres sofrem mais discriminação hoje,no Brasil?Cristina Bruschini – Trinta e seis por centodas trabalhadoras se encontram em atividadesprecárias, sem carteira assinada, como o empre-go doméstico, o trabalho não-remunerado, otrabalho domiciliar e outros tipos de trabalho in-formal. Nos últimos anos, pela sua escolaridade,a mulher vem conquistando funções melhorescomo as que exigem formação de nível médioou superior. Mas existem algumas formas de dis-criminação às quais as mulheres estão sujeitas,como a desigualdade salarial, a dificuldade deacesso a cargos de comando e o fato de ela serainda responsável pela família, pelas criançaspequenas, pelos idosos e pelos doentes, que éuma ocupação tradicional dentro da família eestá sendo muito difícil para ela partilhar com oshomens e os jovens. A mulher vem conquistan-

do espaços no trabalho, mas ainda sofre bastantediscriminação.

IHU On-Line – A mulher está sendo tão atin-gida quanto homem com o desemprego e aprecarização do trabalho?Cristina Bruschini – O desemprego, de manei-ra geral, é mais intenso em determinados setoresque atingem mais homens que mulheres, como naindústria, por exemplo. As mulheres estão maisconcentradas no setor dos serviços e bancário,onde o desemprego não é tão intenso. Em relaçãoà precarização, 17% da força de trabalho femininaé de empregadas domésticas. Na categoria de em-prego doméstico, 97% são mulheres. Essa é umaatividade precária, porque os salários são baixos,sem carteira assinada, com longas jornadas. Ocontingente que trabalha nessas condições é de35%, mas não vem aumentando. Acho que o tra-balho masculino está sendo mais precarizado. Vi-vemos uma década muito ruim em termos de em-prego, de renda do trabalhador, mas não da forçade trabalho feminina em si.

IHU On-Lin – Quais têm sido os maioresavanços das últimas décadas?Cristina Bruschini – As ocupações que exigemestudo qualificado, como medicina, arquitetura,direito, jornalismo, registraram um grande au-mento da participação feminina. Vejo uma pers-pectiva positiva para as que estão nos camposmais privilegiados. Mesmo executivas, em empre-sas, que é um estudo que estou fazendo agora, ob-serva-se uma cifra mais significativa que a da dé-cada de 1990. Basicamente, houve um ingressomaciço de mulheres nas universidades, inclusive

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supera a dos homens atualmente. Ainda assim,continua havendo desigualdade salarial.

IHU On-Line – Por onde começa uma novaorganização sexual do trabalho?Cristina Bruschini – Deve ser em duas esferas.Tem que haver algumas políticas da parte do Esta-do e de parte das empresas, em seus programasde responsabilidade social. Primeiro é preciso as-sumir que essas desigualdades existem. Até muitorecentemente não se imaginava que existiam,porque a mulher não tinha ido, em massa, para omercado de trabalho. Ao acontecer isso, as mu-lheres conquistaram posições melhores e começa-ram a pressionar. Essa pressão ainda deve ser res-pondida pelo estado, pelas empresas, pelos sindi-catos, etc. É importante chegar a ter acesso a qual-quer ocupação, posição, trabalho em boas condi-ções, com salários iguais, quando se trata do mes-

mo cargo, e conseguir o equilíbrio entre família etrabalho. No momento que consigamos uma or-ganização familiar mais simétrica entre homens emulheres, onde se dividam mais as atividades do-mésticas e o cuidado dos filhos, ficará menos pe-sado para todos.

IHU On-Line – Que políticas públicas estãosendo encaminhadas nesse sentido?Cristina Bruschini – Uma coisa interessante éque o Conselho Nacional dos Direitos da Mulherfoi transformado numa secretaria especial de polí-ticas para as mulheres, diretamente relacionada àPresidência da República, o que dá um suportemaior às políticas das mulheres. O Governo fede-ral está muito atento à representação feminina emtodas as áreas. Agora, em relação a políticas volta-das para o trabalho feminino e para uma organi-zação familiar mais simétrica entre homens e mu-lheres não estou vendo muita coisa.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Unitrabalho: uma parceria entre intelectuais e trabalhadores

Entrevista com Dárnis Corbellini

Dárnis Corbellini é mestre em Sociologiapela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS), graduado em Ciências Sociais pela Uni-sinos e em Filosofia pela Faculdade de FilosofiaNossa Senhora da Imaculada Conceição (FAFIMC),de Viamão. Dárnis é coordenador do Núcleo Lo-cal da Unitrabalho da Unisinos e professor noCentro Universitário La Salle (Unilasalle).

IHU On-Line – Como surgiu a idéia de reali-zar os Encontros de Estudos sobre o Mundodo Trabalho na Unisinos?Dárnis Corbellini – A Rede Interuniversitária deEstudos e Pesquisa sobre o Trabalho (Unitraba-lho) foi fundada em 1995, em São Paulo, em umainiciativa conjunta dos reitores das universidadese a Central Única dos Trabalhadores (CUT), ouseja, intelectuais e trabalhadores reunidos, emparceria, com o objetivo de resgatar a dívida anti-ga que as universidades tinham com os trabalha-dores, qual seja a necessidade de uma reflexão epesquisa mais sistemática sobre o mundo do tra-balho. Na Unisinos, o Núcleo Local da Unitrabalhoiniciou suas atividades em 1998. Em 2000, organi-zamos o I Encontro de Estudos sobre o Mundo doTrabalho. O objetivo dos encontros é reunir os pes-quisadores da Universidade para refletir e debatersobre temas e as pesquisas na área do mundo dotrabalho. Convidamos colegas de outras institui-ções para participarem de nossa iniciativa. Na oca-sião, quem coordenava o Núcleo era a professoraMaria Clara Bueno Fischer, do PPG Educação. Oprimeiro encontro teve como tema Trabalho. O se-gundo foi sobre Trabalho e educação. Já o terceirofoi sobre Trabalho e subjetividade e este quartoserá sobre Trabalho e memória. A professora MariaCiavatta, da Universidade Federal Fluminense,

apresentará especificamente esse tema no encon-tro. Ela tem pesquisado e produzido muito sobre otema da memória do trabalho no Brasil.

IHU On-Line – Qual a principal contribui-ção que estes encontros trazem na reflexãodo mundo do trabalho?Dárnis Corbellini – A Unitrabalho realiza en-contros locais, regionais e nacionais. Aqui reuni-mos uma média de 70 pesquisadores. São espa-ços para o encontro com as últimas pesquisas tan-to na Unisinos quanto na região dos três estadosdo sul. O intercâmbio de experiências e a comuni-cação das pesquisas fazem com que percebamosos avanços e as novas tendências no mundo dotrabalho.

IHU On-Line – Que importância tem para oInstituto Humanitas Unisinos a realizaçãodeste encontro?Dárnis Corbellini – Cada universidade tem seuespaço para o Núcleo Local da Unitrabalho. NaDiretoria da Ação Social e Filantropia fazemosparte da Área Trabalho. Somos um grupo de cole-gas de vários centros que estudam e pesquisamsobre o tema Trabalho. Convidamos, para o 1 ºColóquio e o IV Encontro, pesquisadores de reno-me internacional que vão enriquecer, com uma vi-são atualizada mundial, nossas discussões naárea, aqui na Unisinos.

IHU On-Line – Como surgiu essa idéia deparceria com a Cátedra Unesco para a reali-zação do 1º Colóquio Internacional Traba-lho e Sociedade Solidária?Dárnis Corbellini – A Cátedra Unesco da Unisi-nos tem como tema principal Trabalho e Socieda-

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de Solidária. Na Unitrabalho Nacional temos umGT sobre Economia Solidária. Na Ação Social te-mos a Área Trabalho. Outro projeto é a Incubado-ra de Tecnologias Sociais para EmpreendimentosSolidários. Como realizamos a cada dois anos oEncontro de Estudos sobre o Mundo do Trabalho,e a Cátedra Unesco deseja mostrar visibilidade,surgiu a possibilidade de fazer o 1º Colóquio Inter-nacional e o IV Encontro de Estudos sobre o Mun-do do Trabalho, em parceria. É nossa contribuiçãointerdisciplinar para chegar ao transdisciplinar.

IHU On-Line – O fato de fazer os dois even-tos juntos não pode trazer o risco de valori-zar o 1º Colóquio Internacional em detri-

mento do Encontro de Estudos sobre oMundo do Trabalho?Dárnis Corbellini – Eu digo, brincando, que so-mos o “primo pobre”, porque eles têm os recursose nós não. Nós fomos à luta: nos encontros ante-riores, conseguimos financiamento da Fapergs,mas em 2003 não. Podemos correr o risco de o IVEncontro de Estudos sobre o Mundo do Trabalhoficar em segundo plano. O Comitê da Cátedra daUnesco está constituído por seis PPGs: CiênciasSociais Aplicadas, Educação, Filosofia, História,Saúde Coletiva e Direito, e o Núcleo Local da Uni-trabalho é o único a participar como entidade.Nós temos um bom grupo de pesquisadores quetrabalham temas, como trabalho e educação outrabalho, economia solidária, cooperativismo eassociativismo.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

“A Economia Solidária deve tencionar o Governo

a favor dos trabalhadores”

Entrevista com Dalila Pedrini

Dalila Maria Pedrini é doutora e mestre emServiço Social pela Pontifícia Universidade Católi-ca de São Paulo – PUC-SP. Dalila é professora epesquisadora aposentada da Fundação Universi-dade Regional de Blumenau – FURB e atualmentecoordena a área Construção e Conquista daDemocracia e de Políticas Públicas, da Cári-tas Brasileira, organismo da Conferência Nacionaldos Bispos do Brasil (CNBB). Ela desenvolve umtrabalho de interface com o Programa EconomiaSolidária e Autogestão, um trabalho de coordena-ção nacional, de mobilização da sociedade viabraços regionais da Cáritas para conquistar políti-cas públicas. A professora teve participação em di-versos livros publicados, como Incubadora deEmpresas da Universidade Regional de Blume-nau. In: Economia Solidária Um setor emdesenvolvimento. Rio Claro: Prefeitura de RioClaro; URB-AL, 2002; Associativismo Econômico:apenas uma resposta dos setores populares a crisedo capital ou mais que isto? In: Novos Olharessobre Blumenau. Blumenau: Edifurb Culturaem Movimento, 2000; Uma experiência queaponta caminhos In: A Economia Solidária noBrasil, São Paulo: Contexto, 2000.

IHU On-Line – Como está a Economia Soli-dária no Brasil?Dalila Pedrini – Esse movimento teve seu mo-mento forte na criação do GT brasileiro, que é for-mado por todas as entidades que atuam com Eco-nomia Solidária no Brasil, como a Cáritas, o Iba-se, a Anteag, a Rede de Incubadoras, etc. Essasgrandes entidades nacionais, que atuam no Brasil

inteiro, formaram esse GT e, com a nossa base, fi-zemos duas grandes plenárias nacionais, uma emSão Paulo, e a outra durante o III Fórum SocialMundial. Em Brasília, aconteceu, nestes dias, aterceira plenária. Na primeira plenária, éramos400, 500 pessoas do Brasil. Fizemos uma carta aoGoverno Lula, com propostas concretas. Eles fica-ram sensíveis, e o Governo de Transição recebeua nossa comissão e fez o lançamento da Secretariade Economia Solidária. A criação da Secretaria éuma ação do Governo, mas como resposta à or-ganização do Movimento da Economia Solidáriano Brasil. A interlocução principal dessa Secreta-ria vai ser um fórum nacional de Economia Soli-dária, criado durante a plenária em Brasília. Se-gundo Paul Singer, novo secretário da Secretariade Economia Solidária do Ministério do Trabalho,esse fórum vai ser o interlocutor principal, não vaiser a OCB. Hoje já temos organizado no Brasil umFórum de Gestores em Economia Solidária. Asprefeituras e os governos estaduais brasileiros quetrabalham com Economia Solidária já têm umaarticulação própria, que é esse Fórum. Eles tam-bém fazem parte do Movimento de Economia So-lidária e serão os interlocutores da Secretaria.

IHU On-Line – Como o Movimento pode in-fluenciar mais nas decisões do Governo emfavor dos trabalhadores?Dalila Pedrini – Este é um Governo de tensões.Ele pretende fazer as coisas, mas é um Governotencionado por forças externas e internas. Forçasexternas são os setores que, durante todos os sé-culos, mantiveram os benefícios e querem conti-

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nuar mantendo-os, para que o Governo não con-cretize o que ele se propôs. Internamente, o Go-verno também não é um bloco unitário. A contra-dição está presente. Nosso papel no Movimentode Economia Solidária é o de tencionar o Gover-no a favor dos trabalhadores, na luta pela constru-ção da cidadania. Diante dessa tensão do Gover-no pelos dois lados, nós queremos nos organizarcomo movimento social que luta pelo direito aotrabalho e à cidadania. Não queremos somentepostos informais de trabalho, mas postos de traba-lho com perspectiva de continuar a luta dos traba-lhadores. Economia Solidária não é só a geraçãode postos de trabalho e a construção de autoges-tão. Ela quer ser uma continuidade da luta históri-ca dos trabalhadores pelos seus direitos por vidadigna e por um outro modelo de desenvolvimen-to. Nós entendemos essa contradição e queremosgestioná-la. Enquanto uns lutam para que nãopercam seus direitos, nós continuamos lutandopara que a cidadania ativa se concretize.

IHU On-Line – Quais suas expectativas emrelação a essa Secretaria de EconomiaSolidária?Dalila Pedrini – Essa Secretaria vem oferecerrespostas às grandes demandas da Economia So-lidária brasileira. Na Secretaria, há um setor deformação, pois o Paul Singer entende que os pró-prios órgãos governamentais não conhecem o queé Economia Solidária, por ser um fenômenonovo. Nossa expectativa é que o Governo federale os seus órgãos compreendam aos poucos o queé Economia Solidária, para que ela possa ocuparum espaço no sentido de receber recursos e serconcretizada. Nós sabemos que isso não é algo fá-cil. Sabemos que não teremos, de imediato recur-sos, para concretizar a Economia Solidária nos es-tados; sabemos que o funcionamento vai ser combase na nossa intervenção no Governo, para queele tome a “cara” de Economia Solidária. Há seto-res de esquerda, quer seja no sindicalismo, querseja no PT, que não concordam com ela, porqueacham que é um movimento reformista. Essesgrupos observam os limites. Nós reconhecemosque eles existem. Eles (os grupos) não acreditam

que é possível continuar a luta dos trabalhadoresvia Economia Solidária. Eles não entendem queem todos os momentos que ela ressurgiu, fortale-ceu a luta dos trabalhadores, fortaleceu a constru-ção de uma cidadania ampla. São setores que nãoconcordam ideologicamente e não aceitam.

IHU On-Line – Quais seriam as principais li-mitações da Economia Solidária?Dalila Pedrini – Um dos grandes desafios daEconomia Solidária é o seu isolamento e, em con-trapartida, a sua possibilidade de estar em rede. Ocontraponto ao isolamento é a Economia Solidá-ria estar com os movimentos sociais existentes noBrasil hoje, como a luta pela moradia, pela terra, omovimento de mulheres, etc. A Economia Solidá-ria tem que se constituir como um movimento cor-relato a esses movimentos, formando a sociedadecivil. Mesmo quando a Economia Solidária transi-ta no mercado, ela tem um transitar diferente domercado neoliberal. Ela busca outras formas, ape-sar de ter produção, comércio, todo o processoeconômico. Essa inserção no mercado é um desa-fio. E um dos maiores é a comercialização. Os ou-tros são os recursos e a questão legal, por exem-plo, a Legislação cooperativista. Todas as leis tri-butárias, a lei das falências, são problemas que sedevem enfrentar. Temos que mudar essas leis,que são os gargalos da Economia Solidária. Outraquestão que justifica nossa luta pela criação da Se-cretaria é transformar a Economia Solidária numapolítica pública. O direito ao trabalho tem que seefetivar. Hoje ela é uma ONG. Não temos nenhumgoverno que assuma isso como política. Com rela-ção aos trabalhadores, temos outros desafios. Umdeles é a formação dos trabalhadores, tanto técni-ca quanto para autogestão e para compreensãodo processo da luta. Muitas das pessoas que vêmpara a Economia Solidária são de setores excluí-dos do mercado. Geralmente, são analfabetos outêm pouca educação, e muitos deles só trabalha-ram informalmente. Têm uma preparação muitopequena para o desafio de assumir os empreendi-mentos e entender como se participa de umarede. Estão acostumados a trabalhar e produzir.Mas como fazer isso em rede?

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

“Piqueteiros”: um discurso sobre o poder

Entrevista com Jorge Ceballos

Jorge Ceballos é advogado e coordenadornacional do Movimento Piqueteros, Barrios de Pie(Bairros de pé) desde sua criação em dezembro de2001. Ceballos concedeu entrevista à IHUOn-Line para conversar sobre a realidade do tra-balho na Argentina e as alternativas propostaspelo movimento naquele país.

IHU On-Line – Como definiria o Movimentodos Piqueteros?Jorge Ceballos – Eu o definiria como um produ-to e uma conseqüência do modelo neoliberal que,desde 1976, gerou índices altíssimos de desem-prego. Os ex-empregados se organizaram e de-ram essa resposta. Os piquetes surgem especial-mente nas cidades que dependiam do petróleo.Ao ser privatizada a Yacimientos Petrolíferos Fis-cales (YPF), essas cidades ficaram como cidadesfantasmas, e seus habitantes, nos bairros, começa-ram a se organizar. É um movimento com umaampla participação de base que não tem um cen-tro, uma fábrica, um sindicato. É uma forma dedemocracia mais direta.

IHU On-Line – A consigna que se vayan to-dos (que todos se vão) já tem atravessadofronteiras. Qual o significado dessa frasepara o Movimento?Jorge Ceballos – Que todos se vão se refere aosatuais dirigentes políticos e sindicais – que foramcúmplices e traidores, ao implantarem todo essemodelo neoliberal –, que se vão também os juízes.

IHU On-Line – Um modelo sem representa-ções nem partidos políticos?Jorge Ceballos – Não. Queremos uma renova-ção política e sindical. Que vão embora os que es-

tão atualmente e que venham outros. Claro queprecisamos de partidos e de organizações, masque sejam do povo.

IHU On-Line – Qual a característica especí-fica do Barrios de Pie?Jorge Ceballos – Barrios de pie luta especifica-mente contra duas coisas: a fome e o desemprego.Por isso, temos refeitórios populares. Em tornodeles, estrutura-se o Movimento. Ali também dis-cutimos que Argentina queremos. Essa estruturado refeitório aproximou muitas mulheres. Elastêm um papel fundamental, não só na tarefa espe-cífica do refeitório, mas também na direção doMovimento. Também se aproximaram muitos jo-vens e desempregados. Tentamos trabalhar ou-tras áreas, como a saúde, a educação popular, acultura... Também levamos adiante hortas e pa-darias comunitárias, empreendimentos laborais,apoio escolar e alfabetização, oficinas de educa-ção popular, bibliotecas populares, campanhas desaúde e formação de agentes de saúde, oficinassobre violência familiar, atividades vinculadascom a cultura e a comunicação. Busca-se o prota-gonismo de todos. O movimento é forte se todosparticipam com consciência. Nosso lema é “umaArgentina para todos”.

IHU On-Line – Como funcionam os “piquetes”?Jorge Ceballos – Ocupamos rodovias, ruas,pontes; a metodologia é muito diversa. O impor-tante é que o sistema saiba que a Argentina temexcluídos que querem viver com dignidade.

IHU On-Line – E o que conseguem?Jorge Ceballos – Conseguimos subsídios doGoverno, comida e, sobretudo, dignidade: esta-

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mos em pé, não aceitamos a situação atual daArgentina. Não a queremos submetida a um po-der externo. Queremos uma sociedade diferenteem relação à distribuição das riquezas e tambémcom outros valores, uma mudança moral, onde ocentro seja o humano.

IHU On-Line – Excluem, então, o uso daviolência?Jorge Ceballos – A violência impõe o modelo, osistema vigente. Nós lutamos para acabar comessa violência. Eles querem impor o terror, dizer“aqui ninguém levante a cabeça”. Mas nós tam-bém fazemos referência; nós, por exemplo, corta-mos a rodovia e, quando nós fazemos isso, a auto-ridade somos nós, eles vêm falar conosco. E su-postamente não se pode fazer isso pelo artigo 194do Código Penal: obstrução da via pública. Entre-tanto, há um direito anterior a esse que é o direitoà vida e nós o fazemos valer e dizemos: aqui a au-toridade somos nós. Estamos construindo comisso uma visão, uma compreensão do tema do po-der. O poder é deles se nós queremos, mas o po-der é nosso quando nós o vencemos.

IHU On-Line - Como vê a realidade do tra-balho na Argentina atual?Jorge Ceballos – Na Argentina, 33% da popula-ção ativa está desempregada, mais de 20% estásubempregada, ou seja, mais da metade da popu-lação economicamente ativa tem problemas de

trabalho. Em um país com 37 milhões de habitan-tes, há 19 milhões de pobres e 9 milhões de indi-gentes. Por outro lado, o povo tem mostrado, nes-sas circunstâncias tão graves, que há uma reservade solidariedade muito grande. Apesar de todo oindividualismo que estimulou esse poder neolibe-ral, dizendo hacé la tuya “não te preocupes comos outros”, “tens possibilidades de ascender”,“pisa a cabeça do outro”.

IHU On-Line – Qual é a postura do Movi-mento em relação às próximas eleições?Jorge Ceballos – É uma farsa eleitoral. As elei-ções não vão mudar o destino do país. As eleiçõesconsagram o “que fiquem todos”. Na segun-da-feira, dia 28 de abril, após a eleição, chega àArgentina a delegação do FMI para sentar com osdois candidatos que vão para o segundo turno. Aspessoas votam, mas não decidem. Nós defende-mos a anulação do voto ou o voto em branco.

IHU On-Line – Qual o modelo de sociedadeque discutem e que lugar ocuparia o traba-lho dentro desse modelo?Jorge Ceballos – O trabalho tem um papel es-sencial. Um modelo de trabalho que ajude a ex-plorar as riquezas naturais e humanas que temosno país. Que traga uma justa retribuição para osméritos. Aqui existem muitas pessoas que juntamdinheiro, embora não trabalhem. O trabalho écentral no compromisso de construir o país e deveser dessa forma retribuído.

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Ócio Humanista

Entrevista com Concha Maiztegui

Concha Maiztegui, psicóloga e doutora emEducação do Ócio, é professora no Instituto deEstudos do Ócio na Universidade de Deusto, emBilbao, Espanha, uma das únicas da Europa queforma pesquisadores no assunto, promovendouma revolução educacional e quebrando a estru-tura tradicional do ensino, que ainda coloca o de-sempenho e a competição em primeiro lugar. Aprofessora esteve na Unisinos, já que a Instituiçãoque ela representa tem uma parceria com o Cen-tro de Ciências da Saúde da Universidade. Elaacompanhou projetos de desenvolvimento comu-nitário, como o Prumo e o Sapecca, e visitou oIHU. Concha conversou com IHU On-Line a res-peito da importância do ócio humanista no desen-volvimento integral da pessoa.

IHU On-Line – Como definiria o ócio huma-nista?Concha Maiztegui – É uma experiência gratifi-cante integral da pessoa e um direito humano fun-damental. Preferimos defini-lo como experiência,e não como atividade. Experiência humana com-plexa, em atuações livres e pessoais. Defendemoso ócio como direito humano básico e que seja re-conhecido no direito internacional como tal. Oócio está ligado ao cotidiano, ao que produz satis-fação, à percepção de liberdade, a um desafiopessoal. Ele colabora com a construção da identi-dade, alimenta uma ilusão, um projeto. Alguémme dava hoje o exemplo de um porteiro que cole-ciona cartões de telefone. Essa atividade despertauma busca, lhe dá uma outra forma de conheci-mento. Ele não é só um trabalhador.

IHU On-Line – Nas nossas sociedades de con-sumo, se fala muito em prazer. Qual seria adiferença entre prazer e ócio humanista?Concha Maiztegui – Eu estabeleceria uma dife-rença entre obter prazer e desfrutá-lo. O prazer re-quer menos esforço e é mais rápido. Para desfru-tar, é necessário fazer um esforço. Quem gosta deescalar montanhas precisa fazer um esforço, acor-dar cedo, ir até o lugar e, uma vez lá, vencer seuspróprios limites, mas isso dá uma sensação deconquista, uma recompensa.

IHU On-Line – O ócio das pessoas se ajus-ta também às possibilidades sociais eeconômicas?Concha Maiztegui – No ócio, se reproduzem asdiferenças que se dão em outros contextos sociais.Há, porém, muitas formas gratuitas de ócio. Aquino Brasil, tem, por exemplo, as escolas de samba:as pessoas passam o ano todo em função dissodesde a elaboração das roupas, as coreografias, asrelações que ali se dão. O importante está na ca-pacidade de desfrutar. Quem não tem essa capa-cidade cai no aborrecimento, não sabe o que fa-zer, nada o motiva e, muitas vezes, cai no ativismoque leva a não afrontar a carência de sentido.

IHU On-Line – Ócio e trabalho são incom-patíveis?Concha Maiztegui – São coisas diferentes. Notrabalho, se podem ter experiências mais potencia-doras que podem ser complementares. Na Euro-pa, há muitas empresas que organizam o ócio dosempregados. Mas isso é um pouco ambíguo, pode

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ser que realmente ampliem as oportunidades oupode ser uma intromissão da empresa no tempolivre e mais pessoal dos empregados.

IHU On-Line – De que depende o desenvol-vimento da capacidade de desfrutar?Concha Maiztegui – A família é um espaço pri-vilegiado. Há famílias que potenciam mais essacapacidade de desfrutar. É um desafio e um esfor-ço, implica vencer a preguiça e dar um salto na ro-tina, romper os hábitos de comodidade. Quemquer jogar futebol todos os sábados, deve fazerum pequeno esforço.

IHU On-Line – Apesar da desagregação dafamília moderna, ela é espaço para apren-der o desfrute?

Concha Maiztegui – Eu parto do fato de que es-tamos numa sociedade em que há menos crian-ças, portanto menos filhos aos quais se dedicar erelações mais próximas entre pais e filhos. Nas ge-rações anteriores, não era freqüente os avós ou ospais brincarem com os filhos. Eles deviam chamaros pais de o Sr. e Sra. etc. Hoje o adulto brincacom a criança, e isso é uma mudança social. Mu-dou o papel do pai e da mãe, é outro tipo de mo-delo parental. A família, nesse sentido, está maispróxima de ser um lugar para aprender o desfrute.O jogo é um momento privilegiado porque, emoutros momentos, os pais cobram dos filhos as no-tas na escola, a boa conduta, etc. No jogo, pais efilhos vivem uma forma de igualdade, que é im-portante para a construção da identidade e o de-senvolvimento da capacidade de desfrutar.

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A redução do tempo de trabalho e a cultura do tempo livre

Entrevista com André Langer

André Langer é membro do Centro de Pes-quisa e Apoio aos Trabalhadores (CEPAT), mestreem Ciências Sociais Aplicadas pela Unisinos, comdissertação intitulada Pelo êxodo da sociedade sa-larial. A evolução do conceito de trabalho emAndré Gorz18. Em entrevista à IHU On-LineAndré Langer falou sobre a reivindicação da dimi-nuição do tempo de trabalho. Sobre esse tema, Lan-ger publicou um artigo no Cepat Informa n.º 108,de abril de 2004. O Cadernos IHU n.º 5 publicouuma síntese da sua dissertação de mestrado.

IHU On-Line – Por que a proposta da reduçãodo tempo de trabalho é reintroduzida na so-ciedade brasileira, especialmente pela Cen-tral Única dos Trabalhadores (CUT), num pe-ríodo de grave desemprego, e, ao mesmotempo, recordes de horas extras? Não pareceuma idéia irrealizável nesse contexto?André Langer – É uma proposta que responde,por um lado, aos anseios históricos dos trabalha-dores de todos os tempos. Nesse sentido, ela reto-ma esta grande luta por trabalhar menos tempo.Por outro lado, responde à grande questão domomento: a distribuição da produtividade. Hoje osistema produtivo é capaz, por conta das inova-ções tecnológicas, de produzir mais, com menostrabalhadores e em menos tempo. Ou seja, ogrande desafio que se coloca não é mais prioritaria-mente o da produção, mas o da distribuição das ri-quezas socialmente produzidas. Portanto, distri-buindo-se entre todos o trabalho socialmente ne-

cessário, é possível que todos trabalhem menos. Oque ocorre no Brasil é, na verdade, uma concen-tração não só da renda, mas também do trabalho,fenômeno que aparece no grande número de tra-balhadores que faz hora extra, cujo efeito maisperverso é o exponencial desemprego que vemos.Aqui há trabalho que pode ser distribuído de ma-neira mais eqüitativa entre todos. O sentido da re-dução do tempo de trabalho consiste numa duplaação: 1) é a única alternativa capaz de evitar umacrescente dualização da sociedade entre os traba-lhadores do núcleo central, de tempo integral, ostrabalhadores dos círculos periféricos, precários,de baixa remuneração, de tempo parcial, e os de-sempregados; 2) liberar tempo para as atividadesautônomas sem fins lucrativos. A proposta da re-dução do tempo de trabalho não pode ser uma fi-nalidade em si mesma. O horizonte no qual eladeve ser pensada é a extensão máxima da esferada autonomia. Assim, a idéia da redução do tem-po de trabalho é perfeitamente possível.

IHU On-Line – Quais são essas aspiraçõesque estão por trás da proposta de reduçãodo tempo de trabalho?André Langer – A redução do tempo de trabalhonão visa unicamente à criação de novos empre-gos, por mais importante que isso seja para a socie-dade brasileira a fim de distribuir as riquezas soci-almente produzidas, mas visa também à aberturade novos horizontes de realização pessoal, inter-pessoal e comunitária para além do traba-

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18 André Gorz é autor de muitos livros sobre o mundo do trabalho. Os dois últimos são: Misères du présent. Richesse dupossible. Paris:Galilée, 1997 e L’Immatériel. Connaissance, valeur et capital. Paris:Galilée, 2003. (Nota da IHUOn-Line)

lho-emprego. Convém reconhecer que para boaparte dos trabalhadores o tempo fora do trabalhoacaba sendo investido de crescente importânciana sua vida. Trabalhadores há que não admitemmais viver exclusivamente para o trabalho. Por to-dos os lados, salta o desejo de trabalhar menos eviver melhor. A qualidade de vida aparece comoum valor cada vez mais importante a ser cultiva-do. O lazer, o tempo com a família e a diversão fa-zem toda a diferença entre uma vida pautada e in-vadida pelo trabalho e uma boa vida. É precisotambém relacionar a política de redução do tem-po de trabalho a um projeto político de transfor-mação da sociedade: as medidas que compõemuma política de redistribuição do trabalho e dotempo liberado deverão se inscrever na perspecti-va de uma superação da sociedade do trabalhoassalariado. Uma política de redução do tempo detrabalho não pode perder de vista o horizontemais amplo de construção de uma nova socieda-de. Caso contrário, será apenas uma medida pon-tual ou isolada, um remendo no sistema, comgrandes chances de fracassar.

IHU On-Line – Como efetuar uma mudançapara uma nova cultura do tempo livre?André Langer – A redução do tempo de trabalhonão aumenta automaticamente o tempo livre daspessoas. Trata-se de ir criando uma nova culturado tempo livre para que a redução da jornada detrabalho não redunde num segundo, ou mesmoterceiro, emprego. No fundo, trata-se de dar umanova importância aos outros tempos da vida econstruí-los fora da lógica produtivista. A socieda-de brasileira está convidada a olhar mais para oseu interior, suas necessidades, suas carências,seus desejos, e menos para o interior da fábrica,do escritório e suas necessidades. Na realidade, aredução do tempo de trabalho objetiva enfrentardois grandes desafios: primeiro, redistribuir entretodos o trabalho socialmente necessário, de modoque todos possam trabalhar menos, melhor e deoutra maneira. Trata-se de proceder a uma outrarepartição do trabalho que não a imposta hojepelo capital. Em segundo lugar, começar a visuali-zar o tempo liberado ou o tempo livre, não maiscomo um tempo vazio, sem sentido, ou simples-

mente na perspectiva de recuperar as forças e asenergias para o trabalho assalariado, mas comoum tempo rico em novas possibilidades desvincu-ladas da lógica da racionalidade econômica e damercantilização. O tempo livre não deve ser vistocomo um tempo vazio, um tempo de pura passivi-dade. É o tempo de produção de novas sociabili-dades, de relações sociais e tempo para o livre de-senvolvimento pessoal. O tempo é consideradocomo a fonte mais preciosa, e a economia da esfe-ra da necessidade terá por princípio economizarao máximo o tempo de trabalho a fim de maximi-zar o tempo disponível. Para Marx, a verdadeiraeconomia – aquela que economiza – é a de tempode trabalho. A verdadeira economia leva à elimi-nação do trabalho como forma dominante de ati-vidade. É por essa razão que a redução do tempode trabalho pode abrir um espaço sempre maiorpara a realização de atividades que não estejammais ligadas à lógica da racionalidade econômica.O tempo livre, insiste Gorz, “permite aos indiví-duos desenvolver capacidades (de invenção, decriação, de concepção, de intelecção) que lheconferem uma produtividade quase ilimitada.”

IHU On-Line – Como fazer com que o tempolivre não se submeta à lógica do consumo?André Langer – Essa é uma questão difícil de serresolvida. Evidentemente, não se pode desdenhardo poder que o consumo passou a ter em nossassociedades. É preciso dar-se conta de que o exa-cerbamento do consumo está estreitamente liga-do à produção capitalista que separa o produtordo consumidor. Não há produtor sem consumi-dor, assim como não há produção sem consumo.Portanto, em nossa sociedade, o consumismo estáligado à própria idéia de desenvolvimento, decrescimento. Por esse motivo, para que a produ-ção possa crescer sempre, é preciso instigar e di-namizar o crescimento do consumo, sem que seleve em conta os efeitos macrossociais e ambien-tais de tal lógica. Como recorda Gorz, o antigo“isso me basta” cede hoje lugar ao “mais valemais” ou ao “nunca é suficiente”. Uma revoluçãodas necessidades entranha uma nova concepçãona qual “a eficácia máxima ilimitada na explora-ção do capital exigirá, assim, o máximo ilimitado

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de ineficiência na cobertura das necessidades, edo esbanjamento no consumo”. Trata-se de ir cri-ando a consciência de que o consumo – e a eco-nomia – precisará ter cada vez mais em conta nãotanto a quantidade do crescimento, mas a quali-dade de vida, o que nos faz transcender o meroeconomicismo e incluir questões relativas ao meioambiente. Nessa perspectiva, se pode introduzir

todo o debate sobre crescimento sustentável oudecrescimento, que vem ganhando força, sobre-tudo na Europa. Ao mesmo tempo, trata-se de iraumentando domínios, pessoais e coletivos, livresda lógica do consumo. Nada justifica a onipresen-ça dessa lógica na vida das pessoas e dasociedade.

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Ócio humanista e o sentido do trabalho

Entrevista com Cláudio Gutiérrez

Cláudio Gutiérrez é professor das Ciênciasda Saúde da Unisinos. Gutiérrez é graduado emEducação Física pelo Instituto de Porto Alegre(IPA), mestre em Educação pela Unisinos, douto-rando em Ócio y Potencial Humano no Institutode Estudos do Ócio na Universidade de Deusto,em Bilbao, Espanha, e autor de Formação deprofessores na escola cidadã. São Leopoldo:Unisinos, 2001.

IHU On-Line – De que forma o ócio pode seconstituir em espaço de formação cidadã eo que isso significa?Cláudio Gutiérrez – Acostumamo-nos a falar decidadania desde a lógica liberal, de um status indi-vidual que implica direitos e deveres aos indiví-duos reconhecidos como membros de uma comu-nidade. Esta cidadania formal se garante por meiode todo um aparato legal. A lei obriga o cidadão acomportar-se bem e ser responsável, caso contrá-rio paga multas e sofre penas. Por outro lado, se secomporta bem tem garantidos direitos. O que te-mos observado hoje é que, de um lado, as pessoasnão estão mais dispostas a cumprir uma lei quelhes parece alheia e que oprime; e de outro lado,em nossa sociedade de consumo, os direitos da ci-dadania quase se transformaram também em ob-jetos de consumo. Consumimos os direitos da ci-dadania como se fosse um produto qualquer, re-clamamos os direitos de cidadania como quem re-clama direitos do consumidor. Transformamo-nosde cidadãos em consumidores de cidadania.Entre o medo “do chicote da lei” e o consumo dedireitos, perdeu-se a noção de virtude cívica.

A proposição do ócio humanista para estaquestão é que nos apropriemos dos espaços cole-tivos, por onde nos leva nosso desejo, transfor-

mando-os em espaços de produção de cidadaniapelo exercício da capacidade de atuar coletiva-mente na esfera pública. Atuar como cidadãos,dessa vez, não pelo temor à lei ou pelo interessena garantia de benefícios pessoais, mas pela satis-fação que há em nos tornarmos humanamentemembros de uma comunidade virtuosa que buscalevar adiante um projeto de felicidade. Nessaperspectiva, os espaços e relacionamentos anima-dos pelo conceito de ócio humanista tornam-sedispositivos de exercício e produção de cidadania.Existe uma série de coletivos, como grupos de es-porte, de lazer, de dança de rua, confrarias gastro-nômicas, grupos literários, grupos de serviços, as-sociações de bairro, grupos de defesa da nature-za... que, potencialmente, podem ser orientadosao exercício democrático, formação de espaçopúblico e produção, via redes, de tecido social.Para quem acha que é pouco, nestes 40 anos dogolpe militar no Brasil, os movimentos de contra-cultura abalaram mais a moral conservadora doque toda a guerrilha à ditadura.

IHU On-Line – Como fazer para desvincularcada vez mais o tempo livre da lógica da racio-nalidade econômica e da mercantilização?Cláudio Gutiérrez – Tempo livre é livre de quê?Do trabalho. Tempo livre é uma conquista da clas-se trabalhadora mediante as históricas lutas pelaredução da jornada de trabalho, uma conquistamuito importante que estamos correndo o risco deperder pelas atuais transformações do mundo dotrabalho. O tempo livre conquistado oportunizouo desenvolvimento do lazer e de uma série de rela-ções e experiências nos espaços de lazer que mar-caram a conduta e os valores das pessoas. Entre-tanto, a crítica ao conceito de tempo livre apare-

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ceu ainda na década de 1960, quando Adornolançou a questão: o tempo livre de um indivíduosubmetido à sociedade industrial pode ser verda-deiramente livre? Ele observava que o consumis-mo e os hobbies da sociedade americana não ti-nham nada a ver com liberdade, eram apenas ooutro lado de uma relação mecânica com a socie-dade industrial. Acho que o problema já começase entendemos nossa capacidade criativa, nossoélan vital, nossa vontade de potência, reduzida aoconceito de força de trabalho: o ser humano redu-zido a um animal que labora não deixa espaçopara outra coisa que não produção e consumo, asduas faces desse processo metabólico com a natu-reza, que é o labor. Para o tempo de trabalho, ori-entado à produção de objetos de consumo, o tem-po livre oferece a possibilidade de consumo. É sin-tomático que meçamos o quanto uma pessoa sedeu bem na vida pela sua capacidade de consu-mo. O país mais poderoso do planeta tem umapopulação de obesos... não é por acaso. O consu-mo do ser humano reduzido ao animal laborans éum consumo de hambúrguer, batata frita, carro ebugigangas. Quanto melhor uma pessoa se dá navida, em qualquer país, melhores as comidas, car-ros e as bugigangas. Agora imagine que a estesconsumistas escravos de si mesmos, obesos e se-dentários, o capitalismo chama de elite! Retoman-do a questão, o conceito de tempo livre, importan-te para a recuperação da força de trabalho, para olazer e o consumo, não se desvincula da racionali-dade econômica.

IHU On-Line – Numa sociedade que expulsaas pessoas do mercado de trabalho e sobre-carrega as que ainda permanecem nele, fa-lar de ócio não pode resultar algo alienan-te? Em que casos o discurso sobre o óciopoderia realmente ser alienante?Cláudio Gutiérrez – Falar em ócio significa vol-tar a afirmar o valor da vida contemplativa, dar

um basta ao ativismo estéril que nos sobrecarregade vazio (e também acho que a indústria do entre-tenimento que consagrou o domingo ao futebolfaz parte desse monte de nada que nos empobre-ce). Também significa valorizar atividades não-utilitárias que encontram um fim em si mesmas.Não gosto, porém, de empregar o termo ócio sozi-nho, porque os sujeitos que colocaram fogo emum índio que dormia, o fizeram por puro deleite eprazer, sem outro interesse que não o de se diver-tir com isso. Para dar a direcionalidade positiva aoconceito é que o grupo ao qual me vinculo fala emócio humanista (pelos mesmos motivos, mas rei-vindicando outra origem e finalidade, o De Masifala em ócio criativo). A resistência ao ativismo es-téril encontra sentido se aliada a um projeto de de-senvolvimento humano. Dessa perspectiva, a alie-nação se realiza quando a pessoa esquece sua hu-manidade e se reduz a uma utilidade, quando ocorpo não sonha mais, e o sujeito se torna objeto;objeto de produção e consumo.

IHU On-Line – O discurso sobre o ócio temimplícita alguma forma de questionamentoda sociedade salarial ou alguma propostaalternativa?Cláudio Gutiérrez – Paul Lafargue19 foi o maistenaz crítico da sociedade salarial. Revolucionáriode esquerda da época de Marx (era genro deste)reivindicava, diante da capacidade produtiva daindústria, uma drástica redução na jornada de tra-balho. Percebendo que a sociedade capitalista, aoinvés de oferecer tempo livre remunerado, iria fo-mentar uma torturante concorrência de uns pou-cos empregados com as máquinas (ao mesmotempo que cresceria uma massa desempregada esem renda) conflagrava as classes trabalhadoras alutarem por uma legislação que garantisse redu-ção da jornada de trabalho. No manifesto Direitoà preguiça (1880), escrito na prisão, previa suaderrota: “como exigir de um proletário corrompi-

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19 O famoso livro de Paul Lafargue, O Direito à preguiça pode ser encontrado com o pequeno, mas instigante livro de ThierryPacquot, em Paul Lafargue-Thierry Pacquot, O Direito à preguiça/ A arte da sesta, publicados pela editora portuguesaCampo das Letras, em 2002. No ano 2000, foi publicada uma versão brasileira do livro de P. Lafargue, com uma introduçãoda profa.Marilena Chauí, que está esgotada. Sobre a arte da sesta cf. IHU On-Line n.º 61, de 26 de maio de 2003. (Nota daIHU On-Line).

do pela moral capitalista uma decisão viril?” Damesma forma, Bertrand Russell20, em seu Elogioao ócio (1935), propunha um ordenamento eco-nômico da sociedade que possibilitasse a promo-ção do lazer e do ócio e a redução do trabalho. Viaas possibilidades cada vez mais limitadas do tra-balho assalariado como mecanismo de distribui-ção de renda. Fustigava: “a moral do trabalho éuma moral de escravos, e o mundo moderno nãoprecisa de escravidão”. E antes de todos esses,Aristóteles, que emancipara seus escravos quandono leito de morte, apontava, na escravista socie-dade clássica, que, se as rocas das fiandeiras fias-

sem por si sós, o dono da oficina não precisariamais de auxiliares, nem o senhor de escravos. Naatualidade, as proposições de alternativa passampela garantia de direitos sociais e o debate e pro-posições sobre os direitos econômicos, como osprogramas de renda mínima (a tese de que cadapessoa tem direito a uma parte da riqueza que asociedade produz). De minha parte, acredito quehá uma revolução íntima a ser travada por cadapessoa e cada comunidade que tenha a coragemde sonhar projetos de felicidade em que os sereshumanos não se reduzem a produtores e consu-midores de coisas.

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20 O texto pode ser encontrado no livro Paul Lafargue e Bertrand Russell, A economia do ócio. São Paulo: Sextante, 2001.(Nota da IHU On-Line ).