universidade federal da bahia - repositorio.ufba.br · dissertação apresentada como requisito...

180
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E PRÁXIS PEDAGÓGICA CAMINHAR, ENCONTRAR E CELEBRAR: o riso e a arte bufa no projeto pedagógico de Carlos Roberto Petrovich ANA RITA QUEIROZ FERRAZ Salvador 2006

Upload: dangdat

Post on 16-Dec-2018

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, SOCIEDADE

E PRÁXIS PEDAGÓGICA

CAMINHAR, ENCONTRAR E CELEBRAR:

o riso e a arte bufa no projeto pedagógico de

Carlos Roberto Petrovich

ANA RITA QUEIROZ FERRAZ

Salvador

2006

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

ANA RITA QUEIROZ FERRAZ

CAMINHAR, ENCONTRAR E CELEBRAR:

o riso e a arte bufa no projeto pedagógico de

Carlos Roberto Petrovich

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Professora Orientadora: Dra. Dinéa Maria Sobral Muniz

Salvador

2006

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

TERMO DE APROVAÇÃO

ANA RITA QUEIROZ FERRAZ

CAMINHAR, ENCONTRAR E CELEBRAR:

o riso e a arte bufa no projeto pedagógico de

Carlos Roberto Petrovich

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em

Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, à seguinte banca

examinadora:

Dinéa Maria Sobral Muniz, Professora- Orientadora_________________________ Doutora em Educação. Dante Augusto Galeffi___________________________________________________ Doutor em Educação.

Walter Omar Kohan_________________________________________________________ Doutor em Filosofia.

Salvador- Bahia - Brasil- 2006

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

Carlos Roberto Petrovich (1936 Carlos Roberto Petrovich (1936 Carlos Roberto Petrovich (1936 Carlos Roberto Petrovich (1936 –––– 2005) 2005) 2005) 2005) –––– Acervo Vanda Machado Acervo Vanda Machado Acervo Vanda Machado Acervo Vanda Machado

Onde quer que, entre sobras e dizeres Jazas, remoto, sente-te sonhado, E ergue-te do fundo de não seres Para teu novo fado.

Fernando Pessoa

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

Dedico este texto àqueles que, mantidos à margem da história oficial, não lerão os meus escritos; mas que a despeito de toda opressão riem desmesuradamente na praça pública. Dedico aos meus pais, Juracy e Lúcia, que corajosamente desafiaram a mesma história oficial para que eu possa, hoje, conduzi-los à universidade. Dedico minhas palavras à sua ousadia e testemunho de muitas histórias possíveis. Dedico, ainda, a Carlos Roberto Petrovich, cavaleiro andante e filho de Ogum, que a-briu caminhos para que possamos renovar a nossa utopia de uma "comuniversidade" risível e ridente.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

AGRADECIMENTOS Todo o meu caminho foi de celebração. Nele encontrei apenas generosidade e disponibi-lidade para compartilhar. Sou grata: a Carlos Roberto Petrovich que me confiou sua vida, sem recato, e deixando cair as suas máscaras, confrontou-me com a beleza abismal da existência; à professora e amiga Vanda Machado que transmutou sua dor em vida nova, apoiando sem restrições as minhas escolhas. Ao seu talento e coragem para aproximar distâncias; a todos os entrevistados que dividiram lembranças e emoções, ajudando-me a tecer este texto; à professora Dinéa Maria Sobral Muniz, minha orientadora, pela sua ousadia em acolher um tema pouco convencional na academia; ao meu amigo virtual Albor Rañones, meu co-orientador, aquele que nunca vi o rosto, mas que através da palavra provocou-me, consolou-me nos momentos de angústia, e sem pudores compartilhou saberes e perplexidades. À sua paciente e cruel leitura; à professora e amiga Maria Antônia Coutinho pela cumplicidade e abertura para afeta-ções; ao professor Dante Augusto Galeffi que me inspirou com o seu "Ser-sendo" e desafiou-me a prosseguir com vigor e ternura. à mestra Mercedes Cunha, por seu carinhoso e necessário rigor para fazer-me refletir so-bre os modos como me implicava nesta pesquisa; ao querido amigo Paulo Araújo, por sua solidariedade no momento doloroso das sínteses; à doação da amiga Martha Martinez Silveira que caprichosamente cuidou das referências por onde trilhei; às amigas Ana Suely, Graziela e Silvia, por tornarem mais leve a lida diária, possibilitan-do-me momentos para o ócio necessário à criação; aos professores Felippe Serpa (in memoriam), Celi Tafarel e Miguel Bordas por desvela-rem os sentidos da universidade no nosso país; por me ajudarem a compreender o funda-mental compromisso com o discurso e a atitude política e pública. Também a minha gra-tidão às professoras Maria Inez Carvalho e Maria Antonieta Tourinho, que me aproxima-ram da poética do "ser pesquisadora" pela via arte cinematográfica;

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

aos colegas Ivan, Hildonice e Eduardo pela constante disposição para dividir inquietações teóricas e espirituais; ao amigo Miguel Brandão por me disponibilizar os segredos da sua biblioteca, conduzin-do-me ao teatro grego e à filosofia; aos funcionários da Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia, por acolherem as minhas buscas sempre com disponibilidade e atenção. A Eugênio do Sebo Papirus pelo empenho em auxiliar nas minhas buscas; a Deusi de Magalhães e a Leon Góes, por me possibilitarem o sonho encarnado da arte bufa em tempos pós-modernos; às amigas Carmen Mecês e Cristina Voigt por respeitarem o meu necessário silêncio; à tia Jacy, pelos banquetes dos domingos, desculpa para nos fazer ver o significado de pertença a uma família; ao tio Moacyr por insistentemente acreditar na minha letra; à Maria Helena por cuidar da minha casa, lugar do repouso e da solidão essencial à pro-dução da escrita; aos meus irmãos, Ricardo e Lílian, e sobrinhos, Chiquinho, Matheus, Duda e Ricardinho, por amorosamente compreenderem a minha ausência. Especialmente aos dois últimos por serem o delicado colo nos momentos de angústia; ao meu amado companheiro, Basílio, meu cúmplice nos momentos mais difíceis, a minha mais profunda gratidão pelo apoio irrestrito, pelo paciente cuidado com as pequenas e as grandes dificuldades que encontrei no caminho. O meu agradecimento por acreditar e não me deixar desistir; por me fazer rir dos meus temores, lembrando-me que tudo é transitó-rio e logo passa; à minha mãe Lúcia, o primeiro bufão, por ter tornado alegre o meu coração e me empre-nhado de tantos sonhos possíveis; por me ensinar a rir, a chorar e a amar sem pudores. Ao meu pai Juracy, que com seriedade aberta e crença no humano do homem ensinou-me a ser generosa e persistente nas adversidades. A ambos, pelo exemplo e confiança; pela incondicionalidade do seu amor; e por me mostrarem que é sempre possível ir além, por-que são infinitos os caminhos. Por fim, a todos aqueles que encontrei e que comigo celebraram para que hoje eu seja tão diversa do que fui. "Bendita és tu e toda tua história", dizia-me o amigo Jorge Rocha, recordação presente em muitos momentos desta minha jornada.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

Tu que viste o homem como deus tanto como carneiro – despedaçar o deus no homem tal como o carneiro no homem e rir despedaçando – isto, isto é a tua ventura ventura de pantera e águia, ventura de poeta e doido!...

Nietzsche, 1986

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

SUMÁRIO

PRÓLOGO – Ogum ieee!!!.....................................................11

ATO I – PARINDO BRASAS

Cena 1ª - Eu rio. E mar... ...................................................... 16

Cena 2ª - Uruborus: o capeta morde o próprio rabo .............. 29

ATO II – O FIO DE PETROVICH....................................... 39

ATO III - INTERMEZZO

Cena 1ª - Senhoras e senhores, Carlos Roberto Petrovich ..... 48

Cena 2ª - Enganadoras ficções .............................................. 58

Cena 3ª - Quem conta um conto............................................ 69

Cena 4ª - Mascaradas: Dionísios e Exus ............................... 76

ATO IV – CUM HILARITAS IN INFINITUM

Cena 1ª - Comedores de luz .................................................. 89

Cena 2ª - Bufonaria e docência..............................................111

Cena 3ª - Doidas palavras ................................................... 139

Unidade 1ª - Canto de arribação.......................................... 144

Unidade 2ª - A carnavalização da vida................................ 154

Unidade 3ª - A Télema no Pelourinho................................. 158

ATO V – CAI O PANO...................................................... 168

REFERÊNCIAS ................................................................. 174

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

RESUMO Pesquisa teórica, de cunho filosófico-educacional, discute o projeto pedagógico do pro-fessor Carlos Roberto Petrovich (1936-2005) e suas possíveis ressonâncias com o riso e a arte bufa de François Rabelais, estudado por Mikhail Bakhtin. Petrovich foi aluno da primeira turma da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e tornou-se depois professor. Nos anos imediatamente anteriores à sua morte, foi suspenso Ogan de Ogum, Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, Salvador-Bahia. Como não há registro sistemati-zado das suas experiências, este trabalho converteu-se numa tentativa de preservar a me-mória daquele que defendeu vigorosamente os povos silenciados. Pensar o homem e o mundo na perspectiva de Petrovich ensejou, necessariamente, o trânsito pela educação, pela cultura, pela arte e pela religião afrobrasileira. A preferência por resgatar a intensi-dade da sua vida através de personagens que representou no teatro e no cinema, trabalhos nos quais atuou como diretor e como arte-educador, todos de grande relevância para compreender sua verve poético-dramática e suas idéias de educação, resultou num texto que incorpora livremente figuras de estilo e adota o sentido do mosaico como premissa para construção do seu perfil biográfico. Sustenta, assim, a existência de um projeto pe-trovichiano, como percurso formativo guiado pelo imperativo de "ser o que se é", lema de Píndaro. Esta pesquisa apoiou-se no método alegórico e na filosofia da história de Walter Benjamin, tomando a vida de Petrovich como ruína e ressignificando-a a partir das narra-tivas daqueles que com ele conviveram. Para tanto, foram realizadas entrevistas abertas, gravadas, além de falas do próprio Petrovich. O projeto pedagógico deste professor insti-ga ao resgate da historicidade, da ambivalência, da corporeidade, da quebra de hierarqui-as, características do riso rabelaisiano, promovendo a restauração do educar a partir de uma estética que incorpora a arte, a filosofia, a literatura e a mitologia como possibilida-des de libertação do sujeito para empreender sua viagem na direção de "ser o que é". Palavras-chave: Educação; Filosofia; Teatro; Universidade; Riso.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

RESUMEN

Pesquisa teórica, de carácter filosófico-educacional, discute el proyecto pedagógico del profesor Carlos Roberto Petrovich (1936-2005) y sus posibles resonancias con la risa y el arte bufo de François Rabelais, estudiado por Mikhail Bakhtin. Petrovich fue alumno del primer curso de la Escuela de Teatro de la Universidad Federal de Bahia (UFBA), tor-nándose profesor en la misma a partir de 1972. En los años inmediatamente anteriores a su muerte, fue suspenso Ogan de Ogum, Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, Salvador-Bahia. Como no existe registro sistematizado de sus experiencias, este trabajo se convierte en una tentativa de preservar la memoria de aquel que defendió vigorosamente los pueblos silenciados. Pensar el hombre y el mundo en la perspectiva de Petrovich propició, necesa-riamente, el tránsito por la educación, por la cultura, por la religión afrobrasileña, por el arte. La preferencia por rescatar la intensidad de su vida a través de los personajes que representó en el teatro y en el cine, trabajos en los cuales actuó como director y arte-educador, todos muy relevantes para comprender su sentido poético-dramático y sus ideas de educación, resultó en un texto que incorpora libremente figuras de estilo y adop-ta el sentido de mosaico como premisa para la construcción de su perfil biográfico. Sus-tenta, así, la existencia de un proyecto petrovichiano, como curso formativo guiado por el imperativo de "ser lo que se es", lema de Píndaro, sintetizado por ele en la triade "cami-nar, encontrar y celebrar". Esta pesquisa se apoyó en el método alegórico y en la filoso-fía de la historia de Walter Benjamin, tomando la vida de Petrovich como ruina y resigni-ficándola a partir de las narrativas de aquellos que con el convivieron. Para tanto, fueron realizadas entrevistas abiertas, gravadas, además de declaraciones del propio Petrovich. En la universidad, como profesor o asumiendo representación en órganos colegiados, confrontó tradiciones sustentadas por una cierta "ideología de la seriedad", insistiendo en el diálogo con la cultura popular. Nació de esta relación el proyecto realizado con la Di-dá Escuela de Música, discutido del punto de vista de una educación libertaria, en los moldes de la Télema de Gargantua, personaje de Rabelais. Se percibió, durante la pesqui-sa, la forma insidiosa e insistente con que la risa se manifiesta en las estructuras de los poderes instituidos, considerando que es constitutivo de la naturaleza humana. El proyec-to pedagógico del profesor Carlos Roberto Petrovich instiga al rescate de la historicidad, de la ambivalencia, de la corporeidad, de la quiebra de jerarquías, características de la risa rabelaisiana, promoviendo la restauración del educar a partir de una estética que in-corpore arte, filosofía, literatura y mitología como posibilidades de liberación del sujeto para emprender su viaje en la dirección de "ser lo que es".

Palabras llave: Educación; Filosofía; Teatro; Universidad; Risa.

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

PRÓLOGO - Ogum nhê!!!!1

O início foi uma gargalhada, antes mesmo de fazer-se a luz. Ri da viagem

que me propunha, das aventuras e das desventuras que viveria. Hoje rio dos meus leito-

res e do seu assombro diante da desrespeitosa gargalhada e da convocação para uma

leitura em primeira pessoa. O escárnio daqueles que se enredam numa trama, ou por ela

são im(pli)cados2, desloca perspectivas. Este texto é um convite a autoderrisão.

1 Saudação do povo do Axé ao orixá Ogum, aquele que vai à frente, abrindo os caminhos (Cultura Afro-brasileira) 2 Tomo aqui o sentido de dobra, "le plie", que Giles Deleuze desenvolve a partir de Leibniz. Igualmente encontrado em palavras como multi(pli)car, com(pli)car, ex(pli)car, também utilizadas neste texto com o propósito de ressaltar o sentido de dobra. Contrapõe-se à reta renascentista, pela simultaneidade cônca-

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

12

Incitada por possíveis ressonâncias entre o riso e a arte bufa rabelaisianos3, e

o projeto pedagógico de Carlos Roberto Petrovich, deparei-me com aquilo que está fora

dos limites da razão, o que se constitui uma outra razão ou, ainda, uma não-razão, uma

des-razão - lugar do riso: a não-positivação que torna possível uma "gaia ciência".

(En)carnar o verbo foi o meu desafio. Esta violência, à moda alegórica, as-

sinalava a morte de Petrovich e a sua salvação; razão pela qual uma escrita aberta e cria-

tiva exigiu-me um duplo4 que fizesse troça dos meus medos de descolamento das tradi-

ções, e que rompesse com o repouso que me roubava as sombras para deixar que a vida

agisse profunda e diretamente na minha sensibilidade.

É pouco convencional apresentar uma dissertação falando de paixão e de

desejo; e menos ainda oferecê-la para que seja lida como prosa poética. Neste momento,

contudo, não me ocorre caminho mais oportuno para traçar um percurso formativo. O

fazer-me pesquisadora despertou-me para a beleza de um outro que apenas se insinuava,

jamais certeza, revelando-me que o encontro entre duas presenças dá-se unicamente

enquanto abertura e disposição para a morte.

Carlos Roberto Petrovich, como ele próprio costumava dizer, era "índio tu-

piniquim, comedor de camarão das margens do Potengi5, domesticado na Bahia". Aluno

da primeira turma da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia, tornou-se pro-

fessor desta casa em 1972, aí permanecendo até a sua morte, em abril de 2005. Na terra

de Todos os Santos fez-se arte-educador e foi suspenso Ogan de Ogum, empreendendo

uma vigorosa luta a favor da educação, do teatro, e dos povos silenciados.

vo/convexo, interior/exterior, contido/continente; movimento tipicamente barroco. Para o pensador fran-cês, dobrar/desdobrar não se limita a contrair/descontrair, mas envolver/desenvolver. Para aprofundamen-to do tema: DELEUZE, Giles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução Luiz B. L. Orlandi. Campinas, São Paulo: Papirus, 1991. 3 Referência aos estudos do pensador renascentista François Rabelais, acerca da cultura cômica popular. 4 "Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica; e a arte se instala a partir do momento em que o escultor que modela acredita liberar uma espécie de sombra cuja existência dilacerará seu repouso" (ARTAUD, 1985, p. 22). 5 Rio que corta a cidade de Natal-RN.

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

13

Sua longa jornada envolveu-me em labirintos que se multiplicavam, inti-

mando- me a assumir a autoria desta obra. Não pude furtar-me, assim, ao modo memo-

rialista, de ceder espaço à comédia da minha vida privada que se insurgia na escritura

deste texto e, paradoxalmente, dele me arrancava como uma desconhecida de mim

mesma, denunciando a distância entre aquela que narrava e aquela que escrevia. Na

ambiência de um campo de saberes que se afirma pela terceira pessoa, a solidão inevitá-

vel na escolha dos caminhos e a confrontação com as convenções universitárias foram-

me especialmente penosas; motivo que me levou a considerar a universidade a partir da

ótica bufonesca. Ressalto, ainda, que tendo sido esse o hábitat de Petrovich, desde 1956,

necessariamente também ele me arrastou nesta leitura.

Percebi que a ideologia do sério, representada por uma metanarrativa única e

homogeneizadora, soberana no mundo contemporâneo, à semelhança de outros momen-

tos históricos, e que atravessou a universidade desde o seu nascimento no século XIII,

desvitalizava a intensidade do meu olhar. Para, então, ad-mirar o objeto desejado, bus-

quei viver a heresia de experiências risíveis, instigada à autoderrisão pelo duplo Petro-

vich.

A jornada para nomear o objeto do meu desejo foi tão árdua quanto foi a-

bismar-me na sua direção. Nomeado e apreciado na perspectiva do riso e da arte bufa

rabelaisianos, segundo o Rabelais de Bakhtin (1999), o projeto pedagógico do professor

Petrovich lançou-me numa pluralidade de caminhos que convocavam a educação, a cul-

tura, a arte e a religião, com igual vigor. Compreendi, por fim, a impossibilidade de pre-

cisar os limites entre o homem, o artista, o educador e o devoto, pois o que se projetava

era o "ser-sendo".

A busca por traços do riso medieval e renascentista foi motivada pelo anún-

cio de Bakhtin (1999) acerca do seu gradual desaparecimento a partir da Idade Mo-

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

14

derna. Assumindo como verdadeira a assertiva de que o riso é constitutivo do Dasein

(ALBERTI, 2002), pareceu-me possível encontrá-lo na contemporaneidade, demudado

em manifestações distintas daquelas descritas por Rabelais. Iluminá-lo no projeto peda-

gógico de Petrovich seria potencializá-lo na direção de novas perspectivas que integram

a historicidade, a corporeidade, a ambivalência e a quebra de hierarquias, como princí-

pios do educar.

Não pretendi uma biografia de Petrovich, nos moldes tradicionais. A inteire-

za do homem, todavia, suscitou o desenho da sua trajetória, ainda que em forma de

fragmentos não ordenados cronologicamente, por coerência com o seu projeto e com a

intensão das suas experiências e motivações. Para tanto, foi de grande valor a referência

a Walter Benjamin (1984, 1985), em especial às suas reflexões acerca da filosofia da

história, conceitos de alegoria e de ruína, que rompem com o sentido de totalidade e de

encadeamento lógico. O método alegórico foi, então, o caminho para dizer de um outro

que desde sempre apontava abertura e incompletude. A alegoria benjaminiana, como

procedimento estético, está intrinsecamente relacionada ao modo como esse autor com-

preende a história. Se para ele, o estilhaçamento é aquilo que inscreve na ordem da sig-

nificação, dissecar a vida de Petrovich seria o que fatalmente a constituiria como fonte

de saber.

Desde esta mesma visada, a palavra é concebida como experiência do ser, de

ser, e não se reduz a um arbítrio da convenção formal e utilitária que a considera unica-

mente instrumento de comunicação. Por esta forma, ainda que o riso e a arte bufa, im-

bricados na educação petrovichiana, tenham sido especialmente tratados a partir do

estudo de Bakhtin (1999) – "Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o

contexto de François Rabelais" - recorri também a fontes literárias, ligadas ou não à

dramaturgia, igualmente importantes para a compreensão do riso cômico popular. Con-

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

15

soante com o método alegórico, esta opção implica reconhecer a multiplicidade históri-

ca de línguas e de sentidos que fogem a todo esquema classificatório, tornando impen-

sável qualquer tentativa de apropriação.

Tratar do riso e da bufonaria, referir-me ao tensionamento entre estes e o

pensamento sério, inevitavelmente convocou Nietzsche, em especial o Assim falou Za-

ratustra e Ecce Homo, sem deixarmos de considerar os diálogos travados entre Apolo e

Dionísio n' O nascimento da tragédia. A escrita do filósofo, especialmente nas falas de

Zaratustra, apresenta a abertura aqui desejada como possibilidade de "deixar ler" este

texto. Nomeado por Ferraz (1984), como bufão dos deuses, Nietzsche, segundo Alberti

(2002), contempla fartamente o riso na sua obra. Ressalto, contudo, que a despeito da

necessária e vigorosa contribuição deste filósofo, o foco de análise centrou-se no Rabe-

lais de Bakhtin (1999).

O caráter de oralidade, característica da praça pública, foi apreciado através

da narrativa de estudantes, de colegas e de amigos de Petrovich, incluindo falas da sua

companheira e dele próprio, que delinearam o cenário e recriaram a história. Essa

cont'ação e esse compartilhamento de experiências favoreceram-me com os fios para

urdir a trama que pretende tecer memórias que vão sendo apagadas pelo afã da novidade

e pelo tempo vazio da produção capitalista, conforme discutido no texto O narrador:

Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de Walter Benjamin (1985).

O que pôde ser narrado, fez-me compreender que a morte de Petrovich não

silenciou as suas inquietações; o seu riso e o seu espanto continuam criando tensiona-

mentos através daqueles que, como ele, sonham e realizam uma educação demasiada-

mente humana.

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

16

ATO I – PARINDO BRASAS

Cena 1ª : Eu rio. E mar...

Éramos uma família pequena: pai, mãe, e três filhos. Na nossa casa dialoga-

vam o pensamento sério do meu pai e o riso da minha mãe. Ele representava a autorida-

de e a observância às normas; ela incitava à burla e à aventura criativa. Ele mostrava-se

reservado; ela brincava, dançava e contava histórias; ria de si e ria dos outros com a

mesma desenvoltura; era dada a pequenos pecados e a grandes encenações. As histórias

contadas, cantadas ou dramatizadas jamais se repetiam – o Eterno Retorno nunca era o

mesmo.

Adormecíamos acalentados com as músicas que minha mãe aprendera na in-

fância pobre; não poucas vezes essas músicas (muitas inventadas) traziam palavrões

que, tornados palavras, eram implicados em jogos de linguagem. Com histórias sem

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

17

fim, com brincadeiras de palavras, com pequenas e risíveis transgressões, minha mãe

me ensinou a ler a vida às avessas.

As leituras do mundo lá de fora, que não conhecíamos, chegavam-nos atra-

vés do meu pai. Sério, ele contemplava minha mãe e ria, cuidando para que pudéssemos

em liberdade brincar de deuses, construindo e desconstruindo mundos e sonhos. A seri-

edade paterna deixava-se seduzir pela alegria e, amorosamente, generosamente, abria-se

ao diálogo. Dele herdei o gosto de tecer com letras. Ler e escrever, ensinou-me, são

experiências de fronteira. Minha infância era o fio tensivo entre o riso e a seriedade6.

O princípio carnavalesco adentrava nossa casa, sem que nos déssemos conta,

através da palavra livre, destituída de caráter obsceno, que desmontava a seriedade e

recriava uma nova ordem, na qual a oralidade garantia sentidos de inacabamento e aber-

tura. A pândega de minha mãe que por vezes nos irritava; a autoderrisão que não com-

preendíamos; a cozinha como lugar de reunião para compartilhar da mesa e da palavra;

a mistura de odores e a abundância, deixavam transitar, burlando censuras, a verdade.

Nossa casa era também o lugar de encontro para as festas familiares; da

grande fogueira de São João, das quadrilhas e balões coloridos; da correria para fazer a

canjica e o licor de jenipapo. Da máquina de costura saíam roupas coloridas e as másca-

ras de carnaval com narizes enormes que pendiam para baixo - hoje diria, à semelhança

de grandes falos.

Logo a seguir, na quaresma, queimávamos o Judas, geralmente feito com as

calças velhas do meu pai e o resto dos fogos do São João passado. O testamento obede-

cia à tradição, incorporando rimas, troças e injúrias. Eram de praxe referências às peças

íntimas e partes baixas do corpo. Minha mãe transformava tudo em riso e em brincadei-

6 Hoje percebo a proximidade desta relação com o riso rabelaisiano que expressa, não a excludência de um dos termos, mas o diálogo com o pensamento sério, tensionando-o. Neste sentido, era tão importante a seriedade do meu pai, quanto o riso da minha mãe.

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

18

ras, fazendo predominar nas relações familiares, a espontaneidade e a alegria. Meu pai

estava sempre por perto, sério e disponível para acolher.

Eu cresci séria como ele; não herdei o riso largo da minha mãe, apesar de

compartilharmos do choro fácil, do prazer de narrar e de brincar com palavras. Graduei-

me em psicologia e cansada do excessivo controle das práticas experimentalistas optei

pelo sociopsicodrama. A vivência da corporeidade, a soberania do grupo e, sobretudo, a

visada fenomenológica provocaram em mim mudanças significativas: da caixa de Skin-

ner para o palco moreniano. A psicanálise, discurso hegemônico na Faculdade de Filo-

sofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde eu estudava,

por outro lado, parecia-me subtrair a ação performativa, possível apenas pela via do

corpo em cena.

Posteriormente, o trabalho com psicóticos, com doentes terminais e com mo-

radores de rua permitiu-me enxergar e viver as perversões das políticas públicas e das

práticas profissionais. A convivência com a morte, com a loucura e com a miséria fez

ecoar em mim o riso da minha mãe. Abandonei a clínica e solicitei transferência da Se-

cretaria Municipal do Trabalho e Desenvolvimento Social (SETRADS), onde trabalhava

com moradores de rua, para a Secretaria Municipal da Educação e Cultura (SMEC),

ambas da Prefeitura de Salvador- Bahia.

Estudei literatura infantil, filosofia com crianças, mas nunca pude, de fato,

contribuir com a escola pública, considerando o rigor com que eram seguidas as deter-

minações do Ministério da Educação e Cultura (MEC), que não comportava perspecti-

vas diversas. E antes que pisassem no meu jardim e matassem o meu cão, antes que já

não pudesse dizer nada, saí para iniciar um novo projeto: tornar-me professora.

Como primeira providência, fiz um curso de clown. Ser professora passava

pelo meu corpo e este estava gradativamente conformando-se à estrutura do MEC, co-

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

19

mo que esquecido das lições aprendidas com as ruas, com a morte e com a loucura - as

amarras e a seriedade do poder circunscrevem-se nos corpos.

Projetada por perguntas que me inquietavam, cheguei ao Programa de Pós-

graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia

(FACED/UFBA). Instigada pelo Ser-sendo da filosofia (GALEFFI, 2001) e pelo lema

de Píndaro "como alguém se torna o que é", subtítulo de Ecce Homo (NIETZSCHE,

1985), tomado por Larrosa (2002) para discutir o conceito de formação, procurei cum-

plicidade na linha de pesquisa Filosofia, Linguagem e Práxis Pedagógica. O mestrado

sinalizava a necessidade e as possibilidades de re-inscrever as idiossincrasias do meu

processo de formação como síntese – apenas posteriormente percebi que estas não ces-

sam de acontecer.

Em seguida, a busca por um orientador, dificuldade compartilhada por mui-

tos que intencionam ingressar no programa de pós-graduação, algumas vezes interferin-

do na escolha do tema de pesquisa, lançou-me na direção do riso, interesse da professo-

ra Mary Arapiraca, FACED. Aos poucos, contudo, fui secretamente atraída pelo caráter

incomum e provocador deste; e o que era ardil me arrebatou a alma.

Vale, aqui, uma pequena digressão para ressaltar o número restrito de pro-

fessores e de vagas oferecidas em tais programas, diante do grande contingente de pes-

soas que hoje buscam a formação stricto senso, muitas pressionadas pela exigência do

mercado de trabalho que transformou a educação numa importante fonte de produção de

serviços e de capital.

As primeiras leituras sobre o riso logo me conduziram aos estudos de Bakh-

tin (1999) sobre a obra de François Rabelais. Interessei-me, particularmente, pela rela-

ção com a cultura popular e com o corpo, pelo resgate da historicidade, pelos rituais de

inversão da praça pública e pelo caráter restaurador. Também as referências de Alberti

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

20

(2002) a George Bataille, a Nietzsche e a Foucault incitavam a minha curiosidade, ao

referir-se ao riso como a experiência radical do "não-ser", do "não-saber" e do "não-

conhecer".

Como o vigor do riso medieval estava muito próximo dos ritos da antiguida-

de, sinalizando o eterno conflito entre Dionísio e Apolo (NIETZSCHE, 1992;

DETENNE, 1988), pressenti nele ressonâncias com o que indicavam os pensadores ci-

tados por Alberti (2002). Diversamente da síntese dialética, o diálogo entre os deuses,

entre o riso e o pensamento sério era tenso e aberto, assim como as recordações da mi-

nha infância. Por isso, a idéia inicial de converter o riso em recurso pedagógico pareceu-

me saída simplista e estratégia consoante com aquelas comumente utilizadas pelo poder

oficial para matar a intensidade das grandes revoluções.

A primeira versão deste projeto, que propunha utilizar textos cômicos para

investigar a performance (ZUMTHOR, 1993) do professor, cedeu lugar à observação

dos rituais da sala de aula e, posteriormente, a preocupações com a universidade, pre-

sentes desde a ocasião que escrevi o texto Universidade e Virgindade7, produzido ime-

diatamente após a entrevista para seleção ao mestrado. Neste, associava o vazio experi-

mentado no dia seguinte à perda da minha virgindade, ao sentimento que me tomava

após a referida entrevista. Parafraseando Heidegger (1999), perguntava-me: O que é isto

– a virgindade? O que é isto – a universidade?

Na disciplina Educação e sociedade8, já como aluna regular, prossegui com

as investigações acerca da universidade, considerando suas finalidades e modos de ope-

rar a partir da razão técnico-instrumental. Foram fundamentais os diálogos com Boaven-

tura de Sousa Santos (2001; 2004; 2005), além do contato com os princípios do Fórum

7 Não publicado. 8 Disciplina obrigatória do Programa de Pós-Graduação da Escola de Educação da Universidade Federal da Bahia. Cursada em 2004-1.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

21

Social Mundial (ALTERNATIVAS, 2002). O trabalho de conclusão da referida disci-

plina foi o texto A Universidade e suas contradições (FERRAZ, 2004).

Nos moldes de uma Educação pela pedra9, ia surgindo e se rebelando contra

qualquer tentativa de definição prévia, dolorosa e vagarosamente, o objeto desta pesqui-

sa; de pedregulho a pedra, tornava-se e tornava-me outra:

Daí porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra ulceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso; o natural desse idioma fala à força. Daí também porque ele fala devagar: tem de pegar as palavras com cuidado, confeitá-las na língua, rebuçá-las; pois toma tempo todo esse trabalho (MELO NETO, 1977)

A educação sertaneja requer disposição para a dor que se sabe necessária e

inevitável; requer a paciência para rebuçar o objeto e, na intimidade da boca, saboreá-lo,

convertendo-se e convertendo-o naquilo que é e que se é. A dureza e a materialidade da

pedra sinalizavam-me, finalmente, que assim como o verbo se fazia carne, o riso tam-

bém necessitava ser encarnado.

Foi então que assisti à peça Escorial, de Michel Ghelderode (1950) que nar-

ra a dor do bobo Folilal10 pela eminente morte da rainha. Os diálogos com o rei desven-

dam a trama do poder e as tentativas de Sua Majestade para esquecer a própria finitude.

Convocado para divertir o rei, o bobo, referindo-se aos cães que uivavam pressentindo a

morte, diz com ironia: "[...] Eu os acariciei; aos vossos cães. Sei falar com os reis e com

os cães, Majestade. Mas estes últimos, realmente, me enternecem". O rei ordena-lhe:

"[...] Se conseguires fazer-me rir durante o funeral, o mundo inteiro falará na dor mag-

nânima do rei. Procura fazer-me rir!...". Um paradoxo se estabelece: o riso é, então,

9 Melo Neto (1977) título do poema encontrado na obra “Educação pela pedra e depois”. 10 Em inglês, fool significa louco. É interessante, também observar que o verdadeiro nome de Triboulet, primeiro bobo a tornar-se personagem central quando reinava Francisco I, é Felial (MINOIS, 2003). Num outro texto de Ghelderode (1990), Escola de Bufões, o mestre também se chama Folial, assim como um ex-discípulo, ambos da corte do rei Felipe.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

22

dor profunda? Os cães uivam ininterruptamente: que relação existe entre o riso e a mor-

te?

Prosseguindo com a farsa, Folial sugere, com típica astúcia, uma inversão de

papéis: o rei poderá rir às gargalhadas, um riso flamengo como deseja, e gozar a liber-

dade de um bobo; a este, como homem, será concedido sofrer a perda da sua amada.

Encerrado o jogo, reassumindo a coroa, o rei ordena a morte do bobo à semelhança dos

ritos antigos e medievais nos quais o sacrifício deste, sagrado rei nas festas populares,

significava a reinstauração da norma. Pesaroso, o rei confessa: "[...] Uma rainha, padre,

não é difícil de substituir; mas um bobo da corte...".

A despeito da hegemonia do pensamento sério dogmático, o riso como cons-

titutivo do Dasein, enredava-se de forma subversiva nas brenhas do mesmo poder que,

contraditoriamente, ao tempo que tentava matar a sua intensidade, dele se alimentava.

Sobrevivendo além muros das instituições, na cultura popular e nos carnavais, através

da figura do bobo, o riso transitava nos interstícios do poder - o bobo, o bufão, o tolo, o

pícaro serão aqui tratados como sinônimos, referindo-se àqueles que transitam nos en-

tre-lugares, provocando a tensão entre o riso e o pensamento sério; convivem com o

poder, incitando-o à autoderrisão; representam a cultura cômica popular, a ambivalência

e a historicidade.

Procurando o riso rabelaisiano na universidade, encontrei seus rastros na vi-

da e na obra do professor Felippe Serpa11. O tom irônico do seu discurso, a estreita rela-

ção com a cultura popular, a disposição para dialogar com as diferenças, a utopia de

uma "Comuniversidade" e de uma "Universitas", indicavam um projeto pedagógico para

a universidade, essencialmente político e enraizado na vida. Personagem controversa,

dialogava com o poder, mantendo a tensão entre o instituído e o que se instituía por

11 Reitor da UFBA no período de 1993-1998, professor da Faculdade de Educação. Falecido em novem-bro de 2003.

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

23

cumplicidade com grupos de estudantes e de populares, principalmente. Pesquisaria,

então, sobre como a arte desse professor constituía-se como emergente de uma razão

que Maffesoli (1985) chama de "sensível", como alternativa contra-hegemônica à razão

técnico-instrumental na universidade.

A segunda versão do projeto recebeu o título provisório de O riso na Univer-

sidade: Felippe Serpa, um bobo na corte da FACED. A apresentação desta idéia em

salas de aula, contudo, causou perplexidade e desconforto para alguns, por qualificar de

bobo o professor Felippe - a despeito das referências que fazia a outros bufões, como

Nietzsche, "bufão dos deuses" para Ferraz (1994); Demócrito e George Bataille. O que

significava, afinal, esta comoção? Por que incomodava mais o qualificativo bobo para o

professor Felippe que o de corte, conferido à Faculdade de Educação da UFBA?

Ao longo dos anos, a palavra bobo perdeu o vigor e restringiu-se apenas à-

quele indivíduo que provoca o riso por seu discurso tolo e pouco inteligente. A tolice

como máscara e como disfarce da agudeza do espírito irônico, e da burla de paradigmas,

passou a existir apenas na literatura, tida como não-ciência. Mas a proposta da universi-

dade não é o pensamento radical? A busca desta radicalidade não implica em re-velar

"a palavra do poder" e "o poder da palavra" (GONÇALVES FILHO, 2000)? Mais uma

vez o riso seria proscrito da universidade, como acontecera na Idade Média? O pensa-

mento sério se constituía, então, restrição para a radicalidade? O riso consentido era

aquele previsto e institucionalizado na forma de recurso pedagógico? Denominar de

bobo o professor Felippe Serpa conferiria estatuto de verdade ao seu discurso, conside-

rando que um dos papéis do bobo nas cortes era anunciá-la? Que verdades eram por ele

anunciadas e denunciadas? Certamente Felippe Serpa sentir-se-ia provocado por essas

questões, penso; contudo, as dificuldades encontradas levaram-me à busca de uma nova

personagem que, em vida, aceitasse o desafio de auto-denominar-se bobo.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

24

Determinada em investigar o riso e o espírito bufo na universidade, agendei

um encontro com Carlos Roberto Petrovich, professor da Escola de Teatro da UFBA,

com quem alguns meses antes compartilhara a minha angústia diante do riso. A propos-

ta de tomá-lo como um bufão, certamente um a priori, arrancou-lhe gargalhadas. Não se

tratava de preencher uma vaga, mas de saber se o papel de bufão lhe cabia. Com 69 a-

nos, reiterou que não poderia perder uma boa proposta de trabalho, e reconhecendo seu

estilo por vezes burlesco, aceitou o desafio.

Decidiu que me contaria sua vida em dez capítulos: era a estratégia que vi-

nha pensando para melhor organizar suas memórias (10 vezes 7). Alertou-me para o

perigo do pesquisador se apaixonar pelo objeto – tema também da conversa que tivemos

em 2004:

O grande perigo é esse: esse é o perigo do amor, da paixão. Esse encontro é um perigo... (PETROVICH, 2004)

A sedução pelo perigo, então, daria intensidade às nossas buscas. Estabele-

ceu uma cláusula: tratar sua vida com carinho e com respeito. Petrovich era eloqüente

na fala e no corpo; às vezes, contudo, ficava quieto e em profundo silêncio, escutava-

me.

Empolgado por protagonizar mais uma história, tornado personagem, apre-

sentou-me fragmentos da sua arte bufa: insistia em estabelecer vínculos entre a univer-

sidade e a cultura popular, vivia uma relação de sensualidade com o corpo, realizava

inversões pouco convencionais, utilizava com naturalidade palavras obscenas nas suas

narrativas; abusava do riso e da farsa (muitas vezes se dizia um tolo, um velho tolo, an-

tecipando profundas e contundentes reflexões).

Três dias após esse nosso encontro, ele morreu. Ogan do Terreiro de Ilê Axé

Ôpo Afonjá; professor, ator, diretor. No dia 28 de abril de 2005 foi enterrado ao som da

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

25

música tema de Um tal de Don Quixote12. O clima de comoção, de cantorias e de narra-

ção de aventuras quixotescas, embalou a partida daquele que marcou a história do teatro

e da educação baianos pela força da criação coletiva.

Uma pergunta me acorria com insistência: o que será da universidade com

a morte dos seus bufões? E como percebia muitos pontos em comum entre ele e Felip-

pe Serpa, resolvi que meu trabalho poderia incluir ambos como memória daqueles com

quem conviveram: estudantes, colegas, participantes dos projetos de extensão. Estrate-

gicamente, mudei o título do projeto: O riso nos porões da universidade: a arte bufa de

Felippe Serpa e de Carlos Petrovich.

Mais uma vez, a mitificação ideológica da palavra assumiu valor de verdade

e o poder instituído na academia operou, de forma velada, a censura. A palavra bufa

passou a ser motivo de desconforto e de riso – o que a mim parecia coerente com o tema

investigado. Entretanto, a desmitificação da palavra é, também, a desmitificação do po-

der.

Vulgarmente, bufa significa "ventosidade que se escapa pelo ânus, sem ruí-

do" (FERREIRA, 1986, p. 291). A ênfase no discurso do corpo em Rabelais

(BAKHTIN, 1999) observa a vivência extremada do sexo, a glutoneria e a dificuldade

em controlar as funções intestinais, como acontece com Dionísio, em As rãs, peça de

Aristófanes apresentada em 405 a.C. (DUARTE, 1951). De acordo com Bakhtin (1999),

Rabelais aponta para o lugar menor conferido ao corpo na Idade Média, pela Igreja; a

saída pelo ânus faz referência a esse lugar ironicamente anunciado pelo deus do vinho.

"Se escapa sem ruído", pode ser, por analogia, burla intencional e insidiosa, característi-

12 Peça teatral que protagonizou em 1998, por ocasião da reinauguração do Teatro Vila Velha, homena-gem à Sociedade Teatro dos Novos Ltda., fundada em 1960 por Petrovich, Othon Bastos, Sônia Robatto, Échio Reis, Thereza de Carvalho Sá e Carmen Bitencourt, após romperem com a Escola de Teatro da UFBA, onde eram estudantes (SOCIEDADE, 1960).

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

26

ca própria do bufão, caso se considere o pronome reflexivo que antecede o verbo "esca-

par".

É interessante observar, também, relativamente à noção de corpo individua-

lizado e biológico que nasce com o fim do Renascimento, aquilo que Rabelais denomina

de baixo material e corporal, fazendo alusão às partes altas do corpo e àquelas que estão

no baixo ventre, representado pelo realismo grotesco – "sistema de imagens da cultura

cômica popular" (BAKHTIN, 1999, p. 17) - na praça pública, nas artes, especialmente

na literatura, e pelo bufão nas cortes.

O princípio material liga a materialidade da vida ao cosmos e ao mundo so-

cial, tornando-se uma totalidade indivisível – ao se falar do corpo em Rabelais, leia-se,

portanto, corpo social e universal. Partindo-se deste princípio, todo rebaixamento e de-

gradação do que está no alto (valores instituídos) necessariamente implica numa apro-

ximação ao corporal e ao material que, próximos à mãe terra, fecunda e faz nascer o

novo:

Os sinais de retorno à vida tem uma gradação manifestadamente dirigi-da para baixo: respira primeiro, depois abre os olhos (sinal superior de vida e alto do corpo). Depois assinala a descida: boceja (sinal inferior), espirra (mais baixo ainda, exceção análoga à defecação) e enfim solta um peido ("baixo" corporal, traseiro)... Trata-se, portanto, de uma per-mutação completa, não é a respiração, mas o peido que é o verdadeiro símbolo da vida, o verdadeiro sinal da ressurreição (BAKHTIN, 1999, p.336).

Ainda com relação ao alto e ao baixo em Rabelais, podemos citar o barrete

usado pelo bufão, alusão à coroa real aberta no alto - o bufão é o rei do mundo às aves-

sas. Enquanto no monarca, ali estava para receber a iluminação divina, referência ao

alto dos céus e da cabeça, no bufão este alto é rebaixado na forma de bufa/peido, anun-

ciando renascimento e transformação (NICHOLS, 1995). Assim, o riso da praça públi-

ca, ao tempo que degrada, também restaura.

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

27

O capelo, famoso chapéu utilizado nas cerimônias de formatura, também

referência ao adereço cardinálico e de papas, parece cumprir a mesma função da coroa.

Entretanto, em vez de um único rei e um único papa, nesses rituais é sagrada uma plêia-

de igualmente trajada, na qual não se distinguem bobos e soberanos. Quando todos se

igualam ao poder, quando todos são doutores... Não podemos esquecer a desolação do

bobo que acompanha o Rei Lear quando este enlouquece (SHAKESPEARE, 1977).

A personagem bufão, de roupas coloridas e chapéu de guizos, de fala irônica

e de modos grotescos, que fazia rir o poder (ou do poder), era o símbolo alegórico da

cultura popular e da praça pública. A arte bufa, portanto, ao caracterizar o ofício do bu-

fão, coloca em cena o povo – e o povo, sem fazer ruído, silenciosamente, adentra os

muros do palácio. Seria, então, o odor desagradável da verdade o que, afinal, incomoda-

va os convivas, na palavra bufa?

Vale aqui uma referência àquilo que Rouanet (1984), no prefácio da obra O-

rigem do drama do Barroco Alemão, de Walter Benjamin, considera ser a tarefa do filó-

sofo: restaurar a dimensão nomeadora da palavra, a palavra adamítica que restitui às

coisas o seu Nome. Vivenciei encruzilhadas próprias da tensão entre o discurso acadê-

mico regular e a palavra profana que guarda em si o eco distante dessa dimensão nome-

adora original. A exigência por uma fundamental radicalidade na minha forma de escre-

ver, foi o meu maior desafio. Também na letra que subsume o corpo está a história, e na

história a palavra dilacerada e aberta – alegoria. Palavra da salvação!

Perseguindo, ainda, outras expressões ou signos que remetessem à palavra

bufa, encontrei a consagrada Ópera Bufa. Surgiu na Itália, na forma de quadros satíri-

cos, chamados intermezzos, representados em frente à cortina, entre um ato e outro de

uma Ópera Séria, ao modo das comédias que seguiam as tragédias, nas dionisíacas. As

personagens eram pessoas comuns que retratavam as profissões e as classes sociais da

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

28

época, descrevendo situações cômicas do cotidiano. A criada patroa, de 1773, a mais

célebre Ópera Bufa, provocou uma disputa entre italianos e franceses, resultando na

conhecida Guerra dos Bufões (querelle des buffons), em 1752, protagonizada pelo com-

positor Jean Phillipe Rameau e pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau que discutiam a

primazia da ópera francesa ou italiana (ARTE, 2005).

A bufonaria converteu-se, então, em status conferido a filósofos e a artistas

que faziam dialogar o pensamento sério com o riso – a exemplo dos já citados Nietzs-

che, Sócrates, Battaile, Demócrito; também Luciano de Samósata, Rabelais, Homero; e

mais, Rameau e Rousseau. Poderia pensar, então, que Felippe Serpa e Carlos Petrovich

teriam reinventado uma arte, uma técnica que a um só tempo fazia-se práxis e poiésis,

com características bufas, no reino da universidade?

Dois anos, contudo, tempo estabelecido para conclusão de uma pesquisa de

mestrado, não me favoreceriam o rebuço paciente e cuidadoso de dois espíritos tão

grandiloqüentes. A escolha por um deles era inevitável. Optei, então, pelo projeto políti-

co-pedagógico do professor Petrovich, buscando ressonâncias com o riso e a arte bufa

rabelaisianos, em respeito ao acordo que firmamos antes da sua morte.

Pensar o homem e o mundo na perspectiva petrovichiana ensejou o trânsito pela

arte, pela educação, pela cultura, pela religião afrobrasileira, como uma multiplicidade de

caminhos que se cruzavam e entrecruzavam. Todavia, a universidade como foco justificava-

se, não apenas pelos projetos que nela desenvolveu, mas também, por representar, possivel-

mente, uma certa razão sensível que emergia do diálogo com o pensamento sério, num mo-

mento em que a universidade pública agoniza. Neste sentido, Petrovich vivia a universidade

como esplendoroso espetáculo tragicômico, porque espelho da vida.

Compreendendo, entretanto, a impossibilidade de separar em pedaços uma vida

que sempre prezou pela pluralidade e plenitude existencial – o que necessariamente não im-

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

29

plica na tentativa de estabelecer uma totalidade, mesmo porque Petrovich era dado a encruzi-

lhadas, como muitas vezes repetia.

A imersão no mundo deste professor através da escuta atenta dos entrevistados, e

de sua própria fala, dos filmes e peças que realizou, fizeram-me perceber que seu projeto

transpunha os muros da universidade, enredando uma pluralidade de espaços e modos de

vida que exigiam a ampliação das minhas leituras e perspectivas, para além da universidade.

Poderia o professor Carlos Petrovich, fazendo dialogar o pensamento sério com o riso, inspi-

rar novas ontologias na educação? Seria possível reconhecer traços do riso e da arte bufa,

segundo o Rabelais de Bakhtin (1999), no seu projeto político-pedagógico? Que idéia de

educação pode ser pensada segundo o referido projeto?

Aquilo que propus como objeto deste estudo convocou-me a refletir mais deti-

damente sobre questões de método: como me aproximar e dizer do objeto? E parafraseando

Fernando Pessoa (2006), como dizer da alma de outrem quando quiçá possa eu dizer da mi-

nha própria? Considerando a morte de Petrovich, como falar do que não mais existe como

fenômeno vivo, se o que busquei nele foi a en-carn-ação do riso?

Cena 2ª - Uroboros: o capeta morde o próprio rabo

Caminó contra los jirones de fuego. Éstos no mordieron su car-ne, éstos lo acariciaron y lo inundaron sin calor y sin combus-tión. Con alivio, con humillación, con terror, comprendió que él también era in apariencia, que otro estaba soñándolo. (JORGE LUIS BORGES, 2006)13

O poeta provocou-me. Um homem sonha o seu Adão e se descobre, como

ele, um simulacro. Sonha nas ruínas de um templo circular. Sonha apenas quando abdi-

13 Optei por utilizar o texto em espanhol por fidelidade ao autor. Em português, o conto pode ser encon-trado em BORGES, Jorge Luís. Ficções. Tradução Carlos Nejar. 3ª ed. São Paulo: Globo, 2001.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

30

ca da intenção de sonhar. A provocação borgeana resultou na minha impertinência

quando tentei, inspirada pelo sonhador, sonhar um outro diferente de mim e que tam-

bém sou eu. As questões de método implicadas nesta investigação passaram, assim, a

merecer cuidado especial, pois me inquietava o lugar daquele que fala do objeto e por

ele é igualmente falado.

O sonhador, na ação de sonhar, cria - à semelhança de Javé, de Krishna, de

Chiva ou de Olorum – o objeto do seu desejo. É necessário, contudo, que o Pai lhe agra-

cie com o esquecimento, assim como fez o sonhador de Borges (2006) com a sua criatu-

ra. Enquanto objeto e representação ela deveria esquecer a sua origem - o esquecer apa-

rece como afirmação da história naturalizada que poupa o homem do horror da sua fini-

tude; poupa-lhe da dor de saber-se mortal: tudo passa. Lembrar, contrariamente, é pre-

dicado/ação, é o fluxo incessante da história destino que a constitui como ser-sendo.

É interessante que ao final da citação aqui apresentada como epígrafe,

Borges (2006) refere que o homem ao ser poupado do fogo "comprendió que él también

era in apariencia, que otro estaba soñándolo". O sentido de um passado interrompido

no momento da iluminação me fez pensar: afinal, é apenas quando o Adão se percebe

sujeito histórico que ele deixa de ser simulacro? O sonho não finda até que ele se perce-

ba como tal14? Representaria o riso rabelaisiano a destituição de simulacros, conside-

rando seu caráter essencialmente histórico? Este é o riso petrovichiano que tensiona as

certezas da educação oficial15? Se assim, poderia afirmar que a educação oficial é simu-

lacro?

Deveria eu, como o forasteiro que brinca de deus, sonhar um homem: um

ser que não preexistia ao meu desejo e que não se auto-representava até que eu o inten-

14 Esta é a angústia da personagem Neo na trilogia Matrix, dirigido por Andy Wachowski e Larry Wa-chowski, lançado em 1999. 15 A educação oficial aqui significa aquela que está sob a égide do pensamento sério.

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

31

cionasse16, considerando que o projeto do homem Petrovich por si só não se constituía

em objeto. Um sonho, contudo, inspira-se em fragmentos que jazem na forma de ruínas;

são restos de um passado que aguarda ser salvo pelo alegorista. Petrovich, hoje, é a dis-

persão de lembranças narradas por aqueles com quem conviveu e também das minhas

lembranças; é fala e imagem de um tempo pretérito congeladas em filmes e em fotogra-

fias.

Atenta à circularidade do templo derruído, ciente da história que jazia

adormecida, inventei sentidos para um Petrovich que se desconhecia; procurei desvios

para provocar diálogos sobre o que poderia ter sido e que jamais se esgotará como pos-

sibilidade discursiva. Assim, a minha criatura, possível apenas na dimensão do objeto,

como verdade será sempre indefinível; ainda que sonhar seja pretexto para uma volta

recorrente, persistente e cuidadosa à matéria dos sonhos, às próprias coisas. A este es-

forço, Benjamin (1984) deu o nome de contemplação.

[Compenetrada, contemplo-a]. De forma desconcertante, a criatura, ao ser

animada pelo deus Fogo, gargalha a exemplo de Demócrito (c. 460-352 a.C.) que, su-

postamente acometido de loucura, ri de todas as coisas por considerar tolos os homens

que "... como se as coisas fossem firmes e estáveis nesse mundo, vangloriam-se louca-

mente, sem poder reter sua impetuosidade, por faltar-lhes a boa razão, o discernimento,

o julgamento..." (ALBERTI, 2002, p. 76). Mas não apenas a criatura ri de si e daquele

que o criou; também o sonhador deve rir da sua desmesura e do seu Adão.

Demócrito, diferentemente de Benjamin (1984), não acordaria a Bela

Adormecida com o ruído da sonora bofetada dada pelo cozinheiro em seu ajudante17, fa-

la-ia despertar com uma estridente gargalhada. Riria de si e da bela; riria do sonhador e

16 Quero aqui aludir à intencionalidade que dispõe ser e fenômeno, enquanto abertura e busca de sentido. 17 "O cozinheiro é o próprio Benjamin, a bofetada é a que ele pretende dar na ciência oficial, e a heroína é a Verdade, que dorme nas páginas do seu livro" (ROUANET, 1984, p.11). Nesta parábola, Benjamin alude à recusa do trabalho que apresentara para concorrer à livre-docência na Universidade de Frankfurt.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

32

também do sonhado – esta é a característica que, segundo Bakhtin (1999), separa defini-

tivamente o riso medieval e renascentista do riso moderno: o escárnio dos burladores –

ainda que aqui tenha utilizado como ilustração o riso do pré-socrático, percebido como

o avesso das lágrimas de Heráclito.

A oposição citada, riso e lágrimas, é motivo da contenda provocada pela Ra-

inha Cristina da Suécia que lança o desafio aos padres Antônio Vieira e Girolamo, am-

bos da Companhia de Jesus: "O que seria mais razoável, se o riso de Demócrito, que de

tudo zombava, ou o pranto de Heráclito, que por tudo chorava"? (VIEIRA, 2001,

p.101). A defesa de Vieira indica a impropriedade do riso diante da sordidez do mundo;

crê que apenas as lágrimas sejam a expressão do verdadeiro sentimento de humanidade.

Para o padre, longe de ser um sábio, Demócrito é vítima da loucura. Contaminada pela

galhofada, a verdade é quem ri. E o arte-educador Petrovich, de que ri, afinal?

Importa-me, aqui, identificar no seu projeto pedagógico características do ri-

so rabelaisiano, descritas pelo pensador russo: caráter restaurador, ambivalência, caráter

histórico, quebra das hierarquias, inversões, relação com o corpo, relação com a cultura

popular, e diálogo com o pensamento sério. Aquilo que Rabelais reconhece como o riso

da Idade Média e do Renascimento manifesta-se concretamente no fenômeno da praça

pública e de forma mais emblemática e estilizada na figura dos bufões. As festas daque-

le período, e especialmente o carnaval dentre essas, apareciam como discurso que anun-

ciava uma nova ordem.

Diante de Petrovich, portanto, são inúmeras as questões acerca das formas de

expressão do seu riso: as realizações petrovichianas na educação guardam caráter res-

taurador, se para Bakhtin (1999) o riso perdeu o seu vigor mais intensamente a partir da

modernidade, quando foi transfigurado em expressões menores, a exemplo do humor e

da ironia? Tais realizações promoviam o diálogo do pensamento sério com o riso, facul-

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

33

tando a tensão necessária à instauração de uma nova ordem na educação? Considerando

que a arte bufa teve lugar nas cortes monárquicas que antecederam o absolutismo, é

pertinente denominar Petrovich bufão, num regime supostamente democrático?

Afinal, em se tratando do método alegórico, apenas a partir das realizações

de Petrovich tornar-se-ia possível conhecer o seu projeto e o seu riso. A alegoria como

possibilidade de dizer do objeto, mira paradoxalmente um outro ausente, portanto, sua

representação é por excelência, desvio.

A morte de Petrovich, que de início parecia anunciar o silenciamento do meu

interlocutor, mostrou-me que este estava mais próximo do silere, enquanto ausência de

paradigma, silêncio da natureza e da divindade – oposto ao tacere que se reporta ao si-

lêncio da fala (BARTHES, 2003) - e lançou-me no abismo de novas e múltiplas signifi-

cações.

Findo o homem encarnado, restou-me o sonho. A materialidade do objeto

não estava no corpo concreto, mas naquilo que, no seu silêncio, continuava falando. E o

silêncio de Petrovich instava-me a aludir à citação de Rouanet (1984, p.40): "...os per-

sonagens morrem, não para poderem entrar na eternidade, mas para poderem entrar na

alegoria”; e pela via literária, a recordar Guimarães Rosa: "As pessoas não morrem,

ficam encantadas" (2006).

É interessante registrar, ainda, que para falar do projeto pedagógico de Pe-

trovich necessariamente precisei conhecer o homem Petrovich. Este caminho foi orien-

tado por uma compreensão de projeto que se faz intencionalidade, abertura e disposição

do "ser-no-mundo". Assim como o objeto, o projeto também não pode preexistir àquele

que se lança. Mas era esta a perspectiva de Petrovich? E como adotar tal premissa, con-

siderando que as noções prosaicas de projeto incluem uma temporalidade que evolui

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

34

linearmente, para além do sujeito desejante, transcendendo a materialidade da vida que

se faz no instante? Qual a dimensão de projeto pensada e vivida pelo educador?

O distanciamento do objeto de uma pesquisa deve evidenciar um espaço a-

bismal no qual há irredutibilidade entre as pessoas da enunciação, indicando o caráter

permanente de construção de ambos. Petrovich advertiu-me, no nosso último encontro,

sobre o perigo que eu corria de me apaixonar pelo objeto. Mas não é o desejo dos apai-

xonados tornarem-se apenas um?

Se assim for, a paixão seria essencialmente o si mesmo, e o silenciamento do

outro implicaria na cessação do dissenso e da tensão, facultando a hegemonia de um

regime discursivo único e fechado. Paradoxalmente, deste lugar, a paixão seria a morte

dos apaixonados. Mas pode esse Um ser pensado como multiplicidade e diferença, e

neste caso a paixão seria a confirmação do diferente no mesmo e pelo mesmo.

Este foi um exercício árduo que me mobilizou por longo tempo durante a in-

vestigação, e especialmente durante a escrita. Temia silenciar Petrovich, matando sua

intensidade com a minha letra. Dialogando com o Ser-sendo da filosofia (GALEFFI,

2001), percebi que a paixão por Petrovich prenunciada poderia, afinal, ser pensada en-

quanto páthos - "... tolerar, deixar-se levar por, deixar-se convocar por. (...) ... abertura

do ser do ente em seu acontecer – temos acesso ao sentido do ser-sendo, isto é, do nosso

próprio ser-aí" (p. 153). Este sentido ia ao encontro do depoimento de Vanda Machado

que me fez refletir acerca do lugar da paixão na academia, e por extensão, a relação que

esta mantém com a ciência:

Olhar para o outro, ouvir o outro é o menor caminho para a paixão. É preciso muita ciência para se falar de cuidado e paixão.Talvez seja o contrário: é preci-so paixão para falar de ciência. A ciência para mim sempre começou no meu coração, na minha alma, no meu corpo todo, todinho (VANDA MACHADO, 2005).

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

35

A professora trata da sensualidade de uma ciência que a atravessa de forma

radical para se fazer gaia. Se assim também compreendo, o perigo advertido converter-

se-á em salvação desde que não haja desmesura (hybris). E a desmesura, neste caso,

seria o apagamento dos limites que permitem a alteridade; ou melhor, seria desconhecer

a diferença do diferente.

A advertência, se concebida na dimensão do páthos, pode ser pensada como

conselho, como provocação e, finalmente, como disposição para ser afetada pelo outro,

sem contudo tornar-me ele. [Este enredamento páthos-lógico entre a minha alma e a de

outrem seria, então, o lugar do encontro? Apenas o encontro pode ser dito?].

Ressalto, assim, que o percurso para definição do objeto deste estudo resultou

num processo indissociavelmente ligado à construção e delimitação de um método investiga-

tivo consoante com a sua natureza. Tomar a vida de alguém como objeto de análise, que por

antecipação pareceu-me escolha tosca, posteriormente se mostrou como um grande desafio

por compreender que "Não se trata apenas de narrativa, é antes vida primária que respira,

respira, respira" (LISPECTOR, 1984, p. 33), como revela aquele que pretende, como ofício,

dizer de Macabéa18. Dizer de um outro é sempre fonte de grande angústia e, dependendo do

sujeito que investiga, fonte de gozo, também. A alma de outrem se re-vela como inalcançá-

vel, irredutível e efêmera, assim como a minha própria; e apenas na medida em que elas se

implicam podem anunciar-se.

Abdiquei do desejo de sonhar para que o sonho se fizesse, pois. "O saber é pos-

se", afirmou Benjamin (1984, p.51), e para contemplar o silêncio ensurdecedor do objeto, diz

ele, é preciso estar destituído de qualquer pretensão de aprisioná-lo na consciência. Assim,

também, procedeu o sonhador de Borges (2006): Abandonó toda premeditación de soñar y

18 Personagem do livro A Hora da Estrela (LISPECTOR, 1984)

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

36

casi acto continuo logró dormir un trecho razonable del día. Las raras veces que soñó du-

rante ese período, no reparó en los sueños.

Não aprisionar Petrovich significava não tomá-lo por antecipação, não dese-

já-lo como sonho sonhado, mas como possibilidade que se constituía na medida da nos-

sa disposição: eu como alegorista, ele como ruína. Foi assim que a natureza do objeto

deste estudo, tornou-se indicativa de escolha da alegoria como método de trabalho.

A partida de Petrovich me possibilitou escutar a sua gargalhada, anunciando

o reino da história-destino: "A concepção da história-destino ordena-se em torno da

figura da morte. Ela é a verdade última da vida, o ponto extremo em que o homem su-

cumbe à sua condição de criatura. Ora, a alegoria significa a morte, e se origina através

da morte" (ROUANET, 1984). Na história-destino o riso ecoa; no diálogo com o pen-

samento sério, transmuta-se em ruína.

Vida e morte rebordam na imanência absoluta do drama barroco, expressan-

do, nas palavras de Rouanet (1984, p.32), "...a tristeza de um mundo sem teleologia...".

Nesta epopéia lúdica, lúgubre e risível a transcendência aparece como um jogo ilusório.

A imanência pressupõe uma "... relação intensiva do objeto com o tempo, do

tempo no objeto, e não extensiva do objeto no tempo, colocado como por acidente num

desenrolar histórico heterogêneo à sua constituição", afirma Gagnebin (2004, p.11),

inspirando-se em Benjamin (1984). Se, portanto, há uma imersão do tempo no objeto e

este é constitutivamente histórico, a idéia de uma origem remete à tensão entre a destru-

ição crítica e a promessa de redenção, apontando para a impossibilidade de reconstitui-

ção fiel dos fatos, pois enseja abertura e inacabamento.

A visada imanentista de Benjamin (1984), que refuta qualquer forma de

transcendência, advoga uma concepção de história enquanto natureza, destino e devir,

restaurada através da história naturalizada por um fazer político estabilizador que, na

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

37

tentativa de salvar o passado, transforma o mundo num campo de ruínas - cada frag-

mento é expressão condensada tempo/espaço, portanto, acontecimento.

Petrovich, personagem desta narrativa, converteu-se numa história na qual

todo pedaço passou a ser início e fim em si mesmo. O vigor da sua existência, impossí-

vel de ser recuperado, será para sempre um estilhaçamento de cronologias heterogêneas

e de relatos contraditórios19. O esquartejamento da personagem é o que a torna objeto de

significação alegórica; para tanto, contudo, é preciso arrancá-la do seu contexto, privá-la

da sua vida para, enquanto ruína e fragmento, significá-la no registro da alegoria. E ale-

goria implica, em sentido literal, dizer do outro e no outro; de um outro que se é, como

história, aberto, inconcluso e transitório, portanto, inacessível do ponto de vista da tota-

lidade.

O método benjaminiano é, por excelência, o tratado, e para o pensa-

dor,"Método é caminho indireto, é desvio" (BENJAMIN, 1984, p. 50). O mergulho na

imanência do objeto, desta forma, encerra um paradoxo: tristeza e luto pela ausência de

um sentido último, e alegria conseqüente dessa ausência, na medida em que possibilita

abertura e novas significações. O pensador alemão associa sua escrita a um mosaico:

incorpora o caráter fragmentário e deixa que a verdade fique para o leitor. Talvez esta

seja, afinal, a tentativa de ler o mosaico da vida de Petrovich, ou ler o projeto petrovi-

chiano como um mosaico, sem que eu possa afirmar que o reconstruí com a vitalidade

de um tratado.

Petrovich é o que jaz na forma de ruínas a serem significadas pelo alegorista.

Enquanto texto, assinala uma incompletude composicional que permite àquele que o lê

a atribuição de sentidos próprios e apropriados. E como um outro que me constitui, mas

19 Toda narrativa reflete o desejo de preservação como memória no caos originário da história-destino.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

38

também um não-eu, a decifração da sua alma é igualmente a da minha, numa radical

perspectiva dialógica.

A inquietação como dizer da alma do outro, quando quiçá possa eu dizer

da minha própria?, entretanto, perpassará toda esta pesquisa, considerando que Petro-

vich e o seu projeto pedagógico foram aqui abordados a partir do caráter inacabado das

narrativas produzidas no encontro com amigos, colegas e estudantes que com ele com-

partilharam.

Sujeito e objeto entrelaçam-se e "Um relâmpago. Dionísios aparece na sua

esmeraldina beleza. Sê sensata, Ariadne!... (...) Eu sou o teu labirinto..." (Nietzsche,

1986, p. 67-68).

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

39

ATO II – O FIO DE PETROVICH

Este ato inclui a tessitura do fio que me conduziu pelos labirintos petrovi-

chianos, a exemplo da estratégia utilizada por Teseu. Foi tecido na vertigem do encon-

tro com o professor Petrovich e com aqueles que, entrevistados, o inventaram a partir do

que lhes foi possível re-cordar e narrar, parafraseando García Márquez (2002).

Realizei entrevistas que incluíram estudantes e professores da Escola de Tea-

tro da Universidade Federal da Bahia; amigos e colegas de trabalho; participantes da

Atividade Curricular em Comunidade (ACC-UFBA); Griô Kaiodê: contando histórias

com alegria20; a Iyalorixá do Terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá; além de vários contatos

20 Projeto concebido e coordenado por Carlos Petrovich e Vanda Machado. Parceria Escola de Teatro -UFBA e Didá Escola de Música.

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

40

com a sua companheira. Foram incluídos, também, um ator e uma atriz que fizeram

papel de bufão no teatro. As entrevistas foram agrupadas de acordo com o vínculo dos

informantes com Petrovich, todas realizadas no ano de 2005.

Contei, ainda, com o material de duas conversas (gravadas) que tive com Pe-

trovich, uma das quais em 2004, quando ainda não havia definido o objeto desta inves-

tigação, e outra quando lhe fiz o convite para ser o meu bufão, três dias antes da sua

morte, em 24 de abril de 2005; além de uma filmagem que realizei em novembro de

2003, durante um seminário da disciplina Universidade, Nação e Solidariedade,

FACED/UFBA, do qual ele participou.

O produtor Élson Rosário, TV Educativa, cedeu-me a transcrição de uma en-

trevista realizada com Pertrovich, também no mês da sua morte. Da mesma emissora

tive acesso ao vídeo do programa Frente a Frente, de 1997, no qual era ele o entrevista-

do.

Ressalto aqui a valiosa contribuição de Vanda Machado, companheira de Petro-

vich por vinte e três anos; pesquisadora da cultura afrobrasileira; filha de Oxum. Além de

duas entrevistas formais, trocamos correspondência via correio eletrônico, e mantivemos

contatos pessoais freqüentes para troca de impressões e esclarecimentos de dúvidas quanto a

datas e ações. A professora participou, ainda, das entrevistas realizadas na Didá Escola de

Música e com o professor Roberval Marinho.

Os estudantes de artes cênicas, Marinho Gonçalves e Ângelo Flávio, foram elei-

tos por terem participado de espetáculos dirigidos por Petrovich. Recém-egressos da Escola

de Teatro, Rafael Moraes e Merry Batista integraram com ele os projetos Irê Ayó: caminho

da alegria21 e Griô Kaiodê: contando histórias com alegria, respectivamente, tendo a últi-

21 Projeto concebido e coordenado pela professora Vanda Machado na Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos – parceria SMEC e Sociedade Cruz Santa. Integrava a cultura afrobrasileira ao currículo esco-

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

41

ma, também, contracenado com Petrovich. Mesmo após ter concluído a sua graduação, pas-

sou a acompanhá-lo em seus empreendimentos, não apenas profissionais, especialmente

apoiando-o por conta da visão diminuída pelo diabetes.

Ainda com relação ao Griô Kaiodê: contando histórias com alegria, entrevistei

membros da Didá Escola de Música, Organização Não-Governamental que oferece a crian-

ças e adolescentes moradoras do Centro Histórico de Salvador e adjacências, no turno com-

plementar à escola regular, atividades artísticas baseadas nos princípios da cultura afrobrasi-

leira. Da entrevista participaram:Vivian Queiroz – presidente, musicista, Neguinho do Sam-

ba – fundador, maestro, compositor, instrumentista; Adriana Portela – musicista; Débora

Regina de Souza; Rosalina Nascimento; e finalmente Paula, Fátima, Carla e Patrícia – pseu-

dônimos utilizados para proteção da identidade, por se tratar de menores.

Na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia entrevistei professores,

ex-colegas, alguns já aposentados, como no caso de Jorge Gáspari e Nilda Spencer – esta

última fez parte da primeira turma de alunos da escola, em 1956, juntamente com Petrovich.

Foram entrevistados, ainda, Maurício Pedrosa; Eliene Benício, atualmente diretora da Esco-

la de Teatro; Harildo Deda; Ewald Hackler; Deolindo Checcucci; Maria Eugênia Millet;

Sérgio Farias; Paulo Dourado, atualmente diretor da TV UFBA; o cineasta Wilson Lins,

também da TV UFBA e, por fim, Cleise Mendes – desta última registrei, ainda, o discurso

no qual fez uma homenagem a Petrovich, quando paraninfa dos formandos da Escola de

Teatro, 2005.2. É interessante ressaltar que todos os citados, além de compartilharem a do-

cência com Petrovich, com ele contracenaram, dirigiram-no, ou participaram de espetáculos

como dramaturgos ou cenógrafos. Esta é uma característica importante da Escola de Teatro

da UFBA, distinta das demais escolas de artes cênicas das universidades brasileiras, por se

constituir, desde a sua fundação, em 1956, num curso de formação de atores e diretores. É

lar através da arte-educação. Para tanto, contou com a participação de Petrovich e de estudantes da Escola de Teatro da UFBA.

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

42

importante esta ressalva para registrar a amplitude do vínculo que estas pessoas mantêm

entre si, considerando que além de professores estão freqüentemente envolvidos em ativida-

des artísticas e culturais no circuito comercial da cidade do Salvador.

Ainda na UFBA, foi relevante o contato com Paulo Lima, hoje diretor da Fun-

dação Gregório de Matos, Prefeitura Municipal do Salvador, governo João Henrique Carnei-

ro (2004 – em exercício). Professor da Escola de Música, foi Pró-Reitor de Extensão nas

gestões dos Reitores Felippe Serpa (1994 -1998) e Heonir Rocha (1998 - 2002); nesta última

por apenas dois anos consecutivos. Esteve com Petrovich no Conselho Superior de Gradua-

ção e projetos de extensão universitária.

Cito, ainda, o contato com Márcio Meireles, integrante do Conselho Diretor do

Teatro Vila Velha, do qual Petrovich era sócio-fundador. Mantiveram vínculo estreito por

vários anos, considerando o empenho do primeiro para reestruturar o referido teatro. Em

seguida, quando da sua reinauguração, Petrovich protagonizou o espetáculo Um tal de Dom

Quixote, dirigido por Márcio Meireles, que também o escreveu em parceria com Cleise

Mendes, como uma homenagem ao ator.

Sendo Petrovich Ogan e filho de Ogum, a passagem pelo Terreiro de Candom-

blé do Ilê Axé Opô Afonjá foi obrigatória, levando-me à Iyalorixá Mãe Estela de Oxossi e ao

professor da Universidade Católica de Brasília e artista plástico, Roberval Marinho, igual-

mente Ogan de Ogum, além de amigo e irmão.

Por fim, entrevistei Narcival Rubens, ator, pela referência que a ele foi feita por

Petrovich, no programa Frente a Frente da TV Educativa, em 1997. À época contracena-

vam em Dom Juan e em resposta ao ator Petrovich afirmou que gostaria de fazer o Dom

Quixote, tendo ele como Sancho. Intrigou-me a escolha, ainda que posteriormente o Sancho

tenha sido feito pelo ator Lázaro Ramos, considerando que o espetáculo Um tal de Dom

Quixote foi realizado com o Bando de Teatro Olodum do qual o ator fazia parte.

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

43

Algumas destas pessoas foram indicadas por Petrovich na conversa que ti-

vemos em abril de 2005, outras por Vanda Machado e outras, ainda, pelos próprios in-

formantes. As entrevistas foram agendadas por antecipação, em local eleito pelo entre-

vistado.

Optei por entrevistas abertas (BAUER; GASKELL, 2004), gravadas em áu-

dio-tape, com aproximadamente uma hora de duração, todas posteriormente transcritas

na íntegra, inclusive a realizada em 2004. O gravador foi utilizado mediante consenti-

mento prévio dos entrevistados que aquiesceram na publicização da autoria das suas

falas. Assim sendo, preservei o verdadeiro nome dos informantes, a fim de garantir o

caráter de pessoalidade das narrativas e o clima intimista que esses mantiveram com

Petrovich. Três deles, contudo, solicitaram que fossem identificados pelo nome artístico,

como são conhecidos publicamente, para assegurar as suas presenças no texto.

Para melhor compreender a ambiência da trajetória de Petrovich, também como

estratégia metodológica, passei a freqüentar teatros mais amiúde, e assisti a filmes e vídeos de

peças das quais participou como ator, como diretor e como narrador: Canudos – a guerra do

sem fim (1993); Um tal de Dom Quixote (1998); Gregório de Matos (1996); Salvador em

Salvador22 (2002 – 2004), posteriormente com o nome Paixão de Cristo em Salvador (2005);

O menino que era rei e não sabia (2001); Bahia Singular e Plural.(1999 – 2000); bem como

os vídeos das intervenções pedagógicas: Irê Aiyó: caminho da alegria (1999) e Griô Kaiodê:

contando histórias com alegria. (2001).

Nesta aproximação com o teatro assisti, dentre outras, a peça Escorial de Michel

Ghelderode (1950), que me levou a entrevistar, em 2005, Deusi de Magalhães que fazia o

papel do bobo Folial. Esta me indicou, do mesmo autor, Escola de Bufões (GHELDERODE,

22 Espetáculo aberto ao público, apresentado durante a Semana Santa, resultado de uma parceria entre a Prefeitura Municipal de Salvador, Governo do Estado, Escola de Teatro da UFBA, Arquidiocese da Cida-de.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

44

1968), encenada em 1990 no Rio de Janeiro. O ator Leon Góes que participou deste espetácu-

lo como o bufão Galgut, enviou-me cópia do texto e concedeu-me entrevista por carta. Tais

contados foram motivados pela curiosidade de conhecer o processo de construção destas per-

sonagens, no que tange às fontes inspiradoras e aos sentimentos experimentados, além de ter

acesso à leitura dos textos por aqueles que o encarnaram.

A intenção inicial de trabalhar com entrevistas coletivas foi abandonada de-

vido à dificuldade de agendas, e apenas teve este caráter àquela realizada com crianças,

jovens e adultos da Didá Escola de Música. Nesta também esteve presente a professora

Vanda Machado.O mesmo tipo de entrevista foi utilizado com Ângelo Flávio e Marinho

Gonçalves.

Vale ressaltar que a primeira foi filmada e as pessoas provocadas a contarem

"causos" sobre Petrovich – importava-me mais que um relato descritivo, a narração das

experiências compartilhadas. Relativamente aos estudantes, estes gozaram da liberdade

de interromperem-se e discordarem um do outro, sendo conduzidos, entretanto, pelos

temas por mim oferecidos. O objetivo dos encontros grupais, recorrendo às idéias de

Walter Benjamin (1985), era promover uma narração e memória coletivas, enriquecidas

pela experiência do encontro e pelas recordações que tinham de Petrovich. Minha inter-

venção limitou-se a estimular a continuidade da narrativa e focar nos temas propostos,

em especial no caso dos estudantes de teatro, quando atuei mais diretivamente.

Com o mesmo espírito, realizei as demais entrevistas, inserindo, ainda, per-

guntas de esclarecimento. Como temas - escolhi não apresentar questões fechadas para

facultar maior liberdade à narrativa - sugeri: educação, universidade, riso, bufonaria,

religião, cuidando para não negligenciar outras lembranças que pudessem me oferecer

novas pistas.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

45

Quanto à universidade, interessei-me, sobretudo, pelo vínculo que Petrovich

mantinha com estudantes e com a comunidade, além da história da Escola de Teatro,

vez que ele havia integrado a primeira turma. Na perspectiva do riso, interroguei acerca

da forma como se relacionava com o poder instituído e sobre possíveis traços bufos na

sua performance cotidiana. Tais questões me propiciaram elementos para inquirir acerca

da sua idéia de educação e da relação que estabelecia com o divino, considerando sua

filiação ao candomblé.

Neste percurso, foram recorrentes as referências de muitos entrevistados aos

papéis que Petrovich viveu no teatro: Um tal de Dom Quixote, Antônio Conselheiro,

Dom Luís e menos freqüentemente, Gregório de Matos. Tais referências, inevitavel-

mente fizeram-me incluir questões acerca de possíveis semelhanças entre ele e essas

personagens.

As entrevistas aconteceram a partir de julho de 2005, aproximadamente três

meses após a sua morte. Os informantes, emocionados, centravam a fala em recordações

dos momentos compartilhados, favorecendo uma intensidade afetiva importante nos

relatos que, contudo, tangenciavam quase que fatalmente os aspectos positivos do modo

de ser petrovichiano. O meu papel foi acolher o sentimento expresso e ao mesmo tem-

po instigá-los no sentido das temáticas pretendidas. Essa comoção, contudo, facultou-

me compreender outros aspectos do homem Petrovich, especialmente quanto aos afetos

que mobilizava nas pessoas. Contei, amiúde, com o apoio de Vanda Machado, a despei-

to da dificuldade para abordá-la na perspectiva da pesquisa, nos meses imediatamente

subseqüentes à morte do seu companheiro. Esteve ela sempre disponível para colaborar

com dados e elucidação de pontos que me pareciam pouco claros. Foi relevante para a

condução do processo de entrevistas, a minha prática clínica como psicóloga, por doze

anos consecutivos.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

46

A recente morte de Petrovich e a necessidade de conhecê-lo para além das

realizações educacionais justificou a eleição da entrevista aberta como técnica de levan-

tamento de dados. Se por um lado essa técnica facultava aos entrevistados a liberdade

narrativa, por outro eu fazia intervenções para que não perdessem o foco da investiga-

ção, sinalizando questões pertinentes aos temas apresentados. Tais questões eram for-

muladas de acordo com o contexto narrativo e as entrevistas ocorriam em clima de con-

versação informal, possibilitando a espontaneidade das respostas.

O caráter exploratório da entrevista aberta facultou-me maior abrangência

das informações que, complementadas com os filmes mencionados, aproximou-me mais

do homem Petrovich - era inegável a inteireza com que ele estava em tudo o que decidia

fazer, a despeito do caráter fragmentário de todo homem, e da forma como se referia,

perdido nas suas várias personagens.

Merece consideração registrar, ainda, que conheci pessoalmente Petrovich

em 1999, no projeto Irê Ayó: caminhos de alegria, período em que eu trabalhava na

SMEC. Posteriormente, estreitamos vínculo à época de apresentação do espetáculo de

sua autoria O menino que era rei e não sabia, para escolas públicas, no projeto A escola

entra em cena, também desta Secretaria. Daí por diante, os encontros foram menos fre-

qüentes, mas sempre muito afetuosos, quase que invariavelmente intermediados pela

presença da professora Vanda Machado. Nas oportunidades em que estive na sua casa

fui acolhida com generosidade e pude compartilhar do seu ambiente familiar.

Fomos, ainda, colegas na disciplina Epistemologia do Educar – Seminários

Avançados Transdisciplinares, FACED/UFBA, 2005, considerando que ele naquele

semestre havia ingressado como aluno regular do Programa de Pós-Graduação em Artes

Cênicas/UFBA, a título de mestrado.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

47

Tão relevante quanto a pesquisa acerca da vida de Petrovich foi decidir como or-

ganizar os dados e como narrá-los. O desafio de escrever sobre o riso e a bufonaria num

templo que acolhe, por vezes com preciosismo, o pensamento sério, implicou no tensiona-

mento entre as normas acadêmicas instituídas a partir de categorias lógico-gramaticais e a

liberdade estética que me permitiria ser conduzida pela natureza mesma da relação com o

objeto desejado. Enquanto a primeira me impunha uma forma, legitimada como recurso do

método científico, com recorrência à impessoalidade e linguagem direta; a segunda, incerta e

plural, incitava-me a beber de fontes pouco confiáveis do ponto de vista da ciência. A litera-

tura e a dramaturgia sinalizaram-me com possibilidades de uma escrita alegórica e aberta,

porque sem reservas quanto ao uso de figuras de estilo, contrapondo-se ao relato informati-

vo, muitas vezes ilegível para o leitor, pelo caráter conclusivo e fechado.

Neste estudo, buscarei, num jogo lúdico de construção e de desconstrução da

linguagem, a interpenetração das vozes dos diferentes entrevistados, sabendo que à me-

dida que criavam a personagem Petrovich, por ela eram modificadas. A título de ilustra-

ção, o musical Evita, adaptado para o cinema e dirigido por Parker (EVITA, 1996),

mostra o narrador Che, voz do povo argentino, dentro da história, interagindo com as

personagens, enquanto retrata a trajetória da protagonista Evita Perón. O que se produz

é, então, um saber narrativo marcado pela presença do autor como personagem implica-

da no componente biográfico histórico e cultural do sujeito investigado. Um autor que é

simultaneamente locutor/narrador à semelhança do narrador artesão de Benjamin

(1985). Este foi, também, o meu empreendimento na medida em que durante muitos

momentos percebia-me fortemente identificada com as idéias de Petrovich, e se consti-

tuía um grande esforço delas afastar-me para deixar que ressoassem outras vozes e pu-

desse, afinal, emergir um texto polifônico e polilógico.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

48

ATO III - INTERMEZZO

Cena 1ª - Senhoras e senhores, Carlos Roberto Petrovich Buscando encontrar o homem Petrovich, visitei sua biblioteca; assisti a seus

filmes; aos documentários e às peças das quais participou, gravadas em vídeo; escutei

histórias narradas por ele e por aqueles com quem conviveu. Agi como uma arqueóloga

que perscruta ruínas na esperança de algum indício da história das civilizações huma-

nas, e de respostas ao enigma da sua própria origem. Numa estante da sua casa, na con-

tracapa do livro O herói de mil faces (CAMPBELL, 2000), encontrei uma dedicatória

datada de janeiro de 2002, escrita de próprio punho:

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

49

De Petrô para Petrô, Determinado em sua jornada de sucessos (PETROVICH, 2002)

O que faz alguém dedicar a si mesmo uma obra que versa sobre mitologia e cujo título

revela a multiplicidade no que é Uno?

A natureza mitopoética do discurso de Petrovich lançou-me na linguagem

polissêmica animada pela intuição, pela imaginação, pela experiência originária da ver-

dade - mythos e lógos retomam o sentido primevo, grego, de palavra e de narrativa que

revelam o Ser no seu acontecimento. Prenhe de mistério e sobrepujando o limite do di-

zível, a palavra mítica projeta o Homem na dimensão do sagrado, convocando-o à escu-

ta oracular do mundo: "O senhor, de quem é o oráculo em Delfos, nem diz nem oculta,

mas dá sinais" (OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1978, p.88 ), anuncia Heráclito no Aforismo

93. Esta é a expressão da leitura alegórica que toma ruínas como pistas para criação de

sentidos possíveis não contemplados pela anti-história.

O sentido de inacabamento do mundo está na restauração do passado que

implica na dessacralização das tradições e na projeção utópica do futuro, como atualiza-

ção possível de um projeto. Assim é que o mito, vivido como narrativa, atualizava a

jornada de Petrovich.

Pois bem: a busca do pai precipitou a aventura do herói23 - "portadores sim-

bólicos do destino de Todos" (CAMPBEL, 2000, p. 40). Foi esse o chamamento que

deu início à sua viagem. Estava decidido deixar a casa paterna e partir para a cidade do

Rio de Janeiro onde tentaria o ofício de contra-regra – animado pelas experiências tea-

trais que vivera em Natal-RN - quando a mãe lhe fez uma revelação: aquele que cria ser

o seu pai era, de fato, o homem que o adotou. Esta passagem foi por ele rememorada

23 Importante ressaltar que essa busca não estará sendo observada na perspectiva da psicanálise, mas nas perspectivas mítica e mística.

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

50

nas ocasiões em que fez referências à sua família, no programa Frente a Frente e nas

entrevistas concedidas a mim e a Élson Rosário:

Meu pai, eu não sabia a imagem dele; eu confundia a imagem dele com a ima-gem de Castro Alves porque um dia eu perguntei à minha mãe... Aí ela pegou uma foto e por destino, coincidência, era uma foto de Castro Al-ves. E dizia: - Teu pai é igualzinho a este homem. Olha a foto dele: tem este bigode, tem es-ta cabeleira e teu pai faz poesia, e teu pai faz teatro; e teu pai é assim .... - Eu saí com aquela fotografia...: "onde ele está, minha mãe?" - O teu pai está na Bahia. Eu olhava para a foto...: - E ele faz poesia? - Faz. - E ele faz teatro? - Faz (PETROVICH, 1997)

Atendendo ao chamamento do destino, rumou à misteriosa terra chamada

Bahia, no ano de 1956. A voracidade com que se entregava à leitura da mitologia fazia-

o crer que algo especial lhe estava reservado. Revelou-me, então:

Eu achava que tinha um mito para realizar, um sonho para realizar (PETROVICH, 2005)

Não podia ser coincidência: no ABC de Castro Alves, do escritor Jorge Amado, homens

que escreviam sobre o interdito, alertaram-no, aprendeu as primeiras letras – na cartilha

de poetas baianos leu li-ber-da-de e poe-sia.

A partida do herói foi instigada não apenas pelo desejo de encontrar aquele

que lhe deu a vida, como também pelo mistério da terra distante onde, contavam-lhe,

uma mulher negra enfeitiçara o seu pai, refere em entrevista no Frente a Frente:

... a Bahia me aparece assim como uma coisa maravilhosa, uma coisa difícil, uma coisa perigosa; era feitiçaria; onde se escreveu sobre um homem que não se podia falar. Era mistério (PETROVICH, 1997).

Só o mistério precipita a partida. A longa ausência da figura paterna e a im-

precisão do seu paradeiro não se converteram, entretanto, em impeditivo para a viagem.

Mulheres negras que faziam poderosos feitiços e roubavam a vontade dos homens; seres

mágicos e monstruosos; a pobreza da caatinga brasileira; a perversidade da cidade gran-

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

51

de eram os antagonistas que precisavam ser vencidos. Ciclopes, Lestrigões, Moinhos de

vento; a República – metáfora da modernidade - a fome, a sede e a solidão: Petrovich

sabia que outros heróis já haviam percorrido esses caminhos e suas pegadas lhe revela-

vam ensinamentos. Na longa viagem aprendeu que "... ele e seu oposto são, não de es-

pécies diferentes, mas de uma mesma carne" (CAMPBELL, 2000, p. 110), como lhe

sinalizou Hércules, seu herói grego preferido; segredou-me:

Tem uma hora que ele (Hércules) luta com os Titãs que ele levanta da terra; os Titãs se alimentam da terra. Quando eles levantam, eles se esvaziam e morrem. Porque às vezes a gente quer lutar com uma coisa que é a gente, é parte da ter-ra da gente (PETROVICH, 2004)

O destino trágico inclui o riso, pois este é isento de qualquer dogmatismo.

Para expressar seu caráter universalista, o trágico necessita do cômico, como acontecia

nas tetralogias gregas: a cada três tragédias seguia-se um drama satírico. O destino con-

cebido nestes termos, diálogo do riso com o pensamento sério, é aberto e possível como

utopia original, congraçamento entre Apolo e Dionísio. E foi com a encenação dos mi-

tos que se pôde brincar e degradar o temido, convertendo o que era inevitável em terra-

mãe que nutre e transforma, fazendo surgir o novo. O destino, destituído de qualquer

ilusão de transcendência, é o que torna possível a viagem, o projeto. E neste caso, deixo

antever a coincidência conceitual – todo projeto é viagem; o projeto de Carlos Roberto

Petrovich foi a sua viagem de formação para "ser aquilo que é" –

Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite remotamente o que é. Deste ponto de vista possuem valor próprios até os desacertos da vida, momentos de desvios e vias secundárias, os adiamentos, as "mo-déstias", a seriedade desperdiçada em tarefas que ficam além d'a tarefa (NIETZSCHE, 1985, p. 75).

E sobre "desacertos", Petrovich costumava dizer, nas palavras de Vanda Ma-

chado: "não há erros, apenas errância". E foi errando pelo Brasil e com a certeza de um

destino a cumprir que ele desembarcou na Terra de Todos os Santos:

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

52

Cheguei em Salvador, um cavaleiro em busca de esperança (PETROVICH, 2005)

- confessa a Élson Rosário, fazendo referência às histórias que ouvira sobre a Coluna

Prestes. O pai físico era também o pai simbólico, idealizado, que aparecia como pro-

messa de desvelamento do enigma do si mesmo; e quaisquer que fossem os perigos da

viagem - seus medos, seus demônios - esses precisariam ser enfrentados, pondo à prova

o iniciado.

Para o herói, toda jornada enseja paradoxos e não tem fim – o pai, encontra-

do, não guardava semelhança com o abolicionista que cantava em versos a liberdade;

esquecera-se da poesia e dos palcos; ainda que tenha estreado no teatro, em 1956, com a

peça Beatriz, que tinha como dramaturgo seu pai Urbano Brandão e como diretora Ju-

rema Penna – à época integrava o Teatro Experimental da Bahia (TEXBA), antes de

ingressar na Escola de Teatro da Universidade da Bahia (ETUB) - (GOMES;

BATISTA, 2002).

Os deuses são orientadores e desorientadores, no registro da tragédia, fazen-

do sucumbir os homens aos seus desígnios. Afinal, é lícito ver em Petrovich um herói

trágico?

O drama barroco, referido por Benjamin, não possui heróis - sem qualquer

possibilidade de transcendência, a idéia de destino é para ele radicalmente histórica.

Para o homem trágico, em contraposição, este é o jogo lúdico dos deuses e cabe ao herói

desafiá-los como tentativa de fazer valer sua escolha por outros caminhos - por isso pre-

cisa do riso: rindo das suas dificuldades, o homem reintegra-se ao mundo sagrado, pois

"... mesmo para os mais sérios, a vida é um caso derrisório, que só merece uma garga-

lhada de saída" (MINOIS, 2003, p. 29),

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

53

Dionísio pune a todos que se recusam a aderir à sua festa (MINOIS, 2003;

DETIENNE, 1986). O riso festivo e orgiástico ao tempo que faz surgir o caos, pela au-

toderrisão e pela zombaria faz nascer um novo mundo e um novo homem, num movi-

mento de retorno à ordem cósmica primordial. Não é este o fundamento da filosofia da

história de Walter Benjamin (1984)? Basta lembrarmos, a título de ilustração, das per-

sonagens do drama barroco: o Príncipe, o intrigante ou cortesão e a corte. Enquanto

cabe ao primeiro assegurar a estabilidade do reino, ainda que para tanto use de poderes

ditatoriais; o segundo manipula maquiavelicamente, ora aconselhando o Príncipe e auxi-

liando-o a governar, ora conspirando aliado à anarquia natural. Na corte, o Príncipe ten-

ta resguardar da história-destino os seus súditos, mas é exatamente nela que circula o

intrigante.

Retomando a questão do sentido trágico, a professora Cleise Mendes e o

professor Roberval Marinho reconheciam-no em Petrovich, compreendendo pois a sua

irresistível atração pelo abismo existencial que afirma ao Homem a sua mortalidade e a

sua medida, na fala da referida professora. A busca de Petrovich por um pai à imagem

de Castro Alves, numa dimensão cósmica, era também o desejo de encontro com o

Deus-Pai – Olorum, Cristo, Khrisna, ".. qualquer que seja o seu nome", dizia ele ao se

referir ao Criador. Acerca da relação que estabelecia com o sagrado, novamente colegas

da Escola de Teatro da UFBA comentam:

...uma das coisas que marcava muito Petrô era a religiosidade muito forte. Ele tinha uma relação muito forte com Deus, num sentido bem amplo... ele era muito místico, voltado para busca de si mesmo no universo, e de Deus (DEOLINDO CHECUCCI) A religião é uma coisa muito importante para Petrô; parece- me, no sentido do re-ligar (HARILDO DEDA). (...) aí eu só me lembro de Nietzsche e de meu professor de Bioquímica que dizia: - ¨É muito duro, é muito terrível viver sem Deus (...) eu sou ateu, mas não a-conselho a ninguém¨. (...) a palavra me salva desse caos dionisíaco; ninguém pode viver dentro dele. É como se o ser humano precisasse desses ganchos. O que é a religião? É a

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

54

permanência, é a âncora; é alguma coisa que, onde tudo está se transformando, me liga, me mantém segura de alguma maneira, porque é muito atordoante. Acho que a gente só pode entender Nietzsche e toda a grandeza do que ele quis, como você ser alegre, no enfrentamento dessa coisa terrível; sem muleta (CLEISE MENDES).

É interessante observar que a dimensão mística e mítica de Petrovich estava

ancorada no inamentismo do religare, e que é nesse solo que semeia seu projeto de edu-

cação. A busca do divino se realizava na busca do humano, talvez do humano do Ho-

mem que ainda não existe, parafraseando Camus24 (2006). A relação com a vida mesma,

a radicalidade petrovichana, possibilitava-lhe sentido e precipitava-o na impermanên-

cia do caos existencial, ao tempo que lhe suscitava a necessidade de amarras. É válido

afirmar que se instalava nos espaços entre a transcendência e a imanência, um conflito

acerca da morte de Deus?

Algo se manteve em Petrovich durante sua vida, refere Paulo Dourado, ob-

servando que não percebia diferenças nas buscas que o colega/amigo empreendia, antes

e depois da sua suspensão a filho de Ogum.

Petrovich, como filho de Ogum, guardava características próprias desta di-

vindade, ele em acordo com o imaginário coletivo do terreiro - os Orixás, tendo sido

homens, emprestam aos seus descendentes no Aiyê - mundo natural (MACHADO,

1999), características que lhe são peculiares. O Candomblé, por excelência, uma religi-

ão imanentista, do aqui e agora, como em todas as culturas ágrafas, não cultiva a dico-

tomia entre um mundo perfeito e idealizado, platônico, a ser alcançado post mortem e

aquele da imperfeição humana. No Orum - mundo das divindades (MACHADO, 1999),

assim como no Aiyê, não existe o Homem fragmentado em representações dialéticas.

Para o povo do Axé, o Homem é Uno e lhe cabem todas as possibilidades. Suas idios-

sincrasias se manifestarão na forma como decide viver a vida que lhe cabe. Neste caso,

24 "A revolução consiste em amar um homem que ainda não existe".

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

55

a idéia de um destino a cumprir também não parece própria já que é a categoria do mo-

mento funda a idéia de tempo.

Seria um deslize ético tentar, através de uma conciliação teórica, resolver os

paradoxos de Petrovich, sabendo que esse não era apenas um homem virtuoso, belo e

isento de conflitos; ele encarnava com unicidade, como dobra e re-dobra, e não dialeti-

camente, o tirano, o mártir, o divino, o demoníaco, a ordem, o caos, a vida e a morte.

Era demasiadamente humano. Esta pluralidade dissonante, de acordo com entrevistados,

esteve sempre nele presente, de forma mais ou menos enfática. É bastante aqui reconhe-

cer ou inferir tais dissonâncias, como tentativa de fidelidade à promessa que lhe fiz por

ocasião da proposta para esta pesquisa: tratar sua vida com carinho e respeito. A única

redenção possível seria, a meu ver, aquela que transmutou a sua angústia, resultante

desta infinitude de máscaras, em mais vontade de arte e de vida.

Como referido, as entrevistas foram realizadas nos meses imediatamente

posteriores à sua morte, num clima de comoção, e quase a totalidade dos entrevistados,

muito emocionados, focaram quase que inevitavelmente as qualidades que considera-

vam positivas, ou socialmente adequadas, da personalidade de Petrovich. O professor

Ewal Hackler que identificava nele intolerância, irritação, inconstância e falta de persis-

tência nos eventos dos quais participava; reconhecia, acima de tudo, o grande ator, "de

perspectiva brilhante", cujo talento fora desperdiçado pelo temperamento lábil. Admite

que por não serem feitos da mesma matéria, ele e Petrovich, é provável que também o

último tivesse tido dificuldades para conviver com o seu jeito tão diverso. Identificava-o

com uma criança:

Ele não trabalhava muito estável... ontem ele inventava uma coisa, hoje outra... então era muito difícil; você não consegue trabalhar com calma, ele sempre o-lhava o que estava sendo feito no momento... a mentalidade impaciente de uma criança... criança também cansa muito, com energia louca, monta o circo, mas não se preocupa se desmonta porque amanhã a criança prefere montar um ou-tro circo... ele tinha essa compulsão de convocar as pessoas; era o que ele bo-lava no momento, de motivar, movimentar... Quando a pessoa conhecia sabia

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

56

que isso era como uma trovoada, isso passava. Têm pessoas que fazem isso com os pais; parece uma coisa de juventude, a primeira vista, mas não leva a um resultado, a uma coisa concreta; então essa impressão, esse impacto se des-faz, fica só a impressão... (EWAL HACKLER)

Sinalizações outras quanto ao temperamento explosivo de Petrovich aparece-

ram nas falas de colegas que, entretanto, emprestaram tom de complacência risível aos

fatos narrados – cito um episódio no qual durante uma reunião do Colegiado da Escola

de Teatro, Petrovich atirou uma cadeira num colega. Atitudes intempestivas e violentas

deste tipo geravam, por vezes, comentários como os de Merry Batista:

Algumas pessoas diziam: "mas Petrovich é muito grosso", ao comentarem mi-nha tolerância e cumplicidade com ele. Quem não conhecia ele de fato se as-sustava... você tinha que conhecer a beleza dele para depois qualificar (MERRY BATISTA).

A estudante da Escola de Teatro, Marilene Santana, que participou da ACC- Griô Kaio-

dê: contando histórias com alegria, fez referência semelhante à da atriz: "Petrô para

mim é uma pessoa gostosa de se lidar, antes eu o achava grosseiro, mas depois que eu o

conheci essa impressão se transformou na certeza do contrário; ele é o meu mestre dos

magos" (GOMES; BATISTA, 2002)

Os filhos de Ogum, para Verger (2006), são impulsivos, briguentos e persis-

tem em seus objetivos, resistindo a toda dificuldade. Possuem, ainda, humor lábil, indo

do acesso intempestivo de raiva, à docilidade e paciência profundas. Petrovich era filho

de Ogum.

Uma visão caleidoscópica revela outras incongruências do homem ator: o

desapego que tinha das formas em oposição a seu rigor na observância ao texto. En-

quanto imergia sem âncoras na vida das personagens que representava, jogando com o

script, nas diversas peças que encenou, guardava obediência espartana para com o dire-

tor e cuidado religioso com colegas e rituais do teatro. A professora Cleise Mendes res-

saltou que a despeito da necessidade imperiosa de transformação e criação, Petrovich

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

57

emprestava um sentido muito mais apolíneo à vida, e no momento da representação

tornava-se a personagem, sem qualquer dúvida sobre a sua existência ou convicções,

conforme pode ser observado no seu relato:

... a postura dele em relação a isso era de enorme seriedade, aqui opondo à-quela coisa da dúvida (a verdade maior dele naquele momento era ser Don Lu-ís25); a capacidade dele de integrar o personagem, acreditar no personagem... ele não tratava aquilo de maneira superficial; ele tinha construído um ser com quem estava toda noite e de repente estava ali se despedindo daquilo (CLEISE MENDES).

A austeridade de Dom Luís estava presente em muitos momentos, em espe-

cial quando se tratava do cumprimento de acordos – faltas não eram toleradas se impli-

cavam na negligência com o outro. A fixação em imprimir medida às relações que es-

tabelecia sinalizava o impulso apolíneo, referido pela professora Cleise Mendes, na di-

reção de uma ética e de uma estética que, confrontados com a profunda dor de saber-se

transitório, emprestava sentido trágico às suas realizações. Talvez por isso a viscerali-

dade da arte na sua vida.

Assim, o sagrado e o profano, em coexistência tranqüila ou confliutosa, eram

vividos com a mesma intensidade e seriedade - um sério que se sabe aberto e efêmero,

pois se mantém em permanente diálogo com o riso – conferindo-lhe tom devoto, religi-

oso e rigoroso nas pequenas realizações cotidianas.Com igual intensidade, estas ganha-

vam matiz de obra de arte, afirmando mais uma vez, o páthos trágico, por princípio.

25 Don Luís era o pai de Don Juan, no espetáculo "Don Juan", 1997.

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

58

Cena 2ª - Enganadoras ficções

Em 1997, numa entrevista para a TV Educativa, instigado pelo nome do pro-

grama, Frente a Frente, Petrovich percebeu-se num momento especial de auto-

avaliação, sentindo-se convocado pela pergunta ontológica "Quem sou eu?".

Esse Frente a Frente é um desafio (...). É muito difícil para mim. É como se eu olhasse para a câmera da televisão e visse um espelho, um espelho onde não me vejo e fico perguntando: "espelho, espelho meu, quem sou eu?". Porque quando você falava, você falava de personagens que eu representei; aí eu pro-curo esses personagens; eu acho que fiquei perdido neles (...) "que identidade eu tenho, onde eu fiquei perdido, em que máscaras? Qual é a minha identida-de?" (PETROVICH, 1997).

A pluralidade que encerra a personagem em cena, projetada no abismo das

máscaras que paradoxalmente a lança no jogo representacional do desmascaramento e

da mitopoética, revela o desejo humano de recuperação da identidade perdida. Não

penso ser leviano afirmar que Petrovich sabia que a fidelidade do espelho é ilusória, ou

melhor, que todo espelho é labirinto. Parecia compreender, também, como expectador

de si mesmo, que as personagens eram o próprio labirinto e não davam conta da totali-

dade daquilo que não-era.

A melancolia que acomete os que se percebem imersos no devir histórico é

aplacada pela lógica identitária que pressupõe um núcleo do eu. Este representa a ilusão

de um mundo estável e pouco suscetível a mudanças, e uma percepção da verdade que

reduz o homem a uma estrutura única e previamente dada. Tal paradigma, defendido

pela cultura oficial, esteio do pensamento sério, supõe que o objeto preexiste ao sujeito.

Esta é a verdade que não ri.

Maria Eugênia Millet, diante da perplexidade de Petrovich acerca da sua i-

dentidade, comenta:

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

59

(...) quem somos nós senão, também, este estilhaçamento? Esse poema ele fez ali na hora26; diz de uma pessoa muito inteira e não de um estilhaçamento. É um poeta falando e ele sabia disso. Saber disso não é estar estilhaçado é, tam-bém, reconhecer seus pedaços, seus dilemas... (MARIA EUGÊNIA MILLET)

Talvez fosse esta a compreensão que projetasse Petrovich, ainda que ele an-

tevisse o interdito de uma imagem única. E por saber-se um ser de relação, "ser-no-

mundo", buscava-se irremediavelmente nos corpos alheios:

(...) eu acho que sou um canal e tenho como missão encontrar a minha alma nos outros. E cada pessoa que for encontrando a sua alma eu sei que vou en-contrar a minha alma (...) Espelho, espelho meu, será que ainda sou eu?

(PETROVICH, 1997).

Petrovich confrontava-se com a idéia de um eu que, enquanto totalização de

fragmentos, não suprime, contudo, a pluralidade e a contradição próprias daquilo que é

Uno. A sua busca por uma identidade perdida na multiplicidade de máscaras e de en-

contros, precipitava-o na dinâmica do diverso. Em Rabelais (BAKHTIN, 1999), os sen-

tidos de diversidade e de fragmentação são representados pela assimetria e heterogenei-

dade do realismo grotesco – corpo despedaçado, exaltação das protuberâncias do corpo

(falos) e orifícios (boca e ânus, especialmente), excrementos, morte, parto, deglutição, e

toda a escatologia da praça pública - que ao rebaixar, finalmente, recupera a vitalidade

do grande corpo social e cósmico: totalidade viva e indivisível. O rebaixamento é o

princípio artístico do sistema de imagens grotescas, que ao trazer para baixo o que se

eleva ou está no alto, aproxima-o da mãe terra, expressão de materialidade, fecundidade

e renovação, recuperando a unidade primordial.

A idéia do apagamento das identidades implica, necessariamente, na emer-

gência da ambigüidade e da pluralidade próprias do Ser - uma interpenetração aberta e

inacabada de almas, como pode ser lido nas palavras de Petrovich. Princípio semelhante

aparece na cultura cômica popular, em especial nos carnavais, quando as hierarquias

26 Referindo-se ao poema de Gregório de Matos, Pequei, Senhor, declamado por Petrovich na entrevista concedida à TVE – programa Frente a Frente, 1997.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

60

desapareciam e todos se integravam numa dimensão cósmica, na qual havia correspon-

dência profunda entre os seres (BAKHTIN, 1999).

O eu, apresenta-se, então, como jogo interpretativo de máscaras para prote-

ção contra o caos das paixões humanas. E novamente recorrendo a Benjamin (1984, p.

247), observei que "A alegoria se instala mais duravelmente onde o efêmero e o eterno

coexistem mais intimamente".

As contradições de Petrovich estão retratadas nas personagens que represen-

tou no teatro. Com Gregório de Matos27(1996), texto de Cleise Mendes, percorreu esco-

las públicas, cantando em versos o poeta barroco. Nota-se, sem grande esforço, a simili-

tude entre ambos no que se refere à multiplicidade de máscaras – em Gregório de Matos

na poesia; em Petrovich, no teatro - e a profunda angústia motivada pela antinomia en-

tre a vida mundana e a salvação do espírito. Digladiam-se o revolucionário inconforma-

do com a arbitrariedade do poder oficial, com o fervoroso e devoto religioso – tanto em

Gregório quanto no homem Petrovich. O conflito entre a necessidade de transgressão e

a busca do perdão pela heresia cometida é um traço do período barroco, momento histó-

rico de rigorosa censura na península ibérica, imposta pela igreja em reação à Reforma,

inclusive com proibições severas estabelecidas pelos tribunais da Santa Inquisição, épo-

ca em que viveu o referido poeta.

Gregório de Matos estudou no Colégio da Companhia de Jesus, em Salva-

dor, e posteriormente concluiu seus estudos e trabalhou em Coimbra, vivendo, portanto,

num ambiente de grande repressão. Petrovich foi filho da ditadura e dos padres salesia-

nos.

É curiosa a analogia que faz Espínola (2000) entre o "Auto da Barca do In-

ferno" de Gil Vicente (1517), no qual o Diabo é o protagonista, e as idas e vindas de

27 Interpretar Gregório de Matos era um antigo desejo de Petrovich, segundo entrevista a mim concedida em abril de 2005.

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

61

Gregório de Matos entre Portugal e Bahia. Ressalta o caráter demoníaco do boca do

inferno, como aquele que desmonta a ideologia oficial com a sua poesia, utilizando tom

sarcástico, linguagem escatológica e grosserias típicas da cultura cômica popular28 , ao

associá-lo à cena de abertura do espetáculo de Gil Vicente: Diabo conduzindo a embar-

cação que levará ao inferno os recém-chegados. "Boca do inferno" era, também, no tea-

tro barroco, uma parte do cenário formada por grandes mandíbulas abertas por onde

saíam os atores que representavam o Diabo. Em Idade da Terra, do cineasta Glauber

Rocha, 1980, Petrovich personificou o "anjo rebelde" na pessoa de um xerife que tinha

como missão destruir a terra.

Encarnando o diabólico, seja em Gregório de Matos ou em Glauber Rocha,

Petrovich aproximava-se do princípio carnavalesco pela vertente do anti-herói. É pru-

dente lembrar que Lúcifer era um querubim que tendo desafiado o Pai todo-poderoso,

foi lançado por este no mais profundo abismo. Este é o preço da desobediência à lei. A

personagem Diabo, figura central nos carnavais, conduzia o espetáculo derrisório e o

destronamento dos deuses: "karne ou karth, ou 'lugar santo' (isto é, comunidade pagã, os

deuses e seus servidores) e val (ou wal) ou 'morto', assassinado. Carnaval significaria,

portanto, 'procissão dos deuses mortos" (BAKHTIN, 1999, p. 345).

Assim como Gregório de Matos, Petrovich agonizava entre dúvidas terrenas

e certezas divinas, reiterando em inúmeras falas o parricídio, fundamental para o encon-

tro de si mesmo, e a culpa conseqüente desta desmesura. Confessando publicamente

suas inquietações no programa Frente a Frente, com olhar fixo na câmera, auto-avalia-

se:

28 Considerando que o movimento da Contra-Reforma protelou a modernidade em Portugal, é possível que a cultura cômica popular naquela região ainda tivesse características medievais importantes. Talvez o espírito inconformado de Gregório de Matos o tenha levado a participar destas manifestações culturais, mesmo através das festas populares incluídas no calendário religioso e das universidades [apenas conjec-turas].

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

62

A procura da minha alma é muito grande. Às vezes eu tenho entusiasmo que é uma coisa grega, que não se pode ter demais. Eu acho que eu peco muito, eu transgrido, eu ajudo as pessoas a transgredirem. Tem um poema que eu gosto muito que é: PEQUEI, SENHOR....29 Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, de vossa alta clemência me despido; porque quanto mais tenho delinqüido, vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto um pecado, a abrandar-vos sobeja um só gemido: que a mesma culpa, que vos há ofendido, vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma orelha perdida e já cobrada, glória tal e prazer tão repentino vos deu, como afirmais na sacra história, eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, cobrai-a; e não queirais, pastor divino, perder na vossa ovelha a vossa glória. (PETROVICH, 1997)

Contrito, reconhece a sua desobediência ao Pai e roga-lhe perdão pelas faltas

cometidas. Recitando Gregório de Matos, experiencia a fusão entre o divino e o humano

amparado, especialmente, pelo culto dos Orixás. Contrastava, assim, a tendência à gran-

diloqüência – segundo Cleise Mendes, Paulo Dourado e Wilson Lins, Petrovich era ator

shakespeareano, épico, das grandes epopéias; homem de gestual largo, gestual expres-

sionista do teatro de Brecht – com a humildade e a renúncia aos grandes feitos, como

também podemos observar no poeta barroco. Na conversa que tivemos em 2004, diante

de uma súbita compreensão Petrovich chora e, desculpando-se, desabafa:

O meu choro é de alegria, mas é muito mais de humildade perante o mereci-mento porque eu sei que já fui tão ruim e sou tão ruim; sou tão não merecedor que quando isso acontece ... Sabe, eu fui levado para algum lugar para ver isso; meu Deus, que maravilha! Mas ao mesmo tempo eu me choco; quero baixar a cabeça humilde perante essa grandeza (PETROVICH, 2004).

29 Poema de Gregório de Matos, referido.

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

63

A beleza do homem é, afinal, revelada nas contradições que protagonizam o

espírito de uma época na qual a desordem e o estilhaçamento rebordam numa razão

outra que inscreve a tensão e a morte como pletora de vida.

Outras personagens, além de Gregório de Matos, foram desejadas e encarna-

das por Petrovich. Algumas delas como Antônio Conselheiro e Don Quixote foram-lhe

especialmente caras. Ambas eram viajantes e estavam imbuídas de uma missão, assim

como ele quando saiu de Natal-RN em direção à cidade do Rio de Janeiro e aportou na

Bahia. Paulo Dourado, diretor do espetáculo Canudos: uma história sem fim; Márcio

Meireles, diretor de Um Tal de Don Quixote; Cleise Mendes, dramaturga e co-autora

dos dois textos; e Walter Lins, diretor do filme Canudos, percebiam semelhanças entre

os mitos encenados e o homem que lhes deu a vida no palco.

Sobre o beato Antônio Conselheiro, Paulo Dourado comenta:

É o arquétipo do velho sábio, o Oxalá, que não tinha a intencionalidade de fundar uma congregação ou ser um líder. Sua missão era restaurar igrejas e dar conselhos baseados na palavra de Deus: ... o heroísmo dele está em se voltar completamente para questões espirituais, a encontrar uma outra razão para vi-ver, uma lógica superior; busca sintonia com essa lógica, busca compreender essa lógica (PAULO DOURADO).

Elevado à condição de herói, Conselheiro permite a catarse coletiva para ser,

em seguida, sacrificado em nome da ordem; assim como ocorria nos carnavais medie-

vos quando o bobo era sagrado rei e morto ao final do ciclo festivo com o objetivo de

fundar uma nova dinâmica social. Sobre a escolha de Petrovich para encenar o Antônio

Conselheiro, ainda o professor Paulo Dourado observa:

Não fiz convite nenhum, ele era Antônio Conselheiro. Eles se encontram na busca de uma justiça, de um modo de vida brasileiro. Eu vejo ele como um pensador, um intelectual ... talvez a visão dele fosse tão messiânica; ele estava tão imbuído de uma certeza como Antônio Conselheiro. (...) Petrô como Con-selheiro está em cena o tempo inteiro, está guerreando, está buscando isso: a construção de um universo cultural, político, existencial brasileiro (PAULO DOURADO).

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

64

A vivência da cultura popular, especialmente nas feiras livres e teatro de rua,

emprestou a Petrovich um sentimento de brasilidade que permaneceu durante toda a sua

vida, expressando-se mais intensamente nos últimos anos através da cultura afrobrasilei-

ra.

A necessidade de criação de uma estética tipicamente brasileira pode ser

observada através da participação em movimentos como a saída da Escola de Teatro,

em 1959, antes de completar o curso, como repúdio ao europocentrismo do seu diretor

Eros Martim Gonçalves30, apoiado pelo Reitor Edgar Santos; a criação, juntamente com

outros colegas e professores da Escola de Teatro, em 1960, do Movimento dos Novos;

a participação em movimentos estudantis como o liderado por Glauber Rocha; a realiza-

ção de espetáculos que colocavam em evidência a cultura nacional, com ênfase nas pro-

duções populares e de caráter político.

Wilson Lins que também optou por trabalhar com Petrovich como Conse-

lheiro, comentou a força dessa personagem mítica no imaginário popular. Relatou-me o

assédio que o ator sofreu durante as filmagens, em locais nos quais o herói passou. O

povo reconhecia nele o Antônio Conselheiro que voltara para salvá-los. Pediam-lhe a

bênção e conselhos.

As percepções conselheirista e quixotesca de Petrovich são retomadas por

Cleise Mendes ao tentar compreender a relação que ele estabelecia entre ser educador e

ator:

Qual a imagem que ele tinha de si mesmo? Ele se imaginava com uma função um pouco messiânica, no sentido de um apóstolo (...) eu acredito que ele se conheceu, inclusive, através daquela coisa do Quixote. (...) Ele tinha um apos-tolado, eu não sei que nome dar, qualquer desses nomes está muito circunscri-to; educador. Mas se a gente pegar num sentido amplo, um educador meio messiânico (...) é como se também esse trabalho no teatro como ator ficasse muito restrito...porque ele tinha esse outro chamado, no sentido da vocação, da

30 Petrovich, na entrevista a mim concedida, reconheceu Martim Gonçalves como o seu pai de arte, apesar de manter reservas quanto à ideologia por ele defendida àquela época. Reitera a necessidade do parricídio para fazer surgir uma nova ordem.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

65

educação; que não é só aquela educação formal na escola: é ser, não tem outra palavra, um messias, mesmo. Aí vem Conselheiro (...) como é que ele se via? Ele se via por um lado como esse buscador de sonhos, a coisa quixotesca, ele veio do interior em cima de um caminhão, aquela coisa do retirante nordestino que veio procurar o pai. (...) Conselheiro era o lado que dava esperança; Qui-xote é aquele que busca para si um sonho, embora o ideal dele é fazer justiça no mundo, distribuir justiça, mas é muito mais a viagem dele. E Conselheiro, fosse ele quem fosse, ele se transformou na grande esperança para todo mundo (CLEISE MENDES).

O caráter messiânico e de apostolado mesclava a paixão pelo teatro com a

possibilidade de utilizá-lo como via para uma educação que primava pelo autoconheci-

mento e pela criação de um projeto de humanidade que reintegrava organicamente o

homem e o cosmos. Dentre as inúmeras personagens que representou desde a sua ju-

ventude, Antônio Conselheiro e especialmente Don Quixote foram para Petrovich a

síntese da sua jornada de ator, conforme me relatou em 2004 - através delas realizou o

seu psicodrama, atualizando e reinscrevendo-se no mito brasileiro e no de Cervantes.

Não lhe era possível esquecer que fora sagrado cavaleiro - "Deus faça a

Vossa Mercê muito bom cavaleiro, e lhe dê ventura em lides" (CERVANTES, 1981, p.

39) – e diante de tal graça, empunharia a espada contra quem ou o que quer que amea-

çasse seus sonhos de cavalaria: "O mundo precisa é de cavaleiros andantes! É preciso

reparar as injustiças, socorrer os necessitados, defender a ética como se fosse uma don-

zela em perigo. Cavaleiro andante serei para servir aos séculos futuros. Primeiro passo:

às armas!" (MENDES; MEIRELES, 1998). Inegavelmente, Petrovich, segundo entre-

vistados, era "um sonhador", com a ressalva de "que realizava".

Usando seu alto engenho, e armado de fantasia tonto de tanta leitura, prá sonhar já não dormia. Preparou-se para a andança: colocou a mão na massa, de latas fez armadura de um espeto a sua lança. (MENDES; MEIRELES, 1998)

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

66

Era característica reconhecida a profusão incessante de novos projetos, como

também a decisão de não se deixar imobilizar pela dificuldade ou impossibilidade de

realizá-los. Como filho de Ogum, cria sempre haver outros caminhos; como um Conse-

lheiro sabia ser a terra prometida um u-topos e, portanto, o lugar geográfico de Canudos

seria qualquer um; como um Quixote aceitava as batalhas perdidas e seguia bravo em

louvor dos desvalidos e da dama Dulcinéia. Mas assim como criava, tinha o desapego e

a generosidade de, a outros, ceder a sua criação, como observa seu amigo Roberval Ma-

rinho, com quem compartilhava as obrigações de Ogan:

Ele era muito magnânimo. Nós concluímos: "ótimo, o pessoal assumiu, deixa lá; o projeto está de pé, pouco importa o que digam". Muita coisa que ele fez perdeu a autoria. Ele fazia, implantou, alguém tomou, está cuidando, ele dei-xava lá, ele não ia atrás. Buscava fazer uma outra coisa (ROBERVAL MARINHO).

Esse desapego pela autoria é típico dos filhos de Ogum que têm por missão

abrir caminhos, e também daqueles que sabem que tudo passa e que a segurança dos

portos é apenas ilusória. Rafael Moraes refere que uma semana antes da morte de Petro-

vich conversou com ele sobre o projeto de arte-educação que iriam iniciar em Angola:

Uma semana antes de morrer a gente se encontrou... eu vou para abrir caminho (referindo-se a Angola) para vocês irem depois... ele tinha essa coisa de abrir caminhos, muito forte... ele chorou e eu perguntei "por que você está chorando Petrô?" ... "é porque eu estou muito emocionado porque a gente está fazendo tudo isso para quem vai vir depois de nós" (RAFAEL MORAES).

O que afinal não deixa que durmam os sonhos de Petrovich, projetando-o

incansavelmente na direção de novos empreendimentos? Aquilo que aos doutos parecia

loucura e apenas ruína, ele emprestava o sentido do novo como faz o historiador benja-

miniano. Talvez por isso, teimava em dar novas significações ao que jazia adormecido

no homem – delirando caminhos de fazer-se sempre outro. Acerca da personagem sínte-

se da sua vida, como me referiu, Um Tal de Don Quixote, comentou, em 2004, a grati-

dão pelo papel oferecido a ele por Márcio Meireles:

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

67

Eles me ajudaram a realizar um papel que sintetiza a minha vida de ator, a mi-nha vida de pessoa, de gente; a minha vida de não-identidade. Que é o grande herói da reciclagem humana que junta os pedaços e faz sonhos; que é o Dom Quixote de La Mancha. "Um tal de Don Quixote" junta pedaços de tudo e mostra que (esses) são outras coisas e convive (com elas) e vive dentro do so-nho, dentro dos mitos. Aquele tal de Don Quixote, em cima de um tambor de óleo, chapéu de trabalhador, macacão, uma espada de madeira, enfrentando moinhos de vento, representados por pessoas andando de pés grandes, pés compridos de madeira (PETROVICH, 2004).

No seu arsenal, o teatro, a educação e a palavra. A professora Cleise Mendes

relata que o conheceu quando ela ainda era estudante do Instituto de Letras da Universi-

dade Federal da Bahia. Ele fora fazer uma palestra; era-lhe impossível estabelecer limi-

tes entre o artista, o professor e o homem, pois seu o fazer aproximava-se do sentido

grego de techené: era práxis e poiésis.

Na mesma direção da professora Cleise Mendes, o colega Sérgio Farias, que

contracenou com Petrovich como protagonista na peça Don Juan, observou a presença

constante do educador quando em cena - homem comprometido com o teatro e com a

educação:

A figura Petrovich, o homem Petrovich, era um educador antes de qualquer outra coisa. Não sei se antes de ser artista. Eu acho que ao mesmo tempo, tanto quanto artista ele era educador... E mesmo quando Petrô atuava como artista, por exemplo, Don Juan, que ele fez o papel do meu pai, o comportamento dele, era o comportamento de um artista educador. A gente aprendia muito com ele nas conversas, no camarim, no jeito de ser, nos ensaios; ele era de uma disci-plina, de uma precisão em cena, em termos de marcação, em termos de fala, da entonação da voz, que era um exemplo. ... então, até enquanto artista em cena ele era professor; e aqui na escola, a vida inteira. Logo que ele se formou em direção teatral, tornou-se professor (SÉR-GIO FARIAS)

A intensidade das performances de Petrovich e a dificuldade para circuns-

crevê-lo em papéis socialmente legitimados, não poucas vezes causou ou evidenciou sua

inadequação nos ambientes, resultando em desconforto e escárnio por parte de alguns.

Louco, palhaço, sonhador, poeta, tolo, contador de "causos", tal como Conselheiro ou

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

68

Quixote, ou um griô31 africano, parecia estar imbuído de uma missão que o possibilitava

ver o mundo de perspectivas distintas daquelas defendidas pelo espírito dogmático e

racionalista da academia. Faltava-lhe o juízo: operava numa razão que, fundamental

para os atores, deveria, contudo, estar restrita aos palcos, para muitos, vez que era aves-

sa àquela que integra os espaços e valores hegemonicamente instituídos.

Movido pelos versos de Feliciano de Silva32 e já sem nenhum amparo da

razão, o fidalgo Quijada ou Quesada, inspirado pelo amor à donzela Dulcinéia, deixa

sua biblioteca e, cavaleiro andante, aventura-se na defesa da justiça. Procurando com-

preender a semelhança entre Petrovich e Don Quixote, Cleise Mendes, como co-autora

do espetáculo homônimo, reflete:

(...) aquela coisa que Bergson chama de "os grandes desviados", imbuídos de uma idéia fixa, que é Don Quixote. Ele fala daquilo, de uma maneira que se torna engraçado, ridículo, justamente para aqueles que estão nos pequenos comportamentos. É como se fosse uma transgressão. Todo mundo está ali co-medido, quando chega aquele cara "maravilhoso!!"... não é que ele estivesse querendo fazer graça. Ele vinha com uma paixão real por uma idéia fixa; por-que nossa vida é muito pequena, nós somos no cotidiano, muito pequenos, e não compreendemos (...) é como todo aquele povo que via Quixote chegar, di-zendo "sou cavaleiro andante". Não é o bufão naquele sentido do que vem para fazer rir. Não, ele estava querendo transmitir uma idéia que para ele era muito importante, mas era tão em alto falante, espetacular; mas era real, ele acredita-va naquilo. Ele parecia aos outros aquilo que Bergson diz: portador de uma i-déia fixa. Dos grandes apaixonados (CLEISE MENDES).

Don Quixote de La Mancha era velho e seu juízo fora afetado pela leitura

excessiva33. Para Paulo Dourado, somente um velho pode fazer os papéis do Don Qui-

xote ou do Conselheiro. É pela boca do velho e da criança que fala a loucura, reforça

Erasmo ([19--]).

31 Contador de histórias. 32 "A razão da sem-razão que a minha razão se faz, de tal maneira que a minha razão enfraquece, que com razão me queixo da vossa formosura" – Feliciano de Silva é "Autor da Segunda comédia de Calixto e de vários livros de cavalaria..." (CERVANTES, 1981, p. 29). 33 Aparece aí a idéia do livro como phármaco, remédio ou veneno, que pode contaminar a alma do leitor. Para aprofundamento do tema: DERRIDÁ, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

69

A sabedoria do velho desconstruiu, paulatinamente, o tônus ranzinza e a-

guerrido da juventude de Petrovich, segundo Vanda Machado. Ele passou, doravante, a

lidar com o instituído, usando o riso e a sedução, sempre como uma alma apaixonada,

como registra Deolindo Checcucci:

Ele seduz pela poesia, seduz pelo humor, pelo lirismo, pode entrar pelo dramá-tico... ele tem todo esse potencial de tocar cada um naquilo que talvez seja mais próximo, e como cada um de nós temos diferentes nuances em nossa per-sonalidade, o papel dele era jogar com essa pluralidade de visões. Um visioná-rio que, ao mesmo tempo em que estava falando da dor, tinha a intenção de superá-la. Ele tinha uma intenção que era tocar a cada um e despertar essas pessoas. Esse é o verbo mais próximo dele: queria despertar todo mundo, que-ria que as pessoas reagissem, que as pessoas agissem... se você não transgride fica difícil de você conquistar, de você seduzir o expectador (DEOLINDO CHECCUCCI).

Esse era o messias velho que tinha a intenção de tocar e transformar pessoas.

E enquanto o Cavaleiro da Triste Figura lutava solitariamente contra moinhos de vento,

"nas indeléveis páginas de Cervantes" (MENDES; MEIRELES, 1998), Conselheiro

arrastava uma multidão de ex-escravos, alguns egressos de quilombos, e maltrapilhos

nordestinos fugidos da seca, numa pregação dogmática e insana, na visão de Euclides da

Cunha, e libertária para aqueles que o seguiam.

Cena 3ª - Quem conta um conto...

Antônio Vicente Mendes Maciel fez-se Conselheiro por orientar aqueles que

peregrinavam consigo. Num momento de grande angústia, busquei em Petrovich um

conselho. É preciso salientar que um conselho, na perspectiva benjaminiana, não pre-

tende resposta a uma pergunta; aponta, contrariamente, para uma plêiade de caminhos

possíveis ou inventados, como continuidade da história que está sendo narrada. O con-

selho enseja o compartilhamento de experiências e, portanto, o entrelaçamento da narra-

tiva com a matéria da vida vivida.

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

70

Considera BENJAMIN (1985) que enquanto a experiência coletiva, Erfha-

rung, evoca o sentido de viagem (fahren), Erlebnis diz da vivência privada do indiví-

duo. A Erfharung, para o autor, entrou em declínio desde a primeira guerra mundial

quando os homens tornaram-se incapazes de intercambiar suas histórias. O pensador

alemão associa a essas duas manifestações uma forma especial de narratividade, arte de

contar, que permite estabelecer uma autêntica experiência com o passado. Contudo, o

isolamento, a solidão, a pobreza de experiências resultam, segundo ele, numa nova hu-

manidade, mergulhada na barbárie. O sentido de barbárie é, entretanto, (re) significado

como redenção, visto que o homem bárbaro pela potencialidade criativa e imoderada,

imprimirá uma dinâmica revigorante e inovadora ao encontro do novo.

No texto, O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, escrito

em 1940 (BENJAMIN, 1985), o autor identifica na narração tradicional a figura do

camponês sedentário que tece a memória da coletividade, e a do marinheiro que narra as

aventuras e desventuras das suas viagens. Na oficina, lugar de encontro do mestre se-

dentário com o aprendiz migrante, resgata-se o sentido e o ritmo que a história oral im-

prime na vida comum. Para Benjamin, contudo, esta forma artesanal de comunicação

... não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso" (BENJAMIN, 1985, p. 205).

A narração enreda-se, como cont'ação, com a história e com os modos de viver histori-

camente, e o homem que dá conselhos interfere na experiência que está sendo narrada,

derivando e provocando novas trajetórias. A esta arte de narrar o pensador alemão cha-

mará de sabedoria, relacionando seu declínio à extinção do "lado épico da verdade".

Petrovich era reconhecido como um homem das grandes epopéias, um ho-

mem épico, um contador de histórias ao modo dos griôs africanos. Relembrava em suas

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

71

conversas as estratégias que, quando criança, utilizava para driblar a mãe, contando-lhe

casos aos quais emprestava um tom de dramaticidade comovente, a fim destituí-la de

castigá-lo pelas traquinagens. O ex-estudante da Escola de Teatro, Rafael Moraes, refe-

re-se a Petrovich como um Ossobaró, um bruxo das palavras, um feiticeiro da fala, co-

mo lhe denominou Mãe Estela de Oxossi, a Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. Fazendo

alusão ao griô e ao jeito brincante do velho mestre, ainda Rafael Moraes observa:

... ele tem essa coisa de brincante, tem alma de criança... eu o associo a um mago, um griô; e o griô tem essa coisa muito forte. O griô, ele consegue conci-liar essa ingenuidade da criança, essa entrega, com a sabedoria, com a experi-ência. É a sabedoria da simplicidade, a sabedoria do bobo... é um caminho quase de iniciação: a arte através do palhaço, das brincadeiras; acho que tem uma ação libertadora; parecido com os mestres de palhaço que eu tive. (...) ... o que ele me ensinou foi na vida mesmo, nas conversas (RAFAEL MORAES).

Os griôs narram ao modo do artesão. A vivência da praça pública sempre foi

marcante na vida de Petrovich e, como um filho de Ogum e Ogan do Terreiro do Ilê Axé

Opô Afonjá, tinha na tradição oral e nas histórias dos "mais velhos", a fonte da sabedo-

ria do povo de Axé. E o que é o teatro a não ser a arte de contar histórias?

Na Atividade Curricular em Campo (ACC-UFBA), da Escola de Teatro, cri-

ou o Griô Kaiodê: contando histórias com alegria, foi uma das suas últimas e mais sig-

nificativas experiências na UFBA, realizada com a Didá Escola de Música. Contou com

estudantes de teatro, de artes plásticas, de educação física e de filosofia; além da co-

autoria da pesquisadora Vanda Machado. Coletivamente, em roda ou no espaço cênico,

crianças, jovens e adultos contavam as histórias das suas vidas através de Zumbi dos

Palmares, da escrava Anastácia e de Neguinho do Samba34. Contar histórias, para ele,

tinha o sentido de resgatar em cada um o poder de se afirmar no mundo, pela palavra,

segundo Vanda Machado -

34 Neguinho do Samba, nome artístico com o qual prefere ser denominado, criou no final dos anos 80 a Banda e a Escola de Música Didá. Através da "pedagogia do tambor", como chama, oferece às mulheres do Centro Histórico de Salvador, e adjacências, possibilidade de resgatar e ressignificar valores negligen-ciados na contemporaneidade. O espaço que antes abrigava apenas mulheres, contudo, agregaram-se crianças de ambos os sexos e das mais diversas faixas etárias.

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

72

... num dos últimos trabalhos que ele fez na Reitoria pediram a ele para recitar um poema que é uma música de Gilberto Gil: "o povo sabe o que quer e quer mais do que sabe" (...). Ele disse: "eu acho que o povo sabe o que quer e quer mais do que sabe, e às vezes não sabe falar o que quer" (VANDA MACHADO).

As pistas para reconhecer em Petrovich um contador de histórias e um con-

selheiro encontram-se em várias passagens da sua fala, aproximando sua arte da experi-

ência coletiva, Erfahrung. Narrar, para ele, era um modo de comunicação, com o qual

buscava redimir o passado da humanidade, presentificando-o pela experiência. Salvar o

passado, contudo, é concebê-lo aberto e sem possibilidades de completude pois que a

memória é, também, esquecimento e morte.

Como já referido, em 2004 busquei em Pertrovich um conselho. As questões

que eram suscitadas pela investigação do riso levaram-me à sua casa. Iniciou a conver-

sa, afirmando a impossibilidade de respostas às minhas questões, mesmo antes de serem

formuladas. Sem pretender um ensinamento, contou-me histórias e confrontou-me com

os seus e com os meus fantasmas. Como um conselheiro, falou-me em tom de parábola:

A perspectiva das suas questões para mim é assustadora. "Mas eu não sei na-da; se ela perguntar alguma coisa eu vou dizer não sei, mesmo". Aí eu me a-calmo e espero. O que é que eu sei? Você vive a sua vida, fazendo não sei o quê; como é que eu sei alguma coisa? Nada. Então o que vai acontecer é que quando você chega, muita coisa que você quer saber vem de você mesma, do seu universo; aí entra aqui, aí eu vejo. Eu não sou Prometeu; sei o que é Pro-meteu, mas eu me coloco calmamente aqui com esses aparatos ... é você que traz a resposta e a resposta bate em mim e reflete para você. Isso me faz acre-ditar que a verdade é você e não eu. Eu não estou inventando nada, porque quando você sair eu serei um filho da puta ignorante de você e de tudo, perce-be? Então, o motivo de alegria é agora e aqui. O grande perigo é esse: esse é o perigo do amor, da paixão. Esse encontro é um perigo. Por que é que as pai-xões se acabam? Por que é que o amor se acaba? Quanto a essa coisa que você trouxe, todo meu ser se transforma e me dá uma alegria infinita. (...) ...agora olhe para frente, para o seu caminho e seja muito humilde. Nesse caminho já foram centenas e milhares antes de você... porque outros heróis, noutras épocas, noutras eras, trilharam esse caminho e deixaram o caminho to-do marcado; e você está seguindo os passos. Eu não direi mais sobre isso, por-que o que está no fim do caminho, merece que você encontre sozinha... (PETROVICH, 2004).

Para que haja conselho, faz-se necessário saber narrar e saber ouvir, pacien-

temente, sem qualquer pretensão de explicações. O conselho não serve a um fim utilitá-

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

73

rio e está mais próximo da fala oracular. Era assim que ele falava-me e escutava-me

naquele momento - em profundo silêncio:

Eu descobri muito cedo que precisava ouvir uma pessoa que fala comigo. Não tenho de lembrar das minhas histórias, da minha vida. Tenho que ouvir o ou-tro. Tem gente que não fala com você. Tem gente que quando você fala, ela já fala outra coisa. Você tem que ouvir; o diálogo é você ouvir tudo. Dizer: "o-lha, eu te ouvi. Isso, isso, isso, não foi?" O outro só faz sorrir e não te quer na-da. O outro às vezes só queria que você ouvisse (PETROVICH, 2004).

Ainda hoje, a arte de narrar sobrevive em comunidades cujas tradições estão

profundamente arraigadas na oralidade, como podemos observar nos relatos que faz

Vanda Machado sobre os trabalhos que ela e Petrovich realizaram na Escola Municipal

Eugênia Anna dos Santos e com a Didá Escola de Música. Recorda situações que reme-

tem à narração como experiência coletiva tecida como um "ofício manual"

(BENJAMIN, 1985). É interessante a semelhança entre as apreciações feitas pelos dois

pensadores, respectivamente:

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde porque ninguém mais fia e tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las (BENJAMIN, 1985, p. 205). Hampate Bâ descreve o seu povo como um povo que sabe escutar. Ele conta que ouvia muitas histórias dos mais velhos. Histórias de valor, história que a-juda a ter um jeito de ser e ter um rumo no mundo. Quando o menino chegava em casa contava todas as histórias que lembrava. De fato a escola precisa ser cantada, dançada, tocada. Não importa onde, nem como. O importante é que as histórias possam contribuir para que o sujeito possa ocupar um espaço adequa-do no mundo. Uma das últimas vezes que nós fizemos uma roda de conversa na Didá uma senhora durante todo tempo trançava o cabelo de sua filha. Era aquele o momento que ela tinha para pentear o cabelo da filha. Aquelas tranças bonitas, que quando as meninas têm dinheiro elas pagam as trançadeiras. Quando não, ali mesmo uma cuida da boniteza da outra. Uma embeleza a ou-tra. Ali mesmo, durante o trabalho, uma destrançava e outra trançava a outra; e todos de todas as idades assistem as mesmas conversas, as mesmas histórias (VANDA MACHADO)

A professora faz referência à Didá Escola de Música. A ambiência que des-

creve foi por mim observada durante a entrevista coletiva que realizamos. Sentadas no

chão, as mulheres da Didá contavam "causos" sobre Petrovich, cantavam, choravam ou

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

74

riam. Uma mulher trançava o cabelo de uma criança, e Neguinho do Samba, única figu-

ra masculina presente, consertava uma extensão elétrica e uma filmadora. Todos esta-

vam muito atentos às conversas fazendo interpelações, ainda que estivessem envolvidos

em alguma tarefa manual. Por vezes, pessoas entravam na sala, sentavam-se próximas,

também ao chão, ouvindo as narrativas, permanecendo ou saindo logo em seguida, sem

restrições.

Para Petrovich, esquecer de si era condição fundamental para ouvir o outro;

era acolhimento. O reconto, pensava, abrigava a teatralidade que permite a recriação das

tradições. No dizer da professora Vanda Machado, ouvir ganha o sentido de assistir,

revelando a materialidade da palavra que se (en)carna no tecer e destecer na e da vida.

E enquanto na Didá as meninas tecem tranças; em Ítaca, Penélope tece e destece em

dias e noites a viagem de Odisseu. Em algum lugar, talvez nas páginas de um livro, uma

moça tecelã, "... jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pen-

tes do tear para frente e para trás", tece e destece os seus sonhos - "Tecer era tudo o que

fazia. Tecer era tudo o que queria fazer" (COLASANTI, 2000, p. 12). É na escolha cui-

dadosa dos fios que com maestria serão lançados no tear, e no ritmo do pente que os

entrelaça, que mitos, desejos e memórias (trans)formam o tecido da existência.

E era essa a maneira de ser e de fazer do povo que ocupava a praça pública

na Idade Média e no Renascimento, onde a palavra transitava encarnada e livre. O vo-

cabulário utilizado por Rabelais, segundo Bakhtin (1999), pelo caráter escatológico e

grosseiro, provocou a execração da sua obra nos séculos subseqüentes. A linguagem

familiar da cultura cômica popular, marcada pela oralidade, diferenciava-se substanci-

almente daquela utilizada pelas instituições, pela corte, pela igreja, pela literatura ofici-

al, ainda que nos períodos festivos irrompesse o limite estabelecido, inclusive nos textos

e rituais da Santa Madre Igreja. A ambivalência instalava-se em cada palavra; elogio e

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

75

injúria, positivo e negativo eram Um, pois jamais se separava o todo e nem o devir. Na

palavra do povo, a sensação histórica do mundo se fazia representar.

A modernidade e o capitalismo, instrumentalizado pela tecnociência, impu-

seram restrições à palavra livre e à arte de narrar, que para Benjamin (1985) tende a

desaparecer juntamente com as tradições. O que deveria ser experiência, mediada pela

técnica, converte-se em experimento; o que deveria ser (con)vivência comunitária,

transmuta-se em individualismo e isolamento.

No esteio da sociologia das ausências (SANTOS, 2005), entretanto, a con-

trapelo da razão instrumental, uma razão sensível e poética sobrevive, tensionando o

instituído no sentido de uma relação orgânica homem-mundo. O poema de Höderlin

aludido por Heidegger (2001, p.31) na discussão sobre a técnica –

Ora, onde mora o perigo é lá que também cresce o que salva.

- reafirma essa resistência pela possibilidade de tramas tecidas na e da diferença – dife-

rença como salvação. Esta é a matéria viva do narrador que enreda e se enreda na urdi-

dura dos fios que reborda interminavelmente.

O educador Petrovich, o Ossobaró do Opô Afonjá, que brinca com as pala-

vras, é um conselheiro. Instiga a cont'ação de histórias, recriando através da arte dramá-

tica e nas rodas de conversas, o presente a partir da restauração do passado – lembrando

que este passado, enquanto memória e ruína, é necessariamente inconcluso, e faculta o

lugar de possibilidades não realizadas.

Juntamente com a comunidade Didá, o arte-educador Carlos Petrovich re-

encenou os mitos de Zumbi, da escrava Anastácia, de Neguinho do Samba, autos de

natal; e cada criança, cada mãe, cada jovem foi herói e heroína na sua história e na his-

tória da sua coletividade. A aula convertia-se, assim, numa "obra aberta" (ECO, 1976).

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

76

Este é o tipo de educação que resgata a historicidade do objeto, (re)contando-o a partir

da perspectiva intimista do si mesmo que se constitui no encontro com o outro. A edu-

cação petrovichiana, enseja o contar-se do "ser-sendo-no-mundo-com".

Cena 4ª - Mascaradas: Dionísios e Exus

Os modos de estar no mundo, ou melhor, de "ser-no-mundo", do tal de Pe-

trovich, guardavam ressonâncias outras além das já mencionadas, com Antônio Conse-

lheiro e com Don Quixote de La Mancha. Velhos, agitadores, sonhadores, loucos, entu-

siastas, desmedidos marcaram as suas jornadas pela resistência, como assim resistiu o

povo negro escravizado que não consentiu no apagamento das suas tradições. Enfrenta-

ram os antagonistas que lhes atravessaram o caminho usando escudos, lanças, facões,

palavras; a arte; as bandeiras da cavalaria e do divino. A resistência do beato que guar-

dava a dor do povo do Belo Monte, à República e às iniqüidades que afligiam o sertane-

jo; a perseverança do Cavaleiro da Triste Figura em combater as injustiças cometidas

contra os desvalidos; a persistente luta de Zumbi dos Palmares contra a escravidão do

seu povo, estavam também presentes no Ossobaró, no filho de Ogum - senhor das guer-

ras e das conquistas, que abre e transforma caminhos - que lutou bravamente pela so-

brevivência do Teatro Vila Velha, pela universidade pública, pela arte, pela educação,

pela cultura genuinamente brasileira, por um projeto de humanidade que tivesse o amor

e a solidariedade como princípios.

Tinha muito orgulho de ter sido um dos criadores do Teatro Vila Velha. Re-

latou-me as dificuldades para mantê-lo em funcionamento e para não permitir que fosse

tombado pelo Governo do Estado. Temia que virasse "casa de ninguém". A preservação

da casa que abrigou o sonho dos "Novos" no início dos anos sessenta, daqueles que luta-

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

77

ram para construir um teatro brasileiro, foi sua batalha por aproximadamente dez anos;

tempo de solidão e de dificuldades que, contudo, não o fizeram desistir. Rejubilava-se

com o que foi antes, um sonho; com orgulho comentou:

Aquilo está se transformando numa catedral do 3º milênio: centro de movi-mento, centro de ação; uma catedral (PETROVICH, 1997). (...) Então eu acho que ele (Márcio Meireles) está no lugar certo e eu estou no lugar certo. Eu caminho por aqui fazendo teatro para o povão, ele continua lá fazendo teatro para o povo, com o Vila Velha. Então, o Vila Velha tem uma destinação histórica, e eu hoje, com meus 69 anos, eu tenho um destino histó-rico, mítico, social, ligado com a cultura afrobrasileira e ligado com o povão da Bahia, a quem a toda hora eu bato com a cabeça no chão, toda hora eu boto a mão no chão35 (PETROVICH, 2005).

Foram inúmeras as dores e as batalhas laureadas de êxito. Foi também um caminho de

aprendizagem. Ritmado, o coro canta a teimosia de Um tal de Dom Quixote, que andou

pelas bandas do Teatro Vila Velha:

E quando alguém lhe dizia Isto é loucura enorme, Ele então respondia: Mas o meu sonho não dorme. Não dorme (MENDES; MEIRELES, 1998).

Certamente, muitos foram os Petrovichs ao longo da sua jornada de suces-

sos e insucessos, mas, sem dúvida, eles encontraram no berço da cultura afrobrasileira o

lugar de síntese das suas buscas, das suas viagens. E foi velho, enfim, que aportou no

Opô Afonjá, tornando-se sacerdote – Ogan – pela dedicação aos cultos e à comunidade

do terreiro, de acordo com Mãe Estela de Oxossi. Se buscava um pai, no candomblé

descobriu que Olorum tem muitos nomes; se tentou integrar a arte à vida, foi na roça36

que reconheceu mais intensamente a teatralidade nos rituais cotidianos, e a história oral

que restaura a tradição, conforme pode ser observado na leitura da professora Vanda

Machado:

35 Rito afrobrasileiro para saudação ao solo sagrado. 36 Como é denominado, pelo povo do Axé, o espaço do terreiro.

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

78

Nós não inventamos, nós demos vozes àquelas pessoas, que pudessem fazer ressoar muito longe...esse fazer que passa pela arte estava completamente con-dizente com o ambiente do terreiro que é um ambiente teatral, que é um ambi-ente de beleza, um ambiente que se transforma sempre...no terreiro se vive ri-tualisticamente, mitologicamente, mas também artisticamente, teatralmente. É um cenário em transição (...) este cenário em transição incitava Petrô fazer coi-sas (VANDA MACHADO)

A cor branca da pele e os cabelos escorridos de índio do Potengi, contrasta-

vam flagrantemente com a alma negra, conforme se reconhecia e era reconhecido pela

comunidade afrodescendente e do Opô Afonjá. Assim o percebiam Ângelo Flávio e Ne-

guinho do Samba, respectivamente:

"Petrô sempre disse: 'eu sou negro por escolha; eu escolhi ser negro" (ÂNGE-LO FLÁVIO). Carlos Petrovich, na verdade, ele é um anjo enviado de Zumbi dos Palmares, de Luther King, de Nelson Mandela. E ele vem libertar o seu povo. Ele brigou na universidade para que os negros tivessem espaço; o que Zumbi fazia em Palmares. Ele brigou para que essas mulheres (referindo-se às integrantes da Didá) tivessem espaço na Universidade, no teatro, na música (NEGUINHO DO SAMBA)

Roberval Marinho relata que ele e Petrovich foram instigados pelo professor

de História do Teatro, Nelson Araújo, um estudioso da cultura popular, quando estudan-

tes de direção teatral na Universidade Federal da Bahia, a procurarem vestígios do nas-

cimento da arte teatral nos terreiros de candomblé. Esse cria que, tendo o teatro nascido

dos ditirambos37, poderia ter havido migração deste culto para a África, considerando a

proximidade geográfica desta com a Grécia – no Candomblé como nos ditirambos, ob-

servam-se manifestações animistas, refere o entrevistado.

Uma descrição detalhada das manifestações do deus Dionísio pode ser en-

contrada em Detienne (1980), que descreve o seu surgimento e deslocamento pelo terri-

37 Cantos líricos dedicados ao deus Dionísio. Eram entoados por um coro de sátiros que migravam pelos campos, em procissão, dançando e rindo, embriagados; possuídos pela divindade, portavam-se de forma delirante e violenta. Tinham como bandeira um enorme phallos, indicado como símbolo pelo oráculo de Delfos. Quando os atenienses hesitavam em receber Dionísio, esses eram acometidos de uma "ereção dolorosa e sem remédio" (DETIENNE, 1980). Estas dionisíacas mais tarde deram origem às comédias, kômodai, em alusão ao kômos que ocorria no final da festa – saída de um grupo que interpelava os pas-santes obscena e zombeteiramente (MINOIS, 2003).

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

79

tório grego, reconhecendo manifestações similares no Oriente. Deus estrangeiro e das

mil máscaras, em cada lugar faz-se diferente do que fora e suas epifanias tornam-se jo-

gos que precipitam a bestialidade e o êxtase entre os humanos.

A característica do que está sempre em movimento e apresenta-se diferente a

cada instante pode ter sido a hipótese de base das inquietações de Nelson Araújo, que

levaram Petrovich e Roberval Marinho ao Ilê Axé Opô Afonjá. A teatralidade do terreiro

é também ressaltada por Petrovich ao se referir a Exu como o primeiro ator –

Ele é um dos primeiros atores do mundo, porque ele toma a figura, a forma e a máscara que ele quiser, para se comunicar com os seres humanos (PETROVICH, 2004).

Exu e Dionísio seriam um só? É interessante perguntar: qual a intensidade do riso que

migra para o Brasil com a escravidão? Consideremos, também, que o processo de colo-

nização portuguesa teve início com aqueles que mais intimamente estavam ligados à

cultura cômica popular, o povo, ainda que os jesuítas tenham demarcado com vigor as

posições da Igreja.

Bastardo como Dionísio, estrangeiro em sua própria terra, de alma negra,

como afirmava, Petrovich, ator das mil máscaras, caminhava incansavelmente, mas não

sem levar no peito o amor por uma doce donzela, à semelhança do seu homônimo (?)

Quixote:

- Mas é claro! Onde já se viu um cavaleiro andante sem um nome de mulher na cruz da sua espada? Sem uma dama de alta formosura a quem possa render homenagem? Um cavaleiro andante deve ter uma amada a quem possa venerar e oferecer as suas vitórias. - Doce idéia, doce idéia Dona, deusa, diva, déia, Doce idéia, Dulcinéia (MENDES; MEIRELES, 1998).

Desde que soubera ter sido o seu pai enfeitiçado por uma negra na Bahia,

Petrovich guardava no coração um misto de temor e esperança de submeter-se ao encan-

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

80

to de tão poderosa magia. Num momento de grande solidão foi, finalmente, abatido,

como revela a Élson Rosário, sem pudores:

Eu cheguei na frente dela, olhei, cumprimentei e disse “a senhorita me dá o prazer de dançar esta parte comigo?” Aí a negona se levantou, quando ela se levantou, grandona, e veio caminhando, parecia um cowboy; lá vinha ela e eu digo “que negra bonita”. Eu estava profundamente deslumbrado e ela se apro-ximou e foi chegando, foi chegando. Eu abri os braços, recebi ela, foi um pri-meiro encontro fantástico, aí tudo deu certo, o corpo dela e o meu. Ela aí disse no meu ouvido “não é bom a gente começar a dançar?” Eu digo, "é mesmo". E saímos dançando e dançamos a noite toda, e estamos dançando até hoje. É Vanda, Vanda Machado, esta negra com a qual eu divido minha vida nos últi-mos 20 anos (PETROVICH, 2005).

Vanda Machado, também sua companheira de estudos e de lutas pela defesa

da cultura afrobrasileira, é filha de Oxum no Terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá. Não seria

possível, desde o evento narrado por Petrovich, contar a história de apenas uma vida.

Duas metades, Petrovich e Vanda Machado, a arte e a educação, tornaram-se Um, recu-

perando a unidade primordial, como pré-visto por Aritófanes n'O Banquete de Platão e

por Neguinho do Samba, também:

(...) No funeral dele tinha doutores, alunos já formados na universidade, todo mundo que passou pela mão de Petrô... ele deixou essa missão para Dona Vanda Machado. Dona Vanda Machado é a história da vida dele (NEGUINHO DO SAMBA).

Eram Um na diferença: à desmesura de Petrovich, contrapunha-se o centra-

mento de Vanda Machado. Os estudantes da Escola de Teatro, incorporados aos proje-

tos desenvolvidos pelo casal, percebiam a cumplicidade e o tensionamento para criação

de novas formas de fazer educação e arte, ou educação com arte. O estudante Ângelo

Flávio, observou:

Vanda, filha de Oxum, é quem centra a cabeça dele prá caramba; porque O-xum, é a orixá que representa a concentração política, a sapiência, a medida. Ogum é a desmedida. Ele casou com uma Oxum ... Fingindo coadjuvar, ela li-derava Petrovich (ÂNGELO FLÁVIO).

Talvez esse fosse o temor de Petrovich, que já conhecera a força da negra

baiana na história do pai: mulheres cheias de sensualidade que submetiam homens pela

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

81

sedução. Petrovich amava as mulheres, já fora casado duas outras vezes, mas a Vanda

Machado submetia-se sem pudores. A apreciação da professora, contudo, trata da rela-

ção de complementaridade do casal, mas não incorpora as sutilezas apontadas pelo es-

tudante:

... em dado momento eu era coadjuvante dele; em outros ele era meu coadju-vante e a gente separava isso muito bem no trabalho (...) mais intensamente no Irê Ayó. Nós fomos super parceiros. No Irê Ayó, como te falei sobre os diver-sos Petrô com quem eu convivi, ele era a pessoa que foi ficando cada vez mais doce, porque o tempo importante da vida dele foi Petrô Ogan do Afonjá. ...foi um retorno à espiritualidade e isso o deixava imensamente feliz (VANDA MACHADO).

Imbuída do desejo de integrar elementos da cultura afrobrasileira ao currícu-

lo da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, Vanda Machado aliou-se a Petrovich,

criando espaços para a cont'ação das histórias do terreiro, e de aprendizagem com os

"mais velhos". Resgataram e registraram mitos que falam da criação do mundo, dos

Orixás e das suas façanhas, transformando-os em textos dialogados e interativos. Deles,

nasceram livros e peças de teatro; e o conhecimento mágico e mítico adentrou as salas

de aula, aproximando as crianças da cultura afrobrasileira, transmutando o currículo

formal através de uma razão que se fazia poética. Foi assim que a educação incorporou

elementos trazidos da vivência cultural dessas crianças, das suas famílias e professoras,

resultando num ambiente de aprendizagem significativa e de respeito às diferenças.

É importante ressaltar que para o povo do candomblé, a singularidade e, por-

tanto, a diferença, é princípio fundamental para constituição da comunidade, conforme

referiu o professor Roberval Marinho. O compromisso com a vida que se realiza no aqui

e agora, isenta de toda transcendência que acena promessas realizáveis em momentos

futuros, é também a base da vida no terreiro. Portanto, a educação do Axé é o Irê Ayó –

caminho da alegria.

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

82

Com Vanda Machado, com as crianças da Escola Eugênia Anna dos Santos e

do Opô Afonjá, com a comunidade Didá Escola de Música, através da Pedagogia Nagô,

Petrovich pôde enfim recordar as lições aprendidas na Escola Parque, gestão de Car-

mem Teixeira, onde atuou como o primeiro professor de teatro; e na Secretaria Munici-

pal de Educação, à época do secretário Luis Rogério – ambos no ano de 1963.

Foi na escola cidadã de Anísio Teixeira que descobriu que o desempenho de

papéis sociais e a criação de textos possibilitavam a recriação da própria vida e poderi-

am ser usados a favor de uma educação viva e libertária. O jogo, a brincadeira e a ale-

gria implicados nessas vivências indicaram-lhe caminhos diversos daqueles que teimava

em desmontar nas salas de aula das escolas municipais onde atuava. Os circos, as feiras-

livres, as ruas, os hospitais, a penitenciária forneceram-lhe os instrumentos para uma

educação autônoma e responsável. Em 1967, chegou a formar um grupo circense com

Emanuel Araújo. O objetivo era peregrinar pela periferia da cidade, oferecendo espetá-

culos a preços acessíveis (GOMES; BATISTA, 2002) – a idéia não foi adiante.

A inquietação e a afluência de projetos guardam semelhanças com aquele

que abre caminhos. Ogum empresta suas características aos seus filhos. Ele é o "herói

civilizatório", o "pai da tecnologia", por dominar o segredo alquímico do ferro

(MACHADO; PETROVICH, 2004). O orixá dos sete instrumentos, como é também

conhecido, colaborou com a criação do mundo e é aquele que abre caminhos para os

outros Orixás. É rei de Ifé, e filho mais velho de Olorum. Segundo Verger (2006), este é

o Orixá mais temido e respeitado, sendo-lhe consagrados lugares que ficam ao ar livre:

Seu nome é sempre mencionado por ocasião de sacrifícios dedicados aos diversos Orixás no momento em que a cabeça do animal é decepa-da com uma faca – da qual ele é o senhor. É também o primeiro a ser saudado depois que Exu é despachado. Quando Ogum se manifesta no corpo em transe de seus iniciados, dan-ça com ar marcial, agitando sua espada e procurando um adversário pa-ra golpear. É, então, saudado com gritos de “Ogum nhê!” (“Olá, O-gum!”) – (VERGER, 2006, p. 7)

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

83

Inspirado no Cristo negro de Ariano Suassuna, em O Auto da Compadecida

(1959), no filme Idade da Terra (1980) e no Macbeth segundo Arimã38, nos quais atuou,

Petrovich pôde realizar o sonho de um espetáculo que sintetizava os mitos afrobrasilei-

ro e judaico cristão, segundo relatou-me,

... na figura de um ser humano negro como Cristo. (...) Eu organizava as ce-nas... e aquilo era uma síntese da minha vida também; ligar a cultura afrobrasi-leira e a cultura judaico-cristão (PETROVICH, 2004).

Síntese também experienciada quando da reinauguração do teatro de Ouro Preto, com

um auto que narrava a história de amor entre um mouro e uma princesa cristã – Roman-

ce de Mariana e Galvan, (MARSCHNER, [1960]), criado e dirigido por Domitila do

Amaral e por João Augusto, respectivamente, ambos ex-professores da Escola de Teatro

da Universidade da Bahia, e integrantes do Movimento dos Novos.

Aqui, vale uma rápida digressão para tratar do espetáculo dirigido por Ari-

mã, referência de entrevistados como Nilda Spencer e Roberval Marinho:

... misturou candomblé com teatro; matou um bode numa peça de Shakespeare; o sacrifício de um animal; matava no palco. Ninguém gostou muito, não; aca-bou logo. O teatro era do governo; mandou acabar logo. Mas ele era assim: ele queria, ele fazia; não se importava que os outros gostassem ou não (NILDA SPENCER). Eu o vi em Macbeth, em 1970, eu acho, uma peça que foi montada no TCA... a atuação dele foi muito marcante; uma peça pincelada de loucura; muito forte, muito pesada; tinha o sacrifício de um cabrito. Uma coisa que envolvia uma religiosidade muito pesada e que impressionou muito aqui na Bahia (ROBERVAL MARINHO).

A fala de Petrovich, entretanto, revela seu fascínio pelo referido espetáculo

ao tempo que reconhece a sua influência no Salvador em Salvador. Relatou a Élson

Rosário, em 2005, com ar zombeteiro e de contentamento, a extravagância que à época

lhes possibilitou anunciar, através do teatro, que o rei, afinal, estava nu:

E eu sabia que Arimã era um demônio persa. E ele se considerava um sujeito demoníaco porque ele desmanchava o espetáculo, ao mesmo tempo mostrava o espetáculo dividido em múltiplos personagens. Aquilo me seduziu. Você criar

38 Encenado em 1970, no Teatro Castro Alves (TCA), quando Petrovich era diretor desta casa.

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

84

vários personagens numa peça que tinha um personagem! Havia vários Macbe-th, vários Macduff; aquilo era fantástico. Eu acho que, neste momento eu me dou conta, eu tenho a impressão que isso foi uma das sementes que me fez fa-zer o Salvador em Salvador com vários Cristos; vários personagens, vários Ju-das, que eu tive que dividir pelas múltiplas cenas; porque isso foi uma coisa que sempre me seduziu. Eu achava que os personagens, nenhum deles era úni-co, eles eram sempre coletivos e foi aí que eu me seduzi com isso. (...). Tinha uma coroa de madeira lá em cima cheia de urubus e durante o espetáculo os urubus faziam CROAR! O croachar, o croacitar dos urubus, as gralhas lá em cima, e tinha que sacrificar um bode como símbolo do sacrifício do inocente: igual ao que estava havendo no Vietnã; e isso foi o que me sensibilizou. Se es-tavam sacrificando a juventude americana no Vietnã, mandando destruir, por-que não aqui a gente simbolizar isso, sacrificando um animal inocente que era o Macduff, vítima de Macbeth, que queria tomar o poder? Então nós sacrificá-vamos um bode em plena cena. E isso assustou todo mundo da comunidade. Abria-se o espetáculo, todo mundo vestido de andrajos, um pouco lembrando aqueles movimentos americanos e aí aparecia uma multidão de andrógenos, aquela multidão como se fosse o teatro da peste do "Teatro e seu duplo"... En-tão a gente descia para a platéia com o jarro cheio de vinho e uns copos de ce-râmica. Aí quando ia dando ao atores e aos intelectuais da Bahia, eles se nega-vam de tomar... Eu achava o máximo... era o vinho de Dionísio (PETROVICH, 2005)..

As apresentações foram proibidas pela censura e ele foi demitido da direção

do TCA, mas com a convicção de que aquele momento inaugurava, como num ritual de

passagem, a década de 1970. É importante ressaltar, aqui, que esse espetáculo incorpo-

rava características do drama barroco– uma arte originalmente denominada "pervertida,

decadente e patológica" (ROUANET, 1984, p.25) - expressas na cena da decapitação e

na convocação dos sentidos através do vinho. É possível inferirmos, também, uma refe-

rência a Ogum, cujo nome é louvado por ocasião dos ritos sacrificais, "no momento em

que a cabeça do animal é decepada com uma faca – da qual ele é senhor" (VERGER,

2006, p. 7).

A mitologia grega remete-nos aos ditirambos e à violência do deus Dionísio

nas cidades por onde peregrinava. Rituais semelhantes ao dirigido por Arimã eram ca-

racterísticos dos carnavais da Idade Média e do Renascimento, quando a cultura oficial

era degradada, destruindo a falsa seriedade e o falso impulso histórico. No discurso car-

navalesco, ambivalente por excelência, a cabeça representava topograficamente o alto

corporal, aquilo que deve ser rebaixado para deixar surgir o novo, considerando que a

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

85

imagem do corpo grotesco está sempre em construção – "Perdida a cabeça, perece ape-

nas a pessoa; perdidos os colhões, perecerá toda a natureza humana" (BAKHTIN, 1999,

p. 274).

A potência sexual, a fecundidade, a abundância, representadas pelos "co-

lhões", apontam para um corpo que se transforma alegremente, numa escala cósmica;

perder a cabeça pode, por analogia, ser pensado como enlouquecer, perder a razão. E no

contexto de Rabelais, para Bakhtin (1999), a loucura dá lugar à ambivalência e está in-

dissociavelmente ligada à idéia dos bufões, para os quais a decapitação é um ato cômico

– não devemos esquecer que o bufão era o rei às avessas, e enquanto Sua Majestade

tinha a cabeça ricamente adornada pela coroa que assinalava a iluminação divina e os

altos valores, o outro, como contraparte da razão, usava um chapéu colorido, com ore-

lhas de asno e com guizos, provocando rebaixamento e autoderrisão.

Servir vinho à platéia pode ser pensado na dimensão do convite para com-

partilhar da mesa. A imagem do banquete em Rabelais é recorrente. A vida da persona-

gem Gargântua (RABELAIS, 1964) organiza-se em torno da abundância da comida e da

bebida; ela engole o mundo ao invés de ser engolida por esse. Aos dez meses, o peque-

no glutão Gargântua habituara-se de tal maneira ao "licor de setembro" (RABELAIS,

1964, p.60) – vinho produzido nesta época - que mal podia ouvir o ruído dos barris e

das garrafas que entrava em êxtase. Já no prólogo de Gargântua, o autor convoca seus

leitores - "Abri, pois, vossas garrafas!" (RABELAIS, 1964, p. 23) - e conclui, dizendo

que seu livro cheira mais ao vinho que ao azeite. Bakhtin (1999), acerca desta referência

de Rabelais (1964), opõe a seriedade do azeite à verdade livre e sem medo que emerge

com o vinho. A embriaguez daqueles que provam do licor da vinha excita à mania dio-

siníaca, e no transe realiza-se a purificação, aproximando o homem do divino:

Cabe aos homens experimentar o vinho puro, a bebida que queima co-mo os cem fogos, que verte a morte gelada como o sangue do touro o-

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

86

ferecido nos ordálios. Na época de Icário, o vinho aparece primeiro como um veneno violento; e Dionísio, que saiu de cena, deixa aos ho-mens o cuidado de descobrir o poder do vinho e do deus que o habita, sem aparecer nunca ele próprio. É por outra porta que entrará o deus do banquete, a divindade anunciada por Tirésias desde Tebas (DETIENNE, 1986, p. 54-55).

Não posso furtar-me de tecer, ainda, comentários acerca da alusão direta a

traços do teatro de Antonin Artaud, Teatro e seu duplo (ARTAUD, 1985), mencionada

por Petrovich. O dramaturgo francês condena o teatro distração que não cause profundo

impacto na platéia; pensa que, de preferência, deve-se levar ao palco temas sociais e-

mergentes que se configurem como preocupação das massas, arrebatando sua sensibili-

dade por todos os lados. Sobre o teatro da crueldade diz (ARTAUD 1985, p. 107):

"Proponho, assim, um teatro no qual imagens físicas violentas trituram e hipnotizam a

sensibilidade do expectador que se vê no teatro como presa de um turbilhão de forças

superiores". Lembremos que Macbeth é um general e retrata a ambição humana. Mac-

beth segundo Arimã foi encenado em 1970, momento de grande violência no Brasil que,

sob um governo militar, tinha como presidente, o também general Emílio Garrastazu

Médici (1969- 1973).

Trinta anos depois, no A paixão de Cristo em Salvador: Salvador em Salva-

dor, posteriormente denominado Paixão em Salvador, ele pôde dizer tudo de si enquan-

to diretor, referiu-me. Tendo como cenário, balsas sobre as águas do Dique do Tororó39,

dirigiu um elenco de cento e setenta atores, grande maioria negra, orgulhava-se em a-

firmar, por quatro anos consecutivos. Sobre essa experiência, compartilhou mais uma

vez com o produtor Élson Rosário:

39 Localizado numa região central da cidade do Salvador, é cercado por árvores centenárias e destaca-se por oito esculturas de sete metros de altura, do artista plástico Tati Moreno, representando os Orixás - Oxalá, Xangô, Ogun, Logun Éde, Iemanjá, Iansã, Nanã e Oxum. Antes o parque era local sagrado de oferendas aos deuses do culto afrobrasileiro. Cada uma das três bacias que formam o dique, hoje bastante diminuído como resultado do processo de urbanização, é dedicada a um Orixá feminino das águas: Nana, Oxum e Iemanjá.

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

87

... esse espetáculo, Salvador em Salvador, que é cheio de negros, é o espetácu-lo de mais negros que existe no Brasil e eu tenho a honra de tê-lo trabalhado, encenado; até a Nossa Senhora é negra. Três Cristos negros, um Cristo índio e a população negra toda representada. Eu vejo que a cultura afrobrasileira me deu não só régua e compasso, deu-me, também, búzios para ver meu destino; deu-me o titulo de filho de Ogum e Ogan do Ilê Axé Opô Afonjá. Então eu sou um sujeito hoje gratificado, eu sou adotado pela cultura afrobrasileira, pelos Orixás, pelas mães-de-santo, pelos negros, porque eu me dediquei profunda-mente (PETROVICH, 2005).

O espetáculo era aberto por uma personagem especialmente criada por Pe-

trovich para o ator e estudante da Escola de Teatro, Ângelo Flávio. No papel de João

Batista, o estudante dançava como um Ogum, abrindo caminhos para a peregrinação dos

Cristos que denunciavam o martírio do povo negro e indígena. A professora Vanda Ma-

chado, que assessorou as pesquisas para elaboração do roteiro, registra o quanto foi difí-

cil inserir o índio, "mais ultrajado que o negro na sociedade brasileira".

O desdobramento dramático – a dobra (le pli) é característica fundamental

do período barroco – aparece na história de Petrovich não apenas no Macbeth, segundo

Arimã, como também no Idade da Terra. Neste último, o cineasta Glauber Rocha criou

quatro personagens denominadas de Cryzto: um negro, um índio, um português militar e

um guerrilheiro. Esta pluralidade de máscaras (persona) está presente nos carnavais da

Idade Média e nas múltiplas aparições de Dionísio na Antiguidade, assim como de Exu

para o povo do Axé. [E ao expulsar o espírito impuro do corpo do homem atormentado

Jesus perguntou-lhe: “Que nome é o teu?” Ao que o anjo decaído respondeu: “Legião é

o meu nome, porque somos muitos" – Marcos 5:9 (BIBLIA, 1966, p. 34)].

"Espelho, espelho meu, será que ainda sou eu?" pergunta Petrovich ao final

da entrevista no Frente a Frente (1997). Ao invés de uma resposta, uma pergunta que

novamente faz ecoar a questão originária - quem sou eu? - que o lançará sempre e de

novo à coisa mesma: o Ser da verdade. Interminável jogo de linguagem!

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

88

O apelo ao coletivo através deste desdobramento de personagens, a multipli-

cidade de máscaras, a insistência na diversidade étnica, e a exibição em local público e

aberto, marcaram um ritual de passagem para um novo momento no teatro, na educação,

na forma de fazer arte e política. Por feliz coincidência, o último espetáculo ocorreu na

data em que Petrovich completava 69 anos, aproximadamente um mês antes da sua mor-

te. Vanda Machado recorda a última fala do companheiro naquele dia, maravilhado di-

ante da cena pública: "É bonito de ver aquele magote de negros entrando".

Ao chegar em casa, Petrovich rabiscou numa folha de papel:

Após a última apresentação do espetáculo Paixão em Salvador, no aparato de fogos de artifício e efeitos de luz ouvi de uma senhora negra idosa: - Meu coração só falta explodir de alegria, agora que vi meu Cristo negro a-braçado por todo este povo... Dois meninos se aproximaram: - Petrô, arranje lugar prá gente neste teatro. Apontando para o outro: - Ele sabe tudo que o Cristo diz e eu sei tudo que o Cristo faz. E saíram imitando as personagens sem se importarem com a minha resposta... Segui meu caminho saboreando a magia da última cena, a cena do povo. Carlos Roberto Petrovich, Páscoa de 200540.

40 Este escrito está no marcador de texto oferecido como lembrança, por Vanda Machado, àqueles que estiveram presentes no missa de sétimo dia de Petrovich, em 04 de maio de 2005.

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

89

ATO IV – CUM HILARITAS IN INFINITUM!41

Antes de você vir eu estava colocando uma tríade que sintetiza a educação em três coisas, em três partes: caminhar, encontrar e celebrar. Quando veio, você caminhou para me encontrar, por algum momento você celebrou e eu celebrei. (PETROVICH, 2004).

Cena 1ª - Comedores de luz

Vinte e sete de abril de 2005. Amigos, colegas, estudantes e familiares des-

pediram-se de Carlos Roberto Petrovich - professor, ator, diretor e Ogan de Ogum -

41 Em latim: com uma alegria infinita!

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

90

cantando a música de abertura do espetáculo Um Tal de Don Quixote, por ele protago-

nizado em maio de 1998, quando da reinauguração do Teatro Vila Velha.

Don Quixote Alça Vôo (UZEDA, 2005); Evoé ao Dionísio do Teatro Baiano

(BOCHICCHIO, 2005).

Os nossos dotes nem sempre são bons. Ainda bem que temos outros dons: O dom de sonhar, o dom de ser forte O dom de lutar desafiando a morte O dom de saber que se tem outros dons O dom de ter algum DOM Que se chame QUIXOTE! (MENDES;MEIRELES, 1998)

A vida, como um alto valor, nos rituais fúnebres é rebaixada para, na materi-

alidade do corpo que desce à terra, deixar surgir o novo. Quem afinal era o tal de Petro-

vich que no seu último espetáculo faz cantar o coro que traz à cena o Cavaleiro da Triste

Figura e o deus do vinho? Sob aplausos desceu ao colo da mãe terra. As crianças da

Didá Escola de Música que lá estiveram, banhando-o com pétalas de rosas brancas, ce-

lebraram em Yorubá:

Ara aiyê, modupé Orumila fun fun ojô Nilê ô Fun fun ojo nilê ô Fun fun ojo nilê ô42.

Quem é esse homem que, conduzido por um cortejo de pequenos, ao cerrar

das cortinas, reencena o mito babélico em tom de celebração, congregando universidade

e povo; cultura, arte e religião?

A provocação que traz à cena o deus Dionísio inspira-me recordar a cerimô-

nia de entrega do título de Doutor Honoris Causa ao cantor e compositor baiano Caeta-

no Veloso, no carnaval de 1998, num trio elétrico instalado no Porto da Barra, Salvador-

42 Canto de celebração. Letra cedida pela professora Vanda Machado. Segundo ela, não há tradução literal para a língua portuguesa.

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

91

Bahia. Do alto de uma escada magirus do corpo de bombeiros, Petrovich "... descia do

céu, lá do Olimpo", lembra-se o professor Paulo Lima. Descia vestido como o deus,

com folha de louro na cabeça e segurando um cajado. Saudava desta forma o homena-

geado, compondo o espetáculo de carnavalização da Universidade Federal da Bahia, sob

a batuta dos mestres Felippe Serpa e do próprio Paulo Lima, respectivamente Reitor e

Pró-Reitor de Extensão, àquela época.

O caráter herético da solenidade guardava obediência à liturgia requerida em

tais ocasiões, provocando tensionamentos importantes para fazer pensar a universidade

desde a perspectiva da praça pública - território da livre expressão do povo, como bem

cantou o próprio Caetano Veloso43, parodiando os versos do poeta Castro Alves que

declamava em praças ou em grandes palcos. Aquele Castro Alves que ensinara o A, B,

C a Petrovich, pela letra de Jorge Amado, e que lhe precipitara a viagem em 1956:

A praça! A praça é do povo/ Como o céu é do condor./ É o antro onde a liberdade/ Cria águas em seu calor./ Senhor!... pois quereis a pra-ça?/Desgraçada a populaça/ Só tem a rua de seu.../ Ninguém vos roube os castelos,/ Tendes palácios tão belos.../ Deixai a terra ao Anteu (SENA, 2006).

A praça pública é o lugar por excelência do carnaval e este, como discurso,

foi atualizado através de um ritual, pela mesma instituição que outrora o condenou. Sim-

bolicamente, a universidade foi degradada e rebaixada quando o deus da orgia e do caos

homenageou o artista (ou a arte) que abriu as portas do sagrado ao cortejo momesco. Sob

o primado da arte e da alegria desmedida, o tom dogmático cedeu à seriedade aberta e

jovial que incorpora o riso como potência criativa. Para Rabelais (BAKHTIN, 1999), as

festas populares e recreativas, principalmente o carnaval, possibilitavam a experiência da

43 No carnaval de 1970, Caetano Veloso criou a paródia musical Frevo Novo – "A praça Castro Alves é do povo/como o céu é do avião..." – louvando o poeta da liberdade e a praça que leva o seu nome, cora-ção do carnaval de Salvador, considerada a maior festa popular do país.

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

92

"segunda natureza do homem" que deveria se manifestar livremente, opondo-se a toda e

qualquer fixidez, ao dogmatismo, ao mundo perfeito e acabado.

A ênfase, nessas festas, era dada ao movimento permanente, à alternância e à

renovação encarnada em fantasias que invertiam a ordem conservada em paródias, exal-

tando a liberdade. A vivência carnavalesca permitia perspectivas plurais que resultavam

na morte do antigo e na revelação do novo que se sabia necessariamente provisório - “O

tema do nascimento, do novo, da renovação associava-se organicamente ao da morte do

antigo, tratado num plano degradante e alegre...” (BAKHTIN, 1999, p.68). Fora dos mu-

ros oficiais o povo reinventava o mundo.

Em tempos pós-modernos, Maffesoli (1985) defende que a festa evoca o caos

como afirmação de uma socialidade radical, negada pela tecnoestrutura. Ela é o rito que

resgata e renova os laços societais que se tecem na socialidade e na alteridade, revigo-

rando o "ser-junto-com", traço da sociedade orgânica e das celebrações dionisíacas.

A festa é, por excelência, o lugar do riso. O riso medieval e renascentista era

universal e histórico e não se limitava à degradação e ao enfrentamento do regime oficial;

ele era simultaneamente afirmação e negação porque visava, antes, o conhecimento e a

verdade. O povo era o grande corpo que crescia e se renovava na concreção da vida

mesma, pois não havia transcendência possível. Na cultura cômica, a oficialidade era

destituída pela galhofa do povo; o rei era malhado e o bobo entronado em rituais de in-

versões e de rebaixamento que rebordavam numa nova ordem.

Ao colocar extra-muros a cultura cômica popular, a educação oficial, desde o

século XIII quando representada pela Igreja, tornou-se revestida de uma seriedade que

contrapunha o pensamento aristotélico ao riso movediço do povo, afeiçoando-se a uma

metanarrativa única e legitimadora dos poderes instituídos. Como forma de salvaguardar

a verdade, tais poderes fabricaram um medo oficial tutelado pelo Tribunal do Santo Ofí-

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

93

cio, criado em 1545, e intensificaram as estratégias de controle e sansão para consolidar o

que constituiria a ideologia do sério – hoje defendida pelo discurso da tecnociência.

Mas como a humanidade do homem inexoravelmente fá-lo mirar em algum

momento o grande vazio cósmico, o riso passou a ter papel de alívio das tensões produzi-

das pelos excessos do medo primitivo, medo ontológico da morte, transmutado em medo

oficial (BALMA, 2006). É assim que, num movimento de privatização e institucionaliza-

ção, especialmente a partir da modernidade com o advento do pensamento científico, este

passou a ocupar nas instituições de ensino, lugar de pura diversão e relaxamento das ten-

sões estudantis, observando-se que quanto maior o grau de escolaridade, maior também a

sua ausência nas salas de aula.

Na disciplina O riso na escola, Projeto Irecê44, 2005, disciplina sob minha

responsabilidade, a despeito da ementa apresentada, as expectativas dos cursistas eram:

divertirem-se, aumentarem o repertório de piadas; aprenderem técnicas que lhes favore-

cessem o controle da classe. Não são incomuns apreciações deste tipo, indicando a estrei-

ta relação que se estabelece entre o riso e a ludicidade com fins estritamente pedagógicos.

Tais percepções acerca do riso não incluem o seu potencial revolucionário e regenerador;

contrariamente, converte-o em estratégia para alívio de tensões e imposição da ordem

pretendida.

A história do riso, segundo Alberti (2002), confunde-se com a história do

pensamento humano. E a história do pensamento humano tem sido marcadamente a his-

tória do pensamento sério e dogmático. A expulsão do riso ou o seu ocultamento nas

diversas instituições sociais têm como pressuposto a imutabilidade da vida. Esta desme-

sura da racionalidade atenta contra a plenitude da existência, considerando que

44 Projeto Irecê-BA é resultante da parceria entre a UFBA e a prefeitura desta e de outras cidades circun-vizinhas para formação superior de professores da rede pública municipal. A referida disciplina foi espe-cialmente criada para integrar o currículo do curso; participei a convite da professora Maria Inez Carva-lho, coordenadora.

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

94

A noção de Dasein tem aqui um valor totalizante, compreendendo por um lado, a ordem positiva e essencial e, por outro, aquilo que essa or-dem exclui como nada. É da essência da ordem e do sério obrigar uma metade do Dasein a existir sob a forma de oposto (RITTER, 1974, apud ALBERTI, 2002, p.11).

O riso, contudo, como experiência existencial, não pode ser tomado em oposição

ao sério, mas no diálogo com ele. A oposição historicamente instituída entre o pensamento

sério e o riso é resultado de um jogo de forças que busca impor uma lógica única e a-histórica,

fundada na "vontade de verdade".

A "vontade de verdade" expressa no pensamento sério desqualifica o devir,

coisificando e esquematizando o real para dominá-lo. Alberti (2002) aponta a abundância

de referências sobre o riso na obra de Nietzsche, em especial na Gaia Ciência. Entretan-

to, dentre os filósofos contemporâneos, foi Bataille, apaixonado leitor de Nietzsche, se-

gundo esta autora, aquele que mais veementemente assumiu o riso como possibilidade de

uma experiência radical para além do pensamento - seu riso é sua filosofia, e tomá-lo

como experiência é assumir a intensidade da angústia e do êxtase que lhe são próprios

para se arriscar na vivência do nada, do não-conhecimento e da morte.

Mas se o riso é tensão; se o riso é movimento e diálogo com o pensamento

sério; se o riso é o não-saber, o não-conhecer e o não-ser, e só pode ser vivido na dimen-

são do Dasein, revelando o indizível da existência humana e um "modo-de-ser" dessa

existência; se o riso permite a radicalidade do pensamento filosófico, libertando-o da

ordem da razão, porque não uma educação que o incorpore radicalmente como experiên-

cia? Que projeto de humanidade propõe a educação pensada e operada na perspectiva do

pensamento sério, que preza pelo apaziguamento de tensões, pela homogeneização e pela

imutabilidade de princípios? Como ri a Universidade?

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

95

Ao longo da história, a relação da universidade com o riso foi sempre ambiva-

lente. Conhecemos, através de BAKHTIN (1999), a participação, na Idade Média, de

escolares e de universitários, juntamente com o baixo clero, em celebrações como a "festa

do tolo", "festa do asno", "riso pascal", "bufonarias escolares", quando a ordem do sério

era temporalmente subsumida para gozo do contato livre e familiar entre os indivíduos.

Mantida sob a tutela papal, a universidade deste período comungava com os preceitos da

Cristandade que lutava para manter a sua hegemonia, ameaçada pelas crenças e costumes

dos povos pagãos, e mais tarde pelo Frei Martinho Lutero que encabeçava o movimento

de Reforma da Igreja (CHAIM, 2003). A natureza sacrílega do riso, avessa ao pensamen-

to sério dogmático, constituía uma ameaça ao regime teocrático.

Pois, segundo Paulo Lima, a entrega do título na praça pública, onde o povo

bebia e dançava sem entraves, fazia parte de uma série de eventos protagonizados pela

UFBA, com o objetivo de estudar o carnaval da Bahia. A transgressão rendeu a esta, no-

tas no Le Monde, em jornais locais e nacionais, além de problemas com a polícia. A litur-

gia que tradicionalmente teria lugar na Reitoria da UFBA foi cumprida com rigor pelo

Magnífico Reitor Luis Felippe Perret Serpa, precedida por um espetáculo teatral, organi-

zado por professores da Escola de Teatro. Em cena, personagens das músicas de Caetano

Veloso.

O lugar da tensão é o esteio do riso ambivalente e restaurador - morte e vida

alternaram-se e a universidade abriu suas portas ao povo. Num movimento invertido e de

matiz paródica, como bem cabia num período carnavalesco, a academia foi à praça públi-

ca. Petrovich desceu do "Olimpo" vestido de Dionísio e talvez bem coubesse a Felippe

Serpa e a Paulo Lima, o chapéu de guizos.

Numa outra oportunidade, em 2003, novamente envolvendo as três persona-

gens, na disciplina criada por Paulo Lima e Felippe Serpa, denominada Universidade

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

96

Nação e Solidariedade, contemplando estudantes da pós-graduação da Faculdade de

Educação da UFBA, quando o povo foi convidado a falar o seu "indioma"45 para a aca-

demia, Petrovich indignado com a situação daqueles que viviam nas ruas da cidade e com

a distância que a universidade mantinha dos problemas sociais concretos, interveio, con-

clamando os estudantes:

Ou a UFBA ultrapassa o sucateamento, e a iniciativa do ser humano vai a busca de seus irmãos na comunidade, ou não haverá outra oportunidade. Quem sabe se Lula (referindo-se ao presidente Luis Inácio Lula da Silva) vai agüentar o repu-xo, se não houver uma correlação de forças social e estudantil? Será que a uni-versidade vai ter futuro se ficar encastelada em seus muros como na Idade Mé-dia, ou é hora da gente ir para rua e colocar uma aula pública na universidade e seis outras na comunidade? Eu acabava com a aula na universidade; haveria só uma, a primeira do semestre, o resto tudo na comunidade. Eu acabava curso de graduação, só botava mestrado em cima dos problemas sociais. A gente passa muito tempo dentro da universidade, como diz Vanda Machado, treinando para ser sentante; é hora do estudante ser andante, operante, transformador; por que ficar encastelado na sala de aula, para aprender o quê? (PETROVICH, 2003)

É evidente o tom indignado e o convite para uma nova univer-cidade. Duran-

te sua vida manteve estreita relação com a cultura popular e especialmente nos últimos

anos com a cultura afrobrasileira. Sua atuação como professor retratava a necessidade de

ultrapassar os muros institucionais, comprometendo a universidade com a vida do povo.

Além das iniciativas informais, posso citar a criação da ACC Griô Kaiodê: contando his-

tórias com alegria, e a sugestão para incorporar ao Núcleo de Cultura Popular da Escola

de Teatro um espaço especialmente dedicado ao estudo da cultura negra, como refere a

professora Eliene Benício, diretora desta unidade :

(...) ele estava completamente voltado para trazer para dentro da universidade a questão do negro. Isso é uma lembrança atual dele. A gente estava organizando a ida dele para Angola46, para criar lá a Universidade das Artes, com todo pensa-mento da cultura afrobrasileira para ser implantado lá. Ele estava muito confian-te de que esse trabalho, que ele fez com Vanda (referindo-se a Vanda Machado) ia impactar na rede pública - no ensino fundamental, no ensino médio (ELIENE BENÍCIO).

45 Comunicação pessoal. Expressão utilizada por Lorenilson de Souza Cerqueira, morador de rua que esteve presente nesta disciplina, em duas oportunidades, ao se referir à distância entre a linguagem oficial e a fala do povo. 46 Petrovich morreu no mês em que viajaria para Angola.

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

97

O extrapolar muros, afinal, vinculava a universidade a um projeto de educação

que enredava outros povos e o sistema de ensino público básico, no qual atuou desde o

início da sua carreira diretamente com estudantes e/ou com apresentações de espetáculos

teatrais, a exemplo d' O menino que era rei e não sabia (2001), autoria sua e de Vanda

Machado. Participou, também, do projeto Irê Ayó: caminho da alegria, anteriormente

referido, criado e coordenado por esta pesquisadora, na Escola Municipal Eugênia dos

Santos, Terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá. Neste, a arte-educação era utilizada para catalisar

elementos da cultura negra com fins à renovação do currículo. Em ambos, a presença de

estudantes da Escola de Teatro.

A proposta de transferir a universidade para o espaço dos problemas sociais

concretos, assemelha-se às inversões vividas nos carnavais da Idade Média e do Renas-

cimento. Nos períodos carnavalescos, o palco era abolido e o povo integrava-se à ordem

cósmica. Não se assistia festas, viviam-se elas, pois existia para todo o povo: era univer-

sal e celebrava a alegre alternância da vida de acordo com as leis da liberdade.

Entusiasmado – para o professor Jorge Gaspari, esta era uma das marcas ca-

racterísticas de Petrovich, "no sentido grego da palavra: Deus em nós, Deus em mim" –

com o projeto UFBA em Campo, Petrovich falou de uma nova universidade que nascia,

em 1997; de uma revolução feita por jovens.

O UFBA em campo foi proposto na gestão do Reitor Felippe Serpa e Pró-

Reitor de Extensão Paulo Lima, em parceria com Prefeituras Municipais do Estado da

Bahia. Estudantes de áreas diversas instalavam-se nessas cidades durante as férias para

levantarem problemas locais e construírem coletivamente estratégias que apontassem

possíveis soluções. Segundo Paulo Lima, a despeito do cuidadoso acompanhamento des-

ses estudantes nas cidades parceiras, pelo próprio Reitor, a universidade foi severamente

criticada pela iniciativa. Em seguida a esta ação, sentindo necessidade de maior aprofun-

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

98

damento teórico, pois no UFBA em campo não havia participação dos professores, foi

criada a Atividade Curricular em Comunidade (ACC), que congregava em atividades de

extensão, um professor e dez estudantes com formações distintas.

Na entrevista para o Frente a Frente, 1997, ao referir-se a esses projetos, Pe-

trovich parece relembrar a própria juventude quando do rompimento com a Escola de

Teatro em 1956, e posteriormente com a criação do Movimento dos Novos; além da sua

participação nas manifestações populares e políticas do país:

Eu fico empolgadíssimo com isso; eu acho que é a mesma energia que tinham as pessoas fazendo as escolas de arte há 40 anos e agora está mudando a universi-dade. É essa juventude que vai criar essa nova universidade; não são as leis nem as propagandas antigas; é uma universidade nova, de ação, uma universidade que vai conhecer criando o conhecimento que é dinâmico; é no fazer o conheci-mento que se faz o conhecimento (que se conhece). Aquela universidade que es-tava aí é aquela que estuda, estuda e não acontece nada. Falta coragem de mudar tudo, de transformar, porque tudo já acabou e as pessoas não querem perceber. O apocalipse já aconteceu. Acabou tudo, nós estamos em pleno terceiro milênio; precisa de uma outra perspectiva, de um outro ponto de vista; coragem, sem me-do de ser feliz (PETROVICH, 1997).

E sobre os laços entre a extensão universitária e o riso, o professor Paulo Li-

ma, "Reitor da Extensão" como denominado por Petrovich, concluiu:

A questão do riso na Universidade se insere numa questão maior que é de desconstru-ção, na pós-modernidade, do próprio conceito de universidade. Não é uma descons-trução que meramente desconstrói, mas uma desconstrução que reconstrói de outras maneiras (...) que enxerga estruturas de saber em lugares que em geral não são vis-tas... esse movimento que nós fizemos era justamente contra isso (a separação ensino, pesquisa, extensão); era pleiteando a morte da extensão (PAULO LIMA).

A convocação de Petrovich implicava, necessariamente, na morte da universi-

dade e na sua restauração; ambivalência própria do riso. Sonhava com uma nova univer-

sidade que representasse uma utopia universal de fraternidade, fosse alegre e desfrutasse

de liberdade para criar. Na academia, incitava para a vida sobre melhores princípios.

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

99

Mas se a orgia festiva não re-conhece fronteiras e hierarquias, como fazer da uni-

versidade uma "Comuniversidade"47? Desde o nascimento da universidade, século XIII, o

riso e a cultura popular passaram a ocupar espaço extramuros. Considerando que a idéia de

universidade nasce no interior da Igreja, a história da expulsão do riso é permeada pelos dog-

mas da fé católica. Uma descrição desse movimento pode ser observada em Bakhtin (1999) e

na obra O nome da rosa (ECO, 2003). Ambas as referências retratam a preocupação com os

efeitos do riso sobre o espírito dos homens eruditos e sobre as ideologias que sustentam as

instituições. A Igreja, como a Universidade, tem o sagrado dever de formar homens tementes

a Deus e ao poder daqueles que têm o privilégio de representá-Lo na terra: o papa, os carde-

ais, os mestres. Para aqueles que não riem, o riso ao incentivar a dúvida,

... pode deformar o rosto de toda verdade. (...) “Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a ú-nica verdade é aprendermos a nos libertar da paixão insana pela verdade (ECO, 2003, p. 470).

Para preservar a autenticidade da verdade é preciso expurgar do espírito, a

dúvida, e do corpo, o prazer. A dúvida corrói as estruturas e as relações de poder, pressu-

pondo uma dinâmica sempre renovada. O riso medieval, estreitamente vinculado à cultu-

ra popular, aos carnavais e ao baixo material e corporal, pelo potencial subversivo, tinha

caráter de re-vigor-ação e ameaçava romper com os automatismos sociais através do

movimento, da inversão da ordem estabelecida, da sagração do bobo como rei, da liber-

tação do corpo.

É interessante notar que esse riso festivo foi incorporado pela Igreja, pela u-

niversidade e, posteriormente pelo Estado, como estratégia de catarse necessária à manu-

tenção da cultura oficial. De movimento a evento previsto no calendário, a catarse coleti-

va era tolerada como garantia da retomada posterior da ordem do sério. O sério pressu-

47 Termo cunhado pelo professor Felippe Serpa para se referir ao diálogo fundamental entre a Universidade e a cultu-ra popular.

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

100

põe a obediência a Deus e aos monarcas, traz consigo o medo instaurado pelas leis divi-

nas e estatais. Esta compulsória submissão livra-nos do pecado e das conseqüentes puni-

ções.

O pensador marxista, Vladimir Propp (1992), que conduz suas pesquisas para

a tipologia e a manifestação do riso e do cômico na cultura popular da Rússia refere, co-

mo comportamento típico das elites do Estado totalitário, o desprezo pela alegria desen-

freada e por qualquer outra manifestação da cultura popular, representada pelas festas,

pelos bufões, pelos atores de teatro de feira, em geral.

Uma universidade pensada às avessas, com estudos que partissem dos pro-

blemas sociais, primaria pela relação indissociável entre conhecer, pesquisar e viver, co-

mo vida-vivente; incorporando o riso como potência criadora. Petrovich denunciava e

anunciava, simultaneamente, risivelmente. Sobre sua idéia de universidade, os professo-

res Jorge Gáspari e Maria Eugênia Millet comentam, respectivamente, ratificando o seu

compromisso com o livre pensar e com a coletividade:

...a idéia de universidade, era uma universidade aberta, pluralista, absolutamente democrática, onde coubessem todos os tipos de questionamentos; uma universi-dade que fosse fundamentalmente um fórum de debates (...). Mas o principal: era uma universidade que formasse homens, indivíduos e cidadãos; não apenas alunos, especialistas ou eruditas, etc.. Era essa a idéia dele; ele lutava bravamen-te por isso; era um Dom Quixote. (...) Petrô tinha uma visão absolutamente pro-gressista da universidade e parecia muito aquele sonho de Darcy Ribeiro; so-nhava muito como Darcy; sonhava muito como Paulo Freire. Ele é herdeiro des-ses pensamentos; herdeiro não, que eram contemporâneos; era co-partícipe desse pensamento (JORGE GÁSPARI). Uma universidade dialogando com tudo o que a cidade tem de melhor, princi-palmente com cultura negra, manifestações tribais, comunitárias (MARIA EU-GÊNIA MILLET).

Analisando a universidade do século XXI, Santos (2004) discute crises impor-

tantes não superadas ao longo dos tempos – institucional, especialmente vinculada à au-

tonomia universitária; de legitimidade, referindo-se à elitização da universidade; e de

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

101

hegemonia. Em especial, gostaria de me ater à última, ainda que compreenda o estreito

vínculo que mantém com as demais.

A questão da hegemonia mantém nexo direto com a exclusão do riso festivo

do interior da instituição universitária, valorizando o conhecimento lógico-formal em

detrimento daquele próximo das produções populares. O resultado é um saber destituído

de historicidade porque distante dos problemas sociais concretos, além da reificação de

uma ciência séria e dogmática comprometida com a ideologia do capital que impacta

diretamente nas crises de autonomia e de legitimidade.

Penso que a crise da universidade é, antes, crise de humor, e a sua superação

implica no estabelecimento de novas perspectivas e princípios que incorporem o vigor do

riso, silenciado muitas vezes de forma violenta. Reajo à universidade que através de uma

ortodoxia crítica (se é possível tal conjunção), serve-se das mesmas armas que os poderes

instituídos, corroborando os pressupostos da ideologia da seriedade. Há mudança possível

neste tipo de enfrentamento?

Ao operar com a mesma lógica que o poder hegemonicamente instituído, ne-

gando a heterogeneidade através do apagamento das diferenças, esta instituição funda no

seu interior uma “sociedade de classes” (SANTOS, 2005, p.221) que hierarquiza os sabe-

res, criando dicotomias entre o saber de ciência e os saberes do senso-comum; pesquisa-

dores e professores; universidade de elite e universidade de massa - este critério pode se

estender, ainda, à localização geográfica, conforme estejam as instituições nos hemisfé-

rios Norte ou Sul do planeta; no eixo Norte-Nordeste, ou Sudeste-Sul e Centro-Oeste

brasileiros.

É importante registrar que tal quadro se mantém, a despeito dos discursos

produzidos a favor da diferença e da democratização, evidenciando o fosso que separa a

teorização daquilo que Derridá (2003, p. 13-27) denomina de "ato performativo". Este,

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

102

segundo o autor, compromete o enunciador com a enunciação, diferenciando seu discurso

do meramente constatativo. Ao professar performativamente, portanto, o professor afirma

publicamente uma fé, produzindo acontecimento. Este é o lugar onde penso o professor

Petrovich, em especial porque, para fazer acontecer é necessário ousar o testemunho radi-

calmente livre e público - Quantos, na universidade, estão dispostos a pagar o preço pelo

"direito de tudo dizer", publicamente?

Assim, a crise de hegemonia da universidade denuncia o seu contra-senso na

medida que ela se encastela e, simultaneamente, dispõe como seu fundamento a regula-

ção social. Estas contradições aumentam, se observada a distância estratégica e calculada

que historicamente mantém dos conflitos sociais. É neste território que a morte e o riso

digladiam com a domesticação de costumes, convertida, no âmbito da universidade, na

domesticação dos intelectuais. A estes perguntaria: é legítima a regulação que se faz a

partir de um pequeno grupo, quando o povo sequer sabe o que é a universidade? Que tipo

de conhecimento é produzido quando a festa e o riso são excluídos? E não poderia, ainda,

calar-me, antes que respondessem: o que é isto – a universidade? O que é isto – o povo?

O que é isto – o conhecimento? O que fazem os intelectuais48? Neste momento convoco a

sabedoria petrovichiana - em 2004, sobre o papel dos intelectuais, o professor reflete:

...o que deu o salto ao homem foi cruzar informação; o que dá o salto atualmente para os intelectuais é cruzar caminhos: é encruzilhada (PETROVICH, 2004).

A contribuição de Petrovich, como já referida, foi provocar para a abolição do

palco, abolição dos muros entre os saberes e entre os homens, com a quebra das hierar-

quias, como ocorria nas festas da Idade Média. Neste sentido, a perspectiva do educador

é radicalmente dialógica e por conseguinte, tensa.

48 Esta preocupação resultou, em 2005, no Seminário Cultura e pensamento em tempos de incerteza, cujo primeiro ciclo de conferências foi O silêncio dos Intelectuais, apoio Ministério da Cultura. Cultura e pensamento em tempos de incerteza.Disponível em <http://www.cultura.gov.br/foruns_de_cultura/cultura _e_pensamento/index.php>. Acesso em 13 de janeiro de 2006.

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

103

Como ser brincante que era, por saber-se lançado, criava brechas e provocava

fissuras para que o riso e o povo pudessem embrenhar-se no discurso e nos processos

instituídos. E ainda que as festas medievais ocorressem em períodos determinados, com

posterior retorno à ordem do sério, tendo vivido em comunhão cósmica não eram os

mesmos homens e nem os mesmos saberes que retornavam. Talvez fosse essa a aposta de

Petrovich – e por paradoxal que seja, nela não há intencionalidade, só jogo.

Algumas situações na universidade, envolvendo-o, tornaram-se emblemáticas.

Uma delas, referida por vários professores e narrada pela professora do Instituto de Letras

Eneida Leal Cunha, registra o episódio ocorrido durante uma reunião do Conselho de

Coordenação da UFBA, no qual ele participava como representante da Escola de Teatro:

Mas lembro do Prof. Carlos Petrovich, representante da Escola de Tea-tro, atropelando a lista de inscrições com a voz invejável que o palco lhe deu. Pedia que olhássemos para a janela. Obedecemos todos, com a rapi-dez que os sustos provocam. Um pássaro investia contra a vidraça, batia-se, perdia o equilíbrio, desaparecia; teimosamente voltava, esbarrava ou-tra vez contra o obstáculo invisível. A cada retorno parecia mais delibe-rado, embora mais frágil. No entardecer entre as árvores, as luzes da Sala dos Conselhos Superiores da UFBA provavelmente o atraíam. (Os cole-gas de biologia que nos perdoem, ao Prof. Petrovich e a mim, que repito a história, pela interpretação do ato transformada em imagem, pois não sabemos ao certo se os pássaros, como as mariposas, são atraídos pela luz). Enquanto olhávamos a cena, imóveis, penalizados, o Professor nos ful-minou com a pergunta: não estaríamos sendo como aquelas vidraças? In-visíveis, incólumes e intransponíveis, ancorados em argumentos acadê-micos? Na defesa da integridade institucional, estávamos quase dizendo não a estudantes que insistiam, incansáveis, em querer "as Luzes da Uni-versidade". "As luzes da Universidade" foram palavras do velho amigo Petrô, há mais de dez anos (CUNHA, s.d.)

Petrovich narrou-me este episódio no nosso último encontro, cedendo-me uma

cópia do texto que lhe fora presenteado pela colega Eneida Leal Cunha. Dramatizava a

cena e ria de si, ao recordar que à medida que fazia a analogia entre os estudantes e os

pássaros, tornava-se ele pássaro e estudantes – o Tal do Dom Quixote, à semelhança do

seu homônimo, vivia naquele momento, a ficção como realidade. De acordo com Paulo

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

104

Lima, a performance teatral de Petrovich não poucas vezes causava impacto nas reuniões

do Conselho, como descreve:

Ele podia se exaltar, subir na mesa e bradar coisas e poemas, e ganhar causas perdidas com essas estratégias. (...) Às vezes irritava porque era percebido como excessivo, fora de propósito; dava um pouco de vergonha no "Ser universitário" - essa expressão é de Nádia Miranda. O pudor da sala, do Conselho, Petrovich rompia isso com uma facilidade muito grande (PAULO LIMA).

A postura não recomendável e torpe do trocista que com as suas chalaças e

momices rasgava o ritual solene das tradições universitárias envergonhava o Conselho. O

despudor de Petrovich e a sua inadequação ao ambiente sério e normativo, constrangiam

o "Ser universitário". E o "Ser universitário", certamente, nada tinha a ver com a conduta

pouco convencional do colega da Escola de Teatro.

Acerca das referências negativas a essa (ex)posição de Petrovich - o riso pro-

move o deslocamento e o descentramento favorecendo outras perspectivas - ainda o pro-

fessor Paulo Lima reflete:

... o humor tem um perigo muito grande de auto-desqualificação... o próprio movimento de desconstrução gerar um descrédito... Petrovich não tinha medo disso... falo de um balanço político do seu discurso (PAULO LIMA)..

O despudor de Petrovich estava na crença de que "Ser universitário" im(pli)cava num

modo de vida consistente e coerente de tornar-se aquilo que é: auto-realizar-se no e pelo

conhecimento.

Considerando que na Idade Média e no Renascimento o ridente era também

matéria de riso, aquele que se oferecia sem pudores ao escárnio era agraciado pelo senti-

mento de co-pertença ao grande corpo cósmico que espelha a fraternidade universal. En-

tretanto, é interessante a análise que faz NEVES (1974) ao se referir às sanções que so-

frem os que hoje atuam burlescamente sem a devida autorização, em espaços sagrados:

Uma das mais cruéis seria a que o tornasse motivo de ridículo, alvo das chacotas proferidas por suas "vítimas" habituais dando-se, então, uma ní-tida inversão de papéis e anulando-se o poder do próprio bufão, apagan-do-se sua singularidade e revertendo sua posição social à que ocupava

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

105

antes de ser bufão: alguém sem origem fidalga, sem terras, sem armas (NEVES, 1974, p. 39).

Não poucas foram as referências dos entrevistados à detração que sofreu Pe-

trovich por sua atuação extravagante. Muitas vezes impulsivo e desmedido, o filho de

Ogum desempenhava seus papéis sem considerar as circunstâncias, movido unicamente

por sua paixão.

O fato é que, ainda que sob censura, diante da infalibilidade e seriedade dos

argumentos utilizados para indeferir o retorno de estudantes jubilados, a poesia carregada

de dramaticidade desmontou a lógica do sistema, favorecendo o diálogo:

Sim, pensando nesta perspectiva, eu até sou bufão (PETROVICH, 2005)

referiu-me ele, reconhecendo as armas de que fazia uso para dar a pensar quando o unila-

teralismo se instalava. E era assim que o riso de Petrovich convocava, ao modo das festas

populares, à autoderrisão dos intelectuais e a re-invenção da instituição universitária.

Lugar do riso, lugar da festa, lugar da morte, lugar da vida: lugar da desordem e do caos

que funda, intermitentemente, uma nova ordem com preeminência do coletivo.

A citação da professora Eneida Cunha deixa perceber a perversão do sistema que

se cerca de muros transparentes e intransponíveis, permitindo a ilusão do livre acesso a pássa-

ros e a estudantes. Mas a Petrovich não interessava o discurso puramente teorético de uma

razão que não se abre à sensibilidade e à sensualidade. Para ele pensar era práxis e poiésis. É

preciso, então, dizia no seminário da disciplina Universidade, Nação e Solidariedade, 2003:

... aprender como colocar uma questão e pedir transformação. Porque a gente fica pensando que o diálogo é só pensar e ouvir. Não! Tem que conversar, ouvir e partir para transformar a realidade (PETROVICH, 2003).

Não lhe bastava jogar pedras nas vidraças, era preciso dispor-se a construir com os cacos. E

neste sentido, mais uma vez aproxima-se do riso rabelaisiano ao incluir a corporeidade como

palco de paixões (páthos), da afirmação da vida e na vida. Petrovich rebaixa para restaurar.

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

106

E as luzes? Há explicitamente uma contradição entre as luzes da universidade

como objeto de desejo dos estudantes e do pássaro e o Século das Luzes que definitiva-

mente encarcera a universidade na razão – idealismo abstrato e anti-histórico que desde-

nha de Rabelais, declarado "bufão número um" e "encarnação perfeita do 'século XVI

selvagem e bárbaro" (BAKHTIN, 1999, p.100), reduzindo drasticamente seu riso à pura

ironia. São os iluminados de ontem e de hoje, enfim, que roubam a liberdade dos pássaros

e que condenam a cultura cômica popular, leia-se o povo, ao esquecimento, desvitalizan-

do e confinando o riso na abstração que priva da experiência do corpo e da vida material

– o que se aproxima do exemplo de Petrovich. O pensamento sério encastelou-se para

sobreviver à sensualidade do riso festivo orgiástico e ao caos originário.

A antinomia entre o riso e a sisudez, defendida pela ideologia da seriedade desde

os mais remotos tempos tem-nos afastado da verdade e o poder do capital impõe sua supre-

macia, silenciando as manifestações da razão que não coadunam com os seus propósitos. A

oposição historicamente instituída entre o pensamento sério e o riso é, portanto, resultado de

um jogo de forças que busca infundir uma metanarrativa única.

Ao analisar “a geopolítica do poder hegemônico”, Lander (2003) tece impor-

tantes considerações acerca da fragilidade da reflexão crítica que a universidade faz sobre

os processos de produção e de reprodução do conhecimento, e sobre seu impacto na or-

dem social estabelecida. Ao tempo que reconhece o papel assertivo dessa instituição na

denúncia e na luta contra as injustiças sociais, afirma a legitimação acadêmica de “... sa-

beres e pressupostos paradigmáticos e teóricos que fornecem sustentação a essa ordem49”

(LANDER, 2003, p.68). A universidade opera, então, sob a égide de um “colonialismo

intelectual” assegurado pela censura metodológica e mercadológica, como bem represen-

49 Refere-se à ordem capitalista.

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

107

tada por Brecht (1976) ao narrar o encontro do Senhor Procurador da Universidade de

Pádua com Galileu:

PROCURADOR – Vale escudos somente o que rende escudos. Se o senhor quer dinheiro, precisa produzir outras coisas. O senhor não pode cobrar mais pelo saber do que ele rende a quem o compra. Por exemplo, a filosofia que o senhor Colombe vende em Florença rende pelo menos dez mil escudos anu-ais ao príncipe. A sua lei da queda dos corpos levantou poeira, é verdade. O senhor é aplaudido em Paris e em Praga. Mas as pessoas que o aplaudem não pagam o que o senhor custa à Universidade de Pádua. A sua desgraça, preza-do Galileu, está na sua especialidade. GALILEU – Eu entendo: liberdade de comércio, liberdade de pesquisa. Li-berdade de comerciar com a pesquisa, é isso? (BRECHT, 1976, p. 66)

O Galileu de Brecht é irreverente e irônico. Aquele que o inspirou, contudo, foi

ameaçado pela Santa Inquisição por afirmar-se performativamente. A fogueira ou o silêncio

não poucas vezes é oferecido como opção para aqueles que ousam confrontar-se com os pode-

res instituídos.

O caráter subversivo das interpelações petrovichanas nos deixa supor, contudo,

que existem alternativas à mercantilização do conhecimento, ao contrário do que quer nos

fazer acreditar o projeto de globalização econômica. Ao invés da opção binária oferecida pelo

poder, Petrovich, homem de encruzilhadas e labirintos, aponta para uma multiplicidade de

caminhos. O lugar do riso como um não-lugar favorece o descentramento para experienciar

outras e novas perspectivas, tensionando o instituído com aquilo que emerge como potência

criativa. Assim, o silenciamento da razão poética na universidade pode ser pensado, ao modo

de Barthes (2003), como aquilo que “burla o paradigma”; como Neutro e como desejo de:

...suspensão (epokhé) das ordens, leis, cominações, arrogâncias, terrorismos, intimações, exigências, querer-agarrar (...) ... aprofundamento, recusa do puro discurso de contestação: suspensão do narcisismo: não ter mais medo das i-magens (imago): dissolver sua própria imagem... (BARTHES, 2003, p.30).

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

108

O intenso pulsar da vida-vivida/vida-vivente50 desencadeia neste jogo a lenta mudança dos

paradigmas. Fala-se, então, na emergência, não exatamente de um novo modelo, mas de um

movimento que se desenha como abertura e incompletude porque fundado no prazer, na auto-

ria e na "artefactualidade" discursiva (SANTOS, 2002). A razão poética na universidade silen-

ciosamente imiscui-se no território sagrado da razão séria, pois que o riso e a arte são essenci-

almente constitutivos da natureza humana; outras vezes, contudo, anuncia-se vigorosa e gran-

diloqüentemente, denunciando a fragilidade do sistema, como muitas vezes fazia Petrovich,

ou Brecht (1976) quando fala pela boca de Galileu:

As verdades mais consagradas são tratadas sem cerimônia; o que era indu-bitável agora é posto em dúvida. Em conseqüência, formou-se um vento que levanta as túnicas brocadas dos príncipes e prelados, e põe à mostra pernas gordas e pernas de palito, pernas como as nossas pernas. Mostrou-se que os céus estavam vazios, o que causou uma alegre gargalhada (BRECHT,1976, p. 58).

Não se trata da exclusão de um princípio em favor de outro, considerando que

tal estratégia resultará, indubitavelmente, no fortalecimento do seu contrário, como acon-

teceu quando o Diabo visitou Deus para informar-Lhe do audacioso projeto de construção

da sua igreja (MACHADO DE ASSIS, 1996). Todos os homens e mulheres eram livres

para o pecado, entretanto, não lhes seria facultada a imperdoável heresia de não pecar. A

advertência, demasiado normativa e séria, encheu de fiéis o templo do seu oponente.

É contra a unilateralidade que se coloca o riso, pois na praça pública reina o

caos e a pluralidade que prepara para uma nova ordem que se sabe efêmera porque histó-

rica. A ironia machadiana desmonta este olhar de perspectiva única, e o dogmatismo, a

partir do escárnio daquele que por princípio, representante do avesso da santidade e da

não-oficialidade, cede à sedução do poder autocrático e pretensamente imutável. Lem-

50 Expressão utilizada pelo professor Luiz Felippe Perret Serpa para pensar a vida como movimento inces-sante que se dá no instante, como acontecimento.

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

109

bremos da advertência que nos faz Nietzsche (1985, p.69): "Não a dúvida, a certeza é que

enlouquece".

Petrovich, numa atitude ambivalente e carnavalesca, queria a destruição da

universidade e a sua reconstrução sobre novas bases – talvez com uma cara mais alegre e

colorida. Projetou como utopia uma universidade popular, como também o fez o profes-

sor Felippe Serpa e hoje faz, na Fundação Gregório de Matos - SMEC, o professor Paulo

Lima. Sobre a cumplicidade de propósitos entre Petrovich e Serpa, Vanda Machado co-

mentou:

Conjuguemos o verbo continuar para ver como é que fica. Claro que existem os apaixonados, os sonhadores, corajosos, os negros, os brancos que escolhem ser de qualquer cor. Uma universidade cheia de humanidades serve para quê? Uni-versidade e comunidade... coisas de Serpa e deste outro (referindo-se a Petrovi-ch) que o acompanhou com a alegria de um menino que confia noutro menino (VANDA MACHADO).

Afinal, a professora Cleise Mendes é quem dá o sentido do "Ser universitário"

para Petrovich, durante sua fala como professora homenageada dos formandos da Escola

de Teatro, em 2005.2. Observa-o dando aula numa tenda erguida no pátio da referida

escola, debaixo de uma forte chuva, no momento em que a UFBA enfrentava considerá-

vel restrição de recursos:

Eu me lembro que a nossa escola ainda estava com uma lona que era um pal-co...toda rasgada, com goteiras. Nesse dia estava chovendo. Ele estava dando aula sob esta lona rasgada; as cadeiras dos alunos tentando evitar as pingueiras, e eu passei longe por causa da água. E olhei. Quando eu olho, uma cena que a gente vê todos os dias, não todos os dias com esse conteúdo que eu vou dizer, mas cenas que permeiam nosso cotidiano; a questão é como a gente lê essas ce-nas e como a gente se coloca dentro delas. Então eu vejo numa distância consi-derável, isto de fora, aquela lona rasgada, aquela chuva, aquelas cadeiras, aquela impressão de favelização que todos nós já vimos, lutamos contra isso todos os dias na nossa universidade e em outras também. E vejo Petrô dando aula para os alunos com uma postura como se ele estivesse no mais suntuoso auditório. Ele estava falando para os alunos e eles ouvindo... Ele falava com aquele peito estu-fado e eu não ouvia as palavras, mas sei o que ele estava dizendo. Ele estava di-zendo exatamente da importância do teatro, da opção que eles tinham feito, se sabiam o que implicava essa opção...e eu via aquela imponência como se tives-se num auditório suntuoso, e aqueles alunos... Ele não tinha que ficar do tama-nho da lona rasgada, nem os alunos; nós não temos que ficar do tamanho da pre-cariedade da nossa UFBA, nós escolhemos o nosso tamanho, essa é uma lição que Petrovich nos deu. Porque ao mesmo tempo era o militante disposto a re-clamar pela falta de condições no momento preciso; e toda essa reivindicação

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

110

necessária. Mas no momento, se o que nós temos para dar aula é aquela lona rasgada, vamos fazer isso escolhendo a dimensão que nós queremos dar...Essa é uma da várias lições que ele nos dá. (CLEISE MENDES).

Dentre as inúmeras metáforas utilizadas para falar da universidade, uma tem

valor especial para minhas reflexões: universidade em ruínas, expressão encontrada no

título do artigo de Trindade (2001) As metáforas da crise: da 'universidade em ruínas' às

'universidades na penumbra' na América Latina. O texto trata do processo de privatiza-

ção da universidade e mercantilização do saber, traçando um percurso histórico do avan-

ço neoliberal nesta instituição. O conceito de ruína que me é caro, contudo, não adota a

perspectiva de destruição e aniquilamento, mantém, diversamente, estreita relação com o

que Benjamin (1984) compreende como história, especialmente com o que chama de

anti-história.

A ruína sugere, no reino das coisas, aquilo que a alegoria sugere no reino dos

pensamentos. Enquanto a primeira encerra o enclausaramento da história, antes história-

destino e transitoriedade, portanto potência criadora; a segunda, na relação com o mundo

fragmentado e desordenado dos objetos, constitui figuras de sentido. A expectativa inces-

sante do milagre da criação não aparece, entretanto, na positivação da ruína, mas na au-

sência do que nela se faz presente pela linguagem.

Em meio às ruínas da universidade, Petrovich como um alegorista (ora Prínci-

pe, ora intrigante), como um louco, como um poeta, como um tolo, ou como se queira

pensá-lo, sonhava ou delirava uma nova universidade que se constrói a cada aula, a cada

encontro, amorosamente, no compromisso radical com a vida, como bem observou seu

amigo, Jorge Gáspari:

Esse ambiente não contaminava o entusiasmo dele, não interessava o ambiente; claro que incomodava, contudo importava mais o que ele dizia às pessoas e o que as pessoas davam de volta a ele. Interessava o corpo a corpo, a voz a voz, is-so é o que interessava a ele (JORGE GÁSPARI).

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

111

O professor Petrovich compartilhava apaixonadamente com seus estudantes,

mostrando-se um ser de encruzilhadas, pois assim percebia a vida. Somente se vivida

como encruzilhada e campo de ruínas esta nos possibilita, pela infinidade de caminhos,

transformar tendas em suntuosos teatros, goteiras em aplausos, e afinal, a fala e o corpo

em instrumentos de mudança. E sonhava... sonhava e amava com ingênua intensidade o

homem que ainda não existe – como a revolução pregada por Camus (2006).

Cena 2ª - Bufonaria e docência

No seminário com moradores de rua, anteriormente referido, numa sessão da

disciplina Universidade, Nação e Solidariedade, Petrovich, ao iniciar a sua fala, repetiu o

que observei em inúmeras outras oportunidades: autodetratou-se, aludindo ao fato de ser

velho, de ser impotente e um tolo –

Eu não tenho poder de decisão dentro da universidade, só de insuflação e de questionamento (PETROVICH, 2003)..

E apenas após este preâmbulo interveio para, em seguida, cair em profundo silêncio. Esta

falsa ingenuidade é também alvo dos comentários de Roberval Marinho sobre o amigo e

irmão:

Como eu conheci Petrô pelo viés religioso, eu sempre achei que ele tinha um Exu zombeteiro, provocador; provocava situações. Um toque, uma intervenção e o ambiente inteiro desmoronava. Ele depois ficava com a cara mais inocente do mundo (ROBERVAL MARINHO).

A máscara do tolo encarnava o princípio carnavalesco – o bufão não era um

ator que desempenhava um papel; ele vivia este princípio em todas as ocasiões da sua

vida; era a representação emblemática da cultura cômica popular que transitava nos palá-

cios, inicialmente apenas para fazer rir e, posteriormente, também, como um alter-ego da

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

112

corte. Na figura do bobo com orelhas de asno, e do louco, escondia-se a perspicácia, o

humor inteligente e refinado que fazia rir pela incongruência. O riso do bufão era o des-

monte do unilateralismo - "Como tais, encarnavam uma forma especial da vida, ao mes-

mo tempo real e ideal. Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte (numa esfera inter-

mediária), nem personagens excêntricos ou estúpidos, nem atores cômicos" (BAKHTIN,

1999, p. 7).

Assim, no seio da monarquia, o riso foi institucionalizado na figura do bobo

da corte. O cargo de bobo era vitalício e de grande projeção; esses gozavam do prestígio

e das benesses do rei. Sua função primordial era fazer rir a verdade e da verdade, único

meio pelo qual o soberano a conhecia, livre das intrigas palacianas. A essa personagem

também cabia a tarefa de lembrar ao rei a sua finitude “... para evitar que mergulhe na

embriaguez do poder solitário” (MINOIS, 2003, p. 231). E ainda este autor prossegue:

O bobo é a contrapartida à exaltação do poder, porque ele é o único que pode dizer tudo ao rei. Sob a proteção da loucura e, portanto, do riso, ele pode se permitir tudo. A verdade passa a ser a loucura do riso: ‘ As relações do rei e de seu bobo’, escreve Maurice Lever, ‘repousam, defi-nitivamente, nessa convenção unanimemente aceita. O bobo dá o espe-táculo da alienação e adquire, a esse preço, o direito à palavra livre. Em outros termos, a verdade só se faz tolerar quando empresta a máscara da loucura. ... E se a verdade passa pela loucura, passa, necessariamen-te, pelo riso” (p.231).

Maquiavel (1996) adverte os príncipes quanto ao perigo dos aduladores, sugerin-

do que é preciso fazer entender que a verdade não é ofensiva e que sua livre expressão resulta-

rá na gratidão de Sua Majestade - “Se, porém, todos a puderem dizer, te faltarão ao respeito”

(MAQUIAVEL, 1996, p. 113). Por isso, diz ele, o príncipe deve escolher aqueles que lha

possam mostrar, se por ele questionados, para que suas decisões sejam prudentes. O bobo,

diferentemente dos sábios, é um tolo que tem a função de divertir o rei; mas como o riso a-

proxima os homens dos deuses, bafejada pelas divindades, Sua Majestade concede ao bobo o

privilégio de, conduzido pela loucura, enunciar a verdade, ainda que não lhe seja solicitado.

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

113

Adverte, contudo, que o bobo é prerrogativa do soberano: a verdade deverá ter lugar apenas

na corte, onde o povo não possa ouvi-la.

No mundo globalizado, contudo, as estratégias de controle dos suseranos são

mais sutis e criam a ilusão do livre trânsito nas instituições. A relação com a verdade dá-se

através de uma teia ideológica que oculta espaços para a multi(pli)cidade de lógicas e sentidos

próprios do viver. Com o rosto coberto pelo "véu de Maya", o homem é liberto da natureza

indomável que afirma o devir de todas das coisas. O abismal sofrimento humano é, assim,

ilusoriamente demudado, não necessariamente em beleza e em arte, mas na segurança ofere-

cida pelo capital, representada pela "vontade de poder".

O bufão Petrovich, inconformado com a condição humana, perambulava pelas

instituições e espaços públicos e, segundo o ator Narcival Rubens, era a um só tempo um fa-

zedor e um destruidor de verdades:

Quando eu me lembro de Petrô eu lembro da precisão... pegar todas essas ver-dades, ele tem a verdade dele, todas as verdades das pessoas que estão ao lado dele, que fazem parte do universo dele. Ele pega todas essas verdades, mistura todas, tem a capacidade de formar uma química entre essas verdades e desco-brir uma grande nova verdade que serve para todos e inclusive para ele. E você percebe que aquela verdade, essa verdade é de todos. (...) Aí, de repente, essa verdade ela é comum a um grupo, mas não é comum ao sistema. E nesse senti-do ele é transgressor, sempre foi porque acreditava naquela verdade mesmo. Talvez o outro grupo precisasse absorver essa verdade e só viesse a descobrir isso depois. E acredito até que se esse outro grupo não absorvesse a verdade dele, ele novamente transformaria em outra, para fazer surgir uma nova que mais uma vez fosse comum aos grupos.. e aí ia... acho que ele nunca teve re-ceio de apresentar a verdade dele... não era com a intenção de transgredir: "vou de encontro". ... tenho a impressão de que foi muito difícil para ele estar à mercê de regras e normas impostas (NARCIVAL RUBENS).

Suponho que, para além do papel de conciliador, ou de propositor de sínteses dia-

léticas, interessava a Petrovich provocar para o diálogo – e certamente esta era uma ação deli-

berada. O ser ou não ser transgressor estaria relacionado à dissonância das diferentes verda-

des confrontadas. Narcival Rubens deixa claro que ele não se furtava a defender suas posi-

ções, entretanto, a elas não se aferrava como um crente.

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

114

Em um estudo sobre a catarse na comédia, Mendes (2001) exalta as habilidades

intelectivas e corporais daquele que protagoniza a arte bufa. Citando Boudelaire, refere ser o

bobo - bufão institucionalizado - aquele mais próximo da alegria original, por isso, objeto de

curiosidade de historiadores e antropólogos. Sob o disfarce (?) da insanidade ou da tolice, das

roupas coloridas, do exagero na linguagem, da deformidade física e do riso, o bobo era mor-

daz ao enunciar a verdade. Não representava, contudo, a verdade de algum segmento em es-

pecial; ele transitava, solitariamente, no território sagrado do entre-lugar. Nas obras de Sha-

kespeare, o bobo da corte aparece em destaque, sobretudo no Rei Lear, onde cumpre a função

de um alter ego que acompanha o monarca para garantir a imagem especular necessária às

suas reflexões.

Aos poucos, o riso desenfreado foi sendo substituído pelo riso discreto e refinado

das cortes; o que coincide com o fortalecimento da monarquia e o declínio do regime teocráti-

co. O desaparecimento do bobo tem lugar mais incisivamente à época do Absolutismo, no

reinado de Luís XIV. Nos séculos XVI e XVIII, desencadeia-se uma forte ofensiva contra o

riso, com repressão dos carnavais e todo tipo de manifestação festiva.

Os movimentos de Reforma e Contra-reforma pregavam a austeridade e a

observância às leis da Igreja; os desvios, na forma de paganismo, de loucura e de posses-

são demoníaca, atentavam contra os dogmas cristãos e eram severamente punidos. Se-

gundo Harvey Cox, “o direito divino dos reis, a infalibilidade pontifical do Estado totali-

tário moderno floresceram depois que a festa dos bobos desapareceu” (COX, 1971 apud

MINOIS, 2003, p.327). A despeito das resistências, o autor refere que, aos poucos, “... o

Rei do Carnaval cede terreno ao rei absoluto” (p.331). O declínio do regime teocrático e

o fortalecimento da monarquia concorreram, desta forma, para enfraquecer o riso desen-

freado da cultura cômica popular, substituindo-o pelo riso discreto, irônico e refinado das

cortes.

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

115

Mas, enquanto aceito nos palácios, o bufão transitava sem restrições. Era co-

mum que os convivas dos banquetes fossem divertidos por um bufão que, muitas vezes,

oferecia seus préstimos em troca de um prato de comida. Minois (2003) registra uma

passagem d' O Banquete na qual o bufão Felipe, para conseguir as benesses dos convida-

dos, tenta fazê-los rir, sem sucesso, contudo. Apenas o humor irônico de Sócrates, tam-

bém mestre na arte bufa, arranca-lhes o riso pretendido

A imagem do banquete em Rabelais (BAKHTIN, 1999) refere-se à abundân-

cia e ao universalismo, lugar de celebração do triunfo da vida sobre a morte – come-se o

mundo, destruindo-o para renová-lo. Por isso os diálogos ocorriam freqüentemente a-

companhados de muita comida e bebida.

O riso socrático, porque irônico, era avaliado pelo pensador russo, como um

riso estilizado e, portanto, menor do ponto de vista da cultura cômica popular, conside-

rando que apenas rebaixava sem restaurar. Ainda sobre Sócrates, Bakhtin (1999) tece

considerações acerca da sua aparência, relacionando-a com o realismo grotesco, represen-

tação do princípio material e corporal: feio, baixo, nariz e pança grandes; além de um

glutão - qualidades bastante peculiares do filósofo. Alude, assim, à falta de simetria; à

proximidade com as partes baixas e com a terra; às protuberâncias de formato fálico e à

abundância51.

O professor Jorge Gáspari relembra a relação que Petrovich estabelecia entre

riso e poder, numa conversa que tiveram sobre as formas de silenciamento utilizada pe-

los poderes instituídos:

"Para não transformar tudo num quartel de polícia, não precisa transformar num puteiro; vamos para o meio termo; pelo caminho do meio como os budis-tas falam. Agora regras... fica sem graça, você fica seguindo aquilo a vida in-teira. A regra amarra, amordaça, impede você de andar. Vamos quebrar com essa merda porque talvez debaixo pode ter coisa melhor". Nesse ponto ele era louco; lutava contra a oficialidade, contra o poder instituído... ele enfrentava

51 É interessante notar a semelhança física deste com Sancho Pança que contrastava com a figura esguia e longilínea do Dom Quixote de La Mancha, em Cervantes.

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

116

com o riso, e dizia: "Jorge a forma mais corrosiva de acabar com o poder é rindo dele. No momento em que você dá banana para o poder você está com medo, no momento em que você ri do poder, acabou" (JORGE GÁSPARI).

A apreciação acima não significa que Petrovich fosse absolutamente avesso a re-

gras. Tanto o professor Jorge Gáspari quanto a professora Eliene Benício referem suas fre-

qüentes intervenções para normatizar os processos acadêmicos. Veja-se o relato desta última:

(...) a figura dele era emblemática, um Antônio Conselheiro, esse homem meio profé-tico...ao mesmo tempo que ele queria regras dentro da escola, porque também era muito solto em alguns momentos; lá fora ele vai rompendo regras injustas... muitas vezes injustas (ELIENE BENÍCIO).

E se os bufões não eram atores, definitivamente para Roberval Marinho, Petrovi-

ch também não era, em especial do tipo cômico. Seu riso aproximava-se do riso bufo, veicu-

lando o diálogo com o pensamento sério de forma zombeteira e alegre, nas palavras deste

professor:

O riso dele era um riso dramático; talvez nesse sentido ele tivesse o perfil genuí-no de um bufão; de um bobo da corte. Porque o bobo da corte era o que tinha um riso dramático, um riso trágico; é o que através do riso tinha a liberdade de dizer coisas muito sérias, muito pesadas para a corte inteira, falar a verdade; de mostrar que o rei estava nu; de ridicularizar o rei e a rainha, todo mundo. E eu sentia um pouco isso em Petrô. Jamais veria Petrô como um ator cômico (ROBERVAL MARINHO).

E ainda que sem exceções, todos os entrevistados tenham exaltado suas quali-

dades no palco, Paulo Dourado e Sérgio Farias, respectivamente, concordam que deno-

miná-lo ator não dizia da intensidade do homem que vivia com inteireza a sua diversida-

de:

No caso de Petrô não é muito correto chamá-lo de ator; porque Petrô era no pal-co como ele era na vida. Ele não exercia uma profissão. Para ele o palco era i-gual porque ele não era um ator profissional; ele não estava interessado em tea-tro a não ser como modo de vida, valores, como modo de interferir; esse sentido de que a obra de arte não se esgota nela. Aquilo que a arte faz não pode se esgo-tar na impressão, na apreciação estética. Petrô não era um virtuose. Não é justo dizer que Petrô era um bom ator; acho que isso deprecia quem ele era. O que es-tava em jogo nele não era ser bom ou não; era o que ele estava defendendo. (...) O palco é um acidente como é a rua, a sala de aula..(PAULO DOURADO). Eu acho que essa expressão de que Petrô vivia um personagem o tempo inteiro... eu acho que é porque ele jogava muito socialmente; ele provocava, ele fazia pe-quenos discursos brincando, mas ele tinha momentos de extrema intimidade dele

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

117

com ele mesmo, se é que a gente pode falar nisso. (...) Enfim, era um modo de ser que, como tinha muita brincadeira e muito jogo, algumas pessoas podiam encarar como se ele tivesse representando o tempo inteiro. Mas ele era daquela forma: brincalhão, sempre alegre, as vezes preocupado e aí dizia uma coisa im-portantíssima, socialmente, da profissão nossa de professor, de ator. Ele então, muitas vezes, se colocava de uma maneira muito aberta, pessoal, como ele mesmo. Eu percebia assim. Não via ele sempre vestido como um personagem (SÉRGIO FARIAS)

Mas como se definia Petrovich? Como um arte-educador; ainda que para al-

guns fosse poeta e para outros, um palhaço, uma criança e um louco. Todas, figuras que

lhe permitia o recurso de expressar a experiência trágica da vida - a visada do abismo

existencial que nos repete sem pausas que somos mortais, que a vida é limitada e que não

devemos ultrapassar a sua medida.

Tendo em vida aceitado o qualificativo de bufão, perguntei aos entrevistados

se o percebiam desta maneira. Ainda que a idéia sobre o ser bufão tivesse conotações

distintas, são interessantes as falas de Rafael Moraes para o qual antes de bufão ele era

um griô, contador de histórias africano; de Marinho Gonçalves que o percebia como um

Erê; de Ângelo Flávio que se irmanava a ele como filhos de Ogum, e finalmente de Mer-

ry Batista que o denominava Dom Quixote. As narrativas abaixo não apenas guardam

semelhanças entre o homem e o educador Petrovich, mas também expressam a percepção

dos mais jovens, recém-egressos da Escola de Teatro (o primeiro e a última) ou ainda de

estudantes, no caso de Ângelo Flávio e de Marinho Gonçalves. Todos participaram de

espetáculos, contracenando com Petrovich ou sendo por ele dirigidos:

Eu acho que ele também tem essa coisa de artista, ele consegue ser a presenti-ficação desse coletivo nosso que está precisando de alguém como ele. Na uni-versidade, na Escola de Teatro, acho extremamente necessário para desmistifi-car um monte de coisas. E surge como o griô, o bufão e o palhaço também, de uma necessidade coletiva. Acho que ele tem esse papel. Uma vez eu falei para ele "você é um agitador de massas; você chega e vai agitando as coisas" Quan-do eu estou fazendo teatro de rua eu sinto assim: como se tivesse entregue a coletividade. (...) A gente fazia projetos lá, que era a sexta-feira da transforma-ção; lá na escola do Ilê Axé Opô Afonjá... a gente fazia atividades com os pro-fessores, a gente fazia tudo com palhaço; e ele assistia todas as apresentações... e Petrô quando assistia vinha brincar como uma criança; era muito mágico vo-cê ver um velho correndo atrás de um palhaço... (RAFAEL MORAES).

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

118

Falar de Petrovich, é falar do próprio lúdico, da imagem da criança. Por que a criança? Eu remeto a idéia de um Erê. Porque por mais que ele levasse muito a sério o trabalho que ele desenvolvia, ele era uma grande moleque, ele era um grande menino. Acho que esse brilho que Petrô tinha de ser menino, de ser mo-leque no olhar, é que impulsionava um pensar diferente de fazer a própria uni-versidade. As aulas que ele dava aqui no pátio, a relação que ele tinha com a gente enquanto aluno, levara a gente para fora, transcender os muros da própria instituição. A faculdade tem um mal terrível, que é a idéia de isolar completa-mente o saber (...) será que o saber só está aqui dentro? Será que o saber não está nas comunidades? (MARINHO GONÇALVES). Ele é filho de Ogum. E geralmente os filhos de Ogum são extremamente sérios. Marinho vê o Erê, claro que está presente, com o Erê ele pode ser metamorfose-ado nesse ser bufa. Porque o Erê é um brincante... ele traz um riso muito sério: é um riso reflexivo, não é um riso perdido; e é político ... Aqui na universidade, o Griô Kaiodê é um curso político, também. É um riso político que foge da ordem, e tudo que foge da ordem é motivo de ridículo, é motivo de riso. Então ele tem o papel de bufa e político, no sentido que faz as pessoas rirem, mas refletem, mas percebem a diferença (ÂNGELO FLÁVIO). Petrovich é o Dom Quixote, ele sempre foi o Dom Quixote...sempre foi um so-nhador e eu terminei sendo o Sancho dele, depois (MERRY BATISTA)

Os mais novos reconhecem no mestre a inocência e o jogo do infante; perce-

bem nestes a possibilidade de transformação e de criação do que está cristalizado nas

tradições. O brincar com seriedade aponta, contudo, para um tensionamento que, por cer-

to, não está presente no velho que corre atrás do palhaço; nesse só a alegria original, des-

comprometida e livre. Posso pensar, aqui, continuando na perspectiva do lúdico, que o

brincar com seriedade pode ser, também, um brincar com a seriedade - o que corresponde

ao diálogo do riso com o pensamento sério.

A referida arte bufa nas perspectivas acima também implicaria num fazer poé-

tico e praxiológico, que nasce da necessidade comum, remetendo fatalmente a uma práxis

política. O bufão é, portanto, protagonista da trama ao anunciar e denunciar o drama cole-

tivo, de formas zombeteira, lúdica e alegre, incitando um pensar radical e crítico.

Petrovich encerra, no templo do pensamento sério, conforme os depoimentos,

características que o aproximam mais uma vez do princípio carnavalesco da vida. A refe-

rência ao riso festivo é feita não apenas através da figura do bufão, mas também do velho,

da criança e do Quixote, símbolos que remetem à loucura, à ludicidade e a uma nova vi-

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

119

são de mundo, todas opostas à idéia de acabamento, de perfeição e de imutabilidade. O

que seria, então, um professor mestre na arte da bufonaria, se a penso como ofício de

bufões, de velhos e de crianças?

Para compreender tal ofício, talvez seja conveniente buscarmos inspiração na

Escola de Bufões do dramaturgo belga Michel Ghelderode (1968). O mestre Folial, bufão

da corte do imperador Felipe da Espanha, num convento abandonado do século XVI, dará

a sua última lição para aqueles que irão divertir reis, rainhas e cortesãos. Num "clima de

porão", Galgut, bedel do torpe ajuntamento de figuras disformes, planeja com seus com-

parsas o golpe que arrancará do mestre o segredo da sua arte, sem o qual não passarão de

meros "palhaços de quermesses", aniquilando-o. Decaído pela velhice, Folial sente-se

retornando à condição de homem; e na avidez de por fim a farsa, desabafa:

FOLIAL – Sim! Eu chutaria o cu52 dos relógios com a minha bota. Como tu, tenho pressa de acabar. Com o quê? Ora, com esta impostura que é meu ensino! Esta folia, digna do meu nome, de acreditar que um homem pode ensinar a outros!... GALGUT – Mestre, nas árvores das Américas, os viajantes viram com freqüência um velho macaco rodeado por jovens macacos barulhentos. Este concílio simiesco, vede, é apenas um efeito desta escolástica, em voga por toda parte.

Os bufões iniciam a representação de uma tragédia: encenam a morte da linda

Veneranda, filha de Folial, criada sob as benesses do trono real de Felipe, e assassinada

pelo bufão Folial II, morto pelo rei após o trágico episódio. A moça, tendo seu amor re-

jeitado pelo então infante Dom Carlos, como vingança contraiu núpcias com o bufão pa-

ra, em seguida, confessando a impostura, rogar-lhe que a encerrasse num claustro. Inter-

rompendo o espetáculo, irado, em meio a algazarras e escárnio, Folial dirige-se à súcia:

52 É proposital inserção deste trecho para ressaltar uma das características fundamentais da cultura cômica popular: o vocabulário da praça pública. Esse era rico em grosserias, imprecações e injúrias; era uma linguagem livre e familiar com o fim de aproximar as pessoas e não de ofendê-las. É amplamente ilustra-da por Rabelais em seu livro Gargântua e Pantagruel (BAHKTIN, 1999). Veja-se que a palavra "cu" serve também ao propósito de rebaixar, coerente com o princípio do baixo material e corporal. Petrovich, muitas vezes, inseria numa conversa palavras do tipo, mas penso que com o objetivo de desestabilizar o interlocutor, testando-o.

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

120

FOLIAL – o intermezzo foi representado; a lição vai continuar, para chegar ao fim. Não vos felicito, Bifrons e Horrir. Vós vos pretendestes trágicos e provocastes risadas; quisestes me fulminar e me devolvestes a força de viver! Vosso espetáculo me despertou, vereis. (Ele ri). Não é fá-cil matar um bufão de raça! Rejubilai-vos, pois, assim, conhecereis o se-gredo (Ele mostra o chicote).

Em seguida, o mestre obriga os protagonistas da cena a usarem as máscaras mor-

tuárias do casal e enquanto gargalha açoita ferozmente a horda de bufões que rugem de

horror. Afinal, volta a experimentar o vigor da sua arte. Os bufões fogem na noite. Esgo-

tado e só, afinal revela-nos o seu segredo:

FOLIAL- Há, há! Então se tornaram sábios finalmente. Escutai vosso ve-lho Mestre; escutai... Em verdade, vos digo... O segredo de nossa arte, da grande arte, de toda arte que queira durar?... (Pausa. Em voz baixa, mas distintamente) É a CRU-EL-DA-DE. Devaneia por um instante, com os olhos dilatados e cheios de lágrimas. Depois, começa a bater no vazio, primeiro suavemente, depois, recupe-rando-se, mais e mais forte: uma alegria interior inunda seu rosto em lá-grimas. Com gesto largo de quem semeia, flagela o espaço, seu gesto se amplia ainda mais e ele, impiedosamente, flagela a si mesmo, e não o sente... como um autômato, tragicamente.

Mas o que significa dizer que a arte do mestre que considera uma farsa o ensi-

no escolástico é a CRU-EL-DA-DE? No ato de Folial não há sadismo; as chicotadas se-

veras não pretendem o dilaceramento das carnes, apenas. Crueldade para Artaud (1985,

p.133) tem "...sentido de apetite de vida, rigor cósmico e necessidade implacável, no sen-

tido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas...". Apenas quando a besta retorna

e faz esquecer as dores do velho débil, o mestre recupera a sua maestria. Apenas com as

carnes rasgadas e tendo matado o "homem superior", ao discípulo é facultada a sabedoria.

As chicotadas de Folial fazem ressoar a voz de Zaratustra: "Ó solidão! Solidão, minha

pátria! Quão feliz e meiga me fala tua voz" (...) "Agora, eu vos mando perder-vos e a-

char-vos a vós mesmos; e somente depois que todos me tiverdes renegado, eu voltarei a

vós" (NIETZSCHE, 2003, p. 221 e 105).

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

121

O ensinamento, enfim, acontece pelo lirismo violento que rompe com a lin-

guagem, transtornando e inquietando o espírito. Assim também foi a lição que os bufões

fizeram o mestre recordar: a criação da vida só é possível pela via da crueldade e submis-

são ao desejo de Eros. Apenas o retorno à natureza humana possibilita que a verdade seja

revelada.

O espetáculo Escola de Bufões, dirigido por Moacyr Góes, foi apresentado em

1990, no Rio de Janeiro. É curiosa a narrativa do ator Leon Góes acerca da composição

do papel de Galgut:

Nós andávamos em cima de traves de madeira sem poder colocar os pés no chão. Tentávamos uma forma física que aproximasse o sexo e as par-tes baixas do corpo, da nossa cabeça. O que nos deformava e nos provo-cava sensações e sentimentos nunca antes experimentados. Aquela forma tinha seu próprio conteúdo. O humor comparecia. O riso era absoluta-mente subversivo e destruidor. Só que quando o ensaio acabava, o que estava ali era você. Não foram poucas as noites que não dormi, pensando em como fui capaz de fazer determinadas coisas (...). Outra coisa: a pala-vra. Primeiro trabalhei a palavra do corpo e percebi que aquela forma ti-nha vida própria: inspirações e aspirações próprias. Era muito assustador no início, mas acho que fui acolhido pelo Galgut e também o acolhi. De-pois eu trabalhei o corpo da palavra e aí, talvez, o ganho pessoal tenha sido ainda maior. O poder da palavra. Isso está na história dos bufões. O segredo é uma palavra. Isto é extraordinário. (...) Estreei os Bufões com os dois pulsos abertos e dois dedos quebrados, e o meu ombro e o meu ser nunca mais foram os mesmos (LEON GÓES)

A construção da personagem conduziu o ator ao estranho de si mesmo. A cru-

eza da experiência fê-lo viver o corpo como palavra destituída de razão; e a palavra como

livre expressão no corpo – poderosa porque radicalmente encarnada. O riso rebaixava e

ao aproximar o alto do que está no baixo possibilitava-lhe o não-lugar da origem. Nunca

mais foi o mesmo: seu corpo e o algo que denomina como aquilo que lhe resta após os

ensaios. Refere, contudo, que homem e personagem acolheram-se. Este é o singular exer-

cício da crueldade: ao tempo que açoita e faz surgir o desconhecido novo homem, ou

"super homem" (NIETZSCHE, 2003), revela uma outra humanidade.

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

122

Encontrei semelhanças entre as reflexões de Leon Góes e de Deuzi de Maga-

lhães, atriz que fez o bufão Folial na peça Escorial (GHELDERODE, 1950). Contou-me

a última que para composição da personagem inspirou-se nas pinturas de Bruegel e de

Hieronymus Bosh, na Comédia Dell'Arte, e nos clowns. Na busca de um teatro visceral,

narrou-me, incorporou as distorções de Bosh, utilizando a corporeidade "como denúncia

da podridão instalada no reino". Sobre o fato de uma mulher representar o papel de bufão,

referiu outras experiências no teatro, como a da colega Regina Duarte em A vida é sonho,

de Calderón de la Barca, na qual essa fez o papel de Segismundo, personagem que incor-

pora elementos masculinos e femininos. Para a entrevistada, em Folial, ambos os princí-

pios estavam presentes, considerando que o bufão está no entre-lugar e é a encarnação da

ambivalência: feminino-masculino, yin-yang, positivo-negativo, alto-baixo.

É interessante o comentário acerca da inversão de papéis que fazem o rei e o

bufão na peça:

Há uma relação de espelho até que o espelho se quebra e o bobo morre. O rei diz: "uma rainha, padre, é fácil de substituir... mas um bobo da corte". Por quê? Na verdade aquele bobo da corte é o que ele gostaria de ser, tanto que ele propõe a inversão. Faz parte do rei aquele bufão. E por isso era tão difícil perder o bobo. Perder o bobo era como cortar um pedaço dele. Ao mesmo tempo quando eles se batem como espelho é quando se rompe. Ele mata o bobo; ele não suporta se ver. (...) O lado que o rei gostaria de ter e que perdeu (DEUSI DE MAGA-LHÃES).

A leitura do texto, pela atriz, aproxima-se do estranhamento vivido por Leon

Góes ao referir que se tornou outro após interpretar Galgut. A vivência dos entre-lugares,

concretizada no corpo, evoca o "outro do homem". Este é percebido com horror pelo rei,

por confrontá-lo com a estética dionisíaca – o que é desejo de liberdade é também a sua

sentença, pois Dionísio afirma o devir e a finitude de Sua Majestade. Por isso a perda do

bufão causa pesar ao rei. O que seria de nós sem os bufões, os loucos, os poetas, os tolos,

as crianças, os artistas e os clowns?

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

123

No filme I clown de Frederico Fellini (1970), um cortejo fúnebre transforma-

se em carnaval, num circo. O aparente pesar, que de modo derrisório acomete os palha-

ços, cessa quando, de uma imensa grande garrafa de champanhe, como um homem-bala,

o ex-defunto é projetado para o alto e, dependurado por um fio, celebra. Todos dançam,

jogam confetes e serpentinas; uma grande confusão festiva se instala - a carnavalização

da morte representa o Eterno Retorno. Finda a cena, resta apenas um palhaço no picadei-

ro; recorda-se de um amigo também morto, como o qual fazia um duo. Melancolicamen-

te, toca o seu trompete e, como que convocado, do outro lado da arquibancada, surge o

amigo morto que responde ao chamamento, compondo um diálogo musical. Iluminados

por um feixe de luz, deixam o palco. Como derradeira imagem, apenas suas sombras.

Sobre clowns e sombras, Felinni comenta:

Neste tempo de racionalismo, que direi eu? Bem, o clown encarna os traços da criatura fantástica, que exprime o lado irracional do homem, a parte do instinto, o rebelde a contestar a ordem superior que há em cada um de nós. É uma caricatura do homem como animal e criança, como enganado e engana-dor. É um espelho em que o homem se reflete de maneira grotesca, deforma-da, e vê sua imagem torpe. O clown sempre existirá pois está fora de cogita-ção indagar se a sombra morreu, se a sombra morre. Para que ela morra, o sol tem que estar a pique sobre a cabeça. A sombra desaparece e o homem, intei-ramente iluminado, perde seus lados caricaturais, grotescos, disformes. Dian-te de uma criatura tão realizada, o clown, entendido no aspecto disforme, per-deria a razão de existir. O clown, é evidente, não teria sumido, apenas seria assimilado. Noutras palavras. O irracional, o infantil, o instintivo já não seri-am vistos com o olhar deformador que os torna informes (FELINNI, 2005).

A radicalidade da arte dramática está na vivência deste "outro do homem".

Deusi de Magalhães pensa que ao ator/atriz é facultado gozar mais intensamente de tal

privilégio – de certa dose de liberdade e de loucura para "ser o que é", protegidos pela

personagem. Alguns, entretanto, reitera, talvez por desmesura, acabam por se tornar "per-

sonagem de si mesmo". Perguntei-lhe se via Petrovich desta forma. Gargalhou.

Para o professor Petrovich era fundamental que não saíssemos impunemente

de um encontro, afinal, sua meta era transformar pessoas; e se (trans)formar é conhecer,

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

124

exige-se provocá-las para revirar as próprias vísceras. Conhecer em francês é connaître,

derivada de naître - "vir ao mundo", "partir do organismo maternal" (REY, 1998); é tam-

bém "abrir-se", "brotar", "rebentar", "formar-se", "instituir-se" (FERREIRA, 1986). Co-

nhecer, portanto, como co-nascer, só é possível no encontro e na dilaceração. O nasci-

mento é o abandono do repouso, é o movimento parceiro de mãe e filho (e de muitos),

fazendo-se vida e celebrando-a. Encontro que se dá na dor e na alegria, daquela que abre

suas entranhas para ver partir o que se anuncia. "Caminhar, encontrar e celebrar": estes

são os princípios da educação petrovichiana (PETROVICH, 2004).

Na educação oficial, paradoxalmente, enquanto cuida-se para que todos pas-

sem sem arranhões, exercita-se a perversão e o gozo pela submissão e pelo silenciamento

do outro, através de práticas institucionalmente legitimadas, a exemplo dos salários e das

avaliações. Sem corpo há apenas abstração; e a palavra, desencarnada, distanciada do seu

nascedouro, cristaliza-se em representações ideológicas.

Petrovich, na ânsia de conhecer, talvez vivesse tormentos semelhantes aos que

viviam o mestre em Escola de Bufões, e o bobo de Escorial, já referido no primeiro capí-

tulo deste trabalho - o riso do bobo, para Bakhtin (1999) reatualizava a ambigüidade e a

oposição, incorporando-as e representando-as. Ambas as personagens, por amor, são de-

volvidas à condição de homens, e considerando que um bufão não tem alma, ao sofrer as

dores mundanas tornam-se incapazes para o exercício pleno da sua arte. Somente o riso

salva, ao possibilitar-lhes a visada no abismo que acena, dizendo: tudo passa. E ainda que

saibam que o riso livre e a implacável lucidez que este lhes devolve, lança-os na solidão,

e ainda que conheçam "as dolorosas honras concedidas pelos reis" (GHELDERODE,

1968), expulsos do céu e do inferno, resta-lhes apenas o ofício sem o qual seriam apenas

"palhaços de quermesses".

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

125

Vou mais uma vez buscar atalhos que me permitam refletir acerca da escolha

do texto Escola de Bufões, ainda que o autor localize o ocorrido no século CVI, o texto

foi escrito em 1937, século XX, quando, para Bakhtin (1999), já se vivia um riso reduzi-

do em seu vigor e privado da sua historicidade, caráter universal e ambivalência. Inicial-

mente, meu interesse foi motivado pela referência à educação; e depois porque punha em

evidência a minha busca por uma certa arte bufa, em tempos de pós-modernidade. Penso

que Ghelderode acolhe as minhas inquietações na medida em que insere Artaud, seu con-

temporâneo – o livro O teatro e seu duplo foi lançado em 1938 – com um teatro que pre-

tende atingir com agudeza a sensibilidade do expectador.

Artaud (1985) tece contundentes críticas a Shakespeare ao responsabilizá-lo

por um teatro desencarnado e psicologizante que deixa sair impune a platéia. Para ele,

"Tudo que atua é uma crueldade" (p.109), e o teatro psicológico analgesia, desvinculando

a arte da vida mesma; sinal da decadência dos tempos. Tudo que se move, move-se para a

vida, ratificando a imanência absoluta desta, como história e como comunhão cósmica.

Estes foram os quesitos que me fizeram optar por Folial e não pelo bobo do Rei Lear,

mais conhecido nas cortes. Entretanto, Ghelderode suscita-me novas dúvidas: há na cru-

eldade um caráter restaurador? Existe sentido em se falar de bufonaria, em tempos pós-

modernos?

Vivemos uma época que anuncia o fim das certezas, pondo em xeque a identi-

dade e o sujeito. Em conseqüência, observamos o recrudescimento dos poderes instituí-

dos que lutam para manter a sua hegemonia – como sempre aconteceu quando estes se

viram diante de ameaças. Assistimos ao retorno do fanatismo religioso e do fundamenta-

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

126

lismo; a ideologia capitalista aliada à tecnociência esmera-se em estratégias que dissemi-

nam violência e destruição. Nos acostumamos a tudo isso e já não nos espantamos53.

A mídia comanda o espetáculo da alienação e o afã da novidade nos impossi-

bilita de ver o sempre igual da produção mercantil e da moda; a esse respeito Benjamin

(1985) lamenta, referindo-se à pobreza da experiência. Os vínculos sócio-afetivos são

dissolvidos, rebordando na perda de um sentido comum. A racionalidade técnica impõe o

silenciamento da razão poética e sensível. Segundo a professora Cleise Mendes, quando

tudo é relativizado não há lugar para a tragédia; só o sagrado incita o sentimento do trági-

co. Para ela, enquanto no mundo grego o diálogo entre Apolo e Dionísio – tragédia e co-

média - possibilitava ao homem contemplar a sua finitude, através do riso e da arte; na

Roma Antiga, a comédia foi por excelência o modo de expressão da angústia daqueles

que se precipitavam sem âncoras diante desse abismo existencial - todos os valores gre-

gos foram destruídos e reinava a barbárie.

Convém lembrar o sentido de redenção conferido à barbárie por Walter Ben-

jamin (1985), que vê neste movimento a potencialidade criativa para instauração de uma

nova ordem – surgia, então, em Roma, o cristianismo.

Na contemporaneidade, cresce o interesse pelo riso nas diversas áreas do co-

nhecimento. Surgem pesquisas nas universidades e são realizados simpósios, especial-

mente na medicina e na psicologia, sobre seus efeitos curativos; proliferam os grupos de

clowns, os palhaços sem fronteira, os doutores da alegria; é criado o dia do riso - 18 de

janeiro, como a mais recente estratégia de institucionalizá-lo e desvitalizá-lo. Mas se ne-

cessária é a estratégia, é porque a despeito dos esforços da ideologia da seriedade ele se

53 Neste caso, penso o espanto como thaumazein, admirar-se; o páthos que nos arrebata quando nos de-frontamos com algo estranho (thaumaston) por ser extraordinário. A palavra extra-ordinário remete-me a algo que está para além do comum e da norma. Não nos espantarmos se refere ao entorpecimento da sensibilidade, da sensualidade.

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

127

insurge insidiosamente como potência revolucionária que é. E assim sendo, posso pensar

que a necessidade de mais riso no século XXI prenuncia o nascimento de uma outra lei?

Em 1997, o dramaturgo, autor e ator Dario Fo foi prêmio Nobel de Literatura.

Conhecido como um anarquista saltimbanco (OBSERVATÓRIO, 2006), Fo esteve exila-

do e preso por diversas vezes, acusado de subversão por tomar como alvo o imperialismo

e o capitalismo na Itália, chegando a ser processado pelo primeiro ministro Sílvio Berlus-

cone, em decorrência da peça satírica que tem como protagonistas o mesmo Berlusconi e

Vladimir Putin, presidente russo. O escândalo na Academia não parou por aí: abriu portas

para o escritor português José Saramago, laureado em 1998, e para a dramaturga e nove-

lista austríaca Elfriede Jelinek, em 2004. O primeiro foi acusado de afrontar a Igreja Ca-

tólica com o seu Evangelho Segundo Jesus Cristo e a segunda, tida como pornográfica,

por denunciar, abusando de "fantasias obscenas" e "linguagem vulgar", as estratégias dos

poderes dominantes, especialmente a posição da mulher e do homem no meio capitalista,

com o livro Lust que quer dizer, luxúria, prazer, gozo, libido, tara.

Os bufões estão, afinal, novamente em alta. Retomando Artaud (1985), penso

que Petrovich buscava o rigor da crueldade, convocando para a vida, ainda que muitas

vezes sucumbisse ao repouso da lei – não são os portos, afinal, também necessários? Não

seria por isso que a professora Cleise Mendes via nele um ator trágico?

Para o professor Maurício Pedrosa "ele tocava na ferida", mas não apenas: a

exemplo dos bobos medievais Petrovich encarnava a ambivalência como princípio, e es-

tava atento às oportunidades de firmar acordos com o poder, não deixando de tensioná-lo,

entretanto – vale lembrar que assumiu a direção do TCA em plena ditadura, para logo ser

demitido por afrontá-la com o espetáculo Macbeth segundo Arimã. Para Vanda Machado,

sua fala e atitudes eram provocativas e incitavam ao descentramento:

A fala forte dele era uma fala de quem diz não necessariamente 'sigam-me', mas 'saiam do lugar' (...) no discurso dele havia muito 'saia do lugar', 'faça de frente',

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

128

'faça de um outro modo'; você não tem que fazer as coisas a vida inteira desse jeito; você não tem que fazer como eu faço, mas faça. Todos os exercícios dele eram no sentido de que as pessoas pudessem se abalar (VANDA MACHADO).

Aquele que abre caminhos convoca o caminhante para um caminhar próprio e

apropriado. Con-vocar, derivado de vocatione, vocare (chamamento), significa "chamar

para junto de" (FOGEL, 1999, p.78). Ainda FOGEL prossegue: "Assim, vocação é o

chamamento ou a convocação de ser. De ser o que se é, o que sempre já se é. E o que se

é, é só uma promessa – a promessa de vir a ser o que se é, se se atende ou se acata o cha-

mamento da vocação que convoca". O chamamento de Petrovich dirige-se, assim, ao Ser;

o caminho e o caminhar são o ser tocado por; páthos; experiência de "ser o que se é"

como promessa.

Referindo-se a Petrovich como um bufão, ainda Vanda Machado comenta:

... coisas de bufão é encarar um espelho sem a imagem do Narciso. Ao contrário, são imagens que se contorcem pelo desamparo, pelo possível desalento ou quem sabe o esquecimento que se aproxima galopante. É preciso esquecer para não se incomodar (VANDA MACHADO)..

O preço do mestre é a solidão. E muitas vezes Petrovich, também de acordo com Vanda

Machado, com Jorge Gáspari e Márcio Meireles, via-se abatido e desamparado:

Deve ter outros incautos nesta mesma encruzilhada, criando caminhos que se

cruzam, atrapalhando o tráfego, andando pela contramão... Emancipação social

da humanidade...revolução estética.. Coisas de cavaleiros andantes. Eu nem sei

mais. Ele não desgrudava daquele cavalo. Chegava a ir para casa montado no

seu cavalo, empunhando a espada (falo de Petrô). Às vezes esquecia do escudo,

se deixava atingir e não tinha um só Sancho para lhe acompanhar nos seus delí-

rios de colocar os moinhos e seus ventos a favor dos que necessitavam colher

muitos sonhos.(...) O seu assombro mesmo, era conseguir fazer parar o moinho

instituído que avançava sobre o teatro (Vila Velha), e como um rei Midas na sua

inversa tradução, por certo não o transformaria em ouro. Foi muita luta, mas na-

da que um cavaleiro andante não pudesse enfrentar. Um dia eu vi o guerreiro

chorar. Ele abaixou a cabeça na ponta da mesa e um grito saiu do seu coração.

Meu Deus que falta de paz! Eu chorei também (VANDA MACHADO). ... essas pessoas (bufões) também morrem de tristeza, eu acredito nisso, morrem

de cansaço. Petrô nos últimos anos, nos últimos meses... quando eu conversava

com ele aí no jardim eu observava que ele estava cansado, estava triste, não ti-

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

129

nha mais aquela garra, aquele fogo, fogo divino, fogo de Prometeu que dá vida,

dá conhecimento, que abre a cabeça dos homens; ele não tinha mais aquilo, ele

estava muito triste. Eu cheguei a perguntar a ele: "não é nada não, Jorginho.

Problemas, saúde, o mestrado54 está também ocupando a minha vida; a visão es-

tá cada vez mais curta, estou perdendo a visão progressivamente". Eu tenho im-

pressão que com essa doença e a proximidade da velhice, as oportunidades co-

meçavam a diminuir, as portas começavam a se fechar cada vez mais. Me parece

que ele chegou a essa conclusão: no final da vida, perdendo a visão, a doença

instalada, a idade chegando, a aposentadoria se aproximando (JORGE GÁSPA-

RI).

... tem uma correspondência grande dele com a diretora do Palácio da Aclama-

ção que era uma briga séria e a gente herdou essa briga até que ela saiu e graças

a Deus as coisas melhoraram bastante. Mas a gente vê que era um cara sozinho

mesmo, batalhando para manter esse teatro e sem uma produção dele porque se

ainda fosse alguém que mantém o teatro para produzir, para fazer obra sua...

não, não era nem para isso, era para manter o teatro mesmo. Uma vida inteira

para o teatro (MÁRCIO MEIRELES).

Uma vida inteira para o teatro e para a educação. Muitas lutas porque não cos-

tumava evitar seus antagonistas; uma enorme solidão que deixava antever determinação e

resistência pois, como bem observou Euclides da Cunha, "todo sertanejo é um forte".

Envelhecer para Petrovich era realmente difícil uma vez que sentia em si o

vigor da criança e do jovem contidos pelas restrições do corpo cansado. Márcio Meireles

relata que durante os ensaios do espetáculo Um tal de Dom Quixote, liberava-o para pou-

pá-lo fisicamente. Inconformado, não aceitava as determinações do diretor e fazia aulas

de capoeira, e de dança; "só não fez a de pernas de pau", recordou Meireles. Ensaiava

todo o tempo, misturando-se aos atores jovens e iniciantes:

Então tivemos que parar o ensaio para falar a história do teatro baiano que esta-va ali na frente deles. Porque eles batiam em Petrô como se fosse um garotão e realmente ele se comportava como um; e ele ficava muito fascinado com isso. Essa disponibilidade dele era incrível, ele era pura emoção, puro sentimento (MÁRCIO MEIRELES)..

Ao professor Maurício Pedrosa, sobre o sentimento de envelhecer, confessou:

54 Petrovich ingressou como aluno do mestrado de Artes Cênicas em 2003.1.

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

130

Maurício, a velhice é uma merda. Eu tenho o pensamento de uma pessoa de 20 anos e um corpo que não quer mais obedecer (MAURÍCIO PEDROSA).

A velhice, entretanto, volta a aproximá-lo da loucura e/ou da sabedoria como se queira

pensar. A Loucura no seu auto-elogio não titubeou diante de tal provocação. Louco, sá-

bio, velho, criança, bufão, beirando os 70 anos: Carlos Petrovich. Mas não é pela boca do

velho e da criança que fala a loucura? E não são incômodos os velhos, por agirem como

crianças? Sobre a velhice, a Loucura argumenta:

Perguntar-me-eis, sem dúvida, como o consigo. Da seguinte forma: levo essas caducas cabeças ao nosso Letes55 (porque, entre parêntesis, sabeis que esse rio tem nascente nas ilhas Fortunadas e que um seu pequeno a-fluente corre nas proximidades do Averno56) e faço-as beber a grandes goles a água do Esquecimento57. E é assim que dissipam insensivelmente as suas mágoas e recuperam a juventude. Alegrar-se-á, contudo, que deli-ram e enlouquecem: pois é isso mesmo, justamente nisso consiste tornar a ser criança. O delírio e a loucura não serão, talvez, próprios da criança? (ERASMO, [19--]., p.37).

O Elogio da Loucura, publicado em 1509, é avaliado por Bakhtin(1999) como

a produção literária que mais se aproxima do riso rabelaisiano. Averno é a porta para o

inferno. A imagem dos infernos em Rabelais representa encruzilhada: condena o passado

e festeja um presente que é apenas enquanto possibilidade de futuro – Petrovich dizia-se

um homem de encruzilhadas.

A história do riso é a história da luta entre Deus, como princípio ordenador, e

o Diabo, representante da entropia e do caos. É fácil saber de que lado está o riso, consi-

derando que “Cristo nunca riu” (ECO, 2003). O diabólico e o divino em Nietzsche

55 "Letes é o rio da morte, viscoso, lento, por onde leva Caronte todos os mortais – Letes, o rio do esque-cimento. Ao navegarem rumo aos Infernos, os mortos deixavam passar, como as águas, todas as suas lembranças, rumando à contestação e ao obscurantismo – Letes, o deus da ocultação: nele está todo o esquecimento, nele reside o apagar das formas e o negativo das coisas; ele é uma força absolutamente de baixo, tudo que mantém em si se apaga. Nasceu para o apagamento da lembrança, nasceu desde o seu parentesco com Nix, a Noite, com Thánatos, a Morte, com Hypnos, o Sono. Esquecer é ocultar, na noite, na morte, no sono" (SOARES, 2005, http://www.duplipensar.net/artigos/2005-Q2/mortos-e-monumentos.html. Acessado em 28 de fevereiro de 2006). 56 Averno: portal para Hades, o inferno. Guardado por um cão de várias cabeças e serpentes no pescoço chamado Cérebro (VIRGÍLIO, 2005, p. 207). 57 Em outra passagem de Erasmo, a Loucura diz ser a “ninfa Esquecimento” sua cara companheira.

Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

131

(1985), contudo, são o mesmo, como afirma em Ecce Homo, ao refletir sobre Além do

bem e do mal:

Falando teologicamente – preste-se atenção, pois raramente falo como um teólogo -, foi o próprio Deus que, ao fim da sua jornada de trabalho, estendeu-se em forma de serpente sob a Árvore do conhecimento: assim descansou de ser Deus... Havia feito tudo demasiado bonito... O Diabo é apenas a ociosidade de Deus a cada sete dias (NIETZSCHE, 1985, p. 137).

Nas religiões antigas e nas afrodescendentes, à semelhança do Deus nietzs-

cheano, em especial nos ritos sacrificais, a ordem é subsumida para ressurgir renovada. O

que fica evidente, contudo, é que o riso como possessão demoníaca e manifestação da

potência criadora, necessariamente é, também, expressão de violência. São inúmeros os

relatos acerca dos atos de destruição cometidos, por exemplo, pelas bacantes, nas dioni-

síacas (DETIENNE, 1988), ratificando a desordem que precede a instauração de novos

princípios.

No inferno, o intrigante do Drama Barroco Alemão conspira contra o Príncipe. Na

cultura cômica popular, esta personagem é representada pelo Diabo e pelo bufão - como

realismo grotesco tais imagens incorporam a ambivalência e a dessacralização do mundo

estável, negando toda forma abstrata e toda aparência. O riso de inspiração diabólica é o

riso alegre da história destino. A construção da figura do daimónion encarnava todo des-

vio que atentasse contra os dogmas da cristandade (CHAIN, 2003). Logo, a cultura cômi-

ca popular na Idade Média e no Renascimento engendravam a dinâmica dos infernos.

E é justamente no Letes, que passa pelo Averno, que as caducas cabeças são

levadas para esquecer. Esquecer é matar o passado, para recuperá-lo alegoricamente, do-

tando-o de significações que se existiram, o foram enquanto potencialidade. É preciso

Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

132

esquecer sob pena de não atualizar a tradição58. E é Mnemosyne, deusa da poesia época,

mãe das musas inspiradoras dos poetas, que salva o passado pela memória que para o

narrador tradicional deve ter caráter de um acordo coletivo e universal.

"É preciso esquecer", afirmou-me Petrovich em 2004, ao se referir ao esque-

cimento como necessidade fundamental para deixar que se instale o outro, ainda que este

seja uma personagem – Folial precisava não lembrar da sua humanidade, assim como

também o homem sonhado por Borges que deveria esquecer os ensinamentos recebidos

daqueles que o sonhara. É preciso estar vazio para ouvir o outro e acolhê-lo, dizia-me o

mestre Petrovich, fazendo analogia com uma casa cheia que não tinha mais espaço para

receber. Para o professor e amigo Jorge Gáspari, esse exercício de esquecimento tinha um

sentido amoroso; conforme observava na forma como o ator acolhia suas personagens:

Ele se identificava tanto com a personagem, a personagem passava a ser uma parte integrante da vida dele, do psíquico, da alma de Petrô - teve aquela história que Cleise narrou... Ele está chorando, aos prantos, se despedindo da persona-gem; ele estava se despedindo de uma parte dele; porque não é habitual para nós: personagem é uma coisa que a gente instala e desinstala com a maior facili-dade. Para ele instalar não era fácil e desinstalar menos fácil ainda. Isso é uma prova da grandeza de Petrô: a humanidade que não era a dele, um ser que não era ele e ele amava aquele ser. Ele criava aquele ser, ele amava aquele ser, ele cultivava aquele ser de maneira tal que quando ele se despedia, sofria. Isso é ca-racterística fundamental daquelas pessoas que tem o humanismo como meta maior da sua vida, das pessoas para quem nada do que é humano lhe é indiferen-te e é também característica dos grandes atores. (...) quando você é capaz de fa-zer esse tipo de coisa você tem uma possibilidade de entender o outro, muito, muito grande ... (JORGE GÁSPARI).

A capacidade de acolhimento e de escuta é a qualidade daquele que deseja

deixar aprender; era essa a marca do educador Petrovich, especialmente nos últimos anos

quando a Loucura banhou-lhe a caduca cabeça no Letes. Sim, velho com o vigor dos in-

fantes, por isso tão desconcertante - os bufões, os clowns, os loucos, os poetas e as crian-

58 Recomendo a leitura do intrigante conto de Jorge Luís Borges, Funes, el memorioso que narra a histó-ria de um homem incapaz de esquecer. BORGES, Jorge Luís. Ficções. Tradução Carlos Nejar. 3ª ed. São Paulo: Globo, 2001.

Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

133

ças estão ligados ao mistério. Sobre a criança e sobre o tolo como arquétipos, Petrovich

fez-me as seguintes observações:

O arquétipo da criança é quando a gente perde a inocência, mas não perde a es-perança nem a alegria de ser feliz. O que é que está lhe dizendo: que seus ga-nhos não vêm de você ser isto ou ser aquilo; o ser isto e ser aquilo não existem; é um sonho, uma hipótese O trabalho de Nietzsche e o trabalho dessas pessoas com o riso é o exercício da tolice; é a presença do arquétipo do tolo: daquele que ri, que ri, ri de tudo (...) toda resposta é um sorriso. Exatamente esse que sabe que tudo é uma grande ilu-são e que tudo é uma grande tolice (PETROVICH, 2004).

A criança, assim como o tolo, goza do privilégio da insensatez. Destituem-nos

de toda ilusão de permanência. Essa perspectiva ao tempo que excitava, assustava Petro-

vich, relembra a professora Vanda Machado:

... ele dizia: vou me tornar onipotente como uma criança; tenho até medo de me tornar tão onipotente para não ficar como uma criança (VANDA MACHADO).

É interessante que a velhice faz retornar de forma mais vigorosa o espírito da criança,

como a idéia do Uroboros, a serpente mítica que se alimenta e se transforma engolindo a

própria cauda. Imagem semelhante pode ser observada nos orifícios corporais, imagens

do realismo grotesco, descritas por Bakhtin (1999) e na boca aberta da caveira, na qual

dentro e fora, início e fim são Um. Esta idéia também está presente no arquétipo do lou-

co, do bufão, que no tarô é a carta número zero, que como coringa pode assumir qualquer

posição, alterando-a. Não importa se é a primeira ou a última carta do tarô: é uma e a

outra ao mesmo tempo, ligando o princípio ao fim, interminavelmente - nascimento e

morte. A criança, o velho, o louco, o bobo representam o Eterno Retorno porque sabem,

como me revelou Petrovich, que

... tudo é uma grande ilusão e que tudo é uma grande tolice (PETROVICH, 2004).

Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

134

E de que forma ensina um mestre que é velho, louco, infante, bobo e errante?

Sobre o professor Petrovich, muito distante da escolástica simiesca, Cleise Mendes regis-

tra:

Essa idéia de ensinar pelo exemplo, seja como ator, seja como diretor, é muito forte. O que digo é que o lado bufão convive com esse lado messiânico que não é bufão porque leva muito a sério (CLEISE MENDES).

– o levar a sério por si não representa unilateralidade, considerando que o sério aberto e

trágico necessariamente incorpora o riso e sabe que participa de um mundo inacabado.

Certamente, contudo, Petrovich tinha posições extremistas e também dogmáticas. Entre-

tanto, relatos como o do aluno Marinho Gonçalves mostram sua disposição para o diálo-

go:

É claro que ele deve ter passado por algumas dificuldades, por exemplo o fato dele ter sido tachado de louco; um lunático. Quando eu falo em romper, é por-que o outro lado sabia que ele queria romper, que ele mostrava que existiam ou-tras formas de se trabalhar com educação, com teatro. Petrovich, ele acolhia a gente, era um sábio. Eu discordava de algumas coisas dele, que era comum também e às vezes ficava "puto da vida", e eu dizia: "pode ficar puto mesmo, mas eu não concordo". Ele fazia a mesma coisa comigo... Mas a gente sabia que aquilo ali era para desenvolver alguma coisa, para que uma terceira coisa pudes-se surgir (MARINHO GONÇALVES).

Afirmação semelhante a da professora Cleise Mendes, sobre o ser professor de

Petrovich, fez Vivian Queiroz, presidente da Didá Escola de Música, local de realização

do projeto Griô Kaiodê. Segundo ela, Petrovich ensinava pelo exemplo e acreditava que

todo local e tempo eram lugar e hora para aprender:

Você educa o tempo inteiro; você não tem um momento certo, é qualquer instan-te, em qualquer lugar, na praça, dentro de casa, na rua, na cozinha... (VÍVIAN QUEIROZ).

Este para ela foi um grande ensinamento, reconhecendo princípio idêntico em Neguinho

do Samba.

Vale lembrar que o bufão, como representante simbólico do princípio carna-

valesco, atuava no sentido da desmontagem dos palcos e das verdades instituídas, a fim

Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

135

de restaurar a utopia universal. A subsunção do palco numa sala, distendendo-a para es-

paços supostamente considerados pela ideologia oficial, inadequados para o ensino, mo-

ve-nos na direção de uma escola e de uma aula como obras abertas. Se aberta, não há

centro. Se aberta, inconclusa como a vida. Se aberta, histórica e comprometida com o

tempo festivo do material e corporal. Se aberta e guiada pelo exemplo, só possível na

vida e não na relação com esta, considerando que educar e viver não são categorias dis-

tintas; então, pois, não se educa para a vida, mas nela própria enquanto vida-vivida/vida-

vivente. Se pelo exemplo, não há hierarquias, mas jogos de linguagem e de papéis, numa

comunidade aprendente.

Com o exemplo do velho mestre, aprenderam Rafael Moraes e Marinho Gon-

çalves, respectivamente:

... quando eu estou dando aula sempre levo em conta que a gente é exemplo; as palavras, elas às vezes, ganham força maior que a realidade; elas conseguem mudar, transformar caminhos, transformar as pessoas. Ele era a prova disso; era muito bom ter uma pessoa como ele na Escola de Teatro porque ele transforma-va através da emoção, do carisma, da elevação da auto-estima da pessoa; atra-vés dessa paixão que ele tinha... Acho que o ator e o palhaço têm muito disso; o ator meio mambembe, essa figura do velho, do griô, que é meio que um bruxo, transforma através da presença... essa coisa do prazer está muito forte, também. Petrô não tinha nenhum pudor de falar do prazer, do prazer sexual: falava das mulheres, da alegria... O efeito do riso de desconstruir para construir outra coisa, ele está sempre estimulando isso... não é só a questão do corpo, é do ser pleno: quando vem inteiro, o corpo está presente ali, só escrevendo, só falando, chega através das brincadeiras. As brincadeiras populares, os folguedos, todos têm o corpo; as cantigas de roda, as cirandas, os cirandeiros, os palhaços, o griô (RAFAEL MORAES). ... não era pura e simplesmente o conteúdo programático de uma aula ... eu via o quanto a história de vida dele estava ali, incorporada no personagem, e isso eu via também nas aulas, isso eu via quando ele passava nos corredores da escola, isso eu via quando ele cumprimentava as pessoas; era um estado de prontidão o tempo inteiro [...]. A gente saía ali pela Praça da Sé, descia pela Ladeira da Pra-ça. Uma vez, Petrovich me levou ali no início da ladeira da Praça, num lugar pa-ra tomar sopa. A gente conversando lá nesse lugar e eu percebia, só que não fa-lava para ele, a maneira como ele parecia falar comigo: "olha, observa negão, se liga porque aqui vai ter material de trabalho para você". Parece muito subjetivo. Parece, mas ali tinha não só a visão do diretor, mas tinha a questão da valoriza-ção das pessoas daquele local, o respeito, e como trazer aquilo ali para o perso-nagem que eu iria criar ...(MARINHO GONÇALVES).

Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

136

Marinho Gonçalves reconhece no mestre a coerência e a disposição para a

experiência. Percebe-o, expondo-se e auscultando o mundo de modo atento e paciente.

Compara-o a um Erê, a uma criança em permanente "estado de prontidão e vitalidade".

Nesta relação, parecem-lhe dispensáveis as palavras, e a comunicação dá-se pela forma

como um e outro são afetados pelo páthos. O deixar aprender do mestre é para ele um

aprendizado, pois possibilita experiência no fazer-se desta. O projeto político-pedagógico

de Carlos Petrovich, então, pressupõe abertura para ser tocado pelo mundo, radicalidade,

liberdade, e um profundo respeito à alteridade.

Rafael Moraes associa folguedos populares à vivência plena do corpo. E eis

que não é possível falar de bufões e de festas sem mencionarmos a relação com o baixo

material e corporal da cultura cômica popular, que representa uma "...concepção estética

da vida prática que caracteriza essa cultura e a diferencia das culturas dos séculos poste-

riores" (BAKHTIN, 1999, p. 17). O corpo rabelaisiano, em nada se aproxima do corpo

moderno, biológico, individual e erotizado.

O rebaixamento daquilo que no sistema de signos medievais liga-se aos mais

altos valores espirituais, ideais e abstratos, corresponde a sua volta ao material e corporal,

representado pela fecundidade, pelo crescimento e pela abundância que faz nascer o no-

vo, como busca Leon Góes, com o seu Galgut. Simbolizado no realismo grotesco, este

princípio associava-se, ainda, a uma certa visão topográfica: no alto está o céu, a cabeça;

no baixo, a terra e o baixo ventre (órgãos genitais e traseiro). No baixo está sempre o co-

meço e a possibilidade de restauração; por isso rebaixa-se.

Esta insistência em tratar do baixo material e corporal justifica-se também

pela relação que Petrovich mantinha com a corporeidade no teatro e na educação. O ator

Narcival Rubens disse-me que as palavras lhes saíam do dedo:

Ele tinha uma coisa de fazer o desenho das palavras que estava falando (NARCIVAL RUBENS).

Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

137

Talvez por isso a Iyalorixá do Opô Afonjá lhe tenha dado o nome de Ossobaró que signi-

fica "bruxo das palavras", pois no espaço do terreiro, onde a tradição dá-se pela oralidade,

a palavra é sagrada e, necessariamente, encarnada e representada ritualisticamente. O

professor Jorge Gáspari recorda como a performance do amigo condensava corpo, voz e

espírito:

Era histriônico, era fantástico, era grandiloqüente, era grande demais. Quando ele estava em cena não era somente a voz, ele era muito gestual; ele não sabia só falar com a boca, ele falava com o corpo todo. Ele se movia; ele tinha um hábito de começar a falar quando ele entrava; com entusiasmo, quase chegando ao êx-tase; ele começava a ciscar o chão com o pé, parecendo um touro, na impaciên-cia de falar. O corpo todo pensava; quando eu via Petrô eu pensava: ele está pensando com o corpo inteiro, cada célula dele pensava e o corpo acompanhava a linha de raciocínio e, de repente, a fala era praticamente a duplicação dos mo-vimentos dele e vice-versa. Ele era imenso, ele ficava grande. Ficava imenso, os braços abriam, era realmente um bufão. Era um homem que não era exagerado, ele não tinha uma performance exagerada; era corpo, voz e muito humor (JORGE GÁSPARI).

A arte-educação pela via do teatro representava a inserção do corpo como

meio de conhecimento e de renovação das tradições. Para o histriônico bufão filho de

Ogum, o corporal integrava-se ao corpo social e cósmico no sentido da utopia universal.

Tais concepções, não devemos esquecer, têm uma profunda relação com suas experiên-

cias da cultura cômica popular nas feiras livres, no teatro de rua, com os movimentos

negros organizados, no terreiro de candomblé, nas periferias da cidade, no sertão nordes-

tino, como relata a Élson Rosário:

Eu mesmo sou um homem que minha universidade primeira foram as feiras po-pulares do nordeste. Os cantadores foram meus primeiros mestres. Os mitos cristãos, foram meus primeiros traçados no teatro. Então eu me achava ligado aos pastoris, aos bumba meu boi, as cheganças de mouro. Isso veio influenciar minha vida. Eu tenho lembrança de muitos trabalhos hoje realizados a partir dessas memórias e dessas vivências (PETROVICH, 2005).

Petrovich, depois de romper com o Movimento dos Novos, no início dos anos

sessenta, trabalhou como feirante. Sempre cultivou o prazer de freqüentar a feira de São

Page 139: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

138

Joaquim, Salvador-Bahia. Gostava de comer mocotó59 nas barracas, conversar e fazer

compras para as festas e obrigações do terreiro. .Bebendo da fonte originária, citou-me

uma expressão popular bastante utilizada, à qual conferia sentido de movimento e de

transformação:

A Bahia tem uma coisa muito bonita que às vezes as pessoas não enxergam: "aí gente, vou tirar meu corpo". Quando você tira seu corpo de um lugar você resol-ve 80% dos problemas ...(PETROVICH, 2004).

Mais uma vez, vale ressaltar, o estreito vínculo que o repertório da praça pública mantém

entre a oralidade e a livre expressão corporal. Para o professor, o autoconhecimento era o

conhecimento da linguagem e da história, inscritas na corporeidade, como me falou tam-

bém em 2004:

...cada lugar em nós, na mão, no corpo, é um mapa. Se tiver um problema você vai, abre a mente assim e procura: eu estou precisando disso; num certo momen-to você vai descobrir em que parte você tem que tocar, ou na sua mão, ou aqui nesse dedo, ou aqui, às vezes é assim; você vai tocar no seu corpo e aí vai che-gando lá. Com você está a semente que você quer, as sementes estão todas plan-tadas no corpo; a gente se perde muito porque a gente não sabe que a nossa casa é o cosmos, e o cosmos está aqui, o macro cósmico está todo aqui, e o que a gente precisa é tocar... (PETROVICH, 2004).

Na estética carnavalesca, o corpo assume lugar de proeminência. A palavra só

existe encarnada: uma palavra corpo que é também corpo social e cósmico. E na medida

que o corpo ri, ri também todo o universo. A professora Vanda Machado, implicando a

fala de Petrovich com a cultura afrobrasileira, reflete:

Não tem que ocidentalizar o pensamento; os africanos pensam o mundo, ele co-mo parte de uma unidade, cada parte dessa unidade contém todos os princípios (VANDA MACHADO).

Para o povo do Axé, homem e mundo compõem uma unidade universal e cósmica; prin-

cípio semelhante ao carnavalesco da Idade Média e do Renascimento. Estes eram funda-

mentos que orientavam o trabalho de Petrovich com seus estudantes, universitários ou

não.

59 Comida surgida nas senzalas; hoje integra a culinária da Bahia.

Page 140: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

139

Cena 3ª - Doidas palavras

Não é possível falar do professor Petrovich sem considerar as apreciações do

seu ex-aluno e companheiro de trabalho Rafael Moraes que, para além de um bufão, per-

cebe-o um griô, reforçando a relação entre a arte de ensinar e, mais uma vez, a corporei-

dade:

... no caso de Petrô, eu vejo mais do que essa coisa bufonesca. Eu acho que ele usa mais como elemento, como artifício. Eu vejo ele como um griô, um sacerdo-te... uma diferença entre o griô e o palhaço... logo que ele está iniciando tem a ver com o palhaço, depois tem a coisa do velho; o velho consegue fazer conexão com essa libertação que o bufão tem; ele usa isso a favor dele para provocar. Mas isso se perdeu um pouco aí no caminho da humanidade; esse sentido de bu-fão hoje... assusta muito às pessoas. No caso de Petrô, ele trabalha mais com o encantamento do outro e com a transformação de princípios e valores. Ele usa o instrumento corporal (RAFAEL MORAES)

Convém, então, pensarmos a aula como construção coletiva que favorece a

multiplicidade de narrativas e suas expressões pela via da fala e do corpo (ou fala do cor-

po; ou ainda, do corpo da fala) - uma trama polifônica e polilógica de sentidos transitó-

rios e incompletos que, na forma de drama, recria a memória coletiva, atualizando-a in-

cessantemente. É interessante observarmos que a palavra drama, de origem grega, signi-

fica ao mesmo tempo ação presente e ação enquanto movimento consumado.

Parece-me coerente retomarmos a relação já mencionada entre o contador de

histórias africano e a narração que se dá como conselho. O conselho para Walter Benja-

min (1985) não intenciona resolver incongruências, procedendo de uma metanarrativa

legitimadora; busca, antes, o compartilhamento da memória coletiva a partir da escuta

atenta da experiência que se narra. Para bem escutar, contudo, é preciso saber narrar, pois

somente se abre a um conselho aquele que consegue contar a sua história – o que remete

às preocupações de Petrovich com resgate da capacidade de cont'ação daqueles histori-

camente silenciados pela cultura oficial.

Page 141: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

140

A falta de uma memória comum concorre para o desaparecimento da arte de

narrar e aconselhar. Este declínio está intimamente relacionado à pobreza de experiência,

cada vez maior na sociedade da informação (BENJAMIN, 1985). Se para o pensador

alemão, o grande narrador tem suas raízes no povo, aqueles que se distanciam das fontes

populares, isolando-se no abstracionismo da academia, certamente não seriam os melho-

res conselheiros. O professor que não sabe narrar limita-se a transmitir informações téc-

nicas úteis que não implicam os sujeitos no discurso vivo da narrativa. A transmissão

nada tem a ver com a perspectiva oracular do conselho que interfere na narração, deri-

vando-a e incitando a sua continuidade a partir de uma multiplicidade de possíveis cami-

nhos (como encruzilhada).

A narração enquanto cont'ação de experiências num fluxo narrativo comum,

atravessa ouvintes e narrador que não saem impunemente do encontro, transformando-os

– lembrem-se que este é o objetivo de Artaud (1985): não deixar que seus expectadores

saiam sem arranhões. Este é o sentido original da formação enquanto experiência estética.

Para Larrosa (1999, p. 181), "... só são formativas as experiências em que se faz a prova

da própria identidade", o que necessariamente se dá pela via do encontro.

Um conto hassídico, de Anatol Rosenfeld, citado por Naffah Neto (1990),

parece-me emblemático para ilustrar a narração tradicional que se dá pelo exemplo e pela

experiência comum, como buscava Petrovich quando incentivava através do teatro a ex-

periência coletiva:

Pediu-se a um rabino, cujo avô fora discípulo do Baal Schem Tov, que nar-rasse um conto. “Um conto, responde o rabino, deve ser narrado de modo a se transformar em auxílio”. E narrou: “Meu avô era aleijado. Certa vez pediu-se-lhe que narrasse um conto de seu mestre. Então ele narrou como o Baal Schem Tov costumava saltar e dançar enquanto rezava. Meu avô estava de pé, parado, e narrava e a narração empolgou-o de tal modo que, embora alei-jado, se pôs, ele mesmo, a saltar e dançar para demonstrar como o fizera o mestre". Desde aquela hora estava curado. É assim que se deve narrar uma história (NAFFAH NETO, 1990, p.79),.

Page 142: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

141

A despeito da "pobreza de experiência" que resulta na impossibilidade de

narrar, constatada por Benjamin (1985) especialmente após a segunda guerra mundial, na

cultura popular brasileira encontraremos contadores de histórias e de "causos" que em-

prestam seus corpos como veículo da memória coletiva. No conto hassídico narra-se com

todo o corpo, incorporando e dando passagem às idiossincrasias das personagens e con-

textos. Não apenas nas comunidades ágrafas, nos terreiros de candomblé, nos pequenos

povoados, entre os remanescentes quilombolas e povos indígenas, observam-se traços de

oralidade típicos da narração tradicional; nos grandes centros urbanos, entre aqueles que

vivem o processo de exclusão social e têm ou tiveram acesso mais tardiamente à educa-

ção oficial, podemos reconhecer traços dessa tradição nos modos peculiares de comuni-

cação e sobrevivência comunitária.

Distante da "norma culta", a oralidade do povo, muitas vezes expressa na for-

ma de grosserias e imprecações, faculta uma linguagem familiar livre, ainda que se possa

dizer que as primeiras, pelo caráter eminentemente depreciativo, perderam o sentido má-

gico e ambivalente típico do princípio carnavalesco e apenas rebaixam sem restaurar, não

atualizando o sentido curativo da narração. Na educação oficial, o corpo foi morto.

Pesquisadores da tradição oral no contexto da cultura afrobrasileira, Petrovich

e Vanda Machado publicaram em 1999 o livro Prosa de nagô. Escrito na forma de diálo-

gos entre iniciados no culto dos Orixás, narra o encontro entre professores da Escola Mu-

nicipal Eugênia dos Santos, localizada no terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, e os mais ve-

lhos da comunidade. O objetivo era criar situações pedagógicas para formação de crian-

ças e professores da referida escola, e orientar a construção de um currículo que integras-

se elementos da cultura afrobrasileira. A atividade inicial incluiu a leitura dramática do

texto por estudantes da Escola de Teatro. Desta pesquisa nasceu o Irê Ayó: mitos afro-

Page 143: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

142

brasileiros, na direção de uma pedagogia nagô (2004), coletânea de histórias e mitos,

também narrados pelos mais velhos do Opô Afonjá.

A vivência comunitária trouxe à luz Ajaká: o menino no caminho do rei, i-

gualmente concebido para trabalhar em salas de aula a ópera popular O menino que era

rei e não sabia (MACHADO, 2001). Criada e dirigida por Petrovich, a ópera, inspirada

na tradição oral e no culto dos Orixás, contou com a participação da companheira na

transposição de cantos e rituais da cultura africana. Integrou, também, as ações do Núcleo

de Estudos Populares da Escola de Teatro da UFBA.

No espetáculo, a figura do griô era uma homenagem a Mário Gusmão60. A

personagem "... tem como ofício construir berimbaus (metáfora mestre/discípulo) e se

importa em indicar às crianças que estão ao seu redor modelos exemplares de convivên-

cia e comportamentos adequados para a vida comunitária" (MACHADO, 2001, p.09). O

Oluô, aquele que joga os búzios, que provocava o menino para os caminhos na direção

seu povo, era uma homenagem a Pierre Fatumbi Verger. A personagem griô, representa-

da pelo estudante da Escola de Teatro da UFBA, Marinho Gonçalves, contracenava com

crianças e jovens da comunidade do Pelourinho e da Didá Escola de Música, além de

Vanda Machado, incitada por Petrovich a atuar no palco.

O velho contador de histórias narrava para um grupo de pequenos o curioso

caso de um rei que perdera a memória e esquecera do seu povo. Enquanto narrava, o griô

cantava, dançava e jogava capoeira com as crianças, dando passagem e recriando os có-

digos e o imaginário da cultura afrobrasileira. O espetáculo foi levado para as escolas da

rede municipal de ensino, provocando discussões sobre o currículo escolar e a formação

da memória coletiva do negro afrodescendente. Acerca do papel do griô na tradição afri-

cana, os pesquisadores escreveram:

60 Primeiro ator negro da Escola de Teatro da Universidade da Bahia (UBA); levado por Petrovich em 1956.

Page 144: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

143

O menino que era rei e não sabia nos remete a matriz africana do griô. O griô como uma figura ancestrálica que apresenta a história como uma o-bra de arte. As suas narrativas propiciam que uma tradição seja transmi-tida de uma geração para a seguinte. O griô é um contador de história, um poeta, um cantante, comprometido com a verdade, com a beleza, com a emoção. Contando, por vezes, tocando e cantando histórias, o griô pre-serva a tradição oral do seu povo. Um griô não morre (MACHADO; PETROVICH, 2004, p.22).

Desta forma, Carlos Petrovich e Vanda Machado incorporavam a narração, o

teatro e o exemplo como caminhos de aprendizagem, fazendo aos professores uma con-

vocação: "Quanto a nós, educadores, homens e mulheres afrodescendentes ou não, temos

uma missão que é possível: temos uma missão de Griô" (MACHADO; PETROVICH,

2004, p.22). Na pedagogia nagô, ensina-se pelo exemplo, poeticamente, ao modo dos

contadores de história. Petrovich contava histórias desde pequeno e continuou contando-

as no teatro e depois no teatro-educação, como refere:

...Eu vejo que uma história simples faz sentido; eu vejo que eu existo quando fa-ço uma história simples. E às vezes sem fazer uma história simples eu não sou nada, aí eu me sinto assim um ninguém quando não estou fazendo essas coi-sas.(...) Tudo que acontece na vida da gente são limites pra gente transcender pra gente aprender; tudo que nos acontece é uma lição. Pra mim tem sido assim... as vezes invento histórias para os alunos da universidade, das escolas, ou por aí onde ando; pego histórias de fadas e mostro que a fada, a bruxa são tão impor-tantes na vida para gente se desafiar transcender e crescer (PETROVICH, 1997). ... a minha prática de arte-educador se realiza mais profundamente na companhia de Vanda Machado. Porque ela descobre o caminho de uma pedagogia baseada na cultura, fundamentalmente, e então o meu teatro na educação é um teatro que encontra toda sua base na mitologia afrobrasileira de matriz africana. Nesse momento eu estou aprendendo a escrever com isso; eu não sou escritor, eu sou um fazedor, um organizador da cena, mas eu laborei muito num palco, num es-paço quadrado, retangular, onde eu preparei histórias de tempo, histórias sintéti-cas para desempenho de papéis e isso me dá uma capacidade sintética. Hoje se eu abrir minha mente para me inspirar e conseguir transpor escrito, é possível que eu encontre uma maneira de ajudar as crianças na educação. (...) Por isso que um dos meus caminhos de história, é contar histórias bonitas. É começar contando histórias (PETROVICH, 2004)

Como extensão desta pedagogia, os professores pesquisadores criaram, ainda,

o Griô Kaiodê: contando histórias com alegria. Por que insistiam em caminhos de alegri-

a; em caminhar alegremente?

Page 145: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

144

Unidade 1ª - Canto de arribação

A metáfora da viagem era recorrente na fala do professor. Toda sua história de

buscas orientada pelo desejo de "ser aquilo que se é" deixava antever o sentido da forma-

ção como experiência estética que se dá no encontro, à semelhança do conceito benjami-

niano de Erfharung - um despertar da memória coletiva através da cont'ação de histórias.

Sua idéia de educação estava intimamente relacionada ao projetar-se dos sujeitos na dire-

ção de uma utopia que se realiza na própria viagem - viajar e projetar-se eram o mesmo,

como pode ser percebido na interessante apreciação que faz a professora Maria Eugênia

Millet, para quem Petrovich era um velho mestre:

(...) o que fazia ele caminhar não era uma coisa projetada para frente que não tivesse nele; ele era muito ciente do que ele era e do que ele podia mexer...o projeto dele não é um projeto que não se realizou, o projeto de Petrô era ele mesmo. Ele era meu mestre, ele era um ator, uma pessoa muito provocadora, um Exu, um Ogun. O projeto dele era mexer com as coisas e ele se mexeu muito na vida; remexer, revirar as coisas pelo avesso, buscar essa Bahia es-condida...a história dele com o candomblé, com os mitos. Ele tinha muito vivo o mito dentro dele; o mito da existência, do renascimento, das coisas que não morrem, que ressuscitam, que se transformam, que transmutam. Ele era uma pessoa assim e ele fazia a gente entender essa dimensão...o projeto dele não é algo que iria acontecer, já estava acontecendo (MARIA EUGÊNCIA MILLET).

Então, Petrovich era um projeto que se renovava a cada instante, como o mo-

do de ser daquele que se lançava - um lançar-se como ação que, paradoxalmente, mantém

o sujeito atrelado às suas realizações. É interessante que esta forma de caminhar de Pe-

trovich era tão intensa que de forma flagrante se anunciava no seu contato com cada um

que dele se aproximava.

Entretanto, ao desejar conhecer o seu projeto, foram inúmeras as intervenções

que sinalizaram uma incoerência conceitual no sentido de que estaria eu, cometendo um

equívoco ao partir do que se considerava um a priori – atribuir um projeto a Petrovich.

Considero que tais questionamentos estavam orientados pelo pragmatismo das metas que

incluem uma concepção evolucionista de tempo. O tempo do projeto referido pela profes-

Page 146: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

145

sora Maria Eugência Millet é o tempo festivo que desmonta, regenera e faz renascer, por-

que movimento - aquele que não está colado ao seu desejo, o que lança, afinal?

Para melhor esclarecer as antinomias postas é interessante retomar o que vul-

garmente se tem disseminado como projeto. Freqüentemente reduzido a plano - conjunto

de objetivos, de metas, e de procedimentos – o projeto restringe-se ao âmbito das defini-

ções prévias com vistas a um fim determinado, como defende o discurso da "qualidade",

e em particular, da "qualidade total" (GENTILI; SILVA, 1995).

Nos enfoques pedagógicos instrucionais, esta crença se sustenta no pressupos-

to de que seguir um conjunto de regras determinadas facilita a aprendizagem do estudan-

te, ao tempo que oferece ao professor e à instituição o controle do processo, a partir de

um planejamento rígido e guiado por normas oficiais. Inspirada na racionalidade instru-

mental, tal crença aproxima-se do paradigma mercadológico e de ideais tecnocráticos,

criando a ilusão de um sistema seguro e didaticamente correto.

A obsessiva afirmação de leis que operam com a negligência dos sentidos,

evidencia um mundo estável que tem por princípio a linha contínua do tempo; tempo es-

tritamente linear e da história individual, que sustenta a idéia de um futuro previsível e

possível de ser controlado com uma razoável dose de certeza.

O projeto concebido nestas bases ignora a escuta atenta do mundo e limita-se

a re-assegurar o poder hegemônico, planificando a vida por antecipação e repetindo-a

tautologicamente. Este é o paradigma orientador do pensamento sério que recusa o diálo-

go com o riso, assegurando uma pedagogia normativa e incapacitada para o exercício da

autoderrisão. A crítica ao conhecimento através da ideologia do sério, portanto, mantém-

se restrita a uma retórica vazia e demasiadamente estável.

A contrapelo, o projeto de Petrovich é compreendido como tensão entre o

instituído e aquilo que se instituí como criação histórica - dinâmica aberta na direção de

Page 147: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

146

uma utopia e de um desejo que se atualizam na experiência - promovendo uma situação

comunicativa que, descentrada e errante, é capaz de renovar-se pelo riso. Trata-se de um

fazer que finca suas raízes no presente, num plano ético, político e esteticamente projeta-

do num mundo que não cessa de acontecer.

Esta historicidade imanente impossibilita-me pensar o educador Petrovich

como representação dissociada da inteireza do homem, se aquele que ruma para Ítaca61 é

o próprio sujeito da criação. Ítaca como meta, como objetivo que convoca para a viagem

é, antes, abertura e disposição daquele que se lança, ou como expresso pelo professor

Roberval Marinho, um não-lugar atrelado à vida-vivente:

...a meta está no processo da vida, se manter vivo e, portanto, não haveria esse ponto a chegar (ROBERVAL MARINHO).

Durante nosso encontro em 2004, conversei com Petrovich sobre meu projeto

de dissertação e sobre as dificuldades para me descentrar e me perceber de outros lugares

– naquele momento não conseguia escarnecer da minha dor diante das encruzilhadas nas

quais me encontrava. Fez, então, referências à viagem de Ulisses e a de Dom Quixote,

advertindo-me da necessidade de abandonarmos portos, bibliotecas e pai, quando não

mais nos submetemos à sua autoridade para, enfim, como aventureiros ou heróis nos lan-

çarmos aos mares, tendo sempre Ítaca em mente.

... numa jornada a gente tem que deixar a casa e geralmente a gente deixa a casa porque a gente transgrediu e não tem mais autoridade dentro da casa que a gente se submeta; a gente toma a autoridade sobre nós mesmos e parte (...). Agora vo-cê tem que ter objetivo porque só objetivo tem a magia de lhe levar na jornada. Nenhum indivíduo foi jamais em algum lugar sem um objetivo; nenhum herói civilizatório, nenhum deles; nenhum guerreiro foi para algum lugar sem saber para onde ia. Por quê? Porque o caminho é vivo e ele só vem para quem o dese-ja. Quando a gente deseja um caminho, a gente se projeta lá onde colocou o foco do nosso desejo. Você não é mais aqui, você está naquele espaço, você está na-quele tempo e aquele tempo nutre o seu desejo; ele arrasta para lá, porque lá vo-cê será outro, melhor, pior, depende de você; e lá você decide o que fazer. Por-que tem uma outra história para contar: a história da sua viagem (PETROVICH, 2004).

61 Terra natal de Ulisses e razão da sua viagem, narrada por Homero na Odisséia. Na conversa com Petro-vich, em 2004, a jornada deste herói foi muitas vezes referida.

Page 148: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

147

Mais uma vez, a viagem é abordada na perspectiva do projeto e do objetivo,

provocando reflexões acerca da idéia de tempo nela implicada. A projeção no sentido do

desejo e a maneira como o sujeito é enredado no caminho e no caminhar prescindem de

um algo que lhe seja exterior, remetendo-o à vida mesma: "o caminho é vivo", afirma

Petrovich. Nesta acepção, causalidade e linearidade temporal transmutam-se em aconte-

cimento, vinculando-se irremediavelmente à experiência enquanto vivência intersubjetiva

que se dá no instante.

Para Galeffi (2005, p.2), o instante é compreendido como "polijectivação" –

"movimento feito de subjetivação e de objetivação simultaneamente". Para o taoísmo,

dito de outra forma, o caminho é a um só tempo o caminhante e o caminhar (CHERNG,

2000). E ainda retomando o conceito benjaminiano de "origem" (BENJAMIN, 1984),

falaremos de um salto irredutível ao tempo cronológico da história oficial.

Assim, liberto da idéia desenvolvimentista, o projeto de Petrovich poderá ser

pensado como origem (Ursprung), e as suas realizações como mônada, onde está a totali-

dade do que foi e do que será. Cristalizadas em significações pelo alegorista, cuja tarefa é

naturalizar aquilo que é destino, tais realizações, como um Jano, volta uma face séria,

religiosa e oficial para o passado, reafirmando a ordem instituída; e a outra, face popular,

volta-se para o futuro e ri-se das ruínas do passado e do presente. O deus romano repre-

senta, assim, tudo o que abre e tudo que fecha

Esta é uma tentativa de compreender como o modelo racionalista da progres-

são temporal e do espaço definido no plano cartesiano, cedem ao páthos trágico da expe-

riência e a radicalidade daquele que se projeta sem âncoras – o sentimento de nostalgia

pelo passado e a esperança referida ao que virá, dão lugar à afirmação do instante, com

tudo o que ele comporta de alegria, de dor e de inacabamento. Mas Petrovich é um ho-

Page 149: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

148

mem e como tal não poucas vezes titubeou e cedeu diante do imperativo da morte de

Deus.

Em 2005, referiu-me que:

... o tempo verdadeiro é o tempo da vida, um tempo orgânico; o outro tempo, loucura: loucura no sentido de desequilibrar, mecanizar o ser humano (PETROVICH, 2005).

Mantendo uma relação de imanência com a vida, ele tecia seus projetos poeticamente na

práxis, como pode ser observado na fala do professor Roberval Marinho, que recorda as

longas conversa que tinha sobre o tema, com o amigo:

O projeto está na realização cotidiana e não distanciado; não é um ponto a che-gar e sim uma coisa para viver aqui e agora (...) isso ficou estritamente relacio-nado com não nos deixarmos imobilizar em momento algum: se o que pretendí-amos fazer nessa direção não deu certo, a gente desviava para fazer uma outra coisa (...), transferindo para a realização imediata, próxima do cotidiano. A rea-lização das coisas está no processo e não num ponto a chegar, não haveria esse ponto a chegar. A nossa idéia era não perder o passo com a vida. Toda a filoso-fia do candomblé é o sujeito permanecer na vida; isso daí casa com a questão da meta, a meta está no processo da vida, se manter vivo (ROBERVAL MARINHO).

É curiosa a observação de entrevistados como Sérgio Farias e Cleise Mendes

sobre a tônica das aulas de Petrovich. Ele, recorrentemente, inquiria seus estudantes sobre

o projeto que lhes animava62, conforme registra o primeiro:

"o que é que você veio fazer aqui? O que é que você quer? Qual o seu projeto de vida? Que roteiro você fez?" (SÉRGIO FARIAS)

O dar-se conta da viagem era provocação para o autoconhecimento e para o compromisso

com a vida-vivida /vida-vivente que se dá no encontro.

Em novembro de 2004, na busca de respostas, procurei Petrovich, argüindo- lhe

sobre os caminhos. Reconhecendo-se um ser de encruzilhadas, à semelhança de Exu, como

ele, um brincante, falou-me de algo que norteia a "trajetória dos seres que almejam pensar". E

sobre buscas, sobre Exu, sobre encruzilhadas e caminhos, acrescentou-me:

62 No sentido de alma, de vida e de páthos: Deus soprou nas narinas e animou o corpo feito de barro, con-forme o mito judaico-cristão.

Page 150: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

149

... ele é um dos primeiros atores do mundo, porque ele toma a figura , a forma e a máscara que ele quiser para se comunicar com os seres humanos, orientá-los e até de-sorientá-los. Porque a gente pensa que a desorientação nos perde; não, a desorientação é para nós tomarmos consciência, para nos orientar. Às vezes você se desorienta de um caminho que não vai lhe levar; aí você pára, se desorienta para poder se orientar; esse é o segredo do caos, porque o caos é uma coisa de Exu. (...) todos os mitos exis-tem para nos orientarmos; todas as histórias do mundo são para nós orientarmos nos-sas vidas, orientarmos nossa jornada e o nosso caminho (PETROVICH, 2004).

O caminho, portanto, torna-se labirinto, desorientação e caos. A jornada do

herói é incerta e plural, derivando perigo. Histórias e mitos orientam nossa caminhada.

Também o caos orienta o princípio carnavalesco da vida, antecedendo a instauração de

uma nova ordem.

A metáfora do labirinto é tipicamente barroca e pode ser encontrada em diver-

sas épocas, desde que aquilo que se denomina de barroco, como propõe Calabrese (1987)

seja, antes, atitude e qualidade.

O enigma do labirinto pode ser observado no filme O nome da rosa (O

NOME, 1986), homônimo do livro de Eco (2003), no qual mestre e discípulo perdem-se

nos corredores da biblioteca que escondem livros perigosos, num mosteiro beneditino do

século XIII. Procuram o II livro da Poética de Aristóteles que trata da comédia e, portan-

to, do riso, que pode afetar o espírito dos homens eruditos, como um poderoso pharma-

kós63. O riso é a chave do enigma. Discípulo e mestre, nos labirintos da biblioteca, inad-

vertidamente (?) separam- se e em seguida buscam se encontrar.

O primeiro prende um fio da sua túnica num ponto, e à medida que se desloca,

ele é quem se destece à procura do mestre. Este indica-lhe que leia um livro qualquer

para que possa rumar à direção do som da sua voz. O livro lido fala de paixão e de ero-

tismo. O páthos orienta a caminhada e o encontro. Ao ver o mestre, o discípulo de início

não o reconhece, assim como Telêmaco, filho de Ulisses, ao rever o pai logo que esse

retornou a Ítaca - cada um é outro. Também se assusta ao ver a própria imagem refletida

63 Veneno ou remédio, dependendo da dosagem ingerida.

Page 151: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

150

num espelho. No espelho está inscrito o enigma para acesso ao livro - conhecimento, riso

e verdade. Percorrer labirintos é o que nos torna inelutavelmente outro.

O caminhar para a verdade resulta em desorientação e na experiência especu-

lar do autoconhecimento, do "ser o que se é". A saída do labirinto é garantida pelo fio da

túnica, à semelhança de Teseu, o herói grego que matou o minotauro e conseguiu sair do

labirinto conduzido pelo fio que lhe fora dado pela princesa Ariadne. O mestre, por fim,

elogia a educação clássica do discípulo - o que lhes permitiu deixar a biblioteca. A edu-

cação clássica implica na renúncia pela busca e num sentido preciso de orientação.

Tanto o livro O nome da rosa (ECO, 2003) quanto o filme homônimo estão

repletos de signos referendados na cultura cômica popular. A minha escolha por descre-

ver cenas do filme foi provocada pelos estudos de Calabrese (1987). O autor faz distinção

entre o labirinto medieval como estrutura, adotado por Eco (2003), que tem como saída a

"...regra do virar sempre à direita em todo o cruzamento" (CALABRESE, 1987, p.148), e

o labirinto de Arnnaud (1986) que, inspirado na arquitetura das construções de Piranesi64

e nos desenhos de Escher65, apresenta um labirinto de planos múltiplos e de grande com-

plexidade, podendo-se nele reconhecer traços mais próximos da verdade no sentido grego

do termo, e do vigor do riso rabelaisiano. Esta concepção do labirinto pode ser observada,

também, no conceito de rizoma e de dobra de Gilles Deleuze, nos quais a regra citada por

Calabrese (1987) não se aplica, e cada ponto pode, livre e dinamicamente, ligar-se a um

outro, sem obedecer a uma conexão lógica, dobrando-se e desdobrando-se ao infinito.

O paradigma racionalista da educação clássica, referida pelo mestre, no filme,

faz alusão ao esquema lógico de classificações que lhes possibilita a saída. O páthos do

caminhar é cessado com a solução do mistério e, como diz Borges, citado por Calabrese

64 Arquiteto italiano do século XVIII. 65 Artista neerlandês do século XX.

Page 152: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

151

(1987, p. 155): "A solução do mistério é sempre inferior ao próprio mistério. O mistério é

o que tem a ver diretamente com o divino; a solução, com um truque de prestidigitador".

O que se chama de educação clássica, então, é aquela que dá ao homem a ilu-

são de escolhas e saídas seguras diante de labirintos e encruzilhadas. Nietzsche critica-a

ferozmente quando, em Zaratustra (2003, p.85), pensa naquele que seria o seu leitor per-

feito: "... um monstro de coragem e de curiosidade, e também um algo dúctil, astuto, cau-

teloso, um aventureiro e descobridor nato". Decerto, o seu herói está mais próximo de

Ulisses que propriamente de Teseu. Diz ele:

A vós, intrépidos buscadores e tentadores de mundos por descobrir, e quem quer que algum dia, com astuciosas velas, se embarcasse para ma-res temerosos – A vós, os ébrios de enigmas, os amigos do lusco-fusco, cuja alma é atraída com flautas para todo enganoso sorvedouro, pois não quereis, apalpando-o com mão covarde, seguir um fio que vos guie e, onde podeis adivinhar, detestais inferir... (NIETZSCHE, 2003, p. 191).

Como Eco (2003), Exu desorienta, promovendo um vagabundear e um senti-

mento de desorientação que pode ser pensado na dimensão do autoconhecimento e do

saber aberto e interdisciplinar - faz-me pensar o tipo de educação que praticamos em

tempos pós-modernos quando ao se instalar a dúvida nos aferramos aos fios e, contradito-

riamente, defendemos o discurso da transdisicplinaridade.

Os requisitos do labirinto – a ausência de referências, o movimento, o perder-

se, o desejo, o caos, o ser outro – são o ensinamento de Petrovich sobre caminhos e cami-

nhar. Substituindo o fio de Ariadne, opção de "mãos covardes" e "um truque de prestidi-

gitador", nas perspectivas de Nietzsche (2003, p.191) e de Borges (1999 apud

CALABRESE, 1987, p. 155), respectivamente, por mitos e histórias, o educador, como

um velho griô, também convoca para o mistério - lição difícil para aqueles que buscam,

na sua fala, saídas seguras.

Page 153: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

152

Em lugar do fio que suprime o livre-arbítrio, considerando seu caráter de de-

terminismo e de reversibilidade, características da ciência e da educação clássicas, o labi-

rinto petrovichiano enseja a possibilidade da saída enquanto evento que resulta na liber-

dade de escolha dos caminhos. Em nenhum momento, ele desdenha da ordem pressuposta

no caos, mas tal ordem, vale reafirmar, será sempre acontecimento e livre vontade. Para

suportar a desorientação e o caos, apenas a arte e o riso.

É curioso observar, entretanto, que ao falar de encruzilhadas o educador faz

referência a um algo que se apresenta como "... uma luz para ir e voltar ... uma metáfora

ou fio de Ariadne...", procurando, em seguida, situar o labirinto. No momento em que lhe

disse sentir-me perdida, referiu-me:

Porque na realidade o mundo em que a gente se perde não é o mundo dentro da concretude do cotidiano, a gente se perde no mundo interno da gente. Então esse mundo interno, no meu entender, ele é mítico, e a cada instante a gente está gi-rando dentro de um mito. Nessa conversa que nós tivemos aqui, vários mitos passaram, entramos e saímos de cada mito. Como a gente não estava se dando conta que estava dentro dos mitos, a gente abria as portas, batia às portas e ia pa-ra outros; ia passando de tempos em tempos, de espaço em espaço, dentro de mi-tos; quer dizer: no meu entender, precisas apenas saber que mitos estais vivendo a cada instante...(PETROVICH, 2004).

A atualização do mito transmuta em interconexões o fio único da ciência clás-

sica, pois ainda que a alusão a Ariadne seja clara, os caminhos e o caminhar são coloca-

dos na ordem da mitopoética e da representação caleidoscópica. A referência ao fio pode

ser compreendida na perspectiva do apolíneo, da medida e da forma que constituem o

supremo esforço da individuação que poupa o ser do mergulho dilacerante no caos das

paixões, rumo à indeterminação e à morte.

O que se tem, portanto, é um projeto como vontade de criação e autopoiésis

que, através do jogo do perder-se-encontrar-se, re-vela a ambigüidade do labirinto e

precipita para o mistério que põe o Ser em questão, possível apenas na perspectiva do

encontro.

Page 154: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

153

A referência que faz à necessidade de não perdermos de vista a meta/objetivo,

retorna sob a forma de intencionalidade enquanto abertura e disposição, e de uma forte intui-

ção anterior ao juízo reflexivo. Em 2004, já com a visão diminuída pela diabetes, necessitava

de ajuda para se deslocar e para atividades de leitura. Nas oportunidades que estivemos juntos

ria, brincava, mas não poucas vezes observei-o silencioso e atento. Sobre sua participação em

debates, afirmei, em tom de pilhéria, que o percebia enxergando muito mais que antes. Res-

pondeu-me:

Tem horas que eu não me sinto enxergando; eu sinto as coisas se mostrando. É como se eu tivesse perdido o querer ver (...) É como se em determinadas circunstâncias, as coisas viessem ... mas para isso precisa um estímulo (PETROVICH, 2004).

Para ele o estímulo é a meta, e esta, o páthos que o convoca e projeta. Naquele momento sen-

tia-se convocado pelas questões que eu lhe trazia; a provocação era o encontro.

A referência que faz acerca da renúncia do "querer ver" remete-me mais uma

vez às Ruínas Circulares de Jorge Luis Borges (2006), quando o homem sonha apenas no

momento que abandona a intenção de sonhar – "Abandonó toda premeditación de soñar y

casi acto continuo logró dormir in trecho razonable del día. (...) Casi inmediatamente,

soñó con in corazón que latia". Neste caso, a intenção tem o sentido de vontade delibera-

da que rouba a possibilidade de abertura do "Ser-para". Ou ainda, refere-se a um objetivo

que preexiste a viagem e ao viajante; talvez por isso o sonhador de Borges refira-se a esta

vontade como delírio. Quando abdica do querer ver, Petrovich abandona-se ao "ser aqui-

lo que se é", e o que se é para ele estava na relação entre uma mente alerta e alegre, e o

riso, como me referiu, ainda em 2004:

Não precisa guardar a vida na mente; a mente tem que ser aberta para ter alegria, felicidade e ser o canal de tudo. Uma mente vazia todo o universo passa pelos seus olhos, pela sua boca; e é como os poetas cantam seu compromisso. (...) o segredo é quando você vê uma coisa linda e diz para a platéia: "eu tenho dificul-dade de falar", e ri, "porque eu estou vendo uma coisa tão bonita...". Ri porque não consegue dizer, ri porque não consegue falar, ri porque fica vazio. Porque quando você pega uma criança vazia ela ri, ela dança, ela é maravilhosa (PETROVICH, 2004).

Page 155: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

154

Unidade 2ª - A carnavalização da vida

Petrovich me conduz por caminhos de alegria através dos labirintos que per-

correu. Tento, então, compreender o sentido do encontro na sua jornada.

Acerca do nosso encontro, quando ainda não nos sabíamos im(pli)cados nesta

pesquisa, disse-me ele:

Esse ato aqui, é um ato de estética e de beleza absoluta, porque você é uma mu-lher com uma capacidade intelectual, sensível e estética deslumbrante. A minha mente está feliz (PETROVICH, 2004).

O dispor-se para o encontro é a razão da viagem. O abrir-se ao outro é o que lhe motivava

caminhar. Os caminhos da alegria são irremediavelmente caminhos compartilhados.

Companheiros de jornada, Vanda Machado se refere ao encontro como princípio do edu-

car petrovichano:

Ele tinha algumas idéias básicas para o trabalho dele. Ele era um leitor de Hei-degger, de Brecht, do teatro da transformação, do formar para ser; mas na ver-dade era tudo acúmulo de um tempo vivido, de uma experiência...ele tinha prin-cípios básicos; princípio básico de educar, de formar o sujeito para estar com o outro, para ser com o outro, para construir com o outro; educar para o diálogo, educar para falar. (...) ele defendia essa convivência como desejo (VANDA MACHADO).

Numa análise sobre o diálogo do ponto de vista bakhtiniano, Amorim (2001),

acerca da estética carnavalesca, afirma que esta dissipa as tensões que permitem a alteri-

dade, rebordando numa fusão ou metamorfose na qual tudo se torna Um e as identidades

se diluem no todo. Enquanto no dialogismo as diferenças se mantêm, caracterizando o eu

como distinto do outro, no carnaval ambos tornam-se apenas Um e, portanto, o outro

para o eu é o si mesmo. De acordo com a autora, "O carnaval realiza plenamente o que o

dialogismo apenas evoca sem poder concretizar" (AMORIM, 2001, p.173).

No discurso carnavalesco nada se fixa; existe apenas o fluxo incessante da

história destino que degrada e restaura, apontando para um outro tipo de alteridade: aque-

Page 156: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

155

la que se estabelece com o universal, o cósmico; e neste sentido, a metamorfose dá-se não

entre os homens, apenas, mas com o "outro do homem".

O contato familiar da praça pública aponta para além do encontro, diz a autora

citada; o cortejo de Dionísio destrói o palco e faz a festa do tempo. O riso medieval e

renascentista descrito por Rabelais (BAKHTIN, 1999), contudo, é aquele que se mantém

no diálogo permanente com o pensamento sério: um sério que, como já referido, participa

da dança do universo; é aberto porque se sabe efêmero e dispõe-se à transformação – este

sério não dogmático encontra expressão na cultura cômica popular, assim como na radi-

calidade dos discursos filosóficos e da ciência (e que não se confunda este com o discurso

científico). A festa rabelaisiana é a um só tempo celebração e abolição da diferença.

Análise semelhante faz a professora Cleise Mendes ao atribuir caráter apolí-

neo às realizações de Petrovich. A grande questão encontra-se, portanto, no unilateralis-

mo que mata a intensidade dos encontros em nome do conhecimento que não acolhe a

verdade que ri – "E digamos falsa toda verdade que não teve, a acompanhá-la, nem uma

risada!66", disse Zaratustra (NIETZSCHE, 2003, p.251).

É interessante observarmos que a palavra encontrar (incontrãre, de in+contra)

teve ao longo dos tempos seu sentido derivado para algo que se aproxima da conciliação

pacífica entre os seres, denotando a perda do seu significado etimológico. Entretanto,

remetendo à sua origem, a palavra encontro é: achado, embate, choque, colisão, briga,

duelo, disputa, objeção, cruzamento (BUENO, 1968, p. 1105). Donde podemos dizer que

todo encontro engendra tensão, pois necessariamente é descoberta dos diferentes. Inspi-

rado pelo texto heracliteano – “O contrário é convergente e dos divergentes, a mais bela

harmonia” , Galeffi escreve:

66 Existem inúmeras referências ao riso nos textos de Nietzsche, especialmente na "Gaia Ciência", segundo Alberti (2002). Zaratustra é um homem que ri.

Page 157: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

156

O pólemos, neste sentido, é o modo como tudo acontece em seu aparecer e desaparecer, em seu ser-fenômeno: a luta imperante dos opostos na perpetuação do movimento-vida-geradora de tudo o que é e de tudo o que não é. Pólemos é o mesmo que causação. Ora, tudo o que é causado é fruto da “discórdia” e da “necessidade”. A discórdia, assim, é um vetor da justiça, pois só pela causação surge a necessidade, e esta reclama para si uma medida justa, um ajustamento, um ajuntamento, uma reunião de opostos inseparáveis e complementares. Deste modo, o pólemos é sempre uma condição de origem, uma ruptura, uma causação, um acontecimento imperante (GALEFFI, 2005).

Mas como na visão de Petrovich, caminhamos e encontramos para celebrar, e toda

celebração (clebrãre) é ajuntamento - freqüentar em grande número um lugar ou uma pessoa;

assistir (uma multidão) a uma festa; festejar; espalhar por grande número de pessoas; publicar;

dar a conhecer (MACHADO, 1967, p. 582) – a festa é por excelência o lugar do encontro, da

celebração, do anúncio e experiência do diverso. Festa é pólemos.

No projeto de Petrovich, a professora Maria Eugênia Millet reconhece o caráter

festivo e universal:

Um projeto muito perto da celebração, da festa, da alegria, do texto que brinca, do humano; essa dimensão é do humano, é da crítica. Eu acho que Petrô era uma pessoa muito crítica, olhava muito fundo nas coisas; queria saber das coisas; in-teressava-se em saber como é que você está, a sua vida, a dimensão do humano, de saber quem é você, o que você pretende, como é que você pensa o mundo. (...) Isso implica numa questão comunitária; como podemos estar mais juntos na vida, na festa, celebrando; compartilhar com a diversidade, com a escolha de ca-da um; compartilhar esses tempos, esses momentos. Ele se dava muito bem com gente jovem. Uma pessoa que gostava de viver e tinha compromisso com a vida e no que ela pode ser bela, e ela só pode ser bela se for compartilhada (...) ele era sempre ele e os personagens estavam ali naquele corpo que podia ser tudo. Um bom ator é isso, tem um centro muito forte e reconhece esse seu centro e pode ultrapassar esse centro. Mas o centro tem que estar ali; e ele tinha muita consci-ência do que ele era (MARIA EUGÊNCIA MILLET).

As festividades medievais e renascentistas eram veículos consagrados dos fins

superiores da existência humana. Durante os períodos em que ocorriam, o tempo natural

(cósmico) possibilitava a vivência dos opostos num movimento de alternância e de renovação:

coexistiam vida e morte; política e poética; a cidade e o campo; o alto e o baixo; passado, pre-

sente e futuro. Expressava-se uma concepção de mundo avessa ao tom oficial, liberando o

homem da verdade dominante. O contato livre e familiar, resultante da eliminação provisória

Page 158: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

157

das hierarquias, criava uma ambiência de fraternidade, não experimentada na vida cotidiana.

"A alienação desaparecia provisoriamente. O homem tornava a si mesmo e sentia-se um ser

humano entre seus semelhantes" (BAKHTIN, 1999, p. 9). As festas oficiais, regidas pela ideo-

logia da seriedade, contrariamente, primavam pela consagração da ordem vigente, pela verda-

de única e a-histórica; era o reforço das fronteiras hierárquicas e das convenções sociais.

Nos terreiros de candomblé, território no qual o povo do Axé celebra a vida e

os Orixás, a festa é princípio. Reafirma-se a existência através da alegria, da dança, da

comida, da bebida, do amor, de acordo com o professor Roberval Marinho, pois se sabe

que em breve todos retornarão ao colo da mãe terra, conduzidos pelo Orixá Icú (a morte),

encarregado de fazer a devolução. A vida é, assim, celebrada no instante, pois o único

movimento além deste é o do retorno ao berço ancestral. E já não me parece necessário

retomar a relação de Petrovich com o candomblé, já que era Ogam do Afonjá, e isto signi-

fica ser um iniciado responsável por obrigações espirituais.

Estes registros são importantes para pensarmos a educação dos pontos de vista

oficial e carnavalesco. As palavras da professora Maria Eugênia Millet, fazem-me recordar o

modo de vida do povo de Télema – em grego, liberdade - abadia construída por Gargântua e

pelo Frei Jean, descrita no livro Gargântua (RABELAIS, 1966). O autor narra a história de

educação desta personagem e seu estilo de vida, que incorpora a erudição e o prazer.

A abadia de Télema, ou a utopia de uma educação e de uma vida libertária, tem

para Rabelais (1966), retratada na figura de Gargântua, a liberdade por princípio: "Assim esta-

belecera Gargântua. Todo o seu sistema se resumia nesta cláusula: FAZE O QUE

QUISERES" (RABELAIS, 1966, p. 323). Ele acreditava que quando o homem é livre e ins-

truído à convivência com pessoas honestas, tal instrução o conduzirá à virtude e à honra, des-

pertando-o para a vida coletiva e fraterna. Para Marrach (1998), Rabelais sinaliza com os seus

Page 159: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

158

Gargântua e Pantagruel67a nova ordem renascentista, colocando questões que ressoam na

contemporaneidade: "a da razão libertadora e a da finalidade social do saber" (MARRACH,

1998, p. 34). E não eram estas, também, questões de Petrovich?

Pela via do encontro, contudo, Petrovich buscava a sua própria alma. E

por saber-se um ser de relação, "ser-no-mundo", buscava-se irremediavelmente nos cor-

pos alheios, como dizia olhando diretamente para a câmera, em 1997:

(...) eu acho que sou um canal e tenho como missão encontrar a minha alma nos ou-tros. E cada pessoa que for encontrando a sua alma eu sei que vou encontrar a minha alma (PETROVICH, 1997) .

Unidade 3ª - A Télema no Pelourinho

É instigador pensar o paradoxo de um projeto telemático no pelourinho. Mas,

afinal, não foi sempre em pelourinhos que surgiram os cantos de liberdade?

Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós! Das lutas na tempestade Dá que ouçamos tua voz68

Como Gargântua, Zumbi dos Palmares, Nelson Mandela e também Neguinho do

Samba sonharam com liberdade. A Didá nasceu de um sonho deste último, criador do samba

reggae. Seu desejo era um espaço onde as mulheres pudessem, através da música e do tambor,

ressignificar valores esquecidos no mundo contemporâneo. São mulheres pobres, negras da

área do Pelourinho - Centro Histórico de Salvador - e adjacências, onde o músico foi criado

pela mãe lavadeira que lhe inspirou a transformação da bacia em tambor.

67 Também um livro de Rabelais. Pantagruel é filho de Gargântua e recebe deste a incumbência de continu-ar a sua obra. 68 Hino à Proclamação da República do Brasil.

Page 160: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

159

Para Vivian Queiroz, presidente da ONG, educadora, hoje estudante de jornalismo

da UFBA, e instrumentista da Banda Didá, uma das primeiras a freqüentar a Escola, havia

semelhanças entre os mestres:

Ele (Petrovich) e Neguinho se pareciam muito nisso (referindo-se à liberdade para criação)... eles são muito impulsivos; tanto que vinha uma idéia, Petrô começava, Ne-guinho ia e quando a gente via, um super espetáculo na cabeça deles montado (VIVIAN QUEIROZ).

É bastante esclarecedor o depoimento da estudante de teatro Iara Colina que parti-

cipou da ACC - Griô Kiodê. Registra suas impressões sobre a dinâmica na Didá num relatório

final da disciplina, em 2002:

Assim vi que a Didá se propõe muito mais que ensinar mulheres e meninas a tocar percussão (o que já não seria pouco); vi que o objetivo é educar de uma forma ampla, ajudando a formar cidadãos conscientes e ressaltando o papel da mulher negra nesta sociedade. Vi aulas de inglês, aluas de computação, aulas de dança e de teatro. Vi meninas e meninos, moças e rapazes, e mães que freqüentam as aulas, assimilam novos conteúdos, adquirem consciência da beleza de serem quem são e como são. Vi que existe uma lógica familiar de cuidado, carinho e autoridade no tratar com essas pessoas; cuidado que vai desde a oferta dessas aulas e alimentação enquanto estão na Escola, até a pos-sibilidade de discussão sobre a metodologia utilizada (COLINA, 2002).

Terreno fértil para contar histórias com alegria, a Didá possibilitou a Petrovich

vivenciar mais intensamente, nos últimos anos da sua vida, o seu sonho de educação, como

descrito pela professora Maria Eugênia Millet.

À época, também estudante da Escola de Teatro, Merry Batista narrou-me o que

chamaram de Jornadas de Estudos, nas quais reuniam os integrantes da Didá para problemati-

zar suas relações e dificuldades, a fim de buscarem soluções coletivas. Desses encontros nas-

ceu a "família malungo". Surgiram, também, os espetáculos teatrais que recriavam as vidas de

Neguinho do Samba, de Zumbi dos Palmares e da escrava Anastácia, símbolo da Didá; além

do Natal Negro.

No primeiro caso, as pessoas eram instigadas a formar famílias a partir do

desejo de constituição ou de estreitamento de laços afetivos. Petrovich inspirou-se nas

Page 161: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

160

famílias que os negros africanos formavam como estratégia para sobreviver à brutalidade

da escravidão; organização igualmente encontrada nos quilombos. O objetivo era garantir

a sobrevivência do grupo, fortalecido por vínculos sócio-afetivos. Princípio semelhante é

observado no terreiro de candomblé, como relatado por Vanda Machado:

E essas famílias se escolhem... como no candomblé: eu tenho uma filha que é mais velha do que eu; eu tenho irmãs mais velhas do que eu; eu tenho irmãs mais velhas que são mais novas do que eu... Na família Yorubana todos os mais velhos são pais, todas as mais velhas são mães e todos irmãos mais ve-lhos cuidam dos mais novos (não necessariamente ligados por laços de sangue) – (VANDA MACHADO).

Na família Didá, as conversas e trabalhos partiam de questões do cotidiano que

eram levadas à roda. E na roda, assim como aconteceu durante a entrevista coletiva que reali-

zamos, contavam-se histórias, desenvolvia-se alguma atividade manual, ria-se muito, cantava-

se em Yorubá. Neste clima de celebração e encontro, Petrovich ajudava o grupo a buscar pos-

sibilidades de con-vivências mais solidárias e fraternais, atualizando o sonho palmarino, con-

forme relato de Vanda Machado:

Era sempre alguma coisa que era emblemática no funcionamento da Didá. A família mucambo tinha como função precípua a solidariedade, o cuidar do ou-tro, fazer com que o outro estivesse bem, dar o que o outro não tem; uma espé-cie de troca. Construir juntos essa escolha de ajudar assim, de juntar... (VANDA MACHADO).

Sobre a formação das famílias, emocionada, a jovem Fátima, na roda de entrevis-

ta, recorda:

O que mais me marcava em seu Petrô é a criação das famílias. Você tem amigas, tem colegas, mas uma pessoa dizer assim: "vamos fazer uma família com as pessoas..." Ser uma família é muito forte. É muito forte você chamar e dizer "vamos ser uma fa-mília". Quer dizer o quê: compartilhar o respeito, o carinho, o amor. Isso a gente só acha que tem em casa (FÁTIMA).

As "famílias malungo" resgatavam laços afetivos muitas vezes inexistentes nas

famílias de origem das crianças e jovens da Didá. Diluíam as fronteiras que socialmente deli-

Page 162: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

161

mitam os clusters legitimados, fazendo-se reconhecer a possibilidade de vínculos entre o que

temos de verdadeiramente humano.

Petrovich era bastante rigoroso quanto ao compromisso que se estabelecia, não

tolerando faltas que negligenciassem o outro da relação – irritava-se, brigava e teatralmente

ameaçava ir-se embora. Todos estavam irremediavelmente ligados pelo fazer-junto, e ainda

que pareça um contra-senso, experimentavam uma assustadora liberdade.

Para encenação da peça Zumbi dos Palmares, convocados pela organização fami-

liar dos mocambos e pelo trabalho coletivo, realizaram uma extensa pesquisa e atividades,

envolvendo todos os participantes do Griô Kaiodê. Os textos encenados eram coletivamente

construídos, assim como o cenário, adereços e vestuário.

É necessário retomar, aqui, a perspectiva libertária e emancipatória citada por

Petrovich, num trecho anterior –

... numa jornada a gente tem que deixar a casa e geralmente a gente deixa a casa porque a gente transgrediu e não tem mais autoridade dentro da casa que a gente se submeta; a gente toma a autoridade sobre nós mesmos e parte (PETROVICH, 2004).

Ora, pois, parece-me que o professor trata a liberdade como possibilidade de escolha dos

caminhos, como autogoverno para decidir os rumos da viagem, conforme pode ser obser-

vado na narrativa de Vivian Queiroz:

Era sempre um processo livre. Quando a gente fez o Natal Negro eu achei que ele chegaria com o texto, mas não.... tudo se construía num clima de absoluta li-berdade e as coisas iam tomando seu lugar, se organizando, e ele confiava nas pessoas. A idéia é essa: um flash de idéias perdido no universo que a gente cap-tava; era uma liberdade tamanha que você se assustava; como é que pode ir tão longe? A gente fazia coisa que nunca imaginava fazer, de repente era tudo muito natural (VIVIAN QUEIROZ).

A experiência do "FAZE O QUE QUISERES" (RABELAIS, 1966, p. 323) assus-

tava Vivian Queiroz uma vez que a trama textual se constituía na medida em que cada partici-

pante do grupo precipitava-se sem a certeza do que viria; a meta como projeto coletivo, entre-

tanto, não era abandonada. Nesse processo, a alteridade e a solidariedade prevaleciam como

Page 163: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

162

organizadoras do drama a ser encenado. Petrovich amorosamente abdicava da tutela, incitando

a criação livre e responsável sem, contudo, abandonar o lugar do diretor na transposição cêni-

ca do texto e nos arranjos técnicos necessários à montagem do espetáculo. O respeito ao outro

e o compromisso com o fazer-junto eram soberanos.

Os encontros, obviamente, eram tensos. Aos domingos, dia sagrado de trabalho

com a Didá, para ele, era dia de praia e de passeio com o namorado para as jovens. Carla conta

sobre os ensaios que realizavam nesses dias; Vivian Queiroz e Neguinho do Samba, respecti-

vamente, complementam:

Eu me lembro que quando a gente ensaiava a peça Zumbi dos Palmares... a gen-te queria se divertir, passear, ir à praia... quando a gente chegava aqui todo mun-do de cara feia; quando via Petrô era abraço, beijo, aí todo mundo ficava feliz da vida porque Petrô estava aqui... agradecia pelo espetáculo... (... ) ... ele fazia as pessoas amarem ele. Ele tinha uma coisa de tratar bem, de cuidar e de zelar, de comunicar, de formar, de brigar diretamente e não mandar recado (VIVIAN QUEIROZ). Ele fazia pressão e depois tudo acontecia. Ele tinha todas as manhas de agra-dar, de deixar você bem... (NEGUINHO DO SAMBA).

O afeto e o encontro, ou o encontro afetivo (o que parece sempre tautológico na

medida que todo encontro é páthos) prevalecia. Petrovich, atento, cuidava para que todos se

descobrissem belos e capazes. Nas duas oportunidades que estivemos juntos, tratando sobre o

riso e a educação, narrou-me emocionado a história de Débora, o seu processo de autodesco-

berta e de autorealização, e a maneira afirmativa com que passou a se colocar na vida. A histó-

ria sobre a nova Débora era também referida por todos os que a conheciam e se surpreendiam

com as suas conquistas; inclusive por ela própria e por Vivian Queiroz:

Eu descobri através de Petrô uma coisa que ele sempre me dizia: que eu era ca-paz. Eu achava que não... uma coisa que me surpreendia nele aqui era ele achar que todo mundo brilha, achar que todo mundo ama; mas era algo muito especial o que ele tinha por mim. Eu podia fazer coisas que eu sabia estarem erradas, mas para Petrô eu sempre estava certa, eu sempre estava bonita... a confiança que ele tinha em mim, que eu podia, que eu seria tudo que eu quisesse... tudo que tinha responsabilidade ele me encaixava porque ele achava que eu era capaz (DÉBO-RA DE SOUZA). ... uma vez a gente viajou e Débora ficou aqui na Didá, não sei o que aconteceu, era um problema grave, aí Débora correu lá no Pelourinho Dia e Noite, resolveu

Page 164: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

163

tudo com Tânia Simões; sei que quando ela contou já tinha resolvido e quando contou a Petrô ele ficou radiante (VÍVIAN QUEIROZ).

A autoconfiança da jovem estava na provocação para que fosse quem quisesse

ser. Petrovich ainda instigava: podiam muito mais do que se permitiam ou imaginavam. É

interessante lembrar que Didá significa poder da criação, em Yorubá, e o seu símbolo é a

escrava Anastácia, a bela negra que tendo despertado o desejo do Senhor e os ciúmes da

Senhora, viveu por anos com uma mordaça de ferro, só retirada para as refeições, até

próximo da sua morte. Entretanto, Anastácia denunciou através da resistência e da luta, a

dor e o heroísmo do seu povo. Esta história tem sido recontada pela Didá repetidas vezes.

Revivendo Anastácia, Zumbi dos Palmares e Neguinho do Samba, as mulheres descobri-

ram-se também guerreiras. Tais referências estavam na fala daquelas que participaram da

entrevista, sem distinção de idade. Todas que realizaram os espetáculos descobriram-se

dramaturgas, cenógrafas e atrizes:

Vanda contava sobre histórias da África, sobre os mitos, e o Petrô criava pe-ças; ele me colocou pra fazer coisas, mas sem o Petrô e sem a Vanda eu não faria o que fiz... eu toco, eu ensaio, mas atriz fica difícil, é interpretação é você tirar de dentro do seu eu... (ADRIANA PORTELA)69. Petrô ele fez as meninas se soltarem. Eu não gostava de teatro, eu não con-seguia fazer, eu não conseguia dar uma palavra no teatro; hoje eu tenho peça de teatro, hoje eu faço teatro, hoje eu chego na frente do palco... (ROSALINA NASCIMENTO). ... e é isso: você descobrir potencialidades que estão ali dormindo e ter opor-tunidade para aparecer (VIVIAN QUEIROZ). Petrô sempre me deu confiança. Teve uma vez que a gente tava ensaiando uma peça e eu tava sempre errando e ele dizia: "não pare, continue; se esse é seu sonho, vá em frente" (PAULA).

Entre conflitos e afagos, na Didá Escola de Música tudo acontecia em clima de

muita alegria e festa, terminando em banquete (este ritual eu já observara quando conheci a

Didá, em 1999, portanto, anterior à presença de Petrovich). A comida para o Ogan Petrovich

69 Adriana Portela hoje é estudante de jornalismo na UFBA; refere ter recebido grande incentivo de Petro-vich.

Page 165: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

164

era ingrediente fundamental: no terreiro do Afonjá, como relata o professor Roberval Marinho,

referindo-se à fartura da feira e do mercado para as reuniões sagradas; e na Didá, sem bem se

darem conta de como o alimento surgia, visto que esta é uma Organização Não-

Governamental, que vive com recursos muito restritos.

O banquete, imagem por excelência da cultura cômica popular, como já referido, é

o lugar da abundância e da renovação: engole-se o mundo, destruindo-o, para renová-lo. Gar-

gântua (RABELAIS, 1966, p.54) ao nascer exclamou em voz alta: "Beber! Beber! Beber!".

Toda sua trajetória burlesca é comer, beber e satisfazer funções vesicais e intestinas. No pró-

logo, Rabelais dedica seu livro a Alcebíades que em O Banquete, escrito por Platão, louva seu

mestre Sócrates. Em verdade, esta é uma auto-homenagem na medida em que compara o filo-

sofo de características grotescas e espírito agudo com a história que será contada - produção

que, segundo o narrador, cheira mais a vinho que ao azeite. Presidido por Dionísio, o banquete

era visto como lugar de expressão de "uma verdade interiormente livre, alegre e materialista"

(BAKHTIN, 1999, p.249), onde todos celebravam o trabalho coletivo.

Apreciação semelhante à de Bakhtin (1999), faz Maffesoli (1985) ao falar da mesa

como território de passagem da "natureza" à "cultura", tendo Dionísio como o grande media-

dor. Na ebulição da festa e do banquete faz-se o próprio homem ou o próprio do homem. E

assim acontecia, ao se encerrarem as atividades na Didá.

E como na festa princípio e fim são o mesmo, tudo começava numa roda - forma-

ção onde todos mantêm a mesma distância do centro e podem ver-se igualmente. Uma roda

onde princípio e fim encontram-se para que a conversa circule em liberdade. Vanda Machado,

ainda, registra a relação solidária suscitada por esta conformação, incorporada pela Didá:

A referência do círculo, eu acho que ela se torna cada vez mais forte e a Didá fez com que a gente pudesse transladar todos os princípios, todas as possibilidades do pensa-mento africano (...) A roda de conversa na Didá tinha que agregar todas as pessoas presentes... (VANDA MACHADO).

Page 166: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

165

A opção para estar e fazer juntos incitava questões sobre a forma de se achegar ao

outro, que muitas vezes possuía códigos lingüísticos tão diversos. No encontro que tivemos

em 2005, Petrovich falou-me sobre uma atividade que costumava realizar com seus estudan-

tes, estimulando-os a criarem histórias e a si mesmos, a partir de uma perspectiva própria e

apropriada:

"Quero que mostrem uma história na linguagem que vocês quiserem". Eu aí estou mergulhando na liberdade de escolha: como falar, como dizer, como contagiar, como inventar música e dança; o que eles quiserem porque a gente sempre sub-valoriza a cultura dos seres humanos. Nós não temos que ensinar cultura, nós temos que partir da cultura; eu só dou uma estrutura do que eles têm de fazer; eles vão integrar todas as informações, todas as palavras e vão dar vida. A gente não faz as pessoas criarem a sua vida e a sua alma, a gente rouba a alma das pessoas, a gente destrói a história das pessoas porque a gente não possibilita que as pessoas criem as suas histó-rias...(PETROVICH, 2005)

Na sua fala, a palavra de ordem é liberdade. Demonstra um profundo respeito pela

alteridade e, podemos inferir, uma importante crítica à educação oficial que, segundo ele, sub-

trai do outro a sua cultura, a sua alma e a sua história. Mostrava-se autovigilante quanto ao

cuidado para não se deixar seduzir pelo gozo que o poder instituído sinalizava, nas práticas de

silenciamento das diferenças. Por isso a criação e cont'ação de histórias que partiam do coti-

diano dos grupos era princípio nos trabalhos que realizava; o teatro, outrossim, possibilitava-

lhe a maestria para dar vida aos textos que nasciam dos "encontros pedagógicos".

Além da experiência como professor da Escola de Teatro da UFBA e com a Didá

Escola de Música, foram relevantes, também, a participação nos eventos das Tribos Jovens70,

em Porto Seguro- Bahia; a vivência no Ilê Axé Opô Afonjá, projeto Ire Ayó: caminho da ale-

gria; neste terreiro criou, ainda, a Associação dos Jovens do Afonjá (AJA). Estes foram alguns

dentre inúmeros trabalhos que realizou durante a sua vida, voltados para o teatro e para a edu-

cação. Em cada um deles, ao lado de Vanda Machado, exercitava a escuta e o respeito ao ou-

tro, sem distinção de idade, conforme relata esta pesquisadora:

70 Promoção do Instituto das Tribos Jovens. Tais encontros congregavam jovens da rede pública de ensino e da tribo Pataxós.

Page 167: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

166

(...) Uma forma de pensar a educação, brincante e extremamente séria. Porque ele não tinha um jeito de falar isso com as crianças, a não ser fazendo com que elas criassem os seus próprios diálogos para convivência. (...). Neste sentido se-ria muito difícil para ele falar para as crianças de convivência, desse autoconhe-cimento, dessa possibilidade de achegar-se ao outro se não fosse a partir da fala da própria criança; portanto, ludicamente, brincantemente (VANDA MACHADO).

Como a Didá foi a última radical experiência que viveu, ressalvando-se o espetá-

culo Salvador em Salvador, era recorrente referir-se às atividades que lá desenvolviam. Brin-

cantemente, coletivamente, livremente, eram construídos os textos e resolvidos os problemas

na Didá. Como o dinheiro era curto para montagem dos cenários, tudo era realizado com von-

tade e imaginação. Para o Tal de Dom Quixote, sonhar e imaginar não eram problemas. No

momento de aglutinar pessoas para o trabalho, Antônio Conselheiro arrastava multidões. Afi-

nal, Ogum ia à frente abrindo os caminhos. Tudo com muita alegria e histórias, ressaltava o

griô, acompanhado pelo bufão que instalava o clima festivo, convidado pelo poeta Gregório

de Matos. Muito sério, Petrovich, coordenava as ações do grupo, talvez inspirado pela austeri-

dade de Dom Luís. Vivian Queiroz relembra:

... como a gente não tinha patrocínio, a gente acabava construindo tudo: cenário, figu-rino... ele não enxergava nada, mas via tudo... quando ele se danava era feio... a liber-dade de espaço era prioridade...(VÍVIAN QUEIROZ)

Sobre a imaginação do velho mestre Rafael Moraes, também recorda:

O griô, quando ele conta a história, ele não só fica sentado; ele pega as coisas e trans-forma objetos... uma imagem muito forte de Petrô, ele falava comigo assim: "o legal é que a gente não precisa de dinheiro, a gente tem a imaginação a favor da gente". Não precisava de dinheiro para realizar os projetos, figurinos, porque lá (referindo-se ao projeto Irê Ayó) com os meninos a gente tinha umas imagens de figurinos, pernas de pau grandiosas; aí a gente começava a fazer com a reciclagem do lixo, com folhas. Lembro bem que ele pegava uma folha seca, fazia um buraquinho, fazia uma máscara e começava a fazer um texto... eu hoje vejo Ângelo Flávio fazendo isso, e vejo em mim também (RAFAEL MORAES)

Muitas lições foram aprendidas e os mais jovens da Escola de Teatro, entrevista-

dos, relembram o mestre com intenso carinho. E quanto ao povo da Didá, segundo Vanda

Machado, este sempre o surpreendia:

Ele fez tanto bem a Didá quanto a Didá fez a ele (VANDA MACHADO).

Page 168: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

167

Talvez surpreso ele ficasse se tivesse ouvido o relato de Andréia sobre sua constante presença,

ainda hoje, orientando-lhe os passos:

Teve uma peça no dia das mães; aí teve uma que era tipo Seu Petrô, Mariana – "você vai ficar de um lado observando, e a gente vai fazer a cena"; aí Mariana falava tipo Seu Petrô: "você, chega mais para cá porque você vai ficar de cos-tas". Mariana foi tipo o diretor e a gente seguiu assim rigidamente como Seu Pe-trô fazia: a fala, a dicção... a gente conseguiu tirar o primeiro lugar (ANDRÉIA).

Algumas crianças choraram durante a entrevista. A menina Carla reiterou o que

outros também verbalizaram:

... para mim seu Petrô não morreu, ele está em todos os momentos, principalmente na Didá. (CARLA)

Mas, zombeteiro e errante, Dionísio aparece inesperadamente em múltiplos espaços; tem mui-

tos nomes e fácies. Para a Iyalorixá Mãe Estela de Oxossi:

A memória é a continuação daquilo que não vive mais; está na nossa cabeça, no nos-so pensamento, no nosso sentimento. Ele é a memória do Axé como ancestral e a memória do teatro baiano também, e do homem. Do amigo (MÃE ESTELA DE OXOSSI).

Memória da educação.

Há cinco ou dez anos, eu estabeleci para mim que o meu objetivo na vida era ser um agente transformador para ajudar pessoas. Isso está claro na minha mente. Midas não transformava tudo em ouro? Eu tenho essa coisa de querer transfor-mar.

Carlos Roberto Petrovich, novembro de 2004

Page 169: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

168

ATO V – CAI O PANO

Por derradeiro, a cena primeira: "Mas como começar pelo início, se as coisas

acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-história já havia os monstros apocalípticos?"

(LISPECTOR, 1977, p.31).

O velho mestre recebeu-me na sua casa em novembro de 2004, alertando-me de

pronto:

Eu sou exatamente o contrário do que você acha que eu sou. A sua expectativa é de encontrar alguma coisa em mim, que vai te dar muita informação, muita orientação, ou alguma coisa que você acha que resolve esse problema que você disse, de estar perdida (PETROVICH, 2004).

Page 170: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

169

A sua fala mais uma vez me desafia e, como um duplo, Petrovich revela-me que

a viagem continua e que será sempre inacabada, e infinitamente um Eterno Retorno. Como

falar da alma de outrem quando quiçá possa eu dizer da minha? Petrovich ri da minha per-

plexidade.

Ele morreu em 27 de abril de 2005, três dias após aceitar o lugar de meu bufão.

Senti como se tivesse participado de uma farsa: convidou-me à sua vida e saiu à francesa,

deixando-me só. Tudo em acordo com o papel que por antecipação eu lhe destinara - qual-

quer antecipação é vã, ensinou-me burlescamente. E apenas hoje, posso escutá-lo:

... é você quem traz a resposta e a resposta bate em mim e reflete para você dentro de uma porção de leituras, e de fadas, e de coisas. Isso me faz acreditar que a verda-de é você e não eu (PETROVICH, 2004).

Cai o pano: a cobra morde o próprio rabo. A autopoiésis, o sujeito da cria-

ção, é o motivo de toda viagem. "Caminhar, encontrar e celebrar", como princípios da

educação petrovichiana, foram os orientadores e desorientadores da sua e da minha

jornada. Ao longo deste trabalho somente encontros e celebrações. A vida é a grande

festa, afinal.

Na universidade, território no qual Petrovich atuou desde a criação da Escola

de Teatro, em 1956, descobri o riso silenciado em ritos, processos e disputas frívolas.

Com o fortalecimento da ideologia neoliberal, o saber de ciência converte-se na tecno-

ciência, ratificada pelo imperativo da seriedade. Os movimentos de resistência à sanha

por mais capital, utilizam-se das mesmas armas do poder que historicamente se instituí

pelo apagamento das diferenças, a despeito da retórica que defende a alteridade como

princípio. E novamente afirmo: a universidade vive uma crise de humor.

As luzes não iluminam os pássaros, assim como também o povo que ri na

praça pública; contrariamente, atualizam o Iluminismo que detratava a cultura cômica

popular defendida por Rabelais, no Renascimento; por Petrovich, por Felippe Serpa e

Page 171: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

170

hoje, por tantos, e tantos outros. Felizmente, a universidade é as universidades. E como

me segredou a professora Maria Eugênia Millet: "os bufões nascem aos borbotões",

fazendo espocar luzes nos lugares mais inesperados.

A recordação do vazio pós-perda do hímen, experimentado em 2004, quando

na seleção para o mestrado; o vazio que me fazia perguntar "O que é isto – a virginda-

de?, "O que é isto – a universidade?", logo cedeu ao páthos que me incitou à viagem.

Talvez seja isto a universidade: este chamamento incondicional na direção da verdade

que hoje, em mim, se expressa como vontade de arte e de vida, encarnadas. O romper

do hímen equivaleria à crueldade infligida pelas chicotadas de Folial e anunciada por

Nietzsche (2003, p. 115): "Criar – essa é a grande redenção do sofrimento, é o que torna

a vida mais leve. Mas, para que o criador exista, são deveras necessário o sofrimento e

muitas transformações".

O riso na universidade pode ser escutado nos seus corredores e salas de aula;

mostra que a nossa sensualidade e a nossa sensibilidade se adormecem, fazem-no ape-

nas temporariamente. Não esqueçamos, contudo, mais uma vez recorrendo a Nietzsche,

este "bufão dos deuses", que "Tais coisas alcançam apenas os mais seletos; ser ouvinte

aqui é um privilégio sem igual; não é dado a todos ter ouvidos para Zaratustra"

(NIETZSCHE, 1985, p.42).

A imanência própria da experiência risível, sua radicalidade histórica, con-

voca-nos para a desconstrução "da palavra do corpo" e do "corpo da palavra" (Leon

Góes), exigindo-nos uma performance pública que necessariamente produza aconteci-

mento - o que não poucas vezes, na universidade, observei ser preterido em favor do

livre pensar desencarnado.

O bufão Petrovich mostrou-me que em tempos pós-modernos, quando se

defende não haver saídas do neoliberalismo, a arte resgata-nos e remete-nos ao "outro

Page 172: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

171

do homem", intensidade própria do Dasein e que, portanto, não poderá ser negada. Insi-

diosamente, bufões transitam pelos palácios; fazem uso de máscaras diversas, estrata-

gema aprendido com Exu e com Dionísio. Por vezes, discretos, por outras, grandilo-

qüentes e histriônicos, causam desconforto por provocar novas perspectivas e afirmar

em tom de sentença: tudo passa.

O projeto pedagógico de Carlos Roberto Petrovich recuperou traços do riso

de Rabelais, apresentados por Bakhtin (1999) e, ao tempo que degradou a educação

oficial, especialmente através de rituais de inversão pouco convencionais, restaurou-a

aos modos de Télema, na e para a liberdade de "ser o que se é". Educar pelo exemplo,

como acreditava, não obstante seus conflitos e incoerências, comprometeu o professor

Petrovich com a verdade, num mundo prenhe de possibilidades amorosas. Transitava

nos entre-lugares e como o intrigante benjaminiano conviveu com príncipes, mas foi ao

lado do povo, sobejamente ao lado do povo negro, que conspirou e lutou mais vigoro-

samente contra as desigualdades, a favor das diferenças.

E hoje, o que tenho eu como provas de que Petrovich tinha realmente um

projeto? Viagens de (trans)formação que me foram narradas por crianças e adultos:

Petrô ele fez as meninas se soltarem. Eu não gostava de teatro, eu não conse-guia fazer, eu não conseguia dar uma palavra no teatro; hoje eu tenho peça de teatro, hoje eu faço teatro, hoje eu chego na frente do palco... (ROSALINA NASCIMENTO). Um homem maravilhoso que por 23 anos me fez cantar e sonhar com a possi-bilidade da gente continuar construindo um mundo melhor. (VANDA MACHADO). Eu tive o enorme prazer de contracenar com Petrovich. Temos aí uma outra li-ção. Estar em cena com alguém é sobretudo essa troca de energia, o que faz crescer; o que você faz é exatamente porque aquilo que você joga vem tripli-cado em termos de força, e só quem contracena com atores assim sabe o que é essa magia; as forças se encontram e multiplicam o seu poder de ação. Eu tive essa. (CLEISE MENDES). (...) Aprendi como resolver as coisas. Eu tinha a maior dificuldade de resolver as coisas. Engraçado que essas jornadas da Didá me ajudaram muito.(...) o que eu consigo agora entender é que eu aprendi a ler, saí da faculdade e aprendi a ler com Petrovich. Duas faculdades: fiz também pedagogia. Fui alfabetizadora durante 14 anos. (MERRY BATISTA).

Page 173: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

172

Vanda contava sobre histórias da África, sobre os mitos, e o Petrô criava pe-ças; ele me colocou pra fazer coisas, mas sem o Petrô e sem a Vanda eu não faria o que fiz... eu toco, eu ensaio, mas atriz fica difícil; é interpretação é você tirar de dentro do seu eu... (ADRIANA PORTELA).

Transformar era a meta de Petrovich; como um Midas ou como um bufão

experimentava e alterava perspectivas. O riso é por excelência potência criativa e revo-

lucionária que trans-forma no sentido de uma utopia universal, ou da carnavalização da

vida. "A revolução consiste em amar um homem que ainda não existe", disse Ca-

mus(2006), como bem poderia ter dito Petrovich.

Pouco foi escrito por ele; talvez sua volúpia não coubesse na letra. " Porque

a letra mata, mas o Espírito vivifica", dizia Cristo – II Corintos 3:6 (BIBLIA, 1966, p.

157) - e o escritor Fernando Pessoa (PESSOA, 1998, p. 141): "PENSAR em Deus / é

desobedecer a Deus". Nietzsche, pela boca de Zaratustra, de muitas formas lhes ratifi-

cou: "De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio

sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito" (NIETZSCHE, 2003,

p. 66).

O meu lugar nesta jornada, enfim compreendo, é viver a dor de matar com a

letra e morrer com ela; como o alegorista benjaminiano num campo de ruínas, constru-

indo templos derruídos para que sejam infinitamente consumidos pelas chamas e nova-

mente significados. Escrever com sangue, ou com o corpo, é matar para salvar do es-

quecimento.

As palavras do velho griô ressoam em mim; sua paixão pela vida não deixa

que eu continue impunemente, por isso a advertência inicial, em 2004, acerca do perigo

do pesquisador se apaixonar pelo objeto - só é possível caminhar animada por páthos.

Page 174: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

173

A tensão provocada não cessa aqui. O riso do povo brasileiro, sua alegria e

sensualidade desmedidas, herança de negros, de índios e da corte medieval portuguesa

me instigam a continuar a viagem.

Um dia, ambicionei sonhar um homem e descobri que sou também um sonho

que se realiza cotidianamente nos encontros -

Agora vou te dar uma informação que você poderia encontrar em sonho, mas como essa conversa nossa é como um sonho (risos)...

Carlos Roberto Petrovich, novembro de 2004

Page 175: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

174

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. 2. ed. Rio de Janeiro: Za-har, 2002.

ALTERNATIVAS possibles al capitalismo globalizado: editorial. Alternativas Sur, v.1, n. 1, p.17-31, 2002.

AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa, 2001.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1985.

ARTE em expressão. Opera. In: Portal Edukbr. Disponível em: <http://www.edukbr. com.br/artemanhas/seria_bufa.asp>. Acesso em: 8 jun. 2005.

ASSIS, Machado de. A igreja do Diabo. In: ______. Contos consagrados. 11. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. pág. 37-49.

Page 176: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

175

BAKHTIN, Mikhail. A cultura na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Fran-çois Rabelais. 4. ed. São Paulo: HUCITEC, 1999.

BALMA, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

BARTHES, Roland. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAUER, Martin w.; GASKELL, George (eds.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

______. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

BIBLIA SAGRADA. Tradução Padre Antonio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Barsa, 1966. Novo Testamento.

BOCHICCHIO, Regina. Evoé ao Dionísio do teatro baiano. A Tarde, Bahia, 29 maio 2005. Local, p. 7.

BORGES, Jorge Luís. Las ruínas circulares. Disponível em: <http://www. angelfire.com/la2/pnascimento/latinoamericanos.html>.Acesso em 11 de fevereiro de 2006.

BRECHT. Bertolt. Vida de Galileu. São Paulo: Abril Cultural, 1976.

BUENO, Francisco Silveira. Grande dicionário etimológico prosaico da língua por-tuguesa: vocábulos, expressões da língua geral e científica, sinônimos, contribuições do tupi-guarani. São Paulo: Saraiva, 1968.

CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa, Portugal: 70, 1987.

CAMPBELL, Joseph. O herói das mil faces. 6. ed. São Paulo: Cultrix; Pensamento, 2000.

CAMUS, Albert. In: Albert Camus em português: sitio de divulgação e estudo da filosofia de Camus. .Disponível em: <http://filosofocamus.sites.uol.com.br/index.htm> Acesso em 11 de abril de 2006.

CERVANTES Y SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

1 CHERNG, Wu Jyh. Iniciação ao Taoísmo. 2a ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2000. v 1.

CHAIN, Iza. O Diabo nos porões das caravelas: mentalidades, colonialismo e reflexos na constituição da religiosidade brasileira nos séculos XVI e XVII. Juiz de Fora, MG: UFJF; Campinas, SP: Pontes, 2003.

COLASANTI, Marina. A moça tecelã. In: ______. Doze reis e a moça no labirinto do vento. 9. ed. São Paulo: Global. 2000. p. 10-14

Page 177: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

176

COLINA, Iara Bernabó. Relatório. Trabalho de conclusão da disciplina ACC: Griô Kaiodê: construindo histórias com alegria (Graduação) – Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2002.

DERRIDÁ, Jacques. A universidade sem condição. Tradução Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

DETIENNE, Marcel. Dionísio a céu aberto. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

DUARTE, Bandeira. História geral do teatro. Rio de Janeiro: Minerva, 1951.

ECO, Umberto. O nome da rosa. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

______. Obra aberta: forma e indefinição nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspec-tiva, 1976.

ERASMO. Elogio da loucura. 12. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, [19--].

ESPÍNOLA, Adriano. As artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Mattos. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2000.

EVITA. Direção: Alan Parker. Produção: Alan Parker, Robert Stigwood e Andrew G. Vanja. Intérpretes: Madonna; Antonio Banderas; Jonathan Price; Jimmy Nail e outros. Roteiro: Alan Parker e Oliver Stone. Hollywood: Columbia Buena Vista International, 1996. 1 DVD (134 min), son., color.

FELLINI, Frederico. Sobre o clown.. Disponível em:<http://www.grupotempo.com.br/ tex_fellini.html>. Acesso em:16 de maio de 2005

FERRAZ, Ana Rita. Universidade e suas contradições. Trabalho de conclusão da dis-ciplina Educação e Sociedade (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Fede-ral da Bahia, Salvador, 2004.

FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche, o bufão dos deuses. São Paulo: Redume Dumará, 1994.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

FOGEL, Gilvan. Da solidão perfeita: escritos de filosofia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

GALEFFI, Dante Augusto. Felippe Serpa e o aprendizado de si mesmo. Rascunho digital. Salvador: FACED/UFBA, [200-]. Disponível em: <http://www.faced.ufba.br>. Acesso em: 2 de maio 2005.

GALEFFI, Dante Augusto. A guerra invisível: a estupidez humana e a liberdade. Rascunho digital. Salvador: FACED/UFBA, [200-]. Disponível em: <http://www.faced.ufba.br>. A-cesso em: 2 de maio 2005.

Page 178: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

177

______. O ser-sendo da filosofia: uma compreensão poemático pedagógica para o fazer-aprender filosofia. Salvador: EDUFBA, 2001.

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Rio de Janeiro: Record, 2003.

GENTILI, Pablo; SILVA, Tomás Tadeu (org). Neoliberalismo, qualidade total e edu-cação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.

GHELDERODE, Michel de. Escorial: drama em I ato. Tradução Mario da Silva. Paris: Gallimard, 1950. v. 1.

______. School for buffoons. Tradução Kenneth S. White. San Francisco, Chandler, [1968]

GOMES, Aline; BATISTA, Marinalva. O nascimento da Escola de Teatro e a perso-nalidade Petrô. Monografia (Graduação em Teatro) – Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2002. .

GONÇALVES FILHO, Antenor A. Educação e literatura. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

GUIMARÃES ROSA, João. O sertão está em toda parte. In: Cultura brasileira. Dis-ponível em: <http://www.culturabrasil.pro.br/guimaraesrosa.htm>. Acesso em: 14 mar. 2006.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis, RJ:Vozes, 2001.

I CLOWNS (Les clowns). Direção: Frederico Fellini. Produção: RAI-Radio Televisione Italiana, Rome, O.R.T.F., Paris, Bavaria Films, Munich et Compagnia Leone Cinemato-grafica, Rome. Roma: Italnoleggio, 1970. Filme (35 mm), son., color.

LANDER, Edgardo. Conhecimento para quê? Conhecimento para quem? Reflexões acerca da geopolítica dos saberes hegemônicos. In: GENTILI, Pablo (org). Universidades na pe-numbra: neoliberalismo e reestruturação universitária. São Paulo: Cortez, 2001.

LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 2. ed. Belo Horizon-te: Autêntica, 1999.

______. Nietzsche e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

LISPECTOR, Clarisse. A hora da estrela. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1977.

MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa: com a mais antiga documentação escrita e conhecida de muitos dos vocábulos estudados. 2. ed. Lisboa: Conflu-ência, 1967.

MACHADO, Vanda, PETROVICH, Carlos. Prosa de Nagô. Salvador: EDUFBA, 1999.

______. AJAKÁ: o menino no caminho do rei. Salvador: SMEC/PMS, 2001.

______. Irê Ayó: mitos afrobrasileiros. Salvador: EDUFBA, 2004.

Page 179: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

178

MAFFESOLI, Michel. A sombra de Dionísio: contribuição a uma sociologia da orgia. Rio de Janeiro, Graal, 1985.

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MARRACH, Sonia Alem. O lúdico, o riso e a educação no romance de François Rabe-lais. Marília: UNESP, 1998.

MARSCHNER, João. Teatro em Ouro Preto. Ultima Hora, Rio de Janeiro. [1960].

MELO NETO, João Cabral de. Educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, 1977.

MENDES, Cleise; MEIRELLES, Marcio. Um tal de Dom Quixote: a partir de Miguel de Cervantes e dos atores da Companhia de Teatro dos Novos e do Bando de Teatro Olodum. Salvador: Teatro Vila Velha, 1998.

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: UNESP, 2003.

NAFFAH NETO, Alfredo. Psicodramatizar: ensaios. 2. ed. São Paulo: Agora, 1990.

NICHOLS, Sallie. Jung e o tarô: uma jornada arquetípica. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1989.

NEVES, Luis Felipe Baeta. A ideologia da seriedade e o paradoxo do coringa. Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, RJ, v. 68, n. 1, p. 35-40, 1974.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______. Ditirambos de diónisos. Dionysos – Dithyramben. Versão Manuela Sousa Mar-ques. Introdução e notas: Delfim Santos, Fo . Ed. Bilíngüe. Lisboa: Guimarães Editores, Ltda., 1986.

______. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Max Limonad, 1985.

O NOME da rosa. Direção: Jean-Jacques Annaud. Produção: Bernd Eichinger. Interpretes: Sean Connery; Christian Slater e outros. Roteiro: Andrew Birkin; Gérard Brach e outros. Hol-lywood: 20th Century Fox, 1986. 1 DVD (130 min), son., color.

OBSERVATÓRIO da Imprensa. Aspas. 20/01/2004. Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp20012004992.htm>. Acesso em: 22 fev. 2006.

PESSOA, Fernando. Como é por dentro outra pessoa. In: ______. Poesias coligidas. Dispo-nível em: <http://www.insite.com.br/art/pessoa/coligidas/809.html>. Acesso em: 14 abr. 2006.

OS PRÉ- SOCRÁTICOS: fragmentos, doxografia e comentários. Seleção de textos e su-pervisão do Prof. José Cavalcante de Souza. Dados biográgicos de Remberto Francisco Kuh-

Page 180: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - repositorio.ufba.br · Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em ... ram da poética do "ser pesquisadora"

179

nen. Traduções de José Cavalcante de Souza... (et. Al.). 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores).

PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992. RABELAIS, François. Gargântua. Apresentação de Geir Campos. Tradução de Aristi-des Lobo. Ilustrações de Gustave Doré. Rio de Janeiro: Ediouro, 1964.

REY, Alain. Le Robert micro: dictionnaire de la langue française (poche). Paris: Ro-bert, 1998.

ROUNET, Sergio Paulo. Apresentação. In: BENAJMIN, Walter. Origem do drama barro-co alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 11-47.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A universidade no século XXI: para uma reforma demo-crática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004.

______. Por uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/sociologia_das_ausencias.pdf>. Acesso em: 18 abril 2005.

SENA, Consuleo Pondé. Castro Alves: a índole de Ceceu. Jornal de Poesia. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/calves24.html>. Acesso em: 16 mar. 2006.

SHAKESPEARE, William. O rei Lear. Porto Alegre: L & PM, 1997.

SOCIEDADE Teatro dos Novos Ltda. Jornal da Bahia, Bahia, 26 jun. 1960.

SOUZA, José Cavalcante de (Org.). Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e co-mentários. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

TRINDADE, Hélgio. As metáforas da crise: da "universidade em ruínas" às "universidades na penumbra" na América Latina. In: GENTILI, Pablo (org.). Universidades na penumbra: neoliberalismo e reestruturação universitária. São Paulo: Cortez, 2001. Cap. I., p. 11-43.

UZÊDA, Eduarda;. Dom Quixote alça vôo: o diretor, ator e professor Carlos Petrovich, que morreu anteontem de enfarte, foi um dos fundadores do teatro Vila Velha. A Tarde, Bahia, 29 maio 2005. Local, p. 7.

VERGER, Pierre Fatumbi. Os orixás: deuses Iorubas na África e no Novo Mundo. Tradução Maria Aparecida da Nóbrega. Disponível em: <http://www.uucab.com.br/ uu-cab_orixas_ogum.html>. Acesso em: 20 jan. 2006.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993