poética feminista – poética da memória - vianna lucia helena -
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A poética feminista pode ser definida como qualquer discurso, consciente ou não, que desperte alguma mudança para as mulheres.TRANSCRIPT
Labrys
estudos feministas
número 4
agosto/dezembro 2003
Poética feminista – poética da memória
Lúcia Helena Vianna Resumo: Ainda hoje a existência de uma poética feminista não é uma questão fechada, no campo dos estudos literários e culturais. Pesquisadoras do feminismo, que trabalham em universidades estrangeiras com a literatura de mulheres brasileiras, manifestam dificuldade no tratamento das narrativas de autoria feninina do Brasil, já que estas fogem à linha das narrativas hispanoamericanas.Tal constatação nos motivou a buscar vias de leitura apropriadas á particularidade da ficção de nossas autoras. Pesquisa realizada com contos de escritoras brasileiras do século XX nos aponta a memória como uma categoria metodológica de significativa produtividade na construção de uma “poética feminista” possível. Sem ser exclusiva, revela enfática presença nos escritos femininos. Palavraschave: memória, ficção, poética feminista
Este trabalho procura responder à necessidade de se
construir vias de leitura apropriadas para a narrativa das
mulheres, levandose em consideração os princípios definidores
de uma poética feminista.
De início devo salientar dois pontos fundamentais para
a sustentação metodológica deste texto. O primeiro consiste
em relembrar que, para a teoria feminista de base
pósestruturalista, a linguagem não é a expressão apenas de
uma individualidade, mas o lugar de construção da
subjetividade, que se dá de modo socialmente específico:
“quando se adquire a linguagem, aprendemos a dar voz – e
sentido – a nossa experiência e a entender os diferentes modos
de pensamento, discursos particulares, os quais prédatam
nossa entrada na linguagem”( WEEDON, 19 , 33).
Por conseqüência, o segundo ponto é que a linguagem é
o lugar onde atuais e possíveis formas de organização e seus
respectivos desdobramentos políticos são definidos e
contestados. Por isso se faz sempre necessário reconsiderar a
relação das mulheres com a linguagem na narrativa de autoria
feminina. Pesquisadoras do feminismo, que trabalham em
universidades estrangeiras com a literatura das mulheres
brasileiras, já manifestaram a dificuldade no trato com a
prática narrativa de autoria feminina na Brasil ( Peggy
Sharpe, Cristina Ferreira Pinto)[1].
Notase mesmo uma certa ansiedade dessas estudiosas,
que vivem e exercem suas atividades num contexto cultural
internacional, em resolver as dificuldades de aplicação do
conjunto teórico feminista às práticas discursivas das
narradoras brasileiras . É desta constatação que quero partir
para propor um viés crítico baseado na importância da memória
para a construção do que se está chamando de “poética
feminista”. Tratase de um projeto em andamento e esta é sua
primeira formulação, daí o caráter possivelmente simplista que
possa apresentar.
E como entender categoria assim denominada de “poética
feminista”? Não se trata aqui de falar de “poética
feminina”, que se refere tão somente a um modo de escrever
próprio das mulheres e que vai tangenciar com a já
exaustivamente polemizada questão da “escritura feminina”.
Penso que por poética feminista se deva entender toda
discursividade produzida pelo sujeito feminino que ,
assumidamente ou não, contribua para o desenvolvimento e a
manifestação da consciência feminista , consciência esta que é
sem dúvida de natureza política( O pessoal é político), já que
consigna para as mulheres a possibilidade de construir um
conhecimento sobre si mesmas e sobre os outros, conhecimento
de sua subjetividade, voltada esta para o compromisso
estabelecido com a linguagem em relação ao papel afirmativo do
gênero feminino em suas intervenções no mundo público.
Consciência com relação aos mecanismos culturais de
unificação, de estereotipia e exclusão. E ainda, a consciência
sobre a necessidade de participar conjuntamente com as demais
formas de gênero ( classe, sexo, raça ) dos processos de
construção de uma nova ordem que inclua a todos os diferentes
, sem exclusões. Poética feminista é poética empenhada, é
discurso interessado. É política.
Estudar a memória em suas diversas formas de
manifestação eas estratégias pelas quais ela se apresenta nos
textos, pareceme de significativa produtividade para a
construção da poética feminista. A memória, como categoria
fundacional de tal discursividade, manifestase tanto no
texto de invenção, em prosa ou verso,[2] como o nos textos
referenciais, compromissados com os registros históricos e
culturais.
Nosso tempo é tempo de memórias. Na área acadêmica e
na área cultural, temse discutido intensamente as suas
diferentes manifestações nas literaturas, através de
testemunhos, biografias e autobiografias, relatos
memorialistas e confissões; na arquitetura, no resgate do
patrimônio arquitetônico, restaurações, catalogação; na
história, pela recuperação de trajetórias de vida, de
publicação de documentos; na imprensa , a reunião de
depoimentos de jornalistas que acompanharam a história recente
do país, tanto no campo político como cultural.
A determinação em levantar todo esse substrato do
vivido, de experiências individuais e coletivas, da vida
privada e da vida pública, delega à memória a função de
ponto de resistência face à incessante pulverização das
identidades nos tempos atuais, marcados pela volatilidade das
lembranças: o que mal aconteceu, já passou, para dar lugar a
um novo e fugaz evento. Ao indivíduo monitorado pelas
máquinas de comunicação não é dado tempo para recordar. Se por
um lado os aparatos tecnológicos aceleram as interações
virtuais, por outro, eles contribuem para tornar menos
evidentes essas mesmas interações virtuais.
As próprias mulheres, reconhecidas desde a
ancestralidade como matrizes narrativas, guardiães da memória,
representadas no mito de Mnemosine “com que prazer essas
mulheres acrescentavam às aventuras que lhes chegavam, outras
aventuras”, rememora Nélida Piñon, em recente palestra na
Biblioteca Nacional.( BN, 2002 ) pagam hoje o preço pelas
conquistas públicas que obtiveram. Assoberbadas de tarefas e
de solicitações externas, pouco tempo lhes resta para
reelaborar suas própria experiência de vida, muito menos para
desfiar lembranças, recordar e transmitir narrativas do
passado.
Clarice Lispector percebeu com alguma antecipação a
crise na temporalidade que hoje vivenciamos quando articulou
poeticamente uma categoria para dar conta da volatilidade do
presente, o ‘instantejá”:
O presente é o instante em que a roda
do automóvel em alta velocidade toca minimamente o
chão. E a parte da roda que ainda nãotocou, tocará
num imediato que absorve o instante presente e
tornao passado.”( ‘Água Viva 1973/ 1979,19)
A velocidade desenfreada do tempo atual é inimiga
mortal da memória. Talvez fosse o caso de se editar o manual
de sobrevivência da memória. Reeditar o mito de Sherazade,
ícone salvacionista das reminiscências e, de modo idêntico,
de sua função narratária. A memória é o lócus privilegiado do
imaginário, berço de toda ficção. Essa memória quanto mais
enterrada no âmbito do privado, mais frutifica no plano
simbólico, atesta Nélida Piñon, que confessa :Sempre que narro
, empreendo a viagem ao meu centro, cujas margens desconheço”(
BN, 2002 ). A memória individual é o território do secreto.
Espaço de absoluta privacidade.
A memória individual faz o inventário caótico das
coisas mínimas, é completamente amoral, roça sempre o
inexplicável, ao contrário da memória coletiva que atende à
construção de uma moralidade( Agullol ) .O tempo da memória
individual nada tem a ver com o tempo normativo da memória
coletiva: é o tempo que nos configura, caótico, desmascarado ,
epifânico. Tempo anárquico e inominável, da obsessiva procura
clariceana por capturar o presente, lidar com temporalidade
fora das margens cognoscíveis do real, entrar na sua quarta
dimensão . Que tempoespaço é este, senão o espaçotempo da
memória.
Nas narrativas femininas, em especial nos contos de
escritoras brasileiras, a que desejo dar relevo, recordações
e reminiscências, lembranças e esquecimentos manifestam _ ora
explicitados ora de forma escamoteada, sob diferentes ardis
estratégicos __ a permanente intervenção de material
memorialístico na matéria narrada.
Faço agora um parênteses para dizer que já havia
detectado há algum tempo um vazio em nossas publicações. Das
várias antologias de contos publicadas no período de 2001
/2002, não encontramos nenhuma inteiramente dedicada às
mulheres. E como é de praxe, elas aparecem em menor número
nas edições que acolhem textos de ambos os gêneros. Pensamos,
pois, Márcia Lígia Guidin e eu, em organizar uma seleção de
contos de escritoras brasileiras que pudesse atualizar
publicamente o trabalho contínuo e sistemático que vem sendo
realiza por diversas autoras.
Pesquisamos um meia centena de contos publicados do
final do século XIX aos nossos dias. Em razão do compromisso
assumido junto à editora Martins Fontes, que vai publicar o
livro, devemos nos restringir a 30 contos. Usamos ,para a
seleção, um critério elástico, não rigorosamente acadêmico.
Pensamos em narrativas que possam interessas às leitoras e
aos leitores comuns, sem contudo desconsiderar a qualidade
estética dos textos. Adotamos, porém, um critério de valor um
tanto subjetivo: pensamos que o conto que fica para sempre
marcado em nossa lembrança, em razão de uma cena, de certa
imagem, ou de qualquer outro efeito escritural, deve ser bom.
Deve ter um capital literário agregado. Também
desejamos ampliar o conhecimento do público sobre aquelas
que fazem literatura, algumas esquecidas no tempo, outras mais
jovens e pouco nomeadas . Legitimam a seleção os nomes já
canônicos das nossas grandes narradoras, como Lygia Fagundes
Telles, Clarice Lispector, Rachel de Queirós, Nélida Piñon. E
outra em vias de canonização, como Sônia Coutinho , Olaga
Savary, Marina Colasanti, Helena Parente Cunha, Márcia Denser,
Marilene Felinto, Zulmira Tavares.
No conjunto, os contos selecionados comprovam a tese de
que a “invenção”, aquilo que aparece no texto narrativo como
ficção , tem suas raízes na memória.. Memória nem sempre
evocada voluntariamente , nem sempre explicitada, e muitas
vezes fechada a sete chaves, mas que trapaceia com o sistema
de consciência e, desliza, deslocase, na máscara forjada da
ficção provida pelo imaginário, onde o “secreto” da
individualidade ou da coletividade se desrecalca , em
différance, como quer Derrida. Ponto de intercessão onde se
interceptam os extratos do pessoal, os do social e os da
cultura, promovendo um amálgama diferenciado que passa a ser
visto como invenção.
Ao “pacto fantasmático” de que fala Philippe Lejeune ,
para definir as relações entre o leitor e o texto
autobiográfico, poderíamos contrapor um “pacto
memorialístico”, lembrando que os leitores, mulheres e homens,
são convidados a ler os contos não somente como invenções,
ficção, mas como resíduos de uma memória individual e
cultural, que não deixam de se apresentar como “fantasmas”
reveladores do mundo íntimo do indivíduo e , em especial, das
mulheres. Este mundo secreto é o capital simbólico do
feminino( não exclusivamente dele, mas predominantemente
nele).
Pela intervenção da memória se constrói a narrativa
secreta de nossa vida, que se separa da narrativa oficial(
quando não se opõe a ela), construção que tentamos legalizar,
não só em relação ao mundo exterior mas também em relação ao
nosso próprio mundo. E a narrativa secreta é sempre
inquietante, subversiva e, no sentido possível deste termo,
verdadeira ( Agullol)[3]..
O conto, por suas características estruturais de
economia textual, favorece mais do que o romance, o
investimento no processo de memória/invenção. Mais centrado
no eixo temático único, sua estrutura concisa proporciona o
lócus fértil para as cenas passadas retornarem, no
deslocamento de uma experiência vivida, pessoal , de outrem ou
coletiva. Modernamente, com a distensão verificada nos limites
estruturais da narrativa curta, com a liberação de um discurso
mais subjetivo e íntimo, as relações com a memória se tornaram
ainda mais visíveis. A insistência com os efeitos mnésicos se
dão ver no texto, independe da época, podendose apenas
constatar sua maior evidência ou sua ocultação por meio de
recursos simbólicos.
Se tomamos um conto de Júlia Lopes de Almeida (
1887), Memórias de um leque, encontramos um hábil processo de
mascaramento da memória. Um leque caído do regaço da velha
senhora burguesa do século XIX, personificado, toma a posição
de narrador, para evocar a história daquela mulher.
Subterfúgio da técnica narrativa, que transfere ao objeto
inanimado a função de rememorar ,como testemunha, eventos
passados e atribuirlhesverossimilhança. Enquanto narra, por
efeito da ficcionalização, configurase aquele acessório da
coquetterie feminina como espelho mediador entre o mundo
público e o privado. Num arroubo apaixonado, um pintor
imprimiu no leque “meio encoberto por um tênue véu branco” o
retrato nítido, perfeito, de Amélia, a personagem de que
estamos falando.
Transformado em objeto simbólico, o leque passa a
valer como sutil tecido da memória, a guardar o segredo da
paixão verbalizada obliquamente pelo homem e não
correspondida pela mulher. Através da estratégia simbólica que
protege a discrição comportamental exigida naqueles tempos
para a mulher, deixa contudo ao leitor a possibilidade de ler
o quanto de renúncia amorosa foi exigida das mulheres em nome
dos bons costumes da época. Carmem Dolores , por sua vez,
reage à situação subalterna, como se pode ler no conto Lição
póstuma (1910).
A morte de uma amiga querida, assujeitada aos costumes
do tempo, que negava às mulheres o direito a manifestar os
próprios desejos, provoca na protagonista, viúva como a outra
e da mesma idade, a determinação de mudar os rumos de uma
existência para a qual a cultura da época não previa futuro .
Recusa a condição de mãe, avó e sogra, servidora e resignada,
muda a aparência , encontra um novo marido , surpreendendo a
família. Ilumina seguramente a consciência das leitoras para
uma saída possível fora das amarras da prisão patriarcal.
De um modo geral, as escritoras, à medida que se firmam
no cenário das letras e são chamadas a depor sobre sua obra,
confirmam essa função matricial das lembranças e das
recordações em seu projeto poético. Marilene Felinto,
escritora da safra de 80/90 , em nota introdutória ao livro
Postcard( 1991)[4] assume esta dívida:
Devo esse livro à mangueira e à
romãzeira da minha casa de infância em Recife, ao
ladrão que destelhou nossa cozinha de madrugada;
aum carneiro todo branco, felpudo e vivo que ganhei
de presente de aniversário de cinco anos; a
Reinilton ou qualquer outro nome de
meninopernambucano por quem primeiro me apaixonei
_ devo a eles, porque são os motivos de inspiração
das primeiras histórias que escrevi na vida,longe
do mundo, dos papéis e dos homens de mercado
.(1991)
Neste mesmo livro encontrase o conto Muslim Woman ,
onde se pode localizar os princípios do que estamos chamando
de poética feminista, pela ficcionalização exemplar dos
impasses contemporâneos nas relações de gênero. A cena se
passa no saguão de um aeroporto internacional. A mulher ,
protagonista e narradora, se mostra desconfortável naquele
espaço estrangeiro, olhada com curiosidade pela saia curta que
veste. Vivencia naquele tempo de espera relações
problemáticas com o marido, articuladas em torno da mala de
rodinhas que este comprou a contragosto dela. Seu discurso é
queixoso: ele que lhe não outorgava senão o status de
fantasma.
É a mulher muçulmana sentada à frente da protagonista
que permite a esta revisionar a condição identitária. A
lágrima que escapa dos olhos da protagonista funciona como
espelho, iguala as duas em toda a sua diferença.
Estabelecese, então, entre elas um conversação feita apenas
de olhares.
Uma única palavra na língua internacional (Madam) as
aproxima (1991, 18) . Simbolicamente a irmandade
feminina/feminista ultrapassa fronteiras e barreiras de
linguagem. A poética do conto exibe os conflitos e as
negociações que se passam no cerne das relações de gênero , as
dificuldades de conciliar o desejo e a vontade entre
masculino e feminino , e a sororidade a cumplicidade entre
mulheres, o entendimento silencioso de que, não importa em que
território estejam e que língua falem, que trajes vistam,
compartilham de uma história comum, cifrada na palavra mágica
em língua estrangeira –Madam – que apresentase revertida em
anagrama ADAMA, nome que aparece na etiqueta da mala da
muçulmana.
O conto é iluminado internamente por um enclave
narrativo de memórias da infância, quando a personagem,
menina, aprendera a criar abrigos para se proteger, abrigos
que eram na verdade estórias fantásticas que inventava , onde
ela sempre se salvava, escondendose em “um abrigo secreto da
floresta”(15) Não é difícil extrair a conclusão que a ficção
pode ser abrigo e salvação para as mulheres, sempre
estrangeiras no mundo público, causando estranhamento onde
chegam.
Para Nélida Piñon, graças à memória ingressase no
domínio da invenção”. A arte de narrar certamente tem como
função inventariar a memória. Para nascer , diz ela, o texto
atravessa inexorável terra, camadas incessantes, que o
escritor leva dentro de si”. No seu romance República dos
sonhos, atribui à personagem Eulália, a velha matriarca, a
função de encarnar a memória[5] . Já o conto I love my
husband( No calor das coisas), temos a explícita manifestação
da transparência de uma poética feminista, cuja matriz
temática latente na memória tardia do papel devotado da
mulher ao casamento e ao marido, em nome dos quais, recalca
seu mais secretos sonhos de liberdade, sua fantasia de
autenticidade..
O cenário da paz conjugal quase é abalado quando a
mulher, movida por incontido desejo de aventura, menciona a
palavra futuro. À simples menção desta palavra, a estabilidade
masculina balança, trazendo inquietação e incerteza para o
homem. Tudo não passa de um momento fugaz, que se reverte no
status quo da vida doméstica , nesta narrativa estruturalmente
circular, que se abre e se arremata na eloquência assertiva da
proclamação feminina: EU AMO MEU MARIDO, subjacente a qual se
pode localizar o fio da fina ironia subscrevendo ,de forma
implícita, que a autora não compactua com a ética proclamada
no conto. O grifo irônico obriga a ler o conto como paródia
comportamental feminista segundo um olhar pósmoderno.
Márcia Denser , da geração de 80, no livro Toda
Prosa(2002), rememora a figura da mãe( um dos motivos mais
recorrentes no texto memorialístico das mulheres), e o faz
através da colagem da imagem mnésica original às imagens
extraídas de uma memória cultural cinematográfica. Ao batizar
a personagem materna com o nome composto Vivien O’Hara,
conjuga, num único denominativo, ícones do período áureo do
sonho hollywoodiano dos anos 50. Aí estão coladas ou
bricoladas as imagens glamurosas de Vivien Leigh( atriz) e
Scarlett O’Hara(personagem), do célebre E o vento
levou....(1947). Mas também evoca Rita Hayworth e Maureen
O’Hara, atrizes célebres dessa geraçao:
"Vivien possuía uma espécie de síntese
de todo o capital estético das divas de Holywwood
dos anos 50, mas como quem saca semfundos”
A intervenção também aqui do comentário
irônico desfaz qualquer ilusão de estarmos diante de uma
comparação ingênua e ocasional, de memorialismo simplório,
inscrevendo o estilo na poética da pósmodernidade. A
escritora maneja conscientemente o jogo de simulacros,
amalgamando a memória materna da infância à rede de ícones
femininos produzidos pela cultura cinematográfica, e às suas
próprias lembranças pessoais, obtendo um significativo lucro
simbólico:
A irmandade materna feminina emergiu
com o sonho americano na década de 50 e perguntome
até que ponto não foram os mesmossonhos que
assombraram minha infância, quando, encantada,
contemplava tia Jane ou tia Marjorie na penteadeira
iluminada por lâmpadas decamarim (2002)
Leitora, autora e narradora se irmanam igualmente na
mesma reminiscência da experiência compartilhada por toda uma
geração de mulheres: a contemplação narcísica da imagem
refletida no espelho do mobiliário doméstico, próprio ao
quarto das moças, a penteadeira , espelhada nas laterais, que
gerava uma perspectiva em abismo, multiplicando ao infinito a
face daquela que ali se procurava.
A irmandade feminina/feminista emergiu no texto das
mulheres mais decididamente nos anos 60/70, pleiteando
direitos no mundo público, deflagrando um processo de
afirmação identitária que permanece avançando e tem como um
dos seus espaços de combate a linguagem, lugar onde o
conhecimento sobre nós mesmas se realiza e onde a
subjetividade é construída. Ao multiplicaremse o número de
publicações de textos escritos por mulheres, multiplicamse as
possibilidades de conhecimento sobre as diferentes
perspectivas pelas quais elas se dão a conhecer no mundo . No
entanto permanece o impasse sobre o modo de abordagem teórica
das práticas narrativas femininas que não seja sustentado por
teorias estrangeiras..
Quando se constata a onipresença da memória nas
produções discursivas, fica difícil pensar a invenção, seja
poética ou teórica, nascida do nada, do zero absoluto, de um
ponto original. Por ser o sujeito, autor/autora, um ser
cultural, ele carrega um acervo de heranças mnésicas
impossíveis de catalogar. De outro modo devese considerar que
a entrada na ordem da linguagem se dá por um ato de violência
. Momento em que se rompe o laço unitário e narcíseo com a
figura materna, totalidade amorosa que permanecerá como
memória mais funda de toda memória. Pela memória linguageira
do Eros original, se instalam as matrizes do poético, outra
língua, anárquica, fora das regras oficiais. Já pela
intervenção do senhor da Lei, ordem da cultura, passamos ao
assujeitamento à hegemonia do patriarcado, às normas, às
técnicas , à competência e aos racionalidade. Este processo de
entrada no mundo simbólico, que se dá do mesmo modo para
qualquer um dos gêneros, atinge fundamente a subjetividade
das mulheres, que se vêem obrigadas a recalcar a fala materna,
a outra língua do passado esplêndido de comunhão identitária.
E somente o poético será a via produtiva do reencontro com
essa linguagem e elucidação e desrecalqueda memória original.
Mas o imaginário se nutre não apenas das memórias
pessoais, conquistadas na experiência de vida. Também se
alimenta das memórias dos outros, memórias coletivas,
memórias de outras memórias, camadas que se superpõem em
palimpsesto construindo uma reserva mnésica que muitas vezes o
sujeito desconhece em sua totalidade e abrangência. Esse
substrato , amálgama de sedimentações mnésicas, mnemosfera
como fala Agullol, é o nutriente de toda imaginação. O que
chamamos de invenção, no campo literário, resulta das
operações de linguagem que selecionam e combinam, promovendo
articulações sintagmáticas que tecem um enredo, configuram um
personagem, armam um cena, dando outra cara àquilo que um dia
foi vivido no corpo, reinventando a existência, trazendo à
tona tudo o que devia permanecer oculto no território secreto
da memória.
Memória evocadora e metafísica, memória desconstrutora
e desconstruída (Clarice Lispector ), memória feita de
citacionalidades, colagens de múltiplas referências culturais
( pósmodernas em, Sônia Coutinho , Olga Savary, Márcia
Denser, Helena Parente Cunha[6]). Como as mulheres se situam
perante as questões de produção e reprodução simbólica e
material, e que se revelaria na literatura, na narrativa de
ficção?
Para Júlia Kristeva, o resultado desse processo poderia
fornecer o denominador simbólico comum das mulheres ( Les
temps des femmes, 1979). Qual seria esse denominador
simbólico? Penso poder reconhecêlo , mesmo que precariamente,
nesse corpo heterogêneo, mas irmanado, de uma poética
comprometida com as especificidades do gênero mulher e que nos
convoca a referendar , nesta conclusão, o alerta de Peggy
Sharpe quanto a responsabilidade que temos como leitores,
críticos e atores políticos ao lidarmos com os textos das
mulheres escritoras.
Referências
AGULLOL, Roberto. O Eros da memória. Horizontes da memória. Colóquio Internacional UNESCO/ Colégio Brasil. Rio de Janeiro : Fundação Biblioteca Nacional, set. de 2002 ALMEIDA, Júlia Lopes. Traços e iluminuras. Contos. Lisboa : Tipografia Castro Irmão, 1887. DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Ed.Perspectiva : São Paulo ,1967 FELINTO, Marilene. Postcard. São Paulo : Iluminuras, 1991 KRISTEVA, Júlia. Les temps de femmes. Paris, 1979. LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique, Paris: Ed. Du Seuil, 1975 LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1979 PIÑON, Nélida. O calor das coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997 _____________. A memória feminina. Colóquio Internacional UNESCO/ Colégio Brasil, Rio de Janeiro , set. de 2002. _____________.O gesto da criação: sombras e luzes. In SHARPE, Peggy. Entre resistir e identificarse. Florianópolis: Mulheres; Goiânia: UFB, 1997. PINTO, Cristina Ferreira. Consciência feminista / Identidade feminina: relações entre mulheres na obra de Lygia Fagundes Telles. In SHARPE, P. (org.) Entreresistir e identificarse. Florianópolis: Mulheres; Goiânia: UFB, 1997. SHARPE, Peggy.(org.) Entre resistir e identificarse. Para uma teoria da prática da narrativa brasileira de autoria feminina. Florianópolis: Ed.Mulheres; Goiânia: UFG, 1997 Nota biográfica: Lúcia Helena Vianna, nasceu no Estado do Rio de Janeiro, onde vive. É escritora( ensaísta), pesquisadora do CNPq ( Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Nacional (CNPq) e professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense(UFF), aposentada. Entre as suas publicações, merece relevo o livro Cenas de amor e morte na ficção brasileira, que em 1966 recebeu o Prêmio Casa de las Américas ( Havana / Cuba). O livro foi publicado em espanhol , por aquela casa de cultura, no ano de 1997 e que em 1999 ganhou sua edição brasileira (EDUFF, Niterói / RJ). O seu primeiro livro,A ponta do novelo. Uma interpretação de Angústia, de Graciliano Ramos, publicado em 1983, (Lúcia Helena Carvalho), constitui referência para o conhecimento daquele escritor alagoano, mas já revela o interesse pela questão da mulher, que tem dominado suas pesquisas posteriores . Publicou ainda o Roteiro de leitura de São Bernardo( 1997 ) e recentemente a antologia Contos de Escritoras brasileiras, que organizou em parceria com Marica Lígia Guidin ( dez.,2003)
[1] SHARPE, Peggy(org.) Entre resistir e identificarse. Florianópolis: Ed.Mulheres , Goiânia: Ed. UFG,1997
[2] [2]: “estou tentando captar a quarta dimensão do instantejá que de tão fugidio não é mais porque tornouse um novo instante – já que também não é mais.”(...) “Só no tempo há espaço para mim”. LISPECTOR, 1979,9. [3] Estou utilizando contribuições trazidas por Roberto Agullol, em palestra intitulada O eros da memória, recentemente apresentada no congresso Internacional Horizontes da Memória, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro . [4] FELINTO, Marilene. Postcard. Iluminura: São Paulo ,1991. [5] PIÑON, Nélida. O gesto da criação: sombras e luzes. SHARPE, Peggy. Entre resistir e identificarse: para uma teoria da prática de narrativa brasileira de autoria feminina. Editora Mulheres: Florianópolis; Goiânia; Editora de UFG, 1997,p.82 [6] Helena Parente Cunha também reconhece explicitamente a importância da memória na ficção produzida pelas mulheres: No desenrolar temático das narrativas femininas, as personagens com freqüência recorrem à memória, a fim de encontrar prováveis respostas para indagações em torno de suas verdades.(...) Tratase de um dos mais significativos traços recorrentes na narrativa feminina em geral e com razoes ainda mais ostensivas no segmento brasileiro e, com isto, naturalmente, estou falando de Mulher no espelho e Doze cores do vermelho.”In SHARPE, P. Ob. cit. P. 129