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UFF - Universidade Federal Fluminense Centro de Estudos Gerais Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Departamento de História Programa de Pós-Graduação em História FRANCISCO JAVIER MÜLLER GALDAMES ENTRE A CRUZ E A COROA: A TRAJETÓRIA DE MONS. PIZARRO (1753-1830) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de mestre em História. Orientador: Prof. Guilherme Pereira das Neves Niterói Agosto 2007

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Dissertação

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  • UFF - Universidade Federal Fluminense Centro de Estudos Gerais Instituto de Cincias Humanas e Filosofia Departamento de Histria Programa de Ps-Graduao em Histria

    FRANCISCO JAVIER MLLER GALDAMES

    ENTRE A CRUZ E A COROA:

    A TRAJETRIA DE MONS. PIZARRO (1753-1830)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obteno do ttulo de mestre em Histria.

    Orientador: Prof. Guilherme Pereira das Neves

    Niteri

    Agosto 2007

  • I

    SUMRIO

    Resumo p. II

    Abstract p. III

    Agradecimentos p. IV

    Introduo p. 1

    Captulo 1 Monsenhor Pizarro em seu Tempo 1.1. A Vida p. 8 1.2. As Visitas Pastorais p. 28

    Captulo 2 No Tempo da Corte 2.1. As Memrias Histricas p. 37 2.2. A Atuao na Mesa da Conscincia e Ordens p. 49

    Captulo 3 Em Tempos Constitucionais 3.1 A Primeira Legislatura p. 68 3.2. A Atuao de Pizarro p. 73

    Concluso p. 84

    Fontes p. 88

    Bibliografia p. 90

    Anexos p. 93

  • II

    RESUMO

    Esta Dissertao tem por objetivo analisar a trajetria de Jos de Sousa Azevedo Pizarro e Arajo (1753-1830), tambm conhecido como Monsenhor Pizarro, cuja fama repousa nas Memrias Histricas do Rio de Janeiro que ele escreveu. Ele representou com nitidez uma certa mentalidade que pode ser tomada como caracterstica da colnia que o Brasil foi, pelo menos at 1808. Na realidade, nos ltimos anos do sculo XVIII e primeiras dcadas do XIX, Pizarro personificou, to bem quanto poucos outros, a slida unio que se estabeleceu no mundo luso-brasileiro entre a Coroa e a Igreja e que se viu reforada pela atuao do marqus de Pombal (1750-1777). Dessa forma, toda a trajetria de sua vida deixa transparecer traos que remetem ao Antigo Regime, colocando-o com freqncia em contraposio s perspectivas que tendem a valorizar os esforos do perodo inspirados por um reformismo ilustrado, de origem europia.

  • III

    ABSTRACT

    This Dissertation has as its goal to analyze the life-course of Jos de Sousa Azevedo Pizarro e Arajo (1753-1830), also known as Monsenhor Pizarro, whose fame came from the Memrias Histricas do Rio de Janeiro that he wrote. He graphically represents a certain turn of mind which may be considered as characteristic of the colony that Brazil was at least until 1808. Actually, during the last years of the 18th and the first decades of the 19th Century, Pizarro embodied as few others did the strong bond established in the Luso-Brazilian world between the Church and the Crown, bond which was reinforced by the action of the marquis of Pombal (1750-1777). As a result, from the whole life-course of Pizarro, the features that stand out are those that directly point to the Ancien Rgime, placing him in frequent opposition to those views which try to

    highlight the efforts at the time that were inspired by European enlightened ideals.

  • IV

    AGRADECIMENTOS

    Esta dissertao representa o esforo de diversas pessoas, que se mostraram imprescindveis para que eu pudesse conseguir reunir todas as informaes e completasse este trabalho.

    Primeiramente, agradeo a minha esposa, que me acompanha desde a juventude, quando ainda no sabia o que queria da vida. Voc muito importante para mim, e por isso dedico este trabalho a voc que soube ficar ao meu lado nas horas mais difceis e me incentivou nas vezes em que pensei em desistir. Muito obrigado, a voc que gerou meu filho, Santiago Xavier, por quem vivo hoje e que alegra nossa vida, dando sentido minha persistncia nessa pesquisa.

    Com muito carinho, agradeo ao homem que acreditou em mim, Guilherme Pereira das Neves, pessoa que hoje ouso chamar de amigo. Que faz parte da minha histria de vida e que apesar das intempries causadas pelas greves no perodo de FHC, investiu no meu aprendizado atravs de reunies, duas ou trs vezes por semana, para que eu pudesse recuperar o tempo perdido. Apesar de ter convivido pouco tempo, agradeo tambm a sua esposa Lcia Bastos, que sempre esteve ao lado de Guilherme, apoiando-o e, com pacincia, aguardava que terminasse suas orientaes, que muitas das vezes se estendiam. Guilherme orientou-me durante toda a graduao e ps-graduao; sabendo ser mais que um professor, ele foi meu tutor, preocupado com minha formao humana, ultrapassando as fronteiras acadmicas e ensinando-me a caminhar sozinho, sem bengalas. Muito obrigado por tudo, no tenho palavras para dizer o quanto sou grato pela sua dedicao.

    Agradeo tambm aos meus pais e irmo, que com todas suas limitaes, se esforaram ao mximo para me educar e fazer de mim a pessoa que sou hoje. Ensinaram-me valores, que sem eles no poderia ter alcanado to alto degrau em minha vida. Mesmo distncia, sempre se preocupavam, se alegravam e sofriam comigo. Muito obrigado, este trabalho tambm resultado do investimento que vocs fizeram em mim. Acho que valeu a pena.

  • V

    Tambm agradeo aqui a todos do [email protected], e no posso deixar de citar duas pessoas deste grupo que me ajudaram muito. Renato Cajueiro, que, com suas abstraes, reflexes e neuroses, me ajudou na percepo da importncia das instituies na formao da sociedade ora estudada, seja atravs do Conselho Ultramarino, ou da Academia de Histria. Amigo fiel com quem sempre pude contar, mesmo quando nos vamos em meio a disputas polticas que acabaram pondo fim ao nosso romantismo frente a vida acadmica. Muito obrigado, Renato. E a Nelson Cantarino, que igualmente soube com seus conselhos e anlises facilitar os caminhos na academia. Tambm me auxiliou com sua pesquisa sobre o famoso Godinho e me deu o empuxo necessrio para que pudesse atravs desta dissertao mostrar que, apesar de haver algumas excees, a grande maioria da populao no tinha em mente uma transformao, devido a sua insero em um mundo mgico, litrgico e oral.

    Agradeo profundamente ao amigo Paulo Roberto Gavio, membro do Colgio Brasileiro de Genealogia, que a todo o momento se preocupou com o andamento da dissertao, realizou pesquisas para mim, encontrando inmeros documentos que s fizeram engrandecer esta dissertao. Agradeo tambm a sua esposa, que se preocupava igualmente com o andamento deste trabalho.

    Outros amigos que no posso deixar de citar so aqueles que eu chamo de anjos da ltima hora, pois faltando poucos dias para a entrega deste material, surgiram com vrias informaes essenciais. So eles o Sr. Jos Nazareth de Souza Fres, membro do Colgio Brasileiro de Genealogia e o Prof. Estevo de Rezende Martins, da UNB, que, em meio ao caos areo, onde todos ficam impacientes ao esperar horas interminveis para poder levantar vo, este amigo, que ainda no tive a satisfao de conhecer, sentou-se pacientemente e traduziu, ali no aeroporto, diversas expresses que estavam em Latim, e que foram de suma importncia para o trabalho aqui apresentado.

    Agradeo, tambm banca, formada pela Prof. Dr. Mariza Soares e pela Prof. Dr. Anita Correia Lima de Almeida, que j na qualificao me deram apoio e sugestes para melhorar esta dissertao.

    Por ltimo e no menos importante, agradeo CAPES, que investiu neste trabalho durante dois anos atravs de uma bolsa de estudos, sem a qual no seria possvel a apresentao deste material.

  • VI

    Para a Ray

  • 1

    INTRODUO

    No ltimo ano do sculo XX, o Prof. Guilherme Pereira das Neves, meu orientador, apresentou-me a uma obra escrita nos ltimos anos do sculo XVIII, mas publicada j no XIX. As Memrias Histricas do Rio de Janeiro, por Mons. Pizarro, em dez volumes, que trata do desenvolvimento do Rio de Janeiro sob a tica eclesistica. Apesar do assunto ser do meu interesse, a escrita e a organizao da obra no facilitaram minha aproximao. Contudo, Guilherme Pereira das Neves, aos poucos, foi me conduzindo e me mostrando a importncia das Memrias Histricas e principalmente a importncia de seu autor para o perodo. Assim, apesar da dificuldade em entender as Memrias, comecei a tomar gosto pela trajetria de seu autor, que at ento eu compreendia como um homem comum, ultrapassado e sem aquele algo a mais que todo o historiador procura em uma personagem, quando deseja fazer um estudo biogrfico. Porm, comecei a perceber que a singularidade de Pizarro estava no prprio fato de ele representar o comum, o dia-dia, ou seja, a mentalidade colonial. Diferentemente do moleiro descoberto por Carlo Ginzburg1 e exaltado por tantos outros, Pizarro representante de uma elite, conservadora, que detm quase o monoplio da educao e que submete-se aos interesses do Estado, ainda que sem abandonar os interesses religiosos.

    Quando tomei conhecimento das Memrias, participava de uma pesquisa cuja temtica baseava-se nas relaes entre a Coroa portuguesa e a Igreja, com o prprio Prof. Guilherme Pereira das Neves. Foi neste perodo que passei a dedicar todo o meu tempo disponvel tentando desvendar os mistrios existentes nessa obra to confusa, mas caracterstica do sculo XIX.

    As Memrias Histricas do Rio de Janeiro escritas por Monsenhor Jos de Souza Azevedo Pizarro e Arajo, publicadas pela Imprensa Rgia em 1820 e reeditadas em 1945,2 formam de fato um tesouro para aqueles que tm como objetivo buscar, entre

    1 Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela inquisio; trad. Betania Amoroso. So Paulo: Companhia das Letras, 1987.

    2 Jos de Souza Azevedo Pizarro e Arajo (Monsenhor). Memrias Histricas do Rio de Janeiro e das Provncias anexas Jurisdio do Vice-Rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Impresso Rgia,

  • 2

    outras coisas, a contribuio da religio para a construo de uma mentalidade especificamente colonial.

    Apesar de mal ordenada e de, s vezes, conter algumas imprecises, o contato com a obra abriu-me os olhos para as permanncias existentes na colnia, tpicas de uma sociedade de Antigo Regime, em contraposio s perspectivas que querem inserir o Brasil colonial, da segunda metade do sculo XVIII, no quadro geral do reformismo ilustrado europeu.

    Com o decorrer das pesquisas fui amadurecendo a idia de que as Memrias eram apenas um indcio de que a sociedade colonial, alm aceitar a escravido e de se estruturar sob a base da famlia patriarcal, possua outras tantas caractersticas daquele perodo que foi denominado de Antigo Regime. Como conseqncia ampliei o meu foco de pesquisa para alm das Memrias. Passei ento a ver no autor dessa obra uma chave para se entender, de forma mais interessante, as relaes existentes entre a Coroa e a Igreja na construo de uma mentalidade colonial, por meio das instituies arcaicas da Amrica Portuguesa. Como resultado, parti, antes de mais nada, na busca de elementos que pudessem me dar subsdios para a construo da biografia de Mons. Pizarro.

    E o primeiro passo foi a leitura do artigo Iluso biogrfica de Pierre Bourdieu.3 Em seguida passei a realizar pesquisas no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, na Biblioteca Nacional, no Arquivo da Cria Metropolitana do Rio de Janeiro, no Arquivo Nacional, na Biblioteca Central do Gragoat, no Centro Cultural do Banco do Brasil e, ainda, no Arquivo da Cria de Niteri.

    Nesses lugares, pude encontrar diversas informaes sobre Pizarro. Algumas mostraram-se desencontradas, como, por exemplo, a data de seu falecimento, que ora consta como 1829, ora 1830. Encontrei tambm algumas curiosidades, como uma biografia que afirma que Pizarro recebeu a funo de Visitador do Bispado para fugir, pois ele teria feito parte da Sociedade Literria do Rio de Janeiro que fora devassada pelo Conde de Resende, em 1794, do que resultou a priso dos letrados que participavam de suas reunies. Como no encontrei o nome de Pizarro nos Autos da

    1820-1822. 9 tomos em 10 volumes. Reedio: Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Sade / Instituto Nacional do Livro / Imprensa Nacional, 1945-46. 11v (Biblioteca Popular Brasileira, 4).

    3 Pierre Bourdieu. A iluso biogrfica. In: Marieta de Moraes Ferreira & Janana Amado (orgs). Usos & abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro, Editora da Fundao Getlio Vargas, 1998, p. 183-191.

  • 3

    Devassa e tambm no encontrei nenhum outro documento que comprovasse tal afirmao, no a levarei em considerao; verifiquei tambm os diversos ttulos com os quais Pizarro foi condecorado, ttulos que sero indicados mais frente.4 Obtive tambm a informao de que Pizarro saiu preso de uma solenidade por desacato ao bispo, assim como a de que tivera uma filha, e que esta se casou com um militar, indo morar no Cear.5

    Alm dessas, encontrei no Arquivo Metropolitano da Cria do Rio de Janeiro, o livro de visitas pastorais, feitas por Monsenhor Pizarro no ano de 1794, j transcritas; no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, a obra Relao das Sesmarias da Capitania do Rio de Janeiro... de 1565 a 1796, publicada na Revista da instituio; a obra indita, segundo Sacramento Blake, Obras Relativas a negcios eclesisticos do Brasil, 2 vols. In fol., pertencentes igualmente ao Instituto Histrico Geogrfico Brasileiro; alm da memorvel obra Memrias Histricas do Rio de Janeiro e das Provncias Annexas a Jurisdio do Vice-rei do Estado do Brasil, que pode ser encontrada nas melhores bibliotecas.

    Assim, todo esse conjunto de informaes, juntamente com uma anlise minuciosa das atitudes de Pizarro fizeram com que comeasse a perceber como ele realmente uma personagem paradigmtico, que carrega consigo o desejo de se perpetuar, mas sem abandonar o mais importante dos princpios que regem o mundo de Antigo Regime, isto , o privilgio.

    sob esta perspectiva que o estudo da trajetria de Monsenhor Pizarro se torna revelador das relaes estabelecidas entre clrigos e seculares no perodo, como tambm das condies sob as quais se deu a expanso da Igreja no Brasil. H que ter em vista que Pizarro sempre esteve envolvido com o poder, sobretudo desde a chegada da corte ao Brasil, em 1808, at seu falecimento, quando ocupava uma cadeira de deputado, na primeira legislatura do novo pas.

    No se trata, portanto, de examinar Monsenhor Pizarro apenas enquanto historiador, autor das memrias, mas sim de acompanhar toda sua trajetria, desde sua ordenao e colao como proco da antiga S fluminense, passando pelas Memrias,

    4 Biblioteca Nacional. Livro de Autgraphos: Biografia de Monsenhor Pizarro.Diviso de Manuscritos. 15,4,9.

    5 Arquivo da Cria Metropolitana do Rio de Janeiro. Correspondncias, Avisos, Portarias e Ofcios, 1774-1833. Srie: Encadernados, notao: E-83. p.104-145. Ver tambm Nireu Oliveira Cavalcanti. Crnicas Histricas do Rio colonial. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2004.

  • 4

    percorrendo os pareceres que emitiu enquanto procurador geral das ordens na Mesa da Conscincia e estudando sua participao como deputado na legislatura de 1826 a 1830.

    Nesse percurso, Pizarro personifica a grande unio que se estabeleceu no mundo luso-brasileiro entre a Coroa e a Igreja. Defensor intransigente do regalismo, que decorria do padroado portugus, ele realizou seu trabalho procurando ser, antes de tudo, fiel ao rei, e deixando muitas vezes de lado os interesses espirituais. Quer dizer, ele se mostrou muito mais um vassalo da Coroa, do que um servo de Cristo.

    Tal postura evidencia-se certamente nas Memrias, mas sobretudo nos pareceres que emitiu como procurador geral das ordens (examinados em 2.2) que pode ser melhor acompanhada. So nestes pareceres que de fato Pizarro pe no papel sua postura, pois neste caso ele tem como funo analisar requerimentos, de acordo com a sua posio poltica e tambm de acordo com os interesses da corte em dar certa merc, ou no. Por isso, tentei analis-los inspirado, tanto quanto possvel, pelos procedimentos desenvolvidos, em particular, tanto por J. G. A. Pocock quanto por R. Koselleck, que discuti em um curso ministrado pela Prof Gladys Sabina Ribeiro. Enquanto isso, nas visitas pastorais, ele tinha que seguir um roteiro cannico, que no lhe deixava muito espao para interpretao. J as Memrias so suas lembranas e anotaes que se fazem presentes, acumuladas por efeito dessas visitas, mas podendo ser escritas sem o rigor cannico daquelas. Por conta disso, podem-se encontrar vrios cochilos de Pizarro, como veremos mais adiante.

    O que interessa agora deixar claro que esta dissertao tem como objetivo fazer uma anlise de toda a trajetria de Mons. Pizarro, atravs da qual procurarei mostrar como a sociedade brasileira foi estruturada pelas instituies arcaicas, j existentes em Portugal, e como o Antigo Regime, mesmo com a Independncia do Brasil, e a primeira legislatura, no foi superado. Neste sentido, a pessoa de Mons. Pizarro no deixa de ser uma personificao do Antigo Regime.

    No meu interesse discutir nesta obra o surgimento do catolicismo de famlia, identificado por Gilberto Freyre. Nem mesmo, a especificidade religiosa que permitiu a Caio Boschi, em Os Leigos e o Poder, analisar a Amrica Portuguesa como um lugar onde as regras e padres normativos impostos pelas reformas religiosas estavam

  • 5

    ausentes, formando assim um catolicismo popular, com uma fraca evangelizao e uma hipertrofia da constelao devocional.6

    No entanto, entendo que o cristianismo que se desenvolveu na Amrica Portuguesa no se diferenciava muito do cristianismo portugus do sculo XV, sendo, portanto, formado pela fuso de crenas e de prticas que a princpio eram vistas como crists, porm estavam impregnadas de prticas pags. Sigo, por conseguinte, com Jean Delumeau,7 quando afirma, em A Civilizao do Renascimento, que a fraqueza da Igreja, antes das reformas, consistia na deficiente instruo religiosa e na insuficiente formao dos padres, o que fazia com que a religiosidade popular fosse muito mais ritualizada do que sentida. Na realidade, somente com o fim do conclio de Trento em 1563, a Igreja Catlica passou a investir em uma melhor qualificao do clero, reforando sua posio doutrinal, reafirmando a autoridade papal e, principalmente, procurando depurar as prticas religiosas das antigas tradies pags. Para Erasmo, por exemplo, o carnaval no era cristo.8

    Portanto, da mesma forma que os protestantes, a ao catlica, a partir de ento, compreendeu um esforo de reformulao da religiosidade popular na Europa, procurando moldar e normatizar as extravagncias e exterioridades, assim como, ao mesmo tempo, evitando a irreverncia, que fazia parte da cultura popular, nessa poca. Para Peter Burke, em Cultura Popular na Idade Moderna, os reformadores tiveram como primeiro objetivo separar o sagrado e o profano, para que no houvesse mais tanta familiaridade com o sagrado. Caminhou-se, assim em direo ao desencantamento do mundo; e a Quaresma venceu o Carnaval.9

    Enquanto isto, a Amrica Portuguesa conservou uma religiosidade hbrida como uma das marcas de sua mentalidade. A reforma tridentina no alcanou a colnia, permitindo que colonos livres e cativos se portassem conforme lhes convinham, embora sem esquecer jamais a marca de um certo exteriorismo religioso.

    6 Caio Csar Boschi. Os Leigos e o Poder: irmandades leigas e poltica colonizadora em Minas Gerais. So Paulo: tica, 1986.

    7 Jean Delumeau. A Civilizao do Renascimento. Trad. Manuel Ruas. Lisboa, Editorial Estampa, 2v. 1994.

    8 Peter Burke. Cultura Popular na idade Moderna: Europa 1500-1800. Trad. Denise Bottmann. So Paulo, Companhia das Letras, 1989.

    9 Idem.

  • 6

    Desta maneira, o papel da religio torna-se de primordial importncia para a compreenso do perodo colonial. Esta originalidade colonial da religiosidade brasileira fez com que africanos e ndios no s contribussem com suas espiritualidades prprias, mas tambm que os reinis conservassem crendices e prticas imemoriais, criando uma atmosfera especfica. Singularidade que tendeu a conservar-se, pois a monarquia, responsvel pela poltica espiritual atravs do padroado, pautava a evangelizao por razes de Estado e no pelas das almas. Assim, pode-se compreender uma Igreja que admitia a escravido, obrigatria explorao colonial. Esta postura da Coroa portuguesa no deixou de ser criticada pelos jesutas, como Antonil, que via naqueles que estavam cativos capacidade suficiente de compreender de forma clara o catolicismo, visto que compreendiam as regras da casa-grande; assim como por Jorge Benci, que entendia que fora a falta de dedicao do clero na catequese que permitiu a construo dessa religiosidade miscigenada. Laura de Mello e Souza, por sua vez, identifica na falta de comunicao e de liderana da Igreja romana sobre a colnia um dos motivos para que a Amrica Portuguesa ficasse condenada ao sincretismo, visto que, em cem anos, somente um bispado havia sido criado para cuidar de um territrio imenso.10

    Como conseqncia, obteve-se um clero mal preparado. Havia padres que ignoram a ordem da Santssima Trindade, a maneira certa de se persignar. Assim, o cristianismo praticado caracterizava-se pelo desconhecimento dos dogmas, pela participao das missas sem compreenso dos sacramentos. Isso apesar da opinio diferente de Caio Prado Jnior que, devido sua perspectiva econmica, acabou por identificar a Igreja como sendo uma instituio diretamente ligada administrao, devido melhor qualificao do clero.11

    A proibio de determinados livros pela Inquisio e a necessidade de conhecer o Latim dificultaram tambm o desenvolvimento da cultura escrita, impedindo a sada daquele mundo litrgico da cultura oral para o mundo da cultura escrita e cientfico. Capistrano de Abreu observou que o excesso de vadios sustentados pela hospitalidade indgena e a falta de divertimento pblico viam-se compensados por freqentes festas

    10 Laura de Melo e Souza. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo, Companhia das Letras, 1986.

    11 Caio Prado Jnior. Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo, Brasiliense, 1999.

  • 7

    religiosas e procisses, que se sobressaam pelas figuras simblicas, pelo luxo, pelo aparato teatral, muito mais do que pela contrio espiritual.12

    Formou-se assim um cristianismo de superfcie, conforme Guilherme Pereira das Neves, que no conseguiu romper o vu que separa a razo da f, o natural do sobrenatural, acabando por estabelecer uma continuidade com uma religiosidade medieval. Este ambiente foi propcio para que as diversas religiosidades que estavam na Amrica Portuguesa se misturassem ao catolicismo que, ao invs de uma religio do templo, da catedral, como queria Trento, permaneceu uma religio da rua.

    Se diferenciada religio de religiosidades sendo religio o contedo composto por dogmas abstratos, e religiosidades, pelas prticas ser este cristianismo de fachada que ir facilitar, de certa forma, a permanncia da unio entre o clero e a nobreza na Amrica Portuguesa; e tambm o trabalho de Monsenhor Pizarro. J que os fiis estavam mais preocupados com um certo exteriorismo religioso do que com as normas e regras impostas pelo conclio de Trento, permitia-se ao clero, subordinado Coroa, agir conforme os interesses do Estado, sem ser questionado pelo seu rebanho.

    12 Joo Capistrano de Abreu. Captulos de histria colonial. 3.ed., s/l, F. Briguiet & Ca, 1934.

  • 8

    Captulo 1 Monsenhor Pizarro em seu Tempo

    1.1. A Vida

    Jos de Souza Azevedo Pizarro e Arajo perpetuou-se na histria brasileira como Mons. Pizarro, autor das Memrias Histricas do Rio de Janeiro e das Provncias anexas Jurisdio do Vice-Rei do Estado do Brasil13. Embora esquecido por grande parte da historiografia, alguns ilustres historiadores permitiram, atravs de biografias tradicionais, que seus atos e aes no fossem esquecidos. Dentre estes encontramos Janurio da Cunha Barbosa14, deputado junto com Pizarro primeira legislatura e autor de sua biografia na Revista do IHGB. O escritor Joaquim Manoel de Macedo15 tambm escreveu uma biografia do Pizarro, que pode ser encontrada na Biblioteca Nacional; como possvel citar, obviamente, o Dicionrio biobibliogrfico do Sacramento Blake16, que rene informaes a respeito da vida e obra de Monsenhor Pizarro; e, por ltimo, talvez a melhor biografia escrita sobre Monsenhor Pizarro, escrita por Amrico Jacobina Lacombe e publicada na revista Verbum,17 em 1949.

    Mesmo que a obra de Pizarro, com 187 anos de existncia seja utilizada ainda hoje por renomados historiadores - exemplo disto so as obras de Caio Prado Jr., Guilherme Pereira das Neves, e Maria Regina Celestino de Almeida18 - Pizarro ,

    13 Jos de Souza Azevedo Pizarro e Arajo (Monsenhor). Memrias Histricas do Rio de Janeiro e das Provncias anexas Jurisdio do Vice-Rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Impresso Rgia, 1820-1822. 9 tomos em 10 volumes. Reedio: Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Sade / Instituto Nacional do Livro / Imprensa Nacional, 1945-46. 11v (Biblioteca Popular Brasileira, 4).

    14 Janurio da Cunha Barbosa. Biographia dos brazileiros distinctos pelas sciencias, letras, armas e virtudes Monsenhor Jos de Souza Azevedo Pizarro e Arajo. In: Revista do IHGB. Tomo I, p. 352-354. Typographia Universal Laemmert, 1856. 2 ed.

    15 Autographos. Monsenhor Pizarro. Diviso de Manuscritos da Biblioteca Nacional. 15, 4, 9. 16 Sacramento Blake, Dicionrio Biobibliogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,1899,

    v. 5, p. 211-2. 17 Amrico Jacobina Lacombe. Monsenhor Pizarro. In: Revista Verbum, v. 6, fasc. 1. Rio de Janeiro,

    Pontifcia Universidade Catlica, maro de 1949. 18 Caio Prado Jnior. Formao do Brasil Contemporneo: Colnia. So Paulo: Brasiliense, 1999. 6

    reimpr. da 23 ed. de 1994; Guilherme Pereira das Neves. E Receber Merc: a Mesa da Conscincia e Ordens e o clero secular no Brasil 1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997; Maria Regina Celestino de Almeida. Metamorfoses Indgenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

  • 9

    injustamente, tratado apenas como um compilador de dados. Isto se deve pouca clareza de sua principal obra e ignorncia a respeito do significado que Mons. Pizarro teve para a Coroa portuguesa e para o projeto colonizador, nos fins do sculo XVIII e primeira metade do XIX.

    Monsenhor Pizarro no se resume a uma obra. Porm, os diversos escritores que buscaram, de alguma forma, fazer com que Pizarro no fosse esquecido, criaram a imagem de uma vida pacata e tranqila, com diversos ttulos, honrarias e mercs, tendo seu auge na publicao das Memrias.

    Mons. Pizarro nasceu no Rio de Janeiro a 12 de outubro de 1753; foi batizado na Candelria, filho do Coronel Luiz Manuel de Azevedo Carneiro e Cunha, vivo de Dona Luiza Clara de Andrade, falecida na Vila de Almada, mas casado em segunda npcias com D. Maria Josepha de Sousa Pizarro na capela N Sr da Conceio dos Passos19.

    Demonstrando talento natural durante os estudos elementares, foi enviado a Coimbra em 1769. Diplomou-se em Cnones na Universidade de Coimbra, j reformada pelo marqus de Pombal. Quando se preparava para voltar ao Brasil, soube que seus pais tinham falecido; desgostoso, abandonou a idia da vida civil e tomou as ordens sacras20. Foi apresentado a 20 de outubro de 1780 para a 6 cadeira do Cabido do Rio de Janeiro. Confirmado em 23 de maro do ano seguinte, tomou posse dia 25 do mesmo ms.21

    Em 1786 solicitou ocupar o lugar do Comissrio do Santo Ofcio, que seus tios o deo doutor Gaspar Gonalves de Arajo, e o padre Jos de Sousa Ribeiro de Arajo, tesoureiro mor da mesma S, tinham ocupado durante a vida, isto porque e porque Nelle com correm todas as circunstancias necessrias para bem se empregar no do menistro sendo alem do referido das principais famlias daquella cidade.22

    19 Tribunal do Santo Ofcio, Conselho Geral, Habilitaes, Jos, m. 155, doc. 3005. Ver Anexo IV e V.

    20 Autographos. Monsenhor Pizarro. Diviso de Manuscritos da Biblioteca Nacional. 15, 4, 9. 21 Janurio da Cunha Barbosa. Biographia dos brazileiros distinctos pelas sciencias, letras, armas e

    virtudes Monsenhor Jos de Souza Azevedo Pizarro e Arajo... Ver tambm, Amrico Jacobina Lacombe. Monsenhor Pizarro..., p. 44; alm das Memrias ..., v. 6, p. 134-6.

    22 Tribunal do Santo Ofcio, Conselho Geral, Habilitaes, Jos, m.155, doc.3005.

  • 10

    Nessa habilitao do Santo Ofcio, encontrei igualmente detalhes familiares que explicam a proximidade de Monsenhor Pizarro com a Coroa portuguesa, especialmente com o futuro D. Joo VI, para quem dedicou a obra.

    Seus parentes paternos sempre estiveram ligados s foras armadas. Seu av, Felix de Azevedo Carneiro e Cunha, era Tenente General, casado com D. Magdalena Xavier de Essa; e seu pai chegara a Tenente Coronel. Tendo em vista que seu pai era lisboeta, acredito que serviam no exrcito portugus. A irm de seu pai, D. Francisca Xavier de Andrade e Essa, foi dona da cmera da Rainha a Sra D. Marianna de ustria.

    Seus parentes maternos tambm eram prximos da corte, pois o av materno de Pizarro, Francisco Xavier Pizarro, era cavaleiro da Ordem de Cristo e fidalgo da Casa Real, natural da Vila de Chaves, donde passou ao Brasil e casou-se na Vila de Santos com D. Eufrsia Maria Ribeira de Arajo, natural do local, av de Pizarro, filha do sargento-mor Thomaz de Sousa, e de sua mulher D. Maria Ribeira de Arajo. Desta forma, a me de Pizarro era natural da vila de Santos, mas residente no Rio de Janeiro. E a dita av materna era irm inteira do Pe. Jos de Sousa Ribeiro de Arajo, que foi arcediago e tesoureiro mor da S do Rio e comissrio do Santo Oficio. Da mesma forma, a dita D. Maria Ribeira de Arajo, bisav materna de Pizarro foi irm inteira do doutor Gaspar Gonalves de Arajo, deo da mesma S do Rio; e igualmente comissrio do Santo Oficio.

    Apesar de nenhum dos bigrafos comentar, Pizarro teve um srio atrito com o bispo do Rio de Janeiro, D. Jos Joaquim Justiniano Mascarenhas de Castelo Branco (1774-1805), anti-regalista23, que em carta rainha D. Maria, datada de 1782, por ocasio da fuga do reverendo doutor Pedro Jos Augusto Flvio de Faria e Lemos, deo da Catedral do Rio de Janeiro, fez uma intriga, dizendo que Pizarro estava mancomunado como o dito deo.

    O deo doutor Pedro Jos Augusto, foi acusado de ter fugido em 1764, sem cumprir sua obrigao junto freguesia de So Francisco Xavier do Engenho Velho, o que caracterizava crime de desobedincia, seguindo para Lisboa sem autorizao. Segundo D. Jos Joaquim, em Portugal, o deo passou-se para a cidade de Coimbra, donde foi despejado pelo bispo devido ao escndalo que dava em Eiras, fazendo vida conjugal com duas mulheres irms, das quais teve filhos, e a quem doou a quinta em

    23 Amrico Jacobina Lacombe, no artigo j citado, sobre Pizarro, conjectura que o ordinrio supracitado, devido ao que escreve Pizarro no volume 6 das Memrias, seria ultra-montano.

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    que vivia, procurando legitimar os sacrilgios incestuosos. De acordo com o mesmo bispo, por no conhecerem seus crimes, foi promovido a deo da S do Rio de Janeiro, em 1779, e voltou ao Rio quase que obrigado. Aqui chegando, Pedro Jos Augusto, em dezembro de 1780, avisou que s residiria nesta cidade por dois ou trs anos.

    Em os seis meses de residncia amara a perturbou de sorte, que a observar os Estatutos, que jurou guardar, deveria principia-la muitas vezes: seu mau exemplo teve logo sqito; e facilmente conseguiu desprezarem-se os Estatutos da mesma residncia amara. Foi preciso que os Capeles da S o ensinassem para saber registrar seu brevirio, ainda quando se rezava do comum; e com o Mestre de escola aprendeu a dizer missa: tal se v o estado de ignorncia, em que se achava depois de 18 anos de sacerdote. No coro e no altar no s atropelava tudo, mas passava a dar o maior escndalo com as suas aceleraes.24

    Para D. Jos Joaquim, o deo agia de forma vil, pois seu interesse consistia em voltar para Lisboa, com seus vencimentos aumentados atravs de nomeao para procurador do Cabido. Com essa finalidade, o deo procurou apoio junto ao mestre-escola Jos Coelho Peres de Frana e ao cnego Jos de Souza Azevedo Pizarro e Arajo, para que estes se opusessem, no Cabido, opinio do bispo, sabendo que este era contra essa nomeao devido s acusaes que recaam sobre o acusado.

    provvel que Pizarro tenha conhecido o deo em Coimbra, enquanto cursava a universidade. E, entendendo que o apoio ao deo Pedro Jos Augusto poderia lhe render frutos, tendo em vista seus vnculos na corte portuguesa, decidiu fazer frente ao bispo. No entendimento de D. Jos Joaquim, Pizarro queria o deo na corte para que ele, com suas boas diligncias25, sustentasse o partido contra o bispo.

    Aqui comeamos a ver como Pizarro sabia muito bem interpretar o seu tempo em que vivia. Apesar de D. Jos Joaquim acusar o deo de inmeras faltas, Pizarro entendera que seria mais til, e realmente foi, apoi-lo nesta empreitada. Comeamos a perceber o quo paradigmtico foi Mons. Pizarro, membro do alto clero e defensor de uma tradio que submetia a Igreja ao Imprio portugus, atravs do padroado, que transformava os membros da igreja em verdadeiros funcionrios do rei. Possuidor de uma historicidade singular, Pizarro sabia muito bem agir conforme os interesses mais vantajosos. Portanto, nem sempre obedecia s regras e s hierarquias clericais;

    24 ACMRJ. Correspondncias, Avisos, Portarias..., p. 105. 25 ACMRJ. Correspondncias, Avisos, Portarias..., p. 110 e 110v.

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    acreditava muito mais nas relaes clientelares. Para ele, o distanciamento entre metrpole e colnia, provocado pelo Atlntico, no representava motivo para que a figura do rei no fosse respeitada; ao contrrio, tudo se fazia em nome do rei.

    De acordo com a carta do bispo rainha, foram os trs (o deo, o mestre-escola e Pizarro) que fizeram intrigas contra o ele (D. Jos Joaquim Mascarenhas de Castelo Branco); que desrespeitavam a celebrao eucarstica; que conversavam quando estavam no coro; e que davam risadas de seus erros durante os ritos.

    Alm disso, o bispo D. Jos Joaquim queixava-se de Jos Coelho Peres de Frana utilizar o apoio do tio, o desembargador Jos Luiz Frana, para conseguir um canonicato e assumir a cadeira de mestre-escola, mesmo tendo sido despedido pelo prprio ordinrio da funo de capelo do coro da S, por queixas de rebeldia feitas pelo Cabido no ano de 1777. D. Jos Joaquim entendia tambm como um absurdo o pedido feito por Pizarro junto Mesa da Conscincia e Ordens, para que lhe fosse restituda suas cngruas, durante o perodo em que esteve ausente26.

    No interesse de conseguir sua nomeao de procurador, o deo, juntamente com Pizarro, passou a estudar e interpretar os Estatutos do Cabido. Esta atitude, para D. Jos Joaquim, significou um ataque aos ditos Estatutos, j que os dois s pensavam em dar-lhe inteligncias sinistras, conforme seus interesses particulares27.

    Finalmente, de acordo com a carta, o deo levou furtivamente, com a autorizao de Pizarro, os Estatutos originais do Cabido, escritos pelo bispo D. Frei Antnio de Guadalupe (1725-1740). Contudo, no prembulo ao volume I das Memrias Histricas, Pizarro, quarenta anos depois do acontecido, se defende publicamente, dizendo que retirou os livros com autorizao, no intuito de escrever as suas ditas Memrias Histricas do Rio de Janeiro:

    e concebendo firme affecto de tocar o fim proposto, tanto mais prosseguia na descoberta de notcias profcuas ao plano desenhado, quanto felizmente nos Livros da Secretaria do Bispado, e dos registros daquela Cmara, (os quaes me foram comunicados muito favor, e como se fosse furto)...28

    26 ACMRJ. Correspondncias, Avisos, Portarias..., p. 109v. 27 ACMRJ. Correspondncias, Avisos, Portarias..., p. 106v e 107. 28 Jos de Souza Azevedo Pizarro e Arajo (Monsenhor). Memrias Histricas do Rio de Janeiro. Rio

    de Janeiro: Impresso Rgia, 1820-1822. 9 tomos em 10 volumes. Volume I, p. X-XI grifo meu. Reedio: Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Sade / Instituto Nacional do Livro / Imprensa Nacional, 1945-46. 11v (Biblioteca Popular Brasileira, 4). Volume I, p.13.

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    Depois dessas diversas acusaes aos trs sacerdotes, e da narrao de mais algumas tantas faltas graves que eles tinham cometido, D. Jos Joaquim Justiniano Mascarenhas de Castelo Branco afirmava em sua carta que resolvera no mais se opor a coisa alguma, e que o Cabido fizesse o que quisesse.

    Imediatamente, o deo foi nomeado procurador do Cabido. Contudo, as intrigas e conflitos entre uma ala do Cabido e o ordinrio no cessaram. O bispo passou a exigir do novo procurador uma reforma na S, que estava destruda pelo tempo. Por sua vez, o deo, agora procurador, justificava que a responsabilidade da obra era da Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos, a quem pertencia a Igreja, na qual a Catedral se instalara h tempo.

    Todo esse processo culminou na semana santa de 1782. No domingo de Ramos, Pizarro e o deo Jos Augusto, insatisfeitos com as palmas encomendadas para os membros do Cabido, faltaram missa conventual.

    Com estas ponderaes mostrou convencer-se o Deo, de sorte que mudando o tom me pediu muito de merc quisesse eu ao menos permitir que as Palmas dos Cnegos tivessem alguma diferena das outras comuns, pois que tambm os Rituais Romanos assim o permitiam. Cansado de persuases disse-lhe que sim... ... mandei as ditas Palmas em tudo semelhantes a de que usei nesse dia, com laos tecidos das mesmas folhas da Palma, como se diz no cerimonial dos bispos, e as pontas, e lisos prateados, fingindo fitas de prata; e quando esperava se estimasse ver a coerncia do ornato com o Cerimonial, sucedeu tanto pelo contrrio, que se enfureceram; e declamaram, como loucos, tomando o Deo, e o Cnego Jos de Souza o partido de se retirarem para suas casas; dizendo o Deo, que ia ver a Cmara do navio em que havia de embarcar para Lisboa, e o Cnego Jos de Souza com o pretexto de indisposies; pretexto to pouco sincero, como deu a conhecer no mesmo dia. O Mestre de Escola, ainda que no se retirou, mostrou bem seus sentimentos de no poder seguir seus scios, e ter de assistir ao ofcio para dizer a missa conventual.29

    Durante os dias que se seguiram semana santa, os trs no s me faltaram o devido obsquio de ir ao Consistrio para acompanhar-me ao entrar e sair do Coro, mas tambm a m residncia que no mesmo faziam entrando e saindo repetidas vezes30.

    Na quinta-feira santa, o deo se retirou durante a comunho, com os paramentos sagrados e foi murmurar na sacristia. E finalmente, na noite da sexta-feira santa para o sbado de aleluia, o deo ps o coro em tal desordem que

    29 ACMRJ. Correspondncias, Avisos, Portarias..., p. 113v e 114v. 30 ACMRJ. Correspondncias, Avisos, Portarias..., p. 114v-115.

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    dei trs ou quatro golpes de pancada com a mo na cadeira: a este sinal acudiu todo o coro, e tornei eu a dizer Senhor Deo certo, certo. Imediatamente emudeceu, e pouco depois saiu do coro, e se foi para a sacristia, aonde declarou com quanta liberdade quis contra o Bispo, e que este lhe usurpava os seus direitos; pois s ele o tinha para bater no Coro, e se retirou finalmente da igreja, tambm o cnego Jos de Souza seu inseparvel companheiro nas parcialidades sem mais licena, nem vnia estando eu presente.31

    A conseqncia deste escndalo pblico foi a priso do deo, conduzido pelo vigrio-geral ao morro do Castelo, e tambm do cnego Pizarro, conduzido pelo promotor eclesistico ilha das Cobras. Para realizar estas duas prises, o bispo recorreu ao brao secular, contando com o auxlio do vice-rei Lus de Vasconcelos.

    Na quarta-feira seguinte, o honrado Chantre o Doutor Manoel de Andrade Warnek, suplicou pela soltura dos dois, a qual foi realizada no mesmo dia. Pizarro, diferentemente do deo, no se desculpou com o bispo e no agradeceu-lhe a soltura. Entretanto, passou a cumprir suas obrigaes, coisa que o deo no fazia, e nunca mais colaborou com o bispo nas funes solenes fora da S.

    De acordo com o bispo Jos Joaquim Justiniano Mascarenhas de Castelo Branco, os dois passaram a reunir atestados de procos para enviarem Corte. Pretendiam queixar-se de os haver injuriado. Em defesa, o bispo fez um relatrio detalhado de todos os acontecimentos aqui narrados, que foi assinado por diversos cnegos e ministros inferiores, acusando explicitamente o deo; o cnego Jos de Souza Azevedo Pizarro e Arajo; e o mestre-escola, pelas dissenses entre os capitulares do Cabido (Cf. o Anexo III). Como faltam outros documentos a respeito, no podemos saber se Pizarro teve acesso a essa carta, e se deu alguma resposta, ainda neste perodo.

    Apesar disso, em Lisboa, a 3 de Outubro de 1784, apenas dois anos aps o ocorrido, o notrio do Santo Ofcio Antonio Gomes escreveu sobre Pizarro que no achava delato de culpa alguma ao Padre Joz de Souza de Azevedo nem s mais pessoas confrontadas na petio retro de que passei a presente que com o mesmo Promotor assinei.32

    No mesmo volume das Memrias, Pizarro ainda acusa o prelado, um pouco depois, de estar a favor dos anti-regalistas, na questo do pagamento do cnego Antnio Rodrigues de Miranda, quando dividiu-se o Cabido entre os partidrio da interferncia

    31 ACMRJ. Correspondncias, Avisos, Portarias..., p. 115-115v. 32 Tribunal do Santo Ofcio, Conselho Geral, Habilitaes, Jos, m.155, doc.3005.

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    da autoridade rgia no assunto e os anti-regalistas.33 Pizarro narra assim a postura de D. Jos Joaquim Justiniano Mascarenhas de Castelo Branco:

    Era assaz notrio o juzo, que sobre esse fato formava antecedentemente o bispo, unindo-se aos discursos de seu provisor e vigrio-geral Francisco Gomes Villas-Boas e do promotor Jos Rodrigues de Carvalho.34

    Em funo disso, um pouco adiante, prossegue Pizarro, talvez pensando no ordinrio:

    Tanto consegue a falta de verdade nos que devendo falar com singeleza aos prncipes e soberanos, propondo-lhes os negcios de que se acham encarregados, desviam do seu conhecimento a sincera e pura narrao dos fatos, para cevarem e satisfazerem paixes indiscretas, empenhos injuriosos e ms vontades, ocultando perante os mesmos prncipes a justia das coisas, modificando a jeito prprio os negcios e dependncias dos pretendentes, e abusando, enfim, dos religiosos deveres, que lhes impe o exerccio dos cargos pblicos, sem o menor escrpulo de prostituir os axiomas preceptivos de Direito Natural e Positivo: Jus suum cuique tribuere; alternum non laedere que pouco ou nenhum peso lhes faz na conscincia (se alis a tem), deixando as dos soberanos, que lhes cometeram o manejo dos negcios pblicos, para instruir oportunamente (quando preciso resolv-los) em convulses e torturas eternas!35

    Podemos comear ento a suspeitar que muito do que escreveu o bispo Jos Joaquim Justiniano Mascarenhas de Castelo Branco tenha sido aumentado para de certa forma acabar com a reputao dos trs amigos. Ao que tudo indica, o deo e Pizarro vinham com uma formao de Coimbra, e conviviam muito bem com a submisso da Igreja ao Estado, respondendo sempre ao rei, antes de tudo, enquanto que o bispo, formado na universidade pr-pombalina, e uma parcela do Cabido, h tanto exercendo esses cargos, passaram, por conta do distanciamento fsico da Coroa, a criar suas prprias regras.36 A vinda do deo, sob este aspecto, se configura como uma tentativa da Coroa de se fazer presente e iluminar aqueles que acreditavam na existncia de alguma sombra capaz de impedir os olhos do rei de enxergar.

    Outro indcio de que a carta escrita pelo bispo consiste mais em uma intriga do que em denncia de fato a biografia do deo Pedro Jos Augusto, escrita e publicada no volume seis das Memrias de Monsenhor Pizarro. Na Carta de 1782 do bispo

    33 Amrico Jacobina Lacombe. Monsenhor Pizarro..., p.46 34 Pizarro, Memrias ..., v. 6, p. 162-3. 35 Pizarro, Memrias ..., v. 6, p. 165 36 Pizarro, Memrias ..., v. 5, p. 184 e seguintes para dados sobre o bispo.

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    rainha D. Maria, D. Jos Joaquim descreve um deo que sequer sabe seguir os ritos e que tinha por isso de ser auxiliado. Contudo, Pizarro relata que alm do deo ter sido doutor canonista pela Universidade de Coimbra e opositor s cadeiras vagas, fator que fez com que recebesse com mritos os crditos de literato entre os mui doutos Scios daquella Athenas37, entrou no exerccio do coral, e recebeu do bispo a nomeao de examinador synodal. E acima de tudo Pedro Jos Augusto publicou a seguinte obra: Compendio de Theologia Dogmtico Histrico para inteligncia das verdades da mesma, e das Instituies Cannicas, do Direito Civil, e Pblico, e de muitas Decretaes opostas aos princpios do Evangelho, e da Sagrada Autoridade dos Summos Imperantes, e seus poderes sobre a Igreja, e seus Chefes, que ficou por imprimir, mas que foi entregue Pizarro como sinal de amizade entre os dois. O deo ainda escreveu outras obras que no foram publicadas e acabaram inutilizadas por seu herdeiro.38 Com isto, cai por terra a acusao de que o doutor deo Pedro Jos Augusto fosse um ignorante, que no sabia sequer rezar seu brevirio.

    Pizarro tambm explica por que o deo desejava se tornar procurador. Segundo ele, Pedro Jos Augusto fora eleito procurador para tratar na Corte de vrias dependncias capitulares, entre as quais era muito particular a mudana da S para a casa principiada construir sob o ttulo de S nova39. Na mesma biografia, Pizarro acusa os cabalista de fomentar ciznias com o bispo, no intuito de revogar a procurao j lavrada e impedir a sada do procurador eleito, cujos ofcios se receavam menos favorveis a certos indivduos da Corporao, que doidos de consincia escrupolizavam sobre a indiscrio de seus comportamentos40. Cabe aqui transcrever as palavras de Pizarro, ao rodap de suas Memrias.

    O autor destas memrias como presente aos fatos referidos protesta ser singela a sua relao e muito verdadeira. Protesta tambm que por estar mui ciente da origem principalssima da mancomunao, e por nunca seguir partidos, no conveio na revogatria da procuradoria; mas obrigado pela Lei, a vista da pluralidade dos votos de seus colegas, assinou o Termo, que a esse respeito foi lavrado. Da se fermentou a sua preterio nas Dignidades vagas, que outros sujeitos

    37 Pizarro, Memrias ..., v. 6, p. 76. 38 Idem, v. 6, p. 77 e 246. 39 Idem, v. 6, p. 76. 40 Idem, v. 6, p. 77.

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    muito mais modernos na Igreja Cathedral, e sem o patrocnio das Leis Eclesisticas ocuparam apoiados pela afeio do Bispo.41

    Paradoxalmente, em 1792, Pizarro - que havia enfrentado o bispo em 1782 - foi eleito prioste pelo cabido, organizando ento um quadro completo das cngruas e dos descontos correspondentes42. Em 1794, por portaria de 17 de agosto, passou a representar o bispo nas visitas pastorais, percorrendo assim todo o bispado do Rio de Janeiro. A rea do bispado abrangia desde a capitania do Esprito Santo at o Rio da Prata, todo o litoral, toda a terra central at topar com o domnio espanhol.

    Nessas visitas pastorais, Pizarro foi responsvel em inventariar o patrimnio

    eclesistico das freguesias; verificar como os procos cuidavam dos paramentos sagrados, alfaias; verificar os livros de batismo, casamento e bito das freguesias; fazer um levantamento da fbrica, do nmero de fogos e almas sujeitas ao sacramento. O trabalho das visitas pastorais era prximo ao trabalho dos naturalistas da poca. Pizarro catalogava as freguesias, mapeava-as, identificava suas diferenas e estabelecia possveis vnculos entre essas construes divinas.

    Ao trmino das segundas visitas pastorais, determinadas pela portaria de 10 de abril de 1799, Pizarro retornou a Portugal, chegando em Lisboa no ano de 1801. A com a ajuda do amigo deo doutor Pedro Jos Augusto, que j ocupava o cargo de monsenhor aclito da Santa Igreja Patriarcal, Pizarro recebeu do prncipe-regente D. Joo a merc de um Hbito da Ordem de Cristo e a nomeao para cnego da Santa Igreja Patriarcal, por despacho de 9 de junho de 1802; e a ttulo de remunerao dos servios militares prestados por seu pai, at o posto que alcanou de Tenente-Coronel43. Foram dias de muita alegria e risadas, enquanto se lembravam daqueles que tinham ficado nas longnquas terras brasilienses, queimando sob o calor tropical, e os dois aproveitando as benesses da corte e de um clima mais ameno. Sob este clima ameno e tranqilo, sem os importunos causados pelos anti-regalistas, em 7 de setembro de 1802, o deo veio a falecer.

    41 Idem, v. 6, p. 246. 42 Amrico Jacobina Lacombe. Monsenhor Pizarro..., p. 44. 43 Janurio da Cunha Barbosa. Biographia dos brazileiros distinctos pelas sciencias, letras, armas e

    virtudes Monsenhor Jos de Souza Azevedo Pizarro e Arajo... Ver tambm, Correspondncias, Avisos, Portarias..., p. 104-118. A informao a respeito da recompensa devido aos servios militares do pai controversa; algumas biografias afirmam que o pai devido aos seus servios prestados teria sido promovido. Outras, como a de Lacombe, afirmam que o Hbito da Ordem de Cristo foi uma recompensa dada a Pizarro, devido aos servios militares prestado pelo pai.

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    Mesmo com o bito de seu amigo, foi o regalismo e o estabelecimento de relaes clientelares que permitiram a Pizarro que as portas da Corte lhe fossem abertas. Como conseqncia, podemos dizer que ele se tornou um hbil conhecedor da administrao pblica, aproximando-se ento da famlia real de tal forma que, quando retornou Amrica, em 1808, viajou na mesma nau do prncipe regente. J na Colnia, ao ser constituda a Mesa da Conscincia e Ordens, Pizarro foi lembrado por Sua Majestade, e, atravs do alvar de 22 de abril de 1808 e carta de 11 de agosto de 1808, foi nomeado seu procurador-geral das ordens. Tambm em 1808 tomaram posse o Marqus de Angeja, como presidente; Monsenhor Antonio Jos da Cunha e Almeida, Bernardo Jos da Cunha Gusmo e Nascimento, Toms Antonio de Vilanova, Francisco Antonio de Sousa da Silveira e Lus Jos de Carvalho e Melo, como deputados; Francisco Jos Rufino de Sousa Lobato44, como escrivo da cmara; Jacinto Manoel de Oliveira, como juiz dos cavaleiros; Jos de Oliveira Pinto Botelho Mosqueira, como procurador da coroa e fazenda; e, acumulando funo, Monsenhor Antonio Jos da Cunha e Almeida como chanceler das trs Ordens Militares45.

    Atravs do cargo de procurador geral das ordens, Mons. Pizarro elaborou uma quantidade enorme de minuciosos pareceres sobre a maior parte dos mais de mil processos diversos feitos pelas populaes, irmandades, padres, sobre tudo o que dizia respeito Igreja na Amrica Portuguesa e que passaram pelo tribunal enquanto existiu no Rio de Janeiro, de 1808 a 182846. Esses pareceres formam uma fonte preciosa de estudo para identificar sua postura quanto s relaes Igreja e Coroa. Agora, o que chama a ateno, e j comea a demonstrar como uma instituio de Antigo Regime funcionava, o fato de que, entre os anos de 1822 e 1827, mesmo Mons. Pizarro sendo o procurador geral das ordens, possvel identificar vrias pessoas realizando pareceres na Mesa da Conscincia e Ordens, que teoricamente seriam de responsabilidade do Pizarro. Dentre essas pessoas pude encontrar o Conde de Valena; o Marqus de Caravella; o Sr. Antonio Jos de Carvalho; e o Sr. Nabuco. A partir de ento comecei a concluir que, em um mundo de Antigo Regime, onde os ttulos e privilgios regem a

    44 Posteriormente Baro e Visconde de Vila Nova da Rainha 45 Livro de posses da Mesa da Conscincia e Ordens, 1808-1827. Arquivo Nacional, cd. 22, e at 1822

    inclusive, Pizarro, Memrias ..., v. 7, p. 291-5. Almanaque do Rio de Janeiro para o ano de 1824, Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, 278:197-360, 1968. Citado em Guilherme Pereira das Neves. E Receber Merc: a Mesa da Conscincia e Ordens e o clero secular no Brasil 1808-1828, p. 86-8. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

    46 Neves. E Receber Merc....

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    sociedade, fica bvio que as pessoas acabam por assumir mais de um cargo ao mesmo tempo, tendo que ser substitudas em diversas ocasies, por estar envolvidas com assuntos de diferentes competncias, fazendo, portanto, com que a qualidade do trabalho venha a ser reduzida. Com certeza isto ocorreu com Pizarro, principalmente aps sua eleio para deputado da Primeira Legislatura, em 1826.

    O trabalho de Pizarro na Mesa foi de fundamental importncia. Atravs de seus pareceres, Pizarro passou a regular e controlar as diversas modificaes que ocorriam no territrio colonial. Limitava os poderes das irmandades e dos religiosos, como um digno regalista, travando inmeras batalhas com estes; permitia ou impedia a criao de freguesias; recebia queixas de sacerdotes descontentes com algum fiel ou com algum outro padre de circunscrio vizinha; as queixas dos leigos, que acusavam os sacerdotes, tambm iam parar no escritrio do Pizarro. Enfim, num perodo em que a religio estava to atrelada ao quotidiano das pessoas, quase tudo passava pelas mos de Pizarro.

    No Brasil colonial, seguindo o costume portugus, desde o despertar, o cristo se via rodeado de lembranas do Reino dos Cus. Na parede contgua cama, havia sempre algum smbolo visvel da f crist: um quadrinho ou caixilho com gravura do santo anjo da guarda ou do santo onomstico; uma pequena concha com gua benta; o rosrio dependurado na prpria cabeceira da cama. Antes de levantar-se da cama, da esteira ou da rede, todo cristo devia fazer imediatamente o sinal-da-cruz completo, recitando a jaculatria. Os mais devotos, ajoelhados no cho, recitavam quando menos o b--b do devocionrio popular.47

    Portanto, pensar hoje que Pizarro cuidava na Mesa da Conscincia e Ordens de simples questes religiosas, ignorar a estrutura criada por Portugal na colnia.

    A Mesa possua um grande poder de interferncia nas questes ligadas Igreja no Brasil, pois, desde 1456, a Ordem de Cristo obtivera do papa a jurisdio eclesistica de todos os territrios portugueses no ultramar, ao que se acrescentou, em 1514, a transformao desses domnios em um bispado, o de Funchal, com o direito de padroado por parte do rei48. O poder da Mesa se expandiu com o tempo, sendo comparado ao poder do Conselho Ultramarino para questes eclesisticas.49

    47 Luiz Mott. Cotidiano e Vivncia Religiosa: Entre a Capela e o Calundu. In: Laura de Mello e Souza (org.). Histria da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na Amrica portuguesa. So Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 164.

    48 Idem, p.26 49 Para padroado, ver Guilherme Pereira das Neves, Padroado. Dicionrio da histria da colonizao

    portuguesa no Brasil, p. 605-7, citado em Neves. E Receber Merc..., p. 26.

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    Com a chegada da Corte ao Rio de Janeiro, a Coroa publicou o alvar rgio de 22 de abril de 1808, estabelecendo, ento, o tribunal da Mesa do Desembargo do Pao e da Conscincia e Ordens, para que se no demore o expediente dos negcios correntes, que dependiam dos rgos metropolitanos. Funcionou de forma parecida que a Mesa de Lisboa, sem ser inferior ou superior a ela. Porm, em Lisboa, a Mesa possua um presidente e deputados que eram responsveis pelas trs secretarias, tribunal, fazenda, alm do porteiro, cursor, meirinho, tesoureiro e escrivo. J ao ser instalada na Amrica de forma independente da Mesa de Lisboa, sofreu um inchao administrativo, ficando praticamente impossvel recriar o organograma criado em 1608 para a Mesa de Lisboa. Assim, instaurava-se na Amrica portuguesa mais uma poderosa instituio arcaica do Antigo Regime.

    Aqueles que se dedicavam ao servio da Mesa da Conscincia recebiam seu pagamento de acordo com o cargo mais os ttulos. A Mesa funcionava de forma desorganizada, atrasava constantemente seus trabalhos, perdia documentos, realizava concursos para locais que no tinham solicitado pessoal e negava proviso aos aprovados nos concursos. Alm disso, a Mesa realizava um discreto patrocnio em relao aos seus protegidos na disputa pelos lugares vagos. Portanto, a Mesa da Conscincia e Ordens no deixou de conservar aqueles vcios do Antigo Regime, que a distinguem como um rgo corporativo, no sentido que Antonio Manuel Hespanha empresta a este termo50.

    Laura de Mello e Souza, em sua obra O Sol e a Sombra, defendeu a idia de que os administradores da Corte e os letrados foram os primeiro a identificar uma unidade na Colnia,51 compreendendo as relaes existentes entre as diferentes regies, mesmo que ainda no existisse, apesar dos motins e revoltas, uma conscincia nacional. A autora ainda critica a caracterizao de um Antigo Regime nos trpicos52, primeiramente por uma questo conceitual, tendo em vista o carter escravista da Colnia e a ausncia do sistema feudal, ainda presente na Europa quando da identificao de um sistema comum europeu, batizado de Antigo Regime. No decorrer da Revoluo Francesa, mais

    50 Neves. E Receber Merc. 51 Laura de Mello e Souza. O Sol e a Sombra: poltica e administrao na colnia portuguesa do sculo

    XVIII. So Paulo. Companhia das Letras, 2006. p. 104-5. 52 Joo Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Ftima Gouva (orgs.). O Antigo Regime nos

    trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII), Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2001.

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    que a centralidade do poder, portanto, Mirabeu identificava o Antigo Regime sociedade desigual dos privilgios: em suma, ao feudalismo [...] Tocqueville pde ver alm: o Antigo Regime era algo comum a toda a Europa, e sua runa mostrava-se geral.53

    Em seguida, pela especificidade colonial, que fez com que as estruturas arcaicas trazidas por Portugal gerassem uma expresso do Antigo Regime na Colnia, embora o governo central no tenha sido forte o suficiente para se fazer presente, permitindo a criao de um verdadeiro Antigo Regime nos trpicos, como querem alguns.54

    Tendo em vista que nosso protagonista era um letrado que serviu como um autntico funcionrio do rei, o estudo da trajetria de Mons. Pizarro significa, por sua vez, compreender, como demonstrou a autora de O Sol e a Sombra, que a primeira percepo de unidade brasileira surgiu no universo mental dos letrados e dos agentes do governo metropolitano55, e que o governo central se fez presente no apenas no

    idioma, pois, ao final, tudo se fazia em nome do rei de Portugal, era o rei no espelho56.

    Principalmente devido sua experincia como visitador do bispado 1794 e 1799 Mons. Pizarro pde perceber, empiricamente, que as diferentes regies da Colnia Esprito Santo, Rio da Prata, Mato Grosso, Rio de Janeiro entre outras que percorreu durante as visitas, formavam um nico bispado de um mesmo Imprio, mesmo que fossem sutis os vnculos transversais. No nego a anlise de Capistrano de Abreu57, quando diz que as regies da colnia possuam sua especificidade, tendo em comum apenas o idioma portugus, porm, concordando com Laura de Mello e Souza, e analisando a trajetria de Mons. Pizarro, entendo que os letrados e os agentes da Coroa j reconheciam uma unidade na colnia, mesmo sem a conscincia nacional que Capistrano afirmava no existir.

    Este estudo tambm ajuda na compreenso do que foi essa expresso de Antigo Regime na Colnia, j que no podemos esquecer que as benesses recebidas por Pizarro resultaram do sucesso de suas relaes na Corte, e tambm do fato dele no ser afro-descendente, ou seja, com mancha de gerao. Pizarro no era, de nascimento, descendente de alguma casa nobre, mas sob a estrutura escravista que Portugal montou

    53 Mello e Souza. O Sol e a Sombra..., p. 64. 54 Idem, p. 67. 55 Idem, p. 104. 56 Idem, p.51; Rodrigo Bentes Monteiro. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a colonizao da

    Amrica (1640-1720), So Paulo, Hucitec, 2002, p. 329. 57 Joo Capistrano de Abreu. Captulos de histria colonial. 3.ed., s/l, F. Briguiet & Ca, 1934.

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    na colnia, era branco e este constitua o primeiro diferencial na sociedade. Alm disso, era das melhores famlias da terra, eclesistico e letrado, o que o situava numa faixa que pode ser denominada de nobreza. Assim, comeamos a perceber que Portugal, por meio das estruturas arcaicas que trouxe para a colnia58, se no instituiu aqui o Antigo Regime, no deixou de recri-lo, em termos, com o escravismo africano e com o desenvolvimento de uma economia da graa. Este ltimo, no menos importante, tambm pode ser visto na anlise da trajetria de Monsenhor Pizarro, pois, sua posio poltica e seu regalismo acabaram por lhe render diversos ttulos, hbitos e mercs.

    Como j visto, Pizarro fora nomeado procurador-geral da Mesa da Conscincia e Ordens. Em 14 de agosto de 1808, viu-se indicado monsenhor presbtero, com o ttulo de tesoureiro-mor, e arcipreste da Real Capela do Rio de Janeiro; ainda em agosto do mesmo ano recebeu o ttulo do conselho do supremo Tribunal de Justia, e, em dezembro de 1808, foi condecorado com a distino de Cavaleiro da Ordem da Torre e da Espada. A partir de 1821, tornou-se deputado da Mesa da Conscincia e Ordens, ficando encarregado de lanar os hbitos das Ordens de Cristo e de Aviz, por imediata resoluo de consulta de 28 de maio.59 Sua Majestade, atravs da carta rgia de 28 de maio de 1817 aceitara a renncia, feita por Pizarro, da dignidade capitular, conservando, porm, todas as suas honras.60

    Em 1820, Pizarro lanou os dois primeiros volumes das Memrias Histricas do Rio de Janeiro pela Impresso Rgia. Comea o primeiro volume das Memrias com uma carta ao rei D. Joo VI, evidenciando logo de incio o quo complexa era a relao Antigo Regime e Ilustrao no Imprio luso-brasileiro.

    Nesta carta, Pizarro informa, com alegria, que na busca de conseguir o mximo de informaes sobre o Rio de Janeiro, tambm conseguiu informaes sobre outras capitanias. Devido importncia dessas informaes, e para evitar que os monumentos adquiridos e j escassos, pelo desleixo e acumulo de p, se percam, decidiu inclu-las nas Memrias Histricas do Rio de Janeiro. Pizarro comea a se mostrar no apenas um letrado, mas um indivduo que reconhece a importncia da escrita e dos livros, no obstante seu contedo seja religioso ou no. Assume, ento, conforme Lacombe, seu

    58 Caio Prado Jnior. Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo, Brasiliense, 1999. 59 Amrico Jacobina Lacombe. Monsenhor Pizarro...., p.44. 60 Idem.

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    amor pelos livros, sendo um autntico biblifilo e colecionador61. Ele realmente era um letrado, no podemos negar. Contudo, como um membro paradigmtico dessa sociedade, Pizarro reconhece que um livro sem a autorizao rgia como as palavras ao vento, que se perdem, e ningum sabe para onde vo e de onde vieram: Persuadido porm, queste Opsculo no correr com acceitao no Pblico, faltando-lhe o Auxlio Superior; para salva-lo de todo perigo, procuro a Mui Alta Proteco de VOSSA MAGESTADE.62

    Essa carta reveladora tambm, no sentido em que nos diz como o padroado se transformou em regalismo, na Amrica Portuguesa. Afinal, Sua Majestade

    no se negar a um acto de sua natural Beneficncia, como Soberano, e singularmente como Governador, e Perptuo Administrador da respeitvel Ordem de Christo, a quem as Igrejas dAmrica, e de todo ultramar veneram por lhe serem subordinadas.63

    J ao final da carta, Mons. Pizarro indica que D. Joo teria uma predileo pelos escritores e letras, tendo a liberdade se referir ao Imprio portugus como uma Repblica Literria.

    Sendo pois notria a proteo de VOSSA MAGESTADE, liberalizando copiozas Graas com assas prodigalidade pelos que cultivavam as letras; devo confiar que Dignando-se VOSSA MAGESTADE, dacceitar Benigno a produo primeira das minhas applicaens, s[excitem] mais utilmente na Repblica Literria, os talentos de meus Concidadoens em proveito pblico.64

    Est ntido aqui como Pizarro adquiriu a peculiar Ilustrao da Universidade de Coimbra, que fora renovada por ordem do ento Marqus de Pombal. Ilustrao que est longe de ser aquela do norte da Europa, Frana, Inglaterra, porm, no que tange as leis, se aproximou muito da Ilustrao italiana. Como disse Cabral de Moncada, o

    iluminismo portugus ficou mais prximo do italiano do que do francs. Preparado pelos padres do Oratrio, com Lus Antnio Verney frente, esse Iluminismo era essencialmente reformismo e pedagogismo. Seu esprito no era revolucionrio, nem anti-histrico, nem irreligioso, como o francs; mas essencialmente progressista,

    61 Amrico Jacobina Lacombe. Monsenhor Pizarro..., p.50. 62 Pizarro, Memrias ..., v. 1, p. IV. 63 Idem, ibidem. Grifo meu. 64 Idem, ibidem, p. IV-V. Grifo meu.

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    reformista, nacionalista e humanista. Era o Iluminismo italiano: um Iluminismo essencialmente cristo e catlico.65

    Portanto, percebemos que, alm de ser letrado, Pizarro busca notoriedade e reconhecimento, no apenas atravs de mercs e privilgios, mas tambm pela sua capacidade de construir novas idias, saindo do mundo oral. Desta forma, mesmo possuindo todos os vcios de um homem de Antigo Regime e, por mais paradoxal que parea, podemos entend-lo como um ilustrado. Como disse antes, no um ilustrado francs, mas no est longe da gerao de 1790. Isso nos leva a crer que, at 1822, ns ainda podamos encontrar no Brasil uma fora que conseguia fazer com que Antigo Regime e Ilustrao se entrelaassem quando fosse conveniente. Por isso, em 1949, ao escrever sobre ele, Lacombe o definiu como um regalista, conseqentemente, perseguidor dos regulares, anti-aristotlico, entusiasta do seminrio de Olinda, biblifilo e colecionador66.

    Portanto, sua trajetria deixa claro que manteve viva uma cultura regalista, caracterstica do sculo XVIII luso-brasileiro, que estruturou as relaes entre a Igreja e a Coroa, recriando o Antigo Regime na colnia. E quando digo cultura, me refiro ao seu sentido ampliado, ou seja, s aes ou noes subjacentes vida cotidiana67. Percebemos ento que Pizarro j tinha conscincia que, neste perodo de ebulio cultural, j no bastava saber ler e escrever, era necessrio produzir.

    Com esta obra, Mons. Pizarro recebeu um importante privilgio, que foi o de legar aos seus herdeiros, em 1820, por tempo de dezesseis anos, para que nenhum livreiro, impressor, ou outra qualquer pessoa possa vender, imprimir, ou introduzir nestes reinos, e seus domnios a obra intitulada Memrias Histricas do Rio de Janeiro.68

    Agora cabe aqui uma pergunta: que herdeiros, se Pizarro era um sacerdote celibatrio?

    65 Lus Cabral de Moncada. Um Iluminista Portugus do sculo XVIII: Lus Antnio Verney, citado em Laerte Ramos de Carvalho, As Reformas Pombalinas da Instruo Pblica, p. 26-7, apud Jos Murilo de Carvalho. A Construo da Ordem: a elite poltica imperial. Teatro das Sombras: a poltica imperial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. p. 67.

    66 Amrico Jacobina Lacombe. Monsenhor Pizarro..., p.42-50. 67 Peter Burke. Cultura Popular na Idade Moderna. Trad. Denise Bottmann. So Paulo: Companhia das

    Letras, 1989. 68 Alvar Rgio de 3 de maro de 1820. In: Pizarro, Memrias ..., v. 1, p. 2-3.

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    Pois bem, Pizarro, como a maioria dos sacerdotes que viviam longe do controle romano, possua uma afilhada, Maria Esperidiana, exposta na casa de Luiza Antonia de Almeida, uma amiga solteira, de Pizarro, que decidiu cri-la, e batizou-a na freguesia da S, onde Pizarro servia como proco. Ele se prontificou a pagar todas as despesas necessrias com a educao de Maria Esperidiana.

    Luiza Antonia criou Maria como uma filha, e, no dia de seu batismo, a menina foi batizada como filha de pais incgnitos, tendo como padrinho o capito-mor Joo Manoel da Fonseca. Quando em 1800 Pizarro foi transferido para a Corte portuguesa, resolveu levar a menina exposta, que dizia ser sua afilhada, para a casa de um casal amigo, Jos de Oliveira Dias e sua esposa. Ao regressar com a famlia real em 1808, Pizarro acolhe sua afilhada em casa.

    Em 1813, j aos 60 anos de idade, e Maria Esperidiana com 15, Pizarro resolveu enfrentar a verdade, contando jovem que, quando era padre no Rio de Janeiro, conheceu uma jovem solteira, de famlia, pela qual se apaixonou. No lhe foi possvel resistir tentao, visto que a moa tambm se apaixonara. Confessou que, apesar do conflito moral, religioso e tico que os amargurava, vencidos pelo fogo do amor carnal, se amaram por muitos anos, e, desse amor, em 1798, nascera Maria.

    Desta forma, Pizarro solicitou ao prncipe-regente a Carta de Legitimao como filha e herdeira, datada em 21 de janeiro de 181369.

    Porque o suplicante tendo toda a certeza de que a supracitada sua filha, que tal sempre a reconheceu, e tem cuidado com zelo de pai na sua educao, que outra parte ele no tem ascendente, ou descendente, que lhe deva necessariamente suceder, e os seus maiores desejos, fundados nos sentimentos, que inspira a natureza, so legitimar a supracitada filha para lhe suceder em tudo, como se fosse havida de legtimo matrimnio [...] Recorre a V. A. R. suplicando queira dignar-se de lhe fazer a graa de haver legitimada a supracitada com todos os efeitos, como se o suplicante a tivesse havido de legtimo matrimnio.70

    interessante perceber que Pizarro realiza essa solicitao sem nenhum constrangimento pelo fato de no ter respeitado o celibato. Ao contrrio, ele quer t-la como se fosse uma filha provinda de um matrimnio legtimo. Aps os parentes mais

    69 ANRJ Desembargo do Pao, cx. 128, doc. 38. Ver tambm Nireu Oliveira Cavalcanti. Crnicas Histricas do Rio colonial. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2004.

    70 Idem.

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    prximos de Pizarro, filhos do seu tio Bartholomeu Julio Pizarro terem sido consultados e no se oporem, o rei concedeu a graa requerida por Pizarro, a 16 de maio de 1814.

    Aps a morte de seu pai, Maria Esperediana de Azevedo Pizarro recebeu uma carta de aforamento de um terreno na Travessa do Rosrio, de 10 braas e meia, por ser filha e herdeira de Mons. Pizarro. Casara-se aps 1830 com o oficial do exrcito, Andr Pinto Duarte da Costa Pereira, capito do 1 batalho de caadores e ajudante de ordens. Em 1837, Maria Esperidiana de Azevedo Pizarro da Costa Pereira fez uma escritura de venda para Maria dos Anjos Murga, de um terreno foreiro Cmara, na Travessa do Rosrio, medindo 32 palmos de frente, por 47 de fundos, e ocupado pelas duas casas trreas, nmeros 13 e 15. Seu marido passou a administrar seus bens e figurou como foreiro da Cmara. Em 1853, j viva, Maria Esperidiana de Azevedo Pizarro, pediu e obteve novos ttulos, como nica emphyteuta da posse, reduzida, nessa poca a 3 braas e 2 palmos de terreno, com duas casas trreas, que tinham sido construdas por Maria dos Anjos Murga, a quem foi concedida carta de aforamento, em 20 de maro de 1854.

    Assim, podemos entender o interesse de Pizarro, em 1820, de legar aos seus herdeiros os direitos sobre as Memrias Histricas do Rio de Janeiro.

    Aps, 1820, e aps ter transgredido diversas leis, seja perante o bispo D. Jos Joaquim, seja perante as normas celibatrias, em 1826, Monsenhor Pizarro passa a ser um dos responsveis por criar as leis do Brasil. Durante a primeira legislatura, Pizarro assumiu, como suplente, a cadeira de deputado pertencente ao bispo do Rio de Janeiro, D. Jos Caetano da Silva Coutinho, que D. Pedro I escolhera para senador. Pizarro teve uma importante participao. Foi eleito orador oficial da Cmara e ficou responsvel pelo cerimonial quando da ida de Imperador a Cmara, sempre defendendo a doutrina crist, sem se opor aos interesses de Sua Majestade.

    Foi como Deputado que escreveu duas memrias sobre a instruo pblica; defendeu a folga nos dias santos de guarda; e criou festas dos padroeiros nas cidades, entre outras participaes (ver 3.1).

    Apesar de ter recebido sua renncia da dignidade capitular em 1817, foi somente em 1828 que, por decreto de 12 de outubro, Mons. Pizarro se aposentou dos cargos judicirios, do posto de Ministro do Supremo Tribunal de Justia, com 50 anos de servio e 75 de idade.

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    Em 1830, em um passeio pelo Jardim Botnico, enquanto recordava os bons tempos em que podia enfrentar at um bispo para defender o soberano absoluto, e que era visto, pela sociedade, por esses atos, como um verdadeiro patriota, defensor da moral e dos bons costumes, Pizarro sofreu um infarto fulminante, e faleceu, a 12 de outubro de 1830. Juntamente com ele, o novo Imprio caminhava para a abdicao de Pedro I e o fim do primeiro reinado.

    A Revista do IHGB, anos aps seu falecimento, publicou uma relao feita por Pizarro das sesmarias da Capitania do Rio de Janeiro, extrada dos livros de sesmarias e registros do cartrio do tabelio Antnio Teixeira de Carvalho, de 1565 a 1796.

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    1.2. As Visitas Pastorais

    Em 1780, Pizarro foi nomeado Comissrio do Santo Ofcio da Inquisio. Em 1794 e em 1799, foi visitador do bispado. O fato do Comissrio do Santo Ofcio ser o visitador do bispado no uma simples coincidncia.

    O Tribunal do Santo Ofcio foi criado em Portugal no ano de 1536. Aps o perodo pombalino, a Inquisio passou a ficar sob o controle do Estado portugus, que a utilizou com o objetivo de centralizar o poder rgio. Neste sentido, o Santo Ofcio deixou de perseguir os cristos-novos, visto que essa diferenciao acabara em 1773, mas manteve a perseguio s heresias, prtica da sodomia, aos casos de bigamia, ao crime de solicitao e, no final do sculo XVIII e incio do XIX, s manifestaes mais radicais das Luzes, assim como maonaria.

    O Tribunal do Santo Ofcio deu incio s suas visitas na Amrica Portuguesa em 1591, quando percorreu a Bahia, Pernambuco, Itamarac e Paraba. Mas logo percebeu que a distncia entre a metrpole e a colnia causada pelo Atlntico e a especificidade religiosa71, que tinha se entranhado em todo o cotidiano colonial, dificultavam o servio da Inquisio72.

    O universo mental europeu que o orientava [o visitador] no o municiavam adequadamente boa percepo do contexto colonial. A Amrica no era e nem podia ser considerada simples continuidade da Europa. Acima de tudo, os corpos sociais eram distintos e respondiam diferenciadamente s exigncias ortodoxas do catolicismo tridentino e inquisitorial.73

    Ento, o Estado Portugus, que detinha o direito do padroado, e, portanto, era patrono das Misses e instituies eclesisticas catlicas romanas em vastas regies da frica, da sia e do Brasil74, pautando sua evangelizao por razes de Estado e no

    71 Luiz Mott. Cotidiano e Vivncia Religiosa..., p. 164. 72 Francisco Firmino Sales Neto. Pelos speros caminhos do deserto: um estudo das Visitas

    Episcopais Capitania do Rio Grande do Norte. In: Dossi cultura e Sociedade na Amrica Portuguesa Colonial, v.5, n. 12, out./nov.2004. Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme. Acessado em 22 de Janeiro de 2007. p.2

    73 Caio C. Boschi. Estruturas eclesisticas e Inquisio. In: Francisco Bithencourt & Kirti Chauduri (dir.). Histria da Expanso Portuguesa. p. 429-55. Apud Francisco Firmino Sales Neto. Pelos speros caminhos do deserto....

    74 Charles Boxer. O Imprio Colonial Portugus. So Paulo / Lisboa: Martins Fontes /Edies 70, 1969.

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    pelas das almas, passou a abrir mo das Visitas Inquisitoriais na Amrica Portuguesa e comeou utilizar-se das visitas pastorais como um instrumento de controle social. Assim, Pizarro, que havia sido nomeado visitador, viajou por toda a diocese do Rio de Janeiro, no apenas representando o bispo, mas o rei, que, atravs do padroado rgio, detinha o controle sobre a Igreja no ultramar.

    A visita pastoral foi vista por alguns como um dos instrumentos ao dispor dos prelados, no perodo moderno, para corrigir e disciplinar os cristos75. Conforme Francisco Firmino76:

    O intuito da visita, para alm da difuso da pastoral, era o de verificar o estado de conservao das infra-estruturas religiosas e objetos de culto, de perscrutar a vida e ao do proco e clrigos locais e de procurar disciplinar determinados comportamentos considerados desviantes do conjunto de fiis que habitavam uma determinada comunidade: os ento designados pecados pblicos, porque a notcia do delito era, muitas vezes, de ordem pblica, isto a comunidade, ou alguns indivduos da localidade tomavam conhecimento dos crimes por presenciarem a prtica dos mesmos ou pela existncia da chamada fama pblica.

    A Pequena Inquisio, conforme Luciano Raposo de Figueiredo, estava sob a responsabilidade dos bispos ou seus enviados, verdadeiros funcionrios do rei, que exerciam uma ao breve e passageira de controle sobre os desvios praticados pela populao que habitava o territrio diocesano.77 A visita pastoral foi mais eficaz que a visita inquisitorial, pois, alm da regularidade da primeira, o visitador conseguia compreender o universo mental dos colonos. Essa eficcia teve como conseqncia resultados mais prticos do que os alcanados pelo Tribunal do Santo Ofcio. Mesmo porque:

    O bom pastoreio no pode prescindir do contato freqente do bispo com os fiis e o clero sob sua jurisdio, o que exige daquela autoridade constantes viagens que lhe permitem ter um conhecimento tanto quanto possvel abrangente de seu rebanho, nele englobado, os

    75 A. H. Oliveira Marques. O Estado do Renascimento. In: Histria de Portugal. Lisboa: Palas Editores, 1974, p. 287. Apud Francisco Firmino Sales Neto. Pelos speros caminhos do deserto....

    76 Francisco Firmino Sales Neto. Pelos speros caminhos do deserto.... 77 Luciano Raposo de Fugueiredo. Segredos de Mariana: pesquisando a Inquisio mineira. Disponvel

    em: Acesso em 20 maio 2004, p. 1. Apud. Francisco Firmino Sales Neto. Pelos speros caminhos do deserto...

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    fiis propriamente ditos, o clero, as instituies e entidades catlicas, as coisas e lugares sagrados encontrveis no territrio da diocese.78

    Foi ento a partir da necessidade de um controle social, e tambm da necessidade de conhecer o territrio colonial, que o Estado portugus utilizou um instrumento da Igreja, as visitas pastorais, para exercer o seu poder, fazendo-se presente de modo que os colonos no deixassem de ter o rei como referncia.

    Contudo, no podemos crer que a Inquisio cessou seu trabalho quando foi dado incio ao das visitas pastorais. O fato de Pizarro, que era comissrio do Santo Ofcio, assumir as visitas pastorais em 1794 e 1799, sugere que o Tribunal manteve uma forte ligao com as visitas.

    O Conclio de Trento (1545-1563) e as Constituies Primeiras (1707) legalizavam as visitas pastorais. Segundo o Conclio de Trento, as visitas deveriam

    estabelecer a doutrina s e ortodoxa, excludas as heresias, manter os bons costumes, emendar os maus com exortaes e admoestaes, acender o povo religio, paz e inocncia; e estabelecer o mais que o lugar, tempo e ocasio permitir para proveito dos fiis, segundo julgar a prudncia dos que visitarem.79

    As visitas eram realizadas pelos bispos ou por enviados seus, que deveriam ser sacerdotes virtuosos, prudentes e zelosos da honra de Deus e salvao das almas, e podendo ser letrados, e quando no ao menos pessoas de bom entendimento e experincia80.

    Hoje, encontra-se no Arquivo da Cria Metropolitana do Rio de Janeiro o Livro de Visitas Pastorais realizadas por Monsenhor Pizarro em 1794. Acreditava-se que essas visitas nunca tivessem sido publicadas, porm, durante minhas pesquisas, encontrei a publicao de algumas delas. O primeiro a publicar uma visita pertencente ao Livro de 1794 foi Jos Nazareth de Souza Fres, com aquela feita Freguesia de Guaratiba, e depois, em sua obra Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, trouxe luz o Relatrio de Visita Pastoral Freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo

    78 Caio Boschi. As Visitas Diocesanas e a Inquisio na Colnia. In: Anais do Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisio. Lisboa: Universitria Editora, 1989, p. 969. Apud Francisco Firmino Sales Neto. Pelos speros caminhos do deserto...

    79 Francisco Firmino Sales Neto. Pelos speros caminhos do deserto... 80 Boschi. As Visitas Diocesanas, p. 973. Apud Francisco Firmino Sales Neto. Pelos speros caminhos

    do deserto...

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    Grande 1794.81 Em seguida, a Prefeitura de Nilpolis patronicou o Livro Visitas Pastorais na Baixada Fluminense feitas pelo monsenhor Pizarro no ano de 1794,82 em 2000. Nesta obra, foram includas as visitas pastorais feitas s freguesias de Triraponga, hoje de Meriti, Orago de So Joo Batista; freguesia de Jacutinga, Orago de Santo Antonio; freguesia de Iguass, Orago de Nossa Senhora da Piedade; freguesia de Mariapic, Orago de Nossa Senhora da Conceio; e a freguesia de Iguass, Orago Nossa Senhora do Pilar.

    As visitas pastorais s freguesias eram, portanto, uma rigorosa auditoria na qual o visitador tinha, por obrigao cannica, que relatar o que realmente ocorria, em todos os seus aspectos civis e religiosos. Nelas esto registrados os limites territoriais com outras freguesias; recursos naturais; patrimnio material existente e seu estado de conservao; objetos para o culto; data das provises de criao das capelas existentes no seu territrio e o nome de seus fundadores; a disciplina do clero e a participao dos fregueses; e as visitas de seus precedentes visitadores e bispos e as medidas administrativas por eles recomendadas ou tomadas.83

    Para elaborar os relatrios destas visitas, Mons. Pizarro dividia-os em duas partes. A primeira parte fazia uma anlise geral dos seguintes itens: histrico da freguesia; localizao geogrfica do templo; arquitetura do templo; estado das mbulas dos santos leos, ornamentos e alfaias; imagens do templo; irmandades; fbrica da igreja; bens patrimoniais; fogos; censo; almas sujeitas aos sacramentos; extenso da matriz; capelas e oratrios existentes; sacerdotes que atuaram na freguesia; engenhos de acar pertencentes ao territrio compreendido pela freguesia; rios e riachos.

    A segunda parte traz informaes adquiridas posteriormente: lista dos sacerdotes que trabalharam na freguesia e seus respectivos perodos; custos das missas; pagamento aos sacerdotes pelos servios realizados; renda da fbrica; e pagamento ao sacristo.

    Sob esse aspecto, podemos entender que as visitas feitas por Pizarro constituram um dos elementos que permitiram Coroa ter noo do desenvolvimento poltico-geogrfico da capitania do Rio de Janeiro e compreender tambm como se dava a expanso

    81 Jos Nazareth de Souza Fres. Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande: A Histria de uma Freguesia do Arcebispado do Rio de Janeiro. Ed. revista e documentada. Rio de Janeiro, 2006.

    82 Prefeitura de Nilpolis (org.). Visitas Pastorais na Baixada Fluminense feitas pelo Monsenhor Pizarro no ano de 1794. Nilpolis, Secretaria de Cultura, 2000.

    83 Fres. Nossa Senhora do Desterro..., p. 58.

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    da Igreja na colnia. As visitas nos do a compreenso de como a Igreja atuou no processo de formao da sociedade colonial, buscando remontar na colnia a estrutura portuguesa, enquanto os colonos buscavam legitimar seu poder local atravs do financiamento que faziam Igreja, a despeito dos dzimos que pagavam Coroa, em funo do padroado. Assim, elas nos revelam que, apesar do padroeiro [a Coroa portuguesa] ser responsvel por promover a manuteno e a propagao da f crist, quem realizava de fato a manuteno e a propagao eram os colonos.

    Exemplos disso so os do surgimento da freguesia de Jacarepagu e da freguesia de Santo Antonio de S, respectivamente. Quanto primeira, s

    consta que Jos Rodrigues de Arago, senhor que foi do Engenho, chamado da Serra, em cujas terras, foi fundada esta Igreja, por Escritura de 30 de abril de 1771 doou 40 braas de terras em quadra, fazendo pio delas ou cruzeiro, que se acha do Adro, e entrando o terreno da mesma Igreja. No consta, que S. M. haja contribudo com doao, ou aplicao alguma, alm do que recebe o Proco para a sua cngrua, que so 200$ rs.; o Coadjuctor 25$ rs.; e para o guizamento 23$920 rs.; anualmente.84

    Para a segunda:

    No consta, que S.M. haja feito consignao alguma em benefcio desta Igreja; porque o povo que a fundou, como j mostrei supra, depois que para cmodo do mesmo Povo foi preciso estender-se a 1 Ermida, onde se criou a Paroquia: e no consta tambm, que em resulta do requerimento, que lhe fez a Cmara, para se lhe darem os precisos ornamentos, eles fssem dados. S certo, que para o anual guizamento mandou dar a mesma Magestade da Sua Real Fazenda a quantia de 25$200 rs.; para ajuda dos Ofcios da Semana Santa, 40$ rs. / quando os fizerem /; para a cngrua do Proco, 200$ rs.; e para o Coadjutor, 25$000 rs.85

    Durante as visitas tambm era realizado um censo demogrfico, que consistia em uma contagem dos fogos [residncias], e tambm das almas sujeitas a sacramentos. O censo era fundamental na visita para contabilizar a arrecadao da freguesia, contrapondo-a ao nmero de almas; em seguida, para avaliar o crescimento da sociedade local e os motivos pelos quais no aumentara o nmero de fiis. Alm disso, tais censos ainda serviam para estimar os efetivos militares com se podiam contar por meio de recrutamento. Como foi dito anteriormente, essa experincia permitiu a Pizarro

    84 Arquivo da Cria e da Mitra do Rio de Janeiro (ACMRJ). Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro ao recncavo do Rio de Janeiro 1794. Visita nmero 2, Freguesia de Jacarepagu. Grifo meu.

    85 ACMRJ. Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro ao recncavo do Rio de Janeiro 1794. Visita nmero 26, Freguesia de Santo Antnio de S. Grifo meu.

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    entender a Colnia com uma certa unidade, de lngua, religiosa, e principalmente unidade no interesse em reproduzir na colnia o imprio portugus. Vejamos abaixo um desses censos, muito curioso pela justificao dada por Pizarro para o crescimento populacional no ter sido maior.

    A Povoao desta Freguesia tem sido muito aumentada: por que constando haver no ano de 1792, Fogos 534, Almas 4.140; no ano de 93, Fogos: 599 e Almas 4.210; no ano de 94, Fogos: 750 e Almas 4.456; no ano de 95, constou de 782 Fogos, e de 4.600 Almas: e por esta conta, extrada dos Res da Desobriga, vem a ser o aumento de Fogos 248, e o de Almas, 460, relativamente ao ano dito de 1792. E seria muito mais / como / o aumento, se as razes muitas vezes por mim antecedentemente ponderadas, de serem os Pais de famlias obrigados a darem seus filhos para Recrutas, os Senhores, seus escravos para os Servios do Rei; e hoje Dizimeiros por causa das suas negociaes: no obrigassem a se ocultarem muitas pessoas de uma, e outra classe, que no se do ao Rol da Freguesia.86

    Pizarro tambm faz uma avaliao severa sobre o comportamento dos sacerdotes, analisando no apenas sua conduta, mas fazendo juzo de valor no que tange a sua moral; tambm fala sobre sua sade. E, nos casos em que o sacerdote apresentava falhas, Pizarro narrava os fatos com detalhes.

    A sua conduta no seria notada, se fra mais prudente, e menos odioso; por que em razo de vrias etiquetas particulares tem feito impedir, que certas pessoas vo satisfazer o preceito da Missa no seu Oratorio, chegando ao extremo de se despir, depois de vestido, e ir dizer Missa / nesse dio / Capela da Fazenda do Carmo, distante 1 legua, e faltando com o socorro do Sacramento da Penitncia s Pessoas da famlia daqueles mesmos, em perigo de morte; do que procedeu falecer um escravo, ou escrava em total falta de Sacramentos. Por essa causa tem-se feito este Sacerdote objeto de escndalo em toda a Freguesia. Repreendendo-o eu por esses desacordos, teve a liberdade de responder-me / com assaz desafogo, e sem ateno ao lugar de que eu ia encarregado / que apesar de tudo, continuaria no mesmo procedimento.87

    Cabia-lhe igualmente o exame da fbrica da parquia, isto , do seu patrimnio e recursos.

    No podendo duvidar-se da jurisdio, que nas cousas Eclesisticas da Amrica compete S. Majestade, como Gram Mestra que das Ordens e Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo; E por pertencerem Ordem de Cristo s Igrejas sitas na Amrica pelos privilgios, que mesma Ordem concederam os

    86 Idem. 87 Idem.

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    Sumos Pontfices Julio III, Inocncio IV, Nicolau IV, e muitos outros, em cuja posse estiveram sempre os nossos soberanos, declarando assim em muitas das suas leis, e ordenaes; em cujos privilgios entrou sempre a conhecimento das Fbricas das Igrejas, apesar das muitas contestaes dos prelados em Portugal sobre esta matria nas Igrejas das Ordens, das decises havidas, que se acham no livro = Gladiorum = dos Assentos e Sentenas dadas do Tribunal da Mesa da Conscincia, e Resoluo de S. Majestade mandada intimar ao Exmo. Patriarca de Lisboa pelo aviso de 31 de agosto de 1784, em que S. Majestade declarou, que os bens da Fbrica no s eram da competncia eclesistica, que era impeditiva da Jurisdio Paroquial; era sem dvida, que na qualidade de Provedor das capelas posto por S. Majestade, como Gram Mestra da Ordem de Cristo, tinha, e tenho toda a jurisdio para tomar conta s Fbricas, e nelas prover na forma de Direito; ao mesmo ponto, que parecia, que tendo S. Majestade por efeito de S. Alta Grandesa beneficiado, de honrado aos Seus Vassalos Eclesisticos, fossem estes os primeiros, que sem a men