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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA SOLANGE RECH

TEORIA DO SONETO DE GIACOMO DA LENTINI AO SCULO XXI

Palhoa 2008

SOLANGE RECH

TEORIA DO SONETO DE GIACOMO DA LENTINI AO SCULO XXI

Dissertao apresentada postumamente ao Curso de Mestrado em Cincias da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Gonalves dos Santos.

Palhoa 2008

SOLANGE RECH

TEORIA DO SONETO DE GIACOMO DA LENTINI AO SCULO XXI

Esta dissertao foi julgada postumamente adequada obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Linguagem e aprovada em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Cincias da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina.

Tubaro, 27 de junho de 2008.

______________________________________________________ Professor e orientador Antonio Carlos Gonalves dos Santos, Dr. Universidade do Sul de Santa Catarina ______________________________________________________ Prof. Deonsio da Silva, Dr. Universidade Estcio de S. ______________________________________________________ Prof. Fernando Simo Vugman, Dr. Universidade do Sul de Santa Catarina

PREFCIO DA COORDENAO

Esta dissertao foi apresentada postumamente com base nos exemplares impressos que foram entregues para a banca. Infelizmente, s vsperas da defesa, Solange Rech faleceu. Reconhecendo o valor de seu trabalho, o Programa de Ps-graduao em Cincias da Linguagem autorizou a defesa pstuma do trabalho. Uma consequncia bvia que seu autor no pde fazer as revises que seguramente seriam solicitadas pela banca de avaliao. Apesar deste material ensejar algumas revises, decidimos por consider-lo in totum, pedindo a compreenso do leitor. Uma segunda questo, porm, surgiu: a famlia no conseguiu recuperar os arquivos da dissertao. Sabidamente, uma das exigncias da Capes a publicizao da verso eletrnica das dissertaes em seu banco de dados. Alm disso, o Programa publica todas as dissertaes no stio da Biblioteca da Universidade. Assim, estvamos diante da demanda de escanear ou digitar novamente o trabalho de Solange Rech. Optamos pela digitao. Esta verso que o leitor tem em mos fruto do diligente trabalho de cpia de nosso estagirio e estudante de Letras Fernando de Souza Maria. O abstract foi elaborado pelo professor Fernando Simo Vugman. A diagramao ficou por minha conta. O leitor facilmente perceber a complexidade da tarefa diante, por exemplo, dos inmeros estudos de escanso feitos pelo autor. Duas consequncias decorrem dessa deciso: a primeira a de que pode ter havido algum equvoco de transcrio; a segunda que a diagramao da verso impressa fatalmente diferente da verso eletrnica. Creio que ambas as contingncias podem tambm ser compreendidas pelo leitor. Apesar desses embaraos, espero que esse trabalho possa contribuir para as pessoas interessadas no tema e desejo uma proveitosa leitura Prof. Dr. Fbio Jos Rauen Coordenador do Programa de Ps-graduao em Cincias da Linguagem

PREFCIO DO AUTOR

O fato que as vanguardas se exauriram na busca do novo, ao ponto de, pelo cansao, retornarem com nova leitura, no af de extrair de tais formas, novos efeitos poticos. Carlos Drummond de Andrade, em certo momento, inquirido a respeito do assunto, preferiu sugerir outra tarefa: a de disciplinar o chamado caos moderno, a de pesquisar e estabelecer as leis da potica moderna, leis de gosto, de psicologia, de filologia, de ritmo e mtrica. Manuel Bandeira, que iniciou sua carreira potica com um soneto, nos revela em seu literrio de Pasrgada (ele que havia pregado a licenciosidade contra o lirismofuncionrio-pblico), surpreendendo crticos e leitores pelo seu gosto em poesia, das formas tradicionais: gosto das formas fixas porque elas so padres estrficos de raro equilbrio, vivazes, mnemnicos, porque satisfazem o meu gosto de ordem, de disciplina. Para Mrio de Andrade, a poesia se tornar cada vez mais livre, mas no sentido de libertao de escolas e de definies exclusivistas. No se trata de voltar a processos de potica que jamais foram abandonados. Trata-se apenas de adquirir maior equilbrio entre a realidade de um determinado estado-de-poesia e os elementos de potica que lhes sejam mais adequados. 1 O conceito de poesia pura, levado ao extremo, resultaria em poesia absolutamente sem forma; e sem forma s poder haver o incriado, pois a vida se afirma em uma forma qualquer, tanto melhor quanto mais viva. Toda a expresso que decorre necessariamente da idia a exprimir-se boa e a idia harmoniosa suscita a forma harmoniosa. E como admitir-se que antes da poesia pura s se houvesse criado poesia impura? 2 Talvez se possa dizer, inclusive, que o ressurgimento do soneto na modernidade venha duma como resposta ao caos e ao extremado liberalismo vigentes. Ou como se fosse a busca dum necessrio retorno ao equilbrio voluntariamente perdido, a fim de contrabalanar a disperso que conduz a encruzilhadas ou a becos sem sada, quando no a estreis exerccios de liberdade criadora.

1

ANIBAL BEA, Entre a caa e o caador o velho soneto resiste, colhido da internet em 17/05/2007, s 14h57m, no endereo HTTP://www.secrel.com.br/jpoesia/abeca17.html MURILO ARAUJO, A arte do poeta, Livraria So Jos, RJ, 4 edio, 1973, p. 85.

2

O soneto, universo fechado como um ovo, prestar-se-ia bem para esse reencontro, graas ainda sua congnita aliana com a msica. Seja por isso, seja por uma espcie de obedincia a atavismos incoercveis, seja simplesmente para variar, o certo que o soneto continua firme nos dias de hoje. 3

3

MASSAUD MOISS, A criao literria, Poesia, Ed. Cultrix, SP, 11 Ed., 1989, p. 276.

RESUMO

Caminhando para completar oitocentos anos de histria praticamente ininterrupta e sendo um modelo acolhido pelos poetas ainda nos nossos dias, o soneto alvo especfico deste trabalho. Pretende-se estudar-lhe a teoria visando a esclarecer como e por que uma forma () potica to complexa resiste ao tempo e se incorporou cultura dos povos do mundo ocidental. Esse processo de incorporao no alcana apenas as camadas sociais mais instrudas, seno tambm as de instruo bsica, fenmeno que, em termos de aceitao espontnea, s encontra paralelo na trova, esta sim firmada em modelo ainda mais exguo (apenas uma quadra em redondilha maior) e de mais fcil elaborao. O conjunto terico vai ser desenvolvido atravs de sete captulos, a saber: I introduo, que se desdobra em definio, surgimento e propagao no ocidente. Nestes campos sero descritos os trabalhos investigativos que permitiram fixar no tempo a origem do soneto, seu inventor e propagadores. II a forma () do soneto, espao em que sero comentadas as exigncias tcnicas, especialmente no tocante distribuio em estrofes, ao tamanho e aos tipos de verso e de rima. So essas exigncias, juntamente com a mtrica (captulo seguinte) que criam o arcabouo do soneto, preestabelecendo suas caractersticas de sntese e de sonoridade. III a estrutura mtrica do verso. Atravs da escanso, resultar desmistificando o grande segredo da musicalidade do soneto, que conseguida atravs de compassos estabelecidos tecnicamente. IV soneto produto de inspirao, labor e suor. Se a inspirao, geradora da idia potica, componente inarredvel na elaborao de um soneto, tentar-se- demonstrar que a tecedura tcnica tarefa de oficina que exige do poeta largo conhecimento do idioma e diversos experimentos. Para encontrar a maneira ideal de preencher a forma () descrita no Captulo anterior, ele faz uso de diversos recursos, especialmente metaplasmos, os quais sero aqui comentados. V grandes sonetistas, grandes sonetos. Apresenta uma seleo de poetas, entre muitos, que, atravs dos ltimos sete sculos, se consagraram como cultores exmios desse modelo em diversos pases. Traz tambm os sonetos que venceram o tempo e circulam, at hoje, considerados jias literrias imorredouras. O captulo no inclui sonetos e sonetistas de lngua portuguesa, os quais merecero um captulo especial, o seguinte, visto tratar-se de nossa lngua-me. VI o soneto e seus cultores na lngua portuguesa, espao que ser usado para demonstrar a caminhada desse modelo, desde o seu incio, nas literaturas prprias de Portugal, do Brasil e de alguns pases da frica. VII curiosidades sobre o soneto. Sero aqui

relatados fatos curiosos e transcritos sonetos que fogem aos padres estabelecidos, mas que, em ltima anlise, servem para ilustrar a criatividade dos autores e engrandecer a jornada longeva desse modelo potico. Finalmente, o trabalho se encerra com um glossrio de termos prprios do fazer potico. Embora no se tenha localizado um nico texto que abranja de modo completo a teoria do soneto o que parece dar um valor singular a esta dissertao -, respaldam esta pea, com seus trabalhos parciais, respeitveis vozes e fontes.

Palavras-chave: Soneto. Forma do Soneto. Estrutura mtrica do verso.

ABSTRACT

On its way to complete a history of 800 years and being a model for poets still today, the sonnet is the object of the present work. Here, one intends to study its theory and explain why so complex a poetic form has resisted through time and was incorporated by the peoples of the West. Such a process of incorporation has not reached only the more instructed layers of society, but also those with only basic school formation, a phenomenon of spontaneous acceptance that is only rivaled by the folk song, a model even more exiguous (just a quatrain in redondilha maior), and of easier elaboration. The theoretical frame is to be developed along seven chapters: I Introduction, which is subdivided into session titled Definition, Origins, and Diffusion through the West. In these subdivisions the investigative works that allowed one to establish the time and origins of the sonnet, its creator and disseminators will be described. II The form of the sonnet; the technical demands, especially in relation to the distribution of the strophes, the size and types of verse and rhyme will be here discussed. Those are the demands, together with the metrics (next chapter), which create the structure of the sonnet, preestablishing its characteristics of synthesis and sonority. III The Metric Structure of the Verse. Through scansion the great secret of the sonnets musicality shall be demystified, since it is reached through technically established compasses. IV The Sonnet a Product of Inspiration, Work and Sweat. If inspiration, generator of the poetic idea, is an inescapable component in the elaboration of the sonnet, one will try to demonstrate that the technical assemble is a workshop job, which demands from the poet a wide knowledge of the language as well as a number of experiments. In order to find the ideal way to fill in the mold, as described in the previous chapter, the poet resorts to a number of artifices, especially the metaplasms, which will be here discussed. V Great Sonneteers, Great Sonnets. Here a selection of poets is presented, among many, who, along the last seven centuries, came to be recognized as excellent performers of such a model in a number of countries. The sonnets that survived time and are still read, and considered undying literary pearls, are presented. This chapter does not include sonnets and sonneteers in Portuguese, who will deserve a especial chapter, since its about our mother tongue. VI The Sonnet and its Followers in the Portuguese Language. Here, the road followed by this model, since its beginning in the literature of Portugal, Brazil and some African countries will be presented. VII Curiosities about the Sonnet. Here curious facts will be narrated, and sonnets that fall out of the

established pattern will be presented, but which, in the final analysis, illustrate the creativity of the composers and aggrandizes the long path of such a poetic model. Finally, the present work ends with a Glossary of the proper terms for the poetic making. Although it was not possible to find one only sonnet capable of exemplifying the whole theory of the sonnet which seems to give to this study a singular value--, they all value such a piece with their partial works, respectable voices and sources.

Keywords: Sonnet. Form of the Sonnet. Metric Structure of the Verse.

SUMRIO

1

INTRODUO..............................................................................................................................12

2 A FORMA () DO SONETO .......................................................................................................21 2.1 A FORMA PELA ESTROFAO...............................................................................................21 2.2 A FORMA PELA RIMA ..............................................................................................................22 2.2.1 Definio e comentrios...........................................................................................................22 2.2.2 Os tipos de rima .......................................................................................................................26 2.2.3 As rimas do soneto ...................................................................................................................33 2.3 A FORMA PELO METRO E PELOS TIPOS DE VERSO...........................................................36 3 A ESTRUTURA MTRICA DO VERSO ...................................................................................50 3.1 RITMO E CADNCIA .......................................................................................................................50 3.2 OS PS MTRICOS E OS SEUS SEGREDOS ............................................................................54 3.2.1 Escandindo o heptasslabo ......................................................................................................58 3.2.2 Escandindo o octosslabo.........................................................................................................62 3.2.2.1 Octosslabo modelo 4-8 (ictos na quarta e na oitava slabas): ................................................62 3.2.2.2 Octosslabo modelo 2-5-8 (icto na segunda, quinta e oitava slaba).......................................64 3.2.2.3 Octosslabo modelo 3-6-8 (io na terceira, sexta e oitava slaba)...........................................64 3.2.3 Escandindo o eneasslabo ........................................................................................................65 3.2.3.1 Eneasslabo modelo 4-9 (dois versos de quatro slabas).........................................................66 3.2.3.2 Eneasslabo modelo 3-6-9 (icto na terceira, sexta e nona slaba) ...........................................67 3.2.4 Escandindo o decasslabo ........................................................................................................68 3.2.4.1 Decasslabo herico (ictos na sexta e dcima slaba)..............................................................68 3.2.4.2 Decasslabo sfico (ictos na quarta, oitava e dcima slaba) ..................................................71 3.2.4.3 Decasslabo provenal (icto na quarta, stima e oitava slaba)...............................................72 3.2.5 Escandindo o hendecasslabo ..................................................................................................73 3.2.6 Escandindo o dodecasslabo ....................................................................................................75 3.2.6.1 Alexandrino clssico...............................................................................................................75 3.2.6.2 Dodecasslabo romntico (ictos na 4, 8 e 12 slaba):...........................................................79 3.3 AS VARIAES POSSVEIS NA ESCANSO.........................................................................82 3.3.1 A variao dos heptaslabos ....................................................................................................83 3.3.2 A variao dos octosslabos .....................................................................................................84 3.3.3 A variao dos eneasslabos ....................................................................................................84 3.3.4 A variao dos decasslabos ....................................................................................................84 3.3.5 A variao no hendecasslabo .................................................................................................85 3.3.6 A variao dos dodecasslabos ................................................................................................85 4 SONETO PRODUTO DE INSPIRAO, LABOR E SUOR ................................................87 4.1 INPIRAO OU TRANSIPIRAO?........................................................................................87 4.2 AS FERRAMENTAS DA OFICINA............................................................................................91 5 GRANDES SONETISTAS, GRANDES SONETOS...................................................................97 5.1 GRANDES SONETISTAS...................................................................................................................97 5.2 GRANDES SONETOS .....................................................................................................................100 5.2.1 Sonetos em lngua italiana.....................................................................................................101 5.2.2 Sonetos em lngua francesa ...................................................................................................105 5.2.3 Sonetos em lngua espanhola.................................................................................................110 5.2.4 Sonetos em lngua inglesa......................................................................................................114 5.2.5 O soneto em outras terras, outras lnguas ...........................................................................119 6 O SONETO NA LNGUA PORTUGUESA ..............................................................................120

6.1 GRANDES SONETOS DA NOSSA LNGUA.......................................................................................124 6.1.1 Sonetos portugueses ...............................................................................................................124 6.1.2 Sonetos brasileiros .................................................................................................................132 6.2 O SONETO EM OUTROS PASES DE LNGUA PORTUGUESA ............................................................141 7 CURIOSIDADES SOBRE O SONETO.....................................................................................143

REFERNCIAS .................................................................................................................................161 GLOSSRIO ......................................................................................................................................163

1

INTRODUO

No h dvida que existe uma mstica muito especial sobre o soneto. Trata-se de um molde potico que, durante oito sculos, mantm praticamente imutvel sua arquitetura; um espao to restrito que, a depender do tamanho dos versos, pode ter de catorze (versos monossilbicos) a 168 slabas (versos dodecasslabos); um rigor de forma tal que exige de ouvires, no dizer de Bilac, percia e habilidade raras, no apenas para preencher sua moldura exigente com adequado vocabulrio, mas tambm para que o contedo preserve a um s tempo sentido, ritmo e elegncia. Nelson Werneck Sodr lembra a estreita aproximao entre a idia e a forma, que consagra a obra de arte e lhe assegura a eternidade. 4 H, e sempre houve, muita resistncia ao soneto. Uns o chamam de gaiola que impede o vo dos pensamentos poticos. O autor de A ceia dos Cardeais, o portugus Jlio Dantas (1876/1962), ele prprio autor de um livro chamado Sonetos, apelida-o de sepultura de catorze versos, ou jaula de bronze. O crtico francs Ferdinand Brunetire (1849/1906), citado por Cruz Filho, tambm marca sua restrio ao soneto, dizendo que ... o ponto fraco do gnero est em que a fixidez da forma, em primeiro lugar, e, em seguida, a sua brevidade no parecem permitir, ou pelo menos no favorecem o desenvolvimento dos grandes pensamentos.5

Tambm Antnio Feliciano Castilho (1800/1875) fustigou o soneto,

comentando suas apertadssimas dificuldades. E acrescenta, numa injustia histrica a Cames e outros luminares conterrneos, que o soneto portugus [...] nasceu com Bocage, e com Bocage morreu.6 A favor do soneto levantam-se vozes diversas, em todos os tempos e pases. A opinio geral, quanto ao reduzido espao, que o soneto no grande nem pequeno. Cabe ao poeta avaliar o contedo que quer desenvolver. Se o soneto o comporta, timo; se no, vai-se em busca de outro modelo. Cames fez sonetos admirveis, mas, para desenvolver Os Lusadas, escreveu uma epopia, composta de 1102 estrofes e 8816 versos. No o que fazemos na vida prtica? Se quisermos nos deslocar e somos poucos, cabemos num automvel; se um pequeno grupo, usamos uma van confortvel; se somos algumas dezenas,

4 5 6

NELSON WERNECK SODR, Histria da Literatura Brasileira, Ed. Bertrand Brasil, RJ, 1988, p. 454. Apud CRUZ FILHO, O Soneto, Ed. Elos, RJ, 1961, p. 28. Apud CRUZ FILHO, opus cit., p. 30.

precisamos de um nibus. Inimaginvel seria usar um nibus de quarenta e tantos lugares para transportar apenas um passageiro. Que assim seja o soneto: de tamanho adequado. Ainda sobre as limitaes de espao do soneto, Amadeu Amaral assim se expressa:

H muita gente que ainda supe que o poeta tortura as idias na grelha dos versos. Tal coisa s se d com os maus poetas. E acrescentamos que nada se perde com isso, pois s tortura as suas idias... quem no as tem. O verdadeiro poeta, longe de tortur-las, desenvolve-as e apura-as admiravelmente na maravilhosa retorta da forma. 7

No tocante criatividade e inspirao, Franois-Marie Arouet (1694/1778), mais conhecido pelo pseudnimo Voltaire, cala os crticos, querendo dizer que isso dom pessoal: Todos os filsofos reunidos no conseguiriam escrever a Arminda de Quinault, nem os Animais doentes da peste que La Fontaine comps sem quase saber o que fazia. Por que um campo minado como o soneto tem sido praticado na sucesso dos sculos por personalidades marcantes da histria mundial, como reis, papas, imperadores como Dom Pedro II, msicos como Vivaldi, filsofos como Walter Benjamin, alm de poetas de indiscutvel prestgio, como Dante, Petrarca, Cervantes, Cames, Shakespeare? Muitos deles, alis, so famosos exatamente por terem composto sonetos magnficos. Por qu? Talvez o soneto, por suas caractersticas, traga dentro dele mesmo este poder de estar sempre germinando, um tipo de Fnix, que renasce das cinzas sempre que sepultado. Talvez como disse o filsofo Walter Benjamin sobre o antigo Egito ele se assemelhe a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas cmaras das pirmides e que conservam at hoje suas foras germinativas.8 H quem diga que a resposta est exatamente naquilo que seus crticos mais acusam como sendo a sua deficincia: o desafio instigante, a dificuldade que existe em acomodar forma e contedo. No diferente o entendimento de Jos Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque (1867/1934), conforme crnica de 1920. Para ele, a trajetria de sucesso do soneto se deve exatamente sua brevidade, que proporciona espao para a emoo, ao contrrio do que ocorre com os longos poemas.

7 8

AMADEU AMARAL, Ensaios e Conferncias, Um Soneto de Bilac, Ed. Hucitec Ltda., 1976, p. 52. WALTER BENJAMIN, Magia e Tcnina, arte e poltica, Trad. Srgio Paulo Rouanet, Ed. Brasiliense, 1994, p. 204.

H uma conhecida sentena de Boileau: Um sonnet sans defaults vaut seul um long pome (Um soneto sem defeito vale por um longo poema). Se Boileau estava certo, ento Sete anos de pastor Jac servia..., reduzida e magistral construo de catorze versos decasslabos, vale tanto quanto o volumoso e consagrado Os Lusadas, ambos nascidos da mesma pena mgica de Cames. Soneto uma composio potica composta de catorze versos. Quando esses versos so divididos em quatro estrofes isomtricas, sendo dois quartetos e dois tercetos, est caracterizado o soneto italiano (ou petrarquiano, ou camoniano). Quando composto de trs quartetos e um dstico (dois versos finais), chama-se soneto ingls, praticado largamente por Shakespeare. No segundo captulo sero abordados os diversos componentes da forma () do soneto. Onde surgiu o soneto, quem inventou e com que propsito? so perguntas que tm merecido a redobrada ateno de estudiosos, principalmente nos ltimos sculos. Em renomado site da internet, que se ocupa exclusivamente de poesia, encontra-se a seguinte nota: O soneto como hoje, foi inventado no sculo XIII, porm sua literatura, no princpio muito rudimentar, subsiste desde quinze sculos antes de Cristo, e foi inventada pelos hindus, povo de raa hindo-ariana, que falava o snscrito e habitava o noroeste das ndias.9 Dentre vrios pesquisadores consultados, nenhum comunga a idia de que a inveno do soneto passe pelos hindus, tampouco que remonte tantos sculos no tempo, de modo que no h fonte conhecida para validar a afirmativa. Amorim de Carvalho, crtico portugus, segue o debate: Cremos que o soneto (pequeno so, pequeno som, pequeno canto ou melodia) tem a sua origem na poesia provenal, reportando-se ao que nessa poesia se chamava coblas (correspondente s quadras do soneto). Condensou e resumiu, com grande beleza da forma, o so dos provenais. 10 J os brasileiros Olavo Bilac e Guimares Passos11 do a Frana (Girard de Bourneil) como sua origem, possivelmente influenciados por Frederic Loli, que assim tambm o afirma em seu Dictionnaire ds crivains et des Littratures.

9

Clube da Poesia, Academia Brasileira de Literatura Potica, http://www.clubedapoesia.com.br/sonetos/son.htm, visitado em 27/04/2007, s 03h31m. AMORIM DE CARVALHO, Tratado de versificao portuguesa, Edies 70, Lisboa, 3 edio, 1974, p.116. OLAVO BILAC e GUIMARES PASSOS, Tratado de versificao, Ed. Paulo de Azevedo Ltda., 9 edio, 1949, RJ, p. 165.

10 11

Para Guillaume Colletet (1598/1659), o soneto nasceu na Frana, foi cultivado na corte dos primeiros reis, passando, aps, Provena, onde foi usado pelos trovadores (troubadours), e dali emigrou para a Itlia. Est tambm a opinio de Auguste Dorchain (1857/1930), externada em LArt des vers. Mas o francs Charles Asselineau (1821/1874), conterrneo de ambos, autor de um ensaio sobre o soneto12, refuta a informao. provvel que Colletet se tenha prendido ao termo sonnet, preexistente na provenal, vocbulo de fora usado por Thibaut VII (1201/1253) e por Guillaume de Lorris (1200/1240), trovador do sculo XIII. Entretanto ( Asselineau quem argumenta), esta palavra era aplicada, por troveiros e trovadores, indiferentemente a toda espcie de canto, e no especialmente para o que hoje chamamos soneto. Este entendimento encontra valioso respaldo do Grand Dictionnaire Universel, de Pierre Larousse:O soneto veio-nos da Itlia. Considera-se geralmente que nasceu na Siclia, no sculo XIII. H, em todo caso, quem tenha Petrarca como o seu inventor, ao passo que outros fazem remontar a sua inveno aos nossos trovadores. Em verdade, entre estes a palavra sne no significava soneto; aplicava-se, ao contrrio, a diversas poesias, como sentido de canto.

Jos de Nicola faz coro aos numerosos depoimentos em prol da origem italiana do soneto: A palavra soneto significa originalmente pequeno som e teria sido usada pela primeira vez por Jacopo de Lentini, da Escola Siciliana (sculo XIII), tendo sido mais tarde difundida por Petrarca (sculo XIV). 13 Glauco Mattoso (pseudnimo do paulistano Pedro Jos Ferreira da Silva), renomado sonetista, parece fugir as celeuma ao aceitar verses diversas:

O soneto teria sido inventado no sculo XIII pelo trovador francs Girard de Bourneuil ou pelo siciliano Giacomo da Lentini, como poema lrico, mas cabe aos portugueses a cristalizao do decasslabo herico (Cames, sculo XVI). Na poesia dos trovadores provenais se encontram os primeiros exemplos, ainda rudimentares, de soneto. Da Provena, o formato chegou Siclia (Per delle Vigne) e foi desenvolvido pelos poetas italianos do Dolce Stil Nuovo: Guido Cavalcanti, Cecco Angiolieri, Dante, Petrarca. 14

12

CHARLES ASSELINEAU, Le livre des sonnets (Lemerre, Paris), apud Cruz Filho, O Soneto, Editora Elos, RJ, 1961, p.9. JOS DE NICOLA, opus cit., p.20. Copiado da Internet, site Sonetrio brasileiro, http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/sonetario/teoria.htm, em 25/04/2007, 01h20m. no endereo

13 14

de outro brasileiro, Jos Lino Grnewald, o esclarecimento que segue:

A palavra soneto vem do som (son, desde o provenal). Da, o dimuntivo, senetto, lanado na Itlia, terra onde, pelo menos na fase inicial, mais brilhou: do siciliano Giacomo de Lentino (sculo XIII) e tambm Per delle Vigne, passando por Guittone dArezzo (segundo consta, o primeiro a estabelecer as regras de obrar essa forma fixa), e Guido Guinizelli, chegamos ao trio sem igual: Cavalcanti, Dante e Petrarca. Depois de Petrarca, o soneto inundou o mundo.15

Du Bellay no tem dvidas quanto origem italiana do soneto, a julgar pelo que escreveu a seu respeito: to sbia quanto aprazvel inveno italiana.16 Ainda sobre o assunto, convm registrar a manifestao do crtico francs Georges Pelissier:

No este poema (o soneto) de origem provenal, como geralmente se tem acreditado; a palavra son ou sonnet, muito antiga da lngua dos trovadores, aplica-se a qualquer espcie de canto e designa, sobretudo, as composies lricas que eram cantadas ao som de instrumentos musicais. A forma moderna do soneto inveno italiana: foi trazida Frana, no por Du Bellay, mas por Saint-Gellais e Marot. Compuseram sonetos todos os poetas da Pliade e os seus discpulos. Um tanto depreciado durante o domnio literrio de Malherbe, reencontrou o soneto a sua antiga voga com Voiture, Benserade e outros. Tendo cado novamente em olvido, no decurso da ltima metade do sculo XVII e durante todo o sculo XVII, foi retomado brilhantemente pela escola moderna, cabendo a Sanite-Beuve a iniciativa da restaurao da antiga honra do poema.17

O portugus Agostinho de Campos dissertou sobre o tema da seguinte maneira:

O soneto nasceu ocidental, meridional e catlico, o que no o impediu de conquistar a Europa toda e de ainda a dominar, vencendo o prendendo na sua celular estreiteza o Ingls insulano e individualista, o Espanhol eloqente e esfusiante (sic), o Francs lgico e disciplinado, assim como o Alemo de livre-exame, profundo e difuso, inchado de cogitao, e para quem dir-se-ia h mais conceitos do pensamento do que palavras no dicionrio. Conquistada a Europa e levado nas asas das trs lnguas imperiais ingls, castelhano, portugus o Soneto partiu a tomar posse das duas Amricas. Se tal forma ou frmula potica viu com efeito a luz na Siclia, pode esta ilha gabar-se de ter sido o bero de um imprio durvel e de uma devoo pertinaz, no domnio da arte literria; e o ilustre Petrarca prestou com ela a Madonna Laura homenagem teimosa, cujos ecos repercutem ainda e no mostram indcios de calarse to cedo.18

15 16

JOS LINO GRNEWALD, Grandes sonetos da nossa lngua, 3 Ed., Nova Fronteira, 1987, p.19. JOACHIM DU BELLAY, Dfense et illustration de la langue franaise (Paris, 1892), apud Cruz Filho, ibid., p.10. BOILEAU, Oeuvres potiques, avec notice, commentaires e lexique, par Georges Pelissier, 7 edio, Paris, apud Cruz Filho, opus cit., p. 12 e 13. AGOSTINHO DE CAMPOS, Estudos sobre o Soneto, Coimbra, 1930, apud Cruz Filho, opus cit., p. 14.

17

18

No tocante ao perodo de seu surgimento, parece pacfico fix-lo na primeira metade do sculo XIII. Assim tambm est consignado em Massaud Moiss, estudioso e crtico literrio brasileiro, em sua obra A criao literria: Quanto ao soneto, sua histria mais recente que a da ode. Foi inventado durante a Idade Mdia, no sculo XIII. 19 Em suma, ressalvando o fato de que opinies isoladas sempre existiro, parece no sobrar dvidas de que o soneto nasceu na Siclia, Itlia, possivelmente em Palermo, na primeira metade do sculo XIII. Este o entendimento dominante. Assim tambm sintetiza Cruz Filho:Conclui-se de quanto precede que o soneto, poema originrio da Idade Mdia, teve por bero, provavelmente Palermo, a cidade insular onde Frederico II presidiu, na prpria corte, no primitivo surta da poesia siciliana, no meio de doutos, poetas, astrlogos, Judeus e rabes, aos quais dispensava proteo e perante quem lia os seus prprios versos, na primeira metade do sculo XIII. Foi nessa pequena academia potica que floresceram Per delle Vigne, Enzo, rei da Sardenha, Jacobo da Lentini, Guido della Colonne , Jacobo Mostacci, Ruggieri dAmice e outros cujos nomes mal chegaram at ns.20

Se polmica houve sobre o local de surgimento do soneto, no podia ser pacificamente aceito o nome do seu inventor, por razo de conseqncia. Os que advogaram fossem a Frana a ptria do soneto fixaram-se no nome do poeta Girard de Bourneuil (ou Giraud de Borneil). Esta, porm, no a opinio hoje aceita, mesmo porque, como foi dito, j se tem por estabelecido que o soneto nasceu na Itlia. Por parecer mais abrangente, a manifestao de Massaud Moiss chamada de volta a este Trabalho, sintetizando o pensamento de muitos autores, qui a maioria deles:Por muito tempo, acreditou-se que tinha sido criado (o soneto) pelo poeta siciliano Pier delle Vigne (1197/1249), secretrio de Frederico II da Alemanha, ou pelos trovadores provenais, mais provavelmente Giraud de Borneil, ou ainda pelo poeta italiano Guitone dArezzo. Depois dos estudos de G. A. Cesreo, inclinam-se os estudiosos a atribuir a paternidade do soneto a Giacomo da Lentini (1180/90? 1246?), siciliano pertencente ao grupo de poetas que se reunia na corte de Frederico II, em Palermo, e se inspirava no trovadorismo provenal. 21

Com efeito, Giovanni Alfredo Cesreo (1861/1937), citado por Moiss, foi poeta, crtico literrio e poltico, alm de atuar como professor na cadeira de literatura italiana. Suas fundamentadas pesquisas levaram-no a afirmar, com segurana jamais contestada, que o soneto nasceu ali, na ilha da Siclia, na sua Palermo, na primeira metade do sculo XIII, pelo tambm siciliano Giacomo da Lentini.19 20

MASSAUD MOISS, A criao literria, Ed. Cultrix, SP, 11 edio, 1989, p. 273. CRUZ FILHO, opus cit., p. 16.

Tambm aqui, parecem suficientes as manifestaes. Vrios nomes foram candidatos ao posto de inventor do soneto: Giraud de Borneil, Giacomo Notaro, Pier delle Vigne, Guitone dArezzo, Petrarca... Revolvidas as brumas do tempo e peneiradas as opinies, a maioria dos crticos e estudiosos respalda o trabalho de Cesareo e inclina-se a atribuir ao italiano Giacomo da Lentini a honra de ser o pai deste invento que, de to genial, levou algumas pessoas ao exagero. Um desses rompantes, conforme narra Charles Asselineau, levou Antnio Godeau (1605/1672), bispo de Vence (Frana), tambm poeta e freqentador do Palcio de Rambouillet, a pretender que o reino de tal composio no seria deste mundo. Visto e lido o que foi escrito sobre a origem do soneto (Siclia, Itlia) e seu inventor (Giacomo da Lentini), resta buscar a razo, a justificativa para o seu surgimento. Conquanto nos defrontemos agora com uma literatura mais escassa, o propsito que levou Lentini a perseguir uma forma especfica, curta, rimada e ritmada, bem mais claro: fazer do soneto um instrumento que se relacionasse com a msica (cantar um soneto) ou potencializar a musicalidade que intrinsecamente salta de sua composio. Recitar um soneto j por si s, quase cantar. Assim como o pianista bate com o p ao cho para marcar os compassos, o soneto tem marcaes preestabelecidas que lhe garantem a cadncia. Tambm a rima reiterao de sons iguais ou similares em intervalos determinados e reconhecveis muito contribui com a musicalidade do soneto, como j foi visto, o que, em qualquer das hipteses, refora a origem musical do soneto. Veja-se, a esse propsito, o que diz Jos Rebouas Macambira.A relao entre o verso e a dana ntima e sensvel; quem dana est batendo compasso, tonificando e atonizando slabas. Essa experincia utilizvel na sala de aula, e pode-se at mesmo danar um soneto ante os olhos entusisticos da classe.22

Massaud Moiss, em obra j citada, lembra que a palavra soneto seria diminutivo de som, o que denota prontamente a aliana original com a msica. E cita Fidelino de Figueiredo: era a letra duma pequena melodia. Depois de assegurar que no h divergncia quanto ao nome do primeiro sonetista, o poeta italiano Giacomo da Lentini (1190/1246), assim tambm escreve Srgio Faraco: Inicialmente, o soneto era cantado, com msica e a necessidade de um princpio par (quartetos) e de um princpio mpar (tercetos) e se explicava pela mudana da melodia na segunda parte. 23

21 22 23

MASSAUD MOISS, opus cit., p. 273. JOS REBOUAS MACAMBIRA, Estrutura musical do verso e da prosa Introduo, Ed. Pioneira, 1984. SRGIO FARACO, Livro dos Sonetos, L&PM Editores, SP, 1999, p. 11.

Finalmente, ainda visando a demonstrar a natureza musical do soneto, oportuna a transio de textto da lavra de Artemio Zanon, escritor e pesquisador catarinense, alm de festejado sonetista contemporneo:

Quanto origem dele (soneto)m na Literatura Ocidental que tenho, pouco divergente: Giacomo da Lentino, poeta siciliano (Sculo XIII), geralmente citado como sendo o criador dessa forma potica fixa, a qual, inicialmente por ser sempre cantada, era composta em duas partes (estrofes), sendo que a primeira obedecia a um princpio par, de oito versos decasslabos e a segunda, por dois terceiros, seguia diretriz mpar, isso pela razo de que o soneto era musicado, e nos tercetos a melodia mudava.24

O italiano Francesco Petrarca (1304/1374), conquanto no seja o inventor do soneto, figura inseparvel desse contexto. Alm de aperfeioar-lhe a forma nos moldes que at hoje se pratica, a partir do modelo que j fora retocado por Guittone dArezzo (1230/1294), cuidou de divulg-lo, primeiro na Itlia, onde tinha a firme companhia de Guido Cavalcanti, (1255/1300) e de Dante Alighieri (1265/1321). Exmio sonetista, Petrarca comps 317 sonetos. O melhor de sua obra dedicado a Laura de Novaes por quem curtia um amor platnico. J os sonetos de Dante eram inspirados em Beatriz (Beatrice Portinari), protagonista de um amor impossvel. Para cantar sua musa, Dante escreveu dois livros, intitulados Vita Nuova e Le Rime. Assim como vrios outros, na contnua sucesso dos sculos, Dante e Petrarca justificam mui especialmente para cantar o amor e os seus arroubos25. o destino lrico do soneto. Com a repercusso obtida por seus sonetos atravs das constantes viagens que fazia, Petrarca disseminou o novo modelo em diversos pases europeus. Nessa viagem em busca da universalidade, o soneto petrarquiano aportou na Inglaterra, ainda em 1372, por intermdio de Geoffray Chaucer (1340/1400). H quem afirme, porm, que a Inglaterra s o conheceu em 1527, atravs de Thomas Wyatt (1503/1542).26 Frana o soneto s chegou no sculo XVI, levado pelos poetas Mellin SaintGelais (1487/1558) e Clment Marot (1496/1544), e logo teve grandes cultores, como se ver no Captulo V. O soneto entrou na Espanha no sculo XV, pelo labor de Don igo Lpez de Mendoza, Marqus de Santillana (1388/1458).24

ARTEMIO ZANON, Morais Lopes poeta iluminado, JML&AZ Editores, Algarve, Portugal, 2004, pgina 212. ALPHONSE SECH, Les sonnets damour, prface (Paris), apud Cruz Filho, opus cit., p. 22. MASSAU MOISS, Dicionrio de Termos Literrios, Ed. Cultrix, SP, 1974, p. 483.

25 26

A Portugal s chegou em 1526 ou 1527, quando Francisco de S de Miranda (1495/1558) o trouxe em sua viagem de volta a Itlia, depois de l permanecer por um perodo de cinco anos, abrigado pela marquesa de Pescara, Vitria Colonna, que era sua parenta. Quando tal ocorreu, Cames o escritor que mais faria uso do decasslabo herico (usado em sonetos e em praticamente todo Os Lusadas) tinha aproximadamente dois anos de idade. S de Miranda tambm trouxe na bagagem outras novidades que, poca, eram usuais na Itlia, como a cano, a sextina, as composies em tercetos e em oitavas e os versos de dez slabas. Ao faz-lo, mudou toda a prtica potica lusitana e, a partir da, a Renascena se imps, em detrimento dos chamados poetas da medida velha (redondilhas, de cinco e sete slabas). Na Alemanha, segundo alguns, o soneto foi introduzido por Johann Fishcart (1546/1590); segundo outros, pelos poetas Weckerlin e Schede. Dali passou para outras literaturas de pases de lngua germnica e tambm para povos eslavos: poloneses, russos, ucranianos, blgaros, tchecoslovacos, servo-croatas e eslovenos. Nas Amricas, trazido pelos conquistadores europeus, o soneto encontrou terreno frtil. Convm notar que, cronologicamente, os portugueses mal tinham descoberto o Brasil quando recepcionaram o soneto em seu territrio, trazido, como j foi visto, por S de Miranda. Da mesma forma, o soneto entrou na frica pelas mos de colonizadores de vrios pases europeus (Portugal, Espanha, Holanda, Frana, Blgica, Inglaterra...), mas no vicejou como em outras terras, embora alguns bons sonetistas tenham inscrito o continente no rol dos cultores dessa forma fixa quase milenar.

2

A FORMA () DO SONETO

S se chamar soneto a uma composio potica que obedea a uma estrutura musical do verso, como exposto no Captulo III, e a determinadas regras preestabelecidas, desenvolvidas neste captulo, a saber: a forma pela estrofao, a forma pela rima e a forma pelo metro e pelos tipos de verso

2.1

A FORMA PELA ESTROFAO

Como j ficou dito na definio constante do Captulo I, soneto um poema de catorze versos isossilbicos (todos com nmero igual de slabas). Classicamente, o soneto italiano, que o modelo mais difundido, compe-se de dois quartetos seguidos por dois tercetos, em estrofes isomtricas (de medida sempre igual). H, entretanto, algumas variaes a considerar: O soneto ingls, do qual William Shakespeare (1564/1616) foi o praticante mais exponencial, mantm os catorze versos, porm dispostos de outra forma: trs quartetos e um dstico final, ou seja, uma parelha de versos a arrematar o poema. Muitas vezes este tipo de soneto aparece em ordem corrida de versos, sem diviso estrfica. No se v pensar, entretanto, que na Inglaterra todos os sonetos obedecem a esta forma. John Donne (1572/1631) e John Milton (1608/1674) compuseram inesquecveis sonetos no estilo italiano. Por um perodo, principalmente a partir do sculo XVI, praticou-se o chamado soneto com estrambote ou de cauda, uma inveno do sculo XIII, que consistia no acrscimo ao modelo tradicional de mais um terceto, este com rima diferenciada. O primeiro desses versos adicionais, de metro mais curto, rimava com o ltimo terceto, enquanto os dois ltimos versos rimavam entre si. Tinha-se ento um estranho soneto de dezessete versos, os trs ltimos com um formato diferente do cnone oficial. Cames fez uso dessa forma uma nica vez e no deve ter gostado do apndice, visto no o ter utilizado em outras criaes.

Poetas houve no Brasil o principal foi Luiz Delfino dos Santos que inverteram ou misturaram a ordem dos quartetos e tercetos, mantendo as demais exigncias histricas do soneto, de modo a no descaracteriz-lo quanto a metro, cadncia, rima e quantidade de versos.

2.2

A FORMA PELA RIMA

Nesta seo, apresentamos: a) definio e comentrios, b) os tipos de rima e c) as rimas do soneto

2.2.1

Definio e comentrios

A rima provm, em ltima anlise, fora e acima do campo filolgico, dessa vinculao do homem aos vocbulos que inventa, combina, altera, desfaz e revive, e cujas virtualidades tantas vezes o surpreendem, impondo-se-lhe sensibilidade e inteligncia. 27

Pela importncia que tem a rima para o soneto, imperioso que se aborde o assunto, ainda que essa abordagem no venha a alcanar a profundidade ideal. Por esta razo, em vez de simplesmente apresentarmos os tipos de rimas, sero expostas algumas definies tericas e as opinies pr e contra de autores e crticos. H vrias definies para rima. Ouamos Mello Nbrega:

Diz-se que so rimas, em arbitrria generalizao, tanto as formas elementares, voclicas e consonantais, como as apresentaes consoantes, em seus diversos graus de intensidade, e mais os arranjos literais, silbicos e vocabulares das composies anagramticas, anacclicas e palindrmicas, sem esquecer certos jogos verbais, de fundo puramente gramatical.28

27 28

MELLO NBREGA, Rima e Poesia, Ed. Instituto Nacional do Livro, 1965, p. 9. MELLO NBREGA, opus cit., p. 7.

Na mesma obra (pgina 9), Nbrega atribui a Aristteles ter feito o primeiro registro retrico do encontro das terminaes vocabulares, que viria a ser definido por Quintiliano como similis duarum sententiarum vel pluribus finis (final semelhante de duas sentenas ou mais traduo livre do mestrando). E transcreve, agora na pgina 7, a definio de Babette Deustch, que afirmava ser a rima the repetition of the same or similar sounds, whether vowels, consonants, or a combination of these in one or more syllables, usually stressed and occuring at determined and recognizable intervals. (A repetio dos mesmos sons, ou similares, sejam vogais, consoantes ou combinao de ambos, em uma ou mais slabas (repetio esta) geralmente forada para que possa ocorrer em intervalos determinados e reconhecveis. traduo livre do mestrando). Olavo Bilac e Guimares Passos (opus cit., p. 78) dizem que rima a uniformidade do som na terminao de dois ou mais versos. Definio Incompleta, sem dvida, pois que h versos com rimas internas. Parece melhor, e mais abrangente, se dissermos que rima a semelhana ou identidade entre os sons, no final ou no interior de dois ou mais versos. Ou ainda, rima a reiterao de sons silbicos que ocorrem em intervalos determinados e reconhecveis. Diz Antnio Houaiss (1915/1999) que, etimologicamente, a palavra se origina no grego, rhuthms, onde significa movimento regulado e compassado, ritmo, cadncia, medida, passando pelo latim, rythmus, movimento regular, batedura compassada; ritmo; sucesso regular dos mesmos tempos, do mesmo p. Dessa vinculao ao Lcio nos d prova o livro pstumo de Cames Rythmas, publicado em 1595, pois a mesma obra, trs anos aps, j era grafada Rimas.29 Segundo Roman Osipovic Jakobson (1896/1982), conquanto a rima, por definio, se baseie na recorrncia regular de fonemas ou de grupos de fonemas equivalentes, seria uma simplificao abusiva tratar a rima meramente do ponto de vista do som. A rima implica necessariamente uma relao semntica entre unidades rtmicas.30 O poeta da lingstica (como o apelidou Haroldo de Campos) quis dizer que a rima no se limita a marcar uma iterao de sons, agudizando nos ouvidos as semelhanas fonticas que sobressaem no poema. Seu papel muito mais relevante, uma vez que parte importante do componente rtmico e musical do verso. Servir de enfeite seu papel

29 30

ANTNIO HOUAISS, Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua Portuguesa, vocabulrio rima, etimologia. ROMAN JAKOBSON, Lingstica e potica. Lingstica e comunicao, 10 ed., Traduo: Izidoro Blikstein e Jos Paulo Paes. So Paulo: Cultrix, s/d [1975], p. 144.

secundrio; importa que participe de todo o contexto do poema, principalmente no tocante sonoridade, como se o revestisse com uma aura natural. Ao defender a necessidade da rima, alguns laboram com extremado exagero. o caso de Thodore de Banville (1823/1891), segundo o qual as demais palavras de um verso se limitam a no perturbar os efeitos da rima. Da mesma forma, o italiano Carlo Culcasi mostrou-se radical ao afirmar: Bandire la rima della poesia cio equivarrebbe a bandire i baci dellamore. (Banir a rima da poesia o mesmo que banir os beijos do amor. Traduo livre do mestrando). 31 Victor Hugo (1802/1885) concordava com tamanho arroubo, pois via na rima a suprema graa do verso. Oscar Fingal OFlahertie Wills Wilde, ou simplesmete Oscar Wilde (1854/1900), levou a discusso para o campo sobrenatural ao dizer que a rima transforma em vozes divinas nossas pobres palavras. Na mesma linha, dele tambm a afirmativa de que a rima o eco do vale das musas. Antnio Gonalvez da Silva, o Patativa do Assar (1909/2002), poeta cearense analfabeto cujos textos so estudados na Sorbonne, na cadeira de Literatura Popular Universal, jamais teve dvida sobre a necessidade da rima:

Se um doto me pergunt Se o verso sem rima presta, Calado eu no vou fic, A minha resposta esta: - Sem a rima, a poesia Perde arguma simpatia E uma parte do primo; No merece munta parma, como o corpo sem arma E o corao sem am. 32

Claro est que um soneto no apenas rima. Mas Verlaine mostrou-se extremado pelo lado oposto ao destinar para a rima o papel de um mal necessrio. Entretanto, h rimas e rimas. Versos h em que as rimas, de to foradas, tornam artificial o poema negando-lhe aquela fluidez natural que d alma composio -, como se todo o contedo estivesse subordinado rima. Quando ela surge, forada como uma cunha, mutilando o verso e abrindo uma brecha no poema para se incluir, perde o atrativo, o encanto e o mistrio. A vai um exemplo de rima visivelmente forada, na qual um dos termos rimados semelha uma moeda de circulao restrita por no se saber ao certo o seu valor de face:31 32

Apud MELLO Nbrega, opus cit., p. 435. PATATIVA DO ASSAR, Cante l que eu canto c, Ed. Vozes, Petrpolis, RJ, 2004, 14 Ed., p. 19.

Um gaivota a piar, como lgubre harfangue, L foge barra a fora, abrindo as grandes asas Que o ltimo olhar do sol mosqueia de ouro e sangue... (Pthion de Vilar)

Diga, quem souber, que diabos este (esta?) tal de lgubre harfangue... Talvez a esse tipo de rima se referisse Verlaine.Conhecendo esse risco e cobrando naturalidade, o mesmo Banville ensinava com acerto que as rimas devem parecer surpresas de se encontrarem, mas contentes do seu encontro. 33

Antnio Feliciano de Castilho, poeta portugus j citado neste trabalho, dizia: Os bons versos soltos so muito bons; os versos bem rimados so muito melhores. O poeta portugus Francisco Manuel do Nascimento, mais conhecido pelo pseudnimo de Filinto Elsio (1734/1819), livrou-se da rima com uma declarao acachapante:

Muita plebe de tmpera velha e consonanteira me desprezam e desbatizam (sic) de poeta por no verem nos meus versos a coleira de guizos da rima. Em alguns se acha ela (por meus pecados e por minha inadvertncia) mas se eles considerassem que mais fcil o enxadrez da rima que a energia do verso solto, quando se bem sustenta em suas prprias foras, no seriam ento plebe literria. 34

Voltaire, por sua vez, dizia uma verdade impossvel de ser refutada: La rime ajoute um ennui mortel aux vers medocres (A rima acrescenta um aborrecimento mortal aos versos medocres traduo livre do mestrando). Na mesma linha, Jean-Marie Guyau (1854/1888) dizia que une rime riche na jamais sauv um mauvais vers. (uma rima rica nunca salvou um mau verso - traduo livre do mestrando). O j citado Mello Nbrega (opus cit., p. 451) tambm registra seu entendimento nada favorvel aos rimadores:

Os males da rima, digam o que disserem, so constantes e efetivos. Se no chegaram a impedir fossem compostos belos versos, nunca puderam ser inteiramente evitados: o artifcio aparece sempre, tanto mais esprio quanto menos hbil...

33

Internet, colhido no endereo http://www.clubedapoesia.com.br/sonetos/sonrima.htm, s 02h05m de 31/05/2007. Apud MELLO NBREGA, opus cit., p. 450.

34

Segundo o site da Academia Brasileira de Literatura Potica, Gerhard Johan Voss (Vossius, 1577/1649), autor da obra pstuma De poematum cantu et viribus rhytmi (1673), declara que a rima j existia desde os mais antigos povos da sia, da frica e da Amrica35. Sabe-se, com segurana, que os rabes utilizam-na desde seus primeiros textos e que, nas lnguas grega e latina, base da cultura ocidental, a rima no teve espao digno de nota, a no ser na Idade Mdia, com a poesia latina tardia, quando invadiu a Europa. Em se tratando de rimas, a discordncia tem lugar assegurado. No so poucas, nem infundadas, as manifestaes que as questionam. Uns as detratam genericamente, quando queriam apenas criticar as ms rimas; outros as elogiam como se elas fossem o prprio verso. No so. Fique entendido que as opinies exaradas acima, endeusando ou satanizando as rimas, abordam-nas como um componente do poema em geral. Se servem para balizar o fazer potico, carecem de autoridade para impor que se deva ou no se deva fazer uso das rimas; mostram apenas que os dois caminhos esto disponveis aos poetas. No caso especfico soneto, essa discusso continua a ser til, sim, como campo terico e literrio, mas precisa ser relativizada. que o soneto no pode prescindir da rima: um modelo de formas fixas, e a rima um de seus componentes inarredveis. Nada obstante, poetas modernos alguns muito bons, como Drummond fazem sonetos perfeitos..., mas sem rima. Para os sonetistas, porm, essas obras so poemetos, bem prximos do soneto, mas no so sonetos.

2.2.2

Os tipos de rima

Para que possam ser bem compreendidas e praticadas, as rimas so classificadas nas seguintes categorias:

a) Classificao pelo vocabulrio: rimas aliterantes, raras, ricas e pobres. a) Aliterantes so as rimas que se caracterizam pela repetio de sons consonnticos em vrios vocbulos de um mesmo verso. Repare-se na abundncia de slabas em v nestes versos famosos:35

Internet, colhido no endereo http://www.clubedapoesia.com.br/sonetos/sonrima.htm, s 02h05m de 31/05/2007.

Vozes veladas, veludosas vozes, Volpia dos violes, vozes veladas, Vagam nos velhos vrtices velozes Dos ventos, vivas, vs, vulcanizadas. (Cruz e Sousa)

b) So chamadas raras, ou preciosas, as rimas excepcionais, encontradas entre vocbulos pouco usados ou que guardam pouca semelhana entre si, mas que se aproximam em alguma situao gramatical. Na estrofe abaixo, essa ocorrncia se faz presente entre o primeiro e o terceiro verso (fulgncia / vence-a):

Vaga em redor de ti uma fulgncia, Que tanto sombra quanto mais fulgura: O teu sorriso, que divino, vence-a, E ela, que luz de estrela, pouco dura. (Alphonsus de Guimares)

c) As rimas ricas ocorrem entre palavras de diferentes categorias gramaticais. Esta caracterstica, endeusada pelos poetas parnasianos, visa a quebrar a monotonia e a previsibilidade que empobrece a consonncia. No quarteto abaixo, note-se que, por duas vezes, encontramos rimas ricas: vida / resumida (substantivo / adjetivo) e nada / malograda (advrbio / adjetivo):

S a leve esperana, em toda a vida, Disfara a pena de viver, mais nada; Nem mais a existncia, resumida, Que uma triste esperana malograda. (Vicente de Carvalho)

(subst.) (adv.) (adj.) (adj.)

d) Rimas pobres: ocorrem entre palavras de terminaes comuns, que geram rimas banais, tais como as terminadas em ado, -o, -ar, -oso, etc., bem como entre palavras pertencentes mesma natureza gramatical. Todas as rimas abaixo esto calcadas em adjetivos:

Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes Borboletas de sol, de asas magoadas, Poisam nos meus, suaves e cansadas, Como em dois lrios roxos e dolentes... (Florbela Espanca)

(adj.) (adj.) (adj.) (adj.)

Guilherme de Almeida, com o claro intuito de demonstrar as rimas pobres, comps uns versos aos quais deu o ttulo de Cano das rimas pauprrimas:

Pobre cantiga prevista Sem ritmo novo nenhum, Sem uma rima imprevista E sem pensamento algum.

b) Classificao pela extenso: rimas consoantes, toantes, opulentas, aproximadas e perfeitas. a) Rimas consoantes: quando apresentam identidade de sons a partir da vogal tnica: melindroso ser, filha minha Se os cus me ouvissem a paterna prece, E a mim o teu sofrer passar pudesse, Gozo me fora a dor que te espezinha. (Afonso Celso)

b) Chamam-se toantes, assonantes, ou ainda semi-rimas, as rimas formadas apenas pela repetio da Volga tnica, ou mesmo da Volga tona, desconsideradas as consoantes. Nos versos que seguem, as rimas se seguram nas vogais tnicas:

mrmore que azula Um horizonte de alarme! variao de lua Na rosa sempre de carne! (Guilherme de Almeida)

c) As rimas opulentas, tambm ditas rimas com consoantes de apoio, tm por caracterstica agregar letras anteriormente ltima vogal tnica, por isso tendem monotonia. Diferem das rimas ditas idnticas por no haver coincidncia homogrfica. Goulart de Andrade e Francisca Jlia usavam-nas com freqncia. Veja-se, na estrofe abaixo, idades/ferocidadas a terra / aterra:

Desvendava-se ao cego o mistrio: as idades Sem princpio, de sol a sol, de terra a terra, A eterna combusto que maravilha e a terra, Geradora de bens e de ferocidades. (Olavo Bilac)

d) So aproximadas, ou imperfeitas, as rimas em que h pequena diferena na homofonia; como, no exemplo abaixo, dois comps / trs mais:

No devia existir mais nada entre ns dois Se tudo terminou... tudo ficou para trs... Este verso, no entanto, a minha alma comps No desejo incontido e vo de sofrer mais!... (J. G. de Arajo Jorge)

e) As rimas perfeitas caracterizam-se por terem completa a identidade dos sons, ou seja, h nelas a repetio exata de sons consonnticos a partir da ltima tnica. Conquanto alguns tericos pensem de outra forma, entendemos que no h diferena entre as rimas perfeitas e as consoantes:

Nos teus olhos existe uma tortura imensa, Uma sombra de noite entre vagos clares, Essa expresso inquieta e incerta de quem pensa E vive ante o terror das interrogaes... (J. G. de Arajo Jorge)

c) Classificao pela acentuao: rimas agudas, graves e esdrxulas. a) Agudas, ou masculinas, so as rimas que se formam com palavras oxtonas. Ocorrem com alguma freqncia, mas, em portugus, incomum um soneto composto apenas com rima aguda. Ela est presente na estrofe abaixo nos vocbulos favor e Amor.

Mas como causar pode o seu favor Nos coraes humanos amizade, Se to contrrio a si o mesmo Amor? (Cames)

b) As rimas graves, tambm chamadas femininas, ocorrem entre palavras paroxtonas. So as mais comuns na nossa lngua:

Destes penhascos fez a natureza O bero em que nasci: oh! Quem cuidara Que entre penhas to duras se criara Uma alma terna, um peito sem dureza! (Cludio Manuel da Costa)

c) Chamam-se esdrxulas, ou dialticas, as rimas construdas com palavras paroxtonas. So raras em nossa lngua e inexistem na lngua francesa (que no tem vocbulos paroxtonos). No exemplo que segue, a rima esdrxula est presente nos vocbulos espetculo - orculo:Orfeu, para conhecer teu espetculo, Em que queres, senhor, que eu me transforme, Ou me forme de novo, em que outro orculo? (Jorge de Lima)

d) Classificao pela disposio: rimas internas e externas.

a) Rimas internas: quando ocorrem dentro dos versos. No exemplo a seguir, observar a rima de boi foi / enlutam escutam.

Olhos, olhos de boi pendidos vertem Prantos por quem se foi. Ouvidos ouvem, Calam. Crepes enlutam janelas. Fundas ouas escutam seus gemidos. 36 (Jorge de Lima)

Desdobram-se em vrios subtipos. As encadeadas ocorrem entre o ltimo vocbulo de um verso e um vocbulo no interior do verso seguinte:

Salve! Bandeira do Brasil, querida! Toda tecida de esperana e luz! Plio sagrado sob o qual palpita A alma bendita do Pas da Cruz.

As internas leoninas tm como caracterstica a rima de um vocbulo interno com a terminao do mesmo verso, como nas linhas abaixo:

Era s dele o atento pensamento... Os ntimos receios, os enleios... (Amrico Fac)

Chamam-se coroadas as rimas internas que se sucedem aos pares no mesmo verso:

Donzela bela que me inspira a lira Um canto santo de fremente amor, Ao bardo o cardo da tremenda senda Estanca, arranca-lhe a terrvel dor. (Castro Alves)

As rimas internas iteradas apresentam rimas sucessivas no decorrer do verso. Veja-se, a propsito, este exemplo:A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino. (Guilherme de Almeida)

36

Apud GEIR CAMPOS, Pequeno Dicionrio de arte potica, Ed. Cultrix, 3 edio, 1978, p. 90/91.

Geir Campos (opus cit., p. 59) classifica as rimas acima como ecicas ou ecoantes. Alis, h autores com entendimentos diversos, alguns deles estabelecem outras subdivises e nomenclaturas para as rimas internas.

b) Rimas externas, tambm dita finais, acontecem no final dos versos. So as de uso mais comum:

Amar-te foi talvez meu grande engano J que exiges de mim subido preo. No me queres feliz, sendo o teu plano Punir-me pelo amor que no mereo. (Solange Rech)

Elas se subdividem em: (a) Rimas alternadas: quando ocorre no padro ABAB, ou seja, o primeiro verso rima com o terceiro e o segundo com o quadro. Tambm chamadas rimas cruzadas ou entrecruzadas, aparecem largamente nos quartetos dos sonetos, como alternativa ao modelo ABBA.

Ser a moa mais linda do povoado, Pisar, sempre contente, o mesmo trilho, Ver descer sobre o ninho aconchegado A bno do Senhor em cada filho. (Florbela Espanca)

(b) Rimas

intercaladas,

tambm

chamadas

opostas,

abraadas

ou

entrelaadas, so aquelas que obedecem ao esquema ABBA, ou seja, a primeira rima com a quarta e a segunda rima com a terceira. So as mais comuns nos quartetos dos sonetos:

A cada canto um grande conselheiro Que nos quer governar cabana e vinha. No sabem governar sua cozinha E querem governar o mundo inteiro. (Gregrio de Matos Guerra)

(c) Rimas emparelhadas, tambm chamadas paralelas ou geminadas, acontecem aos pares consecutivos de versos (note-se que, quando se repetem em mais de dois versos, so chamadas rimas seguidas). Um exemplo de rima emparelhada:

No rio caudaloso que a solido retalha, Na funda correnteza na lmpida toalha, Deslizam mansamente as graas alvejantes; Nos trmulos cips de orvalho gotejantes... (Fagundes Varela)

(d) As rimas idnticas, ou equvocas, so formadas por palavras iguais, na escrita e na pronncia (palavras homgrafas e homfonas), com o mesmo significado ou significado diferente:

O todo sem a parte no todo; A parte sem o todo no parte; Mas se a parte o faz todo, sendo parte, No se diga que parte, sendo o todo. (Gregrio de Matos Guerra)

(e) As rimas so ditas misturadas quando ocorrem no poema sem nenhuma esquematizao. Elas simplesmente fluem, deixando a quem as leia a impresso de que se trata de versos improvisados:

O bbado que caminha Que mantos arrastar? Que santo parecer? Gaspar, Melchior, Baltasar? Um miservel no , Logo se v pelo gesto, Pela estranheza do olhar, O bbado que caminha Que rei bbado ser? (Dante Milano)

(f) Finalmente, temos as rimas continuadas, ou seguidas, que Amorim de Carvalho classifica como monorrimas. Repetem-se ao longo do poema, em todos os finais de verso. Seu uso, por ser continuado e sucessivo, costuma ocasionar monotonia. Nos versos abaixo o autor conseguiu fugir desse risco:

tristeza sem fim deste dia de agosto! como um dia que nascesse se um sol-posto: Um dia j vivido, um dia j transposto H muito, muito tempo... um dia decomposto - cadver de outro dia a apodrecer exposto ao sol profanador de outro dia disposto a ser til e belo; um dia recomposto, feito do que ficou de outros dias de desgosto... (Guilherme de Almeida)

2.2.3

As rimas do soneto

O soneto italiano tem no mnimo quatro e no mximo cinco rimas. Os quartetos obedecem disposio ABBA/ABBA, que forma seguida por Petrarca e, no mais das vezes, por Cames:

Breve momento, aps comprido dia De incmodos, de penas, de cansao, Inda o corpo a sentir quebrado e lasso, Posso a ti me entregar, doce Poesia. Desta janela aberta luz tardia Do luar em cheio a clarear o espao, Vejo-te vir, ouo o teu leve passo Na transparncia azul da noite fria.

(A) (B) (B) (A) (A) (B) (B) (A)

Entre as variaes, est o modelo das rimas alternadas, ABAB/ABAB. Em Sonetos de Olinda I, Afonso Flix de Souza faz uso desse padro de rima:

Quando na praia imersa em luz termina A inquietao de mares prisioneiros, Com trs rosas nas mos subo a colina E tenho brisa e amor por companheiros. Tesouros que arranquei na terna mina Da beleza que os possa dar inteiros A quem borda um jardim que me destina E espera-me, infinita, entre coqueiros.

(A) (B) (A) (B) (A) (B) (A) (B)

Outra maneira posta em prtica fazer o primeiro quarteto no molde ABBA e o segundo em BAAB, ou tambm ABAB/BABA. Poetas h, e j no so poucos, que, imitando o formato das rimas do soneto ingls (veremos a seguir), compem o primeiro quarteto com duas rimas, dando ao segundo rimas diferentes. um hbito que vem de Baudelaire. O poeta simbolista Camilo Pessanha (1867/1926) tambm assim o faz:Esvelta, surge! Vem das uas, nua, Timonando uma concha alvinitente! Os rins flexveis e o seio fremente... Morre-me a boca por beijar a tua. Sem vil pudor! Do que h que ter vergonha? Eis-me formoso, moo e casto, forte. To branco o peito! para expor Morte... Mas que ora a infame! no se te anteponha. (A) (B) (B) (A) (C) (D) (D) (C)

Rarssimos so os casos de rimas emparelhadas na elaborao dos quartetos. Um dos poucos exemplos a apresentar A casa da Rua Ablio, de Alberto de Oliveira:

A casa que foi minha hoje casa de Deus. Traz do topo uma cruz. Ali vivi com os meus, Ali nasceu meu filho; ali, s, na orfandade Fiquei de um grande amor. s vezes a cidade Deixo e vou v-la em meio aos altos muros seus. Sai de l uma prece, elevando-se aos Cus; So as freiras rezando. Entre os ferros da grade, Espreitando o interior, ola a minha saudade. Um sussurro tambm, como esse, em sons dispersos, Ouvia no h muito a casa. Eram meus versos. De alguns talvez ainda os ecos falaro, E em seu surto, a buscar o eternamente belo, Misturados voz das monjas do Carmelo, Subiro at Deus nas asas da orao.

(A) (A) (B) (B) (A) (A) (B) (B) (C) (C) (D) (E) (E) (D)

Nos tercetos h maior liberdade de arranjo das rimas, desde que no passem de trs. Alguns dos modelos mais usados so CDC/DCD (duas rimas), ou CDE/CDE, CCD/EED (trs rimas). O primeiro considerado preferencial, no s porque foi usado pelos fundadores do soneto, mas tambm pelo nvel maior de dificuldade. Em resumo, duas ou trs rimas, podendo estas se alternar nos versos, recurso disposio do poeta para equilibrar sonoridade e contedo:Ningum sufoca a voz nos seus retiros: Da tempestade o estrondo efeito: L tem ecos a Terra, o Mar, suspiros. Mas, oh, do meu segredo alto conceito! Pois no chegam a vir boca os tiros Dos combates que vo dentro do peito. (Gregrio de Matos Guera) As pessoas pasmadas, de ignorantes, As lgrimas no rosto, a cor perdida, Cuidem que o mundo j se destruiu. gente temerosa, no te espantes, Que este dia deitou ao mundo a vida Mais desgraada que jamais se viu. (Cames) Lsbia nervosa, fascinante e doente, Cruel e demonaca serpente Das flamejantes atraes do gozo. (C) (C) (D) (C) (D) (E) (C) (D) (E) (C) (D) (C) (D) (C) (D)

Dos teus seios acdulos, amargos, Fluem capros aromas e os letargos Os pios de um luar tuberculoso... (Cruz e Souza)

(E) (E) (D)

No soneto ingls (tambm chamado Shakespeareano), temos trs quartetos, em vez de dois, e cada um deles tem rimas independentes dos demais. Essas rimas podem ser alternadas ou intercaladas, mas as primeiras so bem mais comuns. J no dstico (parelha final), os versos rimam entre si. Muitos autores no dividem as estrofes, seguem os versos como se fora um poema inteirio. Vejamos o Soneto XVII, de Shakespeare, no qual os quartetos seguem o modelo de rimas alternadas, como convencional:

Who Will believe my verse in time to come If it were filled with your most high deserts? Though yet heaven knows it is but as a tomb Which hides your life and shows not half your parts. If I could write the beauty of your eyes And in fresh numbers number all your graces, The age to come would say, This poet lies: Such heavenly touches neer touched earthly faces. So Should my papers, yellowed with their age, Be scorned like old men of less truth than tongue, And your true rights be termed a poets rage And stretched metre of na antigue song: But were some child of yours alive that time, You should live twice, in it and in my rhyme.

(A) (B) (A) (B) (C) (D) (C) (D) (E) (F) (E) (F) (G) (G)

V-se, pois, que o soneto ingls tem uma forma menos rigorosa de composio, uma vez que permite a utilizao de sete rimas, enquanto o soneto italiano limita a exigncia at a um mximo de cinco. Vrios poetas tm composto versos buscando rimas finais com tonos (Vincius, Bandeira, etc.). Nota-se um visvel prejuzo para a cadncia. Confira-se este quarteto do poeta portugus Manuel Alegre (1936):Aquela clara madrugada que Viu lgrimas correrem do teu rosto E alegre se fez triste como se Chovesse de repente em pleno agosto (tono) (tono)

2.3

A FORMA PELO METRO E PELOS TIPOS DE VERSO

Para Geir Campos, verso linha escrita, de sentido completo ou fragmentrio, que se caracteriza pela obedincia a determinados preceitos rtmicos, fnicos, ou meramente grficos, pelos quais difere das linhas da prosa.37 Douglas Tufano entende o verso como sendo frase ou segmento de frase que forma uma linha do poema e que se diferencia de uma linha de prosa por seus aspectos rtmicos e fnicos.38 Olavo Bilac e Guimares Passos tm a seguinte definio: Compreende-se por verso ou metro o ajuntamento de palavras, ou ainda s uma palavra, como pausas obrigatrias e determinado nmero de slabas, que redundam em msica.39 Do seu lado, Amorim de Carvalho diz-nos que verso a expresso rtmica da linguagem verbal.40 No caso especfico aqui tratado, pode-se dizer que, num soneto, verso cada uma das catorze linhas que formam, com nmero determinado de slabas poticas e sujeita a um ordenamento rtmico. Os versos ganham nomes, atribudos em funo do numero de slabas de que so compostos. Esta designao foi criada por Antnio Feliciano de Catilho, poeta portugus j citado neste trabalho, em seu Tratado de metrificao portuguesa, editado em 1851:

- monosslabo: verso de uma nica slaba potica; - disslabo: idem de duas slabas; - trisslabo: idem, de trs slabas; - tetrasslabo: idem, de quatro slabas; - pentasslabo: idem, de cinco slabas; - hexasslabo: idem, de seis slabas; - heptasslabo: idem, de sete slabas; - octosslabo: idem, de oito slabas; - eneasslabo: idem, de nove slabas; - decasslabo: idem, de dez slabas; - hendecasslabo: idem, de onze slabas; - dodecasslabo: versos de doze slabas poticas.

37 38 39 40

GEIR CAMPOS, Pequeno Dicionrio de Arte Potica, Ed. Cultrix, SP, 3 edio, 1978, p. 167. DOUGLAS TUFANO, Estudos de lngua e literatura, Ed. Moderna, SP, 1985, 3 edio, p. 215. OLAVO BILAC e GUIMARES PASSOS, opus cit., p. 35. AMORIM DE CARVALHO, opus cit., p. 13.

Ento, cabe a pergunta: Como contar as tais slabas poticas? Ressalvando o que est dito no Captulo IV, que so recursos disposio do poeta, a contagem de slabas do verso impe algumas normas bsicas: I No so consideradas na contagem as slabas que sobram depois da ltima tnica. Assim, no verso de Castro Alves que encerra o poema Navio Negreiro,

Colombo, fecha a porta dos teus mares

a contagem vai at ma, por ser a ltima tnica do verso, O res final esquecido. Mais um exemplo, desta feita com um verso esdrxulo de Chico Buarque:

Parou na contramo, atrapalhando o trfego

Como a ltima tnica tr, as duas slabas finais (fego) no so contadas. II Duas ou mais vogais tonas, se estiverem seqencialmente juntas, fundem-se e passam a ser contadas como uma s slaba. Suponha-se o verso

O inverno chega e chove no Nordeste.

Gramaticalmente temos treze slabas, poeticamente apenas dez. E neste verso de Guerra Junqueiro:

O co ladra faminto. E a esplndida alvorada...

Temos aqui quatro vogais sujeitas ao precesso de fuso. Contamos, no todo, dezessete slabas gramaticais, mas apenas doze slabas poticas. Acrescenta-se que alguns autores relutam em fundir quatro vogais tonas, mas bons poetas o fazem, como no passado tambm o fez Olavo Bilac, entre outros.

III Se a tnica final de uma palavra for uma vogal, no h fuso com a vogal tona que acaso venha em seguida. Exemplo:

Haver amanh um recital.

Pela regra, impossvel fundir as letras em negrito. Nada obstante, por necessidade mtrica, poetas mesmo alguns consagrados passam por cima da regra geral e foram a fuso que muitas vezes agride os ouvidos:

que do cioso engano est agravada (Cames).

Para Couto Guerreiro, A razo de se no fazer sinalefa nesse caso porque, fazendo-se, fica o Verso duro, como se v nestes dois Versos de Cames:

Mas j as proas ligeiras se inclinavam. Queimou o sagrado templo de Diana.41

IV Se a uma vogal tona seguir uma vogal tnica, juntas ou separadas, ambas se juntam numa slaba nica: Exemplo:

O rtico! Que mpar osis para os olhos.

Pela regra, faz-se a fuso nos pontos em negrito. A este processo chama-se eliso.

Os termos tcnicos que caracterizam essas fuses, bem como outros que interferem no tamanho do verso, esto desenvolvidos no Captulo IV. Conquanto no seja caracterstica exclusiva do soneto, mas componente da poesia metrificada tradicional, presume-se necessrio demonstrar, em rpidos exemplos e comentrios, a diferena da contagem de slabas pelas notaes gramaticais e poticas. Obviamente, ser abordada a regra do silabar potico, uma vez que a forma gramatical de todos conhecida, assunto curricular do nvel fundamental. Vem tona a observao de Bilac e Guimares Passos sobre o assunto:O metrificador, diferentemente, apenas conta por slabas aqueles sons que lhe forem o ouvido, assinalando a sua existncia indispensvel. Quanto aos sons vulgares, da linguagem e audio comum, estes lhe passam, completamente despercebidos, porque no formam slabas, e so como se no existissem. Para o gramtico, a palavra representa sempre o que precisamente: nada lhe importa o ouvido. O metrificador no se preocupa seno com o ouvido, e com o modo como a palavra lhe soa.42

41

Recolhido da Internet em 18/06/2007, 15h10m., no endereo

http://www.sobresites.com/poesia/forum/viewtopic.php?p=8440&sid=ddccc0de4ef3779e68179b2db15132214,42

OLAVO BILAC e GUIMARES PASSOS, opus cit., p. 36.

Analise-se pelos dois critrios o verso que segue: Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume43

Slabas gramaticais: Bai | lan | do | no | ar, | ge | mi | a | in | qui | e | to | va | ga- | lu | me

Slabas poticas: Bai | lan | do | no ar, | ge | mia in | quie | to | va | ga- | lu | me44

Outro exemplo, este traduzido por Napoleo Mendes de Almeida ilustre e renomado gramtico paulista:

, professor

Florir num descampado ou no mido recanto

Slabas gramaticais: Flo | rir | num | des | cam | pa | do | ou | no | | mi | do | re | can | to

Slabas poticas: Flo | rir | num | des | cam | pa | do ou | no | mi | do | re | can | to

No primeiro exemplo, pela contagem, gramatical, o verso de Machado tem dezessete slabas, porm s doze pela contagem potica. J no segundo verso, so quinze e doze slabas, respectivamente. No soneto tm sido usados versos de todos os tamanhos, do monosslabo ao dodecasslabo. bem verdade que no se pode esperar contedo num soneto monossilbico. O autor, ao tec-lo, est apenas fazendo um exerccio, uma brincadeira potica. Mas h tambm quem tente sonetear com versos brbaros (mais que doze slabas, fora do padro). Duas medidas so mais freqentes e universalmente utilizadas: o decasslabo, que uma das caractersticas do soneto italiano (catorze versos, distribudos em dois quartetos e dois

43

MACHADO DE ASSIS, soneto Crculo Vicioso, apud Grandes Sonetos da Nossa Lngua, org. Jos Lino Grnewald, Ed. Nova Fronteira, RJ, 1980, p. 80. NAPOLEO MENDES DE ALMEIDA, Gramtica Metdica da Lngua Portuguesa, Cap. LXVII Versificao, Ed. Saraiva, SP, 29 Ed., 1980, p. 591/592

44

tercetos, tendo cada um dez slabas poticas) e o dodecasslabo, verso de doze slabas, muito usado pelos franceses (Ronsard, Baudelaire, Mallarm, Rimbaud) e por boa parte dos parnasianos brasileiros. O dodecasslabo pode, ou no, chamar-se alexandrino, a depender da censura ao final do primeiro hemistquio, como ser ver em seguida. A estes dois tipos de verso dar-se- ateno mais especfica. Os versos curtos, de uma a quatro slabas, so versos elementares, no necessitam de acentuao interna, pois sua medida no lhes permite personalidade musical no dizer de Amorim de Carvalho (opus cit., p. 36). Para auxiliar na composio rtmica e na cadncia, os versos com cinco ou mais slabas recebem tnicas (slabas fortes) em determinadas posies preestabelecidas. o chamado icto, palavra que chegou ao portugus proveniente do latim, com o significado do compasso marcado. Sem essa marcao, o poema perde o enlevo musical, que um de seus pressupostos. Eis ume exemplo de cada um dos versos, por tamanho, e as posies de icto, a comear pelos elementares:

Monossilbico (sem icto verso elementar):

Lua morta. Rua Torta. (Cassiano Ricardo)

Disslabo (sem icto verso elementar):

Quem dera que sintas as dores de amores que louco Senti. (Casimiro de Abreu)

Trisslabo (sem icto verso elementar):

Quem ignora que algum dia a alegria vai embora?

Tetrasslabo (sem icto obrigatrio verso elementar):L, muito longe, existe um monge que faz milagre.

Pentasslabo: A partir dos versos de cinco slabas, conhecidos como redondilha menor, propese o uso de um segundo acento tnico, alm daquele ao final. H uma razo forte para ser assim: a cadncia. Mais de trs slabas tonas seguidas levam o poema a uma monotonia de cantocho; por outro lado, trs tonas seguidas de duas tnicas instabilizam o ritmo. O ideal que o acento recaia sobre a segunda slaba (A terra longnqua), mas aceita variaes, como primeira e terceira (Vejo a sombra estranha), s terceira (Oxal consiga) ou, at mesmo, s primeira (Pranto de tristeza). Esta tnica s no pode ser posicionada na quarta slaba, para evitar duas tnicas sucessivas. Hexasslabo: Os versos de seis slabas aceitam, a exemplo do pentasslabo, uma acentuao variada. O ideal que o icto recaia sobre a segunda (Paremos na fazenda). Mas podem ainda ter tnicas na segunda e quarta (Aquela me risonha), acentuao recomendada por Castilho; primeira e quarta (Gosto de gente franca) ou apenas quarta (De trabalhar, gostava). De novo, e pela mesma razo anteriormente exposta, no deve esta tnica cair sobre a quinta slaba (vspera do icto), sob pena de comprometer o ritmo. Heptasslabo: O verso de sete slabas, conhecido como redondilha maior, est entranhado na alma do povo simples desde os primrdios da nossa lngua. Ele era a base da chamada medida velha italiana e portuguesa. Usaram-no os poetas, bardos e romanceiros a ptria lusa, com grande sucesso, graas ao fato de ser um verso muita cantante. 45 Fcil de elaborar por conta de sua acentuao incerta e diversificada, a redondilha tinha e tem assimilao popular garantida, composta que de versos curtos e rimados, facilitadores de memorizao. At hoje, as trovas, ou quadras, so compostas em heptasslabos. Algumas tm livre trnsito na cultura da populao, como o caso da que segue, de autoria do Pernambuco Barreto Coutinho46, embora seja atribuda indevidamente a Adelmar Tavares, Catulo da Paixo Cearense ou mesmo ao mineiro Belmiro Braga, entre vrios outros (no diz o provrbio que filho bonito tem muitos pais?):

45 46

AMORIM DE CARVALHO, opus cit., p.34. APARCIO FERNANDES, A trova no Brasil, Ed. Artenova, 1972 ,p. 25/28

Eu vi minha me rezando Aos ps da virgem Maria Era uma santa escutando o que outra santa dizia.

Quanto ao icto, o heptasslabo pode ter slabas fortes variadas: primeira e terceira (Venta forte em Botafogo), primeira e quarta (Cu azulado e festivo), segunda e quarta (Os deuses no nos escutam), segunda e quinta (A nuvem parece azul), terceira e quinta (Vagalume enfeita a noite), s terceira (Os artistas do cinema) ou s na quarta (Nos descaminhamos da vida). Em suma, havendo uma slaba forte na terceira ou quarta, est salva a cadncia do verso. Registra-se que, em espanhol, o heptasslabo tambm chamado arte menor: A designao tem a ver com o seu tamanho reduzido (verso de curta dimenso), e no, como poderia parece, com alguma carga de menosprezo. Registra-se tambm que o soneto, quando composto em heptasslabos ou versos ainda menores, recebe o nome de sonetilho. Octasslabo: verso de toda prpria lnguida, mole, vagarosa e dolente 47, que aceita um icto a sua metde, quarta slaba (O lenhador, desfalecido), segunda e quarta (No horrendo pntano profundo), na segunda e quinta (Saudando a bandeira do reino), na quarta e sexta (De solido se faz a vida) e nas slabas pares, segunda, quarta e sexta (um bom cardume deu na costa). Eneasslabo: Os versos de nove slabas, de pouco uso atualmente, so divididos, para fins e ictos, em trs tempos iguais. Assim os acentos fortes ocorrem na terceira e sexta slabas (Inda ronca o trovo retumbante). H ainda o modelo 4-9, MS este tipo de verso foge da mtrica costumeira por criar dois versos de quatro slabas (hemistquio). Manuel Bandeira buscou essa acentuao em Desencanto:

Meu verso sangue, volpia ardente tristeza esparsa, remorso vo, di-me nas veias, amargo e quente, cai gota a gota do corao.

O poema decasslabo pode ser: herico, sfico ou provenal.47

AMORIM DE CARVALHO, opus cit., p. 33.

o verso mais sonoro verstil, sendo por isso o mais praticado no soneto, em todos os tempos e lugares. J no surgimento, o soneto italiano se caracterizava por ser decasslabo, a chamada medida nova, depois realada por grandes sonetistas, como Cames e Shakespeare. So cinco os tipos de decasslabos, no tocante a mtrica: herico, sfico, provenal, martelo agalopado e pantmetro imbico. Desses, s os dois primeiros so usados com freqncia ainda hoje, o prevenal raramente o , e os demais j foram praticamente esquecidos, principalmente porque ambos tm icto na sexta, o que caracteriza o herico. O martelo agalopado tem icto na terceira e sexta slabas (Nem o pranto dos velhos te comove), enquanto o pantmetro imbico acentua as slabas pares: segunda, quarta, sexta e oitava (Na cama fria dorme o santo monge). No decasslabo herico, a tnica recai sobre a sexta slaba. chamado assim por ser solene e marcial, sem deixar de ser sonoro. A maior parte do Hino Nacional Brasileiro (letra de Joaquim Osrio Duque Estrada) feita em decasslabos hericos:

Ouvuram do Ipiranga as margens plcidas De um povo herico o brado retumbante. E o sol da liberdade, em raios flgidos, Brilhou no cu da ptria nesse instante.

Tambm Os Lusadas (Cames), afora pouqussimos versos, foi escrito em decasslabos hericos, tipo apropriado para uma epopia. Confira-se a primeira estrofe (oitava):

As armas e os bares assinalados Que da Ocidental praia Lusitana Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda alm da Taprobana, Em perigosos e guerras esforados Mais do que prometia a fora humana, E entre gente remota edificaram Novo reino, que tanto sublimaram.

O sfico assim denominado por causa da poetisa grega Safo (625 580 a.C.), que laborou neste metro passou a ser cultivado na lngua latina por iniciativa de Horcio, e da chegou ao portugus. Tem as tnicas nas slabas quarta e oitava. timo verso para combinar com o herico, mas, nada obstante sua musicalidade, aparenta ser montono se usado como nico modelo mtrico de uma composio. O soneto Velho Tema VI, de Vicente de Carvalho, bom exemplo da mescla dos dois tipos de versos:

Eu no espero o bem que mais desejo Sou condenado, e disso convencido Vossas palavras, com que sou punido, So penas e verdades de sobejo. O que dizeis mal muito sabido, Pois nem se esconde nem procura ensejo, E anda vista naquilo que mais vejo: Em vosso altar, severo ou distrado. Tudo quanto afirmais eu mesmo alego: Ao meu amor desamparado e triste Toda esperana de alcanar-vos nego. Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste; Conto-lhe o mal que vejo, e ele, que cego, Pe-se a sonhar o bem que no existe.

(herico ou sfico) (herico) (sfico) (herico) (herico) (sfico) (herico) (herico) (herico) (sfico) (sfico) (herico ou sfico) (herico) (herico ou sfico)

Finalmente, o decasslabo provenal acentuado na quarta e stima slabas. Camilo Pessanha, poeta portugus j citado aqui, intercalou-o com outros formatos de decasslabo e logrou com isso bom efeito sonoro. o que se depreende de estrofe que segue:

Quando voltei encontrei os meu passos Ainda frescos sobre a mida areia. A fugitiva hora, reevoquei-a, - To rediviva! nos meus olhos baos...

(provenal) (herico) (herico) (sfico)

Foi usado raramente por Cames e, com muito mais freqncia, por Dante na Divina Comdia:

Per me si va nel eterno dolore (Livro I, Canto III, Verso 2) (Por mim se vai ao eterno sofrer traduo livre do mestrando)

Hendecasslabo: O verso de onze slabas j teve muitos cultores. Assim como ocorreu com o eneasslabo, seu uso hoje bem raro, pois a prtica potica migrou sua preferncia para as medidas vizinhas: o decasslabo e o dodecasslabo. Os ictos do verso recaem mais comumente sobre a segunda, quinta e oitava slabas: No entanto, a beleza salvava o lugar. Mas podem tambm localizar-se nas slabas mpares, a partir da terceira (terceira, quinta, stima e nona): Meu sincero amigo, choro a tua dor. Ou, ainda, na quinta slaba, hiptese em que o hendecasslabo ganha as caractersticas que lhe valeram a designao de arte maior: Algum vendaval destelhou o palcio.

Dodecaslabo ou alexandrino? Um pouco de histria: O alexandrino tem esse nome por um fato histrico. Alexandre de Bernay, trovador normado, concluiu umaobra em homenagem a Alexandre, o Grande, seu xar, obra esta que teria sido iniciada no sculo XII por Lambert Licors. Roman dAlexandre uma obra robusta, tem ao todo vinte mil versos de doze slabas. Assim achamos em vrios autores e assim tambm buscamos na Wikipdia, a enciclopdia eletrnica livre:48

O Le

E por falar em versos alexandrinos, utilizados por muitos sonetistas, eles remontam segundo alguns dicionrios da lngua portuguesa a uma obra francesa do sculo XII chamada Le Roman dAlexandre, e significam versos de DOZE slabas poticas. Porm, os dicionrios da lngua espanhola apesar de apontarem para a mesma origem insistem em afirmar que os versos alexandrinos so aqueles que contm CATORZE slabas gramaticais. 49

Autores h que classificam os variados tipos de versos de doze slabas como alexandrinos. Para tanto, subdividem-nos em alexandrino clssico e alexandrino romntico (Amorin de Carvalho, por exemplo). Esse trabalho, no entanto, segue o modelo tradicional. E no est sozinho ao faz-lo. Basta recuperar a observao de Machado de Assis, refutando fosses alexandrinos os versos dodecasslabos de Fagundes Varela: Desde j lhe notamos aqui os versos alexandrinos, que realmente no so alexandrinos, pois lhe falta a cesura dos hemistquios. 50 Bilac e Guimares Passos, por sua vez, assim se expressam:

Este verso (alexandrino) compe-se geralmente de dois versos de seis slabas; porm indispensvel observar que dois simples versos de seis slabas nem sempre fazem um alexandrino perfeito. Quando o primeiro verso de seis slabas termina por uma palavra grave, a outra deve comear por vogal ou consoante muda, como o h, para que haja a eliso. Esta regra essencial, para ela chamamos muito especialmente a ateno dos principiantes. Este verso alexandrino: dava-lhe a custo a sombra escassa e pequenina, est certo, porque, no ponto de juno dos dois metros reunidos, a eliso do a de sombra com o e de escassa perfeita. Mas se, em vez de palavra escassa houvesse ali a palavra fraca, - o verso assim composto dava-lhe a custo a sombra fraca e pequenina seria um alexandrino errado, ou melhor, seria um verso de doze slabas, formado de dois versos de seis slabas, mas no seria um alexandrino. 51

48 49 50

Apud JOS REBOUAS MACAMBIRA, opus cit., p. 103. Recolhido da internet, no endereo http://pt.wikipedia.org/wiki/Soneto em 11/06/2007, s 19h30m. LEDO IVO, Os navios parnasianos, recolhido da internet em 11/06/2007, s 23h05m, no endereo http://www.criticaecompanhia.com/ledo.htm OLAVO BILAC e GUIMARES PASSOS, opus cit., p. 66.

51

Da, se o verso puder ser dividido em dois hemistquios52 (duas metades = 6 slabas cada), permitindo a pausa da cesura 53, um alexandrino. Caso contrrio, em qualquer das demais variaes, cham-lo-emos dodecasslabo. Isto porque estamos tratando de formas fixas, modelos padronizados Relata Napoleo Mendes de Almeida:

Certa vez objetaram a Castilho: Se o verso alexandrino se compe de 2 versos de 6 slabas, ento no preciso fazer alexandrinos; basta compor versos de 6 slabas. Castilho respondeu: verdade, mas o alexandrino tem mais imponncia, mais brilho. Assim, quando temos muita sede, preferimos beber um s copo grande de gua a beber dois pequenos. 54

Por primeiro, cabe destrinchar o alexandrino: como ficou dito, um verso dodecasslabo (doze slabas poticas) e tem as seguintes particularidades: a) equivale a dois versos de seis slabas, recaindo o icto sobre a sexta; b) quando o primeiro hemistquio (metade) termina com vocbulo paroxtono (diz-se feminino ou grave), a palavra seguinte deve comear com vogal (ou h), para permitir a eliso (fuso de vogais); c) se a ltima palavra do primeiro hemistquio for oxtona (tambm dita aguda ou masculina), a seguinte primeira do segundo hemistquio pode iniciar indiferentemente por vogal ou consoante; d) o ltimo vocbulo do primeiro hemistquio no ser, em hiptese alguma, uma proparoxtona (datlica). Em resumo: todo alexandrino um dodecasslabo, porque tem doze slabas, mas nem todo dodecasslabo um alexandrino, porque nem sempre satisfaz s exigncias de padro. Um bom exemplo para entender essa frmula, apaentemente complicada, o soneto de Orlando Teixeira, intitulado