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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Priscila Lambach Ferreira da Costa Ser diferente: dificuldades e superação de pessoas canhotas em diferentes gerações MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO SÃO PAULO 2014

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1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Priscila Lambach Ferreira da Costa

Ser diferente: dificuldades e superação de

pessoas canhotas em diferentes gerações

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

SÃO PAULO

2014

2

Priscila Lambach Ferreira da Costa

Ser diferente: dificuldades e superação de pessoas canhotas em

diferentes gerações

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo para obtenção do

título de Mestre em Educação: Psicologia

da Educação sob a orientação da Profa

Dra Mitsuko Aparecida Makino Antunes.

São Paulo

2014

3

BANCA EXAMINADORA

____________________________

____________________________

____________________________

4

AGRADECIMENTOS

À minha querida mãe pelo constante suporte e amor em absolutamente todos

os dias.

À Mimi, querida orientadora, por acreditar nesta pesquisa desde o começo.

Aos professores Carol Kolyniak Filho e Daniela Leal, pelas ricas contribuições

e carinho com este trabalho.

A todas as minhas amigas de mestrado por tornarem essa etapa algo muito

mais divertido.

À PUC-SP por ter sido palco das minhas transformações profissionais.

À Capes, por financiar esta pesquisa.

5

Quanto a mim mesma, sempre conservei uma

aspa à esquerda e outra à direita de mim.

Clarice Lispector

6

RESUMO

Esta pesquisa teve por objetivo compreender como as pessoas vivenciam a

condição de serem canhotas, buscando identificar as características de

manifestação da lateralidade, além de compreender a relação do sujeito com

sua família, escola e trabalho frente a essa condição. Dessa forma, foi

possível localizar as dificuldades enfrentadas por esse grupo, as facilidades e

vantagens de ser canhoto, discutindo o significado dessa diferença, e os

mitos e preconceitos enfrentados ao longo de suas vidas. Foi realizado um

estudo teórico para esclarecer o conceito de lateralidade, o que leva uma

pessoa a ser canhota ou destra, o canhoto ao longo da história e concepções

sobre essa condição. Foram realizadas entrevistas não diretivas, com foco

nas histórias de vida, em busca da compreensão da constituição do sujeito,

tal como proposto por Ciampa. Foram entrevistadas cinco mulheres entre 23

e 82 anos, representantes de diferentes gerações, o que permitiu identificar

mudanças na maneira como a escola e a sociedade perceberam e agiram em

relação ao sujeito canhoto. Os dados demonstram experiências variadas,

havendo casos de repressão da lateralidade pela família e pela escola, e

outros em que não houve objeção. As dificuldades se mantiveram no aspecto

material, como o uso de tesouras e carteiras escolares, por exemplo. De

forma comum, constatamos que essa diferença que atinge um grupo

minoritário, ainda que implique algumas dificuldades, não é vivenciada

negativamente. Verificamos que o canhoto aceita e se compraz com sua

condição, sente-se pertencente a um grupo em que as pessoas se

reconhecem e se valorizam e, apesar de ao longo da história o canhotismo

ter sido considerado algo aliado ao mal e ao negativo, hoje há uma nova

postura. O canhoto gosta de ser diferente, de se destacar entre os demais.

Palavras-chave: lateralidade; canhotismo; escola e família.

7

ABSTRACT

This research aimed to understand how people experience the condition of

being left-handed, trying to identify the characteristics of manifestation of

laterality, understand the relationship of the person with his family, school and

work concerning this condition. Thus, it was possible to locate the difficulties

faced by this group, the facilities and advantages of being left-handed,

discussing the significance of this difference, and the myths and prejudices

faced throughout their lives. A theoretical study was conducted to clarify the

concept of handedness what causes a person to be left-handed or right-

handed, left-handed throughout history and conceptions about this condition.

We worked with non-directive interviews, focusing on the life stories in the

pursuit of understanding the constitution of the person, as proposed by

Ciampa. Five women between 23 and 82 years old, represented different

generations, which allowed us to identify changes in how school and society

realized and acted in relation to the left-handed. The data demonstrate varied

experiences, with cases of repression of handedness by family and school,

and others in which there was no objection. Difficulties remained in the

material aspect, such as using scissors and desks, for example. Common

form, found that this difference reaches a minority group, even if it involves

some difficulties, is not a negative experience. We found that the left-handed

accepts and is pleased with his condition, he feels that belongs to a group in

which people recognize and value, and although throughout history left-

handedness has been considered something allied to evil and negative, today

there is a new look. The left-handed like to be different, to stand out among

the rest.

Keywords: handedness, left-handedness, school and family.

8

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................... 10

INTRODUÇÃO........................................................................................ 13

CAPÍTULO 1 – BREVE HISTÓRICO DA CONDIÇÃO DE SER

CANHOTO...............................................................................................

15

Estudo da palavra CANHOTO................................................................. 15

O canhoto na história.............................................................................. 19

CAPÍTULO 2 – LATERALIDADE............................................................. 23

CAPÍTULO 3 – A PESQUISA.................................................................. 34

3.1 O problema de pesquisa................................................................... 34

3.2 Referencial teórico............................................................................. 34

3.3 Objetivos da pesquisa....................................................................... 35

3.4 Procedimentos................................................................................... 36

CAPÍTULO 4 – APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS

DADOS....................................................................................................

38

4.1 Depoimentos..................................................................................... 38

4.2 Análise e Discussão.......................................................................... 53

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 67

REFERÊNCIAS CITADAS...................................................................... 70

9

REFERÊNCIAS CONSULTADAS........................................................... 73

ANEXOS.................................................................................................. 75

Anexo 1 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE...... 75

Anexo 2 Quadro Comparativo das Categorias de Análise............... 76

Anexo 3 Depoimento Bianca............................................................ 81

Anexo 4 Depoimento Carolina......................................................... 100

Anexo 5 Depoimento Luísa.............................................................. 113

Anexo 6 Depoimento Marcela.......................................................... 118

Anexo 7 Depoimento Dulce............................................................. 125

10

APRESENTAÇÃO

Gostaria de apresentar-me brevemente, para que aspectos da minha

trajetória sejam identificados, pois serviram de mobilizadores de meu

interesse pelo canhotismo e sua influência na determinação de meu objeto de

estudo.

Tenho formação como Pedagoga e Administradora de Empresas.

Atuava em uma empresa de consultoria, quando uma colega me convidou

para ser voluntária do programa Escola da Família, do Governo do Estado de

São Paulo. Aceitei e comecei a dar aula aos sábados numa Escola Estadual

no Centro de São Paulo. A paixão pela educação tomou conta de mim. Levei

um ano para decidir cursar Pedagogia e mudar de rumo. Valeu a pena. Sou

muito feliz com a minha escolha, da qual me orgulho e não me arrependo um

só dia.

Atuo como professora e orientadora educacional de crianças, jovens e

adultos. Por tentar entender o complexo, no caso, o ser humano, vi no

programa de Psicologia da Educação uma oportunidade para começar a

compreender partes desse todo, tão desafiador.

Nesse constante acúmulo de condições, reconheço a origem e

desenvolvimento de alguns papéis; outros fazem parte de mim sem eu nem

mesmo me dar conta. Um deles é ser canhota. Proponho-me, neste estudo,

aprofundar o conhecimento sobre canhotismo e buscar compreender melhor

as vivências, positivas e negativas, da pessoa canhota. Considero esta minha

escolha quase como inevitável, pois o assunto me chamou atenção durante

toda a minha vida, e ter um espaço aberto a estudá-lo, para mim é uma forma

de realização. Digo que sou canhota desde que nasci e durante toda a minha

trajetória sou muito atenta às questões que envolvem essa condição. Reparo

nas pessoas, como elas comem, escrevem, e fico feliz quando percebo os

canhotos que estão por aí.

Ser canhota para mim é um privilégio. Não considero um problema,

nem uma limitação. O fato de ser canhoto não impede ninguém de realizar

qualquer atividade. Existem coisas que são mais difíceis de fazer, como

cortar algo com tesoura ou abrir uma lata, por exemplo, mas há no mercado

11

materiais adaptados. Além de também ser possível desenvolvermos

habilidades com a mão direita.

Posso arriscar a dizer que o canhoto vive em uma espécie de

comunidade. Nós nos identificamos uns com os outros; é como se fosse uma

“tribo” mesmo. Não é incomum estarmos passeando e alguém dizer: “Ah!

Você também é canhota?” E o que é mais comum ainda: “Nossa, não sabia

que você era canhota”. O pior é quando o espanto vem de um amigo próximo

ou familiar que nos conhece há mais de 25 anos e nunca tinha percebido.

Pensando por outro lado, se aquilo não era notado, mostra que não era

empecilho para nada. Não é mesmo?

Quando era pequena achava o máximo ser diferente dos outros por

usar a mão esquerda para realizar minhas atividades. Era como se de

alguma forma eu fosse especial. Não foram todas as professoras que

atentaram para isso, nem todos os colegas, mas era comigo, e bastava. Me

achava até “chique”, “elegante”.

Adorava, e ainda adoro, quando as pessoas vêm dizer: “Os canhotos

são mais inteligentes” ou “têm a letra mais bonita”. Como não gostar de ouvir

elogios assim?

Sou daquelas pessoas tão apaixonadas pelo canhotismo que fico

quase “caçando” os canhotos. Quando assisto a um filme, seriado, teatro,

qualquer coisa, fico buscando o canhoto. O engraçado é que muitos dos

grandes atores e atrizes e personagens marcantes estão lá, sentados na

cadeira escrevendo com a mão esquerda. Os bonitões, os maquiavélicos, os

interessantes. Podem reparar.

Mas é claro que nem tudo são flores. Não consigo cortar precisamente

qualquer pedaço de papel. Sempre deixo a linha como um grande ondulado.

Tento, faço com calma, deposito toda a minha energia, porém o resultado é

desastroso, fora dos padrões.

Sou apaixonada por brigadeiro de colher e o faço praticamente toda

semana, desde pequena. O leite condensado é um ingrediente essencial

para a receita e não tem como escapar de abrir a lata. O abridor

convencional é um terror para os canhotos, mas é o que tem em casa. De

tanto abrir lata, faço tranquilamente com a mão direita. Isso mostra que é

12

possível desenvolver os aspectos motor e cognitivo para operar do lado que

temos menos habilidade.

Não me peçam, porém, para fazer muito mais com a mão direita. A

minha mão direita é limitada a digitar, girar a chave de casa e do carro e abrir

portas e torneiras. Se segurar uma taça muito delicada, fina e leve, ou uma

xícara quente de café com ela, a mão treme e o líquido começa a vazar. É

como se não tivesse força ou destreza.

Mas não foi somente na vida pessoal que enfrentei obstáculos. Na

escola também passei por alguns desafios. Canetinhas eram terríveis. Se

escrevesse ou desenhasse com elas, era certo que partes das folhas ficariam

manchadas. Nós que usamos a mão esquerda para escrever em uma escrita

ocidental (da esquerda para a direita), acabamos encostando na tinta o

“gordinho” da mão e isso borra o registro.

Depois as coisas ficaram mais amenas, até a chegada à 6ª série. Com

o ingresso do Desenho Geométrico na grade curricular veio o uso do

compasso. Eu fazia as piores representações da sala, e foi só quando a

professora notou que eu era canhota que pôde me dar uma atenção especial

e me ajudar a fazer melhor.

Os tempos passaram e as coisas foram mudando. Quer dizer, nem

todas. Hoje em dia ser canhota não me apresenta dificuldades, pelo

contrário, me dá alegria. Continuo orgulhosa dessa condição, sou feliz com

ela. “Vesti a camisa”. E continuo gostando de ser diferente.

Considerando-se narrativas de canhotos sobre sua história de vida, o

objetivo deste trabalho será o de estudar como as pessoas de diferentes

gerações vivenciam a condição de serem canhotas, suas dificuldades e as

formas de superação.

13

INTRODUÇÃO

O termo canhoto há décadas atrás era relacionado ao sinistro, mal,

escuro e proibido. Era como se ser canhoto fosse uma desgraça, uma

catástrofe, ou até mesmo um ato criminoso. Atualmente, a sociedade

compreende a pessoa canhota como alguém que prefere ou é mais

habilidoso com o lado esquerdo do corpo, o que não necessariamente implica

uma desvantagem ou inadaptação aos mais diversos ambientes e atividades.

Há muitas discussões sobre a questão da lateralidade. São duas as

maiores vertentes que tentam explicá-la. Uma delas entende que a

lateralidade é essencialmente biológica e outra atribui esse aspecto à

interação do organismo com o ambiente. Entendemos que esses últimos

estão em constante interação e precisam ser vistos como uma totalidade.

Ao realizarmos algumas entrevistas com canhotos, pudemos perceber

que o uso do lado esquerdo tem uma determinação biológica, ou seja, há

uma tendência por esse uso, porém também existe uma influência do

ambiente. Inclusive, duas das entrevistadas sofreram intervenções

significativas, a ponto de suas tendências “biológicas” serem modificadas

pela escola e/ou pela família.

Compreendemos que tanto o espaço de socialização primária (família)

quanto secundária (escola) representam papéis importantes para a condução

do canhotismo. É função desses lugares e de seus recursos humanos

auxiliarem as crianças em seu desenvolvimento, respeitando suas

especificidades.

A criança canhota difere pouco da criança destra. O principal aspecto

que torna essa condição especial é a dificuldade de manuseio de alguns

objetos não adaptados. É preciso providenciar uma tesoura de canhoto para

os pequenos, para que eles não sofram e se esforcem em excesso para

executarem as tarefas do cotidiano escolar. Não menos importante está a

carteira escolar. Para evitar que o aluno precise se contorcer para estudar, a

carteira adequada é fundamental.

14

Mas será que é só isso que muda? Quer dizer que se compramos os

materiais está tudo tranquilo? E, afinal os canhotos não são mais

inteligentes? Mais artísticos?

Ainda são tantas as afirmações que as pessoas escutam sobre o

canhoto. Lembro-me de diversas situações em que recebi uma carga enorme

de suposições acerca dessa minha condição. Umas são positivas, como a de

ter letra bonita ou ser inteligente; outras nem tanto, de que somos todos

desajeitados e distraídos.

Ao realizarmos esse estudo, apreendemos da fala das pessoas

aspectos muito ricos sobre o que é vivenciar o canhotismo. Ao optarmos por

fazê-lo com sujeitos de diversas gerações, pudemos acompanhar os

aspectos sociais e culturais de cada época e entender a relevância do

ambiente para a formação do cidadão canhoto.

15

CAPÍTULO 1

BREVE HISTÓRICO DA CONDIÇÃO DE SER CANHOTO

1.1 Estudo da palavra CANHOTO

Sinistro, esquerdista, deixado de lado, inútil. Apenas para citar

algumas palavras que estão associadas ao ser canhoto.

Nos Estados Unidos é muito comum utilizarem-se do recurso: right

(direita) é a mão que write (escreve), pelo menos para a maioria. No Brasil

isso também ocorre. Muitos ainda identificam a mão direita dizendo que é a

mão que escreve. Ainda que sendo minoria, essas expressões mostram que

não são considerados, os canhotos, como sujeitos diferentes e que não se

encaixam na norma geral.

Apresentaremos, a seguir, o significado de canhoto e de palavras

associadas com o canhotismo em diferentes idiomas. Acreditamos que essa

é uma maneira de entrarmos em contato com o olhar que cada cultura tem

para aquele que usa o lado esquerdo na execução de suas atividades.

No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das

Ciências de Lisboa (2001) canhoto é aquele que

(...) se ajeita melhor com a mão ou o pé esquerdo do que com os

direitos = ESQUERDINO, SINISTRO ≠ DEXTRO 2. que é relativo

ao lado esquerdo 3. que denota falta de habilidade, de destreza, de

jeito = CANHESTRO, CANHO, DESAJEITADO. Benzer-se com a

mão canhota, experimentar profundo espanto

Demônio, diabo, cruzes, canhoto! Pop. Frase exclamativa usada

como esconjuro.

O Dicionário Contemporâneo da Língua Portugueza (Auletr, 1925)

também apresenta as definições no feminino. CANHOTA 1. Infrm. M. Q.

SINISTRA 2 indivíduo do sexo feminino cujos membros do lado esquerdo são

mais hábeis que os do lado direito.

Em edições brasileiras, encontramos definições que apresentam

desde a preferência lateral, até conotações pejorativas. Citaremos algumas.

16

Para Bueno (s/d):

Canhoto adj Esquerdo; que se ajeita mais com a mão esquerda que

com a direita; o talão em livro de recibos.

Houaiss, Villar e Franco (2009) trazem mais elementos:

Canhota 1. Infrm. M. Q. SINISTRA 2 indivíduo do sexo feminino cujos

membros do lado esquerdo são mais hábeis que os do lado direito

Canhotismo sinistrismo

Canhoto que usa preferencialmente a mão ou o pé esquerdo (diz-se

de pessoa); canho, canhoteiro, esquerdo, sinistro 2 m.q. CANHESTRO

(‘falto’) 3 individuo cuja mão mais hábil é a esquerda 4 infrm o diabo SIN/VAR

ver sinonímia de diabo.

Ferreira (2010) acrescenta:

Canhoto que é mais hábil com a mão esquerda do que com a direita;

esquerdo, canho, canhoteiro 2. Inábil, desajeitado, desastrado.

Para Cunha (1986):

Canhoto canho

Canho adj De origem controvertida. Acanhar vb. Impedir o

desenvolvimento de “envergonhar-se” XVI Canhestro adj feito

desajeitadamente

Fernandes (1997) traz as duas definições citadas acima:

Canhota Sin. (cogn.) Canha, sinistra. Ant, – destra, direita

Canhotismo Sin. Sinistrismo, mancinismo.

Canhoto Sin. Canhoteiro, canho, esquerdo (ant.: manidestro).

Desastrado, inábil, desajeitado, canhestro. Diabo, demônio.

Muniz e Castro (2005) apresentam um novo elemento:

Canho adj 1 canhoto, esquerdo sm 2 pop Lucro ilícito

Machado (1990) também:

17

Canhoto vj canga

Canga No Oriente <tábua de suplício>

Em outros idiomas também aparecem conotações negativas

relacionadas ao canhotismo.

No Dicionário de Sinônimos e Antônimos de Oxford (1999) Left

(esquerdo) é sinistro; comunista, liberal, marxista, progressista, radical,

revolucionário e socialista. Sinistro é escuro, inquieto, perturbador, mal,

proibido, ameaçador, maligno, ameaçador. Os motivos sinistros são maus,

corruptos, criminais, desonestos, questionáveis, suspeitos.

Left (esquerda em inglês) é também inútil. Bem diferente de right que

é o certo, o correto.

Em espanhol Canhoto é zurdo, parecido com o nosso “surdo”. Surdo

para eles é sordo; porém a pronúncia é praticamente a mesma. No

Diccionario de la lengua española da Real Academia Española (2007), zurdo

é quem tem tendência natural a usar preferentemente o lado esquerdo do

corpo. Coloquialmente é o contrário do que deveria fazer, não ser alguém.

No idioma italiano, sinistra (esquerda) é a parte correspondente à

posição do coração, comando militar ou infortúnio grave, desgraça,

catástrofe. (Devoto e Oli, 2011).

Conforme demonstrado, várias línguas têm a palavra esquerdo

associada ao negativo. Em latim, sinister, é desajeitado, fraco, desfavorável,

ameaçador, mau e assustador. Por outro lado, destro, do grego dexter,

significa hábil.

McManus (2002), ao expor a palavra em diversas línguas, apresenta

esquerdo como link no alemão moderno, o que para nós (fazendo o uso do

termo em inglês) significaria ponte, ligação, relação, elo, o que traz uma

conotação muito rica à palavra.

Ainda há, portanto, uma postura de que o esquerdo é o ruim e o direito

o bom.

Se pensarmos em nosso cotidiano, encontraremos diversas

manifestações disso. Um exemplo atual: quando fazemos algo bem,

perfeitamente? O fazemos com destreza. Destreza, que no Dicionário Online

de Português, signifca: qualidade ou característica daquele que é destro;

18

habilidade ou agilidade na utilização das mãos; comportamento ou ato que

denota delicadeza; fineza.

Quando precisamos acionar o seguro do carro, o que precisamos

fazer? Abrir um sinistro.

Se queremos entrar em algum lugar e desejar coisas boas a quem nos

recebe, entramos com o pé direito. Se estamos mal humorados, perguntam

se levantamos com o pé esquerdo. Quando alguém está falando mal de uma

pessoa, sua orelha esquerda arde.

Às vezes até parece uma briga linguística do bem (destro) versus mal

(canhoto).

No momento das traduções dos artigos para esta pesquisa, uma

dificuldade sempre aparecia. Enquanto na Língua Portuguesa possuímos as

palavras: lateralidade, destro e canhoto, no inglês esses três conceitos

podem facilmente se transformar em mais termos, como: lateralization e/ou

sidedness (lateralidade), handedness (preferência manual), righthanded

(destro) e lefthanded (canhoto). Ressaltando que footedness é traduzido para

o português em algo bem maior: “preferência de membro inferior”.

Entendemos que o que cada palavra carrega demonstra muita coisa; é

uma manifestação da cultura e da história. Pensando na língua portuguesa,

ainda é possível que se abram novos caminhos e que encontremos, aos

poucos, novas palavras que ilustrem aspectos importantes do que por

enquanto é somente uma questão de lateralidade.

19

1.2 O canhoto na história

Acreditamos, assim como Fonseca (2004), que a motricidade humana

precisa ser considerada na relação homem-mundo. As atividades são

dirigidas por motivos e fins a serem alcançados. A ação do homem no mundo

é mediada por instrumentos, objetos, signos e símbolos.

Em termos de transmissão cultural, os seres humanos

diferenciam-se substancialmente dos primatas porque não só

acumulam e conservam a tradição cultural, como a modificam

e aperfeiçoam ao longo do tempo, assegurando, assim, um

processo sócio- histórico. (Fonseca, 2004, p. 121)

Segundo McManus (2002), uma das maiores dificuldades semânticas

até os dias atuais é a diferença entre ontem, hoje e amanhã. Logo em

seguida, vem a diferença de esquerda e direita.

Outras concepções envolvendo esses conceitos ocorreram ao longo

da história. A mão direita sempre foi associada às coisas boas e a mão

esquerda ao profano, ao mal. A mão esquerda era associada à feitiçaria,

tanto que pessoas chegaram a ser queimadas por isso. Na era medieval, o

diabo era representado com a mão esquerda estendida.

Alguns afirmam que tudo isso começou com Adão e Eva. O lado direito

representando a primeira fase da criação: Adão, o homem, consciente, ativo.

O lado esquerdo, a segunda fase: Eva, meramente a mulher, aquela que não

resiste a tentação do mal. No Alcorão e na Bíblia, os favoritos de Deus

sentavam-se à sua direita e os malditos à esquerda. A Igreja Católica

sustentou por mais de mil anos que os canhotos eram obras do diabo; pode-

se destacar, por exemplo, que Jesus Cristo “ressuscitou dos mortos, subiu

aos céus e está sentado à mão direita de Deus”, no “Credo”.

De acordo com McManus (2002), Ehud, personagem bíblico, filho de

Gera, o Benjamim, pode ser sido o primeiro canhoto a se ter conhecimento.

Em 1.200 d.C, Ehud foi enviado por israelitas para pagar um tributo a Eglon,

Rei de Moabe. Ehud fabricou sua própria espada, guardou-a do seu lado

20

direito, por debaixo de suas roupas. Logo após realizar o pagamento, Ehud

perguntou a Eglon se poderiam conversar em particular. Ao se aproximar,

Ehud tirou a espada de seu lado direito, utilizando-se do braço esquerdo, e

fincou-a no abdômen de Eglon.

A Igreja Católica é sem dúvida repleta de simbolismos. Até mesmo em

sua arquitetura e ocupação do espaço. Em algumas, os homens ainda se

sentam à direita e as mulheres à esquerda. O budismo também apresenta

sua particularidade quanto aos lados: o esquerdo é o que precisa ser evitado,

enquanto o direito é para ser seguido.

Hertz (apud McManus, 2002) se preocupa com o simbolismo por trás

do canhotismo. Para o destro, vai a honra de grandes designações, o fazer,

ordenar e realizar. Para o canhoto, o contrário. É apenas um auxiliar. Ao

canhoto cabe ajudar, dar suporte. Preocupa, também, com o fato de que a

condição da lateralidade seja reduzida a fatores biológicos. Ressalta a

relevância de complexos fenômenos sociais, dando lugar aos conceitos de

sagrado e profano.

Ainda muito presente nos dias atuais, gostamos de entrar em um novo

lugar com o pé direito, representando a sorte. E quando estamos num mau

dia, frequentemente alguém pergunta se acordamos com o pé esquerdo.

A interação social é fundamental para o desenvolvimento de

formas de motricidade que acabaram produzindo o fenômeno

civilizacional. Ao internalizar a sua cultura, (...) o indivíduo

constrói e co-constrói seu universo (...) a partir das interações

mediatizadas e humanizadas que estabelece com seu

mundo. (Fonseca, 2004, p. 129)

A mais conhecida manifestação de que o canhotismo não era bem

visto, era a de que muitas mães amarravam as mãos de seus filhos para que

não fossem canhotos e a mesma restrição se repetia na escola. Quase todos

nós conhecemos alguém que passou por isso, ou pelo menos escutamos

algum relato.

McManus (2002) alerta para a associação do direito e do esquerdo

quanto ao comportamento de diferentes culturas. A mão esquerda era tão

21

desvalorizada que era a usada para a higiene depois da defecação e a mão

direita para levar comida à boca. No simbolismo de algumas culturas, como a

Purum1, por exemplo, direito é vida, Deus é o que está acima; esquerdo é

morte, profano e o que está abaixo. Os Gogo people of Tanzania2 seguem

uma linha semelhante; o direito representa o gênio, superior e saudável, e o

esquerdo o estúpido, inferior e enfermo.

Vale salientar que Watson (apud McManus, 2002) comenta que a

preferência pela mão direita em detrimento da esquerda é universal. Enfatiza

que não há conhecimento de nenhuma tribo formada de canhotos.

Não há uma tribo no sentido de povo. Porém, quando pensamos no

aspecto de comunidade, de pessoas que se identificam em algum aspecto,

podemos arriscar dizer que os canhotos representam uma “tribo”. Nós

canhotos focamos nossa atenção nos canhotos que cruzam nossos

caminhos, seja na vida real ou até mesmo em filmes e na televisão.

Constatamos isso, inclusive, em nossas entrevistas. Atitude que talvez o

destro não tenha.

Embora haja o estigma do esquerdo, existe uma questão histórica e

cultural acerca do assunto; há mudanças de valores ao longo do tempo. O

canhotismo foi considerado algo ruim e alguns ainda permanecem com essa

concepção, porém hoje raramente se proíbe uma criança de ser canhota e

tampouco a sociedade a exclui. Muitas vezes, essa diferença sequer é

notada.

Entendemos que as pessoas carregam marcas de um histórico como

esse, porém não são afetadas negativamente por pertencer a esse grupo de

pessoas, e de certa forma até se orgulham dessa diferença, que não

apresenta necessariamente um problema. Tínhamos, portanto, a hipótese de

que não encontraríamos apenas um muro de lamentações acerca do lado

pejorativo do conceito, da proibição e das dificuldades acerca do ser canhoto.

E isso se confirmou claramente após a realização das entrevistas.

Nas entrevistas percebemos que a visão que se tem do canhoto é

histórica, muda ao longo do tempo e tem significativas implicações sobre a

1 Nome transcrito tal como grafado no artigo original em inglês 2 Nome transcrito tal como grafado no artigo original em inglês

22

constituição e vida do sujeito. Fazer parte de um tempo e de um espaço

influencia em como a pessoa se coloca e vivencia o mundo.

23

CAPÍTULO 2

LATERALIDADE

A lateralidade humana é uma questão complexa.

O termo existe para identificar que os hemisférios cerebrais possuem

suas particularidades e englobam funções específicas (Coto, 2012).

O cérebro humano possui 100 bilhões de neurônios, cada um com

potencial para fazer em torno de 60 mil conexões, também conhecidas como

sinapses (Rotta, Ohlweiler e Riesgo, 2006). O cérebro é constituído de duas

metades chamadas hemisférios, que estão unidos por fibras nervosas que

servem como uma ponte para transmitir a informação de um lado a outro

(Coto, 2012). O início do desenvolvimento da lateralização dos hemisférios

cerebrais se dá principalmente aos dois anos de idade, podendo estender-se

até os 5 anos (Rotta, Ohlweiler e Riesgo, 2006).

Pode-se compreender que os hemisférios atuam de forma conjunta.

Ao exercer suas inúmeras funções, um lado atua como ator principal e o

outro como coadjuvante. Apesar de sempre atuarem em conjunto, cada um

deles tem funções primordiais. São elas:

HEMISFÉRIO ESQUERDO

Funções Específicas

HEMISFÉRIO DIREITO

Funções Globais

Cálculos matemáticos Prosódia

Fala Reconhecimento de categorias de

pessoas

Escrita Reconhecimento de categorias de

objetos

Leitura Compreensão musical

Preferências motoras lateralizadas Compreensão prosódica

Identificação de pessoas Relações espaciais quantitativas

Identificação de objetos e animais -

Compreensão linguística -

Relações especiais qualitativas -

Fonte: Rotta, Ohlweiler e Riesgo, 2006, p. 37

24

De acordo com Souza e Teixeira (2009), existem dois pontos de vista

distintos que têm sido discutidos sobre a origem e o desenvolvimento da

lateralidade humana. Há uma vertente que defende que a lateralidade é

essencialmente determinada por fatores biológicos; outra acredita que ela

pode ser atribuída à interação organismo-ambiente.

Analisando a lateralidade como biológica, compreende-se que os

genes trazem em seu código especificações sobre o desenvolvimento

diferenciado de uma parte do cérebro em detrimento da outra.

Provins (apud Souza e Teixiera, 2009) defende a influência do

ambiente. Enfatiza que é o componente ontogenético dado pelas

experiências lateralizadas do indivíduo que constitui o fator principal na

determinação de sua lateralidade.

Concordamos com Fonseca (2004), que afirma:

(...) a evolução da espécie e da criança, isto é, seus

desenvolvimentos psicomotores intrínsecos realizam-se entre

dois fatores dialeticamente dependentes: o biológico e o

social, ou, por analogia, o corporal e o cultural. Ambos

ilustram uma unidade biossocial, que é uma histogênese em

contínua metamorfose com o envolvimento social. (p. 121)

Compartilhamos da postura de Coto (2012) que aponta que a

lateralidade tem um componente genético, parte do nosso equipamento

neurofisiológico básico, e um componente adaptativo que se dá pela

assimilação de estímulos físicos e socioculturais. A autora aponta, ainda,

alguns tipos de lateralidade:

- Lateralidade contrariada: quando há uma interferência na tendência

“natural”. Exemplo: a pessoa tem tendência a ser canhota, porém a escola a

obriga a realizar atividades com a mão direita

- Lateralidade Integral ou Homogênea: quando o lado direito do

cérebro domina totalmente o lado esquerdo do corpo, e vice- versa. Como se

uma pessoa fosse totalmente destra ou totalmente canhota

- Lateralidade não integral: quando o mesmo indivíduo apresenta

tanto tendências destras como canhotas. Exemplos:

25

Lateralidade cruzada: ocorre quando não há uniformidade

da manifestação da lateralidade em diferentes partes do corpo, como quem é

destro para escrever e canhoto para chutar. Ou seja, envolve os membros

superiores e inferiores.

Lateralidade mista: quando se utiliza mãos diferentes para

atividades diferentes. Uma ilustração seria de pessoas que comem com a

mão esquerda e escrevem com a direita.

Coste (1992, apud Lucena, 2010) divide a lateralidade em quatro tipos:

1) destralidade verdadeira (integralmente destro); 2) sinistralidade verdadeira

(integralmente canhoto); 3) falsa sinistralidade (executa algumas ações com

um membro esquerdo, pois perdeu a mobilidade direita) e 4) falsa

destralidade (executa algumas ações com um membro direito, pois perdeu a

mobilidade esquerda).

Sainburg (2005) é mais conciso em sua definição. Para ele, a

lateralidade é a tendência de preferir um lado específico na realização de

determinadas atividades, como por exemplo, escrever e jogar bola.

Especifica que ter a preferência definida é de grande vantagem para o

indivíduo na organização e controle de seus movimentos.

Certamente, quando temos a lateralidade bem definida e logramos

uma consciência corporal, podemos exercitar e aprimorar esse aspecto.

Justamente por isso, acabamos nos tornando mais habilidosos. É a prática e

o uso que nos leva à uma boa execução de movimentos.

Serrien, Ivry e Swinnen (2006) defendem uma mudança de paradigma.

Alertam para a necessidade de se discutir os hemisférios e suas funções de

forma integradora, e não especializada; entender a lateralidade como uma

definição de um lado em detrimento do outro, considerando dois aspectos

complementares: a preferência e a performance. A preferência seria o lado

escolhido para desempenhar uma função ou uma atividade; já a performance

é definida pela qualidade desse movimento, isto é, qual lado o realiza melhor.

Compartilhamos dessa visão de lateralidade como um processo dinâmico,

relativo e passível de transformações. É na interação com o ambiente, com a

cultura em que se vive que é possível superar esse determinismo e encontrar

diferentes possibilidades de ser.

26

Em resumo, concordamos com a postura de Souza e Teixeira (2009),

ao afirmarem que:

(...) a lateralidade é entendida como um elemento dinâmico

da motricidade humana, em que predisposições inatas são

reforçadas ou modificadas pela contínua interação com o

ambiente durante o ciclo de vida de um indivíduo. (Souza e

Teixeira, 2009, p. 68)

Segundo Coto (2012), há uma evolução da lateralidade. Até os 3

meses não existe preferência. Dos 4 aos 6 meses há um aumento na

frequência de um uso sobre outro. Dos 6 meses aos 3 anos desenvolve-se

um predomínio. Dos 3 até os 8 anos, o predomínio se estabelece de forma

qualitativa, ou seja, há uma determinação de qualidade naquele movimento.

Dos 8 aos 12 anos, é quando se instaura um predomínio qualitativo e

quantitativo (no sentido de repetição, continuidade de ocorrências) de um

lado sobre o outro.

De acordo com Rotta, Ohlweiler e Riesgo (2006), aos seis anos a

criança já é capaz de reconhecer direita e esquerda em si mesma. Aos sete

anos consegue mostrar essa diferença em si mesma, além de responder

sobre a posição de um objeto. Aos oitos já consegue diferenciar esquerda e

direita no examinador, e com nova anos já imita movimentos do observador.

Lucena (2010) estuda a relação entre lateralidade manual, ocular e de

membros inferiores e categoriza as variações de lateralidade na população

infantil brasileira com o objetivo de verificar se há um déficit de organização

espacial. Verificou que 48,75% da amostra apresenta um resultado DDD (ou

seja, tem predomínio do lado direito nos três aspectos: manual, ocular e nos

membros inferiores), e somente 2,50 % são EEE (ou seja, esquerda nos três

aspectos). Os demais (46,25%) estão distribuídos nas mais diversas

combinações possíveis, como destro manual e ocular, porém canhoto nos

membros inferiores, ou destro manual e nos membros inferiores, porém

canhoto ocular e assim sucessivamente. O estudo comprova uma maioria de

sujeitos destros.

27

McManus (2002) amplia as possibilidades de observação da

lateralidade que vão além de chutar uma bola, escrever e olhar num

caleidoscópio, exercícios clássicos para a avaliação de um destro ou

canhoto. Há quem observe o momento das palmas, cruzar os braços, tocar

instrumentos musicais, realizar diferentes esportes, até mesmo falar ao

telefone (aspecto auditivo).

Ou seja, a lateralidade vai além da preferência pelo uso de uma mão.

Também existem outros fatores que precisam ser considerados (Teixeira e

Gasparetto, apud Lucena, 2010). Quanto mais consistente e homogênea a

lateralidade, as habilidades serão desenvolvidas com mais precisão.

Corballis, Hattie e Fletcher (apud Lucena, 2010) comprovaram, em um estudo

realizado com crianças em idade escolar, que as que possuem preferência

manual inconsistente apresentam desempenho menos satisfatório em testes

de leitura e matemática. É como se os que estão indefinidos,

independentemente das razões, fossem prejudicados em suas ações.

Segundo McManus (2002) temos um gene dominante D (destro) e um

recessivo C (canhoto). Podemos apresentar combinações como DD, DC, ou

CC em nosso material genético.

Segundo Cioni e Pellegrinetti (apud Souza e Teixeira, 2009), a maioria

dos indivíduos da espécie humana tem preferência manual direita, o que é

manifestado desde os primeiros dias de vida. Isso pode ser observado em

várias culturas e comunidades. Ou seja, para eles, a maioria dos humanos

está praticamente programada geneticamente a ser destro.

Serrien, Ivry e Swinnen (2006) defendem que em curto prazo a

lateralidade é afetada por fatores ambientais, como atenção e contexto. O

aperfeiçoamento de um lado ou de outro ocorreria em função da prática

específica de um dado segmento corporal.

A partir desse ponto de vista, considerando que há uma

pressão social considerável a favor do uso da mão direita, o

ambiente poderia desempenhar o papel primário para o

estabelecimento da preferência lateral e assimetrias

interlaterais de desempenho. (Zverev, apud Souza e Teixeira,

2009, p. 65)

28

McManus (2002) enfatiza que até o momento em que sua obra foi

escrita, e podemos dizer que ainda não encontramos evidências que provem

o contrário, pesquisadores ainda discutem se a preferência por um lado do

corpo é ou não hereditária. O autor relata que Philip Bryden realizou uma

pesquisa com 70.000 crianças e constatou que a chance de ser canhoto é de

9,5% quando ambos os pais são destros; 19,5% quando um dos pais é

destro e o outro canhoto; e 26,1% quando ambos os pais são canhotos.

Quanto aos gêmeos, um a cada cinco pares de gêmeos idênticos tem

preferência manual discordante.

Condiseramos que não haja uma determinação genética absoluta, pois

a herança trazida pelos genes (genótipo) entra em interação com o meio

ambiente, produzindo as características específicas do indivíduo (fenótipo),

que podem ser modificadas ao longo do tempo.

Strogonova, Pushina, Orekhova, Posikera e Tsetlin (apud Souza e

Teixeira, 2009) realizaram uma investigação com bebês de 10-11 meses de

idade que foram avaliados por meio de eletroencefalografia durante a ação

de alcançar um objeto. Os resultados revelaram uma ativação mais

acentuada do hemisfério cerebral esquerdo naqueles que apresentaram

preferência manual direita durante a ação. Como o estudo foi realizado com

bebês, supuseram que as relações funcionais entre os hemisférios cerebrais

sejam definidas precocemente.

Além desses estudos, Souza e Teixeira (2009) apresentam outras

pesquisas que enfatizam a contribuição social para a preferência entre

esquerdo ou direito. Singh (apud Souza e Teixeira, 2009) realizou uma

pesquisa com crianças de 4 e 6 anos de idade; encontraram a preferência

manual esquerda em 3,2% das crianças indianas e em 9,6% das crianças

francesas pesquisadas. A principal razão encontrada é de que os fatores

culturais contribuem para a escolha do uso de uma mão em detrimento da

outra. Em determinadas sociedades ainda há uma pressão contra o “ser

canhoto”. Meng (apud Souza e Teixeira, 2009) realizou um estudo em

escolas coreanas e constatou que 61% das crianças canhotas trocaram sua

preferência manual para a direita. Isso ocorreu com crianças maiores, que

acabam realizando a mudança, pois ser destro, para eles, é mais desejável.

29

No mesmo artigo, Souza e Teixeira (2009) relatam o estudo de Nagy

et al., que observaram movimentos imitativos de bebês. Os pesquisadores

constataram que há aprendizagem por imitação. Fagard e Lemoine (apud

Souza e Teixeira, 2009) vão por um caminho parecido, relatando que no

início os sujeitos, no caso crianças de 12 a 15 meses de idade,

apresentavam preferência manual direita, porém quando o objeto era

apresentado com a mão esquerda, eles o manipularam como canhotos.

Refletindo ainda mais sobre a preferência manual do bebê, alguns autores

defendem que a preferência da mãe será mais influente nesse processo.

Uma das razões apontadas por Harkins e Uzgiris (apud Souza e Teixeira,

2009) seria que há maior interação social entre mãe e bebê; portanto, é ela

quem ele imita mais e por mais tempo.

Wallon (1998) relata que imitar é um começo importante para a

realização de atividades. Imitar é induzir um ato por meio de um modelo

exterior, modelando um movimento.

Essas pesquisas demonstram que a imitação contribui nas escolhas

pelo uso de uma mão ou da outra nos primeiros meses de vida. Entendemos

que ela pode influenciar quando a criança começa interagir com o objeto,

pois muitos pais e cuidadores aprensentam-no diretamente em uma mão e

servem de modelo para que a criança os imite em atividade. Acreditamos que

essa influência não se sustenta ao longo do tempo, quando a criança de fato

começa a mostrar uma preferência mais consistente, e usar o objeto com a

mão que lhe é mais conveniente.

McManus (2002) frisa a relevância das imagens espelhadas para o

desenvolvimento das habilidades humanas. Uma vez que estou de frente à

criança e lhe apresento um objeto, se o entrego com a mão esquerda, ela o

recebe de seu lado direito e vice-versa. O autor coloca um exemplo simples:

se uma pessoa escreve na areia a letra “d” o que está em frente pode fazer a

leitura do “p”. Ele nos alerta para essas orientações, observando em que

lugar estamos, para evitar desentendimentos e confusões.

Além da questão da predominância lateral, alguns estudos se

empenham em aprofundar questões mais específicas do funcionamento

cerebral. Muito deles intensificam suas pesquisas na compreensão da

30

responsabilidade que cada parte do cérebro tem no funcionamento do nosso

organismo.

Um dos pioneiros, citados por McManus (2002), foi o cirurgião Paul

Broca, que em 1861 analisou dois pacientes com problemas de linguagem. O

primeiro deles foi nomeado de Leborge, apelidado de Tan, pois era a única

palavra que conseguia pronunciar. Este possuía uma grande área

comprometida no lóbulo frontal esquerdo. O segundo paciente, Lélong, teve

um colapso devido a um infarto e deixou de falar. Alguns meses depois,

sofreu uma fratura de fêmur que o levou à morte. No exame post-mortem

constatou-se que seu dano cerebral havia sido na mesma área que o

primeiro paciente. Broca acabou revolucionando a ciência, concluindo que o

lado esquerdo do cérebro era responsável pela linguagem.

Souza e Teixeira (2009) ampliam essa explicação apontando que para

pessoas destras o hemisfério cerebral direito seria o principal responsável por

questões espaciais do ambiente e pelo processamento paralelo, enquanto o

esquerdo teria o papel principal. Com o canhoto ocorreria o inverso.

Segundo Rotta, Ohlweiler e Riesgo (2006), atualmente entende-se que

existe uma lateralização bem definida para alguns aspectos como a

motricidade, por exemplo, porém para funções mais complexas como a

linguagem, não há uma simples lateralização. Os hemisférios atuam juntos,

porém com dominância. Ou seja, um trabalha melhor em um aspecto da

função, enquanto o outro trabalha melhor em outros aspectos da mesma

função.

De forma geral, algumas características próprias de cada hemisfério

foram sintetizadas. São elas:

Hemisfério Esquerdo Hemisfério Direito

Verbal Não verbal

Analítico Sintético

Sequencial Global, holístico

Lógico Criativo e intuitivo

Consciente do tempo Aqui e agora

Gostam de rotinas e hábitos (utiliza

modelos mentais)

Prefere as novidades e mudanças (cria

modelos mentais)

Fonte: Coto, 2012, p. 23

31

É interessante o comentário que McManus (2002) faz sobre uma

tabela semelhante em seu livro. Diz que o cérebro humano por ser

assimétrico, dividido em duas partes (hemisférios), conectados pelo corpo

caloso, pode ser analisado didaticamente como se fossem dois

computadores. Eles foram feitos para trabalharem juntos; caso contrário um

deles sofreria muito para trabalhar sozinho. Portanto, a melhor maneira de

deixá-los bem e em bom funcionamento, é que cada um seja especializado

em diferentes áreas. Em qualquer atividade, um está trabalhando mais como

o chefe, e o outro como o subordinado, um ajudando o outro, prevenindo

qualquer aspecto que possa prejudicar a execução da tarefa.

Observando as características da tabela, poder-se-ia supor que os

canhotos são mais criativos e sintéticos e os destros mais lógicos e

analíticos. Mas será que essas regras são mecânicas e se aplicam para

todos? Defendemos que não. Acreditamos que colocar os indivíduos nessas

formas teóricas é, na maioria das vezes, inadequado. A individualidade e a

particularidade de cada pessoa, podendo, de acordo com as interações que

estabelece, as atividades que realiza, a cultura que vive, dentre outros

múltiplos aspectos, ter desenvolvido certas habilidades em detrimento de

outras, o que não se deve ao fato de ser canhoto ou destro.

McManus (2002) apresenta alguns dados que apontam para esse

caminho. É evidente que a preferência por um dos lados e a dominância da

linguagem estão associadas. Destros têm maior probabilidade de possuir a

linguagem no hemisfério cerebral esquerdo do que os canhotos. Porém, os

canhotos não são o espelho dos destros. Enquanto 95% dos destros

possuem essa característica, 70% dos canhotos também a tem.

Numa direção complementar, Bell (2005, apud Lucena, 2010) alerta

que a incidência de tantos destros pode estar determinada por fatores sociais

ainda muito presentes na sociedade. Não é raro crianças serem forçadas a

usar a mão direita em detrimento da esquerda, ou pessoas adultas canhotas

que adquiriram lateralidade cruzada por pressões da vida cotidiana. Meng

(2007, apud Lucena, 2010) demonstrou que 59,3% das crianças canhotas

natas, em outras palavras, aquelas que possuem todas as características e

habilidades de um canhoto, foram pressionadas a se converter em destras.

32

Luria (apud McManus, 2002) arriscou-se a dizer que os canhotos são

mais intensos em sua preferência que os destros, que apresentam

irregularidades na dominância pela mão direita.

Carey (2001) aponta que essas contínuas experiências de converter

um canhoto em destro podem modificar conexões cerebrais, estabelecendo

um novo predomínio de um dos lados na execução de tarefas. O corpo

consegue se adaptar à sua realidade. Ser canhoto, assim como destro, é

descobrir e exercer uma função (Wallon, 1998).

Ser canhoto significa exercer ações e possuir habilidades em que o

lado esquerdo esteja em destaque. É preciso que ao menos duas das três

possibilidades de manifestação da lateralidade (manual, ocular e de membros

inferiores) sejam predominantemente esquerdas. Ou seja, escrever (manual)

e chutar (membro inferior) com a esquerda, mesmo que, quanto à visão

(ocular), o lado direito seja o dominante.

McManus (2002) relata o estudo que Darwin fez com seu filho sobre a

preferência manual. Quando William tinha somente 11 meses, o pai já o

estava analisando. O histórico da família era primordialmente de canhotos: a

esposa de Darwin, mãe do garoto, Emma, seus avós, mãe e irmão. Sua

motivação foi verificar como o menino se comportaria diante de uma carga

genética tão repleta de canhotos. Infelizmente não encontramos relatos de

que o estudo tenha seguido adiante. Esse dilema serve apenas de introdução

para McManus (2002) referir-se à incidência de canhotos, destros e

ambidestros no mundo. Ele diz que a maioria das pessoas tem uma

predominância, mesmo que em 10 atividades realize 5 com uma mão e 5

com outra; e que muito dificilmente, a não ser que tenha praticado muito,

alguém consegue escrever tão bem com ambas as mãos.

McManus (2002) aponta que o canhotismo é mais comum em homens

(11,6%) do que em mulheres (8,6%). A família de Darwin apresentava

resultados bem diferentes da média da população mundial, pois 38% dos

homens e 17% das mulheres eram canhotos. Esse dado ilustra que nem

sempre as pessoas se enquadram nas estatísticas, apesar de alguns

gostarem de descrevê-las numericamente. Dentre as pesquisas que fizemos,

buscando fundamentação teórica, foi difícil encontrar algo que se referisse

diretamente ao nosso problema de pesquisa.

33

Encontramos diversos estudos estadunidenses sobre a lateralidade do

ponto de vista médico, bastante técnico e estatístico, com temáticas como:

lateralidade da linguagem no canhoto, hemisfério dominante em humanos

saudáveis, lateralidade e tempo de gravidez, nível de lateralidade e

dominância cerebral. Outros, mais atentos à questão da performance, como:

controle de trajetória e posição de acordo com a preferência manual,

maturidade para exercer as tarefas, quem exerce melhor as atividades:

destros ou canhotos? Encontramos algumas pesquisas no Development

Neurophychology, algumas com as seguintes temáticas: preferência manual,

padrões de dominância manual e de membros inferiores, habilidades

canhotos x destros e canhotos “forçados”. Já o Perceptual and Motor Skills

trata mais de processamento da lateralidade no aspecto cerebral,

características de personalidade de destros e canhotos. Alguns outros, como

o Child Development, enfatizam o estudo de lateralidade em animais, como

macacos, por exemplo.

De fato, as plataformas estrangeiras foram aquelas em que

encontramos o maior número de artigos. Pesquisas em português com

informações relativas à temática e que pudessem contribuir para nosso

estudo foram escassas. No Portal da CAPES, a única, porém grande

contribuição para nosso trabalho, foi o artigo de Lucena. Os demais artigos

da plataforma, pesquisados até o momento, estudam a lateralidade de forma

segmentada por faixa etária, e a incidência de destros e canhotos em

pessoas que apresentam algum transtorno de conduta, ou deficiência

intelectual; os temas não fazem parte dos objetivos desta pesquisa. No Portal

BvsPsi, encontramos outra pesquisa, que foi bastante relevante, de Souza e

Teixeira, porém as demais encontradas abordavam aspectos psíquicos e

neurológicos que não cabiam neste trabalho.

34

CAPÍTULO 3

A PESQUISA

3.1 – O problema de pesquisa

Como é vivenciada a condição de serem canhotas por pessoas de

diferentes gerações?

3.2 – Referencial teórico

Adotamos como referencial teórico da Teoria da Identidade de Ciampa

(2005) elementos que contribuem para compreender o processo de vivência

da condição de ser canhoto. No entanto, não se trata de um estudo

específico sobre identidade, ainda que elementos identitários possam ser

observados. Trata-se de um estudo biográfico, analisando depoimentos de

pessoas canhotas.

Ciampa (2005) estuda as múltiplas determinações na constituição do

sujeito. Para ele, a identidade transcende a individualidade do sujeito, é a

história personificada, a possibilidade de identificar-se como humano,

pertencente a grupos.

Quando nascemos, a nossa família nos atribui um nome, e com ele

uma personagem. Essa personagem começa a socializar-se dentro dessa

família, considerado nosso primeiro grupo social. Nesse espaço, recebe uma

herança histórica que caminhará junto com a própria história desse novo

indivíduo.

Essa mistura de passado, presente e futuro dá concretude à

identidade. O tempo todo essa temporalidade se mistura. É esse movimento

que define o homem como um ser temporal e um ser-no-mundo.

Ao considerarmos a pessoa como histórica e social, abrimos a ela um

mundo de possibilidades. A identidade é isso; é metamorfose, está em

35

constante transformação. Segundo o autor, esse processo identitário vai do

nascimento à morte.

A personagem que cada um constitui desempenha diferentes papéis

ao longo de seu desenvolvimento. Nesse processo vai se formando a

identidade pessoal, a história de vida própria de cada indivíduo. O coletivo de

indivíduos forma o conjunto das identidades que acabam então por constituir

a sociedade.

Essas questões contribuem para o estudo sobre algumas mulheres

canhotas, buscando compreender como as relações sociais (sobretudo na

família, na escola e no trabalho) em relação a essa condição marcam as

vivências dessas pessoas.

3.3 – Objetivos da pesquisa

Objetivo geral

Identificar as vivências na família, escola e trabalho das pessoas

canhotas

Objetivos específicos

- identificar as características de manifestação da lateralidade em

sujeitos canhotos

- compreender a relação do sujeito com sua família no que diz respeito

ao canhotismo

- verificar a reação da escola e do trabalho do sujeito frente ao ser

canhoto

- identificar as dificuldades enfrentadas pelos canhotos

- entender quais são as facilidades e vantagens de ser canhoto

- reconhecer mitos e preconceitos vivenciados pelas pessoas canhotas

- estudar o que significa essa diferença para os canhotos

36

3.4 – Procedimentos

Esta pesquisa constitui-se num estudo bibliográfico sobre conceitos a

respeito da lateralidade e do ser canhoto na história e de um estudo empírico,

realizado com 5 (cinco) sujeitos. O critério principal é que esses se

considerassem pessoas canhotas e que fossem representantes de diferentes

gerações. Coincidentemente entrevistamos apenas mulheres.

Realizou-se primeiramente uma análise de cada caso em particular.

Os sujeitos participantes foram os seguintes:

Bianca3, 23 anos, pedagoga. Representante da faixa etária de

20 a 30 anos

Carolina, 34 anos, médica. Representante da faixa etária de 30

a 40 anos

Luísa, 49 anos, dona de casa. Representante da faixa etária de

40 a 50 anos

Marcela, 56 anos, advogada. Representante da faixa etária de

50 a 60 anos

Dulce, 82 anos, dona de casa. Um caso especial que, embora

não seja incluído entre os demais sujeitos como representante

de faixas etárias específicas, porque não se considera canhota,

será utilizado como complementar e ilustrativo.

Posteriormente procuramos estabelecer um diálogo dos depoimentos,

respeitando os seguintes temas, todos relacionados ao canhotismo:

Características e manifestação da lateralidade

Interação com a família e reação do sujeito

Escola e trabalho

Dificuldades e superação

Facilidades e vantagens

Mitos e preconceitos

A diferença

3 Os nomes são fictícios para garantir o anonimato dos sujeitos

37

Considerando os procedimentos éticos da pesquisa com seres

humanos, foram disponibilizados para a instituição o TERMO DE

CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE), garantindo o

anonimato (Vide anexo 1), que estão arquivados com a pesquisadora.

38

CAPÍTULO 4

APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Este capítulo foi composto a partir de entrevistas que realizamos com

diferentes sujeitos, que tinham em comum o fato de se considerarem

pessoas canhotas.

Dividimos o capítulo em duas partes: na primeira, serão apresentados

os sujeitos e uma síntese de seus depoimentos. Na segunda parte, serão

apresentadas a análise e a discussão acerca dos aspectos principais

identificados na fala dos sujeitos.

4.1 DEPOIMENTOS

Neste item serão apresentados os resumos dos dados referentes aos

depoimentos realizados com cinco mulheres que vivenciaram o canhotismo.

As entrevistas foram realizadas no período entre setembro de 2013 e

janeiro de 2014; em geral duraram aproximadamente de 25 minutos a 1 hora

e 20 minutos. Foram realizadas em diferentes locais, conforme a

disponibilidade dos sujeitos: em um café, no local de trabalho e na casa das

entrevistadas.

Esses sujeitos foram escolhidos a partir de conhecimento prévio da

pesquisadora, seus familiares e amigos. Todos eles se disponibilizaram a

participar, não havendo recusa.

Esses dados referem-se a cinco casos, com diferentes experiências

acerca do ser canhoto; as idades variam entre 23 e 82 anos, sendo todas do

sexo feminino; há quatro sujeitos que moram na cidade de São Paulo e uma

em Curitiba (Dulce).

39

QUADRO SÍNTESE DOS DEPOIMENTOS

SUJEITO IDADE

CARACTERÍSTICA

DA

LATERALIDADE

SER CANHOTA É

Bianca 23 anos

Canhota que

também faz tudo

com a direita

Legal

Carolina 34 anos Canhota para

tudo o que pode Muito bom

Luísa 49 anos “200%” canhota Um diferencial

Marcela 56 anos

Escritora destra e

“canhota de

alma”.

Ser eu mesma

Dulce 82 anos

Canhota de

nascimento,

destra por

imposição

Não se considera

canhota

Os depoimentos dessas cinco mulheres, de diferentes gerações, nos

ajudam a compreender como diferentes pessoas canhotas vivenciam o

canhotismo.

Veremos, agora, os relatos sobre as entrevistas de modo mais

detalhado, acompanhados de uma análise. Os nomes das pessoas e

instituições foram alterados para preservar a identidade dos sujeitos.

40

BIANCA

Não ficava trocando. Fazia como todo mundo, que era mais

fácil. Para não errar.

Bianca tem 23 anos. A irmã mais velha de um irmão com “Distúrbio no

Processamento Auditivo Central”. Professora de escola católica, na qual a

disciplina e a religião estão sempre presentes.

Devido ao fato de ter um irmão com problemas, vivia se locomovendo

de um lado para o outro, acompanhando sua mãe para levar o caçula para

todos os atendimentos que precisava.

Com uma infância agitada, acabou por desenvolver muito sua

autonomia. Mostra-se alguém independente, capaz de realizar e se sentir

realizada.

O ser canhota acabou ficando na sombra. Eram tantas as outras

demandas para as quais a mãe precisava atentar que isso passou de forma

tranquila. O que não quer dizer que era ignorado. Sua mãe procurava

encontrar materiais adaptados e demonstrava à filha que aquilo não era

defeito e sim uma condição perfeitamente administrável.

Diz que, por ser uma pessoa ansiosa, aprendeu a fazer muitas coisas

com a direita. Não aguentou esperar ter uma tesoura de canhoto: aprendeu a

cortar com a direita. Não tinha paciência para aguardar o professor ensiná-la

a jogar: chuta e arremessa melhor com a direita. Inclusive, quando se cansa,

escreve com a direita.

Foi um pouco culpa minha. Eu quis me adaptar desse jeito e

me adaptei. Me adaptei bem, acredito. Não sofro de fazer as

coisas com a direita. Pelo contrário. Acho isso bom.

Bianca é uma pessoa que, de acordo com seu relato, seria alguém de

lateralidade mista, ou seja, utiliza mãos diferentes para atividades diferentes,

dependendo da situação.

41

Ela não está sozinha. Conta que está cercada de canhotos. De seus

quatorze primos, três são canhotos. Ou seja, o dobro da média, que é de um

para cada dez. Em sua família são dois para cada dez.

Comenta que o canhotismo foi bem aceito por seus familiares, exceto

pela avó paterna, que constantemente trocava o lápis de sua mão esquerda e

passava para a direita. Por outro lado, a mãe buscou tudo para que ela se

sentisse bem.

Nisso minha mãe super me apoiou. Você é canhota, vai! Não

tem problema nenhum.

Diz que na escola as coisas não foram tão simples assim. Lembra-se

dos professores reclamando sobre sua grafia, o que chateava sua mãe. Não

entende por que nenhum deles falou: “é porque ela é canhota”. Lembra de

como é difícil pegar na mão de um canhoto para ensiná-lo a escrever. Conta

que chegou a levar bronca por borrar o caderno da escola. O canhoto quando

escreve passa a mão em cima do que escreveu, manchando o papel. Foi

pedido que trocasse de caneta e evitasse a sujeira.

Eu não tinha culpa, mas fazer o quê? Eu escrevo com essa

mão [esquerda].

Seu professor de tênis não lhe dava a devida atenção como canhota.

Literalmente uma explicação e “se vira aí”.

Conta que como não quis ser jogadora profissional, aquilo não a

incomodava tanto. O que realmente incomodava era a falta de carteira de

canhoto na realização dos vestibulares e exame psicotécnico. No vestibular

ficou com vergonha de pedir uma carteira especial. Resultado: de tanta dor,

precisou parar a prova, pois não aguentava mais. Depois dessa experiência,

não deixava mais uma prova começar sem que ela estivesse bem

acomodada.

42

Outra dificuldade que mencionou é o momento do jantar. Precisa

sentar-se do lado esquerdo do namorado. Caso contrário:

A gente se tromba o jantar inteiro. É um caos.

Ficou indignada quando sua mãe comprou uma espátula de bolo que

só cortava para a direita. Era seu aniversário e ela não conseguiu cortar o

bolo. Entrou em contato com o fabricante, que a despistou e o caso ficou

esquecido.

Diz que existiram essas situações, porém não se lembra de histórias

traumáticas. Nunca escutou dizerem que isso era um problema. Apenas

considera que o canhoto se adapta e não se preocupa em buscar melhorar

sua situação. Apesar desse percurso nem sempre ser o mais fácil, diz que

gosta de ser canhota. Inclusive já escutou de uma amiga de que “é lindo ser

canhoto”.

Por ser professora de crianças pequenas, sua concepção sobre a

pessoa canhota acompanha sua prática. Comentou que 20% (vinte por

cento) de seus alunos são canhotos e que se empenha para ajudá-los, pois

compreende quais podem ser as dificuldades. Recomenda que os pais

comprem tesouras adaptadas e cuida para que os alunos sejam atendidos

em suas necessidades.

Para Bianca é bom ser canhota, porém não considera como verdade o

mito de que o canhoto é mais inteligente.

Na verdade, eu acho que esses mitos novos chegaram para

encobertar os velhos. No sentido de: “Não, gente, não

achamos mais que é pecado; inclusive achamos até que

vocês são mais inteligentes”.

Bianca defende que o canhoto, sendo minoria, acaba precisando se

submeter ao mundo do destro. E que isso não deveria acontecer. Defende

que é necessário um mundo adaptado.

A entrevistada menciona que os canhotos são como uma “tribo”; diz

que repara nos canhotos em todos os lugares que vai.

43

Eu enxergo em qualquer um. Enxergo se é canhoto, porque

isso, sei lá, é o detalhe que levo em conta.

E se sente parte integrante desse grupo. Conta que gosta de ser

canhota, acha “legal”. Gosta porque é um diferencial. Fala inclusive que se

orgulha dessa condição. Ser diferente, ser minoria e ter se dado tão bem é

motivo de alegria.

Acho que é isso. Sou feliz sendo canhota.

44

CAROLINA

Dizem que a gente é mais inteligente, né?

Carolina é uma médica radiologista, de 34 anos de idade, apaixonada

pelo que faz. Diz que é muito perfeccionista. Canhota convicta e feliz por sua

condição, compartilhou conosco as vantagens de ser dominada pelo lado

esquerdo.

Podemos pensar que é uma canhota total, apesar de não saber ao

certo qual é sua perna dominante, pois faz tudo com a mão esquerda, exceto

o que exige que seja com a direita, como, por exemplo, fazer ultrassom,

devido a maca com o paciente ficar sempre do lado direito do médico e não

existir a possibilidade de trocar o aparelho de lugar, mas se adaptou a

trabalhar assim.

Conta que sua mãe percebeu que ela era canhota, logo quando

pequena. Apesar de não ter sido reprimida e ser algo irrelevante para seu

pai, irmã e marido, sua mãe estranha muito. Relata que ela fica incomodada,

e diz: “filha, pega com a mão certa”. Nesses momentos, a mãe prefere

executar ela mesma a tarefa.

Diferente de Bianca, que tem vários parentes canhotos, Carolina não

conhece nenhum familiar com a mesma condição.

Eu sempre procurei saber. Isso sempre chamou atenção.

Sou a única.

Os canhotos também chamam sua atenção em outros ambientes. Diz

que os percebe por onde passa. Repara na TV, cinema, em qualquer lugar.

Inclusive afirma saber quais são todos os colegas canhotos. O mesmo muitas

vezes não ocorre dos outros em relação a ela: “Ai, você é canhota. Não

sabia”.

Gosta de ser canhota, mas enumera inúmeras dificuldades:

A gente sofre um pouquinho, né, Pri?

45

Manipular colher de molho; tesouras da época de escola (pequenas e

coloridas), que diz que não cortavam; faltar constantemente a carteira para

canhoto na escola e no vestibular; além de sair para comer e ficar batendo na

pessoa ao lado o tempo todo (senta-se estrategicamente nos restaurantes).

Apesar de ter uma forte dominância do lado esquerdo, diz ser

habilidosa com a direita nos jogos de vôlei.

O que entra muito o meu canhoto.

Conta que durante o Ensino Médio foi morar nos Estados Unidos, algo

que sempre quis fazer. Lá, recebeu uma proposta para jogar vôlei

profissionalmente. Ser a jogadora canhota do time permitiu que obtivesse

destaque. Ela surpreendia os adversários, jogando para o outro lado. E

quando esses já começaram a notar, passou a desenvolver a direita, e logo

ser uma atleta exímia. Era uma excelente jogadora, que chegava inclusive a

aparecer no jornal da cidade.

Todo mundo gostava porque eu fazia bem para todo mundo.

Era muito diferencial.

Diferencial. Palavra que apareceu com frequência em nossas

entrevistas. Para os sujeitos canhotos, pareceu positivo, porém nem todos

encaram essa condição dessa maneira. Carolina conta que já escutou “você

sabe, é coisa do diabo”. Ignora. Afinal de contas, considera a condição de

canhota como algo “normal”, mas que chama a atenção. Relata que não

considera o canhoto mais inteligente,

Mas a gente fala, né?

Fala porque gosta, adora, se sente bem. Ser canhota para ela, em

suas palavras, só trouxe coisas boas. Ser diferente dos outros lhe agrada.

46

O normal, mas um pouquinho diferente (...) Não tem o que

falar. É ótimo. Nasceria canhota de novo (...) Se pudesse

nascer canhota 20 vezes, nasceria canhota 20 vezes.

Não só ela nasceria canhota novamente, como torce para que a filha

que está esperando o seja também.

Deve ser a coisa mais fofa (...) uma canhota bebê. Se a

minha for, vou ficar louca. Vou dar o maior apoio. Tudo com a

esquerda!

47

LUÍSA

O canhoto não afetou em nada na minha vida. Tranquilo.

Luísa é uma dona de casa, de 49 anos, nascida em uma família

especial. Conta que teve muita sorte de fazer parte de uma família diferente,

com uma cabeça mais avançada que as outras na época. Acredita que se a

família não tivesse essas características, ela nem sequer teria sobrevivido.

Conta que foi uma criança com muitos problemas. Nasceu com uma

doença genética, de base neurológica, rara, e que influencia a função

imunológica. Além disso, menciona ter “déficit de atenção” e “dislexia”.

Assim como Bianca (entrevistada 1), o canhotismo quase não foi

notado em sua vida. Havia outras coisas mais importantes para se preocupar.

Luísa desacredita que possam existir famílias ou sistemas que reprimem o

canhoto.

Nunca ouvi contar.

Se intitula 200% (duzentos por cento) canhota, daquelas que não

sabem fazer nada com o lado direito. Até crochê aprendeu a fazer com a

esquerda.

Era uma coisa impossível de ensinar. Todo mundo dizia. Mas

eu aprendi.

Mesmo assim, conta que se adaptou bem ao que era inevitável. A

tesoura de canhoto não lhe fez falta; o bico da panela é ao contrário, porém

nunca precisou de algo diferente. O que realmente lhe incomodava era a

carteira de classe.

Que era chato. Você ficava virado ao contrário. Isso é uma

sacanagem. Devia ter.

48

Em seu depoimento, essa é a maior dificuldade que apresenta. Seus

outros problemas se sobrepõem a ser canhota. Relata que sempre foi muito

distraída e essa era uma desvantagem em sua vida. Sua experiência escolar,

em uma escola construtivista, vem de encontro a essa situação. Diz que a

liberdade dessa postura pedagógica, aliada ao “déficit de atenção” e da

“dislexia”, fez com que ela estivesse sempre em outro lugar. Foi somente

quando mudou de escola, para uma tradicional, que encarou o colégio como

algo ótimo.

É uma entrevistada que possui várias “teorias” sobre o ser canhoto.

Inclusive relacionada à distração.

Eu acho que isso tem a ver com o canhoto, sabia? Eu acho

que o canhoto gosta de “viajar” um pouco. Todo canhoto

“viaja”. Repara?

Considera que os canhotos são organizados do ponto de vista

espacial, porém têm a vida bagunçada. Arrisca que isso se deve à

capacidade criativa. Menciona ser habilidosa do ponto de vista artístico,

apesar de ter uma letra que ela mesma nomeia como horrível. Para sustentar

esse argumento, cita um cunhado canhoto que é meio artista, interessante de

conversar, mas que tem uma vida profissional instável. Conta que o sobrinho,

filho desse cunhado, também canhoto, teve “déficit de atenção”.

Ressalta que o canhoto tem sempre um “Plano B”. Diz que eles estão

sempre “metidos em alguma coisa”. Para ela, o canhoto experimenta.

Acredita que isso se dá porque eles pensam diferente, têm outro raciocínio.

Mas é tranquilo. Tranquilíssimo.

O canhoto não afetou em nada a minha vida.

Apesar do canhotismo não ter destaque em sua vida, assim como as

outras entrevistadas, se considera parte de uma “tribo”. E que gosta de ser

canhota por ser algo diferente, raro. Em suas palavras, ser canhota é um

diferencial.

Tem dez e tem um canhoto: sou eu!

49

MARCELA

Eu apanhava na mão esquerda.

Marcela tem 56 anos. É advogada, com uma experiência especial em

relação a ser canhota. Conta que, desde criança, por volta dos 4 (quatro)

anos de idade, tinha tendência a usar a mão esquerda. E que sempre gostou

disso. Porém, assim que o pai percebeu, não aceitou, chegando inclusive a

bater em sua mão.

(...) meu pai, como todo imigrante, principalmente árabe,

tinha certos preconceitos.

E ela, respeitou.

(...) eu era muito ligada ao meu pai. (...) Então eu falava

assim: já que ele fica chateado, não posso fazer isso para

desagradá-lo. Aí comecei a desenvolver a direita.

Outros membros da família canhotos, como uma prima irmã e um

sobrinho passaram ilesos a esse tipo de repressão. Alguns tios nem ligavam.

Exceto David, tio com quem ela possuía uma forte ligação afetiva. Este até o

fim da vida não admitia que ela o servisse com a mão esquerda, alegando

que todo canhoto é desastrado. Ele e seu pai ficavam muito bravos se

presenciassem um ato ou movimento realizado com a mão esquerda.

Marcela tem a hipótese de que eles tenham adquirido essa cultura no Líbano.

Devido a essa vivência, a entrevistada escreve e come com a mão

direita, porém atribui a essas atividades a qualidade de serem mecânicas.

A direita eu escrevo por hábito, é mais rápida. Mas a

esquerda é a mão do meu EU realmente. Eu me sinto. Sinto

meu EU se manifestando.

50

É com a mão esquerda que ela se realiza, se percebe como autora.

Quando faz uso da direita, é algo superficial. Diz que sua força sempre foi na

mão esquerda. É canhota ao varrer, escovar os dentes, jogar tênis, golfe,

cozinhar.

Se mexer numa panela com a direita, a comida não sai

gostosa.

Menciona ter recebido um carinho e atenção especial dos professores

de esportes, como tênis e golfe. Diz que eles se esforçavam para estimulá-la,

ao mesmo tempo em que sentia que eles ficavam receosos; afinal, acredita

ser mais complicado ensinar um canhoto que um destro.

Assim como Luísa (entrevistada número 3), também “teoriza” sobre

essa condição, dizendo que escutou dos colegas de faculdade que sua

memória é boa porque é canhota. E já leu que os canhotos possuem um

sexto sentido mais aguçado.

Sendo isso verdade ou não, aqui não importa. O que fica evidente

nesse depoimento é que Marcela, apesar de ter sido reprimida em sua

condição, se considera, em suas palavras, com um “íntimo” canhoto e um

“supérfluo” canhoto e destro.

Mas quando a pergunta é: “o que é ser canhota para você?”, vem o

encanto:

Me realizar como pessoa. Ser eu.

51

DULCE

UM CASO ESPECIAL

Você causou diversos problemas. Porque eu comecei a

reparar o que fazia com a direita e com a esquerda.

Essa foi sua impressão quando foi convidada para compartilhar um

pouco de sua história.

Embora não faça parte do nosso conjunto de sujeitos, seu depoimento

é digno de ser contado.

Dulce, uma senhora de 82 anos de idade, foi nossa entrevistada como

um caso bem especial.

Começa a entrevista dizendo que nunca teve trauma nem depressão

por coisa alguma em sua vida. Foi mãe de 4 (quatro) filhos, um em seguida

do outro. A rotina com as crianças era intensa. Logo depois de contar um

pouco sobre sua família, diz:

Não posso sequer imaginar de dizer: “meu Deus, será que

isso é resultado de não terem deixado eu ser canhota?”

Nada, nada, nada. O mais light possível, você pode escrever,

que não tenho coisa alguma. Agora, descobri com a vida que

tudo que me obrigaram a fazer, eu faço com a direita.

Refere-se aqui às freiras, suas professoras em um colégio religioso

tradicional e da elite de Curitiba (Paraná). Elas não permitiam que Dulce

fizesse uso da mão esquerda, principalmente para escrever e comer.

Conta que sacava no vôlei com a esquerda e isso passou

despercebido pelas “fiscais do canhoto”.

Para as freiras, antigamente era um caso de polícia, gente.

Relata que tudo que a obrigaram no colégio ela faz com a direita.

52

Naquele tempo não havia objeção ao que a irmã estava

dizendo.

Nas demais atividades, é uma canhota. Ao se maquiar, bater clara de

ovo, abrir e fechar garrafa.

Vivenciando essa postura da escola, confirma a existência de

preconceitos sobre o ser canhoto:

O diabo inclusive era chamado: “o canhoto”.

Diferente da escola, sua família, em suas palavras, nem ligava. Hoje

tem duas netas canhotas e percebe a mudança de mentalidade:

Hoje deixam. Fazem tudo com a mão esquerda. O que

quiserem.

Apesar de dizer que nasceu canhota:

Se me perguntarem, digo que sou destra. O canhoto ficou lá

tão longe, tão longe (...),

E que acabou se perdendo, segundo ela. A espontaneidade de ser

uma canhota foi encoberta pela formalidade de ser uma destra, numa época

e universo que tinha valores muito distintos dos atuais.

53

4.2 ANÁLISE E DISCUSSÃO

Nossas entrevistadas são todas mulheres, de cinco gerações

diferentes. Bianca, de 23 anos; Carolina, de 34; Luísa, 49 anos; Marcela, 56 e

Dulce de 82 anos, esta última que não entrará em nossa análise, porém

deixamos seu rico depoimento registrado neste trabalho.

Consistiram em entrevistas não diretivas, tendo como frase

desencadeadora: “Me conte sobre a sua vida”. Lançada essa frase,

aguardávamos da entrevistada seu depoimento.

Percebemos uma enorme motivação das entrevistadas em

compartilhar um pouco de sua história, bem como de fazer parte da pesquisa.

Aparentemente, se sentiram prestigiadas e privilegiadas. Ao mencionar que a

temática principal que envolve o trabalho é o canhotismo, notou-se

claramente uma satisfação. Como se, de alguma forma, esse grupo

ganhasse voz e representatividade.

A empolgação e envolvimento dos sujeitos foi notável no momento do

convite para participarem, durante a preparação para o depoimento

(primeiras conversas), o depoimento em si, e inclusive depois. Todas as

entrevistadas demonstraram-se interessadas em acompanhar o andamento

da pesquisa. Algumas disseram: “depois quero ver o resultado”.

Compreendemos que muito mais do que isso, neste trabalho elucidam-se

importantes contribuições para um olhar sobre o canhoto. Entender um pouco

mais desse universo, desse grupo, dessas pessoas. Os sujeitos têm muito a

contribuir. Perceber em suas falas o caminho que trilharam ao longo de suas

vidas, a influência da família, escola e trabalho, e o impacto disso tudo em

suas constituições, é algo muito rico.

As entrevistadas que fizeram parte desta pesquisa eram pessoas

bastante diferentes. Moravam em diferentes partes da cidade, ou até mesmo

em outro Estado, tinham famílias e trabalhos distintos. Cresceram e foram

educadas cada uma de uma forma, em escolas com posturas diversas e

escutaram da sociedade coisas positivas e negativas sobre elas. Isso foi

muito rico do ponto de vista de informações que pudemos coletar, mas, mais

54

ainda, foi um enorme prazer escutar tudo o que elas tinham a dizer. Cada

uma delas percorreu um caminho, porém todas comentaram sobre a

condição de ser canhota e a implicação disso em suas histórias de vida.

Optamos por separar essa análise em temas por uma questão

didática. Ao todo foram 7 (sete) temas, determinados posteriormente à

realização das entrevistas. Foram as falas dos sujeitos que levaram a seguir

essa organização.

1. Características e formas de manifestação da lateralidade

Entendemos como fundamental esse tema, pois todas as

entrevistadas contaram, de alguma forma, como a lateralidade manifestou-se

em suas vidas. Conforme mencionado anteriormente a lateralidade pode ser,

em linhas gerais, integral, não integral ou contrariada.

Os dados mostram que Bianca não tinha paciência para esperar que

lhe ensinassem de forma especial e acabou aprendendo a fazer tudo com a

mão direita também. Podemos considerá-la como tendo lateralidade não

integral, em que ela apresenta tendências com as duas mãos. Em seu caso,

utiliza mãos diferentes em atividades diferentes.

Carolina desde pequena mostrou-se canhota. Ao longo da vida,

precisou entregar-se um pouco ao lado direito, principalmente em seu

trabalho (com ultrassom), que exige o uso dessa mão. Arriscamos a dizer

que sua lateralidade é integralmente canhota, pois se houvesse opção de

trabalhar com a esquerda, ela não se preocuparia em usar a direita.

Luísa, por sua vez, é totalmente canhota. Realiza todas as atividades

com o lado esquerdo. Marcela tem a “alma canhota”, mas escreve e come

com a mão direita, pois apanhava do pai se fizesse o contrário; as demais

atividades cotidianas realiza como canhota. Marcela seria alguém de

lateralidade contrariada.

Em resumo, encontramos: Bianca (sujeito 1) que faz tudo com as duas

mãos; Carolina (sujeito 2) que é integralmente canhota, mas usa a esquerda

para o que “não tem outro jeito”; Luísa (sujeito 3) totalmente canhota; e

Marcela (sujeito 4) canhota por “dentro”, mas de vez em quando destra por

55

“fora”. Isso se deveu à história de cada uma, conforme contado

anteriormente. Bianca usa as duas mãos por “ansiedade”; Carolina de vez

em quando usa a direita por imposição do ambiente; Luísa era de uma família

moderna que não se preocupava com isso, logo, só usa o lado esquerdo; já

Marcela era de uma família oposta, que se preocupava muito com essa

questão; para o pai era inaceitável, portanto ela escreve e come com a mão

direita.

Fica evidente aqui que cada uma das entrevistadas possui uma

relação com a manifestação da lateralidade, assim como todos os indivíduos.

Apesar de existir uma base biológica que contribui para que o sujeito use

preferencialmente uma das mãos, o ambiente desempenha um papel

importante. Pessoas forçadas, contrariadas ou, por diversas razões, podem

desafiar a condição de seu nascimento e, mesmo assim, conviverem bem

com essa mudança.

2. A família

Antes de nascer, o nascituro já é representado como filho de

alguém e essa representação prévia o constitui efetivamente,

objetivamente, como filho, membro de uma determinada

família, personagem (preparada para um ator esperado) (...)

(Ciampa, 2005, p. 167)

Entendemos, assim como Ciampa (2005), que a socialização primária

dos sujeitos ocorre na família. É nessa relação que a criança é introduzida

em nosso mundo, que se inicia o processo de humanização. A família é

formada por pessoas que desempenham diferentes papéis, cada um deles

com significados específicos. Esse primeiro estágio é fundamental para o

processo de socialização, individuação, constituição e identidade do sujeito.

Família é algo muito particular e próprio de cada indivíduo. Nossas

entrevistadas comprovam essa afirmação ao contarem partes de suas

histórias de vida. As respostas dadas a essa questão foram bastante

interessantes, porque são todas diferentes e muito provavelmente abarcam

56

as possibilidades de relação com a família que os canhotos em geral podem

ter. Acreditamos que muitos canhotos, ao lerem, se identificarão com uma ou

outra situação.

Nessa categoria encontramos apenas uma entrevistada que passou

ilesa de qualquer intervenção: Luísa. Ela teve seu canhotismo bem aceito por

todos os familiares. Sua família estava “à frente de seu tempo”. Além disso,

ela tinha outros problemas que eram mais relevantes que o fato de ser

canhota. Sua “dislexia”, “déficit de atenção” e ter uma doença autoimune,

tomavam a atenção. Sua família também não era submissa às questões

religiosas e, portanto, não se envolveram com preconceitos e mitos acerca do

ser canhoto.

Bianca tinha todo o apoio de sua mãe para ser canhota, porém teve

problemas com a avó, que tentou levá-la a pender para o outro lado, sem

sucesso. Assim como Luísa, tinha problemas (um irmão com “distúrbio no

processamento auditivo central”) que tomavam a atenção de todos, e o

canhotismo não era algo tão importante para que eles se preocupassem.

Carolina, apesar de escutar constantemente da mãe que a incomoda

ver a filha realizando atividades com a esquerda, adora ser canhota e

“nasceria de novo” assim quantas vezes forem necessárias, com prazer. O

canhotismo para ela trouxe vantagens e alegrias, que nada nem ninguém

ainda a fizeram ter vontade de ser diferente.

Marcela, obediente ao pai e ao tio, rendeu-se à vontade deles de não

usar a mão direita em público; escreve e come com a direita. Esses homens

tinham um papel tão forte em sua vida que contrariá-los estava fora de

cogitação.

Isso demonstra que a família constitui inicialmente o mundo de e para

cada sujeito. Para Bianca, o irmão ter toda a atenção a auxiliou em ser uma

canhota de sucesso e independente. Para Carolina, ser canhota é tão bom

que nem a represália da mãe com todos os seus comentários, a fez querer

mudar a dominância lateral. Luísa é de uma família progressista que mostrou

para ela que ligar para isso era “bobagem”. Marcela respeitou a vontade da

família e desempenha o papel de destra em algumas situações.

Cada uma dessas mulheres mostra que a família é importante e

exerce uma forte influência sobre quem somos; é a base primária da

57

socialização e, em geral, permanece como campo de relações significativas

ao longo da vida.

Nos primeiros momentos, eles nos dão a base para que possamos

começar a andar. Conforme atingimos destinos cada vez mais distantes,

podemos nos afastar de certos conceitos e começar a traçar nossos próprios

caminhos. Muito do que a família é e ensina será sempre carregado conosco.

O que difere é o que faremos com toda essa bagagem.

3. Escola e Trabalho

A escola pode ser considerada a primeira instância de inserção do

sujeito fora da família e caracteriza um novo tipo de socialização. É lá que a

criança amplia seus contatos sociais, começa a ter contato com outras

pessoas e a se desenvolver.

De acordo com Berger e Luckmann (apud Martins, 2012) os estágios

de socialização primária e secundária podem ser explicados da seguinte

forma:

A socialização primária é o processo por meio do qual a

criança se transforma num membro participante da

sociedade. A socialização secundária compreende todos os

processos posteriores, por meio dos quais o indivíduo é

introduzido num mundo social específico. Qualquer

treinamento profissional, por exemplo, constitui um processo

de socialização secundária.

A experiência escolar das entrevistadas é relevante para nossa

pesquisa, pois além de ser palco de importantes relações sociais, a escola é

um lugar em que certamente a lateralidade se manifesta, seja na escrita ou

em qualquer outra atividade motora que a criança realize.

Percebemos na fala dos sujeitos que há outros fatores escolares que

ultrapassam a condição de pessoa canhota. Nossos sujeitos Carolina e Luísa

destacaram mais a diferença de metodologia das escolas que estudaram do

58

que o fato de serem canhotas. Para elas, estudar em colégio construtivista,

liberal ou tradicional eram fatores mais relevantes e traziam mais questões

para debate.

Marcela teve sua condição de ser canhota reprimida dentro de casa, a

ponto disso nem ser mencionado em sua experiência escolar.

Bianca relata que os professores chegaram a reclamar que ela

passava com a mão por cima do que escrevia e aquela sujeira era inaceitável

para eles. Ela concorda com a postura deles, pois realmente aquilo não fica

estético, mas diz que não há muita alternativa, uma vez que ela não tinha

culpa de ser canhota. Entretanto, não critica a postura dos professores, que

precisariam reconhecer as diferenças dos alunos e acolhê-los em suas

singularidades.

Bianca e Marcela falam um pouco de suas relações com os

professores de esportes. As duas afirmaram que eles não sabiam muito o

que fazer com elas. Ensinar uma canhota a chutar não é o mesmo que

ensinar para a maioria. Orientar no basquete, no tênis e em grande parte dos

esportes, envolve dedicação. Bianca não quis esperar a boa vontade dos

profissionais e acabou “se virando” sozinha. Marcela notou que apesar de

inexperientes para ensinar uma canhota, incentivavam-na a aprender,

inclusive citando atletas famosos que se destacaram por usarem o lado

esquerdo do corpo.

Bianca merece um comentário especial nesse tema. Ela é pedagoga e

professora de Educação Infantil. Diz ser muito atenciosa com seus alunos

canhotos e procura suprir aquilo que não foi feito com ela no passado.

Auxilia-os constantemente, se preocupa e está disposta a preencher com

eles as lacunas que vivenciou em sua experiência escolar. Está interessada

em incentivá-los nessa condição e mostrar a eles que o canhotismo não os

impede de nada; inclusive conversa com os pais e recomenda que estes

deem suporte a seus filhos nas dificuldades e que adquiram materiais

adaptados e próprios para o canhoto, para facilitar a vida escolar das

crianças.

Dentre os quatro sujeitos, três, Bianca, Carolina e Luísa mencionam o

problema das escolas (principalmente os vestibulares) não terem número

suficiente de carteiras para canhoto. Para elas, isso pesou; afinal, ficaram

59

com dores ou incomodadas pela posição desconfortável. A necessidade de

uma carteira especial para cada canhoto em sala de aula não precisa ser

mais discutida. É um comentário recorrente entre os canhotos, principalmente

em rodas de conversa. As escolas precisam respeitar essa diferença e

permitir que seus alunos estejam bem acomodados e em condições para

realizarem tarefas de forma saudável.

Quanto à postura do professor, há atitudes diferentes. Nossos sujeitos

sugerem que os professores de educação física possuam em sua formação

momentos de reflexão e conheçam formas e maneiras de ensinar o canhoto

a praticar esportes, sobretudo porque a eles cabe, entre outras coisas,

trabalhar com a dimensão motora do educando.

Quanto à disposição física da escola, vemos que ainda há muito o que

fazer. As carteiras para canhotos precisam existir e em número suficiente nos

ambientes educativos. Nas escolas, universidades, em qualquer lugar em

que seja necessário executar uma tarefa.

Em relação ao trabalho, Carolina, que usa frequentemente a mão

direita para fazer ultrassom, adaptou-se com facilidade, afinal era uma função

nova que já começou a desempenhar dessa forma. Não foi algo que

aprendeu a fazer com a esquerda e depois exigiram que trocasse de mão.

Ser radiologista implica que ela manuseie o aparelho com a mão direita. Isso

não representou uma dificuldade.

Em síntese, podemos perceber que as dificuldades das entrevistadas

foram em relação às questões motoras, e não sociais. E estas, apesar de

desafiantes, não as impediram de realizar o que era necessário e esperado

em seus momentos de vida.

4. Dificuldades e superação

As dificuldades são reconhecidas por todos os sujeitos. Elas não

negam que existem “pedras no meio do caminho”. Porém, para todas, esses

empecilhos tornam-se secundários frente a outros problemas. Outras

60

questões, encaradas como mais importantes, parecem se sobrepor às

relacionadas ao canhotismo.

Relembrando, Bianca tem um irmão com “distúrbio no processamento

auditivo central” e Luísa é “disléxica” e tem “déficit de atenção”. Essas coisas

pesam muito mais do que o canhotismo. O ser canhota ficou na sombra,

secundário. Para Bianca, a personagem canhota ficou insignificante em

relação ao papel de irmã que precisava desempenhar. E para Luísa a

personagem com “problemas de aprendizagem” também se sobrepôs à

personagem canhota, que se tornou insignificante em relação aos tantos

outros problemas.

De acordo com Ciampa (2005), o homem assume e desempenha

diversos papéis durante sua existência. O papel é resultado de uma

implicação que vem de fora, em outras palavras, é resultado de uma

definição institucional. Durante um único dia podemos desempenhar o papel

de mãe, filha, esposa, professora. Ao desempenhar um papel, o foco do

sujeito é de construir uma personagem. Diferente do papel, a personagem é

uma elaboração própria de cada indivíduo, vivenciada em sua singularidade.

Na medida que vamos, ou precisamos desempenhar outros papéis,

acabamos por construir novas personagens. Isso ocorre constantemente

durante as nossas vidas.

É claro que há dificuldades relacionadas ao canhotismo, mas, pelos

relatos, todas foram superadas ou não se constituíram como problemas. Três

de nossos sujeitos contam o quão complicado é lidar com a tesoura e/ou com

o abridor de lata, mas elas buscaram e encontraram alternativas. São bem

sucedidas usando esses materiais impróprios para canhotos, mas a

adaptação foi viável.

Apesar de ficarem “tortas” na carteira de destro, “sobreviveram”. O

desconforto não as impediu de estudarem e realizarem suas atividades.

Mencionaram dificuldades com bico de panela, colher de molho, espátula de

bolo, nada disso adaptado ou próprio para o canhoto, mas cada uma a sua

maneira conseguiu que desse tudo certo. Elas “se viram” com o que existe no

mercado ou com o que tinham em casa. Superam os obstáculos ao longo do

caminho. Trombar com o namorado no jantar é considerado chato, mas elas

já contam em tom de diversão.

61

Carolina deu um pouco de trabalho para os colegas na faculdade de

medicina, pois contou que fazia o corte do parto normal ao contrário e isso

complicava o trabalho de quem ia suturar depois. Mas também, no final, deu

tudo certo. Afinal de contas, o canhoto precisa se adaptar quase que

integralmente ao mundo destro, porém o contrário não acontece. Esse relato

mostra uma situação em que os destros foram os que precisaram “se virar”.

As dificuldades maiores são mesmo em relação aos materiais, todas

superadas. Quanto às dificuldades sociais, Marcela foi a que enfrentou a

maior delas dentro da família. A proibição de usar a mão esquerda para

comer e escrever mudaram seu “destino”. Bianca levou algumas broncas por

borrar o caderno, mas diz não sofrer de traumas e não apresenta problemas

por conta disso.

Os depoimentos mostram que os obstáculos foram todos superados e,

mais do que isso, podemos arriscar dizer que as fortaleceu. Parece que a

condição de ser canhota ficou ainda mais intensa e assumida pelas

entrevistadas. Elas gostam dessa condição. Ser canhota é diferente, as

destaca no meio da multidão. É como se as tirasse do lugar comum. Isso é

semelhante a todas.

5. Facilidades e Vantagens

Vimos as dificuldades que os canhotos podem enfrentar. Em

contraponto, o canhotismo pode apresentar facilidades e vantagens para os

sujeitos.

A maior facilidade vivenciada por nossas entrevistadas se manifestou

na fala de Carolina (sujeito 2), que foi uma eficiente jogadora de vôlei, o que

diz dever muito ao canhotismo. Ela conta que quando todos esperavam que

ela jogasse a bola para um lado, ia para o outro. Por desempenhar um papel

no time diferente das demais, era considerada um desafio para as

adversárias. Ou seja, há um papel prescrito para uma jogadora de vôlei;

entretanto, o fato de ser canhota fez com que ela, no desempenho de seu

papel, assumisse uma personagem bastante especial, a de jogadora

canhota. Ser destaque no esporte a faz muito feliz e satisfeita com sua

62

condição. Ela conta dessa época da sua vida com uma alegria imensa, e

muito orgulho de ter conquistado essa posição elevada no esporte.

Carolina foi o nosso sujeito que relatou uma experiência em que ser

canhoto é uma vantagem. As demais não contaram um momento especial,

porém consideram positivo serem diferentes das outras pessoas, e isso faz

com que elas se sintam bem. Considero algo merecedor de destaque, pois

afinal ser feliz é uma das maiores vantagens que alguém pode ter na vida.

Podemos arriscar a dizer que essa condição proporciona realização, e uma

pessoa mais confiante geralmente atinge mais efetivamente seus objetivos

do que alguém que não se considera capaz. Além disso, ter superado

obstáculos em relação ao canhotismo fortalece e potencializa a capacidade

do sujeito de superar, fazer acontecer. Diferentemente de alguém que não

precisou lutar para que as coisas acontecessem, muitos canhotos já

enfrentaram diversos obstáculos e tiveram sucesso.

Assim como Carolina, esportistas canhotos renomados não faltam.

Maria Esther Bueno foi mencionada por Marcela (sujeito 4), porém, ao

pesquisarmos, encontramos que ela teve uma lesão na mão direita e,

portanto, tentou jogar com a esquerda, sem sucesso.

Atualmente, Lionel Messi é um canhoto de grande destaque. O

argentino, atacante do Barcelona, foi eleito o melhor do mundo por quatro

vezes consecutivas, um recorde. As pessoas o consideram rápido, com um

arranque mortal, “ginga” e habilidade. Ou seja, é um jogador completo.

Seu conterrâneo e colega de profissão, Diego Maradona, fazia tudo

com a perna esquerda. Era um canhoto conhecido por seus malabarismos e

controlava muito bem a bola em velocidade.

Pelé (futebol), Rafael Nadal (tênis), Ayrton Senna e Fernando Alonso

(automobilismo) são controversos. Há quem os coloque em uma categoria ou

outra. Portanto, não podemos afirmar quais são de fato suas lateralidades.

Aliás, quando conversamos com as pessoas sempre uma lista enorme de

canhotos é mencionada. Precisamos tomar cuidado com essas afirmações,

uma vez que ao pesquisarmos mais a fundo, encontramos inúmeras

incoerências. Muitas vezes, cada fonte apresenta uma informação.

O destaque do canhoto nos esportes pode ser justificado justamente

pelo diferencial que isso representa. É uma pessoa incomum, que realiza

63

coisas diferentes, em um lado que os outros geralmente não o fazem. A

concorrência desse atleta para fazer parte de um time acaba sendo menor.

Uma posição como o lateral direito, por exemplo, seja no handebol e até

mesmo no futebol, é melhor desempenhada por um canhoto. Se existir

somente um no time, seu lugar é praticamente garantido. Os canhotos

surpreendendo o adversário, também ganham notoriedade. Um boxeador

canhoto, por exemplo, é capaz de golpear o oponente de uma forma mais

eficaz, uma vez que o outro, em geral, não está tão habituado e treinado para

se defender de canhotos.

Os comentários ressaltam que ser canhoto pode apresentar

dificuldades, mas elas podem ser superadas. E mais do que isso, ser canhoto

pode ser muito bom. Ser diferente das outras pessoas, de uma forma ou de

outra, chama a atenção. Isso feito, há uma maior possibilidade de

notoriedade e destaque.

6. Mitos

Os mitos são representações criadas pelo homem para tentar explicar

os diferentes fenômenos. O canhotismo, ao longo da história, recebeu

diferentes olhares. Conforme mencionamos anteriormente neste trabalho, o

canhoto já foi associado ao demônio, ao mal, ao negativo. Hoje em dia, os

canhotos não sofrem represálias na escola como antigamente em que não

era aceito escrever com a mão esquerda. Houve mudanças ao longo do

tempo.

Ainda há mitos e preconceitos que hoje, embora muito frágeis,

continuam persistindo, seja nas pessoas mais velhas, seja até de uma forma

mais cômica. No entanto, essas ideias de alguma forma ainda estão

presentes. A essas se somam hoje mitos sobre inteligência, habilidades etc.

Bianca diz em seu depoimento que acredita que um dos mitos

vigentes atualmente, de que o canhoto é mais inteligente, se deve a uma

tentativa de tentar amenizar os fatos de repressão ocorridos no passado.

Carolina, apesar de ter 34 anos, já ouviu dizer que ser canhoto é coisa

do diabo. Ela diz que quando escuta, nem se importa. Marcela nem sequer

64

podia escrever e comer com a mão esquerda, por considerarem algo ruim.

Ela justifica dizendo que o pai era imigrante árabe, e que isso deve ser

resultado de sua cultura, em que o lado esquerdo era mal visto. Bianca e

Luísa não escutaram diretamente esse tipo de coisa. Bianca inclusive já

ouviu o comentário de que é lindo ser canhoto.

Há alguns mitos que a sociedade reproduz, até mesmo sem pensar, e

outros construídos pelos próprios sujeitos. As entrevistadas desta pesquisa

possuem alguns. Carolina acredita não ser bem verdade, mas fala que os

canhotos são mais inteligentes; Bianca considera isso uma bobagem.

Marcela arrisca-se a dizer que os canhotos são mais sensíveis e possuem

boa memória. Luísa traz várias possibilidades: canhoto é mais criativo, tem a

vida em constante desordem, possui sempre um Plano B, e tem um pé na

arte. Esta última é quem mais possui modelos para explicar os canhotos. É

como se ela os houvesse observado criteriosamente, por um longo período, a

ponto de afirmar com convicção que essa série de características pertence a

esse grupo.

Isso tudo vem ao encontro do que foi dito anteriormente, de que a

sociedade construiu e segue construindo alguns conceitos acerca do canhoto

que vão passando de geração em geração. Ainda se escuta falar alguma

coisa, hoje menos, sobre o lado negativo dessa condição, e mais das

vantagens que isso pode ter. De certa forma, as contradições aparecem com

frequência. Há quem diz que tem letra linda, mas o sujeito 3 (Luísa) repete

algumas vezes que a sua é horrível; merece ser mais explorada a condição

específica do processo de alfabetização e do desenvolvimento da escrita

para essas entrevistadas.

Em outras palavras, essas questões acompanham a vida social,

porém não podem ser tomadas como uma verdade genérica, uma vez que

são diferentes a cada fala, a cada momento e às particulares da história de

cada sujeito. O importante e interessante é se ater ao que os entrevistados

nos trazem e provocar uma reflexão sobre o ser canhoto nos dias atuais.

Aparentemente, o papel que esse grupo representa na sociedade é de

pessoas diferentes do comum, uma minoria satisfeita com a sua condição e,

mais do que isso, que gosta de não fazer parte de um todo homogêneo.

Talvez justamente por isso, que as entrevistadas possuem tantos conceitos

65

sobre ser canhoto. O diferente chama mais atenção, se destaca. Este é,

inclusive, um dos motivos deste trabalho. O fato do canhotismo ser pouco

abordado inspira ainda mais curiosidade sobre o fenômeno.

7. Diferença

Não há como negar que ser canhoto é diferente. A maioria das

pessoas, em média 90% da população, não é. As diferenças podem ser

interpretadas de muitas maneiras. Pode ser algo ruim ou justamente o

oposto, dependendo da vivência que o sujeito e as concepções que a

sociedade têm em relação ao fenômeno.

Devido à convivência com canhotos, acreditávamos desde o início

desta pesquisa que ser canhoto em um mundo de destros não era tarefa

fácil, porém muitos consideram essa condição como sendo positiva e

interessante.

Conforme realizamos as entrevistas, essa hipótese foi se confirmando.

De fato há coisas nesse mundo que dificultam a vida dos canhotos,

principalmente as temidas tesouras e carteiras escolares. Mas, há outras que

se sobrepõem a essa condição. Uma delas é o “ser notado”. O canhoto,

sendo alguém diferente, muitas vezes é percebido e recebe atenção. Além

disso, encontramos indícios de que os preferentes pelo lado esquerdo

formam uma espécie de “tribo”. Um grupo que possui uma forte identificação

entre seus membros e que percebe quando há um “deles” no meio da

multidão.

Ser canhoto, para as entrevistadas desta pesquisa, é bom. Até mesmo

para Bianca e Luísa, em que o canhotismo é praticamente irrelevante por

terem outros problemas mais importantes para cuidar. Elas gostam de ser

diferentes, se sentem especiais por serem uma em cada dez. Carolina é

apaixonada pela condição e gosta muito de ser canhota. Gosta tanto que

está grávida e deseja que a filha o seja também. Marcela, que escreve com a

direita para cumprir determinado papel, sente-se realizada quando faz as

atividades com a mão esquerda, como se aquilo que fosse definido pelo

outro, de não usar a mão esquerda para escrever e comer, ou seja, em

66

atividades que se mostrassem ao público, não fizessem sentido. Ela se sente

autora do que faz, presente integralmente no movimento, quando o elabora

com a mão esquerda. Ela precisou desempenhar um papel que não era

propriamente o dela, com o qual não se identificava, por imposição da família.

Acabou assim, por assumir também uma personagem destra, sem abandonar

a personagem canhota que é de fato com a qual ela se nomeia e, portanto, é

a substancial que a constitui.

Ser diferente para as nossas canhotas é reconhecido como algo

positivo. Para todos os sujeitos ser canhoto é ser diferente, e essa é uma

diferença que, além de aceita, é admirada. Encontrar essas evidências na

fala das entrevistadas demonstra que a visão do canhoto na atualidade não é

como a de antigamente. Hoje, além de não ser problemática, é até

considerada positiva.

67

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O canhotismo é identificado como a preferência pelo uso ou maior

habilidade com o lado esquerdo do corpo, seja na mão, membros inferiores

ou até mesmo a lateralidade ocular. Há pessoas que têm lateralidade

homogênea ou integral, ou seja, são totalmente canhotas ou destras; outras

já podem apresentar uma lateralidade não integral, em que realiza diferentes

atividades, de diferentes formas, ou seja, em algumas situações usa o lado

direito, em outros, o lado esquerdo; também há a lateralidade contrariada,

quando há uma interferência na tendência “natural”.

Ser canhoto não é apenas uma questão biológica. Apesar de

acreditarmos que nascemos com uma tendência, é no ambiente e nas

interações sociais que nos definiremos mais precisamente como canhotos ou

destros. Nesta pesquisa, percebemos a forte influência da família e da escola

para que a lateralidade se manifestasse concretamente.

Além de um aspecto biológico, e outro social, há no canhotismo um

fato que se destaca: a identificação das pessoas canhotas com essa

condição e com o grupo de pessoas que compartilha da mesma

característica. Vimos que os canhotos são orgulhosos de serem assim,

gostam de ser diferentes.

Pudemos perceber que, apesar de haver algumas dificuldades para

esse grupo, principalmente com o uso da tesoura, a carteira escolar, abridor

de lata e outros materiais, há muitas maneiras de superá-las. Seja usando

materiais adaptados, aprendendo a fazer do seu jeito ou até mesmo com a

mão direita.

Notamos também que quando há uma dificuldade de outra natureza

na vida da pessoa canhota, esta se sobrepõe. Podemos inferir que as

dificuldades de ser canhoto comparadas aos transtornos que um obstáculo

de maior gravidade traz, passa a ser uma condição irrelevante.

Algumas famílias foram responsáveis por incentivar ou reprimir seus

filhos de seguirem essa tendência “natural”. Escutamos histórias de familiares

que não permitiram de forma alguma que fosse utilizada a mão esquerda. Em

68

contraponto, ouvimos casos também de ajuda e apoio da mãe para que a

pessoa tivesse a melhor experiência possível como canhota.

Nos espaços educativos não foi diferente. Percebemos a postura de

alguns professores, que foram incentivadores, e outros, principalmente os

ligados aos esportes, indiferentes à condição de seus alunos, não

contribuíram para que eles se desenvolvessem como atletas canhotos.

Constatamos também em uma das falas de nossas entrevistadas, estudante

de um colégio religioso na década de 1930, a proibição total pelo uso da mão

esquerda pelas freiras. Sem possibilidade de que fosse diferente, ela seguiu

assim, a ponto de se considerar canhota de nascimento, porém se considera

como uma pessoa destra.

Podemos encontrar também posturas diferentes na sociedade como

um todo. Em tempos passados, o canhotismo foi associado ao diabo, ao mal,

ao negativo. Era proibido e um tabu ser canhoto. Com o passar dos anos,

esses conceitos sofreram modificações, e hoje em dia raramente as pessoas

canhotas enfrentam esse tipo de preconceito. Quando muito, ocorre por parte

de pessoas mais idosas ou em tom de brincadeira. Porém, esses mitos

construídos historicamente deixaram seus resquícios.

Isso é fortemente notado em nossa linguagem. Entrar na casa de alguém

com o pé direito, indica sorte. Acordar com o pé esquerdo é justificativa de

um péssimo dia. Apenas para citar dois simples exemplos.

Apesar de existirem esses mitos, há outros nem tão negativos, ou

melhor, bastante positivos, que fazem parte do cotidiano: o de que o canhoto

é mais inteligente, tem a letra mais bonita, é bom nos esportes. Nada disso é

comprovado cientificamente, porém faz parte do universo simbólico de muitos

agrupamentos sociais.

Os canhotos de hoje parecem esquecer esses preconceitos vividos no

passado e se preocupam mais em não serem iguais à maioria, destacarem-

se frente a tanta gente parecida nesse mundo, como se hoje em dia fosse

bom ser diferente. Encontramos esse aspecto na fala de todos os sujeitos

entrevistados.

Por mais que atualmente ser canhoto não seja um problema, é preciso

que os espaços educativos estejam preparados para recebê-los. Notamos a

69

recorrente queixa da falta de carteiras para canhoto em salas de aula. É

muito importante que esse direito seja respeitado.

Nas famílias, é necessário um olhar especial quando a criança começa

a dar as primeiras indicações de sua lateralidade. Deixar os objetos no

centro, para que ela escolha com que mão vai pegar, e não direcioná-la

especificamente para um lado ou outro. Permitir que a pessoa possa se

manifestar livremente em sua singularidade.

Cada pessoa constitui-se de uma maneira particular e única, por meio

das experiências que tem, das pessoas com quem estabelece relações

significativas. Poder apresentar, nesta pesquisa, um pouco da realidade do

canhoto e sua constituição foi um prazer. Saber que esse grupo de pessoas é

feliz com sua condição e se sentem prestigiados em compartilhar suas

experiências foi muito rico. Esperamos que o olhar para a pessoa canhota

seja sempre cuidadoso, pois apesar de gostarem de ser como são, não há

como negar que elas são diferentes.

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75

ANEXO 1 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE 1. Você está sendo convidado para participar da pesquisa-participante: (título) Ser diferente: dificuldades e superação de pessoas canhotas em diferentes gerações 2. A sua participação não é obrigatória e a qualquer momento você pode desistir de participar e retirar seu consentimento. 3. Sua recusa não trará nenhum prejuízo em sua relação com o pesquisador ou com a instituição. 4.O Objetivo deste estudo é: identificar as vivências na família, escola e trabalho das pessoas canhotas. 5. Sua participação nesta pesquisa consistirá em responder a uma entrevista. 6. As informações obtidas por meio desta pesquisa serão confidenciais e asseguramos o sigilo sobre sua participação. 7. Os dados não serão divulgados de forma a possibilitar sua identificação. 8. Você receberá uma cópia deste termo onde constam os dados do pesquisador, e seu orientador podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora ou a qualquer momento. Dados da Pesquisadora Dados da Orientadora Nome: Priscila Lambach Ferreira da Costa Nome: Profa. Dra. Mitsuko A. M. Antunes Assinatura: ............................................ Assinatura: .................................................... Endereço: Rua Sampaio Viana, 238 São Paulo/SP Endereço: Rua Artur de Azevedo, 166 ap 11E São Paulo/SP Telefone: (11) 3884-7794 Telefone: (11) 99984-7070 e-mail: [email protected] e-mail: [email protected]

Declaro que entendi os objetivos da minha participação na pesquisa e concordo em participar. _______________________, de _______________________de 20_________

Sujeito da pesquisa

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ostu

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asta

nte

d

ife

ren

tes.

Isso

fo

i m

ais

rele

va

nte

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q

ue

o fa

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e s

er

ca

nho

ta.

Diz

qu

e, p

or

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e a

ten

ção

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“dis

lexia

”, a

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o e

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ua

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aio

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o n

o

co

lég

io, e

o

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nho

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o p

asso

u

qu

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que

d

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rceb

ido

, se

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ara

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nho

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qu

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nte

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ren

ça

m

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de

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ostu

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o

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ta

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com

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ta

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ecto

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nis

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lfe

, e

se

ntia q

ue

o

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pro

cu

rava

m

ince

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ressa

lta

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o o

d

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cia

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er

ca

nho

ta, a

pe

sa

r de

se

nti-los u

m p

ou

co

re

ce

oso

s p

ara

e

nsin

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A e

sco

la n

ão

p

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que

fo

sse

ca

nho

ta, in

du

zin

do

-a

a e

scre

ve

r e

co

me

r co

m a

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d

ire

ita

3.1

Tra

ba

lho

É

pro

fesso

ra d

e

cria

nça

s p

eq

ue

na

s,

e o

ca

nho

tism

o

Em

se

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rab

alh

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e

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sso

no

gra

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, fo

i n

ece

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rio

qu

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7

8

está

pre

se

nte

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su

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iária

. É

ba

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nte

cu

ida

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o

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o p

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nte

do

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ire

ito

4. D

ific

uld

ad

es

e

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ão

Falta

de

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rte

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ula

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o

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po

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fa

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de

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po

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i d

ific

uld

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nho

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siv

e s

up

ero

u

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ecto

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om

o

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icô

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Su

pe

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o f

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da

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e c

on

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be

m c

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s, o

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e

dific

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o m

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e a

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lata

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m a

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ire

ita

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“se v

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um

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und

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ara

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s e

Va

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ge

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Po

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i fa

cili

da

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so

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nho

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Não

men

cio

na

Não

men

cio

na

6. M

ito

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s

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qu

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Foi re

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pe

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dita

se

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cu

ltu

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Po

ssu

i te

se

s s

ob

re

o s

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hoto

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o

ma

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en

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eis

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Pa

ra a

s f

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se

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nho

to e

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nho

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“sexto

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P

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or

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co

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ossu

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un

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nie

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o a

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lta

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e

ca

nho

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o

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de

se

r ca

nho

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Nota

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ca

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o

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Se

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o

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em

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a s

ua

vid

a.

G

osta

de

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nho

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dife

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imp

osta

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om

o

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icas, e

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“na

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is”

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o

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ue

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m q

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e

se

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ela

me

sm

a,

se

se

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rea

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Diz

qu

e n

asceu

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oré

m s

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co

nsid

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de

str

a.

Essa

dife

ren

ça f

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ort

an

te e

m s

ua

vid

a,

po

is a

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siv

e

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en

cia

ndo

no

cic

lo n

atu

ral d

e s

eu

de

sen

vo

lvim

en

to

81

ANEXO 3 – DEPOIMENTO BIANCA

Então Bianca...me conta um pouco sobre a sua vida...

Vamos lá. Eu tenho 22 anos, nasci em dezembro, dia 19. Sou a filha mais

velha. Tenho um irmão só, tem 20 anos. Ele tem DPAC que é Distúrbio no

Processamento Auditivo Central, isso já fez uma diferença... em relação à

criação. Minha família é católica, sempre estudei em escola católica, desde

eternamente, e trabalho na mesma escola que estudei.

Você é professora?

Sou professora. Do integral, 20 crianças de 5 anos mais ou menos. Em

escola católica com preceitos mesmo. De ter que rezar, enfim.

Tradicional?

Isso! Tudo certinho. Ainda... infelizmente. De freiras.

E você estudou nessa mesma escola que você trabalha?

Estudei desde a 1a série. Antes eu estudei numa escola que só tinha

Educação Infantil, que era menor. Era bem construtivista. Mesmo que

antigamente, quer dizer, quando eu tinha essa idade, não usassem muito

esse nome, tinha cavalo, tinha horta, tinha tudo mais que pende para o lado

construtivista. Foi uma criação legal. Achei que fez diferença. Eu caçava tatu-

bola, comia terra e nunca aconteceu nada, eu me machucava e estava tudo

bem.

Que legal! E no colégio religioso você sente que é diferente?

É. Agora melhorou, mas quando eu estudei, eu sentia que era diferente. Por

exemplo, amanhã, que é 7 de setembro, tinha que cantar o hino, hastear a

82

bandeira, toda aquela coisa que é mais burocrática mesmo. A gente não

entendia com aquela idade, e os meus alunos, que hoje a gente cantou o

hino, não entenderam nada o que estava acontecendo. É diferente, é

diferente. Mas foi bom porque fez diferença a criação religiosa nesse sentido.

Não pelo catolicismo, porque eu não ligo pra isso; mas em relação a ter fé.

Isso eu acho que faz diferença.

Disciplina...

É. Antes era mais. Nunca precisou levantar quando o professor chegasse.

Não era nada absurdo. A disciplina era maior em respeito, em relação ao

respeito às irmãs que são mais velhas. A gente tinha aula de religião muito

pendente ao catolicismo. Isso agora na minha idade me incomoda um pouco.

Eu acho que não deve ser assim. Agora já não chama mais ensino religioso,

como chamava, agora tem um outro nome que não sei qual é, mas é um

nome mais abrangente para poder estudar todas as religiões. Igual a gente

teve na faculdade.

E você comentou um pouco do seu irmão. Por ele ter DPAC isso mudou um

pouco a criação, pelo que você disse. Você quer falar um pouquinho sobre

isso?

Isso fez diferença no sentido, eu não lembro a maioria das coisas, mas

mesmo a minha mãe contando eu continuo não lembrando, óbvio, ele tem 1

ano e 8 meses de diferença, quando ele nasceu ele ficou 3 meses internado,

direto, sem saber o que era, enfim, e demorou muito tempo. Até hoje

ninguém sabe o que ele tinha, porque a DPAC foi uma consequência. Então

a criação foi diferente, porque eu sempre tive que me locomover muito com a

minha mãe por causa dele. Ele fez fono 8 anos. Foi bom em partes, porque

acabei conhecendo muitas coisas que não conheceria. Fono, por exemplo, é

uma coisa que nunca ia precisar pela minha condição, que acabei

conhecendo e achando muito legal. Eu até queria fazer fono, muito legal,

uma sala cheia de brinquedos. Sempre houve algumas necessidades de fato.

Eu sempre fui extremamente extrovertida e ele extremamente introvertido.

83

Isso pesava pouco, de eu sempre fazer mais e ele fazer menos. Nesse

sentido. Agora...agora com 20 anos, as coisas graças a Deus caminharam –

porque também parar não ia dar- mas ainda existe essa diferença, não de

criação, mas diferença de importância no sentido de necessidades que eu

não tive. Graças a Deus.

Da atenção...

É da atenção, de ter que ficar em cima. Eu nunca, nunca, nunca –mas isso

era de mim- precisei, nunca gostei de alguém fazendo lição perto de mim, ou

andando, ou cuidando da minha lição. E o meu irmão, se ninguém ficasse

cobrando, olhando agenda, ele não iria fazer lição. Ele odiava! Eu adorava

escola! Ele odiava escola! Isso é uma diferença que faz até hoje. Até o 3o

colegial minha mãe falava: tem prova, vai estudar, não vai estudar. E eu não

gostava. Sempre fui muito independente, fazia as coisas muito sozinha.

Agora as coisas melhoraram. Então tudo bem. [risos]

Você acha que o fato de você ter sempre gostado de escola contribuiu para a

sua escolha profissional?

Eu acho que sim! Eu acho que sim! Mas eu acho que o que pendeu também

foi que eu sempre gostei de escola, sempre tive muita facilidade, sempre fui

muito reforçada positivamente. Skinner total nesse sentido. Eu sempre fui

muito reforçada...Eu sou um ano adiantada exatamente, isso é um reforço

muito positivo. Agora eu percebo, mas antes não. Era um reforço que eu não

percebia, mas era um reforço. “Nossa, ela é um ano adiantada e é uma das

melhores alunas da sala”. Era um reforço: poxa, um ano adiantada. Agora eu

vejo que é difícil uma criança adiantada –eu tenho algumas crianças que

estão adiantadas, 5 meses, são adiantadas, isso faz diferença. É ruim em

alguns casos. Porque a maturidade é diferente. Para mim, graças a Deus,

deu tudo certo. Eu acho que contribuiu, mas acho que contribuiu também

porque eu sempre fui muito apegada com a escola que eu estudei, que é

onde eu trabalho. Extremamente apegada. Uma das coisas que minha mãe

sempre diz e que eu também acho é que essa escola, enfim com muitos

84

defeitos como todas as escolas, uma das maiores qualidades da escola, ela

gosta muito de formar um cidadão consciente no sentido de afeto, um ser

humano de fato. Então, por exemplo, fazer presente de dia das mães com um

enfoque. Se você não tem mãe, vai fazer para alguém; você tem que

comemorar, você tem que lidar com isso. Os amigos sempre foram eternos.

Até hoje, há 6 anos que eu saí, são amigos de sair todo final de semana, de

ligar. Porque o ambiente da escola é um ambiente, era muito familiar, e isso

pendeu. Porque o carinho que eu criei com a escola, com a instituição de fato

é muito grande. Tanto que o esforço que faço muitas vezes no trabalho,

percebo que é maior do que eu precisaria fazer, que eu faço pela escola,

pelos meus alunos, pelo carinho que eu sinto. Isso influenciou tanto a minha

parte educativa de criança, quanto a minha formação de adolescente, essas

coisas. E eu fiz magistério lá. Então começou desde o colegial. Desde os 14,

sei lá. Isso fez diferença.

E acabou seguindo carreira...

Assim, não é o que eu quero fazer para sempre. Acho que dar aula não. Eu

não me vejo numa sala de aula pra sempre. Acho que não tenho muita

paciência. Eu sou uma pessoa de pouca paciência de fato. Eu gosto das

crianças, tal, mas eu não me vejo pra sempre. Eu sempre quis fazer

Psicologia, sempre. Mas encarar 5 anos de faculdade agora...só de pensar o

que foram meus 4 anos. É punk. Mas eu queria. Tanto que eu fiz um curso de

neuro agora. As contribuições da Neurociência para o Fazer Docente, na

PUC. Eu sempre me encantei por essa parte biológica. Eu acho isso muito

legal, como funciona, onde, o que estimula, o que não estimula, enfim, o

mestrado que eu quero ou a pós, enfim, eu queria pendente mais a essa

parte comportamental e biológica. Como, por que, e o que desencadeia. Eu

acho isso interessante.

Bom, você é canhota...eu queria saber se isso influenciou, se você se lembra

de alguma história que viveu na escola relacionada ao canhotismo...seu

irmão tinha um atendimento especial pelo Distúrbio no Processamento

Auditivo central e você também teve alguma atenção especial por ser

85

canhota, ou isso passou desapercebido? Queria que você falasse um pouco

sobre isso...

Não. Isso foi, digamos, bem aceito. Tanto que histórias, graças a Deus,

histórias traumáticas, ou eventos traumáticos, ou histórias de “quando eu

tinha sei lá quantos anos”, não, não me recordo. Claro, eu tenho algumas

características que perpetuaram pelo canhotismo. Pelo contrário. Por

exemplo, até hoje eu pergunto pra minha mãe brincando...é engraçado eu

tenho muitos alunos canhotos. De uma turma de 20, tenho 5 alunos

canhotos. E é muito. Eu vejo a dificuldade de cortar com a mão esquerda, por

exemplo. E eu sei que existe tesoura de canhoto. É uma coisa que eu falo

para os pais, porque sei que eles vão sofrer, tadinhos. Eles não vão gostar de

cortar, porque vão achar difícil. E é uma coisa que...eu perguntei pra minha

mãe muitas vezes. Ela disse que nunca foi avisado pra ela que existia

tesoura de canhoto. Então ela falava que achava que a tesoura cortava nas

duas mãos. Enfim, eu só sei cortar com a mão direita. A minha mão

proeminente de cortar é a direita. Se me der uma tesoura de canhoto mesmo

na mão esquerda, vou cortar com menos habilidade, menos velocidade que

com a direita. Arremessar e chutar, mais força com a direita. E a única coisa

que ficou de criança...isso a minha mãe que me diz, porque eu não lembro: a

minha avó paterna, quando eu era criança ela trocava o lápis da minha mão,

um pouco. Não obrigava nem nada, mas ela trocava. Estava sempre na

esquerda e ela passava pra direita. Até que uma hora ela entendeu que não

precisa mais trocar. Meu pai comentava que era um fato engraçado, porque

até ele mesmo falava, que o meu tio, filho dela, é canhoto. Meu pai falava:

“você não deixou...o seu filho não é canhoto?” [ela estava] meio que pagando

pra ver. Mas uma hora ela entendeu e desistiu de ficar trocando. Mas isso eu

não me lembro. Não me lembro de bronca...porque já escutei muitas histórias

de antigamente de amarrar a mão, umas coisas assim. Nada disso. As únicas

coisas pontuais que existiam era isso. Existia sim uma preguiça de

educadores. Nem tanto na escola, mas por exemplo, eu fazia aula de

esportes. Tinha aula de tênis. O professor tinha preguiça, explicitamente, de

me ensinar o tênis com a mão esquerda. Porque é diferente. Do jeito que

você segura...era meio que: “olha o direito e troca pelo esquerdo”. Vai você

86

ai, vai aprendendo aí. Mas nunca quis virar uma jogadora, nunca me

incomodou de eu trocar de mão...eu olhava como fazia, via como ficava, fazia

ao contrário. Mas acho que o pior evento que aconteceu de ser canhota foi

grande, foi no colegial, quando eu fui prestar vestibular, muitas vezes isso

aconteceu, tanto que eu precisei ser mais radical. Foi uma das vezes que fui

prestar, ainda de treineira, na UNICAMP, que era dissertativa ainda, que eu

entrei e tinha vergonha de causar na sala, de falar: “ai moço, por favor, uma

cadeira de canhoto”. Aí muda de lugar, muda aqui, ali. Enfim, como eu nunca

liguei de escrever na carteira que tinha o braço na direita, eu ficava um pouco

torta, mas não sabia quanto ia me desgastar na UNICAMP, nunca tinha feito.

Nossa! No final......A culpa foi minha... Eu que não quis pedir a troca de

carteira por vergonha mesmo. Nossa, eu vou causar! Era isso que eu

pensava! Vou mudar tudo. Mas depois da dor....enfim, eu parei a prova,

porque não conseguia mais escrever; 12 questões com a, b, c, dissertativas,

torta daquele jeito. Chegou uma hora que não dava mesmo. A partir daquilo,

e depois de ter levado uma bronca da minha mãe também, quando eu contei,

ela falou: “Bianca, do mesmo jeito que um cadeirante vai pedir um espaço no

elevador para subir, você vai pedir uma cadeira pra trocar. Você tem

totalmente o direito”. Depois disso eu ficava na porta, mostrava o RG, que eu

olhava...já pedia uma carteira de canhoto. Eu não deixava a prova começar

enquanto não me dessem uma cadeira de canhoto. Eu precisava estar bem

para desenvolver bem o vestibular. Então isso foi o pior, que eu percebi,

nossa que besta que eu fui. Não pedi e me estropiei inteira. Depois disso eu

não; literalmente aprendi a lição.

Eu gosto de ser canhota. Eu acho isso legal. E eu acho isso legal porque, por

exemplo, eu tenho uma amiga de eternas que acha lindo. Ela fala: “eu acho

lindo ser canhoto”. Eu falo: gente! Eu já levei bronca na escola, isso eu

lembro. Porque canhoto quando escreve passa em cima do que escreveu, e

mancha o papel. E eu sempre gostei de caneta que tinha muita tinta. Era uma

caneta que eu gostava muito que era muito grossa, ela demorava pra secar.

Não era tipo Bic. E eu lembro que o meu caderno ficou todo marcadinho,

azulzinho, as linhas, todo marcadinho azulzinho, e eu levava bronca. Tinha

que trocar de caneta. Enfim, eles estavam certos porque eu sujava tudo,

sujava a prova, sujava tudo. Não ficava ilegível, mas sujava. Então eu tive

87

que trocar várias vezes porque eu escrevia assim, e não tinha muita culpa.

Isso eu lembro que me incomodava, porque eu não tinha culpa: está sujando,

mas vou fazer o quê? Eu escrevo com essa mão.

Acho que só. Eu tenho muitas habilidades com a mão direita, muitas. Então

consigo escrever com a mão direita numa boa, não com a mesma

velocidade, mas consigo escrever tranquilo. Chuto melhor com a perna

direita, e corto muito melhor com a mão direita. Eu acho que isso eu fui

condicionada a, inconscientemente, involuntariamente, das pessoas também.

A tesoura, como eu vi que funcionava melhor, porque com a esquerda não

cortava nada, eu me adaptei à tesoura com aquela mão. Tudo bem! Em

arremessos, em jogos, aulas de educação física, arremessar na cesta: tinha

que dar 3 passadas com a perna ao contrário do braço. Como eu ia...? Eu

não ficava trocando. Fazia como todo mundo fazia, que era mais fácil, pra

não errar. Era aquela confusão com que perna que começa que achava

melhor ir pelo jeito que ele estava explicando, do que ter que recordar –tanto

eu, quanto pra ele professor: “não professor, eu sou canhota. Com que perna

eu começo?” Achava isso tão ruim mesmo. Ai, não precisa. Também foi um

pouco culpa minha. Eu quis me adaptar desse jeito e me adaptei, me adaptei

bem, acredito. Não sofro de fazer as coisas com a direita. Pelo contrário.

Acho isso bom. Se eu canso muito com a esquerda, a direita está ali, beleza.

Isso me ajuda muito pra fazer a unha. Consigo fazer a unha com as duas

mãos perfeitamente. Per-fei-ta-men-te! Eu consigo! Isso eu acho o máximo!

[risos]

Pelo que entendi, alguns profissionais não tiveram cuidado de olhar pra você

dessa outra maneira.

Não! Não! Nunca me tacharam, nunca foi escancarado: “problema seu se é

canhota”. Nunca escutei isso. Mas era aquela coisa: aula de tênis, já era

difícil ensinar as crianças, com uns 10 anos, onde segurava, que o lado que

rege você, no caso do destro é a direita, e que se a bola vem na esquerda

pra você, você segura com a mão esquerda embaixo. Comigo tinha que ser

tudo ao contrário. Existia a preguiça de fato. Nunca me trataram mal, mas

existia aquela preguiça de: “Bianca, é só trocar”. “Tá, é só trocar”. Eles

88

subentendiam que eu tinha entendido e que eu ia fazer, e pronto, acabou.

Não teve aquela atenção. Segura aqui, vou te explicar na prática. Não! Um

boca-a-boca, literalmente uma explicação e se vira aí. E o da tesoura é uma

coisa que me marca, porque eu não lembro de ter dificuldades com a tesoura

porque eu arrumei um jeito de me entender. Mas é uma coisa que eu vejo

que é uma projeção minha nos meus alunos: “pô, eles estão sofrendo”, a

tesoura come, come o papel e não corta. Por que ninguém avisa pra essa

mãe que tem uma tesoura de canhoto. Porque isso vai mudar a vida deles,

eu sei que vai. Porque eu só sei cortar com a mão direita. Se você me der

uma tesoura na mão esquerda eu não vou cortar maravilhosamente. Com a

direita é perfeito. Pô não era pra ser assim. Era pra eu cortar bem com a

esquerda, porque eu sou canhota. E não é assim, porque foi de fato um

desleixo. “Tá, está se entendendo. Está cortando”. E foi empurrando com a

barriga e foi. Acabou! E isso é uma coisa que, graças a Deus, como eu

projeto muito nos meus alunos, é a primeira coisa que eu vejo. Eu faço de

propósito, dou uma tesoura na mão deles pra ver como está. Se eles estão

cortando, como eles estão cortando. Porque nenhum dos meus alunos

chegou com uma tesoura de canhoto. Nenhum foi instruído. Então eu falo

para os pais: tem uma tesoura de canhoto, compra, vai mudar a vida dele; vai

fazer a diferença.

E eles compram?

Tem alguns que os pais falam: ai, tá bom, aquela coisa. Não que eles não

tenham me escutado, mas porque eles acham que é frescura. A maioria, os

pais são destros, que é a maioria, ele acha que está bacana. Alguns pais que

são mais atentos, e que percebem em casa algumas dificuldades, são bem

abertos. Alguns vêm até perguntar. Por exemplo, eu sempre quis aprender a

fazer tricô com a minha mãe, fazer cachecol. E eu aprendi a fazer tricô como

destro, porque a minha mãe não sabia me ensinar como canhoto. Se algum

canhoto me pedir pra explicar vou explicar como destro. Tadinha, minha mãe

trocava as mãos, se embaralhava toda, mas não conseguia explicar. Essa é

uma coisa que eu vejo. O canhoto se adapta ao destro. Claro, pelo destro ser

maioria. O destro nunca, nunca não, mas muitas vezes não se dá o trabalho

89

de se preocupar com. Uma vez estava com um problema, porque a minha

mãe comprou uma espátula pra bolo, linda, pagou um milhão na espátula,

que não sei o que, e a espátula era pra destro. Ela tinha serrinha, só que só

cortava pra direita. E eu fui cortar o meu bolo de aniversário e não cortava.

Eu falei: não! É um absurdo isso! E eu mandei um e-mail pra empresa,

falando: e aí, o que eu faço? Me enrolaram, me enrolaram, me enrolaram...e

aí? Eu não estava pedindo uma entrevista, o meu dinheiro de volta, e só

estava contanto pra eles que isso poderia acontecer, e que era errado.

Coloca a serra dos dois lados, pronto! Olha que difícil! Me enrolaram, me

enrolaram, me enrolaram, e tá bom!

Eu vejo que o canhoto não “luta” muito, [entre aspas] porque não é uma

causa nobre. Ele não vai muito atrás das coisas. Ele se adapta e fica por isso

mesmo, muitas vezes. E foi a primeira vez. Eu fiz isso mais pra ver o que eles

iam me responder. Pô, eu percebi! E me enrolaram: “ah, é verdade, mil

desculpas”, e acabou. Mil desculpas, e ficou nisso.

E abridor de lata?

Eu abro com a esquerda e com a direita também eu abro.

Aquele clássico?

É. Com a esquerda e com a direita.

Eu não consigo com a esquerda. Eu abro com a direita.

Com a esquerda e com a direita. Mas nisso eu sou muito orgulhosa. No

sentido de orgulho ferido mesmo. Pô, eu sou canhota, isso não é anomalia

nenhuma. Eu vou tentar, vou conseguir e acabou! Eu sou persistente demais

até. Até orgulho meio cabeça dura. Algumas coisas, claro, não vou ficar me

matando pra cortar com a mão esquerda, que eu me adapto com a direita. É

um detalhe muito funcional. Abrir uma lata. Exatamente. Eu vou tentar. Claro,

não me matei para conseguir, mas consigo abrir com as duas mãos

tranquilamente. Consigo. Mas é difícil. As pessoas não conseguiram me

90

ensinar. Me ensinaram com a mão direita, e vi o processo e passei pra

esquerda. Então o ensinar é diferente, para as pessoas destras.

Principalmente vejo pela minha mãe que era a que mais tentava me ensinar.

Ela me ensinou com a direita a abrir lata, eu vi o processo e passei pra

esquerda. Ela não conseguia, se encasquilhava toda, era um caos. Ai eu falei

pra ela que era melhor desistir. Que eu me entendia daquele jeito. [risos]

Você se adaptou muito. Você faz muita coisa com a outra mão por adaptação

própria.

Faço. Faço porque eu gosto das coisas rápido. Então até eu tentar....está

funcionando com a direita? Faz com a direita. Eu sei que com a esquerda eu

vou escrever. Eu sei que o que me rege é o lado esquerdo; que eu sou

canhota enfim. Mas já que eu preciso pra ontem essas coisas, vai com a

direita que está indo. Algumas coisas, por questão de orgulho mesmo, vou ter

que conseguir com a esquerda. Se existe e funciona um abridor, eu vou

conseguir. O abridor tradicional eu consigo, mas tem um abridor lá todo

tecnológico que você prende na lata...não...esse só com a direita. Esse só vai

com a direita.

Sendo que com esse teoricamente a gente poderia fazer...

Exatamente. Eu não consigo. Esse eu não me matei de tentar igual ao outro,

mas o tempo que tentei, não consegui nem encaixar no negócio. Aí eu desisti

e abri com a direita. Porque eu precisava abrir, entendeu? Como eu

precisava rápido eu não ia: ah, passar a tarde: vamos tentar abrir com a mão

esquerda! Não foi o objetivo de vida. Esse eu não consigo, por exemplo.

Esse não dá pra fazer.

Achei incrível essa sua adaptação. A imitação e o ambiente influenciaram

você.

Sim.

91

A gente não percebe isso com todo mundo. A influência do ambiente foi

absurda na sua adaptação, maneira de conduzir o canhotismo. Achei isso

muito legal.

Minha mãe sempre deu força. Você é canhota. Então é canhota e acabou.

Não tem que ser, ficar fazendo as outras coisas. Eu escrevia mal com a mão

esquerda; mal no sentido de garrancho. Uma letra horrível, mas, claro, tinha

7 anos, enfim. E é uma coisa que os professores pegavam no meu pé, muito.

E a minha mãe ficava incomodada com aquilo. Nenhum dos professores

falou: é, porque ela é canhota. É difícil você pegar na mão de um canhoto

para ajudar ele a escrever. É uma coisa que a minha mãe sempre falou: tá,

não consegue...minha mãe comprava adaptador para encaixar dedo; tudo a

minha mãe buscou para que eu ficasse o mais bem sucedida possível,

porque eu não tinha culpa. Na verdade não é um crime, enfim essas coisas.

Nisso minha mãe super me apoiou. No sentido de beleza, você é canhota,

vai...não tem problema nenhum. Qual é o problema? Porque eu já escutei

muitas vezes, até hoje eu escuto, estou escrevendo, alguém meio conhecido,

namorado de alguém, enfim: “nossa, você é canhota?”. Como se isso

fosse...sei lá...”nossa, você tem olho verde?”. Eu falo: sou canhota [risos]! “É

que é estranho ver alguém escrevendo com essa mão; parece que está

errado”. Já escutei isso várias vezes. É, eu sou canhota. Eu só falo isso. É, tá

bom, eu sou canhota[risos]. Basta por aí.

E você gosta de ser canhota?

Eu gosto de ser canhota. Eu acho isso legal. Sei lá, eu gosto porque eu acho

que é um diferencial. Eu gosto de ser canhota. Antes eu não gostava tanto

nessas situações de vestibular, enfim, porque eu não queria causar, gerar

problema. Mas no geral eu gosto muito de ser canhota. Acho isso legal. O

que me incomoda de ser canhota, uma coisa que eu acho engraçado: se eu

sento com o meu namorado para jantar, tenho que sentar do lado esquerdo

dele. Porque se eu sentar do lado direito dele, a gente se tromba o jantar

inteiro. E é um caos. E eu sempre escuto assim: “você que é estranha“. É

uma brincadeira. A culpa é minha? Como se isso fosse um crime, como eu

92

falei. Inconscientemente eu já estou condicionada a isso. Por exemplo, eu

sou a mão para ele, sempre ele estando do meu lado esquerdo, e eu sempre

do lado direito dele. Que é o único momento que a gente “junta” as mãos que

a gente usa. Porque o resto, tudo eu faço do lado esquerdo dele. Para comer

eu tenho que sentar do lado direito dele. Porque se não a gente se tromba,

eu trombo. Não é só com ele. É uma confusão. Isso eu percebia. Escuto

comentários até hoje. Uma vez eu fui na balada de relógio e o relógio fica na

mão ao contrário do destro. Lembro que um menino olhou e falou: “nossa,

você é canhota, né?”. Levei o maior susto. Gente, não estou escrevendo, não

estou fazendo nada. Ele disse: “é porque seu relógio está na mão contrária”.

Falei: Nossa Senhora, que medo. Falei, é eu sou canhota! [risos]. Isso eu

percebo, alguns detalhes de sentar à mesa, de jantar, que colide. Aí, tá bom,

encostei aqui. Ou, por exemplo, uma coisa que aconteceu; agora que eu

lembrei! Quando fui fazer a bendita da coisa para dirigir, lá, o exame

psicotécnico, aquelas baboseiras, enfim, faz pauzinho, enfim. Entrei numa

sala que tinham 6 carteiras, as 6 eram de destro. Falei: tudo bem, vou pedir

uma de canhoto. Não tinha uma de canhoto. Moço, como assim, você quer

que eu faça pauzinhos retos em uma carteira de destro? “Ahh, isso eu vou

anotar aqui. Vou anotar essa observação”. E aí eu fiquei pensando...nem vou

arrumar encrenca. Fiz os pauzinhos na mesa de destro, coloquei o rabo no

cavalo, todas aquelas histórias, na mesa de destro. O lugar que está vendo

se eu tenho condições de dirigir, psicotécnico, que tem um nome Nossa

Senhora, não tinha uma cadeira de canhoto para escrever. Pauzinho reto. Aí

fiquei pensando: depois bate o carro, acontece essas coisas, ninguém sabe

por quê. Mas tudo bem.

Ainda não é bem adaptado. Talvez eles nem tenham se atentado a isso.

É engraçado. Eles não se atentam, e o canhoto se atenta duplamente, eu

acho. Porque o canhoto vê: eu sou canhoto, mas o destro vai fazer desse

jeito. Então, por exemplo, agora que você falou eu lembrei: quando a gente

era criança falavam: vamos fazer o sinal da cruz. Que mão usa para fazer o

sinal da cruz? “A mão que escreve”. Não é a mão que escreve! Eu lembro

que eu falava: é a mão que não escreve. Eu tinha mil associações, porque eu

93

tinha que fazer o lado oposto sempre. Que lado que é? “Ah, é o da mão que

escreve”. Não é! Escolhe outro referencial, outro ponto de referência. Está

todo mundo perto de uma janela: “ah, é do lado da janela”. Porque daí eu vou

entender. Lembro que eu fazia a mão que escreve e tinha que trocar sempre.

Tá, a mão que não escreve. Tá, tá bom. Isso é uma coisa que exatamente,

eles....como é a palavra?

Universalizam?

É mais ou menos isso. Eles querem que o canhoto se adapte porque ele é

minoria, e o destro está vivendo feliz. O que na verdade não deveria

acontecer. É lógico, o destro não precisa fazer....Mas precisa ter essas coisas

para facilitar. Porque acaba dificultando, na verdade. É um problema, uma

coisa desnecessária. Quer escrever? Por isso eu sou contra –não por ser

canhota, porque eu acho errado mesmo- uma carteira que só tem um pedaço

do braço. A carteira de escola quadradona, retangular, ela permite que você

sente direito, se apoie, escreva com a mão que você bem entender, que você

faça o que for preciso. Do que aquelas carteiras...Por exemplo, na faculdade.

Cada sala tinha 1 carteira de canhoto. Era um tal de transportar carteiras de

canhoto das outras salas, ó...você precisa fazer o quê? Deixar por escrito: ó,

nessa sala existem 3 canhotos. Poxa! Não! Acho isso tão desnecessário. É

um trabalho a mais. Deixa assim...O número é menor mas ele existe.

Em 20 alunos eu ter 5 [canhotos] é um absurdo. É um absurdo no bom

sentido. São muitas crianças, de 20. Sempre que eu estudei, por muitos anos

eu era a única canhota. Então eu acho muito legal. Eu vejo, sabe quando eu

vou ajudá-los a escrever...porque eu tenho que pegar ao contrário eles. Eu

sento de frente para eles, é engraçado eu pego com a mão direita: “nossa,

fazia tempo que eu não fazia isso”. Porque com os destros eu consigo pegar

com a mão esquerda, porque eu sento de frente, estou ao contrário. É

engraçado; eu falo: canhoto, canhoto. Eu gosto disso. Eu vejo que...é

engraçado que eles falam: “eu sou canhoto Tia”. E eu reforço isso neles. É

você é canhoto. E a Tia também é canhota. Eu falo num tom positivo para

que eles não se sintam estranhos, diferentes. Porque eu sei que muitas

vezes isso acontece. Aí, todo mundo faz com essa mão, porque eu tenho que

94

fazer com essa? O chute mais forte: as crianças, maioria, chuta mais forte

com a direita, e vai lá o canhoto chutar com a esquerda, eu já escutei isso

dos meus alunos: “você está chutando errado”. Está chutando errado? Está

chutando com a perna que ele consegue chutar, ué. Isso eu reforço muito

positivamente os meus alunos, claro, não para eles saírem marchando a

favor, mas para que eles se entendam, e que sejam felizes sendo canhotos.

Que não tenham problema nenhum.

Você falou que seu tio é canhoto...

Na minha família tem muitos. Muitos. Do lado do meu pai tem só o meu tio,

irmão do meu pai. E meu pai diz que –não sei até que ponto é verdade ou

não- que a minha avó era para ser canhota. Essa avó que trocava o lápis da

minha mão. O avô dele, meu biso, naquela época achava toda aquela

história, que era pecado, enfim, e fez a minha avó ser destra, e ela é destra e

acabou. Ela, eu já percebi, faz muitas coisas com a esquerda. Eu até acredito

que ela tenha não só a facilidade, mas a propensão para o canhotismo.

Porque eu sei que você já nasce predestinado a... Mas que foi mudado ali,

mas que ela se entende com o esquerdo. Por exemplo, pelo meu lado

materno eu sou canhota, tenho um primo canhoto, tenho mais um tio

canhoto, e mais uma prima canhota. Na minha família tem bastante gente.

Na minha família razoavelmente tem bastante gente. Tem muitos. São 14

primos, de 14 tem 3, é um bom número. É igual os meus 5 para 20; tem

bastante. E na família também está tudo beleza, tudo lindo. Mas até a minha

família às vezes, quando está todo mundo, eu olho meus primos: “nossa você

é canhota”; “você é canhota?”. Gente, eu sou da sua família, e eu sempre fui

canhota. Não mudei aqui, agora [risos]. É que você não percebeu. Engraçado

que é uma coisa que chama atenção das pessoas.

Você não acha que chama mais a nossa atenção, de quem é canhoto, do

que deles?

Eu percebo estritamente quem é canhoto. Por exemplo, se eu estou no

restaurante e o garçom vem me atender, e está com a comanda na mão; isso

95

já aconteceu várias vezes, eu falo para o meu namorado: é canhoto! Porque

é intrínseco em mim. Ele fala: “tá”. Eu faço um comentário avulso. Mas eu

percebo estritamente quem é canhoto, quem não. Mas, eu percebo que as

outras pessoas percebem alguém que tem algum vínculo, que conhece, não

um desconhecido como eu. Eu vejo num desconhecido. Eles vêm sei lá, em

alguém da família, conhecido. Porque, sei lá, está na cara deles, escrevendo,

fazendo qualquer coisa. Eu enxergo em qualquer um. Enxergo se é canhoto,

porque isso, sei lá, é o detalhe que levo em conta. É inconsciente. Não sei

por que, mas eu levo. Em tudo eu vejo. Esses dias uma amiga pediu para,

ela gostava de um menino, cadê a vida do menino? Ela não tem Facebook,

então eu fui caçar a vida do menino. Em 30 minutos eu sabia da vida do

menino E que ele era canhoto. Tinha uma foto que ele estava com um

caderno e ela falou: “eu nunca ia perceber isso”. Mas eu percebi! [risos]. Eu

olho isso. O do relógio eu não sei que mão que é, mas se está com uma

caneta na mão eu vou perceber, e vou falar que é canhoto. Eu percebo isso.

De fato.

Eu percebo muito. Têm os famosos mitos: o mito antigo que é o do mal,

ligado à bruxaria. E tem o mito novo, que o canhoto é mais inteligente, que

tem a letra mais bonita. A gente escuta isso com frequência. O que você

acha disso?

Acho uma besteira gigante! [risos] Letra bonita? Faz caderno de caligrafia a

vida inteira que a sua letra vai ficar bonita com o pé, com a mão, enfim [risos].

Na verdade, eu acho que esses mitos novos chegaram para encobertar os

velhos. No sentido de: “não gente, a gente não acha mais que é pecado, a

gente acha até que vocês são mais inteligentes”. Parece história para

criança, sabe? Para desfocar a atenção. Como foi muito negativo, estão

tentando colocar na balança para dar uma equilibrada. Não! Nada de mitos,

nada dessas coisas! O que eu acho mágico de ser canhoto é que meu

cérebro é ao contrário; as coisas funcionam ao contrário. Então, por exemplo,

na aula de neuro que a gente estava vendo o cérebro, a gente pegou no

cérebro, a professora estava explicando o que mandava, aquela coisa do

direito, esquerdo, e ela contando um caso de um homem que a lança entrou

96

na cabeça... ela falou que ele mudou de comportamento... ela contou várias

histórias dessas, acredite se quiser, quase isso, e aí eu joguei a pergunta: “e

se ele fosse canhoto? O que teria afetado?” E ela me olhou com uma cara:

ninguém me fez essa pergunta. E a pergunta que ela me fez, retrucando a

minha pergunta –que ela não respondeu- foi: “você é canhota, né?” Eu ri. Ela

falou: “é claro. Um destro nunca faria essa pergunta”. Ela ainda brincou. Que

ela é neuro, super legal. Eu falei: sou canhota, isso me chama atenção. O

que ia acontecer se a lança... ela explicou o negócio da lança, que entra, que

sai. Eu indaguei: quer dizer que se entrar, vai mudar ao contrário? Assim, é

um pouco mais fundo que a mão que você escreve. Claro, nossa, rezo para

que a lança entre ao contrário. Nada dessas histórias. Mas é mais fundo.

Acho isso legal. Não é só uma característica como: seu cabelo é castanho.

Poxa, tem uma parte biológica aí. É uma parte que me instiga. Eu nasci

“diferente” que a maioria, e isso muda mesmo de fato. E eu acho isso legal.

Tem interesse em estudar mais?

Ahh, Pri. Acho que teria mais interesse se não fosse tão bem resolvida na

verdade. Como em muitas outras coisas... se eu tivesse uma curiosidade

extrema, extrema, extrema. Mas eu não tenho. Acho que a maioria das

minhas dúvidas mais existenciais foram sanadas. Depois do curso de neuro

eu perguntei tudo o que eu podia, e não podia, e muitas coisas eu perguntei

sobre o canhoto mesmo. Porque ela começou a falar que atingia, não sei o

quê lá. Que mexia na ínsula ou no lóbulo frontal, não sei o que, e eu sempre

indagava se com o canhoto isso ia ser diferente, pela parte da aprendizagem.

Ela foi sanando as minhas dúvidas, em relação às minhas perguntas, depois

que a gente discutiu esse negócio de ser “ao contrário”, inverso. Isso me

extasiou, por enquanto. É uma coisa que posso falar: “sou canhota”.

Eu gosto. Eu não gosto tanto do meu nome como eu gosto de ser canhota.

[risos] Eu não gosto muito do meu nome, mas gosto de ser canhota. [risos] É

diferente. Melhor que Charlote, que o meu pai queria colocar. Rezemos pelo

Bianca. [risos]. Mas eu me orgulho. Não me orgulho do tipo: uhu! Vamos

fazer uma passeata. Eu acho legal. Ser diferente. Eu gosto disso.

97

E esse ano tive uma experiência muito especial, pois tenho uma criança de

inclusão. Tem 8 anos, está no primeiro ano, adora assistir a Casa do Mickey,

enfim a mentalidade dela é super regredida, e ninguém tem o diagnóstico

dela. Que é o que me mata. Com um mês de idade, segundo... ela é gêmea

de uma irmã “perfeita”, tem todas essas questões, e ela não tem a escolha da

mão ainda, porque ela, com 1 mês de idade, ela teve meningite. Ela nasceu

“perfeita” igual a outra irmã, então foi uma coisa bem complicada. Ela entrou

na escola esse ano, enfim, ficou sequela na fala, visão, na coordenação

motora, ficou muita sequela, ela passa o tempo todo com a mãozinha

balançando, o tempo todo. E eu me apeguei muito a ela, e me apeguei mais

ainda porque eu queria descobrir, como eu sei que existe, se ela é canhota

ou destra. Eu sei que tiveram muitos problemas biológicos pela parte

cerebral, que isso também pode ser afetado, mas isso é uma coisa que me

instiga. Porque querem que ela escreva, mas ela troca muito de mão como

criança que ainda não está acostumada, muito pequenininha. Como eu vou

ensiná-la, que a letra do nome dela é M se eu não sei que mão ela usa? Se

eu coloco na mão direita ela troca para a esquerda e, às vezes, se coloca na

esquerda, ela troca. Isso me incomoda, porque os pais querem que ela seja

alfabetizada, no tempo dela, só que nunca perceberam, ligaram para isso. E

tem que ligar na minha cabeça. Pô, claro! Você quer que ela seja

alfabetizada, que aprenda escrever as letras pelo menos, tem que ver a mão

que ela tem facilidade, porque ela já tem tantas dificuldades. E nunca ligaram

muito para isso, sabe? Ela é uma criança que me instiga. Eu sento, eu olho,

eu rodopio, eu faço o que precisa, dou papel pra amassar, para ver

coordenação, motricidade fina, ver se alguma coisa sai dali. Olha, é essa

mão, aquela mão. E eu não cheguei a uma conclusão ainda. Ela está comigo

há quase um ano. Ela entrou em fevereiro. Ela me instiga nesse sentido,

porque eu acho que não tem como explicar a fazer o M. Vou ficar ensinando

tudo com as duas mãos? Poxa, já tem tantas dificuldades. Vou ficar falando:

o M com essa mão é assim, o M com aquela é assim. Poxa, não dá certo. Eu

queria descobrir primeiro que lado é ali, para falar: poxa, ela tem facilidade

por esse lado, então vamos por esse lado. Amassar bolinha por exemplo, ela

não consegue. A maioria dos movimentos de motricidade fina ela não

consegue. A mãozinha não para. E a visão, enfim, tem muitas questões

98

envolvidas. E é uma coisa que eu queria descobrir. Muito. Porque é o que eu

falei para os pais: tudo bem que vocês querem que ela se alfabetize, ela

escreve o nome com muita dificuldade, mas cada hora é com uma mão. É

totalmente regido por mim. Eu não pego na mão, mas falo: coloca o giz no

papel, sobe, desce, sobe, desce. Ela mais ou menos sabe o movimento do

M. Eu narro. Sobe, desce. Por exemplo, o E do nome dela. Faz um tracinho,

agora vem perto da Tia Bianca, eu fico no lugar para ela...ela não tem noção

que o E vai ter os 3 pauzinhos para direita. Ela não tem essa noção. Para

esse lado...não tem! Claro que não vai aprender as letras, se ela nem sabe

com que mão ela vai escrever. Isso é uma coisa que me incomoda. Graças a

Deus ela faz todos os tratamentos possíveis de terapia ocupacional,

psicopedagoga, tem muitos requisitos para uma melhora, mas ninguém se

prendeu a isso. Li todos os relatórios, mas nenhum fala sobre ser destra ou

canhota. Pode ser que alguma coisa tenha alterado no cérebro que...porque

ela não tem um diagnóstico. Ela teve com um mês meningite, acabou, nunca

mais nada. E isso é uma coisa que me instiga. E eu sei que me instiga

porque eu sou canhota. Se eu fosse destra, talvez não apreenderia. E ela é o

meu xodó. Ela é tão fofa. Eu gosto dela!

Novos olhares sempre contribuem muito...

Eu acho que todo mundo se descobrisse a sua lateralidade ia ajudar. A gente

não sabe o que aconteceu. Faz ressonância, nada. A gente não sabe o que

desencadeou. Que nem, por exemplo...Os pais e os médicos me disseram:

tudo nela é uma surpresa. Não sabiam se ela ia andar e falar. Então ela falar:

nossa! Ela comer sozinha...tudo é uma surpresa. Ela almoça comigo, porque

fica no integral. Tem dia que ela almoça com uma mão, tem dia que almoça

com a outra. É engraçado, que os pais querem que ela seja alfabetizada,

graças a Deus que no tempo dela, mas ao mesmo tempo existe essa

cobrança. E é engraçado, tudo bem, eles cobram mas tem que entender o

que estão cobrando. Nas condições. Calma, tudo bem. Claro que ela tem que

ser alfabetizada. Se tiver que ser aos 15 anos os pais vão falar, a gente vai

esperar; agora se o pai falar: “ano que vem”. Não vai rolar. Ela tem uma

coordenação que eu acho legal. Ela anda no banco sueco. O que eu acho

99

legal que o que atrapalha ela andar no banco sueco não é a coordenação, é

a visão. O que eu já acho o máximo. A minha preocupação é a coordenação.

Ela pula com os dois pés, com um pé atrás do outro. Graças a Deus. O

problema é que tudo envolve essa parte da coordenação.

[pausa]

Quer falar mais alguma coisa? Que você se lembre?

Não Pri. Eu fui te contando....

Foi uma surpresa. Gostei! Queria que você finalizasse com uma frase. Isso

não estava no script mas eu quero. [risos] É. Vou te dar o comecinho. [risos]

Ser canhota é...

Que difícil. Posso pensar um pouquinho? [risos]

[pausa]

Vou ter que resumir? Não sei.

Não...da forma que você quiser. O que vier à sua cabeça.

Ser canhota para mim é uma questão de orgulho, principalmente por ser

minoria, ter me dado tão bem com isso, e ter conseguido me adaptar tanto

para o lado que é minoria quanto maioria. Acho que é isso. Sou feliz sendo

canhota. [risos]

100

ANEXO 4 – DEPOIMENTO CAROLINA

Gostaria que você me contasse um pouquinho sobre a sua vida...

Bom, meu nome é Carolina, tenho 34 anos, sou casada, há 2 anos, estou

grávida de 15 semanas de uma menina que vai se chamar Sabrina, trabalho,

sou radiologista. Trabalho no Hospital A e no Hospital B. Faço ultrassom e

tomografia. E amo o que eu faço de paixão. Faria tudo de novo se

precisasse. Desde pequenininha eu já sabia que queria ser médica. Meu pai

é médico e eu sempre me espelhei nele. E eu nunca quis ser outra coisa na

vida. Sempre quis ser médica. E desde pequenininha ia para o hospital com

ele. Sabia que ia ser. Prestei medicina, entrei. Virei radiologista totalmente

por acaso, porque eu nunca tinha pensado em ser radiologista. Tive uma

chance e amei. Amo de paixão. Trabalho com o maior amor do mundo. Nasci

pra fazer isso. Nasci pra ser médica.

Estudei quando era mais nova no Escola X4 que era um colégio bem liberal.

Depois, fui para o Escola Y5 que era um colégio totalmente oposto. Mas eu

gostei muito dos dois. De lá fui pra faculdade. Esquema totalmente diferente.

Tive várias amizades. Da Escola X são amigos até hoje, da Escola Y

também. Muito diferente. Na Escola Y tudo certinho, e na Escola X tudo

bagunçado, mais tranquilo, mais formação de pessoas.

Na Escola Y é tudo estudo, estudo, estudo. Mas conheci o meu marido lá. Ele

era da minha sala. A gente fez o mesmo colégio, o mesmo cursinho e a

mesma faculdade tudo sem querer. Fomos entrando no mesmo lugar.

Começamos a namorar só no fim da faculdade. Ele é otorrino. Era meu

amigo, sentava do meu lado. Na Escola Y eram cadeirinhas de dois. A gente

era super amigo mas não tinha nada. Só na faculdade a gente começou a

namorar. No final.

E como era lá na Escola X? Me fala...

4 Escola para as camadas média- alta que até pouco tempo ia somente até os Anos Finais do Ensino Fundamental, de Pedagogia Liberal 5 Escola para as camadas média- alta de Ensino Tradicional

101

Minha mãe fala que quando eu era pequena, era muito tímida. Não sei se é

por que ela me mimou muito. Ela ia me colocar na Escola D, mas achou que

era um colégio muito grande e que eu ia ficar muito reprimida pelo contexto

da escola. Ai me colocou lá (Escola X). Tinha um primo que estudava lá.

Achou que ia me soltar mais. Fez o efeito total que ela queria. Agora, onde

ela me colocar eu fico bem. Era um colégio menor, menos gente. Era

completamente diferente dos outros colégios. A gente via que era uma

educação diferente. Muito voltada para o ser humano, formar pessoas boas.

Totalmente voltado pra isso. Era ótimo, bem tranquilo. Não tinha grandes

dificuldade de estudo. É que eu sempre estudei, mas era tranquilo. Fazia

muito esporte na escola. Era bom demais. Criança, né? Uma delícia. Podia

fazer tudo. E era tudo diferente. Lembro de um negócio de base, que nenhum

lugar tinha. Só lá. Chamava “Base”. Eram uns quadrados, como se fosse

uma tabuada do 2, do 10. Eram quadradinhos com umas divisões, não

lembro como a gente aprendia. Eram barrinhas e cubos. Um método de

ensino totalmente diferente de tudo.

Quando fui para a Escola Y senti muito. Chegou lá e tive que fazer aula

particular. Mudou da água pra o vinho. Eu sofri bastante. Na Escola X era

muito bom. Mas estou esperando para colocar a Carol na Escola D. Queria

colocar lá porque é do lado de caso. Pensei que não preciso ser igual minha

mãe. A Escola X é super longe. Lá no Alto de Pinheiros. A gente ia todos os

dias. Mas se puder estudar na esquina de casa, é o melhor. Lá era ótimo.

Muito, muito bom. Amei de paixão. Tenho várias amigas. Várias madrinhas

de casamento que conheci lá. Amigas até hoje. Era isso. Formar pessoas.

Super legal. Bem diferente da Escola Y, né? Fui no Colegial, e outra vida.

Agora vamos estudar para o vestibular. Mas foi bom até, porque fiquei

bastante tempo na Escola X. Por bastante tempo tive uma vida mais

tranquila, e depois eu fui. Foi bom porque fez muito da minha personalidade

lá (Escola X) Eles formam com esse intuito. Não sei dizer o que eles fazem

com a gente, eu não lembro. A gente tinha uma coisa que chamava TP,

trabalho pessoal. Tínhamos Português, Ciências e TP. Todo dia fazíamos TP.

Como se fosse a lição de casa lá. 50 minutos, ou sei lá quanto era pra fazer o

trabalho de casa lá. Era tudo pra você ter uma vida boa fora. Sair e não ter

lição, não precisava fazer nada. Bem assim. Mas eles controlavam todo

102

mundo, todo mundo acabava estudando de qualquer jeito, tinha que fazer de

qualquer jeito. Era ótimo. Muito, muito bom. Na Escola Y no final foi bom para

aprender que a vida não era tão fácil assim. Eu chorava, chorava, chorava no

começo. Falava pro meu pai que queria ir embora. E ele: não, calma, vai ficar

tudo bem. Foi passando o tempo e acostumei. Acabei conhecendo muita

gente, acostumei que teria que estudar, muita prova, muita coisa.

Fui morar nos Estados Unidos no meio do 2o colegial. Foi ótimo também. Fez

toda diferença na minha vida. Sempre quis ir. Fui. Tive uma proposta pra

jogar vôlei lá. O que entra muito o meu canhoto. O super diferencial que tinha

lá era isso. Jogava muito bem, e era canhota. Uma coisa que assim: sempre

fez diferença na minha vida! É muito diferente você jogar com uma canhota.

É muito ruim para os outros. Quase ninguém é canhoto. Eu era atacante,

então sempre jogava com essa mão (esquerda) e as pessoas não sabiam.

Depois até sabiam, mas as pessoas não estão acostumadas. Todo mundo ia

pra uma mão e eu ia com a outra.

A gente faz tudo diferente mesmo. Jogava muito bem isso, e era uma das

coisas que fazia muita diferença. Eu sempre fui alta, jogava bem e ainda era

canhota. Era muito ruim pros outros times, sempre. Fui pros Estados Unidos.

Era um time ruim, e eu era a melhor. Saía no jornal toda semana. Só tinha

eu. Com o uniforme da escola, tal. Recebi uma proposta pra ficar lá jogando

numa Universidade. E minha mãe não deixou. Fui pra ficar uns 6 meses, e

iria ficar uns 3 anos. Minha mãe não deixou. Por mim eu teria ficado. Já que

não deixou, nem fiquei com esperança.

Voltei. Terminei o Colegial, entrei na faculdade, e daí entra aquilo tudo que eu

já te contei.

Você contou que ser canhota fez uma diferença no esporte...

Nossa Pri. Sempre. Muita. Desde aqui, Aqui eu jogava também antes de ir,

jogava em clube, era federada. E era uma coisa que fazia muita diferença.

Sempre foi muito bom. Para os outros era muito ruim eu ser canhota. Tinha

uma vantagem. Era uma das grandes vantagens que eu tive em ser canhota.

É engraçado. Apesar de a gente ter muita coisa que é meio ruim pra nós,

temos muita coisa boa. Eu gostaria que a minha filha fosse canhota. Eu

103

gostaria. Eu acho que a gente é diferente, chama a atenção. Eu vi você

escrevendo e “nossa, ela é canhota”. Eu sabia que você era, mas esqueci.

Sempre que eu vejo um canhoto escrevendo eu: “ah, você é canhoto”. E todo

mundo sempre gosta. Não sei...sei lá. Dizem que a gente é mais inteligente,

né?

Eu adoro. Acho que a gente é meio diferente mesmo. Eu gosto de ser um

pouquinho diferente dos outros. O normal, mas um pouquinho diferente.

Como que é...quando você vai a um restaurante repara? Assiste um filme,

repara?

Você já viu o negócio da xícara? Que falam? Alguém me falou isso

relativamente há pouco tempo. Que a gente sempre toma o café ou sei lá o

que for do lado limpo. Porque todo mundo pega com essa mão (direita) e

toma aqui. E a gente não. Toma do lado que ninguém toma. É verdade. É o

lugar mais limpo da xícara. Se a pessoa não limpou direito, o lugar que vocês

vão tomar é sempre o mais limpo. Porque ninguém toma. Só nós. Gente, que

maravilha! Ahhhhhh (respira fundo). Essa é uma vantagem interessante.

Você toma num restaurante, não sabe quem limpou, tal.

Mas a gente sofre um pouquinho, né Pri?

Não muda nada na vida, mas assim as colheres...Colher de molho. Aquela

colher que tem um biquinho. Se a gente pega com a nossa mão o biquinho

fica pro outro lado. Tem uns transtornozinhos, mas na prática não muda

nada. Você já parou pra pensar no ultrassom? Comentei que você vinha, e

uma amiga falou: “mas você faz ultrassom com que mão?”. Porque a gente

só faz ultrassom com a mão direita, né. Quando eu entrei meu pai falou: “e aí,

como é que você vai fazer?”. Eu falei: sei lá. Achei que talvez tivesse um jeito

de mudar a maca. Mas não tem. Eu aprendi! Aprendi a fazer com a mão

direita e não sei fazer com a esquerda. A gente vai se adaptando. Fico super

bem. Ninguém nem repara. Faço o que tenho que fazer normal.

Mas na faculdade deu um pouquinho de problema. Por exemplo, no parto

normal a gente tem que fazer um corte para ajudar o bebê sair. E aí quando

eu fazia, fazia o corte assim (/) e o destro fazia assim (\). Só que se eu

104

fizesse o corte e não conseguisse fechar, o destro não conseguia fechar,

porque eu tinha feito de um jeito....

Isso era um problema pra todo mundo. Era horrível pra eles. E eu precisava

cortar do jeito que eu sabia se não conseguiria cortar. Acho que foi o único

problema na faculdade mesmo que eu tinha era com isso. O que tinha que

fazer às vezes era deixar eles cortarem. Ai eu dava um jeito de fechar.

Porque se não era um transtorno quando eu cortava para eles fecharem era

horrível. E era quem sabia mais era quem tinha que fechar tudo direitinho.

Acho que na faculdade foi a única coisa mesmo que passei.

Quando vim pra cá tive que me adaptar a fazer tudo com a mão direita.

Ninguém nunca me deu opção. E paciência. A gente acostuma.

Quando comecei a dirigir, pensei: será que vai ser mais difícil pra nós? Por

que não é a mão certa? Mas não tinha outra opção. E a gente vai melhor.

Só voltando um pouquinho com o negócio do jogo, quando jogava eu tinha

muito mais habilidade com essa mão (esquerda). Quando as pessoas

reparavam que eu era canhota, conseguia jogar muito com a mão

direita...Nunca foi igual à esquerda. As outras pessoas...a esquerda era

ignorada. Ninguém faz nada com a esquerda. Então eu conseguia jogar

muito bem com as duas. Acho que a gente consegue desenvolver muito mais

a nossa mão direita, do que os destros. Os destros não fazem nada com a

esquerda. A gente não. A gente não tem muita opção na vida. Abrir lata, só

abro com a direita. Porque é muito mais difícil. A gente se adapta. A minha

mão direita serve para muita coisa. Acho que é bem diferente de um destro.

As tesouras....

Hoje em dia eu não tenho tanta dificuldade. Mas há um tempo

atrás...Principalmente aquelas pequeninhas, meio coloridinhas. Nossa! Não

cortava. Dai era um problema. Porque cortar é mais difícil. Quando você

precisa de uma linha, era meio complicado. Eu não sei se é porque não uso

muito tesoura, mas acho que hoje em dia elas são melhores. Mas, nossa.

Quando era pequena era um problema. Não cortava. O negócio não vai. Não

cortava e não lembro o que fazia. Se minha mãe me ajudava...Na escola não

lembro de ter tido problema.

Eu lembro do vestibular. Vestibular era meio que o problema. Quando tinha

aquelas mesinhas. Que às vezes não tinha carteira de canhoto, tinha que

105

juntar duas mesas. Às vezes você chegava e os canhotos já tinham pego

todas. A mulher falava: “ah, não tem”. Algumas vezes tinha que fazer assim

(torcendo o tronco) do lado do destro porque não tinha opção. Eu sempre

pedi, mas às vezes ia nuns lugares “ah, não tem”. Não tem, não tem.

Paciência. Problema seu. Às vezes colocava no colo, ficava torta, horas. E

não tinha jeito. Aquela coisa, não tem opção, vai fazer o quê? Mas são

poucas vezes. As vezes você olhava e tinham várias de canhoto. E vários

canhotos, né? Você olhava e: não sou a única. Mas na escola acho que não

lembro de nada disso.

Eu nunca lembro disso. De ter sujado papel, essas coisas. Sempre fui muito

caprichosa. Acho que é do signo. Sou virginiana e nossa. Sou encarnada no

signo. Sou muito perfeccionista. Tem que ser tudo certinho. Então não sei se

sempre fui muito detalhista que nunca teve nenhum problema. Nada.

Tudo o que você lê de uma virginiana eu sou. Perfeccionista, chata. Nossa,

eu falo: fui trabalhar com uma coisa que, enquanto não faço a imagem

exatamente do jeito que eu quero, eu vou, friso, solto, friso, solto, faço 500

fotos até a foto ficar do jeito que eu quero. Enquanto ela não ficar perfeita, do

jeito que eu quero...E o laudo, eu leio 500 mil vezes. Escrevi isso, isso. Às

vezes eu saio do laudo, entro de novo pra ver se escrevi tudo. Sou TOC.

Pentelha total. Muito chata. Muito, muito chata. Comigo mesmo, sabe? Acho

que isso é bom. Como médica acaba sendo bom. Às vezes o paciente fala:

“nunca fiz um exame que demora tanto”. Não adianta. Enquanto eu não fizer

tudo que quero fazer, você não vai sair daqui. Eu falo. Até tudo certinho.

Tudo que eu leio de virgem eu falo: “sou eu”. Tudo! É impressionante. Até me

irrita.

Tem gente que fala que o canhoto é muito caprichoso...

Minha letra é linda, linda, linda. Às vezes a gente vê aqueles canhotos que

escrevem totalmente torto, nossa cada letra. Gente! (assustada) Eu não faço

nada com a mão.

Eu viro um pouco o papel.

106

Eu não. Escrevo assim (virou o papel).

É. (parou, olhou e pensou)

Eu escreveria assim (com o papel virado-dúvida). O papel não tá virado?

Tá. Oh lá. Olha o Termo (escrito no papel)

É igual você?

É. Se eu escrever reto fica assim (demonstrei). Se escrever de lado fica

bonitinho.

Ah não! Não tenho a menor condição de escrever reto (risos. Se deu conta e

ficou encabulada). Assim tá ótimo.

Mas isso é pra gente conseguir enxergar. Se a gente fizer assim (reto) não

vemos.

Por que a mão vai ficar na frente! (surpresa) Assim, você enxerga tudo.

A gente tinha que ter nascido em país oriental. Eles escrever de cá pra cá

(direita pra esquerda). O canhoto em um país oriental enxerga o que está

escrevendo.

E o destro?

Os destros não. É a mesma coisa que a gente.

E eles escrevem torto, será?

Não sei, mas deve ser.

É...isso eu posso até perguntar. Em Israel é assim também. É tudo ao

contrário. O hebraico é tudo meio invertido. Não leio, mas pelo que sei é. Eu

107

pergunto pra uma prima minha que sabe escrever. Eu pergunto. Ela vai saber

me responder essas coisas.

[intervalo de assunto]

E na Escola Y? Não teve dificuldade?

Não teve. Lá a gente sentava junto. Sempre sento na cadeira da ponta. Me

preocupo com essas coisas.

E em restaurante?

Se eu vou sair com um casal, não interessa onde o homem sentou, sei lá. Eu

sempre vou sentar...Se não não dá. Você fica batendo na pessoa o tempo

todo. O meu marido já sabe. Ele já sabe que vou sentar do outro lado. Por

que não dá Pri. Me incomoda. Você fica encostando na pessoa. Às vezes é

ruim. Avião, não tem muita opção. Tudo. A gente mexe muito mais esse

braço. Tem uma pessoa ali que você não sabe quem é, fica tomando cuidado

na hora de cortar.

De cortar acho que nunca tive problema também.

Nunca reparei muito nisso.

[pausa sem assunto]

Você falou que pra você ser canhota foi muito mais um diferencial positivo

que negativo. Acho que o esporte foi o mais significativo que você comentou.

É. Que fez uma diferença boa. O resto todo mundo pergunta: “você é

canhoto!”. Gente que convive muito tempo, aqui (no hospital) por exemplo, a

gente usa muito o negócio de ditar, não escreve muito. Tem gente que

convive comigo há anos e me vê assinando alguma coisa: “nossa, mas você

é canhota”. Assinando um cheque...É uma coisa que chata atenção de todo

mundo. Comigo todo mundo fala. Quando eu vejo um canhoto, eu sempre

comento. Não sei por que a gente faz isso. Eu pergunto. E eu guardo. Todo

mundo que é canhoto e trabalha comigo eu sei.

108

E na minha família não tem ninguém. Nenhum parente direto. Quem tinha era

um tio meu, que até já faleceu, mas que era casado com a minha tia. Não sei

de onde eu vim. Sabendo eu não conheço ninguém, ninguém, ninguém. Só

eu sou canhota. Só se deve ter sido alguém mais velho que não sabia. Eu

sempre procurei pra saber. Cacei mas ninguém sabia pelo menos. Nem um

primo um pouco mais velho. Isso sempre me chamou atenção. Sou a única.

Minha mãe falou que quando eu comecei a pegar lápis, sei lá com o que eu

brincava, já pegava com a esquerda e me deixaram. Minha mãe estranha

muito. Ela fica incomodada. Às vezes eu vou passar roupa, ela: “filha, pega

com a mão certa. Não é assim”. Ela sabe que é a minha mão certa, mas ela

se incomoda. “Deixa que eu faço. Isso não vai dar certo”. Às vezes quando

vou carregar alguma coisa, ela: “não, não, não. Me dá. Vai cair. Você pega

com essa mão errada”. Ela fica com a sensação de que tá errado. “Essa sua

mão é muito estranha. Deixa que eu pego”. Incomoda ela. Ela fala por falar,

né. “Dá aqui que eu faço. Não dá certo”. E é minha mãe, né? Ela fica super

incomodada. Meu marido nem liga. Meu pai nem liga. Minha irmã muito

menos. Mas aqui (no hospital) todo mundo fala: “você é canhota”; “você é

canhota”. Mas só. Hoje em dia não muda nada, né.

Ai só. Na musculação eu vejo bastante diferença de força entre os braços.

Meu braço esquerdo é bem mais forte, apesar de eu fazer tudo igualzinho.

E a perna?

Como eu operei duas vezes a direita, ela ficou mais fraquinha coitada. Mas

por isso. Não sei te dizer. Não jogo futebol. Não sei dizer se tenho uma perna

dominante.

[mostrou que pega o telefone no jaleco e já passa pra mão esquerda]

Todo mundo tem o bolso ai? (do lado esquerdo)

Todo mundo.

Por que será? Agora você falou que eu reparei...

109

Todos os bolsos são aqui. Todo mundo tem um bolso aqui sempre. Sempre

do lado esquerdo.

Não sei se tem alguma razão.

O fato é que ele vai pra mão esquerda. Tudo que eu posso fazer com a

esquerda, faço. Ultrassom. Faz muita diferença. Mouse, marcha, abridor de

lata. Tesoura se tiver que usar eu uso. Aí é meio problemático. Se tiver que

usar com a mão direita vai sair tudo meio esquisito. E aquele negócio que eu

te falei das colheres de molho. Porque ai eu tenho que fazer (com a direita).

Com a esquerda é muito ruim porque não tem biquinho. Fica uma coisa

totalmente errada. Às vezes eu desencano e viro, ou às vezes mudo de mão.

Tenho muita coordenação com a mão direita. Eu acho que era por causa do

jogo que eu fiquei assim. Tinha que jogar. Nisso era sempre bom. É sempre

mais difícil marcar. Querendo ou não, não é igual. As pessoas ficam meio

confusas. Eu sempre jogava do nosso lado, mas era muito fácil pra mim jogar

com essa mão (direita). Passar uma bola. Era muito fácil. Essa minha mão é

ótima, graças a Deus. Porque uso tanto ela também. Eu acho que ela teve

que ser. Teve que se adaptar à algumas coisas da vida. Ficou muito mais

desenvolvida que a esquerda de um destro.

Você repara em tudo?

Tudo. Cinema, TV, o que for. Aonde tem um canhoto eu reparo. Nunca

passa. Eu sempre reparo. Geralmente eu lembro quando eu vejo um

canhoto.

Então e eu não acho que a gente é mais inteligente que os outros...Mas a

gente fala, né? Acho que é inteligente igual. Nem mais nem menos.

Mas nunca vi um canhoto “nossa que diferencial”. Normal.

E sua mãe fala que é a mão errada. Como foi isso quando você era

pequena?

110

Pequena acho que ela não falava nada pra não me reprimir. Não sei se é

porque eu não fazia nada que chamasse muita atenção dela. O que

incomoda é fazer coisa que ela acha perigosa. O ferro de passar incomoda

ela. Ela acha estranho. Ela fica irritada. “Fica passando com essa mão

errada”. Ela sabe que não está errado, mas incomoda ela. Ela fala meio

brincando. E tira assim. Fica incomodada. Tem aflição mesmo. “Ai, essa mão

errada”. Eu falo, foi você que fez. Isso veio. Ela falou que desde

pequenininha quando ela viu que tinha uma mão dominante era a esquerda.

Só. Hoje em dia só quando alguém me vê escrever...mas é tudo comentário.

“Ai, você é canhota. Não sabia”. Não você sabia...tem uns que esquecem.

“Nossa, nunca te vi escrever”. Às vezes a gente convive muito e “nossa, você

é canhota”. Tantos anos que convivo com você e não sabia disso. Sei lá, não

vê no dia a dia, de almoçar. Isso é uma coisa que não me chama atenção. Na

mesa não me chama atenção os outros.

Esse jeito de sentar no restaurante. Você acha que as pessoas reparam?

Isso eu só faço com o meu marido. Se eu estou com ele, eu sempre vou pra

onde eu posso. O meu problema é ele. Com ele que eu posso pedir pra ficar

em outro lugar...Com os outros não. Se tiver com 8 pessoas quaisquer eu

sento em qualquer lugar. Não vou procurar a ponta. Não me incomoda. É

mais eu e ele que eu posso pedir. Ele só não gosta...se eu tenho que por ele

no canto...hoje eu faço mais xixi que ele, mas quando eu não tava grávida ele

fazia mais xixi que eu, tomando cerveja, tal.

[tocou o telefone e a conversa ficou comprometida. Retomei]

Você falou que gostaria que a Carolina (filha que está esperando) fosse

canhota. Por quê?

Eu acho legal ser canhoto. Me fez tão bem na vida. Nunca me fez mal. Acho

legal a gente se esse diferente que não é nada ruim. Querendo ou não

somos diferentes. E eu queria que ela fosse. Me dei tão bem sendo.

Porque na família do meu marido não conheço ninguém.

111

Tomara. Ela podia ser. Ia ficar feliz. Mas vai demorar pra saber isso, né.

Vou reparar muito. Deve ser a coisa mais fofa. Muito bonitinho. Uma canhota

bebê. Se a minha filha for, vou ficar louca. Vou dar o maior apoio. Tudo com

a esquerda!

Você tinha alguma coisa adaptada?

Nem tesoura eu tinha. Eu nunca tive nada. Antes não conseguia abrir muito

garrafa. Mas tem alguma coisa que a gente não consegue fazer...

Abridor, eu consigo abrir super bem com a direita. A direita é mais fraca mas

vai bem.

Tudo que sai um pouco do normal, do que estou acostumada não vou

conseguir fazer.

Pri...que mais?

Nossa menina.

[tempo...]

Podemos falar do diferencial que você tinha no esporte, que você gosta. O

fato de você se destacar, como é pra você? Isso te faz bem?

Super. E todo mundo via. Sabia que eu tinha um diferencial. Me fazia muito

bem.

Todo mundo gostava porque eu fazia bem pra todo mundo. Num jogo

coletivo, eu estava sempre fazendo o bem pra quem estava comigo. Era

muito diferencial. No esporte era uma coisa que chamava MUITA atenção.

Onde eu tinha muita habilidade com as duas mãos. Deixava todo mundo

muito confuso, nossa era ótimo. Tanto que joguei a vida inteira. Só parei

depois da faculdade que não tinha mais jeito.

Acho que por isso que eu queria que a minha filha fosse. Porque sempre me

trouxe coisa boa. Nunca me prejudicou em nada. E tudo que me trouxe de

diferencial era coisa boa. Então, assim, me diferenciar pro bem, ótimo.

Sempre me traz lembrança boa.

112

Não tive nenhum trauma.

Às vezes as pessoas fazem algum comentário que não sei se é um termo em

inglês..

O que sinistro?

Exatamente. Falam: “você sabe, é coisa do diabo”. Nem... tem gente que faz

uma brincadeirinha. Eu nem escuto. Ah, tá. Eu fico com dó dos canhotos

daquela época. Coitados. Porque até achavam que tinham alguma coisa

errada. Por que a gente é assim, diferente? Pra nós é tão fácil.

Esse negócio da mão do relógio me incomoda. Minha mão não precisa ser a

que todo mundo usa o relógio. Nem sei qual é.

Muito doido.

Você gostaria de ser destra?

Não. E gostaria que a minha filha fosse ainda (canhota). De jeito nenhum! Se

pudesse nascer canhota 20 vezes, 20 vezes.

E se você falasse uma frase? Ser canhota pra mim é...

Muito bom. Muito bom. Só me traz coisas boas. É bom. É bom. Ponto. Não

tem o que falar. É ótimo. Nasceria canhota de novo.

113

ANEXO 5 – DEPOIMENTO LUÍSA

Me conte um pouco sobre a sua vida...

Ah...eu nasci numa época muito legal. Minha família era muito legal, na

verdade. Muito diferente das famílias padrão. Tinha uma cabeça mais

avançada. Nesse sentido eu tive muita sorte em algumas coisas. Por

exemplo, convivia muito com uma avó e com uma tia muito malucas. A gente

passava férias com elas, nadava pelado em cachoeira. Você não imagina

encontrar uma tia e avó e um bando de criança tudo pelado. Ninguém teve

essa infância que eu tive. Que foi super precioso. Acho que não é só viver no

mato e ter lombriga, mas era de tudo. Muito enriquecedor. Eles eram muito

cultos. São muito cultos. Mas muito loucos ao mesmo tempo. Tinha um

pouco esses dois lados. Então, teve toda essa riqueza de experiências que

me ajudaram muito. Por outro lado, eu tive muito problema. Fui uma criança

muito problema. Graças a Deus depois eu acabei descobrindo de onde

vinham todos esses problemas. Eu nasci com uma doença genética, de

herança genética, super rara, e que mexe com toda a parte imunológica.

Como é neurológica, eu tive muito problema. Além da dislexia e do déficit de

atenção que eu já tinha, eram várias as outras coisas que eu tinha junto. Se

eu tivesse nascido numa família normal, normal que eu digo com aqueles

padrões mais rígidos, mais conceituais, pontuais, tem que ser assim, assado,

criança não fala, não conversa, não participa, não era bem o caso da minha

família. Se tivesse sido assim, eu acho que nem teria sobrevivido. Começa

por aí. Nesse sentido foi muito bom para mim. Tinha um lado muito

bagunçado, mas tinha outro que era tão rico que me apoiei nele. Tirando

isso, está tudo certo, tudo tranquilo.

Sempre fui canhota. Só chutava a bola com o esquerdo, se pedir alguma

coisa com o direito não funciona. Não vai.

100%

Se der, 200! Não sei fazer nada com o direito. Minha letra é horrorosa. Dá até

vergonha. Tudo só com a esquerda.

Ninguém te reprimiu?

114

Imagina, nem se cogitava. Quando alguém falou que era reprimido, eu:

“como assim?”. Até quando o Thiago (marido) fala que tomava na mão de

professor, ou a Marcela (cunhada) conta que a família...eu falei assim: “ah?”.

É uma coisa mais antiga. Na época da minha avó eu ouvia que a coisa era

mais reprimida. Já na geração do Tadeu não conheço ninguém que tenha

sido reprimido. Só eles (família do marido). Minha irmã mais velha tem mais

ou menos a idade, um pouquinho mais moça, nunca ouviu reguada na mão,

nunca ouvi contar. Nem a minha avó quando estudava, foi expulsa de vários

colégios, nunca ouvi que ela levou o chapéu de burro ou reguada na mão.

Acho que os pais dela matavam. Uma coisa muito arcaica mesmo.

Enfim, nunca fui reprimida. Muito pelo contrário.

E assim, não tem coisas para canhoto. Tesoura, não tem. Perto dos anos

1980 eu ouvi que tinha uma lojinha não sei onde com produtos de canhoto.

Mas nunca me fez falta. A não ser aquela carteira de classe. Que era chato.

Você ficava virado ao contrário. Isso é uma sacanagem. Devia ter. E panela,

o bico da panela é ao contrário. Tem um monte de produto, mas nunca

precisei.

Eu tenho facilidade para desenho, para coisas manuais. Eu aprendi crochê.

Tenta ensinar um canhoto a fazer crochê! Ninguém consegue. E eu

conseguia. Não me pergunte como. Para mim é muito fácil. Faço crochê,

tricot. Hoje em dia eu não lembro, mas fiz muito crochezinho. A gente ficava

em frente a televisão e fazia aqueles quadradinhos. E era uma coisa

impossível de ensinar. Todo mundo dizia. Mas eu aprendi.

O ser canhoto não afetou em nada na minha vida. Tranquilo.

Eu sempre fui muito distraída. Essa era uma desvantagem na minha vida.

Mas eu sempre fui muito boa nos esportes. Não era aquela atleta fanática,

mas o que eu fazia, fazia direitinho. Era sempre escolhida. A Luísa estava

sempre no meio. Não sabia como ia parar lá. Eu era alta para a época. Tinha

uma cabeça e meia a mais que os meninos. Era indecente. E aí eu lembro de

uma cena que fomos competir com a escola, handebol, eu adorava, super

dinâmico. Você acredita que eu estava catando mosca no meio. Escuto

assim de longe: “Luísa!”. Era a torcida inteira. E eu: “ué”. Quando eu vi estava

no meio da quadra. Mas não tinha problema. Quando pegava a bola, fazia

115

gol. Então passava, sabe? Dava umas coisas assim e de repente eu voltava.

Eu me dava bem nos esportes, gostava. Esquio direitinho, por exemplo. Não

sou ruim no esporte. Só não sou fanática.

De se dedicar horas...

Uma vez eu fui, era ginástica olímpica. Mas tomei um tombaço. E nunca mais

fiz. Esquece. Era uma japonesa louca que me dava aula.

Que mais querida?

Queria saber como é para você ser canhota. Se identifica?

Não. Acho que é diferente. O que eu vejo: todo canhoto tem letra feia. E os

que têm bonitinha escrevem assim (entorta a mão). Engraçado, né? Eu

escrevo normal, não tenho. Eu gosto de ser canhota porque é diferente. É

raro. Tem dez e tem um canhoto: sou eu!

E você repara em quem é?

Reparo justamente na hora de escrever. Eu falo: “eu também sou”. É uma

tribo. É quase uma tribo. A gente vê que são mais criativos, têm um pé na

arte. Gosta de pintura, a maioria. Não sei por que cargas d’água.

Michelangelo era canhoto, disléxico. Ele fazia confusões na hora de escrever.

Eu não escrevo assim (entortando a mão). Você escreve?

Não, mas eu viro a folha.

Eu também. Total. Eu viro a folha. Não adianta nada. A letra continua feia.

Horrorosa. Você não tem noção.

A religião na minha família era uma coisa. Minha avó detestava padre. Metia

o pau em todos. Mas tinha um lado super religioso. Adorava São Francisco.

Não era de frequentar a Igreja, mas tinha uma fé louca. Ela não acreditava no

padre, na figura do padre, e eles já enxergavam o quanto a Igreja era

116

corrupta. Essa coisa da Igreja mesmo. Igreja eles nunca acreditavam, mas

tinham fé. Isso foi passado para mim e não era discutido, mas falavam as

coisas na lata. Que roubam mesmo, que é tudo uma palhaçada. Em prol da

religião pode tudo. É uma coisa horrorosa.

O que mais você se lembra?

Me lembro disso. Minha escola era...Inclusive a turma da minha irmã foi a

primeira experiência da escola. Era construtivista, pequena, você tinha muita

liberdade, aula dada em diferentes contextos, muito diferente das

tradicionais. Já pelo construtivismo é quando você está pronta. Então esse

conceito nunca foi mostrado. O que, aliás, para mim não foi bom. Não foi

bom. Foi péssimo. Porque justamente pelo déficit de atenção e pela dislexia,

o construtivismo você tem liberdade, então eu viajava na maionese. Estava

em qualquer outro planeta. Abrir parêntesis para mim é um problema. Eu

viajo. É uma desgraça. Quando eu fui para uma outra escola “quase que

você levanta quando o professor chega, Amém Jesus” foi ótimo.

Eu acho que isso tem a ver com o canhoto, sabia? Eu acho que canhoto

gosta de viajar um pouco. Todo canhoto viaja. Repara? Eu acho que tem

esse lado viagem.

Nunca me conformei da letra ser ruim, e desenhava bem. Fazer o quê? Tinha

que ter um defeitinho.

Mas é. Eu acho que a gente pensa diferente. Não pensa? Até como fórmula,

o tipo de raciocínio, eu vejo que é diferente. Eu vejo pelo Sudoku. O tipo de

raciocínio é totalmente diferente. Adoro! Sou viciadona!

Mas é tranquilo. Tranquilíssimo.

Eu acho que canhoto tem sempre um Plano B. Você já reparou?

Eu acho que canhoto não é organizado, de uma maneira geral. Por exemplo,

apesar de toda a minha bagunça, eu sou muito organizada. Se eu não souber

onde eu guardei, aquele canto, não vou achar.

Mas não é esse tipo de organização. É organização na vida. O fato de ser

muito criativo, você pode até ter mania de arrumação, mas é uma

organização mais geral.

117

A coisa que você poderia dar uma organizada, uma centrada, não. Você

acaba ficando na coisa mais bagunçada.

Eu podia estar fazendo isso, mas estou fazendo aquilo e aquilo outro. Você

arruma um monte de coisa para fazer, não dá conta, não é o que você está

feliz, não sabe como foi se meter ali, mas você tem que dar conta. É o Plano

B. Você sempre está se metendo em algum lugar e acaba tendo um Plano B.

Organização não só espacial. De vida mesmo. Sem tirar as influências do

meio, do tipo de escola e de educação que você teve. Tirando todas essas

influências, tem a parte genética, biológica.

Uma grande capacidade que vejo no canhoto é essa do Plano B. Porque ele

está sempre metido em alguma coisa.

Toda vez tem sempre uma bagunça. Acaba metendo um pé numa outra jaca.

Mas sempre volta para jaca original. A gente tem essa experiência a mais da

saída pela direita, já que somos canhotos. Eu acho que isso é diferente. A

gente vai experimentar e às vezes é bom, às vezes é ruim. Sempre alguém

escorrega.

Meu cunhado é canhoto. Também é meio artista. Se você conversar com ele

é uma viagem. Você fecha o olho e vai. As cores e ao vivo. Mas,

profissionalmente a vida dele é uma bagunça. É um cara que nunca se

achou.

Meu sobrinho é canhoto, filho dele. Também teve problema de déficit de

atenção, estudou no Colégio S6. Uma gracinha ele. Loirinho de olho azul.

Parece um anjo.

Então tem vários na família.

Tem. Filho da minha irmã.

A gente termina sempre com uma frase...

Para mim ser canhota é

Um diferencial. (risos)

6 Escola tradicional para as camadas média- alta da sociedade paulistana

118

ANEXO 6 – DEPOIMENTO MARCELA Me conta um pouquinho sobre a sua vida, por favor... Vou contar desde o comecinho. Bom, o nascimento meu foi muito festejado.

Embora esperassem um menino, lógico. Família árabe. Era um privilégio. Eu

era menina. O meu nome foi escolha do meu pai. Eu era a primeira neta da

parte da minha mãe, então era muito bajulada. Principalmente pela família da

minha mãe. Uma das causas de eu começar desde esse comecinho, foi para

falar dessa iniciativa de canhoto. O que acontece? Desde criança eu tinha

tendências de usar a mão esquerda. Sempre gostei. A minha tia de criança

me levava muito no Grupo, ela trabalhava aqui pertinho. Já pegava o giz com

a mão esquerda. Foi uma tendência minha que começou com a mão

esquerda.

Só que o meu pai, como todo imigrante, principalmente árabe, tinha certos

preconceitos. O que ele fazia? Via que eu estava pegando tudo com a mão

esquerda, inclusive as minhas primeiras letras com a mão esquerda, não que

eu tivesse sendo alfabetizada, eu devia ter uns 4, 5 aninhos, eu tenho uns

negócios de geladeira da minha mãe que eu escrevia em cima. O “L”. Você

entendeu? Isso eu lembro direitinho, porque vi esses dias. Então, quando ele

via que eu pegava com a mão esquerda, ele falava: “dididai”, é o nome dele

Didi, e eu apanhava na mão esquerda. Aí, quando eu entrei para a escola e

ele viu realmente que a minha tendência era a esquerda, dai ele não

aceitava. Então, o que aconteceu? Comecei a ser obrigada a escrever com a

direita. Isso foi uma coisa para mim, na época ficava chateada. Mas é uma

coisa que eu era muito ligada no meu pai. MUITO mesmo. Inclusive quando

eu ia tirar sangue, qualquer coisa assim, ele estava comigo. Então, eu falava

assim: já que ele fica chateado, não posso fazer isso para desagradá-lo. Aí

comecei a desenvolver a direita.

Mas a minha força toda sempre foi na mão esquerda. Se eu tiver que ir para

uma lousa, é a mão esquerda que vai predominar.

Hoje em dia, logicamente na escrita normal, eu pego a direita mais por

hábito. Mas com a esquerda é uma letra totalmente diferente. E eu me sinto

bem. É a minha mão mesmo. Eu me sinto eu.

119

A direita eu escrevo por hábito, é mais rápida.

Mas a esquerda é a mão do meu eu realmente. Eu me sinto. Sinto meu eu se

manifestando.

A direita é a letra toda certinha, escrevo rápido o que gosto. Mas parece que

é superficial. Isso para mim...

Quando eu vou fazer algo com a direita, é rápido e isso para mim é ótimo.

Com a esquerda escrevo devagarzinho. É uma letra totalmente diferente.

Totalmente. Não tem nada a ver com a direita.

Uma vez até perguntei para uma moça que estava fazendo Psicologia. Será

que isso tem alguma coisa a ver? Daí me falou um monte de coisa e acabei

não fazendo.

Essa é uma curiosidade, se isso influenciou alguma coisa minha, que tem os

dois lados do cérebro. Logicamente que você foi obrigada a desenvolver um

dos lados. Quem escreve com a esquerda desenvolve o direito. E quem

escreve com a direita, desenvolve o esquerdo. Então eu não sei. Deve ter

afetado alguma coisa. Não sei.

Isso para mim é uma coisa muito gozada. Quando eu vou pegar numa

raquete, varrer alguma coisa, é sempre a esquerda que predomina.

Fazer uma comida no fogão, não sei mexer com a direita. Eu sinto muito leve.

Não dá certo. Precisa ser a esquerda. Eu me sinto melhor! Nesses trabalhos

manuais...

Só para escrever que a maior agilidade é com a direita.

Isso deve ser hereditário, porque eu tenho uma prima irmã minha, que mora

em Campo Grande; o pai dela, irmão do meu pai, nunca foi de esquentar com

isso. Era assim, como se diz? Bem desencanada de tudo. Não ligava muito

para isso. Ela, eu sei que é canhota. Nunca ligaram. Ela escreve com a

esquerda, tudo isso. Se não me engano, meu sobrinho, filho do meu irmão, é

canhoto também. Me parece, também, porque a minha cunhada Luísa é.

Acho que o Tadeu é canhoto também. Isso eu estou guardando de quando

ele era criança.

Voltando ao assunto, isso aconteceu na minha vida.

É um fato, é um fato que eu me lembro como lembro de muitas outras coisas.

Deve ter sido marcante, se eu lembro disso. Ainda mais ligado ao meu pai.

120

De resto, ser canhoto nunca me trouxe problemas na escola. Como eu tive

que aprender com a direita, não tive problema.

Quando eu comecei a ser alfabetizada, já usei a direita.

Mas a esquerda nunca foi esquecida. Desenvolvi isso.

Quando eu ia com a minha tia dar aula, na lousa, tinha uma lousa de criança

pequenininha. A gente morava em uma casa, ficava no quartinho de

brinquedo, e eu ficava lá com meus alunos. Era sempre com a esquerda.

Tem um tio que eu cuidei dele, que faleceu tem uns 13, 14 anos. Até o último

instante da vida dele, ele irmão do meu pai, solteiro. A gente saía muito, ele

ia muito na minha casa. E também não aceitava que eu escrevesse, nem

fizesse nada com a esquerda. Tanto é que no último instante da vida dele,

uma semana antes dele morrer, eu ia para uma viagem de Congresso. Ia

servir para ele, na boca dele e ele: “eu já falei que todo canhoto é desastrado.

Eu não quero que você me sirva com a mão esquerda”. Falou rindo, no fim

da vida. E eu: “agora você tem que aceitar tio. Eu estou aqui”. Ele era bem

assim! Se eu saía com ele para almoçar e pegasse alguma coisa com a mão

esquerda, ele ficava muito bravo. Ele e meu pai.

Os outros, meu padrinho, que era muito mais velho que eles nunca ligou para

isso. Os irmãos do meu pai que moravam em Corumbá, Mato Grosso, nunca

ligaram para isso. Família da minha mãe era bem light, nunca ligou. Isso era

típico mesmo do imigrante, que teve aquela educação, sabe?

Eu estava lendo outro dia, se tem alguma coisa a ver com islamismo. Tudo

de Alá, do Alcorão. E, se não me engano, eles dizem que tudo que vem da

mão esquerda não é muito aceito por Alá. Isso vem um pouco da religião.

E atualmente mesmo com essa história de que ninguém liga pra isso tem

uma descriminação. Tem! Porque as vezes a pessoa fala: “você tá do lado

torto”! Você é jovem, mas deve sentir isso em algumas coisinhas. Não que os

novos lembrem tanto disso, mas alguma coisa eu acho que tem.

Você nunca pode dar bom dia com a mão esquerda. Tem que dar com a

direita. Se estender com a esquerda, a pessoa já fica meio...

Quando as pessoas se referem a sua casa, é de pé direito alto. Se falar de

pé esquerdo, vão ficar te olhando. [risos]

São pequenas coisas, tem os resquícios.

E é uma filosofia que foi passando. De geração em geração.

121

Meu pai e meu tio vivenciaram, e adquiriram lá do Líbano. Não foi uma

cultura passada, e sim adquirida. Os outros não. Tinha gente mais velha do

que ele, esse meu tio Felipe tinha a idade deles e não ligava para isso. Era

um bon vivant, não gostava de trabalhar, era ótimo. Curtiu muito a vida. Teve

6 filhos. E era bem danado. E bem light, que não se preocupou muito com

isso.

Como era quando você ia com a sua tia no Grupo [escolar]?

A minha tia me levava. Ela trabalhou a vida inteira lá. Era muito respeitada.

Morei dois anos com a minha avó. Então moravam os filhos solteiros com ela,

em uma casa aqui perto, alugada. Em frente ao Hospital C atualmente. Morei

dois anos. Só fui embora porque meu pai veio me buscar. Não queria ir

embora, pois minha paixão era a minha avó. Primeira neta, nossa! Minha tia

levantava cedo para dar aula; se eu acordasse e ela não estivesse mais lá,

minha avó tinha que me levar até ela. Dava aula junto. Quando eu cresci, vim

morar aqui, estudava, mas continuava indo dar aula com ela. Aliás, o meu

sonho era ser professora!

Mas a minha mãe e um irmão dela, que era caçula, o Tio Joaquim, que foi o

último irmão homem a morrer, em 2003, ele falava para mim: “você vai ser

doutora”. Porque a professora já tinha, a Clarice, achavam que era muito

pouco. Mas eu adorava dar aula. Era uma das coisas...

A Juliana que trabalha no Paulo, quando chegou aqui, a gente morava nesse

apartamento, em 1965, 66, eu devia ter uns 7, 8 anos, eu chegava e tinha

que dar aula para ela. Ensinei ela a escrever o nome. O quadro negro era a

porta. Eu comprava o giz, e ensinava a Joana. Mas ela nunca gostou. Minha

mãe falava: “você vai ficar 2 horas ensinando ela”. E eu: “pode deixar”. Eu

era mais velha, e gostava! Ela foi minha primeira aluna [risos]. Fiquei uns dois

anos ensinando ela.

Eu tenho uma memória muito boa! Se você perguntar para mim, me lembro

até de quando era bebezinho. Ainda lá em Corumbá, em pé no berço, junto

ao quarto dos meus pais. Me lembro da casa, dos meus amiguinhos.

Perguntei para a minha mãe uma época, antes dela falecer, 25 anos atrás,

122

cadê a Janete e o Zezinho? Ela não sabia, e achava que tinham ido para

Cuiabá. Eu me lembro da Janete, umas pessoas assim.

Minha memória eu gosto. Modéstia à parte, é muito boa. Com o tempo a

gente vai perdendo.

Lembro de muitas coisas da vida.

E a questão da mão, era mais de escrita?

Não podia pegar garfos, talheres principalmente. Isso eles não aceitavam. Se

eu fosse servir alguém, não podia pegar um copo com a esquerda, tinha que

passar para a direita. Meu pai e o Tio David; minha mãe tudo bem. Meu tio

não aceitava até o último instante.

Ele faleceu no dia 24 de maio. Dias antes fui servir uma esfirra para ele, e

ele: “já falei que canhoto é tudo desastrado”. Por que Priscila? Até o fim da

vida!

E você acha que canhoto é mais desastrado?

Não, não acho. Embora eu tenha um livro, da Mônica Bonfiglio, ela é canhota

também. Ela tem um livro, Magias, não sei o quê. Eu fiz um curso com ela em

1990. E lá ela escreve que ela é canhota, e fala alguma coisa sobre. Ela fala

que todo canhoto tem uma sensibilidade maior, um sexto sentido bem

aguçado.

Ficava alguém te orientando para escrever diferente em casa...

Não. Meu pai ficava muito bravo se visse. Não gostava. De criança realmente

batia na minha mão.

Você lembra como foi para desenvolver o movimento?

Da mão direita eu não lembro. Vou ser honesta. Foi uma coisa muito

automática. Supérflua. Não foi natural. Hoje escrevo bem rápido.

Mas a mão que eu gosto, que faz uma letra direitinho é a esquerda.

123

Uma coisa é de dentro para fora. E outra é mecânica.

Até as assinaturas não têm nada a ver. São totalmente diferentes.

O que mais que você queira contar? Que acha interessante?

Fui uma época ter aula de tênis e jogo com a esquerda. Mais complicado!

Também fui ter aula de golfe, aí é meio complicado. Os professores querem

estimular, porque não tem taco para canhoto, mas eles ficam meio assim.

Estimulam, mas vejo que no fundo ficam meio assim [receosos].

Você acha que eles tem dificuldade de ensinar ao contrário?

Têm sim! Embora quando eu fui aprender a jogar tênis, eles falavam que a

Maria Esther Bueno é canhota e foi uma das grandes tenistas. Gravei isso,

porque eles falavam para mim. Falavam para me incentivar.

Na hora de bater bolinha e jogar com alguém é mais complicado. O destro

pega a raquete. Quem vai jogar normalmente com você, a parte contrária,

dificilmente é canhota. Então é um destro, e ele sente um pouco de

dificuldade.

Quando, às vezes, eu falo para alguém, principalmente quem estudou

comigo na faculdade, diz que eu lembro de muita coisa porque eu era

canhota. E que desenvolvi os dois lados do cérebro. Diz que é por isso que

eu tenho boa memória. Alegam isso!

Escovar dente só com a esquerda. Não conseguiria com a direita. Nem tento.

Escovar cabelo também tem que ser só com a esquerda.

Sou totalmente canhota!

O que mais? O que mais você quer saber?

Quero saber de você o que você quer me contar...

[pausa] Se lembra de algo da adolescência?

De adolescência não. Sempre fui canhota, e já estava escrevendo com a

direita...

124

A única coisa marcante era quando eu ia sair para algum restaurante,

principalmente com o meu Tio David, ele falava: “só não me pega com a mão

esquerda”. E ele ficava muito bravo. Muito bravo. Muito bravo mesmo!

Verdade. Ele faleceu bem depois do meu pai. Meu pai faleceu tem 33 anos, e

o Tio David 13, 14.

Nenhum filho meu é canhoto. Acho que exceto um sobrinho...o Tadeu Didi.

O que você é? Canhota ou destra?

O meu íntimo, o meu eu é canhoto. E o supérfluo é os dois. [risos]

Não posso negar que a mão mecânica, 80% eu faço com a esquerda. Tem

os 20 que é a mão mecânica, e a mão do meu eu que é canhota.

Minha força está na mão esquerda, minha natureza.

Ser canhota para você é...

Me realizar como pessoa. Ser eu. Eu me sinto bem.

E eu já reparei se fizer uma coisa manual com a direita não é bom. Se mexer

uma panela com a direita, a comida não sai gostosa. Não me sinto.

É só a caneta para escrita.

O resto não dá! Só pela esquerda!

125

ANEXO 7 – DEPOIMENTO DULCE

Me conta um pouquinho sobre a sua vida, por favor...

Nunca tive trauma de coisa alguma. Nunca tive depressão por conta de coisa

alguma. Tive quatro filhos assim (na sequência). Tudo de cegonha louca,

sabe? Da Dulce, a mais velha, para a Raquel foram três anos. Então era uma

cegonha responsável e inteligente. Depois um ano e três meses, e um ano e

três meses. Você já imaginou?

Quase nada. Não sobrava muita coisa.

Posso dizer que quando eram pequenos eu tinha quem me ajudasse, mas

quando acabava o dia eu estava exausta. Vai atrás de um, pega o

brinquedinho do outro, dá comigo para o seguinte, leva para o colégio, sai

correndo. Mas nada que me alterou a vida.

Nunca tive problema nenhum. Não posso sequer imaginar de dizer: “meu

Deus, será que isso é resultado de não terem deixado eu ser canhota?”

Nada, nada, nada.

O mais light possível, você pode escrever, que não tenho coisa alguma.

Agora, descobri com a vida que tudo que me obrigaram a fazer, eu faço com

a direita. Como com a direita. No Colégio S jogavam vôlei, e toda vida eu dei

saque com a esquerda. E diziam: “meu Deus, como você consegue?”. E o

Eric (marido) quando você disse que vinha, disse: “pois é, uma coisa que eu

fico olhando em você é quando” eu resolvo, excepcionalmente quando quero

me enfeitar, faço um risquinho bem pequenininho, “fico olhando você fazer

aquilo com a mão esquerda” (fala do marido). Nunca me obrigaram maquiar.

E aí eu nem sabia se fazia com a esquerda ou direita. Não tinha reparado.

Hidratante é com as duas mãos, mas pó de arroz sólido, blush, batom, tudo é

com a esquerda.

Só o que me obrigaram... (que faço com a direita). Tenho a impressão que

não é bem só, mas você pode dividir: o que não fui obrigada, faço com a

esquerda; o que fui obrigada, faço com a direita. Principalmente escrever e

comer, que foram as duas coisas que as irmãs do Colégio S me obrigaram.

Agora, por exemplo, não tenho ideia se chego no carro...eu acho que é com a

esquerda que eu abro o carro. “Pai (se dirige ao marido), ela está me pondo

126

em um apuro. Não sei se abro o carro com a esquerda ou com a direita” . Eu

estava dizendo que tudo que me obrigaram eu faço com a direita, e tudo que

não me obrigaram eu faço com a esquerda. Deve haver alguma exceção,

mas eu não sei dizer.

Na verdade, hoje em dia eu sou ambidestra, porque eu lido com as duas.

Agora eu não sei mais escrever com a esquerda. É difícil. Eu vou melhor que

uma pessoa que só faz com a direita, mas é difícil.

Você causou diversos problemas. Porque eu comecei a reparar o que fazia

com a direita e com a esquerda.

Fiquei vendo. Por exemplo, o carro. Guiar todo mundo guia igual. Mas se eu

chego no carro, se eu pego a maçaneta com a direita ou com a esquerda. Eu

acho que é com a esquerda.

E outro dia, depois que você disse que vinha, eu quis fazer uma coisa que

faço com a esquerda, com a direita, e você sabe que me prendeu aqui?

(massageia o ombro direito) [risos]

Eu digo: que coisa difícil de se notar.

Não tenho nada...não sei mais o que você quer saber?

Marido: Você falou do olho? Acho o mais importante. Ela fazer a delineação

do olho perfeito com a esquerda

É engraçado, né. É espontâneo. O que eu faço com a esquerda decerto

continuo fazendo. Você quer saber uma coisa que eu sei que faço com a

esquerda? Bater clara. Hoje em dia a maioria das pessoas bate com coisa

elétrica. Eu ainda gosto de bater a mão. Tenho preguiça de pegar mixer,

coisa de bater clara, lavar etc. Eu bato clara com a esquerda! (enfatiza)

É gozado, porque não fiquei com trauma nenhum. Não fiquei gaga como o

George VI7, nada. [risos]

O diabo inclusive era chamado: o canhoto.

Marido: Se você olhar no dicionário tem muitos nomes diferentes para o

diabo. Canhoto era um deles.

7 George VI assumiu o trono de Rei da Grã Bretanha e Irlanda em 1936. A história conta que era naturalmente canhoto, e foi forçado a usar a mão direita.

127

O diabo.

Então a primeira coisa, quando eu saí de casa, no primeiro dia de aula, eu

sabia fazer umas letrinhas...

Imediatamente elas me tiraram da mão esquerda e falaram: “não é com essa

mão que a gente escreve. É com essa (direita). E você está escrevendo com

a mão errada”. Mas eu toda vida fui boa praça, não liguei para aquilo, e

aprendi com a direita. E pronto.

Mas fazia tudo com a esquerda.

Em casa minha mãe e meu pai nunca ligaram.

E hoje eu tenho duas netas canhotas. Tenho. Uma filha da Dulce, e uma filha

do Eric Filho. As duas são canhotas. Mas hoje não. Hoje deixam. Fazem tudo

com a mão esquerda. O que quiser. Se quiser fazer alguma coisa com a

direita, ninguém proíbe. Mas faz tudo com a esquerda.

E como era lá na escola? Essa proibição?

Se eu tivesse com a mão esquerda...

Não sei se a gente começou a escrever com lápis no Jardim da Infância.

Devia ser com lápis. Elas me tiravam: “não! Não é com essa mão que a gente

escreve. Tem que pegar o lápis com a outra”.

Então foram forçando, forçando, até uma certa altura que passei a escrever

com a direita e pronto.

E você era a única (canhota) na sala?

Ninguém. Só eu. Pior ainda. Se ainda tivesse companhia... [risos]

Amarraram, fizeram esse tipo de coisa?

Nada, nada. Não amarraram a mão, não fizeram nada. Foram insistindo.

Para comer no refeitório também. O meu era integral, a gente almoçava lá

todo os dias. Entrava as 8h e saía as 16h30. No refeitório também: “não

pegue o garfo (com a esquerda)”. E eu era pequenininha, tinha 6 anos e

128

comecei a fazer. Tão logo podia trocava. Até que um dia eu passei a só

comer com a direita.

Não criou problema nenhum. Aliás, para a entrevista eu devo ser muito pouco

eficiente. Não tenho trauma, estresse, coisa alguma. Não amarraram a minha

mão, fui por bem. Mas que diabo? [risos]

Alguém explicava por que não podia escrever com a esquerda?

Não. Só que o certo era escrever com a direita. E o certo era comer com a

direita. E escrever com a esquerda e comer com a esquerda, era errado.

Simples, pronto.

Com 6 anos, e naquele tempo não é que nem hoje que falam alguma coisa e

a criança logo retruca: “por que isso, por que aquilo?”. Você não podia. Se

era errado, eu tinha que aprender com o certo. Não havia objeção ao que a

irmã estava dizendo. (respira fundo) Meu Deus, a gente não podia fazer

nada.

Eu sou do tempo que quando a professora entrava no Colégio S, elas

entravam, a gente levantava e ficava ao lado da carteira esperando. Quando

ela sentava, a gente sentava.

Eu não sei se abro e fecho garrafa com a esquerda...

Nunca dei muita importância a isso, sabe?

Então, por exemplo, depois que você falou que vocês vinham, eu comecei a

prestar atenção em algumas coisas que eu faço e nem sabia. Com a

esquerda e com a direita.

Foi automático, sem maiores problemas.

Por isso que eu digo que sou sem graça para a entrevista.

Eu não tenho nada.

Trabalho manual eu faço com a direita, porque no Colégio S tinha aula de

trabalho manual. Até hoje não me passa pela cabeça, nem sei, pegar uma

agulha, pregar um botão com a esquerda.

Tudo com a direita.

Mas tinha lá.

129

Isso eu não me lembro se elas me obrigaram a pegar e fazer com a direita.

Não sei. Decerto foi. Porque era ensinado no colégio.

Tudo que foi de lá eu faço com a direita.

Existe hoje em dia tesoura para canhoto, e coisa.

Porque as tesouras, principalmente as grandes, são feitas com uma lâmina

maior e outra menor, uma sobre a outra. Fica mais difícil.

As pessoas gostam (de serem canhotas), porque é diferente.

Marido: Vou te contar uma coisa. Não sei se você já ouviu de alguém. Sou

canhoto de perna. Só chuto com a esquerda. E para mastigar. O lado de cá

(esquerdo). Uma vez me aconteceu de mastigar uma maça (do lado direito) e

mordi a língua. Você imagina o trabalho que deu para estancar o sangue...

(por causa do anticoagulante)

O Eric então é direito, esquerdo e aí vai.

[risos]

Marido: A única coisa que faço com a esquerda é o pé. E mastigar. Ainda

hoje que lembrei disso.

Mastigar eu não sei se faço com a esquerda ou com a direita.

E você se intitula destra ou canhota?

Hoje eu sou destra. Se me perguntarem, digo que sou destra. O canhoto

ficou lá tão longe, tão longe, que o que eu faço com a mão esquerda é

espontâneo. Não sei se estou fazendo com a esquerda ou com a direita. De

resto é esquerda ou direita conforme cai a coisa.

Você considera que tenha nascido canhota?

Canhota! Ah sim!! Era tudo com a mão esquerda.

130

Marido: Tinha um pacto com o demo (brincadeira)

Estão vendo o perigo! Somos duas canhotas aqui.

(risos) Duas canhotas aqui!

Para as freiras, antigamente era um caso de polícia, gente.

Elas falavam com os pais, ou não?

Não. Elas resolveram ali mesmo. Não me lembro nunca que tenham falado

com pai. Coisa assim não.

Marido: O S era um colégio autoritário, à moda antiga. Nem sei se havia, a

não ser quando era para expulsar, se havia alguma conversa com o pai. Hoje

que há Associação de Pais e Mestres, reuniões.

Naquele tempo não. A irmã dizia, a diretora dizia, estava dito.

Em casa, ninguém ligou.

Ai, ai. (respira fundo).

Estou pensando em histórias, mas acho que não tenho.

Brinco com o Eric que nós dois somos muito sem graça.

Porque o Eric viveu uma vida de estudar e trabalhar. Trabalhar e estudar. E

ficava em casa, brincava com os filhos, quando pequenos ia passear com as

crianças, coisas assim. Mas nunca foi de muito movimento social. Ele dizia:

“não tenho tempo. Se eu começar a fazer noitada, sair e tudo, nem estou

pronto para estudar, nem para trabalhar”. A gente tinha vida social, é lógico,

mas nunca fomos desses arroz de festa. Como se dizia antigamente. E nós

somos muito pacatos.

Agora que o Eric não trabalha, e estamos mais velhos, brinco que somos tão

sem graça. Não vemos novela, não dizemos palavrão...Na internet estou,

mas não sabemos contar anedota. Não somos sem graça? (risos).

131

Marido: Uma coisa que vou acrescentar à você. Eu tinha enxaqueca quando

era mais moço. Sempre do lado esquerdo. Uma única vez senti a dor de

cabeça do lado direito. Anos a fio, do lado esquerdo. Entrava por aqui (pela

frente) e saía por trás. Não sei se tem alguma coisa a ver com a esquerda e

direita, não tenho a menor ideia. A enxaqueca é uma doença com dor

hemicrania. Mas eu podia ter do lado direito, não do lado esquerdo. Mas era

sempre do lado esquerdo.

Interessante.