selva (boca santa - 4. foda-se)

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Selva é o quarto livro da BOCA SANTA. É o Foda-se. E é cria de Raphael Gancz e Bruno Maron. Conheça todos os palavrões e livros e tudo da BOCA SANTA: www.boca-santa.com 4. foda-se - Selva - texto: Raphael Gancz - desenhos: Bruno Maron - edição: Luis Rafael Montero - projeto gráfico: João Gabriel Monteiro e Carniceria Livros - publicação: Carniceria Livros e A Oficina do Santo

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Para Selva,

e mais ninguém.

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SUM RIO 1 - a cabeça 2 - Eu tava bêbado 3 - S 27 4 - Prometo que isso nunca mais vai acontecer 37 5 - R 43

6 - M de culpa 51 7 - Estou disposto a começar do zero 61 8 - A gente merece uma segunda chance 71 9 - Todo casal tem problemas 7 10 - Eu nunca senti isso por

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11 - T mulher da minha vida 12 - Esse tempo longe me fez enxergar melhor as coisas 7 13 - Eu te amo

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You  know  the  song  of  love  It's  empty  now  As  it  always  seems  To  have  been  You  can  go  on  home    (Manassas  /  Stephen  Stills)    

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1. NÃO SEI ONDE EU ESTAVA COM A CABEÇA

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Desculpa Não sei onde eu estava com a cabeça eu assumo Nem sabia por onde a minha cabeça andava Só sei, Selva, que ela não estava aqui presa, presente, apoiada no pescoço Talvez estivesse na sala, sentada no sofá, recostada na almofada as pernas pro alto, assistindo a algum programa de auditório safado com dançarinas cavalas Talvez estivesse jantando, cotovelos na mesa, cabeça mal-educada, comendo comida de ontem, deixada dentro da panela o teflon todo arranhado

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A cabeça em cima da pia, talvez, próxima a pratos sujos de sopa seca detergente de limão nas vistas, bolhas de sabão voando pelas narinas Não sei se a cabeça estava na privada, aos soluços & solavancos, se sentindo enjoada respingos de vômito nas bochechas, no queixo, na barba Talvez estivesse no parapeito, meio tonta, olhando pra baixo reparando como, assim de longe, as pessoas parecem estar sempre a passeio A cabeça inclinada sobre três carreiras de cocaína, talvez as carreiras em cima de uma edição capa dura do Apanhador marcada na página 53 Embaixo do tapete, talvez, a cabeça comendo poeira, lambendo fios de cabelo

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farelo, formigas, sujeira Dentro do saco de lixo de dias, cabeça-camundongo, revirando sobras de líquidos, cacos de vidro, maços vazios Talvez numa bandeja, a cabeça sendo servida, com batatas ao murro, a imperadores excêntricos, talvez num despacho mais elaborado, num ritual satânico improvisado A cabeça enfeitando, talvez, a parede de um caçador canibal Talvez Em mim, Selva eu garanto a cabeça não estava

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2. EU ESTAVA BÊBADO

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Selva eu tava bêbado Sei que não justifica o erro mas eu estava bêbado Sei que não é desculpa mas eu estava bambo em cima da corda quando uma sombra num sopro de tuba me derrubou de bruços Sei que não me absolve, Selva mas levantei torto a vista curta e vi em outras faces a sua – ou a sua é que sempre foi muitas?  

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Chamei seu nome ao contrário A voz saiu débil, cavernosa do diabo Festa que parecia fábrica produzindo você em massa Ombros pensando que eram pistons Uma pulseira de prata das que você usava me levou num passo de valsa Selva não pude fazer nada Eu juro Eu juro: eu jurava

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3. MENTI PRA TE PROTEGER

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Selva Tinha pra mim que minha mentira seria um escudo blindado feito de policarbonato empunhado à sua frente por todos os guardas de uma tropa de choque numerosa Tinha pra mim que minha mentira seria uma máscara que protegeria seus olhos do gás que as verdades exalam Tinha, pra mim, que seria um abrigo equipado com todo o tipo de enlatado pra você sobreviver tranquila à passagem do tornado Tinha pra mim, Selva, que você era feita de material frágil Massa folheada Espuma de leite desnatado

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Menti porque queria você intacta Sem rasuras nem emendas Queria você o traço firme do desenho que começa e termina no mesmo ponto do papel O primeiro pensamento O projeto original que ainda não passou pelo crivo severo da realidade Menti, Selva porque queria você uma ideia Uma ponte

Um moinho

Um castelo

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4. PROMETO QUE ISSO NUNCA MAIS VAI ACONTECER

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Selva, Selvinha O que falta nestas palavras para você atender aos apelos meus e crer nas promessas minhas? O que mais eu posso dizer além do que estou dizendo a você? E acrescento: nunca isso NUNCA mais vai acontecer Sim, eu sei, prometer não basta É necessário fazer Quer dizer, NÃO fazer – mas como, não fazer? Para ver – ou não ver – é preciso pagar Só com o tempo é possível se certificar de que o mesmo erro não ocorrerá Só assim é possível assimilar esse nada essencial que, eu garanto, logo vai se consolidar

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Selva descalce as sandálias surradas levante a barra da saia coloque a oferenda no mar Calma, meu bem, calma No que depender de mim o tal nada vai chegar

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5. RECONHEÇO QUE FUI EGOÍSTA

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Selva Não tenho vergonha na cara nem no resto do corpo Não tenho vergonha na pele, nas palmas das mãos dentro das orelhas Não tenho vergonha nas pálpebras, nos pulsos, no céu da boca Não tenho em cima dos ombros nem nos músculos das costas Não tenho vergonha nas falhas Não tenho vergonha nas dobras Quando você apareceu, eu avisei Sou publicitário E fiz questão de deixar claro: daqueles típicos No começo, você achou graça Depois, viu melhor do que se tratava Você, uma escultora consagrada Uma artista de verdade

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Se relacionando comigo, um Diretor de Criação de agência de publicidade A profissão que, como você provocava, mais comporta adultos que não cresceram É verdade, Selva Hoje eu percebo o quanto o meu talento era ingênuo o quanto eu era tolo perto da sua totalidade o quanto a nossa troca era injusta Você tentando me dizer o que é Pátina, Relevo, Entalhe, Repoussé Eu falando que o estagiário tem mais é que se foder Você tentando me explicar as belezas do bronze Eu me gabando pelo ouro que ganhei em Cannes

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Você tentando me introduzir à obra de Rodin Eu admirando os anúncios do Nizan Eu e meu humorzinho detestável Meu humorzinho show de calouros Humorzinho informal, que pede sempre uma confirmadinha no final Né? Não é mesmo? Humor de quem acha que quando não riem é porque não entenderam a piada É porque “levam tudo muito a sério” Selva, eu aceito: tudo bem você não achar graça Tudo bem me enxergar como uma farsa Debochar do meu meu cabelinho Dos meus oclinhos quadrados, da minha salinha de vidro Das bandinhas indie de amigos

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Da minha Fender parada, enferrujada de fábrica Das minhas frases de efeito sobre tudo que eu julgava serem sábias e mordazes mas cujo único efeito era quase sempre pueril, precário, pífio Quase sempre bobíssimo Aquilo que você falava, Selva, sabe? De que todo publicitário é, por essência, um pouco esquizofrênico porque fala em nome de alguém que não é ele com uma voz que não é a dele amparado por um BANCO uma SEGURADORA uma IMOBILIÁRIA Faz sentido, sabe, Selva? Me escondi atrás de tantas marcas, que acabei me tornando uma Sério, Selva, volta Você é a santa que me redime

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A entidade que me entende Preciso do seu aval, do seu julgamento Dependo da sua bênção Eu me achava um mar de sabedoria capaz de banhar os 5 continentes com minhas águas habitadas por peixes abissais Você botou uma máscara de mergulho na minha cara segurou firme a minha nuca e me deu um caldo Me fez enxergar que o meu mar, apesar de amplo, não passava de dois dedos de profundidade Selva Sinceramente Só posso dizer obrigado

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6. MAS VOCÊ TAMBÉM TEVE UM POUCO DE CULPA

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Sel Deixe o vaso entalhado como está inteiro quieto no canto Deixe o cinzeiro como está sujo, em cima da mesa de centro, povoado por cigarros incompletos Deixe o relógio como está quadro de traços móveis pendurado na parede da cozinha Deixe a lata de tinta preta como está fechada, prateada próxima à lata de pêssego em calda Deixe meus discos como estão tocando mudos em caixas de plástico entocadas no topo do armário

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Selva deixe tudo como está baixe a guarda, guarde as armas e não me atire nada Estou tentando uma maneira de você falar Olhar as coisas pelos meus olhos pode fazer você refletir, considerar Meus olhos não seriam tão corrompíveis

quanto os seus, canalha

Não, seus olhos estavam petrificados, fixos numa direção qualquer que não a minha Os seus olhos são soltos, de boneca que-

brada, olham pra qualquer lado, qualquer

um, qualquer uma, sempre à procura

de algo

Selva, estar atento a tudo é da minha profissão, faz parte do meu trabalho

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Por isso o que você faz se extingue tão

rápido. Sua versatilidade torna você

perecível, descartável

Eu não entendia mais o que você falava, tudo era sem nexo, desfocado, as interpretações se multiplicavam. Eu sou publicitário, não estou acostumado Coitado. O que você cria depende de sen-

tido, é limitado, parco, pobre. Nunca é

selvagem, primitivo. O que você cria

nunca explode

Seu ateliê tinha ficado espaçoso demais. Ganhado vida. Esculturas e estátuas subiam pelas escadas. Sua arte transbordava. Selva, eu já não cabia mais em casa

Você tem sempre a estratégia traçada, o

planejamento passo a passo. Segue à ris-

ca a cartilha, persegue firme o objetivo,

pensado desde o princípio. Depende

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sempre do resultado. Me diga, canalha: não cansa ser assim, um operário programado? Selva, tenha calma, não me atire nada Estava difícil alcançar você cada vez mais cercada de materiais densos Não tinha folga, não tinha tempo Entre nós, fez-se um muro Metal Madeira Arame Massa de modelar Entre nós, o giro do torno a faísca das máquinas a sujeira acumulada nas palmas das mãos

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Entre nós, Selva obras em andamento torsos inacabados cabeças e membros invisíveis mais humanos e sensíveis do que os meus  

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7. ESTOU DISPOSTO A COMEÇAR DO ZERO

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E se eu fingir não saber mais o seu nome? Não ter mais os seus dados Não saber mais o nome da sua rua o número do seu prédio, do seu andar os dígitos do seu celular E se eu fingir não saber mais o que você faz da vida? O que quer da vida Fingir não saber mais que no café em vez de açúcar você prefere conhaque Rémy Martin E se eu fingir não saber mais que você gosta de gardênias? Pela folhagem e não pela flor Não saber mais que você conversa com todos os seus peixes?

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Mas escuta apenas um, o dourado mais velho E se eu fingir não saber mais que quando ansiosa você come papel higiênico? E gosta quando ele desmancha na língua suave, calmo, hóstia Fingir não saber mais que você tem o seio esquerdo maior e mais caído que o direito Não saber mais que quando pequena, no sítio do seu avô você deu um tiro de espingarda na canela de um moleque que passava E se eu fingir não saber mais como você gosta de ser abusada? Fingir não saber mais por onde a sua carne pede

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Não saber mais que você gosta de ser acordada sendo penetrada sem aviso prévio E se eu fingir não saber mais que você saliva quando apertam seu pescoço e adora quando enfiam a mão pesada na sua cara? Não saber mais que você acha interessante foder em cima da privada só porque a função da privada é outra Fingir não saber mais que, quando eu gozo dentro, você não se limpa até ser comida de novo pra sentir a porra velha transbordar e deixar tudo mais cremoso E se eu fingir não lembrar mais a cor rosada dos seus grandes lábios gordinhos como almofadas

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nem o sabor de caviar do seu cuzinho apreensivo? Fingir não lembrar das noites que você acha pouco ser tratada feito puta e pede pra ser tratada feito lixo, a chutes e cuspidas Não saber que você tem um acervo de esculturas pessoais Paus de barro vidrado que você gasta horas alisando da base até a glande, da glande até a base Não saber que você se excita com histórias reais de estupro de turistas ocidentais que passeiam pelo Cairo e com a remota possibilidade de elas ficarem molhadas quando algum fanático atrevido apalpa-lhes a bundinha branca

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E se eu fingir não saber que uma das suas fantasias é ser amarrada nua num poste na subida do morro e ser comida por quem quer que passe polícia, bandido ou cachorro? E se eu fingir não saber de nada disso só pra gente ter o prazer de começar tudo de novo?

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8. A GENTE MERECE UMA SEGUNDA CHANCE

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Teve, Selva, um segundo passo mais lento na saída do concerto que foi quando eu te alcancei Teve uma segunda dose, um segundo trago, uma segunda tosse Uma segunda tarde inteira, à toa, no quarto o som da TV desligado Teve uma segunda taça – quebrada Uma segunda garrafa de cachaça Um segundo baseado, puro, sem filtro e sem tabaco Teve um segundo gole d’água da pia pra matar uma segunda sede decidida e repentina Teve uma segunda calcinha suja na minha gaveta Um segundo elástico de cabelo na minha mesa de cabeceira

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ao lado de um segundo pote de vaselina Na vitrola, tocando Verve, teve uma segunda voz Um segundo livro roubado da estante Um segundo fone de ouvido emprestado porque o seu, mais uma vez, estava dando mau contato Teve um segundo engradado servindo de assento na calçada Um segundo espetinho devorado numa segunda madrugada carcomida no mesmo quiosque enferrujado Teve uma segunda lua minguante Um segundo temporal Carros flutuando numa segunda enchente Teve um segundo acidente bem em frente ao seu prédio

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Teve uma segunda aranha no banheiro Uma segunda barata no sapato Um segundo rato no forro do teto Teve um segundo desaforo Um segundo osso de corvo entalado na garganta Teve uma segunda flechada Um segunda luta de espada Uma segunda execução na guilhotina Teve um segundo dedo no olho Um segundo soco na boca do estômago Uma segunda fratura exposta em altíssimo relevo Selva, sejamos justos você me deu muito mas ainda me deve alguns momentos de sossego!

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9. TODO CASAL TEM PROBLEMAS

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Em que planeta você vive, Selva? Em que planeta você está vivendo agora? Em qual cratera de qual lua de qual planeta? Estou te caçando há séculos, farejando seu rastro por noites poluídas arrastando as narinas no rodapé das ruelas Estou apurando meus ouvidos, tentando captar suas ondas sonoras soterradas por sirenes de ambulância e barulhos de helicóptero Estou esperando você escrever pelo menos uma, duas linhas de xingamentos endereçados a mim, ou à minha mãe, por ter me parido e me educado Não te peço mais que tenha calma, Selva Quebra minha vidraça, as telhas da minha casa

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Vem, coragem, vamos nos resolver Diz qualquer atrocidade sobre meus traumas, minhas confissões da infância segredos que só contei a você PORRA SELVA APARECE Sai de trás das cortinas Me taca uma torta Um balde de cimento A plateia está esperando Selva, o que fiz é normal As pessoas mais fazem do que não fazem. Muito mais. Mas o normal se torna anormal simplesmente por estar fora de contexto. O sangue, a merda, o mijo, convivemos muito bem com eles enquanto estão intimamente circulando no organismo Basta saírem, surge o asco

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Desaba, Selva, desabafa, vomita essa raiva, ira irascível, pega o martelo e o cinzel e vem esculpir o mármore da minha cara, reduzir a superfície da minha testa, transformar meu crânio em ruína, martela, bate, abre a minha cabeça, deixa tudo do jeito que você quiser, molda meus miolos a seu gosto, a seu desgosto, que seja, vem, Selva, eu deixo você tem esse direito  

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10. EU NUNCA SENTI ISSO POR NINGUÉM

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Selva, precisava fugir de mim como se eu fosse um automóvel capotado com gasolina vazando? Precisava? Você se ejetou de mim Deu um salto mortal de mim e mergulhou de cabeça em qualquer lugar que fosse fora de mim Precisava? Hein? É com essa calmaria que eu não sei lidar Essa falta de comunicação Você é meu público-alvo, Selva, sempre será Por que não me dá um feedback? Eu não estou acostumado a isso, a ser ignorado assim Eu sou um especialista em atingir as massas penetrar as classes A minha propaganda sempre foi eficiente Além: de longo alcance Eu sempre contagiei as pessoas com meus slogans impactantes, meus comerciais de peru de natal regados a emoção e felicidade aparente

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Que porra tá acontecendo agora, que eu não consigo mudar a percepção de uma única pessoa? Por que é que eu sinto a garganta ranhenta, esse gosto de sabão em pó, detergente, amaciante, por que é que eu tenho a sensação de que tudo o que estou dizendo já foi dito antes? É por isso que não está surtindo efeito, Selva? Porque você é uma artista vacinada em que veneno de boutique não pega? É? Hein? RESPONDE PORRA FALA ALGUMA COISA Oi? Quê? Como eu sei que nunca senti isso? Porque meu corpo está dormente, Selva

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Estou mudo das minhas certezas, receoso dos meus hábitos Estou procurando novos costumes, adquirindo novos modos e mecanismos para evitar a assombração da sua imagem Tento bloquear as lembranças que trazem lembranças que trazem lembranças Corrente calibrada que me prende pelo pescoço e não me deixa circular Eu sei que nunca senti isso porque andei fazendo cálculos O sentimento é medido pelas palavras não ditas pelo vazio que fica Não pelas canções por ele inspiradas, ou por serenatas ao pé da janela mas pelos corpos que se atiram dela O sentimento é medido pelo estatelamento da alma Pelas faltas no corpo

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Unhas, quilos, cabelos Eu sei que nunca senti isso porque nunca me peguei assim, Selva Varrendo restos de ontem que caem de mim como areia de praia

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11. TENHO CERTEZA QUE VOCÊ É A MULHER DA MINHA VIDA

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Não que eu acredite nesse mote mas não posso permitir que você seja a mulher da minha morte Nem a física – essa eu não teria coragem Nem a da minha sanidade Selva, não quero seu fantasma Daqui, não vou deixar que seu espectro ultrapasse Não vou tolerar que o seu sumiço comprometa o meu critério de profissional de propaganda (“Profissional de propaganda” como isso soa triste sem você) Selva, cretina, você está viva? Penso, por exercício, como seria se estivesse morta Penso no enterro, que pode estar acontecendo agora Em que posição estaria eu em relação ao caixão?

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Ao lado, bem perto, contemplando a sua cara de cera? Eu certamente nem seria chamado Provavelmente nem ficaria sabendo Você morreu, Selva? Você ainda habita o mesmo corpo geométrico, de quadris de losango, cintura de vértice e costas em V? (Mesmo quando me acalmo, é uma calma desesperada, de filho mimado que, entre um berreiro e outro, abaixa e adoça de repente o tom da voz, na tentativa de fazer a mãe, irredutível, se comover e mudar de ideia. E, quando nota que não teve êxito, retoma automaticamente a malcriação) Selva, como eu te acho? Em qual guia de viagens encontro seu mapa? Sigo por qual estrada? Obedeço qual placa?

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VACA Estou preso ao enquanto das coisas Imagino se nossos gestos, mesmo distantes, conversam Se, enquanto eu leio o jornal, você queima a boca com o café e esquece das torradas Imagino se, de manhã, enquanto eu disparo o primeiro jato de mijo, você cospe a pasta de dente com manchas de sangue Se, enquanto eu limpo a poeira dos vidros, você admira a vista da sacada, tomando seu chá de bergamota Imagino se você conclui o seu David, enquanto eu refaço uma campanha estúpida, que o cliente não gostou, mas não soube explicar por quê

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Eu quero explicações, Selva Evidências que me libertem Um telefonema anunciando seu sequestro Uma encomenda com um pedaço do seu dedo É a sua invisibilidade o que me apaga O abstrato está montando em minhas costas e pesa, no mínimo, uma tonelada

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12. ESSE TEMPO LONGE ME FEZ ENXERGAR MELHOR AS COISAS

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Entendi Nem último afago, nem palavra ou ruído Somente silêncio submarino Sabe o que você me lembra, Selva? Um chef de cozinha japonês Daqueles que, num susto, tiram a pele do peixe o peixe ainda vivo Você deixou meus filés expostos Aos espasmos Amputou minhas nadadeiras Fiquei me debatendo, patético, na tábua de corte Querendo ar, água Mandando beijos para ninguém Eu entendi, Selva Você usou meu deslize em causa própria Recolheu de mim material inédito

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para a sua grande obra Você foi abrindo espaço Tirando a casca Me preenchendo de lacunas Eu fui seu experimento Sua escultura inovadora – sem formas, sem limites: desescultura Peça pós-contemporânea Troféu de aniquilamento De mim, não sobrou muito Apenas a expressão vazia Toma, Selva faz um túmulo Joga fora Engole Enfia  

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Raphael Gancz nasceu em 1980, no Rio de Janeiro. Em 2010, publicou o livro de manifestos poéticos ContraBandos (Edith). Tem contos em diversas antolo-gias, como Granja e Maus Escritores. Bruno Maron é carioca, quadrinista e se mudou para São Paulo há dois anos. Foi ilustrador e infografista dos principais jornais do Rio de Janeiro (O Globo e Jornal do Brasil). Em 2007, ganhou o prêmio de melhor animação online pelo seu curta Praxedes, um Es-permatozóide. E, no ano seguinte, teve seus desenhos publicados na Revista Gráfica Internacional. Atualmente, cola-bora para a Folha de S.Paulo e trabalha como ilustrador e animador, além de alimentar o blog Dinâmica de Bruto.

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SELVA Carniceria Livros A Oficina do Santo texto: Raphael Gancz desenhos: Bruno Maron edição: Luis Rafael Montero projeto gráfico: Carniceria Livros João Gabriel Monteiro revisão: Carniceria Livros

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BOCA SANTA idealização: Luis Rafael Montero realização: Carniceria Livros A Oficina do Santo design: Juneco Martineli João Gabriel Monteiro fotos e vídeos: João Gabriel Monteiro Felipe Schürmann Vinicius de Oliveira A Oficina do Santo programação do site: Guilherme "Nabo" artistas: Juliana Amato, Mariana Coan, Raphael Gancz, Fernanda Grigolin, Isadora Krieger, Lobot, Bruno Maron, Pedro Mattos, Daniel Minchoni, João Gabriel Monteiro, Luis Rafael Montero, Mario Neto, Nelson Provazi, Maria Ribeiro, Felipe Valério.  

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