salvatore gardi - história não contada - bastidores de uma guerra

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SALVATORE GARDI – HISTÓRIA NÃ0 CONTADA - BASTIDORES DE UMA GUERRA. Por: Umile Gardi “E DEUS FEZ O HOMEM À SUA IMAGEM” Assim está nas escrituras. Mas acho que a fórmula foi sabotada e, quando Ele se deu conta, já era tarde demais. Na certa, aqueles Anjos mais tarde expulsos do paraíso, adicionaram alguns ingredientes à fórmula, valendo-se da confiança que desfrutavam D’Ele. A ganância, a cobiça, a crueldade, a deslealdade, o desamor, a hipocrisia, a egocentricidade e outros malefícios mais, não faziam parte do plano original. Quando os sintomas foram por Ele notados, já era tarde, pois, as sementes já haviam de espalhado e se multiplicado. Só restava uma solução: destruir sua própria criação. Mas Ele não teve coragem, pois já os amava muito, apesar de tudo. E resolveu lhes dar novas chances, .......por diversas vezes. E o que ele recebeu em troca ? Este mundo de hoje, repleto de guerras, inclusive em seu nome, genocídios, desamor, apego total pela matéria. Os homens que se propuseram a propagar seu nome, seu amor, aos poucos foram se transformando em verdadeiros hipócritas, fundando e administrando casas chamadas de “Casa de Deus”, para também em Seu nome, formar e administrar verdadeiras organizações comerciais com a finalidade de extorquir os fiéis de suas poucas posses e amealhar incomensuráveis fortunas com fins particulares. Quando Cristo expulsou os mercadores de seu Templo, deixou bem claro que a sua casa foi fundada com o único e exclusivo propósito de servir aos necessitados e que dentro dela não seria permitido comércio nem acúmulo de bens materiais. E o que temos hoje ? Templos suntuosos, ricos, abastecidos de poderio sobre empreendimentos lucrativos. Verdadeiras máquinas de fazer dinheiro e, em contra partida, a miséria, a fome, a desigualdade estão cada vez mais difundidas. Acredito que um dia, os poucos que representam e seguem as pregações originais ainda terão êxito, nem que seja através de milagre, mas obterão êxito, pois a fé em Deus não morre jamais. O que me fez acreditar nesta possível recuperação, foram os papados de João Paulo I, João Paulo II e recentemente, o de Francisco.

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Esta história relata a experiência vivida pelo meu pai na Segunda Guerra Mundial, conflito em que esteve na frente de batalha. Sua tropa foi traída por um General Italiano, tendo que iniciar uma longa e difícil marcha da Rússia até a Romênia, enfrentando frio, fome, perda dos amigos e perseguição dos inimigos em busca da sobrevivência.

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Page 1: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

SALVATORE GARDI – HISTÓRIA NÃ0 CONTADA - BASTIDORES DE UMA GUERRA.

Por: Umile Gardi

“E DEUS FEZ O HOMEM À SUA IMAGEM”

Assim está nas escrituras.

Mas acho que a fórmula foi sabotada e, quando Ele se deu conta, já era tarde demais.

Na certa, aqueles Anjos mais tarde expulsos do paraíso, adicionaram alguns ingredientes à fórmula,

valendo-se da confiança que desfrutavam D’Ele.

A ganância, a cobiça, a crueldade, a deslealdade, o desamor, a hipocrisia, a egocentricidade e outros

malefícios mais, não faziam parte do plano original.

Quando os sintomas foram por Ele notados, já era tarde, pois, as sementes já haviam de espalhado

e se multiplicado.

Só restava uma solução: destruir sua própria criação.

Mas Ele não teve coragem, pois já os amava muito, apesar de tudo.

E resolveu lhes dar novas chances, .......por diversas vezes.

E o que ele recebeu em troca ?

Este mundo de hoje, repleto de guerras, inclusive em seu nome, genocídios, desamor, apego total

pela matéria.

Os homens que se propuseram a propagar seu nome, seu amor, aos poucos foram se transformando

em verdadeiros hipócritas, fundando e administrando casas chamadas de “Casa de Deus”, para

também em Seu nome, formar e administrar verdadeiras organizações comerciais com a finalidade

de extorquir os fiéis de suas poucas posses e amealhar incomensuráveis fortunas com fins

particulares.

Quando Cristo expulsou os mercadores de seu Templo, deixou bem claro que a sua casa foi fundada

com o único e exclusivo propósito de servir aos necessitados e que dentro dela não seria permitido

comércio nem acúmulo de bens materiais.

E o que temos hoje ? Templos suntuosos, ricos, abastecidos de poderio sobre empreendimentos

lucrativos. Verdadeiras máquinas de fazer dinheiro e, em contra partida, a miséria, a fome, a

desigualdade estão cada vez mais difundidas.

Acredito que um dia, os poucos que representam e seguem as pregações originais ainda terão êxito,

nem que seja através de milagre, mas obterão êxito, pois a fé em Deus não morre jamais. O que me

fez acreditar nesta possível recuperação, foram os papados de João Paulo I, João Paulo II e

recentemente, o de Francisco.

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Guerras, desde os primórdios, sempre foram e ainda são deflagradas em nome de Deus e em nome

da paz (quanta hipocrisia), mas na verdade, o escuso propósito é sempre o mesmo: ganância, fins

econômicos.

Antigamente, devido a então não existirem a Internet, a comunicação instantânea e os satélites, os

vencedores escreviam a história a seu bel prazer e, através de um verdadeiro serviço de marketing

pessoal, se transformavam em heróis, bons moços. Suas verdadeiras e maléficas intenções se

transformavam em maravilhosas justificativas e, de déspotas, passavam a verdadeiros santos.

Assim, tivemos inúmeros personagens, como Atila, os Césares, Lenin, etc e, pouco recentemente, o

responsável direto desta história que será narrada, Hitler, que subjugou e assassinou judeus, negros

e outras raças por ele consideradas inferiores, como por exemplo, os ciganos.

Mas estes povos sofridos, não devem esquecer que também tiveram seus déspotas, seus genocidas.

O povo judaico, por exemplo, não deve esquecer que seu maior Rei, Davi, não chegou ao poder

apenas derrubando um gigante filisteu, mas sim traindo a confiança de seu melhor amigo, a quem

dizimou a família para se apoderar da coroa e depois, em nome de uma suposta precaução, dizimou

etnias inteiras que habitavam as cercanias de Jerusalém. Assassinou milhares de centenas de

homens, mulheres, velhos e crianças que nada lhe haviam feito, sequer ameaçado.

O povo afro descendente, também não deve ignorar que grande parte do sofrimento experimentado

através da escravidão, foi patrocinado pelos seus próprios irmãos, que para se livrarem de seus

inimigos tribais, caçavam-nos e lucravam com a sua venda para os capitães de navios negreiros que

aportavam na África. Quem não conhece os fatos, assista ao filme “Amistad” para se ter uma

pequena ideia.

E, para não se esquecer de outras vítimas, relembrem o que os exploradores do velho continente,

em nome de políticas expansionistas de seus reis, juntamente com fins religiosos de propagação da

palavra de Deus, fizeram para dizimarem nações indígenas e povos nativos inteiros.

Tudo o acima descrito, foi para sintetizar uma citação que certa vez ouvi e, acho que ela é atribuída a

Hitler:

“O HOMEM É O SEU PRÓPRIO LOBO”

Nada mais verdadeiro.

E ele próprio vestiu sua verdadeira pele de lobo para causar o último genocídio ocorrido, já nestes

tempos: A Segunda Guerra mundial.

72.882.108 MORTES CONTABILIZADAS : SETENTA E DOIS MILHÕES E OITOCENTAS MIL. QUASE

SETENTA E TRES MILHÕES.!

26.000.000 soldados;

47.000.000 de civis, entre eles, 5.700.000 judeus.

(Fonte : Wikipédia).

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Maiores baixas:

Japão : 2.680.000

Indonésia : 4.000.000

Polônia : 5.600.000

Alemanha : 7.503.000

China : 20.000.000

União Soviética : 23.100.000

Impressionante!.

Tudo isto, em nome da ganância (aumento de territórios) e em nome de interesses econômicos.

Antes de tomar a decisão de contas a história sobre a experiência vivida pelo meu pai na 2ª guerra,

procurei ler e assistir a vídeos sobre a matéria.

As fontes estudadas foram uma coletânea de vídeos intitulada “A Caminho de Roma “ e o livro

intitulado “A Segunda Guerra – História e Estratégias”, matérias nas quais me atualizei sobre

dúvidas que tinha e me inteirei sobre alguns fatos até então para mim desconhecidos.

Então, a conclusão a que cheguei sobre os fatos que iniciaram, desenvolveram e finalizaram a

Segunda Guerra, foram os seguintes (síntese pessoal):

ALEMANHA, ITÁLIA E JAPÃO.

Pura ganância expansionista.

A Alemanha, inicialmente, tentou se aliar à Rússia de Stalin, para ocupar e dividir os países do leste

europeu e do Báltico. Acho que um tentou passar a perna no outro e a aliança foi desfeita (e o

impasse passou a ser mais uma frente de batalha para Hitler) e Hitler convidou Mussolini para

coadjuvante.

O Japão, cujo sonho era dominar a Ásia, principalmente a China Manchuriana, não excitou em

invadir e assassinar cidadãos chineses indefesos para limpar a área. A matança foi pior que a dos

judeus, que só foi retratada e historiada por estar em continente europeu. Como a China, na época,

era distante e os meios de comunicação parcos, e até sua importância no cenário internacional era

insignificante, a história ficou no ostracismo.

Para mim, a história do ataque a Pearl Harbor foi uma armação dos americanos, para que tivessem

uma desculpa inquestionável para intervir no conflito europeu. Nada que um bom suborno a uma

figura japonesa de importância não resolvesse.

Page 4: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Os japoneses foram induzidos a acreditar que os americanos reagiriam aos seus planos de

conquistar a Oceania, principal portão de entrada para os territórios chineses. E foi o que realmente

aconteceu.

Os americanos, ou melhor, Roosevelt, só entrou na guerra porque o expansionismo japonês em

território chinês estava atrapalhando os negócios de sua família naquela parte do planeta (quem

desejar saber quais eram os negócios, que leia o livro acima citado, página 34).

Assim, quem pensa as razões que motivaram a decisão de Roosevelt de intervir no conflito foram os

laços de amizade com a Coroa Britânica (Rei e Rainha foram aos USA pedirem, quase de joelhos,

que lhes prestassem ajuda) , estão redondamente enganados.

E, ao final da Guerra, o trato de divisão geográfica se concretizou para Stalin: ele ficou com o Leste

Europeu, comprou os países bálticos (Letônia, Estônia e Lituânia), agregou as pequenas republicas

asiáticas – notadamente os “quistões” , estendeu a fronteira russa sobre alguns países ( Ucrânia,

Geórgia, etc) e, assim, consolidou a União Soviética.

Não confundir com a “Cortina de Ferro”, que é, ou melhor, foi outra situação.

Registre-se também que grande parte das mortes de civis da União Soviética, foi limpeza étnica,

patrocinada por Lenin e Stalin.

Hitler, frente à Lenin e Stalin, em termos de genocídio, é ( ou foi) café pequeno.

E, depois de 1945, sucederam-se outras guerras, estas já motivadas pelo moderno mundo

industrializado, isto é, a queima de estoque de armas militares, as quais, não podiam ser,

simplesmente, jogadas fora. E assim se patrocinavam guerras para a venda do material, que eram

fabricados pelas grandes nações (USA, Rússia, Inglaterra e França). E os pequenos países pagavam a

conta.

Na guerra da Coréia, foram vendidas as sucatas que sobraram da segunda grande guerra, na guerra

do Vietnam, foram vendidas as sucatas da era do jato, e assim, sucessivamente, a indústria bélica

internacional, continua a ser o melhor negócio do mundo, superando até a indústria do petróleo e o

tráfico de drogas.

Hoje em dia, a maioria das guerras são por conquistas de jazidas minerais e petróleo. Essas estórias

de motivação religiosa, é puro papel de parede.

Amanhã, certamente haverá guerras por mananciais hídricos (não estamos longe).

Mas, enfim, vamos à história de seu Salvatore.

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SALVATORE GARDI – HISTÓRIA NÃ0 CONTADA - BASTIDORES DE UMA GUERRA.

Í N D I C E.

P A R T E I – TRAIDOS E ABANDONADOS NA RÚSSIA.

I – ROSTOV

II – A TRAIÇÃO

III – MACHIANUCE

IV – MUSSOLINI

V - O EXÉRCITO.

VI – MUSSOLINI SE ALIA A HITLER

VII – MARCHA PARA A RUSSIA

VIII –CONSTATAÇÃO DA REALIDADE

P A R T E II – A LONGA MARCHA DE VOLTA.

IX – DIREÇÃO ITÁLIA

X – A PROCURA POR ABRIGO E COMIDA

XIV – ASSALTO AO TREM

XI – ARMADULHA PARA O INIMIGO

XII – A PRIMEIRA BATALHA

XIII – CARNE! CARNE!

XIV – ASSALTO AO TREM

XV – OUTRA PONTE NO CAMINHO

XVI – AMIGOS FICAM PARA TRAS

XVII – CÃO SALVADOR

XVIII – O INIMIGO ATACA

Page 6: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

XIX – A RENDIÇÃO

XX – A VOLTA PARA A ITÁLIA

SALVATORE GARDI

Esta história relata a experiência vivida pelo meu pai na Segunda

Guerra Mundial, conflito em que esteve na frente de batalha.

Os fatos políticos e religiosos aqui narrados são provenientes de sua

visão à época dos acontecimentos, bem como suas admirações

pessoais.

Salvatore Gardi, um italiano de origem humilde da região da

Calábria, lutou na Segunda Guerra Mundial e teve uma experiência

triste e dolorosa enquanto esteve em combate.

E mais doloroso ainda foi o fato de não poder divulgar, desabafar

nem comentar em público estes fatos, sob pena de quebra de

juramento militar.

Pela narrativa dele, tudo ocorreu entre meados do primeiro

semestre de 1944 e março ou abril de 1945. Pelo que ele contou (o

principal) , lembro que era inverno e, pouco após seu retorno à Itália,

a guerra terminou. Lembro também que, pelos cálculos, o pesadelo

perdurou por 6 meses.

Dois anos após a guerra, casou-se com Teresa e, em 1948, teve a

mim, seu primogênito.

Em 1951, almejando uma vida melhor, partiu para o Brasil para

“fazer a américa”, expressão que se usava na época. A expressão

retratava o movimento de emigrar da Itália para algum país das

Américas, a fim de fugir da miséria e trabalho escravo a que eram

submetidos os habitantes do sul da Itália, notadamente da região da

Page 7: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Calábria. Então, deixando minha mãe grávida de minha irmã

Carmela, que nasceu meses depois, embarcou para o Brasil a fim de

se estabelecer e poder, mais tarde, chamar sua família.

Em 1955, já com trabalho garantido de engraxate, alugou dois

cômodos em um velho casarão no bairro de São Cristóvão, na

verdade um cortiço, no Rio de Janeiro e mandou buscar a família: eu,

minha mãe e minha irmã.

Assim, quatro anos depois ele conseguiu novamente estar com os

seus e lá vivemos, por 2 anos em São Cristóvão, onde nasceu o meu

irmão Jorge.

Quando ele conseguiu juntar o dinheiro para dar de sinal na compra

de uma casa, no bairro de Ramos, nos mudamos. Lá ele viveu até 22

de dezembro de 2002, de onde saiu doente para não mais voltar,

vindo a falecer em um hospital no dia 01 de janeiro de 2003, depois

de ficar internado por 9 dias.

Este relato se origina de fatos por ele narrados e por mim ouvidos

durante os habituais bate papos após o jantar, já na nova moradia.

Nos reuníamos no quintal dos fundos, sob uma goiabeira e

deitávamos sobre esteiras de junco. Éramos sempre eu, meu pai,

meu avô materno e o tio Bernardo. Ambos moravam conosco. Fins

dos anos 50.

Na época, como televisão era artigo de luxo, não dispúnhamos de

dinheiro sequer para comprar uma geladeira, quanto mais uma TV,

nossa única opção era o rádio. Ouvíamos o repórter às 8 da noite e,

depois, íamos para o quintal, deitávamos nas esteiras e batíamos

papo.

Invariavelmente, em determinado momento, o papo recaia no

assunto “Segunda Guerra”, na qual meu pai e meu tio combateram e

Page 8: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

viveram experiências como soldados nas frentes de batalha. Só que

a experiência de meu pai foi traumática e revoltante, e ele, quase

todo dia, contava os fatos que resultaram na edição deste livro.

Durante anos, na minha infância, ouvi aquelas histórias e me lembro

que, toda vez, durante a narrativa, os olhos de meu pai ficavam

marejados de lágrimas. As lembranças o faziam sofrer muito, mas, de

certa forma, ele se aliviava em contar. Eram fatos ocorridos há cerca

de 14 anos.

Foram experiências vividas quando ele foi enviado para a frente de

batalha, no sul da Rússia e, logo ao chegar, ele e seus companheiros

foram traídos por um inescrupuloso General e, para sobreviver e

chegar de volta à Itália, ele e seus companheiros (os que restaram)

passaram por experiências dolorosas, tanto física quanto

psicológicas, que os marcaram pelo resto de suas vidas. Foi uma

viagem de regresso cheia de sofrimentos e perda de centenas de

companheiros.

Durante a época de fins dos anos 50 a início dos anos 60, eu ouvia as

suas histórias, mas não me dava conta de sua importância, do

riquíssimo valor histórico, pois era muito jovem. Depois, em 1963,

comecei a trabalhar de dia e passei a estudar à noite, e não mais

participei daqueles papos, ainda mais que em 1962 já havíamos

comprado a nossa primeira televisão e esta veio, aos poucos,

substituir o hábito de a família se reunir para conversar após o

jantar.

A partir daí, só voltava a ter contatos com aquelas histórias na época

de ano novo. Meu pai não suportava o momento dos fogos, pois

estes, o faziam lembrar dos bombardeios e tiroteios que

experimentou na época da guerra. Ele ficava muito nervoso, chorava

e era inevitável voltar a se falar sobre o assunto.

Page 9: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

O tempo foi passando, e era raro ouvir novamente aquelas histórias.

Apenas nos lembrávamos delas quando, em momentos de

aborrecimento, ele sempre amaldiçoava o Papa Pio XII, cujo motivo

é citado mais adiante neste relato.

Poucos dias antes de seu falecimento, em uma das visitas no

hospital, fui até a baia em que ele estava internado. Ele estava

deitado, totalmente entubado, impávido. Não se vislumbrava nele o

menor sinal de vida.

Ao ver aquela expressão cadavérica, senti ali que ele nunca mais

estaria de volta.

Foi neste momento, olhando para ele, que suas histórias começaram

a passar pela minha mente. Era difícil de acreditar que aquele

homem, que passou por tantas provações em sua juventude,

estivesse, enfim, entregando sua vida à inevitável velhice. Agradeço

aos céus por ele não ter sofrido, também, neste momento de

partida.

Imediatamente, após seu falecimento, cumpri a obrigação de

comunicar ao Consulado Italiano o seu óbito, para fins de

cancelamento da pensão alimentícia e, aguardei por alguns meses

um comunicado por parte do Ministério da Guerra italiano, se

manifestando e enviando à família uma carta de reconhecimento do

heroísmo do patrono, mas, como isto não aconteceu, fiquei muito

indignado. O silêncio das autoridades italianas meu deu a certeza de

que ele havia sido esquecido por completo.

Então, me veio a ideia de escrever suas memórias, para que seus

filhos, netos e bisnetos soubessem que ele fora um herói e fiel ao

juramento que fizera ao exército italiano.

Page 10: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

A indignação não foi só pelo fato do silêncio do governo italiano, mas

também, pela ridícula pensão a ele concedida como ex combatente,

de míseros US$180,00 mensais. Que atitudes vergonhosas.

Só sinto o fato de ter perdido mais da metade do tesouro histórico

que foi o relato de seu retorno, sofrido porém bravo, à pátria amada

e à sua família.

Na minha narrativa, há momentos em que alguns trechos são

proseados, pois não me lembro de todos os detalhes e fatos por ele

narrados. Descrevo apenas o que restou em minha memória, mas

acredito que, por terem resistido ao tempo, são os momentos e fatos

mais importantes da viagem heroica que se iniciou no sul da Rússia e

terminou em território romeno, quando foram resgatados.

O importante, é que o início o meio e o fim estão rigorosamente

corretos e os dramas descritos foram reais.

O bombardeio em Rostov, os calçados improvisados, a luta na ponte,

o assalto ao trem, a travessia do rio, o constante controle e

racionamento de alimentos, o ataque sofrido no acampamento, as

histórias do cavalo e do cachorro, são os fatos que ficaram

totalmente gravados na memória. As demais narrativas, são trechos

parcialmente lembrados e preenchimento de lacunas, alternativa

utilizada para poder se ligar um fato a outro.

Os nomes de seus companheiros (que foram personagens reais,

conforme fotos) , bem como do general traidor, que ele citava com

certeza absoluta, não me lembro mais. Aqui na narrativa, os nomes

são todos fictícios.

Não sou escritor, não domino a arte da narrativa e muito menos “sou

um expert” em português.

Page 11: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Apenas desejei tornar pública esta história que durante dezenas de

anos ficou engasgada por decreto na garganta de meu pai, e que,

como prêmio, lhe foi concedida a ridícula pensão acima mencionada.

Desta forma, embora tardiamente e sem causar nenhum efeito, os

que lerem esta história vão tomar conhecimento de algo que

aconteceu há 70 anos e ela não se evaporará com o tempo.

São os bastidores do palco de uma guerra, que poucos tem a chance

de conhecer.

Page 12: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

HOSPITAL SÃO LUCAS, RIO DE JANEIRO, BRASIL

16:00 horas do dia 1 de janeiro de 2003.

Toca o telefone na minha casa e, do outro lado da linha, meu irmão,

Jorge, me dá a notícia : U (como eu era chamado pelos familiares), o

papai faleceu.

Encerrara-se há poucos minutos atrás, aos 83 anos, a vida de um

herói anônimo.

Salvatore Gardi, primogênito de uma prole de 14 filhos,

nascido em 11 de setembro de 1920, na Comuna de Luzzi,

Cosenza, região da Calábria, sul da Itália.

Cresceu em meio ao trabalho árduo de camponês em uma

fazenda arrendada pelos seus pais, na qual trabalhava de

domingo a domingo, do nascer ao pôr do sol. Não havia

descanso.

Segundo os comentários dele e de seus conterrâneos, até

fins dos anos 30, este era o estilo de vida da região. Após o

término da guerra, os costumes sofreram grandes

transformações.

Nesta época, trabalhava-se praticamente para a subsistência.

Eram raras as horas de folga que se conseguiam em um

domingo, quando alguns patrões liberavam os trabalhadores

Page 13: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

para comparecerem à missa, o que era praticamente uma

obrigação.

Seus patrões eram seus pais e, nem por isto, tinha

tratamento diferenciado. Não só ele, como seus irmãos, pois,

todos nasciam, cresciam e tinham que trabalhar a terra.

Assim cresceu e, na esperança de melhorar seu estilo de vida,

alistou-se no exército e anos depois, foi enviado para a frente

de batalha, onde experimentou amargas lembranças, sendo

abandonado em território russo e ter de voltar à sua terra

natal marchando por cerca de 180 dias.

Foram os piores dias de sua vida. Neste período, teve o

dissabor de ver seus amigos e companheiros morrendo aos

poucos pelo caminho de volta. Passou frio, fome, tortura

psicológica, angústia.

Em busca de uma vida melhor, após os percalços da guerra,

conseguiu emigrar para o Brasil, onde se estabeleceu e criou

seus filhos.

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PARTE I – TRAIDOS E ABANDONADOS NA RÚSSIA.

I – R O S T O V.

O Frio era de quase -10º.

Os soldados se preparavam para a distribuição da ração matinal,

quando o Tenente Giuliano adentra no galpão onde se encontrava a

tropa italiana e bradou: “Todos de pé e prontos para a revista!”.

O General Collossi veio até nós para nos comunicar sobre a

importante missão para a qual fomos designados aqui no sudeste da

Rússia.

O galpão imenso era uma construção rudimentar, com colunas de

troncos de madeira, as paredes não passavam de uma cobertura de

folhas de zinco e o telhado trançado de uma espécie de sapê

brasileiro. Havia cerca de 500 soldados reunidos em seu interior.

Havia apenas uma abertura na parte norte e outra na parte sul do

galpão, além do grande portão de entrada que se localizava no

centro da parede. Não haviam janelas, e sim buracos deixados por

folhas de zinco que se soltaram. O portão, de tão esquálido, mal

conseguia manter suas abas em pé.

Era uma construção usada pelos moradores de uma vila de

camponeses, localizada a cerca de 1 hora de caminhão da cidade

mais próxima, Rostov. Pelo visto, o galpão servira de silo para a

estocagem da produção agrícola da vila, já que se notavam vários

grãos espalhados pelo seu piso.

O pelotão italiano, sob as ordens do Tenente Giuliano, chegara à

localidade na noite anterior e nem precisou disparar uma só bala

para se apossar da vila. Há muito seus moradores, sabedores da

Page 15: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

aproximação das forças alemãs e italianas, haviam se refugiado em

Rostov, cidade que era guarnecida pelas tropas russas.

Salvatore e sua tropa chegaram à vila em vários caminhões . A

estrada terminava em um pequeno riacho, onde uma tosca ponte

fazia a ligação com a vila.

Um grupo de reconhecimento fez a verificação do perímetro da vila e

informou que a mesma possuía condições para alojar a tropa. Sendo

assim, os oficiais ordenaram o desembarque.

Os caminhões foram deixados na entrada da ponte e os soldados

caminharam cerca de dez minutos até o galpão que lhes serviria de

abrigo e alojamento.

A localidade era passagem

obrigatória para se chegar a Rostov,

vindo de Novorossyst, cidades

localizadas no sudoeste da Rússia,

perto da divisa com a Ucrânia.

A estrada era precária, quase que uma picada aberta em meio às

florestas e estepes, e, com o início do inverno russo e devido à

precipitação de neve já nos primeiros dias, a viagem em caminhões

militares de Novorossyst até a vila perto de Rostov durara quatro

dias e quatro noites.

A tropa italiana chegara extenuada àquela vila numa noite do início

do mês de outubro de 1944 e lá se instalou. Naquela mesma noite os

caminhões foram reabastecidos pelos carros tanques que os haviam

acompanhado.

Page 16: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

As casas das vilas eram miseráveis e o tenente Giuliano achou por

bem reunir a tropa em um só local, a fim de se aproveitar o calor dos

próprios corpos dos soldados agrupados, para se ajudarem a

suportar a noite que se anunciava bastante fria.

Assim, embora a precariedade do galpão tivesse sido levada em

conta, a tropa se alojou em meio aos vários montes de palha que

estavam espalhados pelo chão.

Salvatore e seus amigos cosentinos, Paolo e Túlio, que com ele

partiram do sul da Itália, se instalaram em um dos cantos no fundo

do galpão, puxaram para si um monte de palha e improvisaram os

leitos sobre os quais iriam passar aquela noite gélida. Por sorte, não

ventava.

Duas horas após a chegada, foi servida a ração daquela noite. Após

se alimentarem, todos tentaram, na medida do possível, se ajeitar e

dormir.

Os que tiveram o infortúnio de se localizar perto do portão da

entrada do galpão, foram os que mais sofreram com o intenso frio.

Assim, a noite se passou e às seis da manhã foram acordados pela

voz alta do tenente Giuliano que dera aquele aviso.

O auxiliar de ordens do tenente Giuliano completou o comunicado,

informando que somente após a visita do general Colossi a ração

matinal seria servida.

Neste momento, Salvatore , Paolo e Túlio e outro grupo de cerca de

vinte soldados foram convocados a render a patrulha que fazia a

vigilância do perímetro da vila e saíram do galpão.

O grupo se perfilou e, capitaneados por um sub oficial, marchou em

direção aos locais de patrulha. Sorte deles.

Page 17: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Dentro do galpão a tropa se recompôs do jeito que lhe foi possível e

se perfilou aguardando a entrada do general Colossi.

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II – A TRAIÇÃO.

Cerca de vinte minutos após estarem perfilados, adentra no galpão

o Generali Colossi.

Uma figura minúscula, esquálida, peito estufado, exibindo uma

imensa coleção de medalhas e insígnias em seu magro peito.

Um pequeno tablado foi improvisado às pressas, com caixotes e

algumas tábuas recolhidas ao redor do galpão.

Ele sobe no tablado e, para a surpresa de todos, sua voz era o oposto

de seu físico.

Voz forte, um pouco rouca, boa impostação. Quem não tivesse

olhando para sua figura e apenas ouvindo sua voz, imaginaria tratar-

se de um homem de complexão alta e forte.

Ele se dirigiu aos oficiais e soldados desejando um bom dia e disse

ter boas notícias para lhes dar.

Informou que as tropas aliadas da Itália e da Alemanha já estavam

quase que totalmente agrupadas e preparadas para marchar contra

Rostov e que a única preocupação do comando era o frio intenso que

se previa chegar, juntamente com as nevascas, que eram

características daquela região.

Para tanto, o comando das tropas que iria coordenar a marcha sobre

Rostov encomendara equipamento especial para os soldados: botas

e casacões especiais para fazer frente ao frio e à neve que seriam

inevitáveis durante a batalha que se aproximava.

Informou ainda que dois caminhões de sua comitiva estavam

carregados com estes equipamentos e que iriam substituir os que a

tropa estava usando.

Page 19: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Pediu então a todos que entregassem seus casacos e botas, mas que

antes tivessem o cuidado de retirar seus objetos pessoais, pois, o

equipamento que estavam devolvendo seguiria imediatamente para

ser utilizado por tropas que combatiam na França, em regiões menos

castigadas pelas intempéries daquela época.

Um grupo de soldados adentrou no galpão, puxando duas pequenas

carretas de madeira e recolheram o material dos soldados que

haviam obedecido às ordens.

Após todos terem entregues suas peças, os soldados que puxavam as

carretas, já auxiliados por outros que ajudavam empurrando,

levaram o material para fora do galpão e o general continuou seu

discurso.

Disse que os novos casacos e botas já estavam sendo descarregados

e que dentro de minutos eles estariam sendo distribuídos.

Desejou boa sorte a todos, que aproveitassem e cuidassem bem do

moderno equipamento que estavam recebendo e transmitiu para

eles saudações do Dulce Mussolini. Informou ainda que estava de

partida para entregar outra leva de equipamentos para uma unidade

alemã que se encontrava a 100km dali, fez a saudação nazista,

desceu do pequeno tablado, e deixou o galpão.

Tão logo se retirou, alguns soldados deram risadas fazendo graça

com a esquálida figura do general.

O tenente Giuliano ordenou que todos permanecessem onde

estavam, o que facilitaria a distribuição do novo equipamento.

Através das aberturas laterais e do portão do galpão, os soldados

puderam ver que a neve começara a se precipitar e a sensação de

frio começava a aumentar, já que se encontravam sem casaco e com

Page 20: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

os pés sobre o frio piso de terra do galpão, protegidos apenas pela

palha que cada um conseguiu reunir sob os seus pés.

Passados vinte minutos e como o novo equipamento ainda não

chegara, o tenente Giuliano pediu a seu ajudante de ordens que

fosse lá fora verificar o motivo da demora.

O ajudante de ordens então disse: “Mas tenente, o Sr. esqueceu que

está nevando e eu estou descalço e sem casaco ? Daqui até onde os

caminhões estão parados são uns cinco minutos a pé. Como irei ?”.

O tenente se deu conta de que ele não havia entregue seu

equipamento, já que quando o general se dirigia à tropa, ele se

encontrava ao seu lado prestando atenção à tropa e, por distração,

não retirara seu casaco nem as botas.

Então, ele mesmo se dirigiu ao estacionamento dos caminhões para

verificar o que estava motivando aquele atraso e apressar a entrega

do equipamento.

Apanhou no chão do galpão um pedaço de latão que havia se

desprendido do portão e, usando o mesmo para se proteger da neve

que caía , saiu em meio à nevasca.

Os soldados que estavam próximos ao portão perderam-no logo de

vista. Seu vulto em instantes desapareceu envolto pela bruma da

neve que caia.

O tenente Giuliano chegou à ponte e não viu os caminhões, nem

movimentação de soldados. Pensou ser por causa da nevasca.

Atravessou com dificuldades a pequena ponte, pois seu piso de

madeira já se encontrava com uma camada de uns 5 cm de neve.

Chegando ao outro lado, se assustou, pois, já deveria estar vendo os

caminhões que trouxeram as tropas e a comitiva do General Colossi.

Page 21: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Não viu nada. Ao olhar em direção à estrada que os trouxera de

Novorossysk, avistou um vulto escuro. Ao chegar até ele, verificou

que se tratava de um dos caminhões de transporte de tropas. A

porta esquerda estava aberta e ele entrou na cabine do caminhão. A

chave estava na ignição.

Achou estranho aquele caminhão estar sozinho ali. Postou-se ao

volante e tentou dar a partida, mas, o motor rateava e não pegava.

Desceu do caminhão e se pôs a procurar mais adiante, na esperança

de encontrar os outros veículos. Em vão. Nada viu.

Voltou para a cabine do caminhão, tentou novamente dar a partida e

desistiu.

Só então se dera conta do que estava acontecendo e vociferou:

“Fomos traídos”. Abandonados em meio às florestas russas, sem

casacos e sem botas, sem alimentos e sem equipamento de

comunicação. O general Colossi os havia traído e os condenara à

morte pelo frio e fome. Aquele caminhão que restara tinha sido

abandonado por não funcionar.

Ficou ali sentado uns instantes pensando em como iria dar a notícia

aos soldados. Eram mais de quinhentos homens largados à própria

sorte, sem nenhuma chance de sobreviver naquelas condições.

Estava ele pensando, quando começou a ouvir ao longe o barulho de

motores de aviões.

De repente se deu conta do que estava por acontecer: saiu correndo

do caminhão e, apesar da camada de neve, conseguiu se deslocar

com certa rapidez. Levou um tombo quando atravessava a ponte,

levantou-se e continuou sua corrida até o galpão. Quando avistou o

vulto do galpão, se pôs a gritar: “saiam todos do galpão!”. “Vamos

Page 22: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

ser bombardeados!”. E foi repetindo isto até chegar à entrada do

galpão.

Os soldados que ouviram seus gritos não estavam entendendo o que

estava acontecendo e ficaram inertes, já que não queriam se expor

ao tempo frio e à nevasca.

Então ele chegou à entrada e gritou novamente: “Atenção: saiam

todos, rápido ! Vamos ser bombardeados, corram, rápido, espalhem-

se !”.

Lá de fora, já se faziam ouvir os motores dos aviões que se

aproximavam. Os soldados, então, se deram conta da situação e

começaram a correr na neve, descalços e sem casacos.

“Fujam para longe na vila. A vila vai ser bombardeada”, gritava o

tenente.

Os soldados que estavam nos fundos do galpão ficaram apavorados,

já que seriam os últimos a sair e procurar um lugar para se abrigar.

Viram então que o latão que formava a frágil parede do galpão

estava quase solto e puseram-se a chutar as placas. Num instante

uma abertura se ofereceu e muitos deles escaparam por aquela

passagem.

Neste momento, o barulho dos motores dos aviões já era assustador,

de tão próximos que estavam, e a previsão do tenente Giuliano se

concretizou : as primeiras bombas começaram a cair e a explodir.

Muitos gritos começaram a se ouvir em meio aos barulhos dos aviões

e das explosões.

Salvatore e seus companheiros que estavam do lado de fora, na

vigilância, bem afastados do galpão, não entenderam o que estava se

passado, até que, devido às bombas que explodiam próximas a eles,

Page 23: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

se deram conta da situação e procuraram abrigo. Salvatore, Paolo e

Tulio, que haviam ficado juntos naquele posto, se esconderam

debaixo de uma enorme árvore, a uns duzentos metros do galpão,

pois não havia outro lugar para se abrigar. De lá, avistaram os outros

soldados correndo para fora do galpão, também à procura de abrigo.

As bombas foram quase que totalmente direcionadas para o galpão

e à sua volta.

Passados dez minutos, o bombardeio cessou.

Salvatore e os demais aos poucos foram se dando conta da tragédia

ocorrida diante de seus olhos.

Ao seu redor, a paisagem era de terror. Pedaços de corpos mutilados

por todos os lados.

Gritaria e correria por todos os lados.

Page 24: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

III – MACHIANUCE

Em 10 de setembro de 1920, no tosco casarão que servia de sede da

pequena fazenda em que vivia a família Gardi, nascia Salvatore,

primeiro de uma prole de catorze filhos.

Pode parecer exagerado, mas naquela época, principalmente no

campo, as famílias tinham muitos filhos visando a mão-de-obra

barata.

Quantos mais componentes da família a trabalhar em suas terras,

mais em conta era a produção.

A Salvatore, seguiram-se os irmãos Rafael, Francisco, Mario, Geraldo,

as irmãs Concheta, Úrsula, Teresina, Anina, Maria (faltam 4 que não

me lembro).

Salvatore e Concheta eram os mais velhos e Geraldo e Anina os mais

novos.

Os genitores, Umile e Carmela, eram típicos camponeses nascidos e

criados naquela fazenda que ficava nos arredores da Comuna de

Luzzi, na província de Cosenza, capital da Calábria.

A pé, da fazenda, levava-se cerca de uma hora para se chegar a Luzzi.

A fazenda ficava no vale e Luzzi, na montanha, a caminho da Sila,

hoje uma estação de inverno, localizada no alto do maciço da

cadeia de montanhas conhecida como Apeninos, que domina a

região.

A pequena fazenda se chamava ”Machianuce”, que em dialeto

luzzitano significa “A Mancha da Noz”. O nome era proveniente de

uma imensa nogueira localizada ao lado do casarão. Sua ramagem

era imensa e sua idade centenária. Em homenagem à tão portentosa

árvore frutífera, deu-se ao local o seu nome.

Page 25: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

O casarão, que na verdade era uma construção típica da idade

média, com suas paredes erguidas em pedras aparentes, tinha

apenas três cômodos: a cozinha, a pequena sala, e o restante servia

de dormitório para todos, sendo o ambiente dividido por cortinas.

Em cima, situava-se o sótão, que servia de despensa.

Ao redor do casarão, encontravam -se o forno, tipicamente

construído com pedras, o galinheiro, um abrigo para as vacas

leiteiras e um pequeno celeiro onde se guardavam as ferramentas da

lida e produção de grãos.

A propriedade em si constituía-se de uma extensão de terra de

pouco mais de cinquenta acres, arrendada a um Barão de terras, que

permitia a exploração de suas terras a um custo muito alto: da

produção, três quartos eram a ele destinados, e a família que

trabalhava a terra ficava apenas com a quarta parte.

Na propriedade, passava um pequeno riacho de águas cristalinas,

que era o desdobramento do volume de água que descia das

montanhas da Sila e que passavam por Luzzi. O riacho abastecia a

propriedade, tanto no consumo quanto na irrigação.

Na pequena fazenda, plantava-se de tudo, pois, a subsistência vinha

dela. O principal produto era o trigo. Apenas dois produtos não eram

lá produzidos: açúcar (não havia espaço para se plantar a matéria

prima, que era a beterraba) e azeite. Produzia-se a oliva, mas a

moagem só era possível em uma comuna vizinha, que possuía o

moinho de pedra.

Os animais ali criados eram poucos, pois não se podia dar ao luxo de

ter terras destinadas a pasto, já que estas eram escassas. Criava-se

apenas o estritamente necessário.

Page 26: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

A família tinha duas vacas leiteiras - cujo leite era suficiente para o

consumo e produção de queijos -, seis cabras e uma égua, que servia

de montaria para o patriarca Umile.

Foi neste ambiente que Salvatore cresceu.

O casarão ainda está de pé. Na foto, modificado, pois, originalmente,

não existia a parte superior.

Page 27: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

IV – MUSSOLINI

Transcorria o ano de 1938 e, Salvatore, no auge de sua adolescência,

então com 18 anos, começara a se alfabetizar com uma senhora

vizinha. Em troca das aulas, ele a recompensava com algumas

espigas de milho e outros produtos da fazenda.

O pouco que aprendera lhe foi suficiente para um dia ler um folheto

em que se anunciava a presença, para um discurso em Cosenza, de

Benito Mussolini, general que chegara ao poder na Itália e de quem

já se falava maravilhas. Apesar de as notícias naquela época e,

principalmente naquela região, serem bem escassas, seus feitos já

eram admirados, tais como a reversão dos direitos dos proprietários

de terra (a partilha dos donos das terras de ¾ para ¼ ), fato que,

praticamente, o libertara de uma espécie de escravidão.

Mussolini também agia no campo das ações sociais e, poucos têm

conhecimento disso, foi o pai da Previdência Social.

Falava de novas conquistas, como a concessão de novas terras para

plantio, mais especificamente a exploração agrícola na Etiópia e na

Somália.

Ele conseguira os direitos de exploração das terras até então

improdutivas e, em pagamento, destinava parte da produção para o

governo local.

Isto permitiu a Itália resolver de vez suas carências de produtos

agrícolas e permitiu aos camponeses italianos trabalharem a terra

em novos produtos até então raros, como a produção de uvas, olivas

e frutas.

Com isto, a Itália se tornou uma produtora de vinhos, azeites e

frutas, distribuindo sua produção para toda a Europa.

Page 28: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Também permitiu a emigração do homem do campo para as cidades

industriais, incrementando a indústria nacional que sofria com a

carência de mão de obra.

Assim, os feitos de Mussolini se espalharam por toda a Itália e,

principalmente, no sul, onde seus feitos atingiram o povo aflito por

mudanças, já que o norte do país, industrializado e rico, pouco ligava

para a miserabilidade em que viviam os sulistas.

Então, ao ler o panfleto, Salvatore dispôs-se a ir até Cosenza,

conhecer de perto tão afamado homem. Ele e alguns amigos, que

também admiravam Mussolini, pegaram uma carroça puxada a

cavalo e enfrentaram uma viagem de quase vinte horas para

chegaram a Cosenza.

Lá, se informaram do local do comício e acamparam bem perto de

onde se localizava o palanque.

Acomodados, abriram sua sacola de lanche, comeram e beberam o

vinho que haviam levado.

No dia seguinte, acordaram em meio à algazarra que muitos outros

jovens faziam ao chegar ao local. Era extraordinário como Mussolini

atraía os jovens. Talvez, pelo fato de, pela primeira vez, os jovens do

sul da Itália realmente deslumbrarem um futuro promissor, de

poderem, realmente, se livrar daquela vida de subsistência, de se

livrarem do analfabetismo, da falta de notícias, de saberem que,

além da Calábria, existia um mundo.

Page 29: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Então chegou o momento esperado. Mussolini subiu ao palanque e

maravilhou os presentes com um discurso totalmente voltado para o

social, para a educação e para o progresso.

Salvatore e seus amigos voltaram para Luzzi com um ídolo em seus

corações. Passaram a sonhar com as conquistas anunciadas por

Mussolini. Salvatore se

empenhou mais ainda para se

alfabetizar.

Page 30: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

V – O EXÉRCITO.

Passados dois anos, já então com vinte de idade, Salvatore recebeu

notificação das forças armadas para se alistar.

A Segunda Guerra Mundial já estava em curso e Mussolini se viu

obrigado a fortalecer seus exércitos, temendo uma invasão alemã,

apesar do bom relacionamento que ele mantinha com Hitler. Sabia

que este relacionamento duraria apenas enquanto fosse do interesse

dos alemães, cuja força militar já era tida e temida como a mais

poderosa do continente.

Salvatore ficou feliz não só por poder servir a seu ídolo, mas também

por poder se livrar daquela vida sacrificada e sem esperanças. Sabia

que no exército obteria novos conhecimentos, conheceria novos

lugares e teria a oportunidade de aprender algo diferente que lhe

proporcionasse uma nova vida, em um outro lugar.

Três dias depois se ser notificado, lá estava ele em Cosenza se

apresentando no improvisado campo militar que recebia os soldados

convocados.

A desordem era geral. Primeiro, devido à improvisação. Salvatore

levou mais de três horas para ser atendido e apresentar seus

documentos. Segundo, por que praticamente todos os convocados

estavam se apresentando ao mesmo tempo. Não era só Salvatore

que desejava fugir daquele lugar, daquela vida.

Logo após ele, Paolo e Tulio também se apresentaram e os três

foram juntos para o grupo que, já alistado, aguardava instruções. Os

três se apresentaram e descobriram ser vizinhos de cidades.

Salvatore era de Luzzi e Paolo e Tulio residiam em Acre.

Page 31: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Passaram-se dois anos e, em meados de 1942, Salvatore foi

convocado para se apresentar em Catanzaro, que ficava a uma hora

de trem ao sul de Cosenza.

Lá chegando, ficou feliz em encontrar seus amigos Paolo e Tulio, que

também haviam sido convocados.

Um oficial organizou os jovens e lhes informou que deveriam

aguardar uma chamada, por grupos, e que seriam encaminhados

para suas acomodações.

O grupo de vinte e cinco jovens, do qual fazia parte Salvatore, foi

levado para um galpão nos fundos do quartel, onde receberam

uniformes e equipamentos, exceto armas. De lá, seguiram para o

alojamento.

Salvatore procurou saber para onde seguiram seus amigos, mas já

estava escurecendo e deixou isso para o dia seguinte.

Assim que acordou, às 06:00 da manhã, perfilou com os demais e

foram levados para uma imensa cantina, onde tomaram o café da

manhã. Tiveram apenas dez minutos para isto, já que havia

necessidade de revezamento com os demais grupos.

Page 32: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Quando fazia o caminho de volta, avistou o grupo que vinha em

direção à cantina e nele viu Paolo e Túlio. Fez um aceno que depois

se falariam e seguiu com seu grupo.

E assim, durante oito meses, os recrutas receberam treinamento

apenas físico e disciplinar, até que lhe foi informado que, em breve,

seguiriam para Bologna, para os exercícios militares.

(Salvatore – ao centro – e seus amigos Paolo e Tulio)

Também lhes foi dito que teriam uma folga de uma semana antes da

viagem, para visitarem e se despedirem de suas famílias.

Page 33: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

No dia seguinte, logo após o café, todos foram dispensados com a

recomendação de, no oitavo dia, se apresentarem de volta.

Salvatore, Paolo e Tulio foram juntos para a estação de trens e duas

horas depois estavam embarcando para Cosenza.

Lá chegando, desceram, se despediram e procuraram um meio de

transporte que os levasse a Luzzi e Acre.

Salvatore chegou à fazenda somente no dia seguinte, pela manhã.

Contou as novidades a seus familiares e mostrou que estava muito

feliz em poder viajar para Bologna, cidade da qual havia escutado

maravilhas. Finalmente, seus horizontes estavam se abrindo.

Com medo de perder a hora da reapresentação, Salvatore, no

domingo, sexto dia, resolveu voltar para Cosenza logo cedo, pois o

transporte até lá era complicado. Havia trens para Catanzaro apenas

a cada 12 horas.

Chegou a Cosenza no domingo à noite, após uma carona em uma

carroça de um fazendeiro vizinho.

Como faltavam ainda dois dias para a reapresentação, procurou o

quartel dos carabineiri (polícia local) para pernoitar.

Lá chegando, um policial informou que na manhã seguinte ele já

poderia ir para Catanzaro, pois poderia se reapresentar antes do

prazo. Esta era a preocupação de todos os demais e o quartel o

receberia normalmente.

Como não havia mais trens naquele horário, se acomodou em uma

das celas do quartel da polícia, dormiu por algumas horas e, logo que

amanheceu, já estava a caminho da estação de trens.

Page 34: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

O primeiro trem saiu às 10 horas, e uma hora e meia depois,

já estava descendo em Catanzaro. Constatou que o que o

policial lhe informara era verdade. Dezenas de jovens

desceram do mesmo trem e tomaram o mesmo rumo de

Salvatore, em direção ao quartel.

Lá chegando, Salvatore se dirigiu a seu alojamento. Muito

cansado e mal dormido, por conta da péssima viagem de

carroça de Luzzi a Cosenza, deitou-se em sua cama e dormiu

até às oito da noite.

Assim que levantou, perguntou onde poderia comer alguma

coisa e um colega informou que, na cantina, havia um lanche

disponível e para lá se dirigiu.

Lanchou e, ao sair, viu seus amigos Paolo e Tulio chegando.

Eles também haviam tido a mesma ideia.

Esperou os amigos fazerem seu lanche e ficaram

conversando até tarde. No dia seguinte, que ainda era de

folga, foram passear em Catanzaro e só voltaram à noite.

Foram dormir cedo, pois não sabiam o que ocorreria no dia

Page 35: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

seguinte, a data marcada para a reapresentação.

Às seis da manhã foram acordados pela sirene do quartel e

receberam ordens de se dirigir à cantina para o café da

manhã.

Lá foram avisados que o horário de

reapresentação seria ao meio dia e

notava-se que quase todos já haviam

voltado.

Após o meio dia, no pátio de formação,

havia perto de mil recrutas perfilados.

Foi-lhes comunicado que receberiam

uniformes leves e que, à noite,

embarcariam de trem para Bologna.

Assim aconteceu. Por volta das oito da noite, todos

marcharam para a estação de trens, e, à medida que

chegavam, eram distribuídos pelos 15 vagões existentes,

além da locomotiva.

Por volta da meia-noite, partiram. A primeira cidade que

cruzaram foi Cosenza, na sequência, Paola, depois vieram

Fuscaldo e outras dezenas que Salvatore não conhecia.

Durante dois dias o trem cruzou a Itália de sul a norte e, na

madrugada do terceiro dia, chegou enfim a Bologna. A

viagem foi exaustiva, pois não houve paradas, a não ser

quatro vezes, com duração máxima de trinta minutos, para

que os soldados pudessem descer e fazer suas necessidades

Page 36: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

fisiológicas. Perto de Roma, o trem ficou parado cerca de dez

horas, aguardando sinal para prosseguir. As paradas não

foram em estações, e sim em descampados.

Quando o trem chegou a Bologna, os soldados desceram.

Embarcaram novamente em um outro trem, que em meia

hora, os levou para um imenso quartel que se localizava

entre as cidades de Bologna e Ferrara.

Lá, diferentemente de Cosenza e Catanzaro, não havia

desordem. Do trem, foram embarcados em caminhões

militares, e foram imediatamente levados a enormes

edifícios destinados à acomodação das tropas.

Desceram dos caminhões, foram perfilados e, meia hora

depois, um oficial se apresentou, falando em um megafone:

“Atenção ! Todos possuem um número de identificação.

Vocês serão separados em pequenos grupos de trinta

homens e, cada qual seguirá comandado por um suboficial,

que os levará aos alojamentos a que estão destinados. Cada

grupo conhecerá suas

acomodações e receberá

instruções sobre os procedimentos

a serem tomados a partir de

amanhã. Em no nome do Dulce, o

exército italiano saúda a todos”.

Como haviam se apresentado

juntos em Cosenza, Salvatore, Paolo e Tulio ficaram no

mesmo grupo, o terceiro a ser chamado na ordem da

Page 37: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

numeração recebida. Tão logo foi anunciada a numeração,

um suboficial se apresentou e o grupo de trinta homes se

postou à sua frente. Formaram duas filas indianas e seguiram

com destino às suas acomodações.

No dia seguinte, bem cedo, começaram a receber

treinamento militar. Assim se repetiu durante seis meses.

Praticaram atividades físicas, tiveram ensinamentos militares,

aprenderam a utilizar armas, e enfim, ao final do

treinamento básico, estavam prontos para seguir para os

campos de batalha.

(Salvatore – à

direita – e seus amigos Paolo e Tulio)

Page 38: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Já transcorria a primavera de 1943, quando Salvatore e seu

pelotão foram enviados para guarnecer a fronteira com a

França e ficaram aquartelados em um agrupamento de forças

próximo à cidade de Aosta, no noroeste italiano.

Page 39: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

VI – MUSSOLINI SE ALIA A HITLER.

A Itália era provida de alimentos produzidos em suas

possessões estabelecidas na Etiópia e na Somália.

Mussolini havia feito acordos com aquelas duas nações para

explorar suas terras até então improdutivas, visando à

produção de grãos para abastecer as necessidades

alimentares de seu país.

Arrendou terras na Etiópia localizadas perto das cidades de

Dire Dawa e Jiiga e, na Somália, entre Berdar e Djibouti.

Executou projetos de irrigação, abriu estradas interligando as

regiões dos dois países, executou projetos habitacionais para

alojar os trabalhadores - todos nativos - e construiu um

porto para escoamento da produção em Djibouti, capital da

Somália.

Dire Dawa

Dijibouti

Page 40: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Lá, foram produzidos grãos e

leguminosos, que via Mar Vermelho,

chegavam à Itália através do Canal de

Suez.

Tudo transcorria bem, até que a Inglaterra, a quem os

direitos de exploração do Canal de Suez pertenciam, passou a

aumentar de forma progressiva as taxas de pedágio que

eram cobradas pela sua utilização.

A Inglaterra, pressionada pelos altos custos que estava tendo

com o combate contra a Alemanha, pois há três anos já

duravam os conflitos da Segunda Guerra, resolveu buscar

fundos a todo custo e, como o Canal era uma ótima fonte de

renda, resolveu aos poucos cobrar taxas extorsivas, chegando

ao ponto de exigir 50% do valor da carga que os navios

italianos transportavam.

Indignado, Mussolini avisou que não pagaria mais que 20%

do valor da carga e que, se houvesse retaliações, a armada

italiana - na época a mais poderosa da Europa - entraria em

ação.

Page 41: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Pouco menos de um mês após este

episódio, a armada italiana foi

totalmente posta a pique em um ataque

surpresa da Inglaterra.

Logo após, descobriu-se que a traição

que a Itália sofrera partira do Vaticano,

através do então Papa Pio XII, o qual

passara informações secretas aos

ingleses, fornecendo-lhes a localização da armada italiana.

O que motivou o Papa Pio XII a trair a Itália foi o fato de que

o então regime fascista imposto por Mussolini ia de encontro

aos interesses do Vaticano.

O regime também não agradava aos ricos, principalmente

aos barões donos de terras, os quais tiveram suas fortunas

consideravelmente diminuídas com as recentes mudanças

ocorridas nos direitos de exploração

da terra.

Então, os ricos e o Vaticano tramaram

juntos a derrocada de Mussolini, e isto

culminou com a traição havida com a

armada italiana.

Mussolini, então, teve de abandonar

as possessões africanas e, antevendo

que iria ter problemas com o

Page 42: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

abastecimento de alimentos, tomou uma decisão que iria

mudar o destino da Itália perante os conflitos da Segunda

Guerra Mundial: aliou-se a Hitler.

Isto também mudou o destino de Salvatore e seus amigos

Paolo e Tulio.

Page 43: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

VII – MARCHA PARA A RÚSSIA.

Com o fechamento do canal de Suez aos seus navios, a Itália

de Mussolini se viu entre a cruz e a espada.

Sabia que cedo ou tarde, Hilter viraria suas tropas em direção

à Itália.

Por outro lado, as pressões internas para derrubada de seu

regime eram cada vez maiores.

Não podia se unir aos outros países europeus que lutavam

contra Hilter, pois, assim, estaria se colocando indiretamente

ao lado da Inglaterra, causadora dos conflitos que a Itália

passava, e por isto, considerada inimiga.

Então, em uma atitude desesperada, temendo ser invadido

pela Alemanha ou ser morto através de uma conspiração

liderada pelo Vaticano e pelos barões de terra, Mussolini se

aliou a Hitler, e isto mudaria completamente a história da

Itália na 2ª Guerra Mundial.

Ao se aliar a Hilter, Mussolini submeteu seu exército ao

comando dos nazistas.

Algum tempo depois, o exército italiano começou a enviar

seus soldados para as frentes de batalhas na Rússia. Então,

em meados do primeiro semestre de 1944, Salvatore e seus

amigos foram enviados para o sul daquele país.

Page 44: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

As tropas foram

transportadas de trem,

em uma viagem que

durou oito dias,

atravessando os

territórios da Áustria, da

Romênia, da Moldávia e

da Ucrânia, para

finalmente chegar ao sul da Rússia, nas imediações de

Rostov.

Page 45: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

VIII – A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE.

Passado o bombardeio, Salvatore e seus amigos foram

recuperando o senso de realidade. Estavam atordoados pelo

barulho dos aviões em seus voos rasantes, pelas explosões

das bombas e petrificados de medo diante do quadro que

agora viam à sua frente.

Centenas de corpos mutilados espalhados pelo chão.

O galpão não mais era visível. Fora totalmente destruído

pelas bombas. Apenas alguns casebres permaneciam

teimosamente em pé na vila.

Aos poucos, foram aparecendo outros soldados que haviam

sobrevivido ao bombardeio. Alguns totalmente ilesos, como

Salvatore e seus amigos. Outros, com ferimentos leves e

outros com ferimentos graves. Ouviam-se gemidos por todo

lado.

Alguns oficiais sobreviventes apareceram e começaram a

ordenar o que sobrou da tropa.

A primeira coisa de que se deram conta é que estavam

praticamente todos descalços. O calor proporcionado pelo

fogo das bombas não lhes permitia sentir o frio a sua volta.

A primeira ordem ouvida dos oficiais era de abandonarem

imediatamente o local, pois, certamente após o bombardeio,

viriam as tropas terrestres provenientes de Rostov para

terminar o serviço.

Page 46: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Porém, a neve gélida já fazia sentir seus efeitos nos pés

descalços dos soldados.

Então, quase que instantaneamente, todos tiverem a mesma

ideia: retirar o que sobrou das roupas dos mortos e

improvisar um abrigo para os pés, além de roupa para

aquecer o corpo, já que seus casacos haviam sido levados

também.

Para piorar a situação, a pequena ponte, que ligava a vila à

estrada por onde haviam chegado estava quase que

intransponível, já que fragmentos de bombas a haviam

atingido.

Os soldados tiveram que improvisar uma passagem com os

restos do madeirame do galpão e assim conseguiram

alcançar a outra margem.

Correram até onde estava o caminhão e em torno dele se

agruparam.

O Tenente Giovanni, o mais alto oficial ali presente, deu uma

rápida explicação do que estava acontecendo e tentou aos

poucos reordenar o que sobrou das tropas e traçar planos

para a fuga, que se mostrava bastante difícil, visto que a

grande maioria estava descalça e sem casaco. Apenas ele,

outro tenente, que estava com um grande ferimento na coxa

direita, e cerca de dez soldados, entre eles Salvatore, Paolo e

Túlio, estavam ainda com as botas e os casacos.

Page 47: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Alguns soldados que estavam de vigia e foram atingidos e

mortos no bombardeio tiveram suas botas e casacos

recolhidos, apesar de semi destruídos.

Primeiro, contou-se quantos soldados estavam ali: um total

de cento e vinte, incluindo os oficiais e suboficiais que

também haviam sobrevivido (um tenente, um sub tenente e

quatro sargentos).

As ordens foram as seguintes: retirar a lona do caminhão,

retirar a gasolina dos tanques transferindo-a para os tanques

portáteis que estavam nas laterais do veículo, arrancar as

tábuas do piso que serviriam de sola para calçados

improvisados e tudo o mais que pudesse vir a ser útil durante

a fuga. Mas para isso precisariam de ferramentas,

principalmente de um serrote.

Um soldado, ao se esconder durante o bombardeio, entrara

em dos casebres e disse ter visto algumas ferramentas que lá

haviam sido deixadas pelos moradores.

Então, um grupo de doze soldados que estavam de botas e

casacos, entre eles Salvatore, foi designado a voltar para a

vila e pegar tudo o que fosse possível.

O grupo voltou com seis pás, um ancinho, oito foices, oito

enxadas, dois serrotes grandes e um pequeno, dois

machados e uma marreta de tamanho médio, além de uma

alavanca de cerca de um metro e meio, com uma das pontas

achatadas.

Page 48: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

A alavanca veio a calhar para arrancar as tábuas do assoalho

do caminhão. Em poucos minutos, as tábuas foram

cuidadosamente serradas em pedaços que permitiram

“fabricar” 80 pares de “solas”. O restante das “solas” foi

obtido serrando-se outras partes das laterais do caminhão.

As ferragens da carroceria bem como de outras partes foram

também guardadas.

Então, com os trapos das roupas tiradas dos colegas mortos,

cintos, meias, lenços, etc, todos improvisaram seus calçados.

Pernas de calças serviram para cobrir os braços e outras

partes foram usadas para abrigar as costas e os peitos.

No desmonte das calças, muitos isqueiros e maços de

cigarros foram encontrados. Em algumas, havias também

barras de chocolate que haviam sido compradas na última

cidade em que pararam quando saíam da Ucrânia em direção

à Rússia.

Já anoitecia, quando os soldados foram agrupados para

iniciarem a marcha de fuga. Não tinham ideia dos horrores

que seriam provados naqueles próximos cinco ou seis meses.

Page 49: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

PARTE II – A LONGA MARCHA DA VOLTA

IX – DIREÇÃO ITÁLIA

O grupo iniciou sua caminhada pela estrada de terra, já com

a noite se fazendo presente. De certa forma, isto agradou a

todos, pois, se fosse de dia, certamente aviões de

reconhecimento estariam procurando por sobreviventes.

O grupo de oficiais se reuniu e, mesmo caminhando, trocou

ideias de qual seria a distância da última e única vila que

passaram quando estavam indo em direção à Rostov.

Era também uma vila abandonada, porém em melhor estado

que a que eles haviam desembarcado a tropa. Calcularam

que seriam necessários uns dois dias de caminhada para

alcançá-la, seguindo a estrada de terra pela qual haviam

chegado. Felizmente, não nevava mais, e a neve do dia

anterior que estava no chão não passava de uma leve

camada de pouco mais de 2 centímetros, o que facilitava a

marcha e não umedecia tanto os calçados improvisados.

A claridade do novo dia já se fazia presente e a fome já se

fazia sentir, pois a última refeição feita fora na noite anterior,

um pouco antes da chegada do traidor general Colossi.

Os soldados não tinham relógio, somente o Tenente

Giovanni, que viu que marcava oito horas da manhã, horário

de Bologna. Calculou que o fuso horário de onde estavam era

de duas horas e, portanto, deveriam ser dez horas naquele

momento local.

Page 50: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

A tropa já mostrava sinais de cansaço, que, aliado ao estresse

experimentado, fez com que o Tenente Giovani permitisse o

repouso, para também se avaliar a situação e começar a

pensar como resolver o problema da falta de alimentação.

O estado do ferimento de um dos oficiais feridos preocupava

a todos que marchavam a seu lado. O ferimento não parava

de sangrar e ele estava muito debilitado. Outros soldados

também estavam na mesma situação. Era um grupo de

aproximadamente trinta homens, que além de ter a batalha

da fuga pela frente, não tinham como tratar de seus

ferimentos e estes pioravam à medida que o tempo passava,

devido à marcha forçada. Alguns soldados, já durante a noite,

estavam ajudando seus companheiros feridos.

Os soldados então comeram o chocolate que tinham em seus

bolsos. Todos possuíam pelo menos uma barra.

Com algumas placas de zinco que haviam levado,

improvisaram bacias para derreter a neve e com isto

saciarem sua sede.

Estavam descansando há quase uma hora, quando ouviram

barulho de motores de avião. A margem da estrada na qual

estavam refugiados tinha uma espessa mata, com árvores

baixas e que ainda possuíam folhagem, já que o inverno

estava no início. Portanto, seria difícil para os pilotos

localizarem o grupo.

Felizmente, não foram avistados.

Page 51: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Como a estrada era estreita e muitas árvores estendiam seus

ramos sobre ela, a tropa se sentiu segura em seu refúgio.

Durante uma hora os aviões vasculharam a área, passando

várias vezes por cima de suas cabeças. Eram três aviões de

reconhecimento.

O tenente já havia ajustado seu relógio ao horário local e, já

passava de uma hora da tarde quando resolveram retomar a

marcha.

Com medo de novos aviões, resolveram marchar em fila de

dois, bem próximos à margem, com espaço de cinco metros

entre cada dupla, sendo uma coluna em cada margem.

Com isto, caso os aviões de reconhecimento surgissem,

teriam tempo bastante de se refugiar debaixo das copas e o

rastro seria difícil de ser visto pelos pilotos, já que caminham

junto à mata.

Caminharam por três horas, quando ouviram novamente o

barulho dos motores. Imediatamente, todos seguiram as

ordens pré-estabelecidas e se refugiaram.

Passaram-se cinquenta minutos até que o barulho dos aviões

deixou de ser ouvido.

Novamente, retomaram a marcha e cerca de duas horas

depois um contratempo surgiu: uma clareira de mais ou

menos dois quilômetros se apresentou à frente. Já estava

perto de anoitecer e os oficiais decidiram descansar até que

Page 52: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

anoitecesse novamente, e aí sim retomariam a marcha de

vez por toda a noite, o que lhes garantiria cobrir um bom

trecho sem os percalços dos aviões.

Então, descansaram por duas horas até que a noite caísse

para voltar à marcha. Os soldados feridos tiveram muitas

dificuldades para se levantar e algumas macas tiveram de ser

improvisadas usando-se galhos e cortes feitos com a lona do

caminhão.

Embora já fosse de noite, um grupo de soldados ficou

encarregado de apagar os rastros dos sulcos deixados pelas

padiolas, que eram arrastadas.

A muito custo, o grupo caminhou por toda a noite. Pelos

cálculos dos oficiais, ainda restavam umas vinte horas de

caminhada para se chegar à vila. Além disso, torciam para

que esta ainda estivesse abandonada.

Uma hora depois do amanhecer, o grupo parou novamente

para descansar. Como era de hábito, as necessidades

fisiológicas deviam ser feitas a pelo menos cinquenta metros

de onde estavam acampados.

Ao entrar na mata, dois soldados se depararam com uma

pequena plantação de girassóis. Chamaram então um dos

oficiais e foram explorar a área.

Descobriram ser um pequeno sítio abandonado, cujo acesso

se dava por um caminho que terminava duzentos metros

adiante da estrada em que estavam.

Page 53: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Ao lado dos girassóis, havia também uma plantação rasteira,

que ao ser retirada, trouxe com as ramas uma espécie de

batata. Ao fundo da plantação, havia um pequeno casebre,

feito de galhos de árvores, ainda com seu teto de ramagem

em bom estado. Da entrada do casebre, avistava-se todo seu

interior que se compunha de um único espaço de pouco mais

de oito metros quadrados. Estava completamente vazio, a

não ser por uma grande tesoura, toda enferrujada, que se

encontrava enfiada entre os galhos que compunham a

parede do casebre.

Um grupo de soldados foi chamado e colheram toda a

plantação daquela espécie de batata e todos os girassóis que,

com todos ajudando, tiveram suas sementes arrancadas e

servidas aos soldados.

Também, usando as bacias improvisadas, acenderam

pequenas fogueiras dentro do casebre, nas quais cozinharam

as batatas.

A comida foi distribuída em porções iguais para todos os

soldados e estes a engoliram rapidamente, apesar de seu

gosto não muito bom - talvez por terem sido colhidas

precocemente.

As batatas, por serem em pequena quantidade, foram

totalmente comidas, com casca e tudo. Quanto às sementes

de girassol, sobrou o suficiente para uma nova refeição.

Page 54: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Já eram mais de dez horas da manhã quando se reiniciou a

marcha. O esquema foi o mesmo. Duplas espaçadas de cinco

em cinco metros, em duas colunas, cada qual em uma

margem da estrada, com um grupo na retaguarda

desfazendo as pistas.

Eram quatro da tarde, quando resolveram parar novamente

até o anoitecer. Logo após se estabelecerem, uma pequena

nevasca começou a se precipitar. Rapidamente, todos se

dirigiram para uma encosta com muitas árvores. A lona foi

estendida por cima dos galhos mais baixos, amarrada com

cordas feitas de trapos e cintos retirados dos soldados

mortos no bombardeio. Como não couberam todos naquele

abrigo, os demais improvisaram um teto com a ramagem

retirada das árvores e um grosso capim que crescia naquele

local.

A neve caiu por mais de cinco horas, o que atrasou a

retomada da marcha. Quando a neve parou de cair, os

soldados sabiam que a retomada da caminhada seria mais

dura, pois, calculava-se uma camada de neve de mais de dez

centímetros. Além disso, os soldados trocaram e reforçaram

a camada de suas “botas”, pois, certamente, a neve iria

umedecer ainda mais o tecido utilizado como couro. Além

disso, muitos já apresentavam feridas e sangramentos nos

pés, devido ao esforço de caminhar sobre as plataformas de

madeira. As articulações dos pés estavam muito doloridas,

Page 55: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

pois não se conseguia dobrar os pés nas passadas. Alguns

apresentavam hematomas nas solas e nos dorsos dos pés.

À noite, as primeiras baixas ocorreram. Dois dos soldados

carregados nas padiolas faleceram. Não suportaram os

ferimentos e o sangue perdido.

Os oficiais ordenaram que os soldados cavassem uma cova,

onde os corpos foram enterrados.

O grupo começara a se reduzir. Já eram 118. A marcha foi

retomada pela noite adentro.

Page 56: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

X – A PROCURA POR ABRIGO E COMIDA.

Já amanhecia quando a tropa avistou os primeiros sinais que

indicavam que estavam próximos à vila que buscavam.

Alguns utensílios, como carroças manuais, arreios de

montaria, objetos pessoais, etc, eram vistos pelo caminho.

Eram sinais visíveis de que a vila fora abandonada às pressas.

Isto soava bem, pois indicava que não haveria problemas em

se entrar nela.

Um grupo de cinco soldados, capitaneados por um dos

oficiais, foi encarregado da aproximação e estudo do terreno

para se certificarem de que a área estava inteiramente livre

para ser ocupada.

Sorrateiramente, esgueirando-se por entre a densa mata,

aproximaram-se da vila e aguardaram por um tempo para se

certificar de que não havia nenhum morador ainda

perambulando por ali. Nenhum som era ouvido, nem de

pessoas, nem de animais.

Após uma hora, um dos soldados voltou para onde a tropa se

encontrava e comunicou aos oficiais de que a vila estava

realmente abandonada.

Então, um grupo maior se dirigiu para a vila, onde, juntando-

se aos outros que tinham ido efetuar a verificação, nela

entraram e constataram que as construções eram melhores

do que aquela que havia sido bombardeada. As casas, feitas

de pedra e barro, com telhado de uma espécie de sapê,

Page 57: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

vegetação típica das estepes locais, estavam em boas

condições e serviriam de abrigo para a tropa.

Aos poucos, todos foram adentrando na vila. Os soldados

foram ocupando as casas e os oficiais se reuniram em uma

delas, construída perto de uma espécie de praça da vila.

Todas as casas, sem exceção, eram de um só cômodo, com

uma área de aproximadamente 20m2 e em seu interior,

possuíam algo parecido com uma lareira, só quem sem

chaminé. Era uma espécie de sobrepiso feito de pedras, com

uns 20cm de altura, encostado a uma das paredes e, em cima

dele, via-se claramente restos de lenha queimada. Acima

delas, havia uma pequena abertura na parede, que deveria

servir para aliviar a saída da fumaça que se acumulava dentro

das casas. Acima desta abertura havia uma placa de latão que

servia para aparar e colher a fumaça para ser expelida pela

abertura.

Os oficiais ordenaram aos soldados que vasculhassem as

outras casas e as imediações para ver se colhiam alguns

materiais que pudessem servir para se acenderem fogueiras

e outros objetos que pudessem ser úteis à tropa.

Em algumas casas, foram deixados móveis como cadeiras,

mesas, armações de camas, cômodas e panelas de ferro.

Tudo indicava que umas das atividades desenvolvidas

naquela vila era a produção de utensílios em vime, já que

Page 58: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

haviam sido abandonados, além do vime nos tanques, alguns

cestos prontos e outros em fase de tecitura.

O material para servir de fogueira foi agrupado no centro

daquela pequena praça, em frente ao alojamento onde se

encontravam instalados os oficiais. Inclusive, o galpão do

vime havia sido desmontado, já que não servia de abrigo por

serem suas paredes totalmente vazadas.

Os soldados foram divididos em grupos de vinte e cada grupo

se instalou em uma casa, carregando consigo uma boa

quantidade de lenha para acenderem suas fogueiras. Porém,

um dos oficiais alertou que elas somente poderiam ser

acesas após anoitecer, pois a fumaça poderia ser vista.

Apesar do frio intenso, todos resolveram aguardar a chegada

da noite para acender o fogo e o tenente ordenou que os

soldados descansassem nas casas, secassem suas proteções

dos pés e tentassem melhorar as condições de seus

agasalhos improvisados.

Neste momento, um soldado se aproximou e disse que o

vime poderia ser utilizado para substituir as “solas” de

madeira, já que era maleável e proporcionava maior

aderência ao se caminhar sobre a neve. Disse saber trabalhar

com o material e que se disporia a fazer um par para ser

experimentado.

Outros cinco soldados também informaram saber trabalhar

com o vime e se propuseram a ajudar.

Page 59: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Meia hora depois, o primeiro par de “solas” havia sido tecido

e tiras de roupas foram usadas para dar um formato de botas

à mesma.

Um dos oficiais se dispôs a experimentar o calçado e o

aprovou. Era bem melhor que o piso duro das tábuas.

Então foi dada a ordem de se produzir os demais pares de

solas para o restante do grupo e que os demais iriam

providenciando as tiras de pano.

Nisso, ouve-se um tiro proveniente da casa utilizada pelos

oficiais e vê-se um soldado sair correndo de lá, apavorado e

gritando que o tenente ferido havia atirado em sua própria

cabeça.

Um dos três oficiais restantes, de nome Mário, entrou

rapidamente na casa e constatou o que o soldado havia dito.

Em um dos cantos da casa, jazia o corpo do tenente com uma

mancha de sangue na fronte esquerda e a pistola caída no

chão, próximo à sua mão.

Não foi preciso mais que um minuto para se descobrir o

porquê daquele gesto: o cheiro de carne podre se fez sentir

enquanto os demais que ali se encontravam presenciavam a

cena: o ferimento na cocha do tenente havia gangrenado e

este sabia que não teria salvação, já que não dispunham de

remédios para a cura e nem de material para uma possível

amputação do membro.

Page 60: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Todos ficaram consternados com o ocorrido, cuja notícia se

espalhou rapidamente.

Porém, como nada mais poderia ser feito, o sub tenente

Mário, primeiro na escala militar ali presente, ordenou que

se enterrasse rapidamente o corpo do tenente e que suas

roupas fossem enterradas com ele, visto que a calça estava

toda manchada de sangue gangrenado. Seu par de botas e

seu casaco militar deveriam ser aproveitados após bem

lavados. Ele informou que ficaria com o casaco e que as

botas, pequenas demais para ele, seriam oferecidas aos

outros oficiais.

Após o enterro do tenente, ocorrido por volta do meio-dia ,

constatou-se que mais cinco soldados que se encontravam

em uma das casas destinada aos feridos apresentaram sinais

de gangrena. O pânico se espalhou entre eles .

Os oficiais decidiram que pernoitariam naquela vila, para que

os soldados se recompusessem, descansassem os pés e

fizessem as adaptações com o novo tipo de sola que seria

experimentado.

Ao anoitecer, depois de escalados os soldados que fariam a

vigilância e seus turnos, todas as casas acenderam suas

fogueiras e rapidamente os ambientes se encheram de calor.

Era uma sensação de conforto que não tinham desde que

deixaram os trem na Ucrânia.

Page 61: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Como jantar, as sementes de girassol foram distribuídas e

aquela foi a única refeição do dia.

Não fosse pelo desconforto de acordar no meio da noite para

a ronda de vigilância, esta teria sido uma noite perfeita,

dentro de suas limitações e circunstâncias.

Ao amanhecer, vários soldados se espalharam pelas

imediações para ver se encontravam algo que pudesse ser

utilizado, bem como alimentos.

Além de alguns objetos de uso pessoal que de nada serviam,

nenhum alimento foi encontrado.

Assim, após todos terem calçados suas novas “botas”, os

soldados foram perfilados para reiniciarem a marcha. Porém,

uma notícia entristeceu a todos: os soldados feridos seriam

deixados para trás.

Já havia vários feridos com gangrena e, o restante dos

feridos graves, em poucas horas, estariam com o mesmo mal.

Seria como transportar cadáveres.

Então, só os 113 que tinham condições de continuar a

marcha seguiram em frente. Os oficiais foram dar palavras de

ânimo aos que ficariam, dizendo-lhes que a única chance de

vida que tinham era a de serem capturados e enviados a um

hospital para serem tratados. Além disso, mentiram dizendo

que retomariam a marcha em direção ao Este, a fim de pegar

uma pequena estrada pela qual haviam passado há 24 horas.

Tratava-se de uma mentira para que, caso fossem capturados

Page 62: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

com vida e torturados, não passassem, ao inimigo as

verdadeiras intenções do grupo.

Quando iam deixando o recinto, um dos feridos disse:

“Senhor, por favor, deixe-nos armas para que nós possamos

decidir o que fazer. Sabemos perfeitamente que se formos

capturados, vamos ser executados, pois, se alguém chegar

vivo à Itália, irá denunciar a traição. Portanto, já estamos

destinados a morrer. Queremos decidir se vamos morrer por

vontade própria, abreviando o sofrimento, ou se nas mãos

dos inimigos”.

O subtenente Simone deu-se conta de que o temor discutido

entre os oficiais já era compartilhado por todos. Este assunto

já havia sido falado em uma reunião que o pequeno grupo de

oficiais teve naquela parada no campo de girassóis. O

mesmo pressentimento já havia tomado conta de todos.

Então o sargento Simone decidiu deixar com os feridos um

fuzil e cinco balas. E saíram consternados, sem dizer mais

uma só palavra.

A tropa foi novamente comunicada da decisão de se deixar

os feridos à sua própria sorte e, temendo o que já havia sido

constatado, parecia que todos sabiam de sua real situação.

Era escapar ou morrer nas mãos do inimigo, pois este, com

toda a certeza, não iria fazer prisioneiros. Todos ficaram

mudos e empreenderam a caminhada. Nada se poderia fazer

pelos amigos que ficariam para trás.

Page 63: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

XI – ARMADILHA PARA INIMIGO.

Sem outra opção, a tropa seguiu para o oeste, na esperança

de encontrar um caminho melhor e, principalmente,

alimentos. A fome já dava sinais de presença entre os

soldados. A pequena porção de sementes de girassol foi

insignificante.

Passaram-se três dias e os soldados não encontraram

alimentos. No caminho, pernoitavam mata adentro para não

serem surpreendidos. O frio era intenso e, como

alimentação, serviam-se de sopas feitas com raízes de

plantas locais. De alguma forma, essas raízes forneciam

energia.

O novo calçado à base de vime e panos serviu melhor que as

solas de madeira. Os pés já não doíam tanto, mas a umidade

neles era mais frequente. À noite, sempre tinham que secar o

vime e as tiras de lona.

No quarto dia, os soldados que formavam o grupo de

batedores voltaram com uma notícia: à frente, cerca de uns

três quilômetros, avistaram uma grande ponte, sendo que a

cabeceira do outro lado era guarnecida por um grupo de

soldados.

Este era o grande problema. Como chegar ao outro lado da

ponte sem serem percebidos pelos soldados inimigos?

Um dos oficiais então, falou: “No caminho, notamos o rastro

de veículos que se dirigiam ou voltavam da direção da ponte.

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Portanto, vamos recuar alguns quilômetros e ficar na espreita

para avistarmos qualquer veículo que passe pela estrada, em

direção à ponte. Nossa esperança é que possamos nos

apossar de um deles e, aí sim, poderemos nos aproximar

despercebidos da cabeceira da ponte”.

E assim fizeram. A tropa recuou uns 15km até o ponto da

estrada onde havia um pequeno monte, de cerca de 50

metros de altura e que, de lá, se tinha uma ótima visão para

ambos os sentidos da estrada, já que esta fazia uma curva

aberta justamente para contornar este monte.

Esperaram cerca de seis horas, até que do lado Leste, em

direção à ponte, viram aproximar-se dois caminhões

militares. Um deles tratava-se de um veículo de carga e o

outro, certamente, por ter uma cobertura de lona, deveria

trazer soldados para a escolta. Devido às condições da

estrada, muito lamacenta por conta da neve sobre o solo de

terra, sua velocidade não era superior a 20 km por hora.

Calcularam que atingiriam o ponto da curva onde a tropa se

encontrava em cerca de trinta minutos.

Rapidamente, utilizando-se dos quatro machados que

haviam recolhido na vila perto de Rostov, derrubaram uma

pequena árvore na estrada, mas de tamanho suficiente para

que provocasse a parada dos veículos.

Três grupos de soldados se esconderam na mata da margem,

prepararam seus fuzis e receberam ordens de atirar no

caminhão com a lona assim que os veículos começassem a

Page 65: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

parar. Ordens foram dadas para não se atirar na cabine, pois,

poderia danificar os controles e os motores. Caso os soldados

das cabines reagissem, haveria um grupo especial para atirar

somente neles, com pistolas.

Os grupos se postaram justamente no lado da estrada que

encostava no monte, visando dificultar a visão dos soldados

inimigos quando percebessem a cilada.

Eis que, alguns minutos depois, o primeiro caminhão surgiu

na curva. Cerca de 50 metros adiante, o motorista deste

percebeu a árvore caída na estrada e diminuiu a velocidade.

O caminhão com a escolta, que vinha logo atrás, também

teve de diminuir a marcha. Neste momento, o oficial deu a

ordem de abrir fogo e, 30 segundos depois, os dois veículos

pararam e os ocupantes das cabines saíram atirando com

pistolas, enquanto um pequeno grupo de soldados que havia

saído ileso do tiroteio dirigido ao segundo veículo também

pulava da carroceria e preparava-se para atirar.

Então, o grupo que estava aguardando a reação dos soldados

das cabines abriu fogo e fuzilou os quatros soldados,

enquanto que os demais dizimavam o pequeno grupo de

inimigos que saltara da carroceria do caminhão da escolta.

Após se certificarem que não havia mais sobreviventes, os

soldados italianos se aproximaram dos caminhões e dos

inimigos mortos e contaram vinte e oito corpos.

Page 66: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Imediatamente, mesmo sem receberem ordens para tal, os

primeiros soldados se aproximarem e subiram nos caminhões

para verificar se estes transportavam algum tipo de alimento.

Para decepção geral, o primeiro veículo transportava

munição para canhões e o segundo, o da escolta,

transportava pequena quantidade de ração individual dos

soldados que, pelo visto, estavam próximos de seu destino, já

que havia o suficiente para mais duas refeições.

A muito custo, os oficiais contiveram o desespero dos

soldados, e ordenaram que o alimento fosse primeiro

inventariado, para que, depois, fosse distribuído em partes

iguais.

Antes disto, precisariam despir os inimigos mortos, esconder

seus corpos na mata e retirar os veículos da estrada.

Em uma vala de pouco mais de um metro de altura, a cerca

de 20 metros da estrada, os corpos foram atirados e, sobre

eles, jogaram uma camada de neve de aproximadamente 20

centímetros.

Somente no próximo verão aqueles corpos seriam

descobertos.

A neve com sangue na estrada foi atirada na mata, os

vestígios do tiroteio foram apagados e os caminhões

direcionados por uma brecha que havia entre as pequenas

árvores. Rezaram para que não passasse nenhum outro

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veículo inimigo até que nova camada de neve cobrisse a

estrada. E assim, aguardaram até o anoitecer.

Antes que a noite caísse, os alimentos (pães pretos, queijos e

um tipo de pasta parecida com creme de amendoim) foram

distribuídos entre os soldados. Também haviam recolhido

duas garrafas de vodka. Toda a ração foi consumida. Com a

fome que estavam, não havia condições de deixarem parte

para uma outra refeição.

Então, os oficiais traçaram os planos para o ataque à ponte

na manhã seguinte.

O plano era vestir vinte e oito soldados com os uniformes

russos, armá-los com os fuzis capturados e tentar se

aproximar da guarnição de soldados inimigos do outro lado

da ponte. Calculou-se que havia cerca de vinte e cinco deles.

Teria de ser uma ação rápida e sem chance de reação para o

inimigo, já que eles deviam contar com um rádio de

comunicação e um alerta poderia ser passado durante o

combate.

Duas granadas que haviam sido encontradas na boleia de um

dos caminhões seriam utilizadas no ataque à cabine na

cabeceira da ponte, cabine esta que deveria ser utilizada

pelos oficiais e pelo operador de rádio, juntamente com o

equipamento.

Um grupo de quinze soldados que já possuía experiência de

combate foi inteiramente indicado para a missão. Seriam os

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primeiros a atirar. O grupo foi completado com mais treze,

entre eles Salvatore e seu amigo Paulo. Salvatore, Paulo e

mais cinco soldados formaram um grupo que ficou

encarregado de invadir a cabine, capitaneados por um dos

oficiais e outro soldado experiente, os quais atirariam as

granadas na cabine antes que os soldados adentrassem nela.

Salvatore tremeu: seria sua primeira experiência de combate.

Até então, sua única experiência havia sido a de escapar do

bombardeio em Rostov e fugir pelas estradas russas.

Antes de dormirem, descarregaram parte da carga de

munição, deixando um vão entre as pilhas laterais. Neste vão

ficariam escondidos os soldados do primeiro caminhão a

cruzar a ponte. No outro, iriam o restante, acobertados pela

lona, que, apesar de ter muitos furos provocados pelo

tiroteio, ainda se encontrava em condições de uso.

Os soldados que participariam da ação dormiram nos

caminhões, juntamente com outros que coubessem, e o

restante dormiria debaixo da lona e dos abrigos feitos com

ramagem. As caixas de munição retiradas do caminhão,

depois de esvaziadas, serviram de estrado para os soldados.

Na manhã seguinte, um grupo se dirigiu ao alto do monte

para ver se algum veículo se aproximava. Deram o sinal de

que estava tudo bem e o grupo de soldados que não

participaria da ação saiu em marcha, em direção à ponte.

Estes aguardariam os caminhões chegarem e dariam apoio

após iniciado o tiroteio.

Page 69: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Uma hora depois, os soldados que estavam no monte se

juntaram ao grupo dos caminhões e estes partiram em

direção à ponte.

Passaram-se uns trinta minutos até que os caminhões

alcançaram o grupo que saíra à pé e este passou as

informações que precisavam: a situação era a mesma de

ontem. O grupo de soldados era o mesmo e a recontagem

dos inimigos ficou em vinte homens visíveis, fora os que

estavam na cabine que, pelo tamanho, não comportava mais

de cinco soldados. Ao lado da cabeceira da ponte, havia 2

caminhões, que certamente serviam de abrigo para os

soldados. Durante o tempo que o grupo ficou espionando os

russos, ninguém saíra ou entrara nos caminhões.

Pelo visto, todos se encontravam em serviço. As instruções

foram repassadas e os dois caminhões começaram a marcha

em direção à ponte. O campo de visão entre onde se

encontravam os soldados que iriam apoiar a ação e a

cabeceira da ponte era de cerca de 500 metros. Se a ação

não fosse rápida e precisa, o grupo de apoio pouco poderia

fazer para ajudar. A distância era longa.

Page 70: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

XII - A PRIMEIRA BATALHA.

Quando os caminhões foram avistados pelos russos, estes se

perfilaram para receber o comboio. Tudo estava igual até

chegarem na cabeceira Leste da ponte. Ao entrarem nela,

viram um oficial sair da cabine e se juntar aos soldados: havia

dois russos perto de um cavalete que ficava exatamente no

fim da ponte e duas fileiras de homens, uma de cada lado, a

uns 10 metros da ponte. O oficial russo juntou-se aos dois

soldados do cavalete e os caminhões seguiram ponte

adentro, mantendo a mesma velocidade, para não causar

suspeitas.

Tudo seguia normalmente até atingirem a metade da ponte,

quando os homens da boleia do primeiro caminhão notaram

que o oficial russo começara a suspeitar de algo, pois virou-se

para a cabine e gritou algo. Logo após, falou alguma coisa

para os dois soldados que estavam a seu lado, fez um giro de

90 graus e começou a correr para a cabine, que ficava a uns

10 metros para o lado esquerdo. Nisto, os caminhões já

haviam atingido ¾ do percurso da ponte e o oficial italiano

que comandava a ação deu ordens para acelerar, apontou

seu fuzil para as costas do oficial russo e atirou.

Este caiu feito um tronco. A esta altura, os caminhões já

haviam acelerado e, quando os demais soldados russos se

deram conta do que estava acontecendo, os veículos com os

italianos já tinham alcançado a outra margem. O tiroteio teve

início de ambas as partes, e o segundo caminhão parara ao

Page 71: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

lado da cabine, onde o outro oficial e o soldado que estavam

com as granadas as atiraram através de uma pequena janela,

que antes teve os vidros estilhaçados por tiros de pistola.

Ao ouvirem as granadas explodirem, Salvatore e os outros

soldados correram para o interior da cabine, de fuzis em

punho, e já entraram atirando. Não se sabe se os soldados

russos morreram com as explosões das granadas ou se com

os tiros de fuzis.

Então, no meio de tiroteio, ouviu-se o pipocar de uma

metralhadora: os observadores italianos não haviam avistado

o ninho de metralhadora que estava instalado no lado oposto

da cabine, no meio de algumas árvores.

Os italianos que se encontravam no segundo caminhão

ficaram totalmente expostos à ação da metralhadora, já que

haviam abaixado a lona para poderem atirar e, com isso,

foram quase que dizimados. Salvatore e o grupo que atacou a

cabine se livraram do perigo porque desceram antes de a

metralhadora entrar em ação.

O grupo do primeiro caminhão, que estava protegido pelas

caixas de munição, dividiu o ataque entre os russos que

estavam perfilados na ponte e a metralhadora.

Foi então que o motorista do primeiro caminhão teve uma

ideia: como toda a carroceria estava margeada de caixas de

equipamentos, que davam perfeita proteção aos italianos,

Page 72: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

engrenou uma ré em direção à metralhadora e esmagou esta

e os russos que a operavam.

Com a metralhadora fora de ação, os soldados do segundo

caminhão que haviam escapado e o grupo que voltava da

cabine terminaram de derrubar os russos que restavam.

Só neste momento é que foram avistados os italianos que

vinham do outro lado da ponte.

Ainda estavam a cerca de 100 metros da cabeceira. Como se

previu, nada puderam fazer para auxiliar os outros. Estavam

muito longe da área de combate.

Terminada a ação, os italianos contaram suas baixas:

quarenta e cinco mortos e três feridos sem gravidade.

Ao revistarem a cabine, constataram o quem temiam: havia

um rádio e a comunicação, pelo menos, se iniciara. Uma voz

frenética se ouvia no alto falante. Pelo tom de voz, quem

estava do outro lado sabia que algo grave havia ocorrido e a

falta de resposta confirmaria esta certeza.

Rapidamente, os oficiais deram ordem de recolher todos os

uniformes russos, inclusive dos soldados italianos mortos,

atirarem os caminhões e os corpos no rio e limparem ao

máximo a área de batalha.

Certamente, os primeiros a chegar seriam os aviões e deveria

se dificultar ao máximo a visão que os pilotos teriam do local.

Com um pouco de sorte, estes, ao não avistarem os

Page 73: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

caminhões e soldados, poderiam passar informações

supondo que, se houve um ataque, e a fuga se dera com os

caminhões. Então, as buscas se limitariam ao percurso da

estrada. Por terra, os russos só chegariam ao local em pelo

menos dois dias, a não ser que mais a Oeste houvesse uma

outra guarnição. No sentido Leste, a guarnição mais próxima

viria de Rostov.

Portanto, se tudo corresse como planejado, teriam vantagem

de dois dias para se afastarem do local, percorrendo

caminhos por dentro da floresta, mas sempre seguindo o

sentido Oeste.

Após duas horas de trabalho limpando completamente o

cenário da batalha, se despediram de seus amigos mortos

com uma oração no momento em que os corpos foram

atirados no rio. Depois, os soldados italianos, agora reduzidos

a 68 e com 3 levemente feridos, optaram por tomar o rumo

norte, seguindo a margem do rio, para depois, após uma

longa marcha, retomar o sentido Oeste.

Já com a grande maioria agasalhada e todos com botas

retiradas dos soldados russos, reiniciaram a fuga sem terem a

menor ideia de para onde se dirigiam.

Page 74: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Só não sabiam que, ao cruzarem o rio, já estavam fora de

território russo. Haviam acabado de entrar em território

ucraniano.

Haviam deixado a Rússia para trás. Encontravam-se a mais ou

menos 50 quilômetros da cidade Luhansk. Porém, mais

sofrimento estava por vir.

Salvatore havia acabado de ter a sua primeira experiência em

combates. No momento em que saiu da cabine e viu seus

companheiros serem dizimados pela metralhadora, lembrou-

se da malfadada figura do general Colossi e atirou na direção

dos soldados russos como se estes fossem ele. Não se lembra

de quantos atingiu. Só lembra que carregou seu fuzil por

duas vezes.

Quatro horas se passaram desde

que haviam deixado a ponte

para trás. Já anoitecera quando

resolveram parar. Por sorte, a

mata local não era muito densa e

eles puderam progredir por

cerca de quinze quilômetros. O

perigo era de que a mata, por

não ser densa e não possuir muitas árvores, não os

protegesse da visão aérea. No início da marcha, ouviram

Page 75: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

barulhos de motores de aviões passarem perto, mas não

foram avistados. Por sorte, não nevava e não havia neve

acumulada no chão.

Improvisaram um acampamento e fizeram um inventário do

que tinham e do que foi arrestado dos russos:

30 fuzis russos, com 4 caixas de munição (cerca de 1.000

balas);

32 fuzis italianos, pouca munição (cerca de 200 balas);

18 pistolas com cerca de 250 balas;

8 baionetas;

4 facões;

4 martelos;

1 alavanca;

3 pás;

3 enxadas;

3 lonas (uma perfurada e 2 intactas);

22 uniformes russos completos;

9 caixas de ração (108 porções)

3 armações de ferro para apoio de panelas;

4 panelas;

6 galões de gasolina; e

2 garrafas de vodka (foram preservadas para servirem

de antiséptico ou combustível).

Para o que teriam de enfrentar nos próximos dias, não

significava nada.

Page 76: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Ao anoitecer, armaram o acampamento e fizeram uma

refeição.

Reiniciaram a marcha em direção rio acima, sempre perto da

vegetação. Isto dificultava a marcha, pois os obstáculos da

mata atrapalhavam muito. Marcharam o dia inteiro.

Assim que caiu a noite, tiveram de parar, pois era impossível

transpor a vegetação no escuro.

Adentraram ainda mais na mata e estabeleceram

acampamento. O céu estava limpo e a luminosidade da lua os

auxiliou na ocupação do espaço.

Havia neve no chão, talvez uma camada de 10cm. Porém,

debaixo das copas das árvores, a camada era bem mais fina e

se podia, em alguns trechos, até avistar o chão.

Resolveram então, utilizando as enxadas e as pás, remover a

neve debaixo das árvores e cobriram o chão com ramagem e

mato, de maneira que não fossem atingidos pela umidade

enquanto estivessem deitados. Isto foi feito em três áreas e

os soldados foram divididos em três grupos.

Abriram três buracos no chão de maneira que pudessem

acender fogueiras. Antes, providenciaram coberturas para os

buracos utilizando galhos, para que o fogo não fosse avistado

de cima.

Nas fogueiras, derreteram neve e prepararam as rações

russas que haviam apreendido na ponte.

Page 77: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Foram preparadas apenas vinte porções. Cada ração era um

tablete de uma massa que, derretida na água fervente,

proporcionava uma espécie de sopa. O oficial italiano

determinou que cada um se servisse de uma porção que ele

mesmo derramava nos capacetes metálicos de cada soldado.

Ele calculou de forma que cada um recebesse uma caneca e,

após todos se servirem, ainda sobraram dez porções. Então,

ele pediu que fossem esvaziados alguns cantis e a sobra da

sopa foi ali armazenada.

Foi pouco, mas a sensação de pôr no estômago algo quente

foi maravilhosa.

Após isto, todos se deitaram no chão coberto de ramagem,

protegidos pelas copas das árvores e, como cobertores, cada

grupo utilizou uma das lonas.

Assim que amanheceu, levantaram acampamento e

reiniciaram a marcha rio acima.

Devia ser pouco mais do meio-dia quando o grupo que seguia

na frente avistou uma outra ponte. Um dos soldados subiu

em uma árvore e, lá de cima pode ver, com auxílio do

binóculo, que se tratava de uma ponte ferroviária.

O grupo voltou rapidamente para avisar ao restante da tropa

e, após minucioso exame, concluíram que não havia

nenhuma guarnição inimiga protegendo a ponte.

Aproximaram-se cautelosamente da cabeceira da ponte e

puderam constatar que, realmente, tratava-se de uma

Page 78: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

ferrovia. Provavelmente fazia muito tempo que um trem não

passava por lá, já que o nível da neve sobre os trilhos era

exatamente o mesmo das margens do leito.

Resolveram então seguir a ferrovia, que se dirigia para Oeste,

justamente a direção que queriam. O leito da ferrovia seguia

pelo caminho aberto entre as árvores. A camada de neve era

densa, uns 30cm, e atrapalhava bastante a movimentação

dos soldados.

Como anteviam que dali para adiante a camada de neve

aumentaria a cada dia, já que o inverno apenas começara,

resolveram parar e improvisar sapatos adequados para

prosseguir.

Então, utilizando pequenos ramos e tiras de pano que

haviam guardado, improvisaram as raquetes que lhes

permitiriam se deslocar com mais rapidez.

Assim, seguiram o resto do dia, até que a noite caiu.

Novamente montaram acampamento tal qual a noite

anterior, só que desta vez, não foi possível remover a camada

de neve, mesmo debaixo das árvores. Foi preciso, então,

aumentar a camada de galhos, ramos e mato para que se

afastassem o máximo possível da umidade.

A sopa que sobrara na noite anterior foi aproveitada e, desta

vez, apenas quinze porções de ração foram utilizados.

Sobraram setenta e três porções e o oficial decidiu que

apenas quinze por dia seriam consumidas. Bem ou mal, ainda

Page 79: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

teriam algo para pôr no estômago por mais cinco dias, a não

ser que encontrassem algum outro alimento pelo caminho.

No dia seguinte, assim que amanheceu, reiniciaram a

marcha, seguindo a linha do trem. Duas horas se passaram,

até que avistaram ao longe uma cadeia de montanhas. A

primeira que viram desde o início da fuga de Rostov. Até

então, só haviam passado por terras planas e, de vez em

quando, pequenos morros e aclives.

Calcularam que, se apressassem o passo, à noite alcançariam

o sopé das montanhas.

Porém, começou a nevar forte e eles levaram dois dias para

alcança-las.

O esforço e a rala alimentação debilitaram a todos. O ânimo

dos soldados já recrudescia.

Foi então que a palavra de um soldado, proveniente das

montanhas da Sila (região das alturas das montanhas

calabresas) animou a todos: “Nas montanhas, é possível se

encontrar caça. Tenho experiência nisso e, com um pouco de

sorte, poderemos comer uma carne. Vamos montar

acampamento que prepararei umas armadilhas”.

Assim foi feito. Com a ajuda de outros soldados, o

montanhês armou algumas armadilhas e todos foram

repousar.

Page 80: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Na manhã seguinte, um grupo com o montanhês à frente se

dirigiu para o local das armadilhas e ficaram decepcionados.

Nada havia caído nelas.

Quando voltavam ao acampamento, o montanhês avistou

pegadas na neve, e, pela experiência que tinha das

montanhas calabresas, não titubeou em afirmar que se

tratavam de pegadas de lobos ou algum outro tipo de canino.

Como as pegadas eram relativamente frescas, resolveram

segui-las, não sem antes irem marcando o trajeto para a

volta.

Um dos soldados voltou para avisar aos outros.

Page 81: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

XIII – CARNE! CARNE!

“Carne ! Carne!” – ouviram os soldados que ficaram no

acampamento.

O grupo que havia seguido as pegadas encontrara um cavalo

morto, parcialmente devorado pelos lobos.

Ainda havia muita carne, já que os lobos preferiram as

entranhas, por serem mais macias.

Os quatro soldados que a encontraram cortaram boa parte

da anca esquerda do cavalo e a exibiam como troféu.

Imediatamente outros soldados seguiram para o local onde o

corpo do cavalo se encontrava e trouxeram o resto da carne.

Ela estava em bom estado, visto que a neve havia a coberto,

mantendo-a fresca.

O dilema agora era o de acender o fogo ou não. Naquela

paisagem branca de neve, qualquer sinal de fumaça seria

visto a quilômetros de distância.

Resolveram então esperar pelo anoitecer, quando a fumaça

não poderia ser vista. Havia apenas o risco de o clarão da

fogueira denunciá-los.

Mas, entre morrer de fome e serem descobertos, todos eram

de opinião que se deveria correr o risco à noite.

Então, os soldados começaram a preparar a carne em

diversos cortes finos, para que assasse rapidamente, em

porções individuais.

Page 82: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

O resto da carne que não seria utilizada naquela noite foi

cuidadosamente enterrado na neve para que se conservasse.

Cavaram uma vala de 1 metro de largura por meio metro de

profundidade, onde seria aceso o fogo. Na vala, depositaram

os galhos colhidos ao redor e estes estavam bastante

umedecidos pela ação da neve.

Eram cerca de oito horas quando a noite começou a cair. Os

soldados imediatamente atearam fogo aos galhos. Antes,

espalharam nos galhos metade de uma das garrafas de vodka

que haviam guardado, pois, se utilizassem gasolina, esta

impregnaria o sabor da carne.

O fogo demorou a arder devido à umidade da madeira, mas,

cerca de meia hora depois, as peças de carne já estavam

sendo postas a assar.

Não havia sal para temperar a carne, porém, mesmo assim,

naquela noite os soldados puderam sentir no estomago uma

refeição que há muito não haviam feito.

Antes de se deitarem, os soldados jogaram os restos dos

galhos no fogo que já era baixo, cobriram o fosso com

ramagem para diminuir o clarão e com isto produzirem

algum carvão que seria utilizado futuramente.

Na manhã seguinte, os soldados colheram a carne do cavalo,

os carvões, o equipamento e se puseram a marchar

novamente.

Page 83: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

XIV – ASSALTO AO TREM

Durante mais três dias o grupo marchou em direção ao

Oeste, pelas montanhas da Ucrânia, seguindo o leito da linha

férrea.

No caminho, consumiram o restante da carne do cavalo e

algumas pequenas caças que conseguiram capturar.

Só restava carne para mais uma parca refeição. Com se

encontravam nas montanhas, a possibilidade de

encontrarem plantações de inverno ou celeiros era

praticamente nula. Contavam apenas com a sorte, como

aquela de encontrar o corpo do cavalo morto pelos lobos.

Deveriam ser cerca de duas da tarde, quando avistaram no

vale que se estendia à frente deles uma coluna de fumaça

negra.

Embora no vale houvesse árvores, estas eram bem espaçadas

e podia se ver grandes lençóis de neve. O Oficial observou a

paisagem com seu binóculo e pode ver que se tratava de um

trem, composto de uma locomotiva a carvão e oito vagões.

Havia um vagão de passageiro logo após a locomotiva, seis

vagões de carga - dois fechados e quatro abertos - e por

último, mais um vagão de passageiros.

Logo concluiu-se que no primeiro vagão de passageiros

estavam oficiais e soldados e, no último, somente soldados.

Page 84: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Uma forma de proteger a carga. Nos vagões de carga,

certamente, material militar.

O limpa-trilhos rasgava a espessa neve com dificuldades. A

composição não deveria estar percorrendo mais de 30

quilômetros por hora.

O Oficial italiano calculou que deveriam se aproximar deles

dentro de no máximo 40 minutos.

Então, baseado na posição do trem, percorreu o suposto leito

do trilho, guiando-se pelas árvores, e descobriu que o trem

se dirigia exatamente para onde eles estavam.

Ordenou que os soldados descobrissem o leito dos trilhos

que deveria estar muito próximo deles e não demorou dez

minutos para que isto fosse feito.

Descobriram também que no local em que se encontravam,

já era parte da subida da pequena serra e, do vale até ali, a

distância era de cerca de dez quilômetros. Isto retardaria

ainda mais a marcha do trem.

Seguindo o leito de neve entre as árvores, descobriram que

adiante, a cerca de um quilômetro, havia uma curva para a

direita.

Com dificuldades, percorrem o mais rápido que puderam a

distância até a curva e lá chegando, puderam constatar que a

mesma era bem fechada, com um ângulo de

aproximadamente 35 graus.

Page 85: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Rapidamente, o oficial arquitetou um plano muito arriscado,

mas, se desse certo, poderiam tomar o trem.

Perguntou ao grupo quem entendia de mecanismos de trem

e quatro soldados se apresentaram.

Pediu a dois deles que se escondessem na vegetação, logo

após a curva e lhes passou as seguintes instruções:

Quando a locomotiva e metade dos vagões de carga tivessem

passado por eles, eles sairiam do esconderijo, se

aproximariam bem do trem - protegidos pelo ângulo da curva

- e, quando o último vagão de carga chegasse a eles,

saltariam para o mesmo , rapidamente se dirigindo para o

engate entre o vagão de carga e o vagão dos soldados.

Alcançando o engate, destravariam este e o vagão com os

soldados ficaria para trás. Até que se dessem conta, já

estariam bem afastados do restante do trem e este também

já deveria ter sumido na curva.

O restante do grupo esperaria o trem mais adiante e, quando

vissem que o vagão com os soldados não mais estava

engatado, subiriam no trem pelos vagões de carga.

Estavam todos a postos quando a locomotiva surgiu

lentamente na curva.

Os dois soldados viram-na passar e, logo após, os vagões de

passageiros e carga. Quando ficaram à vista somente os

vagões de carga, saíram como combinado do esconderijo,

protegeram-se rente aos vagões de carga e, quando o

Page 86: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

penúltimo se aproximou, subiram nele e segurando-se nas

cordas que prendiam a carga, chegaram ao engate entre

aquele vagão e o vagão dos soldados.

O engate era simples, apenas um pino unia os dois

mecanismos. O problema era aguardar um momento em que

houvesse um balanço entre os vagões para que surgisse a

oportunidade de puxar o pino.

Por sorte, esta oportunidade se apresentou logo após e o

vagão foi desconectado do comboio e os soldados ficaram

vigiando para ver se a manobra seria percebida logo pelos

ocupantes do vagão. Demorou dois minutos para que o

vagão com os soldados desaparecesse na curva sem que se

percebesse qualquer sinal de que os ocupantes tivessem se

dado conta da situação.

Quinhentos metros adiante, já quase no final da curva, o

grupo avistou o trem. Torceram para que a primeira parte do

plano tivesse dado certo e aguardaram.

Quando perceberam que o vagão dos soldados não mais

estava engatado, correram todos para os últimos vagões e

subiram neles.

Os dois soldados da primeira ação se juntaram ao grupo e o

oficial ordenou que fossem passando de um vagão para

outro, sempre desengatando o último vagão. Com isto, o

vagão com os soldados seria atingido, causando muitas

baixas e as cargas dos vagões restantes seriam destruídas.

Page 87: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

E assim foi feito. Com intervalo de dez minutos de um para

outro, dois vagões de carga foram desengatados.

Faltava pouco para o anoitecer e o oficial ordenou que

aguardassem escurecer para desengatar o restante dos

vagões, senão, a manobra poderia ser percebida.

Os soldados, espalhados por três vagões, se protegendo

debaixo das lonas que cobriam as cargas aguardaram o

anoitecer. Pelo que haviam observado, o trem levaria mais

de uma hora para chegar ao topo na serra, já que a marcha

diminuía à medida que ia subindo.

Quando a noite caiu, o primeiro vagão foi desengatado.

Depois, em intervalos de 10 minutos cada, os outros dois

também se foram. Restavam apenas um vagão de carga e o

de passageiros. Agora vinha a parte mais difícil.

Quatro soldados subiram no teto do vagão de passageiros e

seguiram para a locomotiva.

Do alto deste, não podiam ser vistos pelos três homens que

estavam na cabine da locomotiva. Lentamente,

aproximaram-se da cabine, pisando em cima das achas de

lenha que serviam de combustível e observaram qual deles

era o maquinista.

Perceberam então que um deles dormia, um outro era

ajudante e o terceiro estava no comando das manivelas.

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Dois soldados miraram para o homem que dormia e seu

ajudante e atiraram. O que dormia, nem se apercebeu do

que aconteceu. O ajudante deu um pulo para trás e ainda se

manteve de pé, mas um segundo tiro no peito o colocou no

chão.

Quando o maquinista se deu conta do que se passava, já

estava sob a mira do fuzil do soldado italiano e ficou

paralisado. Através de mímica, recebeu ordens para que

parasse a locomotiva e assim o fez.

O restante dos soldados, assim que o trem parou, pulou do

vagão de carga e, numa ação coordenada, vários deles

atiraram contra as janelas do vagão de passageiros enquanto

outros lançavam granadas pelos buracos abertos pelas balas.

Após lançadas as granadas, todos se atiraram no chão.

Segundos depois, o vagão explodia totalmente, ardendo em

fogo.

Não sobrou nada nem ninguém que estava no vagão. Com

ferramentas apanhadas na locomotiva, os italianos

arrancaram as paredes que sobraram dele e atiraram os

corpos carbonizados dos russos na neve.

Com a pouca estrutura que sobrou do vagão e aproveitando

restos de madeiras, improvisaram um abrigo com as lonas

que cobriam a carga do outro vagão. Este foi desengatado e,

aos poucos, foi ganhando velocidade e se afastando

Page 89: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

montanha abaixo. A carga era de vigas de ferro, certamente

para a estrutura de alguma ponte ou galpão.

Por milagre, nenhuma baixa e nenhum ferido.

Ninguém do grupo falava russo e não houve como interrogar

o maquinista para que ele informasse onde estavam e para

onde o trem se dirigia.

Repararam que o depósito de achas de lenha para

combustível era de cerca de 1/5 da carga total, o que

indicava que faltava pouco para o trem chegar à próxima

estação.

Então, pegaram

um papel,

desenharam um

rústico mapa

mostrando o que

havia entre a

Romênia e a

Rússia e

marcaram a

cidade de Rostov, com indicação que se encontravam a Oeste

desta.

Mostraram isto ao maquinista e, sob ameaça de uma pistola

apontada para sua cabeça, este entendeu perfeitamente o

que os italianos queriam. Então ele pegou o lápis, e adiante,

escreveu “ KHARKIV”..... DNIPROPETROVSK”.

Page 90: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Isto significava que a próxima parada seria em “Kharkiv”

depois, seguiriam para “Dnipropetrovsk”.

Então, o oficial traçou uma linha passando por fora de

Kharkiv e fez sinal de indagação. Logo o maquinista entendeu

o que o oficial queria dizer e fez um gesto de que não sabia.

Novamente, o oficial italiano fez gestos que ele entendeu

muito bem: se não houvesse jeito de não passar por Kharkiv

ele seria morto ali mesmo. Mentiu fazendo sinais de que um

de seus soldados sabia manobrar a locomotiva. Se ele

achasse uma maneira de passar ao largo de Kharkiv, seria

poupado no fim da viagem.

Sendo assim, ele fez gestos que poderia resolver o problema.

E apontou para a carga de lenha que era pouca.

Então o oficial perguntou, sempre através de mímica, se

adiante havia alguma ponte e ele respondeu que sim.

O oficial ordenou: “Vamos seguir até a ponte”.

No meio da madrugada, o trem parou na cabeceira da ponte.

Com archotes, os italianos verificaram que a estrutura da

ponte era parte metálica, parte madeira. Então, seguiram

com o trem para a outra extremidade e o oficial ordenou aos

soldados que desmontassem parte da estrutura de madeira

para que esta servisse de combustível.

Page 91: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Um outro grupo de soldados pegou ferramentas que estavam

na locomotiva e foram para a outra extremidade retirar

trilhos e, com isto, possibilitar a remoção dos dormentes que

também serviriam como combustível.

Trabalharam durante oito horas seguidas e conseguiram

encher o depósito de lenha.

Partiram imediatamente, pois havia o temor de que aviões

seriam enviados para ver por que o trem não chegara ao

destino.

Já anoitecendo, o maquinista parou o trem perto de uma

casinhola de madeira à beira dos trilhos.

A neve já não era tão espessa e, em alguns trechos, dava

para se ver os trilhos.

O maquinista desceu acompanhado de dois soldados e se

dirigiu à casinhola. De lá, retirou uma alavanca e duas pás.

Pediu aos soldados que removessem a neve de determinado

trecho. Os soldados retiraram a neve e surgiu uma chave de

mudança de trilhos. O maquinista enfiou a alavanca, puxou-a

para si e a neve moveu-se juntamente com os trilhos,

mostrando que a linha havia sido desviada para um outro

ramal.

O oficial fez sinais para o maquinista para que este movesse a

locomotiva para o novo trecho.

Page 92: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Feito isto, ordenou que o desvio voltasse à posição original e

o leito da linha fosse novamente recoberto de neve.

O oficial raciocinou que se aviões vistoriassem a linha, do alto

não veriam que o trecho havia sido manipulado. No final do

vagão de passageiros, foram amarrados alguns galhos de

árvores para que estes disfarçassem a trilha deixada pelas

rodas do trem.

Já noite, seguiram adiante. Por volta das dez horas, pararam

em um trecho com árvores bem altas. Ali cozinharam a carne

de pequenas caças que haviam pego nas montanhas, fizeram

a refeição e dormiram no vagão improvisado. Apesar de não

estar nevando, o frio era intenso.

Quatro horas depois, já com o dia amanhecido, retomaram a

viagem.

Porém, não seguiram mais de vinte quilômetros quando se

depararam com uma árvore seca em cima dos trilhos. Vários

soldados, munidos com os machados, executaram a tarefa de

cortar e remover a árvore, que acabou sendo utilizada como

combustível. A água da caldeira também foi reposta com

neve.

A árvore seca em cima dos trilhos indicava que aquela

ferrovia não era utilizada fazia muito tempo. Isto era bom.

Por mais dois dias, eles seguiram de trem em direção oeste.

Page 93: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Ao final do segundo dia, avistaram à frente uma imensa

ponte. Esta passava por cima de um rio bem largo, com cerca

de cinquenta metros. Porém, o pior foi visto quase no

momento em que atingiam a cabeceira da ponte: Esta havia

sido bombardeada e a linha férrea estava destruída. Não

havia condições de ultrapassarem a ponte com o trem.

Dois soldados foram designados para verificar a possibilidade

de se transpor a ponte e seguiram adiante.

Ao voltarem, informaram que com bastante cuidado, a ponte

poderia ser atravessada a pé, mas para isto, primeiro

deveriam recompor com cordas um trecho de três metros de

um vão que o bombardeio criou há dez metros da outra

margem.

Vários soldados se dirigiram para lá e uma hora depois

voltaram informando que a ligação entre as duas partes da

ponte havia sido recomposta com cordas.

Um a um, os soldados foram seguindo pela ponte destruída.

O trecho mais difícil foi a passagem pelo vão de cordas. Ali, o

problema foi a transposição do material. As caixas de

munição, os fuzis e os galões de gasolina tomaram muito

tempo para serem atravessados.

Atravessado o material, o restante dos soldados iniciou a

travessia.

Antes, o oficial ordenou ao maquinista que engatasse a ré do

trem e o pusesse em movimento.

Page 94: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Com a lenha que havia na caldeira, o trem seguiria uns

quarenta quilômetros para trás até parar e, assim, despistaria

uma possível perseguição.

O oficial italiano resolveu levar com o grupo o maquinista

russo. Temeu que, uma vez livre e conhecedor da região, ele

pudesse denunciar a posição deles e o obrigou a acompanhar

o grupo.

Porém, no momento de atravessar o vão de cordas, o

maquinista perdeu o equilíbrio e se agarrou ao soldado que

estava à sua frente. Este por sua vez, se agarrou às pernas do

soldado ao seu lado e o inevitável aconteceu: os três caíram

da ponte e mergulharam nas águas geladas e turvas do rio.

Não havia como ajudá-los. Era uma queda de mais de quinze

metros e eles sequer voltaram à tona. Não mais foram vistos.

Consternados, os amigos tiveram que seguir em frente.

Agora, estavam reduzidos a apenas 66 homens.

Page 95: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

XV – OUTRA PONTE NO CAMINHO.

Os italianos não sabiam que, a esta altura, o grupo já havia

sido detectado. Os soldados mortos na estrada, o posto da

ponte destruído, o trem sequestrado e os vagões destruídos

deram a certeza aos russos de que o grupo estava agindo na

sua rota de fuga rumo ao oeste.

Já havia uma tropa em seu encalço. Aviões de

reconhecimento já realizavam buscas por indícios de sua

passagem. A locomotiva com o vagão destruído já havia sido

localizada a cinquenta quilômetros antes da ponte. A neve

acumulada de dois dias havia resfriado totalmente a caldeira

e não havia indicativos de há quanto tempo havia sido

abandonada.

A ideia da ré na locomotiva havia sido genial. Dali, onde a

locomotiva estava, não se tinha a mínima ideia de para onde

o grupo havia se dirigido. As tropas russas realmente não

sabiam por onde iniciar a busca.

Sem saberem da perseguição, o grupo italiano já se deparava

com outro tormento: não havia mais provisões. A última

refeição havia sido feita vinte e quatro horas antes.

Acamparam em uma gruta localizada no sopé de uma

montanha. Lá puderam acender fogueiras sem nenhum

perigo. Estavam aquecidos, porém sem nada para comer.

Na manhã do dia seguinte, se preparavam para seguir

adiante, quando ouviram barulhos de motor de avião.

Page 96: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Permaneceram na gruta por mais de duas horas, quando o

barulho cessou de vez.

Certamente, os aviões russos vasculhavam a linha férrea no

intuito de localizar rastros. Após feito o reconhecimento da

área por duas horas, decidiram ir embora e continuar em

outro local.

Se sentindo seguro, o grupo resolveu retomar a caminhada.

Marcharam por dois dias, sem nada comer.

A inanição já se manifestava em alguns soldados. Alguns, mal

se mantinham de pé.

Ao entardecer aquele dia, avistaram fumaça nos céus.

Subindo em uma árvore, um soldado que ainda tinha forças

localizou a direção de onde provinha a fumaça. O foco era ao

sul de onde se encontravam. Resolveram seguir para lá.

Fosse o que fosse, seria a única chance de se obter

alimentos. Mais uma vez tiveram de optar entre morrer de

fome ou morrer nas mãos do inimigo.

A noite já caía quando alcançaram os arredores de um

pequeno vilarejo. Apesar da pouca claridade que ainda

existia, puderam ver que o mesmo estava totalmente

destruído. Ele acabara de ser bombardeado. Ainda havia

alguns focos de fogo.

De cima do pequeno morro em que o grupo se encontrava, o

oficial pode verificar com seu binóculo que não havia

Page 97: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

ninguém perambulando por lá. Pode verificar também que

ainda havia partes de casas que não haviam desmoronado.

Ali, havia a chance de se encontrar algum alimento.

O oficial ordenou aos soldados que, tão logo a noite caísse de

vez, o grupo se dividisse em vários subgrupos e entrassem no

vilarejo em busca de comida.

Assim foi feito. O grupo se dividiu em quatro e, reunindo as

últimas forças que ainda tinham e movidos pela esperança de

se alimentar de novo, entram no vilarejo destruído por

quatro cantos diferentes.

Começaram a vascular os escombros em busca de alimento.

O grupo que acompanhara o oficial, dirigiu-se diretamente

para as casas que ainda se mantinham de pé. No primeiro

deles, encontraram um porão. Logo que desceram as escadas

do porão, avistaram um saco em um canto, em cima de uma

tosca prateleira e, para sua alegria, no saco havia favas secas.

Voltaram para cima com o saco de favas (pouco mais de

10kg) e procuraram pelas panelas que deveriam ali existir.

Enquanto isto, os demais foram aos poucos avisar aos

colegas que ainda chegavam ao vilarejo.

Em cerca de meia hora, todo o grupo já encontrava sob o

teto que havia sobrado daquela casa e o oficial e dois

soldados já estavam fervendo 1/3 das favas.

Uma hora depois, o grupo se alimentava usando seus

capacetes como pratos. No local, haviam sido encontradas

Page 98: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

quatro colheres, dois garfos, duas facas e uma concha, a qual

estava sendo utilizada para distribuir o feijão cozido.

O grupo estava tão fraco, que adormeceu ali mesmo,

utilizando as lonas para forrar o chão e se cobrir. Uma parte

dormiu naquele cômodo e a outra foi para o porão.

Na manhã seguinte, o frio era intenso, mas não nevava. O

oficial reuniu os homens e se prepararam para continuar a

caminhada rumo a oeste.

Naquela direção, havia uma pequena estrada que nos

primeiros quilômetros era calçada de pedras. Logo depois, a

estrada se limitava a leito de terra batida.

Havia bastante vegetação nas margens, o que lhes

possibilitava se esconderem em caso de busca pelo inimigo.

Agora, sabiam que de fato estavam sendo procurados. A

caminhada se tornara cada vez mais perigosa.

Caminharam por três dias, tendo como sustento o restante

das favas e restos de pão que os soldados haviam colhido nas

casas destruídas do último vilarejo.

O oficial racionou bem os alimentos e ainda tinham sustento

para mais três dias.

Nestes últimos três dias não haviam se deparado com

inimigos nem ouvido barulho de aviões.

Page 99: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

No quarto dia, a estrada em que seguiam voltou a apresentar

o piso de pedras. Logo, deduziram que estavam próximos de

alguma cidade.

Com bastante cautela, continuaram a marcha. Não

demoraram muito e ouviram barulho de motores de tanques

e caminhões.

Imediatamente se esconderam na mata que margeava a

estrada. Um grupo de trinta e três homens de cada lado.

Felizmente, não nevara e não havia rastros de sua passagem.

Cerca de trinta minutos depois, tropas russas conduzidas por

caminhões e uma coluna de tanques, passavam por eles.

O comboio levou cerca de uma hora até que passasse o

último tanque. Dez minutos depois, meia dúzia de

motocicletas também passaram por eles.

Aguardaram ali escondidos por mais de uma hora, quando o

oficial, convencido de que não havia mais veículos a caminho,

resolveu sair da mata e reunir a tropa novamente.

Resolveram seguir adiante, embora com bastante cautela.

Caminharam por mais de uma hora, quando a estrada

apresentou uma subida e uma pequena série de morros

adiante. Logo após o primeiro morro, havia uma descida e, lá

embaixo, puderam avistar um pequeno rio, com uma ponte

recém-destruída, pois ainda fumegavam pedaços de madeira

que deveriam ter pertencido à ela.

Page 100: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Certamente, o grupo de soldados com motocicletas que

passara por eles por último havia ficado encarregado de

destruir a ponte tão logo a tropa tivesse passado.

Desta forma, utilizando-se do binóculo, o oficial vasculhou as

imediações da ponte e teve certeza de que não havia

ninguém por perto. Resolveram então descer até lá e ver se

havia condições de atravessar o rio.

O rio devia ter uns dez metros de uma margem à outra e não

era caudaloso. O oficial pediu a dois soldados que nadassem

até a outra margem, levando cordas, no intuído de amarrem

uma na outra margem e assim todos, inclusive o material,

pudessem atravessar sem se molharem, principalmente as

lonas, roupas e o pouco alimento que ainda sobrava.

O problema era a temperatura da água, que estava próxima

de zero. O grupo estava muito fraco e seria quase que

impossível chegar à outra margem sem que a gélida água não

os matasse.

Salvatore e um soldado napolitano, que se chamava Pedro,

por apresentarem melhores condições físicas, foram

escolhidos para a travessia. Então estudaram o melhor

trecho para levar adiante a missão.

Na ponte destruída, o resto de um pilar com cerca de três

metros de altura continuava de pé bem no meio do rio. Isto

dividiria a travessia em duas partes, caso conseguissem

chegar até ele e lá fixarem as cordas para armarem uma

Page 101: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

ponte suspensa. O problema é que não havia corda suficiente

para isto.

Então, tiveram uma ideia: as árvores que floresciam à

margem do rio, tinham de seis a sete metros de altura e

cerca de um metro de diâmetro. Se derrubassem uma,

poderiam lançá-la até o pilar semidestruído.

Assim fizeram. Derrubaram uma árvore, desbastaram os

galhos e a deitaram no leve barranco de uns oitenta

centímetros de altura, junto à água. Antes, fincaram o tronco

de uma pequena árvore a cerca de 1/2 metro da margem,

sendo que antes desbastaram uma das extremidades para

fazer uma ponta afiada. Utilizando a marreta que levavam

consigo, conseguiram fincá-la no leito do rio e nela

encostaram a extremidade mais grossa do tronco.

Na outra extremidade da árvore, soldados receberam ordens

de afastar o tronco usando varas feitas com galhos,

empurrando- o para o meio do rio. A extremidade grossa

estava sendo segura por outros soldados de maneira que não

se afastasse para dentro do rio.

A muito custo, o tronco foi sendo empurrado pelas varas e

depois pela própria correnteza e também controlado por

cordas, para que não fugisse ao controle quando já estivesse

próximo de atingir o pilar.

Page 102: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

A operação deu certo. Em poucos minutos a extremidade

fina bateu no pilar e se firmou. Na margem, a extremidade

grossa se manteve firme no tronco fincado para este fim.

Enquanto uma turma cuidava do tronco na água, uma outra

providenciava a fixação da extremidade grossa na margem,

de maneira que ficasse segura e pudesse ser elevada até um

pouco acima do nível da água.

Fincado o tronco, Salvatore e Pedro entraram de vez na água

e nadaram até o pilar rapidamente. Lá chegando, laçaram o

tronco e escalaram o pilar até seu topo. Embora fosse apenas

uma escalada de três metros, tiveram dificuldades, já que

estavam com os corpos molhados.

Antes que seus corpos sentissem os efeitos do frio, ergueram

o panelão que haviam arrastado com eles, onde estavam

suas roupas e pedaços de lona para que secassem seus

corpos. Já secos, vestiram um jaquetão para resistirem ao

frio intenso e se puseram a amarrar o tronco no pilar. Apesar

de o tronco estar firmemente encostado no pilar, não

tiveram forças para içá-lo um pouco acima do nível da água.

Era muito peso para os dois debilitados soldados.

A muito custo, deslocaram uma das pedras do pilar e

conseguiram fixar as cordas. Com isto, quando os soldados

estivessem pisando no tronco, este não mergulharia nas

águas.

Page 103: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Concluída a primeira parte da operação, Salvatore e Pedro

puseram os jaquetões novamente no panelão, amarraram

outra corda no pilar e mergulharam no rio para atingir a

outra margem.

Lá chegando, secaram-se rapidamente, puseram suas roupas

e calçados e acenderam uma pequena fogueira para se

aquecerem. O resto da operação seria concluída pelos

demais.

A travessia dos soldados e do material consumiu 5 horas de

trabalho intenso, mas foi bem sucedida.

Page 104: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

XVI – AMIGOS FICAM PARA TRÁS.

No dia seguinte, retomaram a fuga, deixando para trás

aquela ponte destruída.

Marcharam durante todo o dia, sempre alertas para qualquer

barulho de avião. Por terra, havia poucas possibilidades de

serem localizados, pois o caminho era estreito, embora

permitisse a passagem de um veículo.

Caso ouvissem barulho de avião ou de veículo, poderiam

rapidamente se embrenhar na mata, bem densa.

À noite, montaram acampamento na mata, cerca de trinta

metros adentro. Começara a nevar há pouco e a camada de

neve ainda era rala. Como sempre, recolheram arbustos para

pôr debaixo das lonas que serviriam de leito e improvisaram

barracas com o restante delas.

Colheram alguns gravetos e, dentro de um buraco aberto no

chão, acenderam o fogo para cozinhar metade das favas que

restara. Neste dia, acabara o fluído do isqueiro e, como não

tinham benzina, usaram gasolina.

No dia seguinte, o grupo se apresentava extenuado. Sua fuga

já durava 150 dias e a parca alimentação, aliada ao constante

esforço das caminhadas, noites mal dormidas e ao peso dos

utensílios que tinham de carregar consigo, além do estresse

constante, era uma carga por demais exaustiva para seus

corpos.

Page 105: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Alguns já caminhavam com dificuldade. Não tinham

condições de carregar nada.

Então, nesta manhã, resolveram deixar alguns utensílios para

trás. Decidiram levar o estritamente necessário.

Após a escolha, resolveram levar apenas os fuzis mais

modernos (um para cada soldado), as pistolas, munição, três

litros de gasolina que ainda restavam, uma enxada, uma pá,

um machado e as lonas, além de duas panelas de ferro,

mesmo em mau estado, que ainda serviam para prepararem

sua comida.

As botas de alguns já apresentavam um desgaste acentuado

e precisaram ser remendadas com tiras de lona.

Assim, continuaram por mais quatro dias, totalizando 154,

tendo comido apenas as favas que restaram e raízes e folhas

que encontravam pelo caminho. Estas eram cozidas junto

com porções de favas, o que fornecia uma espécie de sopa.

No quinto dia desde a travessia da segunda ponte, já sem

nenhuma reserva de comida, a não ser as raízes e folhas que

encontrassem, o grupo voltou a enfrentar novo dilema.

Quatro soldados estavam com febre muito alta e não tinham

condições de prosseguir. Suspeitava-se que a febre era

proveniente de pneumonia. Nada poderia ser feito, já que

não contavam com remédios e a exposição direta à

intempérie (neve e frio intenso) só piorava a situação.

Page 106: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

A decisão foi extremamente difícil. Tiveram de deixar para

trás mais quatro companheiros de infortúnio. Eles foram

levados para dentro da mata, e com um pedaço de lona, foi

improvisado um abrigo para protegê-los da ação direta da

neve. Seus fuzis também ficaram com eles. Não havia mais

nada que se pudesse fazer.

Salvatore e alguns outros soldados choraram muito naquele

dia. Um dos soldados era seu amigo calabrês.

Feito isso, continuaram em frente, sempre seguindo a

direção oeste.

Page 107: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

XVII – CÃO SALVADOR.

E assim, continuaram por mais 10 dias, marchando e

comendo apenas folhas a raízes.

Salvatore, de seus 80kg, sentia estar com uns 50 (tinha 1,80

de altura. O estado de seus amigos não era diferente. A esta

altura, as caminhadas eram interrompidas para descanso a

cada três horas.

No décimo primeiro dia, ao fim da tarde, avistaram mais uma

vila abandonada. Após se certificarem que não havia

ninguém, entraram nela e, avidamente, procuraram por

alimentos. Em vão. Não havia absolutamente nada. Ficaram

desesperados.

Resolveram passar a noite ali, pois as casas, apesar de tudo,

ainda estavam em estado de lhes proporcionar abrigo para a

noite que se aproximava.

Foi neste dia que ocorreu um fato que marcou os

sentimentos de Salvatore pelo resto da vida.

Este fato foi que me fez entender o porquê do amor de meu

pai por cachorros.

Na casa de Ramos, sempre tivemos cachorros e meu pai

cuidava deles com extremo carinho. Não admitia que se

maltratassem os animais e sempre lhes dava muita comida.

Page 108: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Para se ter uma ideia de seu amor pelos cães, houve um fato

que ocorreu já em sua velhice, se não me engano quatro

anos antes de seu falecimento.

Eu e minha esposa fomos visita-lo num domingo de Páscoa e,

naquela ocasião, ele tinha uma cadela chamada “Bolinha”.

Aliás, seu ultimo cão, até sua partida.

Tratava-se de uma cadela um pouco brava, que tinha de ser

mantida presa quando havia visitas. Eu e minha esposa, para

a cadela, éramos estranhos, pois não estava acostumada à

nossa presença.

Neste dia, levamos conosco nossa cadelinha, uma “Poodle

micro”, muito graciosa chamada carinhosamente de “Juju”.

Bolinha rosnou muito ao pressentir sua presença, mas como

estava presa, não nos preocupamos, tanto que, aos irmos

embora, deixamos a Juju no chão, caminhando junto a nós,

em direção ao portão.

Eis que, de repente, não se sabe como, surge a Bolinha, que

partiu direto para cima da Juju. Esta correu, fugindo, e foi

acuada junto ao portão da garagem, momento em que a

Bolinha deu um bote e cravou seus dentes no dorso da Juju.

Ficamos apavorados e o único objeto que tinha em mão era a

caixa de bombons Garoto, que minha mãe havia me

presentado pelo dia de Páscoa.

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Como os nossos gritos não adiantaram para que Bolinha

soltasse a Juju, como reação, não me restou outra alternativa

a não ser atirar a caixa de bombons em cima da Bolinha.

A agressão surgiu efeito. Como o impacto da caixa foi direto

na barriga da Bolinha, esta soltou de imediato a Juju e fugiu,

gemendo de dor, pois acho que foi a quina da caixa que a

atingiu.

Só então, após pegar a Juju no colo e consolá-la, já que ela

estava petrificada de pavor pelo ocorrido, é que pude

verificar que meu pai estava com os olhos lacrimejantes,

olhando para a Bolinha que havia se postado num canto do

quintal, ainda gemendo de dor.

Minha mãe me contou que durante aquela semana, meu pai

ficou muito triste e estava a todo momento acariciando a

Bolinha e preocupado com a barriga dela.

Voltando à narrativa de meu pai, naquele início de noite,

ouviram latidos de um cão. Ficaram surpresos, e ao mesmo

tempo apreensivos, pois o cão poderia estar acompanhado

de pessoas, o que denunciaria o esconderijo deles.

Então, com extremo cuidado, através das janelas (estas nem

existiam, apenas o vão na parede), buscaram o local de onde

vinham os latidos e, depois de alguns momentos, o cão

surgiu na rua. Ficaram observando atentamente e não

avistaram ninguém atrás dele. Como ele se deslocava de um

Page 110: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

lado para outro, chegaram à conclusão que se trava de um

animal perdido.

Um ficou olhando para outro e, em pensamento uníssono,

todos imaginaram a mesma coisa: comida!.

Então, o oficial ordenou que alguns soldados atraíssem o cão,

para que este fosse capturado.

Um soldado começou a assobiar para o cão, fazendo gestos

carinhosos e, aos poucos, conseguiu se aproximar bem.

Movido pela necessidade de se alimentar, o soldado deu um

bote e agarrou o cão. No mesmo instante, outros soldados

ajudaram a agarrá-lo e, imediatamente, o levaram para

dentro.

Meu pai conta que foi triste ver a cena. O cão foi abatido com

uma pancada da enxada e, imediatamente foi esquartejado

Ele pesava cerca de dez quilos. Foi a comida deles durante

três dias. Até os ossos foram consumidos. Do cão, só

restaram os pelos.

Para recuperar as forças, ficaram acampados naquela vila

enquanto durou a carne (e os ossos) do cachorro. Tudo foi

aproveitado. Até os intestinos foram limpos para servirem de

alimento.

Este episódio do cachorro marcou muito os sentimentos de

Salvatore. Mas, foi graça àquele cão que o grupo não morreu

de inanição naquela vila.

Page 111: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Assim, após três dias de descanso, mesmo sem nenhum

alimento de reserva, resolveram reiniciar a marcha de volta.

Page 112: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

XVIII – O INIMIGO ATACA.

Durante vários dias, o grupo continuou caminhando pelos

caminhos de terra, sempre cobertos de neve. O curso era

ditado pela abertura entre a mata e as árvores. Como o chão

era coberto de neve, não avistavam a terra. Sempre

tomavam o cuidado de arrastar galhos sobre suas pegadas na

neve, com a finalidade de disfarçar seus rastros. O caminho

era plano, o que facilitava um esforço menor para seguir

adiante. A alimentação se restringia novamente a raízes e

folhas.

Durante os próximos dias de fuga, mais 30 soldados

faleceram no caminho, debilitados pela inanição e

acometidos de pneumonia. A cada enterro, o moral dos

restantes decaia.

Certo dia, ao entardecer, se depararam com um riacho.

Feitas as medições, chegaram à conclusão de que poderia ser

atravessado com uma corda estendida de uma margem à

outra.

Então, foi escolhido o soldado que apresentava a melhor

condição física, bem como o mais pesado e alto, já que a

profundidade parecia ser superior a dois metros e com

largura de dez metros. A corrente não era forte, mas a água

estava quase congelando. O soldado designado tirou as botas

e, após escolherem um local propício para a travessia, ele,

com a corda amarrada à cintura, entrou na água. Quando

chegou quase à metade do trecho, avisou que teria de

Page 113: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

começar a nadar e pediu que prestassem muita atenção à

corda.

Após algumas braçadas, pouco mais de três metros, o

soldado voltou a ficar de pé e alcançou a outra margem.

A corda foi amarrada nas duas margens e a “ponte” ficou

pronta. O oficial ordenou que todos atravessassem com as

roupas presas à cabeça, para que não houvesse necessidade

de se perder tempo com a secagem.

Assim, um a um, os outros trinta e um homens atravessaram

o riacho, sendo que o último desamarrou a corda, prendeu-a

em sua cintura e foi puxado para a outra margem.

Após todos se secarem e se vestirem, reiniciaram a marcha,

porém, mais 4 não tiveram forças para se levantar após o

esforço da travessia. A febre era altíssima e seria questão de

horas virem a morrer.

E assim aconteceu. Antes do anoitecer daquele dia, foram

enterrados.

Passados uns dias, tinham voltado à rotina de se alimentar

com raízes e folhas e a inanição voltou a assombrá-los. Até

que, naquela noite, as armadilhas que haviam sido armadas

enfim deram resultado.

Era uma espécie de javali, bem nutrido, e que devia pesar

trinta quilos. O animal já estava quase morto, pois uma das

estacas que havia sido fincada no poço que haviam aberto,

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ao cair, atravessou sua barriga e o ferimento foi mortal. O

animal ainda respirava, mas acabou de ser abatido na própria

armadilha.

Salvatore lembra que o sangue do animal, que ainda estava

fresco no chão do fosso, foi colhido para ser aproveitado,

mesmo estando com terra.

Aquela manhã foi maravilhosa. Além de saborearem aquela

deliciosa carne, mesmo sem sal, o sol surgira após quase dois

meses, desde a última vez que receberam sua abençoada

visita.

Acamparam por mais de quatro horas, quando puseram todo

material úmido e molhado para secar ao sol. Alguns, com

alimento na barriga, até dormiram mais algumas horas.

À tarde, ainda com o sol visível, mas ainda muito frio, o grupo

levantou acampamento e voltou a seguir em direção ao

oeste, desta vez com um suprimento de carne e ossos para,

se bem dosados, durarem mais uns dez dias.

No terceiro dia após este fato, durante o preparo da refeição

à noite, aconteceu mais uma desgraça para o grupo.

Os soldados haviam relaxado nos cuidados com a segurança,

já que há mais de um mês não haviam se deparado com

ninguém, nem ouvido barulho de aviões.

Acenderam o fogo no buraco aberto sob copas de árvores, o

que esconderia o clarão das chamas e não se deram conta do

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forte cheiro que a carne, ao ser cosida, exalava, já que o

animal caçado era muito gordo.

As tendas já haviam sido armadas e alguns soldados estavam

colhendo ramos de árvores para forrar o chão, quando o

grupo que estava junto ao fogo aguardando a carne cozinhar

e aproveitando para se aquecerem, foi surpreendido com o

lançamento de uma granada.

Quando se deram conta, pularam, mas a granada explodiu.

Todos ficaram apavorados e, somente após alguns

momentos, se deram conta do ocorrido.

Salvatore estava junto com os que colhiam ramos e o grupo

correu para o acampamento, já de pistolas em punho. Quase

de imediato, se deparam com três soldados russos, que

também se surpreenderam com a chegada repentina deles e,

praticamente, devido à surpresa dos dois grupos, esbarraram

uns nos outros. Como estavam em maior quantidade, os

italianos dispararam suas pistolas e abateram dois russos. O

terceiro, apesar de ferido, tentou fugir. Ele foi capturado, e

levado para o acampamento, onde seus colegas já se

preparavam para o combate.

Visto que não houve mais tiros e reação, o soldado russo foi

amarrado e todos se preocuparam em dar assistência aos

feridos.

Page 116: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

O resultado foi triste. Cinco colegas mortos, reduzindo o

grupo para 23, e 6 feridos, sendo 4 em estado grave, com as

vísceras à mostra.

Não havia como ajuda-los, a não ser lhe dar um pouco de

conforto, mantendo-os próximo ao fogo. Os quatro em

estado grave morreram , um após outro, em menos de meia

hora, e o grupo se reduziu para 19 homens.

Então, o oficial ordenou que duplas vasculhassem o

perímetro, para averiguar se havia mais russos por perto,

inclusive os que pudessem vir a ser atraídos pelos tiros e a

explosão da granada.

Enquanto os soldados vasculhavam os arredores, o oficial

tentou interrogar o soldado russo, mas foi em vão. A

dificuldade de idiomas não permitiu. O russo sangrava muito

e, certamente, em breve, morreria também.

O oficial italiano aguardou os grupos voltarem da busca e,

após duas horas, a penúltima dupla voltou.

Todas as duplas narraram que não haviam avistado nenhuma

tropa inimiga, bem como notado rastros, a não ser os dos

três russos, rastros estes que levavam justamente para o

acampamento deles.

A última dupla que faltava havia seguido os rastros por cerca

de uma hora e, como não avistaram mais soldados russos,

resolveram voltar, pois temiam se perder na escuridão.

Page 117: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

O oficial italiano chegou à conclusão de que os três soldados

russos faziam parte de um grupo que se subdividira para

encontrar seus rastros e, ao perceberem que havia apenas

poucos soldados no acampamento, todos em volta do fogo,

acharam que eles mesmos podiam resolver a questão, sem

ter de voltar e alertar as tropas.

Depois, os italianos perceberam que não havia maneira de se

desfazer o local da explosão da granada. O sangue na neve

até poderia ser coberto, mas a ramagem e galhos

chamuscados com a explosão da granada não havia como ser

disfarçada.

Durante aquela noite, ninguém dormiu. Todos ficaram

atentos para um novo possível ataque dos russos. O

acampamento foi deslocado para cerca de cem metros

adiante e o local atingido foi limpo e disfarçado na medida do

possível. Como já era noite, os vestígios não podiam ser

vistos na escuridão, mas pela manhã, estariam visíveis.

Então, durante toda a noite, os italianos ficaram de vigília.

Na manhã seguinte, assim que o dia começou a clarear, as

duplas de soldados voltaram a vasculhar o perímetro, mas,

após duas horas, tempo determinado pelo oficial, todos

estavam de volta sem novidades. Todos os rastros da noite

anterior estavam cobertos pela neve e as duplas se deram ao

trabalho apenas de apagar os seus. O soldado russo, que

ficara amarrado à árvore havia falecido, juntamente com os

Page 118: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

dois italianos feridos. Agora só restavam 17 soldados

italianos.

Enterraram os corpos, sendo os russos em separado, não

sem antes despi-los para aproveitar seus uniformes e suas

botas. Ao despi-los, colheram seis barras de chocolate, as

quais foram repartidas entre os 17 sobreviventes, já que esta

seria a única refeição que fariam até o anoitecer. A carne

cosida na noite anterior estava impregnada de estilhaços da

granada, fora esturricada pelo fogo durante a ação e não

podia ser consumida. Foi enterrada junto com os restos do

fogo.

Já deveria ser cerca de meio dia quando os soldados

reiniciaram a marcha.

Page 119: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

XIX – A RENDIÇÃO.

Durante mais uns dez dias os 17 italianos sobreviventes

perambularam por caminhos de terra. A neve já era escassa e

podiam caminhar firme, pisando diretamente no solo. A

alimentação voltou a ser de folhas e raízes. Alguns, já não

conseguiam mais andar sozinhos. Tinham de ser amparados

pelos companheiros.

Certo dia, ao entardecer, entraram em uma estrada de terra,

com visíveis rastros recentes de rodas de veículos.

O oficial reuniu o grupo e explicou que eles não mais tinham

condições de lutar ou oferecer qualquer resistência. Que a

sorte deles estava lançada.

Ordenou que todos se desfizessem do armamento e que,

caso se deparassem com alguma tropa inimiga, todos se

entregariam pacificamente. Era a única esperança de vida

que tinham.

Antes de prosseguirem, queimaram os uniformes russos e

improvisaram uma bandeira branca para a rendição, caso

fossem avistados.

No dia seguinte, por volta do meio dia, aconteceu o mais

temido.

A cerca de 500 metros, avistaram um aglomerado de

caminhões militares.

Page 120: Salvatore Gardi - História não contada - Bastidores de uma guerra

Se juntaram e, com a bandeira branca bem à vista, foram se

aproximando dos caminhões.

No meio do caminho, estranharam que ainda não tivessem

sido vistos. Somente quando estavam a cerca de uns 100

metros, é que um jipe com quatro soldados e uma

metralhadora foi em direção a eles.

Todos levantaram as mãos e a bandeira branca à frente. O

jipe se aproximou e um oficial que estava ao lado do

motorista falou com eles.

Eles não entenderam nada, mas perceberam que era um

idioma diferente do russo.

O oficial italiano respondeu em italiano e o oficial do jipe fez

sinal que os seguissem, sem qualquer tipo de ameaça.

Mesmo assim, seguiram o jipe com muita desconfiança, mas,

a esta altura, nada mais podiam fazer. Mal tinham forças

para se arrastar até os caminhões. O jipe foi à frente e

quando os italianos chegaram, um outro oficial, em italiano,

lhes dirigiu a palavra:

“Quem são vocês e como vieram parar aqui?”

Neste momento, todos baixaram as mãos e praticamente

desabaram no chão. Entenderam que algo de bom estava

acontecendo.

O oficial italiano, que também já estava sentado ao chão,

respondeu que eram o resto de uma tropa italiana,

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abandonada na Rússia e que todos precisavam urgentemente

de alimentos e assistência médica. Disse também que se

rendiam e gostaria de saber que tropas eram aquelas.

O oficial respondeu que eram tropas romenas e que já não

mais eram inimigos, pois a Itália se rendera. Comunicou que

todos seriam alimentados e atendidos pelos médicos.

Convidou o oficial italiano a ir para sua tenda para melhor

esclarecerem a situação.

O oficial narrou toda a situação ao romeno, que ficou

espantado com a narração.

Contou então que eles haviam partido da Rússia,

atravessaram a Ucrânia e a Moldávia e tinham acabado de

entrar em território romeno.

O oficial romeno informou que estavam a dois quilômetros

da fronteira moldava.

Comunicou que, assim que tivessem contato com o comando

das tropas romenas e aliadas, comunicariam o fato e

decidiriam o que fazer.

O oficial italiano pediu que quando comunicassem o fato ao

comando aliado, o assunto da traição fosse mantido em

segredo, até que eles, fossem entregues ao comando das

tropas italianas. Este pedido foi feito a fim de que o General

Colossi não se inteirasse dos fatos e, com isto, tentasse fugir,

caso ainda estivesse vivo.

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Assim foi feito.

Os italianos foram alimentados, analisados pelos médicos

romenos, receberam novas roupas e foram enviados para

Bucareste, de onde então seguiriam para a Itália.

Salvatore e outros dois soldados seguiram o tempo da

viagem deitados, pois, além de desnutrido, Salvatore soube

quando estava se recuperando em um hospital militar em

Bologna, que havia perdido a memória.

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XX - A VOLTA À ITÁLIA.

Ao chegarem a Bucareste, já melhor alimentados e

medicados, o oficial italiano prestou todos os

esclarecimentos ao Comando Militar Romeno.

Os italianos foram então alojados em instalações militares e

continuaram sob observações médicas, principalmente os

três que estavam com amnésia, entre eles Salvatore.

Uma semana depois, um oficial italiano chegou à Bucareste,

acompanhado de alguns auxiliares e recebeu a incumbência

de levar o grupo de volta à Itália.

Viajaram quatro dias, baldeando de um trem para outro,

quando finalmente chegaram à Bologna.

O grupo foi enviado para o Comando Militar Italiano. Os

soldados foram imediatamente encaminhados para o

hospital e apenas o oficial foi encaminhado para prestar

todos os esclarecimentos ao Comando.

Então, toda a narrativa foi prestada e, formalmente, o

Gerenal Colossi foi denunciado como traidor.

O Comando Italiano ficou estarrecido com a história, embora

tudo fizesse sentido.

Mesmo assim, o Comando Italiano resolveu interrogar o

restante do grupo para se certificar que os fatos eram

verdadeiros.

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Um a um, menos Salvatore e os outros dois que ainda se

recuperavam da perda de memória, foram interrogados pelo

Comando.

Como as narrativas coincidiam, não restou dúvidas ao

Comando. Prepararam o inquérito para intimar e julgar o

general, que a esta altura havia sido localizado. Estava em

ação na frente das tropas italianas que combatiam as já

combalidas forças alemãs na França.

Nas investigações, o Comando analisou o depoimento do

general sobre o assunto, no qual ele informara que ao chegar

a Rostov, não encontrara a tropa à sua espera e que havia

ouvido, de vários camponeses locais, que dois dias antes os

russos haviam dizimado um grupo de soldados inimigos a

quatro quilômetros da aldeia. Diante disto, ele dera a tropa

como morta e voltou imediatamente para a Itália. O processo

foi assim arquivado.

Ele foi chamado de volta à Itália e, ao chegar a Bologna, sede

do Comando Militar, foi imediatamente detido.

Julgado em apenas uma semana, foi fuzilado como traidor.

Os soldados sobreviventes foram chamados ao Alto

Comando Militar e foram informados de que deveriam

guardar segredo sobre o ocorrido.

O exército italiano já se encontrava bastante desmoralizado e

um escândalo desta proporção só iria piorar a situação.

Quem comentasse a respeito seria tratado como traidor.

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Após ficar mais de um mês internado, o grupo foi levado de

volta para suas cidades.

Dos dezessete sobreviventes, quinze seguiram para o sul, já

que eram provenientes da Calábria e de Regio Calábria.

Apenas dois, o oficial que era da Toscana e um soldado que

era do Vêneto, seguiram em um trem diferente.

Durante a viagem de volta à terra natal, os soldados, ainda

muito traumatizados, pouco conversaram. Ainda não

acreditavam que estavam de volta à Itália.

Junto com eles, seguiam acompanhantes das forças armadas

para os casos especiais como o de Salvatore, que ainda tinha

instantes de perda de memória. Ele e mais quatro soldados

foram entregues pessoalmente às suas famílias.

Salvatore, ao chegar à sua querida Macchianuce, desmaiou

ao ver seus pais e irmãos.

Estes já tinham sido avisados de sua volta e o aguardavam

ansiosamente.

Foi levado para dentro de casa e, após meia hora, recobrou

os sentidos. Foi até a sala onde se encontrava o oficial que o

acompanhara e seus familiares.

Como previamente acertado, a versão apresentada foi a de

que Salvatore e seus companheiros haviam se perdido do

restante das tropas e haviam sido feitos prisioneiros das

tropas russas.

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Quando a Itália se rendeu aos aliados, eles foram soltos,

porém sofreram muito no campo de concentração de

prisioneiros, motivo pelo qual ele havia perdido quarenta

quilos e estava com problemas de amnésia intermitente.

O oficial comunicou que Salvatore deveria se apresentar

dentro de trinta dias no quartel de Catanzaro para decidir se

seguiria a carreira de militar ou se daria baixa.

Porém, o sofrimento experimentado na guerra não o animou

a seguir a carreira.

Preferiu seguir trabalhando na fazenda de seus pais e, três

anos depois, casou-se com Teresa, que lhe deu três filhos :

Umile e Carmela, que nasceram na Itália, e Jorge, que nasceu

no Brasil, para onde ele partira em busca de oportunidade de

vida melhor, já que na Itália trabalhava apenas para comer.

Ele migrou para o Brasil em 1951, antes da Carmela nascer e

mandou buscar a família em 1955, quando então, conheceu

sua filha.

Neste período que ficou sozinho no Brasil, envolveu-se com

uma mulher e teve mais um filho: Dogival Salvador, que é a

cara escarrada dele.

Ele o assumiu plenamente, dando-lhe seu nome e o

apresentando à família em 1957, quando mudamos de São

Cristóvão para Ramos.

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Trabalhou muito para pagar as prestações da casa e manter a

família.

Tivemos uma vida duríssima, mas nunca faltou alimento e

incentivo para estudar.

Criou bem seus filhos, foi um excelente marido e, mesmo em

sua velhice, nunca deu trabalho para ninguém.

A última vez que o vi chorando, ao me contar mais uma vez a

história da guerra, foi em 1981, por ocasião de fogos de

artifício.

Me lembro bem da data, pois pouco antes, o Fluminense

acabara de se sagrar campeão carioca, ao vencer o Vasco por

1 a 0, gol de Edinho. Ele era tricolor doente.

Essa foi a vida de um grande herói. Herói, pois lutou por sua

vida e de seus companheiros com todas as forças que Deus

lhe deu. Não desistiu nunca.

Autor:

Umile Gardi

28.12.2014.