roxin - problematica da culpa

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penal

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C L A U S R O X I N Catedrático de Direito Penal da Universidade de Munique

D U P L I C A D O DA

BIBLIOTECA NACIONAL

ACERCA DA PROBLEMÁTICA DO DIREITO PENAL DA CULPA

C O I M B R A

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Separata do VOL. LIX (1983) do Boletim da Faculdade de Direito da U n i v e r s i d a d e de C o i m b r a

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ACERCA DA PROBLEMÁTICA D O DIREITO PENAL DA CULPA*

I. Confesso com prazer que a oportunidade de felar aqui perante Vossas Excelências é para mim não só uma grande honra mas também motivo de especial regozijo. Há vinte anos, pouco depois de eu ter sido chamado, como professor novo para Gottingen, foi uma conferência do Senhor Professor Correia a primeira prelecção de um convidado estrangeiro a que assisti. Ela deixou-me bem como a todos aqueles que a ouviram, uma impressão bem profunda.

Desde então têm-se intensificado ainda mais os laços, que sempre foram estreitos, entre as ciências do direito penal dos nossos dois países. Um dos colaboradores que mais de perto

aba ham comigo no meu Instituto em Munique é, desde há g S a n ° S ' u m c l c n t l s t a Português, Manuel Cortes Rosa, que está

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r e s d d o d e ™tas mas, quanto ao mais, d e Abril de 1983 a " n v S T * U T V n i v e r s i d ^ Coimbra em 1 Coimbra. Estou L i T Faculdfde d e D""eko da Universidade de Penalistas de C 0 1 X S e T ^ l e C O?k e ü d o a « * « os meus Colega doutor ]oJ?B TG^0SAS

RÍESS0RES D°U t 0 r EDUARD0 C « g e C O R T E S ROSA, que trlduSToteJ^ ' C ° T A ° M E U A S S I S T E N T E MANUEL a ^ n c i a Zltt^ZZ^T^ C ^ t 0 m 0 U ^

- S s t u T S S n t e f / ^ fC VÍSta' ^ ! Í t e ra tUra - P « a estas ^Portantes. Para mclhor cara " ^ ^ V ^ T remissões mais

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precisamente agora a concluir um livro importante (em alemão) sobre os elementos subjectivos das causas de justificação. O livro, recentemente publicado, de Hünerfeld, sobre «Dogmática do direito penal na Alemanha e em Portugal»1, vai alargar ainda mais na Alemanha o interesse pela ciência do direito penal

P ° r t PoTúltimo, o interesse pelas modernas doutrinas do direito penal português foi também intensificado, de modo especial, pelo facto de o prezado colega Figueiredo Dias ter exposto numa conferência sobre «Culpa e personalidade» proferida ha dois a n o s e m diversas universidades alemãs, entre elas a de Munique, a sua concepção original, estreitamente ligada à filosofia alema, sobre este problema central do direito penal. Essa concepção exerceu considerável influência no novo Código Penal português e é também importante para a evolução das reformas penais noutros países da Europa. Julgo, por isso, que a melhor maneira de continuar este nosso diálogo, que supera fronteiras, é eu tomar o mesmo t e m a - a problemática do direito penal da c u l p a - c o m o objecto de algumas reflexões minhas, tendo como pano de fundo a controvérsia que tem tido lugar nos últimos tempos na Alemanha.

II. Para a doutrina tradicional, que ainda hoje é frequente-mente defendida também na Alemanha, o princípio da compen-sação da culpa3 constitui fundamento do direito penal. Quer

r O livro tem como subtítulo Ein rechtsvergleichender Beitrag zur Verbrechenslehre und ihrer Entwicklung in einem europäischen Zujammenhang-( U m contributo de direito comparado para a t c o r . a d a mfracçao n u m con exto europeu) e foi publicado em 1981 por «Nomos-Verlag» (Editora Nomos ;

de Baden-Baden, como vol. 11 da colecção Rechtsvergleichende Untersuchungen

ZUf ^ S l Ä S Ä r * r — Strafrechtswissenschaft, vol. 95,

1983, 3 P c 220-225 e s t e senvolvidamente ^ ^ j f

Grenzen staatlicher Strafe (Sentido e limites da pena estadual), em «Junstisc

dizer: a culpa, que o agente tomou sobre si com a prática do facto, é contrabalançada (na terminologia habitual: retribuída, expiada) através do cumprimento da pena. Não é só pelo facto de as suas raízes estarem profundamente mergulhadas na história do pensamento do mundo ocidental que esta simples frase, que contém, tanto a função e a justificação da pena, como os pressupostos da punibilidade, conseguiu manter-se durante tanto tempo como fundamento da nossa ciência. Ela oferece sobretudo a vantagem de ser extraordinariamente fecunda no plano jurídico e ter permitido os progressos decisivos da política criminal e da dogmática nos últimos 200 anos. Se hoje já não punimfüs crianças, jovens sem capacidade de discernimento ou doentes mentais, e tendemos, com base em conhecimentos psiquiátricos mais diferenciados, a renunciar à pena também em casos de perturba-ções puramente psíquicas (tais como os estados de afecto de grande intensidade e as neuroses), é em resultado de uma evolução cujo motor foi o princípio da culpa 4, aplicado de modo cada vez mais coerente. Os progressos inegáveis que consistem em termos eliminado na dogmática do direito penal, em larga medida, os resíduos da responsabilidade pelo evento, em se reconhecer hoje que o «versari in re illicita» não fundamenta a punibilidade, que, nos crimes agravados pelo evento, o evento mais grave tem de ser provocado pelo menos com negligência e que o erro sobre a ilicitude, quando inevitável, tem de conduzir à impunidade, são fruto do pensamento do direito penal da culpa. O axioma, em que assenta toda a nossa doutrina da medida da pena, de que a pena não deve ir para além da medida da culpa, é um princípio

Schulung», 1966, p. 377 ss. ,reimpresso em Strafrechtliche Grundlagenprobleme, 1973, p. 1 ss. (em língua espanhola: «Problemas Básicos dei Derecho Penal», Dadrid, 1976, p. 11 ss.).

4 Cfr . acerca do princípio da culpa, principalmente, ARTHUR KAUFMANN, Das Schuldprinzip. Eine strafrechtlich-rechtsphilosophische _ Unter-suchung (O princípio da culpa — U m a investigação de direito penal e fáosofia do direito), 1961 (2.a ed. 1976).

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liberal, limitador do poder punitivo do Estado, que apenas se pode extrair do princípio da culpa. E também no caso da decisão recente do nosso Tribunal Constitucional Federal, segundo a qual a pena de prisão perpétua — cominada pelo legislador, sem excepção, para o assassínio — tem que ser atenuada, contra a letra da lei5, quando não esteja em justa proporção com a culpa do agente, estamos perante uma consequência do pensamento da culpa, que tem assim mantido até hoje a sua importância para a evolução reformadora do direito penal.

III. Mas, apesar disto, os fundamentos teóricos do direito penal da culpa, na sua forma tradicional, têm sido abalados. Foi o reconhecimento desta situação que levou ao aparecimento da nova concepção de Figueiredo Dias. E também com este ponto que quero principiar.

Para a minha crítica não são decisivos os argumentos com base nos quais sempre foi contestado o princípio da compensação da culpa. Para quem, como faz o nosso Tribunal de Justiça Federal em concordância com uma tradição filosófica muito antiga, entende que a culpa consiste em o agente se ter decidido pelo facto ilícito apesar de ter podido decidir-se por um comporta-mento lícito 6, a culpa pressupõe um âmbito de decisão do agente

5 Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts (Decisões do Tribunal Constitucional Federal), vol. 45, 1977, p. 187 ss. O «Bundesgerichstshof» (Tribunal de Justiça Federal) da Alemanha Ocidental reconheceu entretanto, expressamente, essas excepções à pena de prisão perpétua (pela primeira vez em Entscheidungen des Bundesgerichtshofs in Strafsachen (Decisões do Tribunal da Justiça Federal em matéria criminal), vol. 30, 1981, p. 105 ss.

6 Lê-se na decisão, fundamental a este respeito, proferida pelo «Grosser Senat für Strafsachen» (Plenário das Secções Criminais) do «Bundesgerichtschof» (Tribunal de Justiça Federal), publicada em Entscheidungen des Bundesgerichts-hofs in Strafsachen (Decisões do Tribunal de Justiça Federal em matéria criminal), vol. 2, 1952, p. 194 ss. (200): «Através do juízo de desvalor sobre a culpa censura-se ao agente que ele se comportou ilicitamente, que se decidiu em sentido contrário ao direito, embora tivesse podido comportar-se de modo lícito, decidir-se em sentido conforme ao direito. O fundamento inerente à reprovação

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e, por isso, um livre arbítrio humano, pelo menos relativo, cuja existência no plano da teoria do conhecimento não é demons-trável nem definitivamente refutável e, provavelmente, ficará sempre por esclarecer. É deste modo que o princípio retributivo vem sendo atacado desde a Antiguidade, pelas doutrinas preventivas em sede de política criminal, sem que tal disputa haja podido ser alguma vez resolvida no plano teorético 7. Estas velhas discussões jamais puderam — e também não podem hoje — estor-var de modo decisivo a marcha vitoriosa do direito penal da culpa. Na verdade, o jurista tem de optar, em numerosos casos, entre várias possibilidades intelectualmente admissíveis; e a sua escolha só pode ser feita em função de pontos de vista teleológicos, que o princípio da culpa lhe faculta de modo tão claro.

No entanto, da discussão dos últimos tempos decorre, a meu ver, que as hipóteses admitidas até agora, nas quais se baseia o direito penal da culpa, são, definitivamente, insustentáveis em dois pontos. Ora, não é permitido extraírem-se consequências de uma premissa insustentável, por muito desejáveis que elas sejam. As duas dificuldades insuperáveis da concepção tradicional da compensação da culpa são as seguintes:

1) Uma culpa, no sentido de poder individual de actuar de outro modo na altura do facto, não é susceptível de verificação. Abstraio aqui completamente do problema insolúvel do livre

da culpa é o de que o homem está estruturado em ordem a uma determinação autónoma, livre e responsável no plano ético e, portanto, tem a capacidade de se decidir em sentido conforme ao direito e contrário ao acto ilícito..., logo que atinge a maturidade no plano ético e enquanto a sua predisposição para a autodeterminação livre nesse plano não estiver temporariamente paralizada ou destruída de modo duradouro».

7 Cfr . a conhecida asserção de SENECA (De ira), livio I, cap. 16): «Nam, ut Plato ait, nemo prudens punit quia peccatum est, sed ne peccetur. Rcvocari enim praeterita non possunt, futura prohibentur». Como PLATÃO, que SENECA cita, imputa a asserção a PROTÁGORAS, pode considerar-se este como o defensor mais antigo de uma teoria preventiva da pena.

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arbítrio e admito que o homem possui uma certa liberdade de opção, dentro dos limites que lhe são traçados pela sua constituição e pelas circunstâncias externas. Em qualquer caso, tal liberdade de opção furta-se a uma reconstituição forense posterior. Tanto quanto me é dado ver, existe hoje na Alemanha plena concordância em que nenhum perito em psicologia ou psiquiatria pode, com meios empíricos, demonstrar a possibili-dade de o agente concreto actuar, na altura do facto, de modo diverso daquele por que agiu8. Ora, se, para admitir a culpa, se está a pressupor um substrato empírico que em princípio não pode ser comprovado, a consequência deveria ser, em conformi-dade com o princípio «in dúbio pro reo», a absolvição.

2) Mas também aquela outra ideia, de que a pena poderia ter como função contrabalançar a culpa do agente, é insustentável. As gerações passadas deduziram demasiado depressa, do pressu-posto da culpa, um direito do Estado à retribuição. Mesmo que se parta da possibilidade de o juiz verificar a culpa humana, continua a carecer de fundamentação a segunda premissa da doutrina da compensação da culpa, ou seja: que ele, juiz, tem o direito e o dever de retribuir essa culpa, através da sentença. Ora, tal fundamentação já não é hoje possível, visto pressupor uma concepção do Estado que pertence, em definitivo, ao passado. O direito do juiz a retribuir a culpa tem, no plano da teoria do Estado, uma base de legitimidade no âmbito de uma constituição em que o titular do poder estadual seja um monarca, que faça assentar na autoridade divina os seus direitos e os delegue nos

8 Cfr . , em síntese e de modo particularmente claro, BOCKELMANN, Willensfreiheit und Zurechungsfähigkeit (Livre arbítrio e imputabilidade), em Zeitschrift für die gesamte Strafrechtsivissenschaft, vol. 75, 1963, p. 372 ss. e, além disso, o tratado, representativo, de JESCHECK, Strafrecht, Allgemeiner Teil (Direito Penal, Parte Geral), 3 . a ed., 1978, p. 328 ss. N o sentido do texto FIGUEIREDO DIAS, (cif. da nota 2), p . 228 ss.

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juízes, os quais, consequentemente, proferem as sentenças «em nome de Deus»: a sentença constitui aí o exercício, através de um representante, da judicatura divina e, nessa função, repõe a Justiça violada. Numa constituição democrático-parlamentar, porém, essa fundamentação já não é aceitável, visto que o juiz recebe o seu poder directamente do povo — o actual titular do poder estadual — e o povo não lhe pode transmitir um direito à retribuição 9.

Isto tem uma explicação fácil. A diferença decisiva entre a retribuição e a prevenção está em que a retribuição serve apenas a Ideia da Justiça e abstrai de todos os fins sociais, enquanto que as doutrinas preventivas, pelo contrário, prosseguem exclusiva-mente fins sociais, quer se vejam estes na integração social do agente, na intimidação dele, na segurança da sociedade perante ele ou na actuação sobre a generalidade das pessoas. Precisamente per isso fala-se, a respeito do pensamento da retribuição da culpa, de uma teoria «absoluta», isto é, «desligada» de quaisquer finalidades, enquanto que as concepções preventivas são todas «relativas», isto é, reportadas a fins. Ora, uma teoria absoluta não é compatível com o modelo mental do contrato social que está subjacente à democracia parlamentar. Com efeito, segundo esse modelo, os cidadãos só transferem o poder estadual para os representantes por eles escolhidos e para as autoridades instituídas por estes, na medida em que isso é necessário para organizar uma comunidade que preserve o indivíduo de intromissões na sua esfera de liberdade e lhe proporcione uma vida em paz e bem estar. Os direitos dos órgãos do Estado estão assim limitados às funções sociais de assegurar a paz interna e externa e as condições da existência. A prossecução dos fms preventivos do direito penal pertence também a este grupo de funções. Mas a realização de

9 Cfr. , a este respeito, já ROXIN, Strafrechtliche Grundlagenprobleme, (cif. da nota 3), p. 4-5.

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Ideias já aí não se inclui. A Ideia da retribuição assenta na hipótese metafísica de que um malefício é compensado ou anulado quando se impõe ao seu autor um mal correspondente. Partilhar-se ou não tal hipótese, é uma questão de crença, em relação à qual cada um pode decidir-se segundo a sua consciência pessoal. A metafísica é, para além disso, um objecto importante da fdosofia e da teologia. Mas a realização dos seus postulados já não é uma função estadual numa democracia moderna. O pensamento da retribuição, como qualquer doutrina absoluta da pena, está excluído do ponto de vista da teoria do Estado, porque todo o exercício do poder estadual só pode servir fins sociais e é, portanto, pela sua própria natureza, «relativo».

IV. A quem me acompanhe até aqui, parecerá, à primeira vista, que o balanço a extrair é confrangedor. Como será possível manter um direito penal da culpa, se, em primeiro lugar, a culpa individual não pode ser comprovada e, em segundo lugar, o juiz não tem o direito de a retribuir, mesmo que ela pudesse ser comprovada ? Em face deste resultado, parece que o que há a fazer é ir para um direito sancionatório puramente preventivo, eliminar a pena e manter só medidas de segurança. Uma tal solução é discutida no plano internacional já desde os tempos de Liszt, e é hoje novamente preconizada na Alemanha em diversas variantes, que põem o acento tónico, umas vezes na prevenção especial, outras na prevenção geral.

Mas tenho que reconhecer que o colega Figueiredo Dias10

tem razão, ao sustentar que esta solução não é viável. Na verdade, o princípio da prevenção não pode, por si só, delimitar o poder punitivo do Estado duma maneira que possa considerar-se satisfatória num Estado de Direito. Isto vale igualmente para os pressupostos e a medida da pena. De um ponto de vista de

10 Cit. da nota 2, p. 226 s.

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prevenção geral, seria, por exemplo, inteiramente acertado punir todas as consequências do «versari in re illicita», partir do princípio «error iuris nocet» e criar numerosos crimes de perigo abstracto, sem relação com a culpa. E também pode acontecer que, no caso concreto, sejam recomendáveis de um ponto de vista pragmático penas orientadas no sentido da prevenção especial ou da prevenção geral, que vão muito para além da medida da culpa. A substi-tuição da culpa pela prevenção traria pois consigo, no plano dogmático, a tendência para anular as conquistas do Estado de Direito que se devem à evolução do direito penal nos últimos tempos, conquistas essas que, em si mesmas, não são postas em causa por ninguém. E que a prevenção não visa tanto a limitação como a eficácia das cominações penais; e esta eficácia pode set em muitos casos reforçada e garantida através de um alargamento do âmbito da punição. Por maioria de razão poderá, no domínio da medida da pena, uma longa pena privativa de liberdade, que exceda largamente o conteúdo da culpa manifestada no facto, ser adequada à obtenção da ressocialização do agente ou ao fortalecimento do efeito provocado pelas cominações penais na população em geral. O princípio da proporcionalidade, que os teóricos da pura prevenção propõem em lugar do princípio da culpa para delimitar o grau da pena 11, é muito menos fecundo do que este quanto à restrição da duração da sanção. Com efeito, do ponto de vista preventivo, só o interesse público no combate à criminalidade pode constituir objecto de referência do juízo acerca da proporcionalidade. Desproporcionado é, pois, no fundo, só aquilo que já do ponto de vista preventivo não se apresenta como adequado; enquanto que o princípio da culpa está

11 Cfr. , por exemplo, ELLSCHEID /HASSEMER, Strafe ohne Vorwurf (Pena sem censura), em Seminar: Abweichendes Verhaken (Seminário sobre a «deviance»), II, 1, 1975, p. 226 ss.; a este respeito, FIGUEIREDO DIAS, (cit. da nota 2), p. 226.

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em condições de ir muito mais além, na defesa do interesse individual na preservação da liberdade contra o interesse do Estado em aplicar a medida de intervenção.

O partidário da prevenção pode, no entanto, opor duas espécies de objecções à tese de que um direito penal da culpa é largamente superior a um direito penal puramente preventivo, quanto aos aspectos do Estado de Direito. Em primeiro lugar, pode sustentar que uma prevenção racional tem que ser praticada com moderação 12. A criminalidade pode ser combatida de modo mais eficaz — dirá —, não através de uma punição tão ampla e severa quanto possível, mas sim através de sanções que sejam reconhecidas como necessárias e justas pela população em geral. Ora — acrescentará —, a punição do «versari in re illicita» ou do erro inevitável sobre a ilicitude, ou uma pena de desmedida severidade, não será, no estádio de cultura actual, aceite pela população em geral nem pelo agente e, por isso, será ineficaz no plano preventivo. Os resultados a que conduz o direito penal da culpa podem pois — concluirá — ser perfeitamente fundamen-tados também do ponto de vista da prevenção.

A este respeito é de dizer o seguinte: sabemos demasiado pouco da eficácia empírica da punição para podermos fazer asserções seguras sobre qual é a espécie de prevenção que tem maior êxito. Mas a objecção, a querer-se subscrevê-la, equivale a um regresso ao princípio da culpa, sob a veste preventiva. Se se entende que apenas os resultados a que conduz o princípio da culpa são apropriados para motivar o agente e a população em geral, no sentido de uma conduta conforme ao direito, não se está a renunciar ao princípio da culpa, mas sim a pressupô-lo e a reves-ti-lo de uma legitimação adicional, de carácter preventivo.

12 Acerca da argumentação, desenvolvidamente, GIMBERNAT ORDEIG, Hat die Strafrechtsdogmatik eine Zukunft? (A dogmática do direito penal tem futuro?), em Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, vol. 82, 1970, p. 379 ss. (394 ss.).

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Pode, em segundo lugar, defender-se um puro direito preventivo minimizando a eficácia da tutela do Estado de Direito decorrente do princípio da culpa e apontando para que a maior parte das ordens jurídico-penais europeias assenta no sistema dualista e, de qualquer modo, vem abandonando cada vez mais aquele princípio, através do acolhimento de medidas que nao dependem da culpa. Esta evolução - dir-se-á - deverá conse-quentemente levar a renunciar ao princípio da culpa, que deixou

de ser defensável no plano teórico. A objecção procede em relação àqueles casos de medidas

graves, portanto de medidas privativas da liberdade, que sejam de facto largamente aplicadas ao lado da pena ou em sua substituição, como parece suceder em Espanha Mas um |tal sistema sancionatório, que eu consideraria muito reprovável do ponto de vista do Estado de Direito, não vigora na Alemanha Federal. Aí, pelo contrário, só são decretadas medidas privativas da liberdade em casos excepcionais (anomalias mentais, intoxi-cação e multi-reincidência em factos de maior gravidade). Em regra, somente se aplica a pena. A eficácia desta, no que respeita à limitação da intervenção do Estado, patenteia-se precisamente no facto de o princípio da culpa ter de ser abandonado quando, da parte de um determinado agente, provêm perigos, muito graves e não elimináveis de outro modo, para a sociedade. Mas isto sao regulamentações para situações de emergência, que o Estado de Direito também não pode dispensar noutros domínios. Se fizer destas excepções uma regra, está, porém, a negar-se a si mesmo.

« A este respeito, desenvolvidamente, MUNOZ CONDE, Monismus und Dualismus im spanischen Strafrecht (Monismo e dualismo no d.rcito penal espanhol), em Goltdammer's Archiv für Strafrecht (a publicar em 1984). MUNOZ CONDE não subscreve, no entanto, a objecção, antes combate uma regulamentação que preveja medidas de segurança com âmbito ilimitado.

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V. O balanço intermédio a extrair é, pois, que o tradicional direito penal da culpa, por um lado, e um puro direito preventivo, por outro, arrastam consigo dificuldades insolúveis, o primeiro no plano teórico e o segundo no plano prático. Figueiredo Dias, com quem eu julgo estar de acordo neste diagnóstico, empreende, por isso, a arrojada tentativa de fundamentar o direito penal da culpa numa diferente concepção da culpa 14. Renuncia à admissão de uma liberdade de opção na altura da prática do facto concreto que é censurada ao agente e, em vez disso, remonta a uma «opção fundamental», através da qual «o homem se decide a si mesmo... afirmando a sua própria essência». O homem cria, pois, em liberdade existencial, a sua própria personalidade, cuja configu-ração pré-determina os seus diversos actos. A culpa é «o ter que responder pela personalidade que fundamenta um ilícito típico». Quem realiza um facto ilícito típico é culpado «se actualiza no facto qualidades pessoais jurídico-penalmente desvaliosas e, neste sentido, uma personalidade censurável» 15.

Com isto supera-se, sem dúvida, a dificuldade que decorre da impossibilidade de se demonstrar a faculdade de agir de outro modo: embora o homem, no momento do facto, não pudesse actuar de modo diverso, é culpado porque na sua liberdade existencial se deu a si mesmo a personalidade que nesse facto se exterioriza. Hesito, no entanto, em aderir a esta posição, porque ela mais desloca o problema do que o resolve. É que o pressu-por-se uma «opção fundamental», que se realiza em liberdade existencial, é uma questão de crença filosófica, que poderá ter muito a seu favor mas se furta a uma prova forense, precisamente como acontece com a possibilidade de agir de outro modo no momento do facto.

14 C o m grande desenvolvimento, FIGUEIREDO DIAS, Liberdade, culpa, direito penal, 1976; em síntese no artigo referido na nota 2, p. 237 ss.

1 5 FIGUEIREDO DIAS, (cif. da nota 2 ) , p . 2 4 0 , 2 4 3 .

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Vejo ainda dificuldades adicionais para esta concepção nos casos de inimputabilidade. Com efeito, se a liberdade existencial está indissoluvelmente ligada ao próprio ser do homem e se, portanto, também tem que ser reconhecida ao doente mental uma personalidade que se realiza a seu modo, é forçoso admitir que o próprio doente mental é culpado: a circunstância de o seu actuar ser pré-determinado não pode fundamentar a impunidade, pois trata-se de algo que ele tem em comum com o homem normal. E, na verdade, Figueiredo Dias introduz aqui um pressuposto adicional, ao fazer depender a prova da culpa de uma «comunicação pessoal» entre o juiz e o réu, com base ira qual o juiz consegue compreender a personalidade do agente. Isso falta, para Figueiredo Dias, no caso da inimputabilidade, em que a personalidade do agente «se fecha à contemplação compreensiva do juiz». Segundo a sua teoria, no caso da inimputabilidade tra-ta-se, portanto, «antes que de uma causa de exclusão da culpa, de um verdadeiro obstáculo à efectivação do juízo sobre a culpa» 16.

Mas receio que, ao tornar-se deste modo a verificação da culpa dependente de um acto de compreensão do juiz, se esteja, por um lado, a exigir demasiado e, por outro, a exigir de menos. Demasiado, porque uma comunicação pessoal, porventura necessária para a censura da culpa num plano ético, muito dificilmente terá lugar entre juiz e réu numa audiência e, por isso, não pode ser pressuposto da prova da culpa. O réu tem o direito de se furtar liminarmente a uma tal comunicação, calando-se ou negando, sem que apesar disso possa impedir que se prove a sua culpa. E o fazer-se ou não a prova da culpa e da sua medida não pode ficar dependente da maior ou menor capacidade de compreensão dos juízes.

Por outro lado, não se poderá dizer que em todos os casos de inimputabilidade a personalidade do agente se fecha completa-

1 6 FIGUEIREDO DIAS, (cif. da nota 2 ) , p . 2 4 8 .

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mente à compreensão do juiz. Quanto aos menores inimputáveis, é perfeitamente de admitir a possibilidade de uma comunicação pessoal; e, segundo me parece, isso também vale para casos de maiores inimputáveis, quando a anomalia não se funde na falta de sentido objectivo ou na impossibilidade de explicação do facto, mas sim na falta de inibições.

Estas observações apontam para uma divergência mais profunda. Em minha opinião — nesta medida conservadora —, a diferença entre um homem plenamente responsável e um inimputável tem de estar, não na impossibilidade de prova da culpa, mas sim na afirmação ou negação da culpa. Sem dúvida que é inteiramente certo reconhecer ao inimputável, plenamente, personalidade e dignidade humana; mas não acompanho Figuei-redo Dias na ligação estreita que estabelece entre dignidade humana, imputabilidade e personalidade. Acabo justamente de tentar (num trabalho ainda não publicado) pôr a descoberto o critério da «exteriorização da personalidade» como a característica comum da acção humana e delimitar, nessa base, as acções e as não-acções em direito penal. Esta tentativa implica o pressuposto de que também a actuação do doente mental é uma exteriorização da personalidade e está sujeita ao princípio do respeito pela dignidade humana; mas há exteriorizações da personalidade com culpa e exteriorizações da personalidade sem culpa.

Digo isto com todo o respeito pela concepção, com profundas raízes filosóficas, de Figueiredo Dias, tanto mais que, como se verá, estou largamente de acordo com ele no que respeita aos resultados práticos. De qualquer forma, o regresso à posição tradicional, que entende a culpa como a possibilidade de agir de outro modo, tem, a meu ver, como consequência deixar subsistir, em toda a linha, as objecções contra o direito penal da culpa acima referidas. Tenho, por isso, que tentar superar essas objecções de outra maneira.

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VI. O problema consiste, portanto, em preservar no plano da política criminal as vantagens do princípio da culpa contra os resultados de um pensamento puramente preventivo e, simulta-neamente, ter em conta as objecções teóricas contra o princípio da culpa e harmonizar com ele os fins preventivos do direito penal. Vou repartir as minhas considerações a este respeito por duas etapas: primeiro (VI e VII) tratarei, sucessivamente, das duas objecções principais expostas acima (III) e, em seguida, farei umas breves referências às consequências a extrair daí para diversas matérias da doutrina da culpa, comparando-as com as soluções propostas por Figueiredo Dias.

Começo com o reconhecimento, hoje pacífico, de que o poder agir de outro modo na altura do facto se subtrai a uma demonstração empírica perante o tribunal. A minha tese é a seguinte: esta liberdade de agir não necessita de prova alguma, porque o papel que ela desempenha no direito penal não é o de um facto real, mas sim o de um dado normativo. A nossa Constituição, ao assentar nos princípios da dignidade humana e da realização livre da personalidade, não toma — nem poderia tomar — posição na disputa entre o determinismo e o indetermi-nismo; dirige, isso sim, ao poder legislativo, ao poder executivo e ao poder judicial esta injunção: tratai o cidadão como um homem livre e responsável! Admitir-se a liberdade de decisão do homem não é, portanto, uma afirmação reportada ao mundo do ser, mas sim um princípio de regulamentação jurídica. Tenho muitas vezes dificuldade em encontrar a devida compreensão para esta afirmação, que torna supérflua, para o direito penal, a discussão acerca do livre arbítrio. E, no entanto, o que se passa com a liberdade do homem não é diferente do que acontece, por exemplo, com a igualdade. Quando a ordem jurídica assenta na igualdade de todos os homens não está a fazer a afirmação absurda de que os homens são realmente todos iguais, mas sim a ordenar que todos os homens recebam, perante a lei, um tratamento igual.

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Ninguém contesta isto, ao passo que a irrelevância do problema do livre arbítrio tem grande dificuldade em ser compreendida, por se tratar de uma questão realmente importante no plano da teoria do conhecimento, da teologia e das ciências naturais. Mas a perspectiva do direito penal é outra.

A posição a assumir, num plano jurídico, sobre o direito penal da culpa não depende, pois, de a liberdade e a responsabilidade do homem serem susceptíveis de demonstração filosófica ou psicológica, mas sim, exclusivamente, de saber se é adequado, dum ponto de vista teleológico, que o homem seja tratado como livre e responsável. Ora, isto deve ser afirmativa-mente respondido, sem hesitação. Ao contrário do que muitas vezes se diz, no âmbito do direito penal da culpa não se estabelecem, com base numa hipótese insusceptível de demons-tração empírica, sanções que não poderiam ser aplicadas sem se assentar naquela hipótese. É que a alternativa para a pena correspondente à culpa não é a impunidade, mas sim a medida de segurança. E como um direito que previsse exclusivamente medidas de segurança iria admitir sanções de âmbito mais largo e maior duração, a função essencial do princípio da culpa, no plano de Estado de Direito, é precisamente fixar um limite à prevenção, no interesse da liberdade dos cidadãos. A admissão de uma liberdade de decisão do homem não é pois, como Kohlrausch uma vez lhe chamou, «uma ficção necessária para o Estado», mas sim, pelo contrário, um princípio jurídico que preserva a liberdade e põe limites ao poder do Estado.

Com a exclusão do problema do determinismo, porém, ainda só fica resolvida metade da dificuldade que resulta, para o direito penal da culpa, da impossibilidade de se provar em juízo o poder de agir de outro modo. Na verdade, também a concepção normativa da liberdade, aqui defendida, tem ainda que responder à questão de saber como é que uma actuação que deva ser encarada como livre e culposa se distingue do comportamento do

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inimputável. O direito penal não considera todos os homens igualmente capazes de tomar decisões livres, antes trata determi-nados grupos de pessoas como não livres e não responsáveis (inimputáveis em razão de anomalias psíquicas, crianças e, em parte, também jovens). O critério que, em face disto, é necessário para se saber se uma pessoa há-de ser tratada como livre ou não livre só pode retirar-se das bases sócio-psicológicas em que assenta o direito penal.

O direito penal assenta no reconhecimento de que os homens — quer as suas decisões sejam livres, quer sejam pré--determinadas — podem ser influenciados nos seus comporta-mentos por normas e valores, especialmente quando se afigura provável a realização de umas e outras através do emprego da força. Ele pretende, por isso, mediante o estabelecimento de linhas de conduta, cominações penais, aplicação e execução de penas, motivar o cidadão — tanto o potencial delinquente como as pessoas em geral — a observar aquelas normas cujo respeito é imprescindível para que os homens possam conviver em paz e liberdade. E da fundada expectativa de que os homens, em regra, são levados pelo direito penal a comportarem-se de modo conforme aos imperativos legais que resultam, para uma sociedade, a paz e a segurança. Por isso, quando alguém viola as leis penais, provoca um abalar da consciência jurídica da generalidade das pessoas (e, com isso, descontentamento e insegurança), que cessa quando as normas afirmam a sua validade, através da punição do agente. Se os delitos permanecessem impunes, as normas perderiam largamente a sua força motivadora e a sociedade mergulharia cada vez mais na anarquia.

Daqui resulta que a intervenção do direito penal é inútil e inadequada quando o pressuposto de que um homem pode ser motivado pela lei se apresenta desde logo injustificado, em face da configuração mental e psíquica desse homem. É o que se passa com pessoas com doenças mentais ou psíquicas e profundamente

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afectadas na sua capacidade de motivação, ou imaturas. Não se espera, em geral, que essas pessoas observem as normas. Quando elas violam a lei não destroem nenhuma expectativa social; e a consciência jurídica da generalidade dos cidadãos não é abalada. Ninguém se sente impelido a imitá-las, porque aos olhos da população em geral a validade das normas não é posta em causa por factos como esses. Todos vêem e aceitam que o agente não poderia ser levado, através da punição, a assumir um comporta-mento conforme aos imperativos legais, porque ele não é sensível às exigências da norma.

Por outras palavras: uma prevenção realizada através dos meios do direito penal só tem sentido quando o agente, no momento do facto, é, em princípio, sensível aos apelos normativos17. Se isto se pode afirmar, deve ele ser tratado como livre. Se, pelo contrário, a sensibilidade aos apelos normativos não se comprova, a ordem jurídica encara-o como inimputável e deixa-o em paz ou submete-o a outros efeitos jurídicos, distintos da pena. A sensibilidade aos apelos normativos, que erijo em critério da imputabilidade, é independente da existência de um livre arbítrio humano, bem como da questão de saber se, na situação concreta em que foi tomada a decisão, o agente teria realmente podido motivar-se de outro modo; ela é tudo o que pode ser verificado empiricamente neste domínio, com os meios da psicologia e psiquiatria.

Não pode, no entanto, negar-se que em zonas de fronteira também esta forma de verificação da culpa é infiltrada por pontos de vista teleológicos. Na verdade, o juízo sobre qual seja o substrato psíquico que permite esperar de uma determinada

17 Neste sentido, o primeiro a apontar na direcção certa foi, no período posterior à última guerra mundial, NOLL, Schuld und Prävention unter dem Gesichtspunkt der Rationalisierung des Strafrechts (Culpa e prevenção do ponto de vista da racionalização do direito penal), em Fetschrift für Hellmuth Mayer, 1966, p. 219 ss.

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pessoa um comportamento conforme aos imperativos legais não depende somente do progresso dos conhecimentos científicos sobre os condicionamentos do agir humano, mas também do estado de consciência da sociedade e da atitude político-criminal do legislador. Só assim se explica que, por exemplo, a questão de saber se, e em que medida, psicopatias, neuroses graves ou estados de afecto de grande intensidade podem excluir a imputabilidade tenha sido encarada pelo legislador na Alemanha 18 e não seja, de modo algum, resolvida de igual forma em todos os países. Mas isto vem apenas confirmar o facto, geralmente reconhecido, de que um certo grau de conteúdo normativo é próprio de todos os conceitos jurídicos. Não é pensável qualquer concepção da culpa que possa escapar a esta dificuldade de delimitação.

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VII. O resultado que obtivemos até agora é, pois, o seguinte: a pena só deve ser aplicada aos casos de realização, com culpa, de um facto ilícito típico e dentro dos limites traçados pela culpa do agente. A liberdade de acção e decisão, pressuposta pela culpa, é de afirmar quando se possa demonstrar que o agente, ao tempo da prática do facto, era, em princípio, sensível aos apelos normativos.

Falta ainda extrair a consequência que decorre da segunda objecção contra o tradicional direito penal da culpa, ou seja, da ilegitimidade de um princípio retributivo abstracto, desligado das necessidades sociais. Essa consequência pode resumir-se numa frase: se a pena não deve ser aplicada para contrabalançar a culpa, mas sim, exclusivamente, para fins preventivos, e se, apesar disso, está ligada à culpa do agente, então a realização, com culpa, de um facto ilícito típico constitui uma condição necessária mas não suficiente da pena.

18 Cfr. STRATENWERTH, Die Zukunft des strafrechtlichen Schuldprinzips (O futuro do princípio jurídico-penal da culpa), 1977, p. 12 ss.

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Quer isto dizer que a chamada bilateralidade do princípio da culpa tem de ser abandonada. O meu colega de Munique, Arthur Kaufmann 19, formulou-a do seguinte modo: «Só desta bilaterali-dade do princípio da culpa, quer dizer, da circunstância de não só a pena ter que corresponder à culpa mas também, em princípio, à culpa ter que se seguir a pena, resulta o seu carácter absoluto. Quem negar que, em princípio, à culpa tem que se seguir a pena, não pode invocar o princípio da culpa como princípio absoluto. Quem disser sim ao princípio da culpa, tem consequentemente que dizer sim à necessidade da pena correspondente à culpa, isto é: não pode, com base em quaisquer considerações de natureza pragmática, negar a necessidade da pena quando exista culpa».

Precisamente aquilo que Kaufmann reprova no seu livro é o que se deve exigir, segundo a concepção aqui defendida. A pena, quanto ao seu fundamento e à sua gravidade, pressupõe a culpa do agente mas, além disso, também a sua própria necessidade, por razões de prevenção especial ou prevenção geral. Sem essa necessidade ela não deve ser aplicada, mesmo que exista culpa. Esta frase é hoje, na Alemanha Ocidental, predominantemente aceite. Arthur Kaufmann abandonou entretanto a sua posição inicial20 e também o Tribunal de Justiça Federal (BGHSt 24,42) já se pronunciou no sentido de que «a pena não tem a função de realizar a compensação da culpa como um fim em si, antes é justificada somente quando ao mesmo tempo se apresente como meio necessário para o exercício da função preventiva do direito

19 C/f. da nota 4, p. 201. 20 N o artigo Dogmatische und kriminalpolitische Aspeckte des Schuldge-

dankens im Strafrecht (Aspectos dogmáticos e de política criminal do pensa-mento da culpa em direito penal), em Juristenzeitung, 1967, p. 533 ss. O artigo está reimpresso no anexo da segunda edição de Das Schuldprinzip (O princípio da culpa), p. 263 ss. U m diálogo mais desenvolvido com ARTHUR KAUFMANN encontra-se no meu artigo — não publicado em língua alemã — Concepción bilateral y unilateral dei principio de culpabilidad, em Culpabilidad y Prevtnción en Derecho Penal, Madrid, 1981, p. 187 ss.

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penal». Mas o significado prático a atribuir a esta transição da bilateralidade para a «unilateralidade» do princípio da culpa ainda não foi até agora suficientemente reconhecido na doutrina nem na jurisprudência. Ele consiste antes de mais em que a culpa e a prevenção surgem numa relação de restrição recíproca: a culpa põe um limite às necessidades estaduais de prevenção, mas as necessidades de prevenção, por seu lado, também limitam a pena correspondente à culpa. Isto leva a duas importantes consequên-cias, quanto aos pressupostos da pena (portanto, no domínio da dogmática do direito penal) e quanto à medida da pena:

-ir-1) Eu interpreto as causas de exclusão da culpa, que em

regra são explicadas através do recurso à não exigibilidade, como casos em que não há, do ponto de vista preventivo, uma necessidade de punição21. Quando o nosso Código Penal (§ 35) desculpa o agente que realiza um facto ilícito típico para afastar de si, de um seu familiar ou de outra pessoa a ele ligada, um perigo para a vida, a integridade corporal ou a liberdade, sou de opinião que estamos perante casos em que a culpa do agente ainda deve considerar-se existente. Com efeito, um homem sensível aos apelos normativos pode, quando isso seja absolutamente indis-pensável, suportar perigos que o atingem a ele ou a uma pessoa a ele ligada, para evitar lesar terceiros inocentes. Apesar disso, quando alguém numa tal situação não é motivado pela norma no sentido do comportamento lícito, o legislador renuncia a

2 1 Isto está exposto desenvolvidamente nos meus dois artigos Schuld und Verantwortlichkeit als strafrechtliche Systemkategorien (Culpa e responsabili-dade como categorias sistemáticas do direito penal), em Festschrift für Henkel, 1974, p. 171 ss., e Zur jüngsten Diskussion über Schuld, Prävention und Verantwortlichkeit im Strafrecht (Acerca da discussão mais recente sobre culpa, prevenção e responsabilidade no direito penal), em Festschrift für Bockelmann, 1979, p. 279 ss. Ambos os artigos se encontram também, em língua espanhola, na colectânea mencionada na nota 20 e o primeiro ainda na edição espanhola dos meus Strafrechtliche Grundlagenprobleme, indicada na nota 3.

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responsabilizar o agente pela sua conduta. O legislador faz essa renúncia porque a punição não é necessária, do ponto de vista preventivo. O agente está socialmente integrado e não existe perigo de repetição, devido à raridade das situações de estado de necessidade, pelo que é dispensável uma sanção, da perspectiva da prevenção especial. E ela também não é requerida por razões de prevenção geral porque, devido ao carácter excepcional da situação, o comportamento do agente não põe em causa, aos olhos da generalidade das pessoas, a validade da norma nos casos-regra. E bem diferente o veredicto decorrente da prevenção geral quando a segurança da sociedade exige de determinados grupos de pessoas, tais como polícias, soldados, bombeiros e equipas de salvação, que suportem perigos. Se pessoas que fazem parte desses grupos pudessem, em situações de perigo, salvar-se impunemente à custa da população em geral e lesando esta, as consequências seriam insuportáveis para a sociedade. Por isso, o legislador alemão recusa aqui a impunidade (§ 35, n.° 1, 2.a frase). Isto é admissível porque a culpa do agente pode ser afirmada, apesar da existência da situação de perigo, e as necessidades de prevenção reclamam aqui a punição, diferentemente do que acontece quanto ao cidadão comum.

De modo semelhante se explica o preceito sobre o excesso de legítima defesa (§ 33 do Código Penal alemão), que deixa o agente impune quando ultrapassa «os limites da legítima defesa por perturbação, medo ou susto»22. Um tal agente não actua sem culpa. Com efeito, os limites da legítima defesa foram estabelecidos pelo legislador porque ele espera que um homem sensível aos apelos normativos respeite esses limites. Aliás, se o legislador partisse do princípio de que em tais casos existe

22 Estas ideias sobre o excesso de legítima defesa estão expostas com desenvolvimento no meu artigo Über den Norweherexzess (Sobre o excesso de legitima defesa), em Festschrift für Schaffstein, 1975, p. 105 ss

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inimputabilidade (§ 20 do Código Penal alemão), nem seria necessário qualquer preceito sobre o excesso de legítima defesa. Mas renuncia-se à pena, porque ela não é necessária do ponto de vista preventivo. A vítima de uma agressão ilegal que só comete um excesso em virtude de um estado de afecto asténico não é socialmente perigosa e não precisa, portanto, de qualquer intervenção orientada no sentido da prevenção especial. E também do ponto de vista da prevenção geral não há razão para a punição, porque um excesso de legítima defesa que é devido a perturbação ou fraqueza não põe em causa a autoridade das leis penais. Diverso é o que se passa com os estados de afecto esténico, tais como cólera, furor e desejo de luta. Quem ultrapassa os limites da legítima defesa por um destes motivos incrementa na população em geral a tendência para fazer justiça pór suas próprias mãos, que é muito perigosa para a paz social. Tem, portanto, que ser punido, por razões de prevenção geral. A diferença legal entre os estados de afecto asténico, que conduzem à impunidade, e os de afecto esténico, que não desculpam, justifica-se, pois, não por divergência quanto ao juízo sobre a culpa, mas sim pela diversidade de exigências de carácter preventivo.

Ambos os exemplos se destinam a mostrar que já no direito vigente a pena correspondente à culpa é limitada pelas necessidades de prevenção, inclusivamente no domínio dos pressupostos da pena. A realização, com culpa, de um facto ilícito típico não conduz automaticamente à punição: esta só surge quando é, além disso, exigida do ponto de vista preventivo. Como, deste modo, a necessidade preventiva da punição acresce à culpa, prefiro chamar «responsabilidade» em vez de «culpa» à categoria jurídico-criminal que assenta no facto ilícito. Com efeito, a culpa, por si só, não designa plenamente o conteúdo dessa categoria.

A relevância prática da doutrina por mim defendida não se esgota em fornecer uma explicação nova para as causas de exclusão da culpa previstas na lei. Ela conduz também a soluções

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que poderão aclarar várias questões controvertidas, no âmbito de alguns problemas de interpretação e do problema de uma chamada causa de exclusão da culpa supra-legal. Não é possível expor isto aqui em detalhe. Mas mais adiante (no número VIII) vou ainda esclarecer a minha concepção quanto a alguns pontos, relacionando-a com as doutrinas de Figueiredo Dias.

2) Na medida da pena, a doutrina da unilateralidade do princípio da culpa leva a que a culpa estabelece o limite superior, mas não o limite inferior da pena 23. A pena pode e deve portanto ficar aquém da medida da culpa, desde que isso seja requerido por razões de ordem preventiva. Quando, por exemplo, uma pena de determinada gravidade, que corresponde à culpa, vá presumivelmente dessocializar completamente o agente (por exemplo, através da destruição da profissão e do casamento) e favorecer a sua tendência para reincidir, considero acertado reduzir a gravidade da pena, para aquém da medida da culpa, enquanto isso for possível sem inconvenientes de maior no plano da prevenção geral. A jurisprudência alemã ocidental ainda não aderiu a esta tese, que alteraria consideravelmente a nossa praxe da medida da pena, antes permanece agarrada ao ponto de vista de que a pena não deve exceder a medida correspondente à culpa nem ficar aquém dela (BGHSt 24, 132 ss.). E, no entanto, a admissibilidade de uma medida da pena que fique aquém da culpa é a consequência necessária da renúncia ao pensamento de uma retribuição absoluta: onde falte a legitimação preventiva, não pode a correspondência da pena à culpa justificar uma medida da pena socialmente perniciosa.

2 3 A este respeito, desenvolvidamente, os meus artigos Strafzumessung im Lichte der Strafzwecke (Medida da pena à luz dos fins da pena), em Festgabe für Hans Schultz, 1977, p. 463 ss. e Prävention und Strafzumessung (Prevenção e medida da pena), em Festschrift für Bruns, 1978, p. 183 ss. Ambos os artigos estão impressos em espanhol na colectânea mencionada na nota 20.

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VIII. Por último, quero ainda abordar o tratamento de dois importantes grupos de problemas na concepção da culpa de Figueiredo Dias, para mostrar que as nossas posições estão muito próximas uma da outra, apesar das referidas divergências quanto a pontos essenciais. Escolho, para este efeito, a doutrina do erro e o tratamento da inexigibilidade.

1) Na sua importante monografia «O problema da consciência da ilicitude em direito penal» (1969) Figueiredo Dias desenvolveu uma teoria do erro que encontrou acolhimento no Código Penal português de 1983 e assume tima posição mediadora na disputa entre a teoria do dolo e a teoria da culpa. Reduzida à sua expressão mais simples, ela conduz a que o erro intelectual exclui o dolo, mas o erro moral deixa subsisti-lo e, no caso de ser reprovável, leva à punição por culpa dolosa. Um erro intelectual (e que, portanto, afasta o dolo) existe, segundo o Art. 16.° do Código Penal português, em três casos:

a) no erro sobre os elementos de facto ou de direito de um tipo de crime;

b) no erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação e no erro sobre os pressupostos de uma causa de exclusão da culpa (do qual, no entanto, abstraio completamente nesta conferência), bem como

c) no erro sobre proibições cujo conhecimento seja razoavel-mente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto.

A diferença entre esta doutrina e a distinção tradicional entre erro sobre o tipo de crime e erro sobre a proibição está sobretudo em que o desconhecimento da proibição afasta o dolo naqueles factos puníveis cuja ilicitude material não é apreensível em função de concepções ético-sociais que sejam do conhecimento geral, antes resulta exclusivamente de injunções do legislador (como

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acontece no direito penal administrativo e, de um modo geral, no direito penal acessório).

Considero certa esta solução. A censura de ser um criminoso que actuou com dolo só é merecida por aquele cuja atitude perante os valores se afasta da do legislador, por aquele em quem, para falar com Figueiredo Dias, podemos verificar uma deficiência reprovável da consciência ético-jurídica — mas não já por aquele que, tendo uma configuração da personalidade conforme aos imperativos legais, só erra no domínio da percepção externa ou do conhecimento intelectual. Para Figueiredo Dias isto resulta de modo imediato do pensamento da culpa na personalidade, que é qualitativamente diversa e substancialmente maior num erro sobre comandos ético-sociais elementares (portanto no erro «moral»), do que num erro de percepção e conhecimento (no erro «intelectual») cometido por quem na sua atitude perante os valores permanece intacto. O último erro mencionado deverá ser submetido unicamente, se for caso disso, à censura substancial-mente menos grave da negligência, que no domínio do direito penal acessório é, na maior parte das vezes, deixada impune.

O Código Penal alemão ocidental não permite, porém, adoptar directamente a solução de Figueiredo Dias, pois estabelece no § 17 que no caso de erro evitável sobre a proibição haverá sempre culpa dolosa, sem distinguir se o erro resulta de um defeito moral ou de uma deficiência intelectual. Partindo desta decisão do legislador — errada, quanto ao caso de desconhecimento de proibições que sejam neutras no plano ético-jurídico — haveria ainda que perguntar, do ponto de vista aqui defendido, se uma punição a título de dolo é requerida por razões de prevenção. Ora, não o é no caso do simples erro intelectual, que não afecta a integridade ético-social do agente. U m agente que erra deste modo é um cidadão observador dos imperativos legais, que não necessita de ressocialização alguma. Tampouco é requerida uma punição por razões de prevenção geral, pois o que abala a

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consciência jurídica da generalidade das pessoas não é o erro em que qualquer um pode cair, mas sim a indiferença perante comandos ético-sociais elementares.

Na base da lei vigente na Alemanha eu argumentaria, pois, do modo seguinte: um erro sobre a proibição só é, em face de critérios jurídicos, evitável, quando seja lícito reprová-lo ao agente, quer dizer, quando ele não mereça ser desculpado por causa do aspecto preventivo. Uma tal desculpa impõe-se quando o conhecimento da proibição seja indispensável para a obtenção da consciência da ilicitude do facto. Inversamente, a desculpa está excluída quando o agente, mesmo sem o conhecimento da proibição foi mal, deveria ter tido consciência da ilicitude do seu comportamento. Recorrendo a esta construção de uni erro intelectual desculpável sobre a proibição poder-se-á chegar, também no direito alemão, ao resultado a que—de modo mais elegante — conduz o Art. 16.° do Código Penal português, através do reconhecimento, nesses casos, de um erro que exclui o dolo.

2) Uma palavra ainda sobre a inexigibilidade, domínio dentro do qual já expus a minha solução, a propósito dos casos de estado de necessidade e excesso de legítima defesa. Figueiredo Dias 24 fundamenta a exclusão da culpa nos casos de inexigibili-dade — pensando, certamente, sobretudo no estado de necessi-dade — com a «pressão imperiosa das circunstâncias externas, que não encontraram na pessoa um 'eco' favorável, antes 'estorvaram' ou 'desviaram' mesmo o cumprimento normal das suas intenções». Quer, portanto, excluir a punibilidade porque um facto desses não corresponde à personalidade do agente, é «estranho à personalidade». Ora, eu sou de opinião de que a personalidade do agente ainda se exprime na sua reacção em

2 4 Cif. da nota 2, p. 251.

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situações de perigo. No entanto, o ponto de partida da fundamentação de Figueiredo Dias corresponde inteiramente à concepção preventiva por mim defendida. Com efeito, precisa-mente porque se deve partir do pressuposto de que o agente, tendo em conta a sua personalidade global, não praticaria nas situações normais da vida, para as quais o direito penal é criado, um acto como o que cometeu em estado de necessidade, é que a punição não é requerida pela prevenção especial nem pela prevenção geral, como acima expus.

Acerca do diferente tratamento dos estados de afecto asténicos e esténicos no excesso de legítima defesa diz Figueiredo Dias2S: «Sem ênfase, devo perguntar se este tratamento se pode explicar por uma qualquer via que não passe pela ideia de que as qualidades conformadoras do afecto esténico valem logo como culpa». Sem dúvida que isto está certo. Mas por que razão valem tais qualidades como culpa? Elas não podem desculpar porque, por motivos de prevenção geral, têm que ser combatidas as agressões violentas que surgem nos conflitos entre os homens. A diferença de tratamento pode, porém, do mesmo passo ser explicada do ponto de vista da culpa na personalidade, pois a cólera e o furor são estados de afecto adequados à personalidade, enquanto que quem está com medo ou perturbado é normal-mente pacífico e não agressivo, pelo que a prática do facto ilícito por essa pessoa está em contradição com a sua personalidade.

3) Não é por acaso que o pensamento da culpa na personalidade, por um lado, e uma doutrina que mantém o pressuposto da liberdade, limitando-o, no entanto, por razões de ordem preventiva, por outro, apresentam estes traços comuns. Com efeito, é claro que a necessidade de uma sanção preventiva é tanto mais urgente quanto mais perfeitamente se exprime no

15 Cit. da nota 2, p. 252.

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facto a maneira de ser do agente, a sua personalidade. O pensa-mento da culpa na personalidade está, por assim dizer, antecipadamente aberto à prevenção, tal como, de modo inverso, toda a prevenção se orienta no sentido da personalidade. Mas isto é matéria que chegaria para uma nova conferência.

IX. Vou chegar ao fim. Estou longe de admitir que as minhas considerações sobre a reformulação de um direito penal da culpa que inclui a dimensão preventiva possam resolver definitivamente o problema. Trata-se aqui de uma questão eterna da nossa ciência, de cuja solução certa só nos podemos aproximar mais ou menos, e de diversas direcções. Por isso, não pretendo afirmar posições rígidas, mas sim prosseguir o diálogo iniciado em Munique, que se destina a tornar patentes os aspectos do problema da culpa, na sua multiplicidade e também na sua diversidade. Se daqui vier a resultar um acréscimo de conhecimentos duradouro, é certamente quanto aos pontos em que estamos de acordo, ou sobre os quais nos viermos a pôr de acordo, que isso tem mais probabilidade de acontecer. Em minha opinião, tais pontos existem em número que, já neste momento, é significativo.