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Roslund & Thunberg

O PaiMade in Sweden

Parte I

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Se então é agora.

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O Pai, Made in Sweden, é uma obra inspirada numa história verídica.Os pormenores de certos acontecimentos assim como de personagens

foram alterados e outros são pura ficção. Para mais informação como a história verídica inspirou este romance, veja a entrevista no fim do livro.

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Está sentado numa carrinha Volkswagen amarela que cheira a suor e a tinta e a outra coisa qualquer que não consegue identificar. Talvez o copo de café da estação de serviço em cima do painel de instrumentos. Talvez os restos de tabaco soltos no banco do passageiro. Talvez o saco de gesso e os pincéis que comprou na loja de ferragens Folkungatan e que estão no banco traseiro. Ou as ferramentas e a mesa forrada a papel de parede que tirou da porra do armazém que ela alugou – arrumada durante quatro anos ao lado das roupas e da cama dele, que foi em tempos metade da cama deles.

É a isso que cheira.Uma cave. Armazém. Tempo.O sol bate na janela da carrinha, coberta por uma película de moscas

secas e pó. O género de calor misterioso que aparece de repente. Baixa o vidro para refrescar e deixa entrar mais calor, a recordação de um tele‑fonema a zumbir ‑lhe na cabeça.

 – Sou eu.– Eu sei.– Como está o meu rapaz? Tudo okay? Tudo bem?

 A três horas de Estocolmo. Uma pequena cidade cercada por fábricas

e uma floresta e abetos. Anda a conduzir devagar pelas ruas desde manhã cedo, a caminho de um bairro onde há um supermercado Konsum, um quiosque de cachorros ‑quentes e um pequeno campo de futebol de saibro… e de um edifício de apartamentos no centro, três pisos de tijolo encarnado onde nunca esteve.

 – Está tudo bem.– Que estás a fazer?– Nada de especial… vamos comer. A mamã está a cozinhar.

 

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À medida que deixava a cidade para trás as estradas foram ‑se tornando mais estreitas e mais lentas, atravessando uma parte da Suécia por onde não passava havia muito tempo. Tinha parado numa estação de serviço nos arredores de uma povoação, enrolara um cigarro, fechara a porta da cabina telefónica e marcara o número que sabia de cor. Ela atendera e ficara calada ao ouvir ‑lhe a voz, e então passara o telefone ao filho mais velho.

 – E os teus irmãos, Leo? Como estão eles?– Na mesma… como sempre.– E está toda a gente em casa?– Estamos todos cá.

 Fez os últimos quilómetros devagar, passou por uma igreja e por uma

velha escola e pela praça principal onde as pessoas se sentavam a absorver raios de Sol que não tardariam a transformar ‑se em nuvens e trovões… era esse género de calor.

 – Podes passar o telefone ao Felix?– O pai sabe que ele não quer falar consigo.

 Está estacionado em frente do apartamento, a olhar para a porta, a senti‑

‑la devolver ‑lhe o olhar. 

– Bem… o Vincent está aí?– Está a brincar.– Lego?– Não, está…– Soldadinhos? Diz ‑me o que ele está a fazer.– Está a ler… Papá, os soldadinhos foi há muito tempo.

 A janela de cima, do lado direito, pensa, deve ser o apartamento. O filho

mais velho descreveu ‑lho tantas vezes que sente que sabe como é: a cozi‑nha logo à esquerda de quem entra, a mesa redonda, castanha, com qua‑tro cadeiras, não cinco; a sala de estar em frente, com uma porta de vidro fosco que não deixa ver para o outro lado; à direita o quarto dela e a outra

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O Pai

metade da cama, que ela conservou, e depois os quartos dos filhos, como quando viviam todos juntos.

 – E o pai?– Tenho…– O que anda a fazer, papá?– Vou a caminho de casa.

•Um apartamento com quatro quartos é o seu mundo de som. Quando

a mamã abre a torneira na cozinha o correr surdo da água colide com o tilintar da bandeja dos talheres e o entrechocar seco do armário da louça. Juntos, fazem o que podem para sobrepor ‑se à televisão na sala, à gritaria estridente dos desenhos animados que Felix está a ver sentado num canto do sofá, à música que jorra das duas enormes colunas de Leo e ao que se escoa dos auscultadores do Walkman que Vincent tem encavalitados de esguelha na cabeça – uma voz grave a contar uma história –, sons que, empurrados e apertados uns contra os outros, se entretecem e acabam por se fundir.

A massa está pronta, o molho de carne, quente.A mamã levanta os auscultadores e sussurra «Horas de jantar», e Vincent

corre pelo corredor a gritar, comida, outro salto, comida comida.A televisão é desligada. A música pára.É quase silêncio enquanto todos se encaminham para a mesa da cozi‑

nha, e então um outro som entra, interrompe… a campainha da porta.

•Vincent já vai a meio caminho do corredor.– Eu abro.Felix passa pela televisão e corre para a porta.– Eu abro.Fazem uma corrida e Vincent, que está mais perto, chega primeiro

e agarra a maçaneta, mas não consegue rodá ‑la. Felix está um passo atrás e afasta a mão de Vincent, inclina ‑se para a frente, espreita pelo óculo da porta. Leo vê Vincent voltar a agarrar a maçaneta e não ser capaz de a rodar, enquanto Felix recua e se volta. Tem na cara um medo que não tem lá estado desde há muito tempo.

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– O que é?Felix faz um gesto de cabeça na direcção da porta.– Lá fora.– Lá fora… o quê?A campainha volta a tocar. Um som prolongado, e Leo continua

a  avançar para a porta. Vincent salta a tentar abri ‑la, e Felix recusa largar a maçaneta.

– Felix, Vincent… saiam da frente. Eu abro.

•Mais tarde, ela não conseguirá lembrar ‑se se chegou a voltar ‑se, se teve

tempo para perguntar ‑se por que estavam os rapazes parados, tão quietos. O que recordará, a única coisa, será que os cabelos encaracolados dele estavam mais compridos e que já não cheirava a vinho tinto.

E que lhe tinha dado um murro, mas não como costumava fazer.Porque se lhe batesse com demasiada força ela cairia, e ele queria que

o olhasse nos olhos enquanto a destruía, a destruía por tê ‑lo ignorado, por ter passado o telefone ao filho mais velho. Tinha de olhá ‑lo nos olhos enquanto se tocavam pela primeira vez em quatro anos.

O primeiro murro é punho direito contra o lado esquerdo da cara, e então a mão dele desce para o pescoço, agarra ‑o e torce ‑o para que pos‑sam olhar um para o outro. O segundo e o terceiro e o quarto murros são o contrário, punho esquerdo no lado direito da cara, murros rápidos, poderosos, olha para mim, e ela ergue os braços acima da cabeça para se proteger, os cotovelos espetados a formarem um elmo, todo pele e osso.

Com uma das mãos no pescoço e a outra nos cabelos, obriga ‑a a manter‑‑se de pé apesar de ela estar a ficar mais pesada, de querer ficar no chão, deitar ‑se, proteger ‑se. Ele mantém ‑lhe a cabeça baixa enquanto lhe dá uma joelhada, sente ‑me, mais uma joelhada, sente ‑me, e mais uma vez sente ‑me.

•Porque Leo não compreende o terrível silêncio.Por isso demora tanto tempo a reagir. Os punhos do papá batem na cara

da mamã como um chicote, mas fá ‑lo devagar e em silêncio; antigamente conseguia ‑se ouvir quando o papá dava um murro. É ao mesmo tempo o papá e outra pessoa qualquer. E porque a mamã não grita. E Vincent

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O Pai

está escondido atrás das costas do irmão, e Felix continua parado junto à porta da rua.

Ainda não são da mesma altura. Se fossem, Leo não teria tido de saltar‑‑lhe para as costas. É o que faz quando o papá começa a usar os joelhos, quando Leo percebe que desta vez o papá só parará quando ela estiver morta. Pendura ‑se ‑lhe nas costas e passa os braços à volta do pescoço do pai, até que por fim o papá o agarra e o arranca de cima de si.

Mas ao menos neste ponto o papá tem de largar a cabeça dela.Leo escorrega, cai no chão, e a mãe, confusa, afasta ‑se um par de pas‑

sos, os braças a protegerem a cara, que sangra, sobretudo o corte que os nós dos dedos do papá lhe fizeram na maçã do rosto. O papá vai atrás dela, volta a agarrá ‑la, da mesma maneira que antes – quer que ela olhe para ele enquanto a esmurra.

Mais um murro. No nariz e na boca.Mas é o único que consegue antes de Leo se pôr de pé e de se enfiar

entre os dois e erguer as mãos.Não, papá.Está num vazio. Entre uma mãe que sangra e um pai que quer continuar

a bater ‑lhe, mas não pode porque há outra cara pelo meio.E Leo agarra ‑o.Não o pescoço, o papá é demasiado alto para isso, nem os braços, Leo

não consegue prendê ‑los. Mas a cintura e uma parte do peito.Não, papá.Tenta fincar os pés no chão da cozinha. As meias escorregam e tem de

firmar ‑se contra as pernas da mesa, a esforçar ‑se ao máximo por abraçar o seu papá e mantê ‑lo afastado. Não consegue, mas ao menos o papá larga os cabelos dela.

A mamã sai da cozinha e corre pelo corredor em direcção à porta que continua aberta. Escorrega no polido chão de pedra do patamar e o sangue jorra, e ela choraminga e geme a cada passo.

Só ficaram os dois.Leo continua a agarrá ‑lo, os braços passados à volta da cintura do pai,

a fazer força contra o corpo dele, como se ainda estivesse a abraçá ‑lo.– Agora é a tua vez, Leonard.O cheiro a comida, massa com molho de carne, e o sangue da mamã.

Olham um para o outro.

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– Compreendes? Eu já não estarei presente, não aqui. A partir de agora és tu o responsável.

E agora os olhos do papá estão diferentes – não se afastam, param, e embora o papá não diga nada, os seus olhos dizem.

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Não que tenha importância, mas este romance inspira ‑se numa história verdadeira.

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agoraprimeira parte

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1Leo reteve a respiração. A luz branca e intensa da lanterna varreu o

sítio onde estava e ele apertou a cara contra o musgo húmido e os espar‑sos rebentos de mirtilo, a empurrar o corpo inteiro ainda com mais força contra o chão. Ali deitado – a menos de um metro da orla do bosque – era fácil seguir a rotina do inspector.

Primeiro, apontou o feixe de luz para a fechadura da porta de segurança, à procura de sinais de arrombamento.

Em seguida contornou o edifício em forma de cubo com a lanterna apontada para a superfície das paredes de betão.

Por fim, voltou as costas ao edifício e fumou um cigarro, ao que pare‑cia a fazer uma pausa até ter a certeza de que estava tudo tal e qual como estivera na noite anterior.

Leo recomeçou a respirar. Estivera ali deitado, da mesma maneira e à mesma hora, sete noite seguidas, junto a um grande pátio quadrado de saibro rodeado de floresta e com um pequeno cubo de betão cinzento no meio – o bunker. A noite estava imóvel. Só o vento, e um mocho que não parava de piar, e um ou outro insecto.

Era uma sensação estranha, estar deitado a poucos metros de distância, a vigiar todos os movimentos de um homem convencido de que estava sozi‑nho – um homem de uniforme que puxava longas passas do seu cigarro, responsável por todas as instalações de armazenamento militar da chamada Área de Defesa 44 de Estocolmo.

Ajustou o microfone do colarinho, ergueu a cabeça acima dos arbustos de mirtilo e sussurrou:

– Fumador a abandonar o local.

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•A vala entre a floresta e o pátio de saibro estava cheia de água, e as

solas estriadas das botas de Leo escorregaram na erva quando ele correu e saltou por cima dela, com um pesado saco numa das mãos e um quadrado de madeira na outra.

Jasper aproximou ‑se vindo de outra direcção, com musgo e agulhas de pinheiro nos cabelos e um saco também pesado nos braços.

Não falaram um com o outro. Não precisavam.Leo pousou o quadrado de madeira – 60 × 60 centímetros – no chão

em frente da porta do bunker.Passara muito tempo a estudar aquelas paredes. Rebentá ‑las seria

visível mais tarde à luz da lanterna do inspector e faria demasiado barulho.

Estudara então o telhado. Seria fácil remover a chapa metálica que pro‑tegia o edifício da chuva, furar os quinze centímetros de betão por cima e voltar a pôr a chapa no seu lugar. Um telhado rebentado não apareceria à luz da lanterna do inspector. Mas seria ouvido.

Restava uma maneira: o chão. Com a terra dura a proporcionar contra‑pressão, a força da explosão seria dirigida para cima; poderia usar menos explosivos, do que resultaria menos barulho.

Tirou do saco meio quilo de pesado explosivo plástico.Ajoelhou no saibro e amassou ‑o, fazendo doze bolas à luz das lanternas

de cabeça.– Não chega – disse Jasper.Leo colocou as bolas uma a uma na placa de madeira, como um relógio

com quarenta gramas de explosivo plástico por cada hora.– Chega.– Mas de acordo com a tabela…– O exército usa sempre demasiado. A ideia deles é matar pessoas em

combate. Eu cortei para metade. Queremos entrar… não destruir o que está lá dentro.

Leo viu Jasper tirar do saco uma pá desdobrável, abri ‑la com uma sacudi dela do pulso e começar a cavar. A cada movimento, o buraco em frente e por baixo da porta blindada ia ficando maior.

Uma bola de massa para marcar cada hora. Um círculo de tempo, ligado por um fio de cordão detonante castanho.

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O Pai

Sabia que era disparate, mas vivia ao cronómetro – sabia sempre que horas eram, mesmo quando não tinha um relógio. O tempo tiquetaqueava dentro dele, sempre assim tinha sido.

– Pronto.Jasper estava a suar, dobrado para a frente, de joelhos, com a pá enfiada

até ao fundo do buraco por baixo da porta… e do chão do bunker. Leo aproximou ‑se, os braços ansiosos de um a estorvarem os do outro enquanto retirava com as mãos em concha o que a pá não conseguia apanhar.

– Agora.Pegaram um de cada lado do quadrado de madeira e, com muito cui‑

dado, fizeram ‑no deslizar para dentro centímetro a centímetro, certificando‑‑se de que as doze bolas de explosivo não se prendiam no rebordo inferior da parede e que a ponta do rastilho ficava exposta. Quando tiveram a cer‑teza de que a placa tinha passado por baixo da porta e estava sob o chão do pequeno edifício, empurraram saibro para dentro do buraco e à volta e comprimiram ‑no até ficar bem selado.

– Satisfeito?– Satisfeito.Horas de cálculos. Dias passados a conseguir materiais. Semanas pas‑

sadas a deambular de botas de borracha por uma floresta atrás de outra, com um cesto de apanhador de cogumelos debaixo do braço, a exami‑nar instalações de armazenamento militares suecas, e quando encontrara aquela, numa área chamada Getryggen, cerca de quinze quilómetros a sul de Estocolmo, soubera que podia parar de procurar.

Agora já só faltavam uns poucos minutos.Com fita adesiva, prendeu o rastilho curto a um detonador, que por sua

vez ligou ao positivo e ao negativo de um cabo eléctrico antes de afastar ‑se como pôde, atravessando o saibro e a vala de volta ao bosque. Então, ligou um fio no outro extremo do cabo ao terminal positivo de uma bateria de bicicleta.

– Felix? Vincent? – disse Leo para o microfone.– Diz – respondeu Felix.– Têm uma vista desimpedida?– Vista desimpedida.– Dez segundos…

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•Felix e Vincent estavam deitados lado a lado debaixo de uma lona camu‑

flada com folhas, musgo e ervas, perto de uma barreira encarnada e amarela com uma placa de metal que proibia o acesso a veículos não autorizados.

– Então avanço…Vincent segurava um alicate de grifos com quase metro e meio de

comprimento.Felix soergueu o tronco e consultou o relógio, passou o dedo pelo vidro

do mostrador; a humidade tinha ‑se transformado em condensação.– Nove.Continuou a esfregar até conseguir ver o ponteiro dos segundos e fez

um aceno de cabeça a Vincent, cuja respiração era rápida, intensa e áspera.– Oito.– Estás bem?– Sete.Vincent não respondeu. Nem olhou para o irmão.– Seis.Até a pesada lona que os tapava estremecia.– Cinco.– Não vai aparecer ninguém, Vincent. Estamos sozinhos.– Quatro.Felix baixou o braço dos ombros que tremiam para as mãos que agar‑

ravam as pegas do alicate.– Três.– Vincent?– Dois.– O Leo está ali. Planeou isto tudo. Vai correr bem. E isto é melhor,

certo?– Um.– Vincent? É melhor estar envolvido do que ficar sentado em casa no

sofá sem saber.

•A explosão foi mais forte do que Leo tinha esperado. O bunker funcio‑

nou como a caixa de ressonância de uma guitarra, uma casca que amplificou o som de meio quilo de explosivo plástico. E quando o chão foi projectado

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O Pai

para dentro da única divisão do edifício, a caixa de ressonância amplificou também o som seguinte: pedaços de betão a baterem contra um tecto.

Tinham combinado esperar cinco minutos.Não foi o que aconteceu.Leo correu pelo saibro molhado com a pá desdobrável na mão. Riu

alto, e ao princípio nem se apercebeu de que estava a rir, a rir como raras vezes ria, quando ajoelhou no chão e enfiou o braço direito por baixo da porta blindada e sentiu… Nada. Havia mesmo um buraco! Desdobrou a pá, retirou mais saibro, enfiou a cabeça na abertura e acendeu a lanterna.

– Jasper!Voltou ‑se para o bosque e gritou, demasiado alto:– Chega aqui! Vem ver isto!A luz da lanterna inundou uma sala sem janelas. E ali. Quando se esticou

para dentro conseguiu vê ‑la com perfeita nitidez, a primeira letra.K.Oh, meu Deus. Oh, meu Deus!Um pouco mais para dentro. Devagar, a segunda letra apareceu.S.Ohporrameudeus.Ainda mais um pouco. Letras brancas sobre fundo verde. 

KSP 58 – Felix? Vincent?– Sim?– O cadeado?– Estamos a trabalhar nele agora mesmo.O ombro de Jasper estava contra o dele enquanto escavavam para chegar

ao buraco no chão, como num túnel de fuga.Continuaram a escavar até ele conseguir fazer passar a cabeça, os ombros

e os braços pela abertura e cortar com um pesado alicate as varinhas de ferro que formavam o esqueleto gradeado do betão. Abriu uma passagem, fez força com as costas contra o chão, agarrou com as mãos as bordas do buraco e içou ‑se para o interior.

Ajeitou a lanterna de cabeça, que tinha escorregado um pouco na testa suada, e olhou em redor. O espaço era tão pequeno que chegava com as

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mãos a ambas as paredes e ao tecto: um cubo com dois metros de aresta. Ao longo das paredes estavam empilhadas caixas de madeira verdes.

– Quantas?A voz de Jasper chegou ‑lhe através do túnel.– Muitas.– Perguntei quantas.Leo contou em voz alta.– Um pelotão. Dois pelotões. Três pelotões. Quatro…No total, vinte e quatro caixas verde‑militar.– … duas companhias!Foi então a vez de Jasper fazer deslizar o corpo comprido e magro pelo

túnel de terra, sem parar de rir. Como Leo, não conseguia evitá ‑lo. Fica‑ram lado a lado na divisão em forma de cubo, o pó de betão a ondular nos feixes de luz das lanternas.

– Abrimo ‑las já? Ou mais tarde?– Já, claro.Uma mão cautelosa em cima de uma caixa de madeira. Uma superfície

áspera, quase enrugada.Foi fácil retirar as cavilhas e levantar a tampa.Uma metralhadora ligeira. Leo pegou ‑lhe e entregou ‑a a Jasper, que

dobrou um pouco os joelhos e inclinou o tronco para a frente a preparar ‑se para um imaginário recuo, repetindo os gestos que tinham aprendido durante o serviço militar. Olharam um para o outro como duas pessoas no fim de uma longa viagem a tentarem compreender que tinham enfim chegado.

– Quantas achas que há? Se tivesses de fazer um cálculo?Leo preparava ‑se para abrir a caixa seguinte. Mas parou. A resposta

estava mesmo ali, atrás do ombro de Jasper, meio tapada por pó branco.– Não preciso de fazer um cálculo.Uma folha de papel dentro de uma bolsa de plástico pendurada num

gancho na parede à esquerda da porta fechada, uma esferográfica suspensa de um cordel ao lado.

– Primeira fila: 124 pistolas ‑metralhadoras m/45. Segunda fila: 92 espingardas de assalto AK4. Terceira fila: 5 KSP 58.

Abriram uma caixa de cada vez, verificando o conteúdo. Corpos metá‑licos lado a lado. Bem lubrificados e cuidadosamente acondicionados.

– Porra, nem vais acreditar nesta, Jasper.

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O Pai

Por baixo do texto dactilografado com pormenores a respeito de regras e rotinas, mesmo no fim.

– Este local foi inspeccionado a…Inclinou ‑se um pouco para a frente, a apontar a luz da lanterna de

cabeça para o papel branco. Tinha sido escrito à mão sob uma assinatura ilegível.

– … Sexta ‑feira, 4 de Outubro.– Sim?– Há menos de duas semanas!– E?Leo agitou o papel tão acima da cabeça que bateu no tecto.– Os guardas só abrem a porta blindada para verificar o interior de seis

em seis meses. Não estás a ver? Significa que só saberão o que aconteceu daqui a mais de… cinco meses!

– Felix para Leo!A voz de Felix pareceu crepitar.– Repito! Felix para Leo! Escuto!– Sim?– É por causa… do cadeado. Temos um problema.Leo enfiou ‑se pelo buraco no chão do bunker e voltou ao saibro. Não

tinha contado com aquilo. Se não conseguissem abrir a barreira, todo aquele trabalho teria sido para nada. Desceu a correr a tosca estrada flo‑restal em direcção aos dois irmãos mais novos, que estavam sentados no chão um de cada lado da barreira, trancada por um cadeado com um aro de aço de centímetro e meio de grossura.

– Desculpa.A dada altura durante o Verão quente e luminoso ele e Vincent tinham

ficado da mesma altura. Mas mesmo assim o corpo de um rapaz de dezas‑sete anos era muito diferente do de um homem de vinte e quatro.

– Leo… não está a resultar. Não consigo.Vincent encolheu os magros ombros e abriu os braços, que pareciam

demasiado compridos para o resto do corpo.Olharam um para o outro até que Vincent se afastou para um lado.– Felix… vamos nós os dois fazê ‑lo.Leo sentou ‑se no lugar de Vincent e abriu o alicate de grifos com hastes

mais compridas do que os braços de um homem. Agarrou uma das hastes

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com as duas mãos enquanto Felix, do lado oposto da barreira, agarrava a outra.

– Agora, irmão.Aplicaram ambos o peso do corpo contra a respectiva haste do alicate.

Os dentes morderam o aro do cadeado, dois remadores a levar os remos ao peito, a puxar, a puxar, a puxar, até que de repente – com dedos e mãos e braços e ombros a tremer, contraídos, a gritar – os dentes do alicate cor‑taram o aço do cadeado.

•A primeira estava presa a duas faias solitárias, a segunda suspensa entre

a densa ramaria de um grupo de abetos jovens. Tinham treinado aquilo na garagem em Skogås, à noite, e uma última vez no escuro nos arredores de Drevviken, de modo que foi fácil retirar as redes de camuflagem que escondiam as carrinhas, enrolá ‑las e atirá ‑las para dentro da caixa vazia. Duas pick ‑ups Mitsubishi encarnadas, o género de veículos que alguém que tivesse uma empresa de construção poderia conduzir.

Enquanto Leo voltava a correr colina acima, os outros dois ligaram os motores e avançaram por entre o musgo e os arbustos de mirtilo em direc‑ção à barreira aberta.

•Jasper estava ajoelhado dentro do bunker, a passar uma arma de cada

vez para o túnel; Leo, ajoelhado no exterior, recebia ‑as; Felix estava de pé logo atrás dele, e Vincent na caixa da carrinha. Uma longa cadeia em que cada transferência entre pares de mãos demorava um segundo e meio.

– Duzentas e vinte e uma armas automáticas.Cada objecto que saía do cubo de betão chegava à caixa da carrinha

em seis segundos.– Oitocentos e sessenta e quatro carregadores.Leo olhou para os ponteiros vermelhos do relógio. Estariam despacha‑

dos em meia hora.

•Varreram os resíduos de explosivo, encheram o buraco exterior e por

baixo da porta com saibro, compactaram ‑no com força, calcaram ‑no com os

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Page 24: Roslund & Thunberg - Planeta · À medida que deixava a cidade para trás as estradas foram ‑se tornando ... sofá, à música que jorra das duas enormes colunas de Leo e ao que

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O Pai

pés, voltaram a compactá ‑lo. Trocaram as roupas que usavam por macacões azuis e camisas de trabalho, vestiram blusões pretos com o logo da empresa de construção na manga. Levantaram a barreira e passaram para o outro lado, deixando os motores ligados enquanto Felix saltava da cabina levando na mão um cadeado igual ao que tinham cortado – era importante que a chave entrasse sem dificuldade, ainda que depois fosse impossível rodá ‑la. Quando, na noite seguinte, por volta das nove, o inspector chegasse no seu sujo Volvo para ouvir o mocho piar, fumar um cigarro e dar a volta ao depósito de armas no cume da colina, tudo pareceria intacto. O meticuloso inventário confirmara que passariam quase seis meses antes que o interior do depósito voltasse a ser inspeccionado, e nessa altura já não pareceria assim tão intacto.

2Leo não se apercebera de que estava a cantar. Conduzia pela Horns‑

gatan em direcção ao viaduto de acesso à E4, em Liljeholmen, a afastar ‑se do centro da cidade para sul, sob a chuva, quando ouviu a sua voz envolvê‑‑lo na cabina da pick ‑up.

Tinha comprado um café e uma sanduíche numa pastelaria, após o que atravessara a rua para entrar no fabricante de perucas da Folkoperan. Fora o primeiro cliente do dia e ficara a ver, cheio de curiosidade, a dança dos dedos ágeis que entrançavam fios de cabelo castanhos na nuca de uma cabeça de plástico enquanto a jovem lhe explicava que usava cabelo verdadeiro, importado por grosso da Ásia, descolorido e depois tingido. Em seguida dirigira ‑se ao Centro Óptico na Drottninggatan e recolhera as lentes de contacto neutras que encomendara.

Um olhar ao retrovisor. Olhos azuis e cabelos louros. Leo sempre fora o mais parecido com a mãe. Tinha a pele clara e os cabelos louro ‑arruivados dela. E o nariz – pequeno, anguloso, cartilagem dura como granito. Nunca seria confundido com um estrangeiro, nem de segunda geração. Um nariz sueco, pequeno e afilado, sempre significara menos atenção – e se a rapa‑riga da perucaria ou a empregada da óptica que visitara naquela manhã tivessem de descrever um cliente que pagara com dinheiro, descreveriam alguém que se parecia com toda a gente.

Saiu da auto ‑estrada em Alby, onde as três faixas de rodagem se trans‑formavam em duas, passou pela estação de serviço da Shell e pela bonita

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