revista recine nº 7 - 2010

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Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo Ano 7 Nº 7 Arquivo Nacional Outubro de 2010

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Luz, câmera: a música brasileira. A edição 2010 da Revista REcine está imperdível: 24 artigos inéditos e uma entrevista exclusiva com o jornalista, crítico e pesquisador José Ramos Tinhorão, que dá uma aula a respeito de nossas origens musicais. Músicos e pesquisadores da música e do cinema brasileiro estão na edição especialmente dedicada ao tema do festival: Sérgio Cabral, Ruy Castro, Marcos Napolitano, Frejat, Jocy de Oliveira, Henrique Cazes, entre outros. Em seu sétimo número, a Revista REcine publica artigos que versam sobre a música brasileira no cinema, compositores de trilhas sonoras, filmes cantantes, samba, choro, música nordestina, rock anos 80, a brazilian black music e muito mais. Tudo isso ricamente ilustrado com fotos dos acervos do Museu da Imagem e do Som e do Arquivo Nacional. Um prato cheio para os admiradores e estudiosos da música e do cinema nacional.

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Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo Ano 7 Nº 7 Arquivo Nacional Outubro de 2010

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Elza Soares

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© 2010 by Arquivo Nacional do Brasil Praça da República, 173 CEP 20211-350 - Rio de Janeiro - RJ - BrasilTel. 55 21 2179 1286 Fax. 55 21 2179 1253

Presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência da RepúblicaErenice Guerra

Secretário-Executivo da Casa Civilda Presidência da RepúblicaCarlos Eduardo Esteves Lima

Diretor-Geral do Arquivo NacionalJaime Antunes da Silva

Conselho Editorial Jaime Antunes da Silva, Presidente; Alba Gisele Guimarães Gouget, Coordenação de Pesquisa e Difusão do Acervo; Carmen Tereza Coe-lho Moreno, Coordenação Geral de Processamento e Preservação do Acervo; Domícia Gomes Borges, Coordenação de Apoio ao Conarq; Maria do Carmo Teixeira Rainho, Gabinete da Direção-Geral; Maria Elizabeth Brêa Monteiro, Coordenação de Pesquisa e Difusão do Acervo; Maria Izabel de Oliveira, Coordenação Geral de Gestão de Do-cumentos; Pablo Endrigo Franco, Coordenação Regional do Distrito Federal; Sátiro Ferreira Nunes, Coordenação de Consulta ao Acervo.

Coordenação Geral de Acesso e Difusão DocumentalMaria Aparecida Silveira Torres

EditoresClovis Molinari Jr. e Renata dos Santos Ferreira

Edição, Redação e Revisão de TextoRenata dos Santos Ferreira

Assessoria AdministrativaSônia Maria de Almeida

Coordenação de Pesquisa e Difusão do AcervoMaria Elizabeth Brêa Monteiro

Projeto Gráfico, DiagramaçãoAlzira Reis

CapaClovis Molinari Jr.

Coordenação Geral de Processamento e Preservação do AcervoCarmen Moreno

Coordenação de Documentos Audiovisuais e CartográficosWanda Ribeiro

Pesquisa de ImagensHeloisa Frossard • Ivan Calou • Renata dos Santos Ferreira • Rodrigo Mendes Queiroz • Sérgio Miranda de Lima

Coordenação de Preservação do AcervoMauro Domingues

Digitalização de ImagensAdolfo Galdino • Cícero Bispo • Fábio Martins • Flávio Lopes (Supervisão) • Janair Magalhães • José Humberto

Laboratório de Conservação e RestauraçãoLúcia Peralta (Supervisão) • Tiago Cesar da Silva • Walter da Silva Júnior

AgradecimentosAndré Andries • Bernardo Uzeda • Caulos • Cristiano Menezes • Fred Jordão • Gabrielle Carvalho • Gilson Camargo • Giselle Teixeira • Jorge de Salles • Nilza Ckless • Paulo Henrique Fontenelle • Sérgio Natureza • Valéria Mauro • Museu da Imagem e do Som/Rosa Maria Araújo, Célia Costa e Roberta Zanatta

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cine

Apresentação 6Clovis Molinari Jr.

A canção de cinema no Brasil 10Marcia Carvalho

Ópera, valsa e maxixe: os filmes cantantes brasileiros 18Arnaldo di Pace

Música de cinema: o óbvio e o obtuso 26Gerson Noronha Filho

O advento do cinema sonoro e a música no cinema brasileiro 34Carlos Eduardo Pereira

Apontamentos para um estudo da música nos filmes de Humberto Mauro 40Irineu Guerrini Jr.

Radamés Gnattali e a trilha musical no cinema brasileiro 46Daniel Menezes Lovisi

Os estudos do som no cinema, da música e a lembrança dos músicos 54Fernando Morais da Costa

Baile perfumado 60Herom Vargas

Pesquisador apaixonado, crítico implacável 70entrevista: José Ramos Tinhorão

O choro e sua árvore genealógica 78Anna Paes de Carvalho

A grande viagem 90Ivan Dias

Apanhei-te cavaquinho! 92Henrique Cazes

Quase duzentos anos de samba 94Sérgio Cabral

Desafinando o coro dos contentes 102Adalberto Paranhos

A nossa Carmen, a maior luso-brasileira de todos os tempos 112Ruy Castro

A música nordestina, brasileira 116José Sergival da Silva

Música de vanguarda, ainda existe? 126Jocy de Oliveira

Noites de gala, dias de luta: a MPB na TV dos anos 1960 132Marcos Napolitano

Torquato Neto e as discussões sobre a música popular brasileira 140Janaina Faustino Ribeiro

Dados sobre o início do registro sonoro no Brasil 148Humberto Moraes Franceschi

O acervo sonoro do Arquivo Nacional 156Almerício de Souza, Elisabeth Chaffim, Mara Luci de Araújo, Nei Silveira e Pablo Ferraz

Música para ler 162Aline Torres, Leonardo Fontes, Rodrigo Mourelle, Marcus Alves, Ricardo Silva e Thiago C. Mourelle

Black Rio 172Andréa Dutra

O rock brasileiro dos anos 80 182Roberto Frejat

RIO e também posso chorar 186Ronaldo Werneck

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Noel Rosa 11/12/1910 – 4/5/1937

Não tem tradução(Noel Rosa e Francisco Alves)

O cinema falado é o grande culpado da transformação

Dessa gente que sente que um barracão prende mais que o xadrez

Lá no morro, seu eu fizer uma falseta

A Risoleta desiste logo do francês e do inglês

A gíria que o nosso morro criou

Bem cedo a cidade aceitou e usou

Mais tarde o malandro deixou de sambar,

dando pinote

Na gafieira dançar o foxtrote

Essa gente hoje em dia que tem a mania da

exibição

Não entende que o samba não tem

tradução no idioma francês

Tudo aquilo que o malandro pronuncia

Com voz macia é brasileiro, já passou de

português

Amor lá no morro é amor pra chuchu

As rimas do samba não são I love you

E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny

Só pode ser conversa de telefone

Cristóvão de Alencar 8/1/1910 – 23/11/

1983

PH FOT 07716-002

Nascido em São Paulo, mas cria-

do em Vila Isabel, o compositor foi parceiro de Newton Teixeira, Haroldo Lobo,

Ataulfo Alves, Noel Rosa e Nássara em músicas in-terpretadas por Orlando Silva, Dircinha Batista, entre

outros ídolos da época de ouro. Como jornalista, atuou no rádio e na imprensa. Ajudou a fundar e presidiu a União

Brasileira de Compositores (UBC). Entre seus sucessos estão Pela primeira vez (com Noel Rosa), Arrependimento (com Sílvio Caldas) e Até breve (com Ataulfo Alves).

Haroldo Lobo 22/7/1910 – 20/7/1

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PH FO

T 47123-001

A u t o r de grandes sucessos

do carnaval como Índio quer apito (com Milton de Oliveira), Alá-lá-ô

(com Nássara) e Emília (com Wilson Batista), o compositor carioca foi gravado por Aracy de Almei-

da, Dalva de Oliveira, Francisco Alves e Jorge Veiga, grandes nomes de sua época. Notório folião, inspirava-se

em fatos do dia a dia para compor seu repertório car-navalesco, só comparável em termos de número aos de Braguinha e Lamartine Babo. O último grande sucesso, Tristeza, parceria com Niltinho Tristeza, aconteceu no

carnaval de 1966, após sua morte.

Genia l , boêmio, músico, poe-

ta, cronista de sua época e carioca de Vila Isabel. Como definir Noel Rosa?

Depois dele nunca mais o samba seria o mesmo. Sua inspiração vinha do morro, das mulheres, do

cotidiano dos mais simples e humildes. Cantou o Rio melhor do que ninguém. Apesar de ter vivido apenas

27 anos, Noel deixou obras-primas como compositor e letrista, sempre conquistando novas gerações de admira-dores: Com que roupa, Mulato bamba, Último desejo e Palpite infeliz são somente algumas delas.

Adoniran Barbosa 6/8/1910 – 23/1

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1982

Filho de imigrantes italianos,

Adoniran foi, sem dúvida, o mais importante representante do samba

paulista. Suas músicas, cantadas por Elis Regina, Clara Nunes e, claro, os Demônios da Garoa, são a

síntese da vida difícil na periferia de uma metrópole. Atuou no radioteatro e no cinema, mas seu talento

musical só foi devidamente reconhecido nos anos 70. Autor de pérolas como Trem das onze, Iracema, Samba do Arnesto e Saudosa maloca.

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Claudionor Cruz 1/4/1910 – 21/6/1

995

Natural de Paraibuna, MG,

o compositor e instrumentista dominava vários instrumentos de cordas

dedilhadas. Formou seu próprio conjunto regional na década de 1930, onde tocava violão.

Acompanhou vários artistas em seus discos, entre eles, Francisco Alves, Orlando Silva e Gilberto Milfont.

Seu maior parceiro nas composições foi Pedro Caetano, com quem assinou Apelo, Cais do porto, Estão vendo aquela mulher e muitas outras músicas. Com Ataulfo Alves escreveu Errei, Já sei sorrir e Sei que é covardia.

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Cem anos de...

Manezinho Araújo 27/9/1910 – 23/5

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PH FOT 09222-003

Mes t re das emboladas, o can-

tor e compositor pernambucano teve suas músicas cantadas por nomes

como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Jorge Veiga. Foi um dos maiores divulgadores da música

nordestina, compôs e gravou também frevos, cocos e sambas. Deixou a carreira musical em 1954 para se dedicar

ao seu restaurante de comida nordestina e à pintura.

Vadico 24/6/1910 – 11/6/1

962

Compositor e instrumentista, nascido em São

Paulo, Oswaldo Gogliano, mais conhecido como Vadico, conheceu Noel Rosa em 1932, e

logo compuseram Feitio de oração. Além desta, ou-tras parcerias inesquecíveis com o Poeta da Vila: Feitiço

da Vila, Conversa de botequim, Pra que mentir, entre outras canções. Orquestrou trilhas de filmes americanos de Carmen Miranda e foi seu pianista nos Estados Unidos, onde viveu por 15 anos. Nos anos 40 e 50, excursionou pelo mundo integrando orquestras americanas.

PH FOT 15189-001

Jorge Veiga 14/4/1910 – 29/6/1

979

O Caricaturista do Sam-

ba. Carioca do Engenho de Dentro, o menino engraxate se tornaria o maior

intérprete de sambas de breque, ao lado de Moreira da Silva e Ciro Monteiro. Sua voz fanhosa,

carregada de ginga e malandragem, também deu vida a sambas de gafieira e de carnaval. Na década de

50 gravou seus maiores sucessos, Estatutos da gafieira (de Billy Blanco) e Café soçaite (de Miguel Gustavo), uma sátira ao colunismo social do Rio de Janeiro daqueles anos.

PH FOT 47123-011

Nássara 11/11/1910 – 11/12/

1996

Antônio G a b r i e l N á s s a r a .

C o m p o s i t o r , j o r n a l i s t a e caricaturista, filho de libaneses radicados

no Rio de Janeiro. Parceiro de Haroldo Lobo na marchinha Alá-lá-ô, grande sucesso no carnaval de

1941, na voz de Carlos Galhardo e orquestração de Pixinguinha. Vizinho de Noel Rosa, não poderia deixar de

assinar alguma música com o poeta, Retiro da saudade. Trabalhou em alguns dos principais jornais e revistas do seu tempo como desenhista e compôs um dos primeiros jingles comerciais no rádio brasileiro.

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Custódio Mesquita 25/4/1910 – 13/3/1

945

Pianista, regente e ator carioca,

consagrou-se como compositor de marchas, sambas-canções e foxtrotes.

Frequentador assíduo do Café Nice, ponto de encontro de artistas e intelectuais na época de

ouro da música brasileira, Custódio era conhecido pela elegância e teve como parceiros nas composições

ninguém menos que Noel Rosa, Mário Lago, David Nasser, Sadi Cabral, Orestes Barbosa e outros mais. Compôs para o cinema e o teatro de revista. Mulher (com Sadi Cabral), Prazer em conhecê-lo (com Noel Rosa) e Nada além

(com Mário Lago) são músicas de seu repertório.

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Luís Barbosa 7/7/1910 – 8/10/

1938

Ocantor, que nasceu em

Macaé (RJ), começou na Rádio Mayrink Veiga em 1931, e logo chamou

atenção com sua originalidade na forma de interpretar e seus breques. Irmão do compositor Paulo

Barbosa e do ator Barbosa Júnior, Luís lançou o chapéu de palha e a caixinha de fósforos como instrumentos de

percussão. Apesar de sua curta carreira (morreu aos 28 anos de idade), obteve um sucesso indiscutível no rádio, sendo considerado um dos maiores sambistas de todos os tempos, embora hoje seja pouco lembrado.

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Page 8: Revista Recine nº 7 - 2010

Diante de uma Revista Recine tão rica, repleta de artigos que irão, com certeza, jogar luz e trazer informações preciosas para quem gosta de música, o melhor a fazer em uma apresentação é ser o mais breve possível e estimular o leitor a folhear cada página o quanto antes. Mas, um pouco de suspense não faz mal a ninguém.

Acostumados a ouvir música desde o berço, com can-ções de ninar, e quando estamos mais grandinhos somos advertidos de que quem não gosta de samba, bom sujeito não é, no mínimo é estranho encontrar alguém que não goste de música.

Os sons nos cercam, sejam produzidos pelo vento ou pelos seres vivos. Foi de fenômenos como esses que nasceu a melodia, bela e útil para invocar divindades, enfrentar o natural e o sobrenatural; atrair a pessoa ama-da, afastar a tristeza e comemorar a alegria. Uma forma intensa de demonstrar coragem e dar sinais de fraquezas incômodas. “A música é o remédio da alma triste”, como disse Walter Haddon. Ou, como sentenciou Horácio, “alivia toda tua mágoa com o vinho e a música”.

Não há notícia de que exista, em alguma parte do plane-ta, agrupamento humano que não produza sonoridades mais elaboradas. E, consequentemente, não faça alguma coisa que, de uma forma ou de outra, possa ser chamada de ritmo musical. “A música é uma língua e pode ser aprendida como as crianças aprendem qualquer língua: ouvindo e imitando” (Shinichi Suzuki).

A música se tornou manifestação eficiente de comunicação, ora complexa ora simplória, sempre atingindo um maior número de pessoas. Hoje, o universo musical está globali-zado. Elevada ao volume máximo nos bailes, nos estádios e nas igrejas, a música também pode ser baixada na internet.

A história aponta a variada trajetória da música, que foi chegando até as nossas vidas por diversos caminhos. Está nos relatos de literatura, no circo, no teatro, na TV, no rádio, na rua. Quando o cinema ainda era silen-cioso, tocava-se piano nas salas de projeção para criar climas nos momentos cômicos e dramáticos dos filmes, ou mesmo para encobrir o burburinho da plateia. De acordo com o enredo, levava os espectadores a sentir alegria, tristeza, amor e dor. Existem músicas que foram feitas para o cinema (para acompanhar as cenas), e outras que foram colocadas em cena, embora não tenham sido compostas para este fim.

O Recine – Festival Internacional de Cinema de Arquivo –, em sua nona edição, quer falar da música feita para cinema e dos gêneros musicais que marcaram a história da cidade do Rio de Janeiro. Mais que isso, o objetivo principal do evento é levar o público a conhecer um pou-co mais da trajetória esplendorosa da música brasileira – uma linha que vai do século XVI até o início do XXI.

Pode parecer pretensão, mas vamos tocar, ainda que al-gumas vezes levemente, em todos esses pontos humanos

e geográficos que foram cruciais para a construção da música brasileira, e que refletiram na cidade do Rio de Janeiro. De um país que é do tamanho de um continente, escorrem ritmos e melodias diferenciados em cada um de seus recantos. A música caipira (do pé da fogueira às grandes audiências do rádio); a sertaneja (que veio do interior e tomou conta da cidade); o samba (a voz do morro que desceu para o asfalto); o estilo musical dance (para as pistas de dança e boates); a canção política (a música de protesto que fez a cabeça de uma geração inquieta); o funk (que transformou os salões de baile e é rejeitado pelos mais conservadores, repetindo o preconceito enfrentado pelo maxixe); o pop (o ritmo do sucesso que se originou do rock); a música nordes-tina (uma das tradições musicais mais ricas e variadas do Brasil – xote, xaxado, baião...); o tropicalismo (uma geração que virou pelo avesso a MPB) etc.

Aí está! O Brasil é um celeiro de talentos musicais. Tanto quanto o futebol, a música é também um trampolim que ajuda os mais pobres a superar as adversidades e restaurar a dignidade graças à capacidade de criar. Se as décadas anteriores tiveram maior exuberância em talento musical, comparado aos dias atuais, isso só o tempo poderá confir-mar. Seria precipitado desqualificar as tendências modernas, um gênero ou uma nova onda, venha de onde vier, tendo em vista que o passado já reservou muitas surpresas.

A aceitação e o respeito a um determinado gênero musical – da parte do público, da crítica especializada e das autoridades policiais – nem sempre são iguais. O rock teve seus problemas ligados à irreverência de toda ordem (ou desordem). Já a bossa nova seguiu tranquila, ninguém precisou correr da polícia – exceção feita aos músicos que se engajaram na luta pelas liberdades de-mocráticas suprimidas pela ditadura. Os preconceitos contra tipos de músicas são recorrentes na história. Basta lembrar que o maxixe foi uma dança excomungada no início do século XX, que o samba era tido como coisa de malandro, o funk dominado por bandidos e “cachor-ras”, e a música brega produto de consumo exclusivo de empregadas domésticas. Quase sempre são conside-rações imediatas que o próprio tempo se encarrega de destruir. Elitismo, racismo... Sentimento de horror aos pobres, aos ricos, aos analfabetos, aos intelectuais, aos aparentemente malucos e desmiolados. Fato concreto é que, se aconteceu, virou história! Por isso, nada pode ser desprezado no estudo de suas razões. Música é constante renovação. “Cada vez que alguém toca, traz ao mundo um novo som” (Daniel Barenboim).

Essas restrições somente poderão ser quebradas quando talentosos compositores aparecerem e as suas músicas, inicialmente malditas, caírem no gosto geral. Os sam-bistas suaram muito para ganhar o respeito da elite. Os tropicalistas eram tidos como alucinados, transgressores dos bons costumes. Os roqueiros do subúrbio carioca re-clamavam que não tinham acesso à patota da bossa nova.

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Luz, Câmera: a músiCa BrasiLeira

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cine

Clovis Molinari Jr.Curador do Recine

Esta turma, por sua vez, comemorava a coisa mais linda que é um novo amor ou reclamava a angústia do desamor. Todos sofriam, apesar de criativos. E saboreavam o mais doce e impetuoso instante da vida: a juventude. A música é imortal, quer dizer, vai até onde for a história.

Fato é que os estilos musicais não param de se multipli-car no Brasil, e novas tendências são inauguradas com a mesma facilidade com que se trocam discos. Um aperto de botão e pronto! Tudo parece descartável e de ocasião. Mas, nem tudo!

Se a produção musical é imensa, já não se pode mencionar com a mesma empolgação as instituições que cuidam da memória discográfica. Nas duas últimas décadas, institutos culturais, museus, arquivos e bibliotecas, embora tardia-mente, passaram a se ocupar do restauro (remasterização) dos acervos musicais guardados em suportes variados. Partituras e recortes de jornais, além de livros, também fazem parte desse conjunto de fontes para a construção da história da música. Mas ainda há muito a ser realizado em relação à preservação de nossa memória musical.

Para compensar a carência de órgãos públicos dedicados à conservação, pode-se considerar de grande magnitude a quantidade de colecionadores de discos. Jamais se po-derá ter certeza de que um disco esteja definitivamente perdido. Existe sempre a possibilidade de um coleciona-dor no lugar mais recôndito do país possuir um exemplar raro em sua coleção. Toda casa guarda uma quantidade qualquer de discos ou tem músicas armazenadas em meios digitais, inclusive o celular.

Estudos indicam que, antes de chegar às residências, os discos causaram frisson nas ruas. Na década de 1920, jornais e revistas registravam uma cena corriqueira: pessoas que se aglomeravam diariamente em frente às lojas de discos para ouvir os lançamentos da época, que incluíam tango, maxixe, marchinhas e sambas. Os mais abastados se reuniam em cafés e outros lugares públicos, principalmente no centro comercial da cidade. A prática da escuta coletiva permaneceu mesmo após a proibição, com o argumento de que o alto volume das vitrolas perturbava o sossego de comerciantes.

O passado do disco sonoro também é uma história de perdas, infelizmente. Pouco restou dos primórdios, por negligência ou fragilidade do suporte. Até mais ou menos a metade dos anos 1940, os discos eram gravados em 78 rpm (rotações por minuto). Feitos com material frágil, os riscos de trincar e quebrar são permanentes. Os discos foram fabricados com base de vidro ou alumínio, que recebia uma camada de nitrato formando uma película onde era feita a gravação. São relíquias. Nos discos de vidro utilizavam-se camadas transparentes, coloridas ou em acetato na cor preta. Os de alumínio também recebiam uma camada na cor preta. Só depois surgiria o vinil. Ainda existem coleções dos primórdios da indústria fonográfica. Os discos de 78 rpm são raros hoje, no entanto podem

ser encontrados em mãos de particulares. Também são vistos em arquivos de gravadoras, emissoras de rádio e até em novas versões remasterizadas para CD.

Mas, qual seria a verdadeira música brasileira? Se a per-gunta for feita no Nordeste, a resposta é uma. Se ecoar no Sul do país, é outra a resposta. E assim por diante. O Recine, tanto em sua mostra cinematográfica quanto nesta revista, pretende exibir fragmentos da história musical do país desde a chamada música colonial, o surgimento da indústria fonográfica nas três primeiras décadas do século XX, até os dias atuais. Parece am-bicioso tentar uma panorâmica tão vasta em um país de tantas vertentes musicais. Contudo, os artigos aqui reunidos procuram destacar os artistas que marcaram a história da música brasileira e mostrar que essa história faz parte de uma monumental obra em construção – do incrível encontro do indígena com o europeu e, em seguida, o africano. A contribuição da música sacra, os estilos europeus dos salões nobres, uma trajetória que se consolidou em realidade. Existem músicas que foram captadas no ar, não tiveram gravação e nem partitura, e ficaram armazenadas na memória de pessoas que cantarolam preciosidades, talvez sem saber que estão trazendo à tona a história de uma nação.

O leitor encontrará nesta edição artigos que se dedicam às relações entre o cinema e a música; os filmes cantan-tes; o advento do cinema sonoro no Brasil da década de 1930; a música nos filmes de Humberto Mauro; Radamés Gnattali – o criador de trilhas para o cinema brasileiro; e a influência do movimento manguebeat no cinema pernam-bucano. Sobre o panorama musical brasileiro, há a árvore genealógica do choro; os quase duzentos anos de samba; o início do registro sonoro no Brasil; música e política no Estado Novo de Vargas; Carmem Miranda; as tradições nordestinas; a MPB na TV dos anos 60; as opiniões de Torquato Neto sobre a cena musical dos anos 60; a black music brasileira; o rock dos anos 80. E também um artigo sobre a música de vanguarda produzida no Brasil, escrito por uma compositora vanguardista. Sobre os acervos, não poderíamos deixar de mostrar ao público o que se faz no Arquivo Nacional, um dos mais importantes endereços da memória nacional. Publicamos dois artigos que revelam o que há de fundos referentes ao tema música, na área de tratamento técnico de documentos sonoros e escritos. To-dos os artigos foram escritos por brilhantes pesquisadores e músicos, cujos nomes mereceriam menção aqui, mas para aumentar o suspense, recomendo que confiram o índice. E, para fechar com chave de ouro, uma entrevista, não vou deixar de citá-la: é com ninguém menos que o célebre pesquisador José Ramos Tinhorão.

O leitor está convidado a dançar com os olhos pelas páginas no ritmo da música brasileira e do Recine!

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Clara Nunes e

Clementina de Jesus

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Radialista. Doutora em Cinema pela Universidade Estadual de Campinas. Professora da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação, São Paulo.

Marcia Carvalho

A canção de cinema no Brasil

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Luz, Câmera: a músiCa BrasiLeira

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cine

O vínculo da música com o cinema no Brasil sur-giu ainda na época do cinema mudo, com sessões acompanhadas por pianistas e com os chamados filmes cantantes, nos quais cantores se posicio-navam atrás da tela para acrescentar canções nas revistas musicais e operetas filmadas. A partir destas pioneiras experiências artesanais, com uma investigação cuidadosa da história do cinema bra-sileiro, podem-se mapear períodos e tendências na articulação entre música e cinema, principalmente pelo viés das transformações da linguagem audio-visual impulsionadas pelas inovações tecnológicas que ampliaram diferentes conjunturas de produção.

No Brasil, desde as primeiras tentativas de sincro-nização realizadas em 1902, a música, erudita ou popular, instiga práticas, técnicas, modelos e para-digmas estéticos para o som no cinema. Pensando nisso, realizei um estudo panorâmico1 sobre a importância da canção na história do cinema brasi-leiro, percorrendo períodos em que a música ganha importância dentro da configuração da linguagem audiovisual a fim de investigar convenções e novas experimentações, selecionando alguns filmes exem-plares para desenvolver um mergulho histórico nos diálogos entre música e cinema.

Sabe-se que a história da música popular brasileira é traçada por muitos compositores talentosos e criativos, intérpretes e instrumentistas que, com seus vários ritmos, gêneros e performances, vêm divulgando a diversidade cultural brasileira através da canção e suas múltiplas sonoridades, como o samba (com sua imensa variedade), o baião e outros gêneros nordestinos, os movimentos e tendências

como a bossa nova, a Tropicália, ou, mais recen-temente, o manguebeat, entre outros.

Além disso, o canto sempre foi uma dimensão potencializada da fala e do corpo, desde as decla-rações lírico-amorosas dos seresteiros até o teatro musicado. No entanto, a canção brasileira, na forma que conhecemos hoje, surgiu no século XX com a incontestável evolução da nova tecnologia de re-gistro sonoro. O compositor popular desenvolveu várias habilidades na confecção de canções, desde letras concisas, andamento dinâmico e melodias simples facilmente memorizadas. Segundo Luiz Tatit,2 os cancionistas firmaram-se de vez na década de 1930, com força entoativa que revelava a voz do malandro, do romântico ou do folião, todas propagadas pela difusão das ondas radiofônicas.

São conhecidas as brigas dos fãs do cinema mudo e a ojeriza dos críticos em relação ao cinema falado no final da década de 1920, diante das primeiras experiências com o Vitaphone, o Fox Movietone e outros sistemas de gravação de som para cinema. Entretanto, a experiência de se trabalhar a mú-sica de cena já possuía convenções e despertava interesse com o teatro de revista, que no Brasil representava uma grande quantidade de números musicais. Vários compositores populares fizeram teatro de revista, como Sinhô (José Barbosa da Silva), Ary Barroso, Lamartine Babo, Braguinha (João de Barro) ou Custódio Mesquita. Com este tipo de espetáculo, que utilizava, principalmente, crítica social através do entrelaçamento de canções e situações cômicas, formou-se a base das conven-ções do filme musical brasileiro, dos programas

1 CARVALHO, Marcia. A canção popular na história do cinema brasileiro. Tese (Doutorado em Cinema) – Universidade Estadual de Campinas, 2009.2 TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. p. 75-76.

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A cAnção de cinemA no BrAsil

humorísticos do rádio de maior sucesso e talvez da música aplicada na programação televisiva.

Nesse sentido, pode-se questionar a incorporação e o diálogo com certos movimentos musicais, com-positores e intérpretes na composição audiovisual do cinema brasileiro desde a fase da música utilizada como acompanhamento musical no cinema mudo, seja ela ao vivo ou executada com cilindros e discos, quando o cinema passava a ser incluído, ao lado do circo e do teatro de revista, como espetáculo nos cafés-cantantes e chopes berrantes, entre outras ca-sas de diversão. Seguindo a consolidação das relações da música de cinema com a indústria fonográfica e os veículos de comunicação, com a hegemonia do rádio nos anos 30 e da televisão nos anos 60, até as trilhas musicais de filmes atuais, levando em conta a diversidade de estilos, técnicas e poéticas ao longo da história da canção popular brasileira.

Perseguir a canção no cinema é também falar sobre as marcas da oralidade na produção musical aplicada à produção audiovisual. Assim, minha lei-tura global concentra-se no surgimento da canção popular e se estende por suas triagens e misturas, que marcam suas transformações na historiografia. Rumo ao cinema, desde seus primeiros sons, a canção rouba espaço dentro e fora das telas.

Uma história da canção popular no cinema brasileiro

A música foi fundamental para o sucesso dos fil-mes desde 1908, quando a canção ainda seguia as influências europeias, principalmente a francesa, e aprendia a lidar com a novidade do disco. As várias experiências com os filmes falantes e cantantes des-bravaram novas relações do público com a canção, erudita ou popular, e a nascente apreciação de sua inclusão no espetáculo cinematográfico.

A música popular no cinema brasileiro participou ativamente da consolidação do cinema sonoro, articu-lando a evolução da radiofonia e da indústria do disco, particularmente com a canção popular, na produção de filmes musicais desde as primeiras experiências de Luiz de Barros, Paulo Benedetti ou o sucesso do musical Coisas nossas, em 1931, comandado pelo empresário norte-americano Wallace Downey, que chegou a São Paulo em 1928 para trabalhar como diretor artístico da Columbia Discos e se tornou um personagem importante na criação da indústria do rádio e do disco. Vale lembrar também a marcante contribuição de Braguinha (que foi diretor artístico da gravadora Continental) na realização do roteiro, escolha e composição de canções, e a construção da Cinédia no Rio de Janeiro, de Adhemar Gonzaga, companhia produtora fundamental para o impulso dos musicais carnavalescos que levavam o público para as salas de cinema, até a criação da Atlântida.

Parcialmente modelado a partir dos musicais norte-americanos, o filme musical brasileiro tem raízes no teatro de revista e no rádio brasileiro, com suas particularidades na vinculação da música popular. O “alô, alô” das ondas do rádio se estendem para as telas, assim como as canções passam a integrar os roteiros e filmes. De fato, não é a música ao vivo ou o gramofone que marcam a configuração da trilha musical do cinema brasileiro, e sim a lin-guagem radiofônica, que articula voz e música em inúmeras combinações sonoras a partir do trabalho de sonoplastia e da consolidação da música popular como principal ingrediente para a programação.

Além disso, trata-se do período da emergência social do samba, e com ele de seus personagens, grupos

Na flauta: Barbosa Jr., um dos atores mais populares de

sua geração, participou de musicais da Cinédia de grande sucesso nos anos 30,

como Alô, alô Carnaval e Banana da terra

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carnavalescos, escolas dos morros, favelas. Dado que, entre 1917 e 1928, a música popular vive uma modernização com a formação de novos gêneros musicais, com o advento do samba e da marchinha, iniciando o ciclo da canção carnavalesca que ganha força com a gravação elétrica do som e inúmeros desdobramentos na constituição do cinema so-noro no Brasil. O encontro dos sambistas com o gramofone mudou a história da música brasileira, cristalizando o que conhecemos hoje com a nome-ação de canção popular. Daí em diante, a canção popular tornou-se uma manifestação cultural ligada diretamente ao desenvolvimento da indústria do entretenimento, obrigando a toda pesquisa sobre canção levar em conta suas transformações diante da produção fonográfica e da indústria cultural, investigando seus contextos histórico-sociais e seus processos de produção e consumo divulgados pelos novos meios de comunicação de massa.

O período de 1929 a 1945 é historicamente chamado de “Época de Ouro”, em que se profissionaliza a renovação musical iniciada no período anterior. Na década de 1930, a canção popular invade o rádio e ganha notoriedade no cinema falado, sendo o princi-pal elemento das comédias musicais. Comédias estas que agradavam o público, mas nunca a crítica, que as qualificava como “abacaxis”, isto é, de baixa qualidade narrativa e técnica, sem notar como estes mesmos filmes comentam a cultura dos anos 30, transpirando paradoxos da identidade nacional subdesenvolvida, numa tentativa de se criar uma indústria do cinema brasileiro, sonho de diferentes companhias produto-ras que apostaram no diálogo estreito entre canção popular e cinema, com “compositores-roteiristas”, “cantores-atores”, “diretores-cancionistas”.

As comédias musicais e as chanchadas marcam de-finitivamente a atenção dos estudos sobre o diálogo entre música e cinema no Brasil, com seus sambas, canções de sucesso do rádio, paródias, piadas e sátiras sociais. Cronologicamente, a comédia musical brasileira possui três períodos. O primeiro, de 1933 a 1945, foi concentrado nas realizações da produtora Cinédia, comandada por Adhemar Gonzaga e Luiz de Barros, e apresenta como maior destaque o predomínio dos números musicais sobre o enredo, como Alô, alô Car-naval (1936), entre outros filmes que traziam o registro de muitos intérpretes da música popular. Característica

que coloca a trilha sonora, em particular a música e a palavra, preponderante à imagem, ainda mais devido aos evidentes, e bastante criticados, poucos recursos de direção cinematográfica e acabamento técnico, da captação das imagens à montagem final.

O segundo período, de 1945 a 1958, representa o apogeu do gênero, em particular com as realizações da produtora Atlântida, consagrando o rótulo “chan-chada”. Os números musicais eram comandados por cantores contratados pela Rádio Nacional, emissora que vivia o seu auge, com a participação de Emilinha Borba ou Marlene, por exemplo, e com a revitaliza-ção do gênero comandado por três diretores: Watson Macedo, José Carlos Burle e Carlos Manga. Macedo foi o diretor que estruturou a nova fórmula para a comédia musical ao costurar números cômicos e musicais ao longo do filme, tal como Carnaval no fogo (1949). José Carlos Burle inseriu o drama na chanchada, ajustando certos recursos do melodrama e da crítica social em filmes como Carnaval Atlântida (1952) ou Quem roubou o meu samba? (1958). Já Carlos Manga foi responsável pelos maiores sucessos da companhia produtora, como De vento em popa (1957) e O homem do Sputnik (1959).

O terceiro período aglutina os últimos filmes dos anos 1960, com a entrada de outras produtoras

Cill Farney e Oscarito contracenam em De vento em popa (1957), de Carlos Manga

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cinematográficas, como a Cinedistri e a Herbert Richers, que não tiveram o mesmo brilho das ante-riores. Neste período, os números musicais perdem espaço para os comediantes, como Zé Trindade e Dercy Gonçalves, em filmes como Marido de mulher boa (1960), entre outros.

Na música de 1946 a 1957, há a consolidação do samba de fossa e o declínio do carnaval, funcionan-do como uma espécie de ponte entre a tradição e a modernidade, lançada pela bossa nova em 1958 e seguida pela Tropicália, que logo iria explodir e marcar um novo período de 1968 a 1972.

Já no cinema, o estilo moderno se configura de maneira oposta à imitação e submissão aos códigos consagrados do uso da música climática e orques-tral seguidos no período, por exemplo, pela Vera Cruz. Tendências de produção como do Cinema Novo e Marginal vêm agitar as regras e modelos de se fazer cinema, apostando também nas dife-rentes articulações entre som e imagem ao deglutir antropofagicamente várias referências, influências e sincretismos culturais durante o avanço dos anos 60 e 70. Vale ressaltar que, antes do Cinema Novo, a trilha musical no cinema brasileiro seguia, de uma maneira geral, padrões clássicos, com o predomínio do uso de números musicais, principalmente nas comédias, e da música orquestral climática, com composições de temas dramáticos de maestros como Lírio Panicalli e Gabriel Migliori, entre outros.

Nesse sentido, para abordar o Cinema Novo é preciso trabalhar com a textura audiovisual dos filmes que marcam um estilo de se fazer cinema, assumindo uma forte recusa ao cinema industrial estrangeiro, como uma versão brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica na criação cinematográfica, em busca de uma nova linguagem capaz de exprimir uma visão crítica da experiência social brasileira.

O som no cinema também ganha nova desenvoltu-ra com os equipamentos de captação. A voz e a fala popular passam a chamar a atenção na produção de documentários, como Arraial do Cabo (1959), Aruanda (1960), e em Maioria absoluta e Integração racial, ambos de 1963, considerados os primeiros filmes efetivamente “diretos”.

Em época de pujança cultural, a década de 1960 tem suas canções promovidas pela televisão, nos seus vários programas musicais e festivais, com espaço para divulgar a bossa nova, a Jovem Guarda, a canção de protesto e o Tropicalismo, ampliando definitivamente a atuação do trinômio gravadora-rádio-televisão. Para as trilhas do cinema, a canção ganha força como representante da música engaja-da, com a escolha de letras que traziam algum tipo de reflexão sobre política e sociedade.

Glauber Rocha, por exemplo, atribui à música de seus filmes uma importância pouco usual, como em Deus e o diabo na terra do sol (1964), em que articula em um só texto o messianismo religioso e o cangaço no nordes-te, a partir da narrativa e do uso de uma trilha musical que interfere e atua na construção de sentido do filme ao misturar canções de cordel com a música de Villa-Lobos. Ou em Terra em transe (1967), com as músicas de Villa-Lobos, Giuseppe Verdi e Carlos Gomes, que são alternadas com umbanda, samba, carnaval, jazz e bossa nova, cantaroladas por Gal Costa.

Desde 1964, o cinema brasileiro procura respostas sobre os acontecimentos políticos e o golpe militar com um conjunto de filmes muito particulares, varie-dade de estilos e inspirações. Um dos mais instigantes filmes testemunhos desta época é O desafio (1965), de Paulo César Saraceni, com um raro trato e docu-mentação da MPB de protesto vigente. Neste filme, podem-se ver e ouvir trechos do show Opinião, com texto de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, e músicas de Zé Ketti e João do Vale. O show Opinião foi um espetáculo que reunia música e teatro, sendo considerado a primeira manifestação artística de peso após o golpe de 1964. Estranho para os dias de hoje, o engajamento político deste show foi sucesso de bilheteria. E no filme, é Maria Bethânia quem canta o número mais célebre, a canção Carcará, de João do Vale, deixando explodir o texto poético verbal, escancarado pela dramaticidade de sua inter-pretação e performance, que dá às palavras uma força estranha tanto no canto como na parte declamatória.

Na virada para os anos 1970, principalmente percorrendo a produção do chamado Cinema Marginal, nota-se que a figura do compositor de música para cinema praticamente desaparece, e o uso de seleção musical com canções já existentes

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se torna prática recorrente, quase sempre assinada pelos próprios diretores, como Rogério Sganzerla ou Carlos Reichenbach, entre outros. Essa ten-dência ao uso de trilhas adaptadas, com canções já existentes, pode ser justificada pela falta de re-cursos financeiros, o que levou muitos diretores a providenciar eles mesmos as músicas e os efeitos sonoros de seus filmes. Mas também, para o debate estético, representa a cristalização da prática da colagem, que pregava o uso intertextual de músicas orquestrais e canções populares, recursos de sono-plastia que dialogavam com a linguagem do rádio e da televisão, misturando sons, ruídos e silêncios, abandonando definitivamente a forma tradicional de associar som e imagem para o cinema narrativo.

Um filme marginal que merece destaque é O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, em que o diretor assina a sonoplastia do filme junto com Edmar Agostinho, sonoplasta com passagem pela Rádio Cacique de São Caetano e pela Rádio Clube de Santo André, e na Gravodisc, que tinha seu estúdio na rua General Osório, na Boca do Lixo. A trilha musical é utilizada como uma espécie de intervenção sonora, ou seja, o destaque fica para a atitude de recortar e mixar vários trechos curtos de música erudita de Beethoven e Carlos Gomes, música brega hispano-americana, músicas de ritual afro-brasileiro, músicas de outros filmes, rock, além de música popular brasileira, como Asa branca, de Luiz Gonzaga.

Assim, pode-se afirmar que a Tropicália invade o cinema não apenas com a inserção de suas canções

nas trilhas musicais dos filmes, mas também como postura estética, cristalizada nos modos de se usar a música pré-existente, seja ela erudita, popular ou pop, quase sempre com uma intenção de comentá-rio ou crítica, que agrupam filmes como O bandido da luz vermelha ou Macunaíma (1969), dirigido por Joaquim Pedro de Andrade.

Em Macunaíma nota-se o trabalho de colagens musi-cais com a picardia e a malandragem das chanchadas, numa atitude tropicalista que demonstra ruptura com o modelo dominante de música de cinema. A trilha musical é composta por hinos, marchinhas, iê-iê-iê, samba-canção, xaxado e música de concerto, misturando Villa-Lobos, Borodin e Johann Strauss com Jorge Ben, Francisco Alves, Roberto Carlos, Dalva de Oliveira, Luiz Gonzaga e Jards Macalé.

Em contrapartida, não se pode esquecer a parti-cipação das canções de Roberto Carlos nas telas do cinema, dentro e fora da produção do Cinema Novo. Com a inspiração clara do novo estilo musi-cal internacionalizado pelos Beatles e pelo impacto do filme Os reis do iê-iê-iê (A hard day´s night, 1966), a Jovem Guarda e, em especial, Roberto Carlos se envolvem em algumas aventuras cinematográficas que destacam as suas canções na trilha musical, dentro e fora da narrativa. E Roberto Carlos não protagoniza os filmes apenas para cantar, ele tam-bém pilota carros, helicópteros e até um foguete em Na onda do iê-iê-iê (1966), de Aurélio Teixeira, Roberto Carlos em ritmo de aventura (1967), Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa (1968) e Roberto Carlos a 300 Km por hora (1971), sob a direção de Roberto Farias.

Já nos anos 1980, a música que circula nas mídias é a música romântica brega, principalmente a sertaneja, que ao lado do rock convive com a nova exploração de sonoridades eletrônicas. Estes usos de novos ins-trumentos eletrônicos instigam um debate sobre a técnica e a tecnologia na música e no cinema no Brasil, caracterizando um predominante elogio dos técnicos na criação musical e na consolidação do processo da produção cinematográfica, em detrimento de propos-tas ou debates estéticos, que se estendem nos anos 80 e 90. No cinema, há uma proliferação do uso de sintetizadores, como nos filmes Onda nova (1983), de José Antônio Garcia e Ícaro Martins, com trilha de Luís Lopes; Anjos da noite (1986), de Wilson Barros,

Inezita Barroso e Zé Trindade promovem o filme É proibido beijar (1954), produção dos estúdios Vera Cruz

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com música original de Sérvulo Augusto, e Feliz ano velho (1988), de Roberto Gervitz, com composição e programação de Luiz Xavier.

Entre as novas tendências musicais da década de 1980, a música alternativa paulista aparece em fil-mes como Cidade oculta (1986), de Chico Botelho, com a participação de Arrigo Barnabé no roteiro, elenco e música. Este filme é representativo dentro da produção da década, e mistura números musi-cais com narrativa policial, inspirada no imaginário das histórias em quadrinhos, a partir de elementos transtextuais provenientes dos gêneros do cinema noir e do musical hollywoodiano.

A música sertaneja, sempre presente na história do cinema, como no primeiro longa-metragem sonoriza-do no Brasil, Acabaram-se os otários (1929), de Luiz de Barros, em que Paraguassu (ou Paraguaçu) cantou o samba sertanejo Triste caboclo, também marca presença na década com sua variedade de estilos, que são de-nominados como música caipira e música sertaneja urbana ou pop. No cinema, um exemplo contundente é a história da dupla Milionário e José Rico, retratada em Estrada da vida (1980), de Nelson Pereira dos Santos. Além da sonoridade pop, a dupla escolhida é representativa dos novos rumos tomados pela música sertaneja nos anos 70, que passa a se proliferar nos grandes centros urbanos com novo figurino, nova temática e instrumentação das canções, caracterís-ticas modeladas pela influência norte-americana, as vestimentas do cowboy e a música country.

Em contrapartida, André Klotzel, que foi assistente de direção de Nelson Pereira dos Santos em Estrada da vida, filmou seu longa-metragem de estreia A marvada carne (1985), comédia inspirada nos costumes da roça, adaptação de uma peça de Carlos Alberto Soffredini, com volta ao estilo do filme rural por meio de perso-nagens e diálogos cômicos que buscam construir a ingenuidade e a sapiência dos moradores do campo, com trilha musical assinada por Rogério Duprat e Passoca (Marco Antônio Vilalba), que conta com a presença e o canto de Tonico e Tinoco.

Do mesmo modo, o rock brasileiro dos anos 80 invade as telas do cinema com Menino do Rio (1981), de Antônio Calmon, com a participação do cantor-ator Evandro Mesquita, vocalista do conjunto Blitz;

e Bete Balanço (1984), com direção de Lael Rodri-gues, filme que conta a estória de uma adolescente (Deborah Bloch) que deixa seus estudos e a pacata Governador Valadares para cavar um espaço entre os astros da música, tal como a banda de rock dos anos 80 Barão Vermelho, ainda com Cazuza nos vocais, que foi responsável pela canção-tema. Ou ainda, Rock estrela (1985), também de Lael Rodri-gues, tendo a participação de Leo Jaime, autor da canção-título, e Areias escaldantes (1985), dirigido por Francisco de Paula, trazendo seleção musical de Lobão, com canções de Ultraje a Rigor, Ira, Titãs, Capital Inicial, Metrô, entre outros.

Já na década de 1990, a canção no filme ganha no-vamente a atenção do público e da crítica de cinema, invadindo inúmeras comédias que representam a tendência de produção atrelada à televisão, o início da forte produção da Globo Filmes, com destaque para o pioneiro Pequeno dicionário amoroso (1996), de Sandra Werneck. Entretanto, para o debate estético sobre música e cinema, evidencia-se a interessante presença do movimento musical manguebeat no cinema, com a marcante canção Sangue de bairro, de Chico Science, em Baile perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas.

Nos anos 2000, as canções se expandem no cinema narrativo e na produção de documentários que apresentam um claro diálogo com a música. São exemplos documentários que elegem personagens da produção musical brasileira, entre eles: Nelson Freire (2003), dirigido por João Moreira Salles, que privilegia o plano-sequência para escancarar a sensibilidade do pianista; Paulinho da Viola: meu tempo é hoje (2003), com direção de Izabel Jaguaribe; Vinicius (2005), de Miguel Faria Jr., entre outros mais recentes, como Simonal: ninguém sabe o duro que dei (2008), de Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, que busca desmontar o mito do rei do pop Wilson

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Simonal; e Lóki: Arnaldo Baptista (2009), de Paulo Hen-rique Fontenelle, diretor de programas do Canal Brasil.

Os personagens da história da música ganham também cinebiografias ficcionais, como a narrativa estranha-mente bem comportada sobre Cazuza, cancionista roqueiro de trajetória íntima repleta de temas polêmi-cos, como homossexualidade e promiscuidade, uso de drogas e sofrimento com os desdobramentos causa-dos pela contração da Aids, em Cazuza: o tempo não para (2004), direção de Sandra Werneck e Walter Carvalho, com as canções de Cazuza sendo interpretadas pelo ator Daniel de Oliveira; e o filme Noel: o poeta da Vila (2006), dirigido por Ricardo Van Steen, com roteiro inspirado no livro Noel Rosa, de João Máximo e Carlos Didier, que conta a vida de Noel Rosa a partir de suas canções e resgata o samba carioca dos anos 20 e 30.

Aliás, o emprego da canção para a construção sonora de uma época se mostra como forte tendência na trilha musical dos anos 2000, colocando em destaque a aplicação prática das técnicas de pesquisa musical e a elaboração de paisagens sonoras. Com esta concep-ção, destaca-se o filme Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, que utiliza as canções Se você jurar, de Ismael Silva e Francisco Alves, Fita amarela, de Noel Rosa, ou Ao romper da aurora, de Silva, Alves e Lamartine Babo, para reconstituir a sonoridade da Lapa, no Rio de Janeiro do final dos anos 30. E Durval Discos (2002), de Anna Muylaert, em que as canções do re-pertório do personagem principal (interpretado por Ary França), proprietário de uma loja de discos de vitrola, compostas e gravadas entre os anos de 1969 e 1975, no refluxo dos “anos de chumbo” do governo Médici (1969-1974), foram escolhidas para caracte-rizar a identidade do personagem que vive em exílio no bairro de Pinheiros, em São Paulo, nos anos 90.

A revisão histórica da importância da canção no ci-nema brasileiro é uma investigação bastante ampla e instigante. Este texto apresenta sinteticamente, e em termos particulares, algumas questões e exemplos de filmes que são desenvolvidos em minha tese de dou-

3 Ver também: AUTRAN, Arthur. Panorama da historiografia do cinema brasileiro. Alceu: Revista de Comunicação, Cultura e Política, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 17-30, jan./jun. 2007; FREIRE, Rafael de Luna (Org.). Nas trilhas do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Tela Brasilis/Cinemúsica, 2009; COSTA, Fernando Morais da. O som no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008; NAPOLITANO, Marcos e WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira. Revista Brasileira de História, Anpuh/Humanitas/Fapesp, São Paulo, v. 20, n. 39, p. 167-190, 2000.

O ex-Mutante Arnaldo Baptista é o tema do documentário Lóki – Arnaldo Baptista, de Paulo Henrique Fontenelle

Domingos de Oliveira dirige Wilson Simonal na filmagem de É Simonal (1970). O falecido cantor voltaria às telas de cinema em 2009 no documentário Simonal: ninguém sabe o duro que dei

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torado. Entretanto, o intuito deste artigo é ampliar o debate estético sobre o relacionamento entre música e cinema, que precede o próprio advento da sonori-zação dos filmes, colocando em foco o casamento da melodia e letra na codificação da representação narrativa, documental ou experimental do cinema.

Assim, este breve panorama sobre a trajetória da canção na história do cinema brasileiro poderá servir como referência importante para futuras análises acerca da importância particular da presença de uma canção em um filme. Em especial, se levarmos em conta que a canção não deve ser utilizada apenas como um fundo musical que acompanha as imagens visuais limitando-se a reforçar uma fala ou uma situação nar-rativa, mas sim que a canção, com seu discurso musical e poética verbal, pode comentar, descrever, interferir ou contrapor as diferentes situações representativas.

Afinal de contas, o canto articulado à imagem no cinema é um ato de comunicação. E toda música cantada impulsiona ritmos e gestos, emociona, intelectualiza ou sacode a reflexão e a sensibilida-de. Sem regras fixas, a confluência entre a voz, a palavra e a música no cinema deve ser trabalhada de maneira expressiva, desafiando os nossos sentidos e promovendo diferentes conversas audiovisuais.3

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Filmagem na praia do Arpoador de Barcarola (1908), de Júlio Ferrez

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Caulos. Correio da Manhã, 1971

Compositor de trilhas sonoras e sound designer. Mestre em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.Arnaldo di Pace

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Ambulantes e ‘falantes’

O espetáculo cinematográfico com som ‘sincroni-zado’ chegou ao Brasil no mesmo momento que o cinema ‘silencioso’, pelas mãos dos exibidores ambulantes que percorriam as zonas mais acessíveis e rentáveis do país. São Paulo (27/1/1897, Kij & Joseph), São Luís do Maranhão, Fortaleza, Manaus, Belém, Salvador, Recife, Rio de Janeiro, Curitiba e Porto Alegre, em cada cidade importante as crôni-cas registram a passagem de um ou vários destes exibidores ambulantes que apresentavam entre suas atrações alguns filmes falantes,1 usando combinações artesanais de projetores e fonógrafos. Seguramente, os moradores de muitas cidades pequenas e vilarejos – que as crônicas não registram – também foram surpreendidos pelas imagens móveis... e falantes.

Mas a avalanche de filmes ‘falantes’ se registra com maior intensidade em 1904. E não é casualidade: estes filmes falantes provinham, majoritariamente, das companhias francesas Pathé Frères e Gaumont (também as principais fornecedoras de filmes ‘si-lenciosos’), que já por volta de 1902 conseguiram desenvolver sistemas confiáveis de sincronização projetor-fonógrafo e, consequentemente, começa-ram uma produção regular de filmes sonoros, que apresentavam conhecidos cantores e atores da época.

Coletando dados avulsos (e até contraditórios), podemos reconstruir quais foram estes primeiros hits do cinema sonoro: Bonsoir Madame la Lune, Selon la saison e La femme est un jouet, todos cantados por Emile Mercadier,2 e o monólogo Conversação telefônica (Au telephone), por Félix Galipaux;3 todos esses filmes (exibidos por Edouard Hervet) eram o melhor e o mais recente da produção de scènes ciné-phonographiques da Pathé. A empresa Candburg apresentava no Rio (novembro de 1905) Berceuse e La fiacre, cantados por Yvette Guilbert,4 A mosca e Cansam as virgens, por Mr. Galipaux, além de outros já conhecidos. Em agosto de 1907, a ária Rachel, quand du seigneur (da ópera La juive, de Halevy), cantada por Gauthier, artista da Ópera de Paris, se adiciona a estes catálogos.

Já nessa época do ano 1907, o espetáculo cine-matográfico no Rio de Janeiro passa das tendas de feiras ambulantes para as salas especialmente construídas no centro da cidade – nos arredores da recém-inaugurada avenida Central –, de tamanho e conforto inéditos. Como a cidade, o negócio do cinema se estabiliza, expande e refina.

À vista do sucesso obtido pelos ‘filmes falantes’, William Auler5 – iniciante nos negócios do cinema

1 Ou falhantes, ou fallantes, segundo as diversas escritas da época.2 Emile Mercadier (França, 1860-1929), célebre cantor dos mais famosos music hall franceses, gravaria Bonsoir... para a companhia Victor, no ano seguinte (Encyclopedic discography of Victor Recordings).3 Félix Galipaux (França, 1860-1931), popular comediante que inaugurou a moda dos monólogos cênicos; apareceria em vários filmes de Méliès e Zecca. Curiosamente, a filmografia oficial Pathé dá a estreia mundial de Au telephone como sendo no “Cinematógrafo Lu-mière, Teatro Apolo, Rio de Janeiro, 13/5/1905”.4 Outra celebérrima figura do music hall francês, várias vezes pintada por Toulouse-Lautrec em seus famosos affiches para o Moulin Rouge.5 William (Cristóvão Guilherme) Auler nasceu em Petrópolis, em 1865. Após voltar dos EUA, fornece cadeiras para teatros. Em 1907, instala seu próprio cinema na rua Visconde de Rio Branco, 28. Com mais de setecentos lugares, seria palco dos grandes sucessos dos filmes cantantes até 1911. Hernani Heffner. Verbete Auler, em RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe (Orgs.). Enciclopédia do cinema brasileiro. 2. ed. São Paulo: Senac, 2004.

Augusto Bandeira. Correio da Manhã, 1965

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Ópera, valsa, maxixe

– anuncia, no dia de abertura do seu Grande Cinematógrafo Rio Branco (24/11/1907), trechos de óperas fa-mosas cantadas pelos mais célebres artistas europeus; a primeira fita falante a ser exibida é uma ária cantada pelo fa-moso tenor Tamagno. No ano seguinte, Auler se converteria no maior produtor e exibidor dos filmes cantantes no Rio de Janeiro.

Pouco depois, o Cinema Palace (rua do Ouvidor, 149), da companhia Labanca & Leal, apresentava “pela primeira vez, a 27 de janeiro, o Chronophone Gau-mont”,6 o mais bem-sucedido de todos os sistemas de som sobre disco para o cinema. É provável que os filmes apresentados nessa oportunidade fossem algu-mas das phonoscènes Gaumont. Outra sala apresentava, em 1º de maio de 1908, uma programação de cinco fitas, das quais três eram “fallantes e com ruídos”.7 Em junho, a mesma sala estreava “Risadas de negro – Ultima creação cómica synchronica de Gaumont; o maior sucesso do cinematographo combinado”.8

O sucesso de público gerou tal demanda de filmes sonoros que a importação de produtos franceses não conseguiu cobrir. Isto incentivou a produção local; mas a tecnologia necessária não estava disponível: foi preciso recorrer a muita imaginação e ousadia.

Chegam os Cantantes

Em 3 de julho de 1908, se anuncia como grande atra-ção a estreia de “Paris à la fenêtre. Fita falante. O maior sucesso de Cinematographo Rio Branco”.9 Embora o citasse como “Parait à la fenêtre”, o Guia de filmes produzidos no Brasil entre 1897-1910 (Rio de Janeiro: Embrafilme, 1984) especifica que este filme era canta-

do ao vivo pelo barítono Antonio Catal-di.10 Não é claro se foi produzido pela mesma companhia proprietária da sala (a de Auler), ou se foi uma adaptação local de um filme original importado.

Seja como for, Paris à la fenêtre (ou Parait à la fenêtre) é o primeiro de uma grande

quantidade de filmes que – embora com características diversas – formaram esse corpus

que os historiadores da cinematografia brasileira catalogaram como filmes cantantes, com o traço comum de terem sido cantados ou falados ao vivo, por detrás da tela, numa espécie de antecipado e revertido lip-sync.

Feitos na hora

Assim como há duvidas sobre a origem de Paris à la fenêtre, vários outros filmes cantantes estreados nesses dias podem ter sido importados e dublados por artistas locais. Segundo Melo Souza, “A passagem segura [à produção local] foi feita por Il Guarany: canção do aven-tureiro, exibida em 24/8/1908, anunciada como ‘fita falante tirada expressamente para o Cinematógrafo Rio Branco’, cantada pelo barítono Antonio Cataldi”.11

Uma semana depois, na mesma sala, estreava Bar-carola (da ópera Contos de Hoffmann, de Offenbach), “tirado do natural em Copacabana, no Arpoador” por Júlio Ferrez.12

O sucesso destes filmes foi imediato: o Cinema Pa-lace exibiu, em 1908, 13 falantes novos de produção Gaumont, que podem ter sido exibidos com sua gravação sobre disco original ou dublados ao vivo por artistas locais.13 Entre os títulos encontramos Magali-Mireille (o dueto Chanson de Magali, da ópera Mireille, de Gounod, filmada por Alice Guy em

6 COSTA, Fernando Morais da. O som no cinema brasileiro: revisão de uma importância indeferida. Tese (Doutorado em Comunicação) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. p. 38.7 Anúncio do Cinematographo Brasil, Praça Tiradentes 1, Jornal do Brasil, 1º/5/1908.8 Jornal do Brasil, 23/6/1908. Pode tratar-se da phonoscène La rire du nègre (Alice Guy, 1905), ou de seu remake filmado na filial londrinense da Gaumont, com o nome de The laughing nigger (Arthur Gilbert, 1908).9 Jornal do Brasil, 3/7/1908.10 COSTA, Fernando Morais da, op. cit., p. 41. Em 12/3/1909, um filme com o mesmo título, exibido no mesmo cinema, foi anun-ciado no Jornal do Brasil com uma referência à Gaumont. CINEMATECA BRASILEIRA. Filmografia brasileira. São Paulo: Cinemateca Brasileira/Secretaria do Audiovisual/Ministério da Cultura. Disponível em: <http://www.cinemateca.gov.br>.11 MELO SOUZA, José Inácio de. Imagens do passado: São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema. São Paulo: Senac, 2003. p. 264.12 Cinemateca Brasileira.13 MELO SOUZA, José Inácio de, op. cit., p. 260.

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Francisco Serrador. O empresário espanhol produzia filmes e era proprietário de salas de

cinema nas principais cidades brasileiras

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14 Alice Guy (Paris, 1873 – Nova Jersey, 1968), considerada a primeira mulher a assumir o papel de diretora de cinema, foi a main droite de Gaumont, e dirigiu mais de cem phonoscènes.15 Melo Souza, José Inácio de, op. cit., p. 268.

1906),14 Le cor (possivelmente um solo instrumen-tal), Parait à la fenêtre (outra vez, originando mais confusões), Mignon (Je suis Titania, ária da ópera de Ambroise Thomas, filmada por Guy) e Fausto (Guy filmou vários números desta ópera).

Por sua vez, o Cinematógrafo Rio Branco apre-sentou 16 falantes – todos produções próprias –, entre eles A Tosca, Carmen (cantada por Cataldi), trio de Boccaccio (da opereta de Franz von Suppé, cantada por Cataldi, Santucci e Leonardo), Otelo (provavelmente o Credo), A Marselhesa (cantada por Cataldi) e Herodíade (da ópera de Massenet).

Como se percebe, o Cinema Palace exibiu principal-mente produções da Gaumont (tanto seja nas versões completamente tecnológicas, como nas dubladas ao vivo), e o Rio Branco, produções próprias feitas com uma equipe de trabalho bastante estável, na qual o cinegrafista Júlio Ferrez tinha função importante.

A presença de uma quantidade majoritária de trechos de ópera, operetas e músicas que não são comumente consideradas populares, não é, contudo, estranha. Ao que parece, uma tendência ‘internacionalista’ teria sido predominante nos gostos das classes abastadas que assistiam às estreias de filmes nas salas principais. Mas esta tendência também era a predominante nas classes médias e altas de todas as grandes metrópoles,

e não só para o cinema: por exemplo, no mundo todo, a indústria fonográfica tinha um dos seus pilares neste mesmo repertório. Outros pontos fortes desta indústria eram as músicas tocadas por bandas de tipo militar (consideradas muito fonogênicas) e as rotinas de comédia faladas; as músicas populares entravam bem atrás nesta lista de preferências.

Desenvolvimento e apogeu

Os filmes cantantes se instalaram como parte indi-visível do espetáculo cinematográfico. No Cinema-tógrafo Rio Branco “a programação compunha-se, em geral, de seis ou sete filmes da Pathé e um falante Gaumont ou um cantante de produção própria”.15

O sucesso destes filmes desatou uma ‘febre’ pro-dutiva que incluiu peculiaridades tipicamente capi-talistas: produção em massa, processos industriais, divisão e especialização do trabalho, guerra co-mercial, espionagem industrial, plágios, star system, recrutamento (e roubo) de talentos, oligopólios, negócios ‘brancos’ disfarçando outros ilícitos etc.

Impulsionada pelos sucessos iniciais, a produção de filmes cantantes se incrementa em 1909 e assume características diversas: os filmes começam a supe-rar a duração de uma ária ou canção para tornarem-se verdadeiros longas-metragens, com várias cenas

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Primeiro aniversário do Cinematógrafo Rio Branco. Desenho publicado na revista infantil O Tico-Tico, em novembro de 1908

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Ópera, valsa, maxixe

e muitos cantores/atores. O que não mudou foi a tendência a encenar repertório majoritariamente ‘internacional’, como a opereta em três atos A viúva alegre (sobre a conhecida peça de Franz Lehar, pro-duzida por Photo-Cinematographia Brasileira, de Labanca, Leal & Cia.), com grande elenco, estreada no Palace a 22 de julho, com completo sucesso.

Mas, a versão da Viúva que constituiria o maior sucesso (dentre as várias versões que procuraram aproveitar a corrente) ainda estava para chegar, e se-ria um exemplo de astúcia produtiva. A Companhia Portuguesa de Operetas, do empresário Luís Ga-lhardo, estava apresentando a peça de Lehar no Rio; rapidamente Auler convocou sua equipe de trabalho (o escritor Alberto Moreira, o compositor e maes-tro de orquestra Costa Junior,16 o cinegrafista Júlio Ferrez e os cantores/atores costumeiros), reuniu ao elenco português e, no início de setembro de 1909, a obra estava pronta. Foi uma superprodução colossal: tinha três partes, cobrindo uma sessão de exibição completa. O sucesso foi igualmente colossal: desde a estreia em 8/9/1909 até 14/12/1909, completou trezentas representações, quase cem por mês, e foi exaltada pela crítica. Até 3/3/1910 atingiu mais de 180 mil espectadores,17 e seguiu sendo apresentada episodicamente até fins de 1911.

Impulsionado por esses sucessos, Auler prosseguiu – dois meses depois da estreia da Viúva – com um novo blockbuster do repertório internacional: A guei-xa, baseada na bem-sucedida comédia musical do inglês Sidney Jones, com a equipe habitual e mais 37 figurantes no elenco! Em 8/11, a Gazeta de Noticias publicava: “[...] o público esqueceu-se que assistia a um cinematógrafo e prorrompeu em estrepitosos aplausos, querendo fazer bisar o dueto de Katana com Mimosa”.18

Seguindo a linha de A viúva alegre e A gueixa, que proporcionavam tão bons resultados, Auler estreia, a 23/12/1909, Sonho de valsa (sobre a opereta Ein

Walzertraum, de Oscar Straus), com a equipe de sempre e sucesso similar.

Embora com algo de atraso em relação ao Rio de Janeiro, o fenômeno dos filmes cantantes se estendeu à cidade de São Paulo, onde as primeiras apresentações são registradas em julho de 1909, com a estreia de Caracolillo (Couplets del Café de Puerto Rico), protagonizada pela superstar Claudina Mon-tenegro, depois que essa performance teve várias apresentações no Rio; e também à cidade de Santos, em dezembro daquele mesmo ano.19

Em 1910, atinge-se o auge da produção dos filmes cantantes, seja em suas variantes ‘puras’ – tanto em versões curtas segundo o modelo das phonoscénes Gau-mont, como em suas versões ‘longa-metragem’ com-pletamente cantadas –, ou em qualquer outro modelo, como a versão da ópera O guarani, de Carlos Gomes, que Auler produziu especialmente para acompanha-mento vocal ao vivo, com elenco argentino.20

Os filmes cantantes e a música popular

A novidade do som sincronizado às imagens (versão hi-tech nas produções francesas e low-tech nas locais) também acarretaria uma sociedade comercial que floresceria duas décadas depois, em condições téc-nicas e produtivas muito diferentes: as indústrias do cinema e da gravação musical deram seus primeiros passos juntas, incrementando suas possibilidades.

Já em 1908, quando mal havia começado a moda dos filmes cantantes, uma das minors deste negócio – Câmara, Correia & Cia. – produz alguns prota-gonizados pelo cantor e dançarino Francisco Pepe: Rapaz de moda, O viúvo (“Cançoneta; ‘fita cômica natural’ [sic]”) e Quebradeira, entre outras. Nesse ano, a empresa Arnaldo & Cia. recrutou o popular cantor e comediante Leonardo (José Gonçalves Leonardo) para protagonizar Nhô Anastácio chegou de viagem,21 considerada a primeira comédia filmada

16 João José da Costa Júnior (1868-1917), às vezes com o pseudônimo Juca Storoni.17 MELO SOUZA, José Inácio de, op. cit., p. 278.18 Idem.19 COSTA, Fernando Morais da, op. cit., p. 53.20 Lécio Ramos. Verbete Filme Cantante. RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe, op. cit.21 “Hilariante composição cômica nacional, nos mostrando as peregrinações de um velho roceiro perambulando, pela primeira vez, na Capital Federal.” Cinemateca Brasileira.

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no Brasil, e que teve várias exibições em 1909, com Leonardo cantando detrás da tela. Depois, o cantor fez vários filmes para Auler: Fandanguaçu (1909, sobre um “aplaudido maxixe” gravado pela Casa Edison), No requebro (1910) e Os efeitos do ma-xixe (1910).22 Eduardo das Neves, famoso cantor popular, também participaria dos filmes cantantes, e registraria alguns como solista: Valsa da moda (1908) e O pronto (1909, “que a acompanha com um magnífico choro de violão”).23

Mas, com a completa incorporação de músicas populares e seus conhecidos intérpretes, dar-se-ia uma confluência de formatos, estilos e estéticas que significariam outro pulo qualitativo dos filmes cantantes. Desde seus primórdios, a apropriação do cinematógrafo pelos empresários teatrais, especial-mente de vaudevilles e revistas de variedades, resulta em um particular modelo que intercala projeção de cenas filmadas com números ao vivo. No Brasil, se incorpora a novidade dos cantores ao vivo atrás da tela, dando origem aos filmes-revistas cantantes com números de cenário e de tela.

Junto com as músicas mais populares, foram in-troduzidas as temáticas do Carnaval. Em 1909, No bico da chaleira, conhecida “polca carnavalesca do maestro Costa Junior”,24 deu origem a dois filmes cantantes muito semelhantes: A chaleira (produção de Auler, protagonizada por Claudina Montenegro e Santiago Pepe) e Pega na chaleira, “sátira cantante aos acontecimentos políticos da época” (produção de Photo-Cinematografia Brasileira). Como acontecia em todo o mundo nessas épocas, cópias e plágios eram moeda comum.

Em 25/4/1910, estreava o filme-revista cantante Paz e amor (de Auler, protagonizado por uma constelação de stars e numeroso elenco), que incluía uma canção de Chiquinha Gonzaga que faria história, O abre alas. O argumento de Antonio Simples (pseudônimo de José do Patrocínio Filho) critica os políticos daquele período, incluído o presidente Nilo Peçanha: o título aludia a uma famosa frase dele.25 A carreira desta performance foi arrasadora, os espectadores lotavam as exibições. A Gazeta de Noticias (27/4/1910) anunciava: “Exibe-se hoje a revista Paz e amor. Quer dizer que às 8 horas estará interrompido o trânsito na rua Visconde do Rio Branco”.26 Foi “o primeiro grande sucesso de bilheteria da história do cinema brasileiro, ultrapassando os recordes anteriores de Os estranguladores, de 1908, e A viúva alegre, de 1909”.27

De temática carnavalesca também foi O Rio por um óculo (1910), com música de Paulino Sacramento,28

que apresentava num de seus quadros “os três clubes carnavalescos - Fenianos, Democráticos e Tenentes do Diabo”. Naquele ano, Auler ainda produziria ou-tros sucessos no mesmo formato: O chantecler (1910), filme-revista cantante de sátira política, superprodu-ção com músicas de vários compositores famosos e que finalizava “com uma soberba apoteose tirada a

22 Também participou como diretor de cena em A gueixa e Sonho de valsa. Idem.23 Idem.24 Segundo grita seu anunciador na gravação da Banda da Casa Edison.25 A sátira política fazia parte da revista de variedades, e se incorpora sem censuras ao filme-revista cantante.26 MELO SOUZA, José Inácio de, op. cit., p. 282.27 Lécio Ramos. Verbete Filme Cantante. RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe, op. cit. Além do inegável imenso sucesso da peça, a quantidade de exibições – segundo os dados proporcionados pela Cinemateca Brasileira – parece impossível de efetivar-se: em 1º/6/1910 já havia tido duzentas exibições – quer dizer, perto de seis diárias, sem descansos; em 17/6/1910, trezentas (aproximadamente a mesma média); perto do final da sua carreira, em 5/3/1911, 934, a uma média de três exibições diárias. Mesmo supondo o trabalho de vários elencos distintos, parece excessivo.28 (Rio de Janeiro, 1880-1926). Junto com Chiquinha Gonzaga, foi um dos mais importantes compositores de música para teatro. Foi o diretor musical das principais companhias do Rio de Janeiro.

Partitura de Eduardo das Neves, cantor e compositor de grande popularidade no final do século XIX e início do século XX. Exibiu seu talento em filmes cantantes

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bordo do [encouraçado] Minas Gerais”, e Logo cedo (1910), que teve problemas com a censura.

Naquele mesmo ano de apogeu dos filmes cantan-tes produz-se a expansão dos negócios do exibidor e produtor Francisco Serrador ao Rio de Janeiro: a peça da inauguração de seu novo cinema Chan-tecler foi o filme-revista cantante O cometa, grande produção realizada com a equipe técnica-artística que Serrador havia conseguido cooptar de Auler e que alcançaria as cem exibições. No elenco aparecia o famoso cantor Baiano,29 que segue trabalhando para Serrador em Serenata caipora (1910, “Fita na-cional cômica cantante”), José do Fandango quer cantar sua modinha (1911) e várias outras.

Auler amplia as temáticas habituais ao apresentar Os milagres de Nossa Senhora da Penha (1910, “Fita sacra, com música e coros”), volta ao ‘repertório internacional’ com O conde de Luxemburgo (1911, baseada na opereta do sempre eficaz Lehar, e imitada imediatamente por uma performance si-milar produzida por Serrador), A dançarina descalça (1911, sobre a opereta homônima, misturando elenco próprio e da Companhia Teatral Ettore Vitali, como tinha feito em A viúva alegre) e A re-pública portuguesa ou cinco de outubro (1911, “Tragédia lírica sobre os últimos acontecimentos”, deposi-ção do rei Manoel II e instauração da República de Portugal), com o cantor popular Mário Alves no elenco. Outro filme-revista de ‘cenas cinemo-carnavalescas’ foi O cordão (1911, produção de Serrador), com grande elenco encabeçado por Ismênia Mateus e o Baiano.

Um caso peculiar foi o filme 606 (1911, música de Paulino Sacramento), catalogado como “Filme cantante. Revista humorística que ‘trata unicamente de assuntos da época’”. ‘O’ assunto da época era o medicamento europeu contra a sífilis vendido sob esse nome, que havia chegado em 1910 ao Brasil. Um filme de divulgação cientifica da Pathé, na mesma época, levava o nome de 606 contre Spirochète pâle (a bactéria da enfermidade); é possível que o

primeiro fosse uma espécie de paródia deste, cau-sando lógicas confusões.

Música fora do filme

Essas práticas de canto detrás da tela proporcio-naram ao cinema dos primórdios o traço original desse estatuto de corpos virtuais e vozes reais, com quase nenhum antecedente fora do Brasil e muito menos alguma produção estável em nenhum lugar do mundo. Claro que esta situação não margeava, de modo nenhum, o estatuto mais habitual da relação cinema-música: a orquestra – grande ou pequena – ou o solista tocando na penumbra da sala. Nestes misteres trabalhava um dos nomes maiores da música brasileira: Ernesto Nazareth, o notável compositor e ‘pianeiro’, que no popular cinema Olímpico acompanhava os filmes exibidos. Mas, mesmo gostando da sala penumbrosa, Nazareth também se exibia num contato muito mais visível e direto com o público.

Como em qualquer sala importante das principais cidades do mundo, os espectadores eram recebi-dos em foyers e salões de espera amenizados por música; as funções sociais envolvidas e os bons músicos que era possível ouvir geraram o hábito de dirigir-se ao cinema pelo menos uma hora antes da sessão: “[...] as empresas exibidoras davam-se ao luxo de apresentar ao público, na ‘sala de espera’, audições com os melhores conjuntos musicais que, em tournées, passavam pelo Rio. Sextetos, quintetos, ‘orquestras de cordas de moças francesas’, conjun-tos tziganos [...] a música de acompanhamento era constituída do repertório tocado pelas chamadas ‘Salon Orchestras’, e apresentavam sobretudo as marchas de John Philip Sousa (Novidades ou Atua-lidades internacionais), aberturas, trechos de ópera, opereta, música ligeira (melodias favoritas) e tudo isto entremeado com as famosas valsas de salão”.30

Então, valsas, polcas e tangos compostos por Nazareth – notáveis misturas de ‘sabor popular’ e virtuosismo técnico – se davam bem com este tipo

29 Pseudônimo de Manoel Pedro dos Santos, que em 1902 tinha feito a primeira gravação fonográfica no Brasil para a Casa Edison, de Frederico Figner, o introdutor dos primeiros fonógrafos (1892) e Kinetoscopes (1894) no Rio de Janeiro. FRANCESCHI, Humberto. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro: Sarapuí, 2002.30 PINTO, Aloysio de Alencar. 1963. Ernesto Nazareth/Flagrantes. Publicado em duas partes na Revista Brasileira de Música, Rio de Janeiro, n. 5 e 6, 1963.

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de repertório, e assim ele converteu-se na “atração nacional” que entretinha os espectadores na enor-me sala de espera do cinema Odeon.31 Uma das mais famosas peças de Nazareth, o tango Odeon, foi dedicado à empresa proprietária do cinema.32 Aloysio Pinto afirma: “Sua presença no Odeon tornou-se acontecimento significativo para a vida musical da cidade”. Na mesma época, começava a trabalhar junto com um garoto que também fazia parte das orquestras de cinema: Heitor Villa-Lobos.

Final sem música

Por volta de 1911, depois do incêndio do seu Cinematógrafo Rio Branco, Auler abandona os negócios cinematográficos, Serrador fecha acor-dos com os produtores estrangeiros e a produção nacional de filmes (cantantes ou não) cessa quase completamente. Dos filmes cantantes apenas se registram algumas esporádicas produções locais ou adaptações de filmes estrangeiros;33 e os es-

As primeiras estrelas do cinema brasileiro: Carmen Ruiz, Pepa Delgado e Mercedes Vila, atrizes e cantoras

31 Idem. Inaugurado em 1909, logo adquiriu fama de “cinematógrafo chic”; possuía duas salas de exibição (antevisão das atuais salas multiplex) e uma luxuosa e confortável “sala de espera”; seus filmes eram sempre de boa qualidade, e seus pianeiros e orquestras, os melhores da cidade.32 Em 1912, Nazareth gravou este tango com Pedro de Alcântara na flauta.33 O mártir do calvário, adaptação de um filme francês apresentado por Serrador na Semana Santa de 1912, em São Paulo; também teve exibições sonorizadas em salas da Bahia, em 1915. COSTA, Fernando Morais da, op. cit., p. 63 e 68.34 PEREIRA, Carlos Eduardo. A música no cinema silencioso no Brasil. Texto inédito. O filme encenava quadros carnavalescos, sofrendo duras críticas da imprensa católica.35 “Assunto sertanejo. Grande orquestra. Grande massa coral. Samba cantado. Carnaval cantado.” Cinemateca Brasileira.

tertores finais, com os últimos títulos do gênero apresentados em São Paulo, em 1919: Pierrô e Colombina, baseado numa valsa de Eduardo das Neves e Oscar de Almeida que tinha feito suces-so no carnaval de 1916,34 e A caipirinha, baseado na comédia de Cesário Mota.35

Saudades

Ainda na procura do sucesso econômico como objetivo principal, do breve e fulgurante caminho dos filmes cantantes emergem várias outras ideias interessantes: utilização e expansão do cinema em direção ao espetáculo ‘total’, multiplicação das po-sibilidades dos estatutos de virtualidade/realidade, transcendência e superação das limitações técnicas e, principalmente, o desenvolvimento de formas, gêneros e estilos, misturando tudo de melhor que podia ser tomado dos acervos culturais de todas as camadas sociais, resultando em imprevisíveis solu-ções na construção de novas propostas audiovisuais.

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História

Regalo para o ouvido, expressão não figurada (unbildli-chen), irmã da embriaguez,1 bonheur, beleza, enigma, fetiche,2 alienação, cultura, consumo, a música ora expande os sentidos e a intuição (anschaulichkeit), ora é entretendimento e apaziguamento.3 Faz-se música há milênios, e a própria natureza, ao se expressar pelo canto dos pássaros e animais, o estrondo dos trovões, o sibilo dos ventos e o bramir dos mares, forneceu e ainda fornece inspiração para muitas das suas criações. As religiões usam a música porque ela eleva a espiritualidade e atrai fiéis para seus cultos. Nossos ancestrais (pobres em palavras e escrita) usa-ram a música para exteriorizar o júbilo, a tristeza, o amor, os instintos guerreiros, a obediência aos seres invisíveis e a vontade de dançar. Como a escrita de notas musicais é recente (Pettrucci, 1500), um pas-sado imenso se perdeu para sempre, porque apenas as músicas de transmissão oral se conservaram. Os homens usam e usaram a música com fins medicinais:

Davi - por exemplo - toca harpa para afugentar os maus pensamentos do rei Saul. Farinelli com o au-xílio da música cura a terrível melancolia de Filipe V. Timóteo provoca por meio de certa melodia a fúria de Alexandre, o Grande, e o acalma por meio de outra. A história do caçador de ratos de Hamelin, que salva uma cidade da peste, é outro exemplo da ajuda da música para o enfrentamento inteligente dos nossos inimigos.4

1 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. p. 24 e 27.2 Ibidem, p. 77. “O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente psicológicos. O fato de que ‘valores’ sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumi-dor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria. Com efeito, a música atual, na totalidade, é dominada pela característica de mercadoria: os últimos resíduos pré-capitalistas foram eliminados.”3 ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: ______. Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1999.4 PAHLEN, Kurt. História universal da música. São Paulo: Melho-ramentos, 1963. p. 14.

“ Tudo que diz respeito à arte deixou de ser evidente.”Theodor W. Adorno

Premiére do filme O cantor de jazz

(The jazz singer - 1927)

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Escritor, diretor de teatro e psicanalista. Doutor pela Johns Hopkins University. Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e servidor do Arquivo Nacional.

Gerson Noronha Filho

Música de cinema: o óbvio e o obtuso

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Luz, Câmera: a músiCa BrasiLeira

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Os militares possuem bandas e orquestras, e cada burgo, cidade, nação ou estado, ainda se orgulha de possuir suas casas de espetáculo e óperas. O mistério e a magia da música são sua comunicação com o inconsciente, e, nesta função, ela é um feitiço. O compositor (autor) e o intérprete (executor) trans-mitem ao outro algo de sua reação frente ao vazio pela música, e do lado do ouvinte a música irá ressoar no vazio do sujeito que ouve produzindo efeitos de gosto e gozo.

Conundrum5

Assim como o olho de um observador não vê tudo à sua frente, assim também o ouvido não ouve tudo o que ouve porque há sempre algo deixado de lado (guardado) ou posto para baixo (adormecido), partes que chamamos de ‘restos’, detalhes, emblemas, signifi-cantes responsáveis em empurrar os homens para a criação ou o recalque. É o que afirma Nietzsche ao dizer: “Nas obras de arte tudo pode ser outra coisa”. Na música de cinema há uma união entre visão e audição. Casamento difícil por se tratar da conjugação de duas linguagens diferentes. Na música de cinema - tradicionalmente - minimiza-se a presença do criador e dos operadores. Não se vê nas cenas o músico ou os músicos que executam o trabalho, seja este feito solo ou em grupo quando, então, é conduzido por um maestro ou arranjador. Estes ‘coautores’ - tradicio-nalmente - são mencionados no final dos filmes, na hora dos créditos. No dia a dia de filmagem, a tarefa de montagem e mixagem entre imagem e música, sua organização, espacialização e controle vis à vis do fluxo das imagens, é atribuição solo do diretor ou de uma equipe em que participam o diretor, o compositor/

arranjador/selecionador e até o produtor, com suas ligações no mundo da comercialização, marketing e distribuição. Quando um diretor chama um arranja-dor, este manipula o já feito no passado para que essa ‘inclusão’ promova o máximo de prazer ao ouvinte.

No cinema high-tech capaz de casar os efeitos especiais com a mitologia, o papel da música é fundamental para atenuar o nível exagerado de ruídos, estouros e explosões demandados por uma narrativa carregada de ações impossíveis de acontecer no real. Essa higie-nização das cenas de ação pela música chamada ligeira, culinária, incidental deve-se ao horror que a moderni-dade tem do silêncio, já que todo espaço-tempo deve ser ‘ocupado’ para evitar a qualquer custo o vazio, o tédio e a angústia. Na criação de músicas de qualida-de e beleza há um desejo de afirmação do espiritual, mesmo se este espírito deixou pura e simplesmente de se preocupar com a substância.6 E, é o êxito desta espiritualização que irá decidir se a música de cinema irá prosperar e crescer, “já que a espiritualidade não se realiza mediante ideias que a arte manifesta, mas através da força com que penetra nos estratos não intencionais e opostos às ideias”.7 A música de cinema atua de duas frentes (1) ou cria uma atmosfera (que dá realce à situação emocional da cena) ou (2) entrega um ‘entendimento’, um fecho, uma opinião sobre a cena, isto é, funciona como o coro no teatro. A escolha de músicas prontas não se faz mais tão frequente como no início porque sua prática levanta questões difíceis de serem resolvidas: há direitos autorais a pagar e a cessão legal da permissão de uso e da adaptação é conflituosa e lenta. Para se conseguir um ritmo ótico-sonoro perfeito e belo (ton-kalón), é necessário um trabalho técnico e artístico de montagem e mixagem.

5 Questão, pergunta difícil (palavra inglesa).6 XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 109.7 Ibidem, p. 112.

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Música de cineMa: o óbvio e o obtuso

Cada inclusão sonora é feita para uma cena, e a mesma deve ser de agrado do público para que a música seja uma espécie de carimbo do filme ou de um tema. A presença de poucos filmes na história do cinema onde esta ligação música-imagem se fez perfeita atesta a dimensão das dificuldades. Nada melhor para descre-ver este conundrum da relação música-imagem do que assinalar os três clichês, habitualmente, usados pelos críticos quando debatem este casamento:

(a) A melhor música de cinema é aquela que não é notada;

(b) A música de filme só funciona nos filmes;(c) Uma boa música pode ocultar os defeitos de

um mau filme, assim como uma música ruim pode destruir uma obra-prima.

Sujeito

A música de cinema se divide em dois segmentos: (1) sem letra (2) com letra. A música sem letra é mais intuitiva, dionísica.8 Seu entendimento e fruição se parecem com um enigma ou, metaforicamente, como uma aproximação a um arco-íris, isto é, ao nos aproximarmos de seu reconhecimento (Aristóteles), de sua verdade, eles evanescem. Idealmente, poderia se dizer: “Que só compreenderia uma música quem a ouve com a mesma estranheza de alguém que nada soubesse dela ou com a mesma familiaridade com que Sigfried escutava a linguagem das aves”.9

A música sem letra, sem ‘enredo’, comumente chamada de preenchimento, comentário, comple-mento, por ser menos explícita, entra em contato com o inconsciente, a Coisa, o vazio do ouvinte, o impossível. Sua sedução está neste diálogo entre um Ente (autor) e um Outro. A música sem letra estimula mais a emoção, seja de frieza, tristeza, terror, alegria, ódio ou amor. Adorno, em seu texto “O fetichismo na música e a regressão da audição”, assim exemplifica os perigos da música:

A música constitui, ao mesmo tempo, a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria para o seu apaziguamento. Ela desperta a dança das deusas, ressoa da flauta encantadora de Pã, brotando ao mesmo tempo da lira de Orfeu, em torno da qual se congregam saciadas as diversas formas do instinto humano. Toda vez que a paz musical se apresenta perturbada por exci-tações bacânticas, pode-se falar de decadência do gosto. Entretanto, se desde o tempo da noética grega a função disciplinadora da música foi considerada um bem supre-mo e como tal se manteve em nossos dias, certamente mais do que em qualquer outra época histórica, todos tendem a obedecer cegamente à moda musical [...] assim como não se pode qualificar de dionísica a consciência musical contemporânea das massas, da mesma forma pouco têm a ver com o gosto artístico em geral as mais recentes modificações desta consciência musical.10

A música de cinema com letra, dona de mensagens (aussage), é descendente do iluminismo (Hume, Kant11) e do melodrama (Thomasseau12). Com sua moira apolínea, suas intenções e sentidos explícitos, a letra surge tanto para emocionar como para ‘comentar a ação’.13 Quando esta música oferece um tema para cada personagem, casal, clima, situ-ação, ela assume a posição de leitmotiv. E, quando ela descreve o que a imagem já mostra, fala-se de mickeymousing.

A música de cinema, portanto, (1) ora estimula a ima-ginação e a catarse das emoções,14 (2) ora domestica e infantiliza o espectador (ao dar de presente um entendimento ou reconhecimento), (3) ora alimenta o juízo de gosto (uma função educadora). A música com letra se comporta, no geral, como um coro do teatro ao trair a neutralidade da ausculta. A letra oferece e revela opiniões, resumos, conceitos. Tem uma ação de ‘modelagem’ ao ‘inocular’ interesses morais ou po-líticos na mente do espectador. A música, ao lado da matemática, da dança, da escultura e da pintura, é uma expressão universal do juízo do gosto humano e de revelação de

8 NIETZSCHE, Friedrich, op. cit., p. 24.9 ADORNO, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2006. (Coleção Arte e Comunicação). p. 142.10 ADORNO, Theodor W, O fetichismo na música..., p. 65.11 KOLAKOWSKI, Leszek. Sobre o que nos perguntam os grandes filósofos. Tradução de Tomasz Lychowski. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 3 v.12 THOMASSEAU, Jean-Marie. O melodrama. São Paulo: Perspectiva, 2005.13 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 73.14 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 43.

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verdades que não exigem nem explicação nem tradução para serem usufruídas, entendidas e amadas. O que é para muitos uma confirmação do conceito de Kant do sublime: “É belo o que agrada universalmente sem conceitos”.

Vis à vis as outras artes, a música tem uma história arquivada curtíssima porque seu registro em forma de partitura só ocorre no século XVI. E mais jovem ainda é a música de cinema, inaugurada no final dos anos 1920 (Don Juan - 1926 e The jazz singer - 1927, estrelando Al Jolson), que nasce, portanto, 32 anos depois da apresentação dos irmãos Louis e Auguste Lumière em Lyon (1895). O emprego de música du-rante o período do cinema mudo jamais se destinou a integrar o filme, mas apenas o espetáculo cinema-tográfico, e, assim, um mesmo filme era apresentado ao público com tantas interpretações quanto fossem as salas de projeção e os ‘gostos’ dos pianistas. No início do filme sonoro, optou-se, hegemonicamente, pela exibição de conjuntos orquestrais ou de cantores, só mais tarde fez-se música específica, própria. Diz-se que há sincronismo técnico quando as fontes sonoras estão representadas no quadro cinematográfico e assincronismo quando as mesmas fontes, embora presentes na cena, não estão representadas no en-quadramento.15 A música (instrumental ou letrada) constitui em si uma linguagem, mas em comparação à fala, que é mais precisa (óbvia), é mais rica (obtusa). Algumas vezes, ela consegue “acordar” instâncias profundas, inconscientes. E ao transmitir o vazio do compositor/autor, a música de cinema ressoa no vazio do sujeito (receptor). Na sua dimensão de arte capaz de apontar para o impossível, para a Coisa, a música “é capaz de testemunhar o inconsciente”.16 Assim, paradoxalmente, quanto mais uma música for sem falhas (round), mais intuitiva será sua fruição e mais próxima estará daquela sonhada promesse de bonheur. A música é também gatilho para outras conclusões. Foi, por exemplo, ouvindo o septeto de Vinteuil que Marcel, o narrador da Recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido), sentiu o primeiro

apelo interior para alguma coisa diferente do comum e somente realizável pela arte: “Todo grande artista parece tão diferente dos outros, e nos dá tanto essa sensação de individualidade que procuramos em vão na existência cotidiana! No momento em que pensava nisto, um compasso da Sonata me impressionou,.... compasso que, aliás, eu conhecia bem”.17

Numa época apaixonada pela eficiência, a música de cinema já sai, à largada, em situação desfavorável vis à vis as outras artes por depender das demandas dos desejos de uma outra arte. Vem dessa ‘dependência’ o costume de realizar testes com um público padrão segmentado por idade, renda e consumo com o objetivo de apurar a aceitação das músicas para cada passagem específica de um filme. Por isso, a música de cinema é conceituada como artefato de prazer diri-gido. Aproveitando o esquema de Eric Bentley sobre o jogo da representação teatral, pode-se dizer que a equação mínima da música de cinema se descreve como: A (cena) pede uma música B para o ouvido de C que é o espectador e que está fora de cena. Mas, atenção! Para além da cena há sempre uma outra cena escondida, ‘metáfora pela qual a psicanálise chama o campo do inconsciente’.18 A dialética da cena com a música altera sua ‘liberdade’, mas é esta ‘diminuição’ que facilita seu usufruto por um público ansioso em ouvir a mesmice e, principalmente, avesso à transgres-sões19 e vanguardas.20 Na sua vida de mais de cem anos, o cinema começa como “mudo” quando em verdade nunca foi é silencioso, já que havia nas salas de projeção um pianista com seu piano a acompanhar as cenas vistas na tela. As salas de cinema, até hoje, se parecem com os palcos do teatro italiano. No início, as músicas feitas para cinema eram compostas por músicos que sonhavam com a ópera ou a sala de concerto e a regência de orquestras, mas que, por falta de trabalho e oportunidade, convertiam-se em gênios efêmeros de uma arte nova, contestada pelos eruditos e críticos, porém extremamente popular e, simultaneamente, minimizada por seus autores por

15 MAY, Renato. A aventura do cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 104.16 AZEVEDO, Renata Mattos de. O que pode a música dar a ouvir aos sujeitos? In: LIMA, Marcia Mello de e JORGE, Marco Antonio Coutinho. Saber fazer com o real: diálogos entre psicanálise e arte. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2009. p. 84.17 PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu: la prisonnière. Paris: Gallimard, 1954. v. 3. p. 158-159.18 XAVIER, Ismail, op. cit., p. 11.19 ADORNO, Theodor W, O fetichismo na música..., p. 105.20 BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Veja, 1993.

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Música de cineMa: o óbvio e o obtuso

não se orgulharem do que faziam ‘temporariamente’, pelo ‘dinheiro fácil’. Estes autores (a maioria músicos ou regentes exilados na América durante a diáspora judaica de 1933-1945) ora compunham trilha sonora original, ora adaptavam músicas ou canções para compor o que se chamou a seguir como o soundtrack. O curioso dessa ‘rendição’ é que as músicas que passa-ram para a posteridade como ‘sinônimo’ de um filme são poucas. Alguns exemplos desta sinomia são: As time goes by identificando Casablanca; a música de Max Steiner identificando o primeiro King Kong; a música de Charles Chaplin, Limelight, identificando Luzes da ribalta; o Noturno em mi bemol, de Chopin, identificando o Eddy Duchin story; e Assim falou Zarathustra, de Ri-chard Strauss, identificando 2001, uma odisseia no espaço.

Arte para poucos e artefato para muitos, a música de cinema está no mundo da mercadoria porque é governada por seus critérios e leis. Ela potencializa a melhora da re-cepção dos atributos estéticos de uma criação coletiva: o filme. E é um complemento do olhar da câmera, percepção sensível construída no espírito21 do espectador, inde-pendentemente da sua cultura e da sua familiaridade com a linguagem fílmica. Ela facilita o entendimento e o reconhecimento da narrativa, e amplia a expres-sividade dos seus personagens, atores. É assunto tam-bém de controvérsias teóricas. Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, por exemplo, no célebre Manifesto dos três, de 1928, defenderam a ideia de assincronia, isto é, da importância da não-coincidência, da necessidade da dissociação entre som e imagem, também conhecida como combinação em contraponto:

Som e imagem são, alternadamente, fonte de infor-mações específicas que remetem umas às outras. A informação oferece-se à leitura de forma dialética: ela não é redutível a nenhuma das duas linguagens, mas ao movimento dialético que se estabelece entre as duas. A alternância das linguagens pode ser vista num primeiro momento e escutada num outro. Num terceiro mo-mento, o espectador é ativo (mensagem de tipo aberto): participa, toma consciência, analisa [...] o som contribui para o sentido da imagem e, mais, estimula a imaginação. [...] A música tem também uma função psicológica ao

dar ao espectador a sensação de uma duração efetiva-mente vivida e de libertá-lo do terrível peso do silêncio ao mesmo tempo em que cria um estado onírico, uma atmosfera (imaginária). Por outro lado, a música de cinema não deveria parafrasear a expressão visual (deve evitar a ideologização infantilizante), pois seu caráter sonoro deve prevalecer [...] quanto mais a música se apagar por trás da imagem, mais chances terá de abrir novos horizontes para si [...] não foi feita (espera-se) para ocupar espaços vazios [...] seu papel é somente o de dilatar o complexo espaço-duração. (Ao apostar no) despojamento, na discri-ção dramática (distanciamento, Brecht), aproximar-se-ia da beleza do jazz.22 (Comentários meus em grifo)

A música de cinema é ‘incluída’ nos filmes: (1) ou de forma neutra (libertária), em que a fruição é uma cons-trução do espectador; (2) ou de forma ideológica, onde a fruição é uma escolha do criador e o espec-tador é colocado na posição de consumidor passivo, de receptor de ‘presentes’. Esta segunda forma de inclusão transmite ideias, conclusões ou valores, e tem o sentido de sedução e controle do Outro. As ‘inclu-sões’ raríssimamente são de responsabilidade solo de um músico, no geral, é um trabalho plural, cujos autores (diretor, compositor, arranjador, técnicos, executores) surgem na tela no final dos filmes.23 Por tradição, no en-tanto, deslocamos a responsabilidade dos louros ou do escárnio, do sucesso ou do fracasso dessas ‘inclusões’ ao dire-tor. As músicas de filme memoráveis e inesquecíveis - exceções à tentação do agradável - são raras, e isso é parte da sua magia e de seu desafio.

O óbvio e o obtuso

A música de cinema surge como um extracampo em dialética com as demandas do mercado chamado show-business. Sua liberdade nunca foi total como nas outras artes porque sua moira é servir a um Outro chamado

21 BETTON, Gérard. Estética do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 6.22 Ibidem, p. 40-41 e 47-50.23 Ibidem, p. 74-75.

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imagem em movimento. Como sua autonomia é relativa e relacional, os ‘grandes’ músicos pouco se interessaram em criar música para cinema devido aos seus muitos constrangimentos estruturais. Apesar da sua maioridade quase centenária e uma qualidade téc-nica de produção sonora próxima da perfeição, não se tem certeza se a música de cinema algum dia alcançará sua emancipação como arte independente. O que ela pretendia ser no início - música soberana e sublime (o obtuso), um colega do filme, e não seu escravo - só se concretiza em honrosas exceções, daí sua realização ser na direção do óbvio, do possível, do agradável.

Podemos dizer que a música de cinema é quase sem-pre obtusa porque só em raras ocasiões é canônica, ape-sar do seu esforço em afirmar-se e realizar-se como arte. Os obstáculos que se precisa superar para chegar àquela perfeição de união som-imagem são muitos:

(1) A efemeridade. Por permanecer pouco tempo na memória do público, a música de cinema perde valor de uso e troca. Como resultado, disponibi-liza menos recursos para a fase de pesquisa, de execução e de apropriação de rendimentos. Esta pobreza relativa vis à vis outras músicas (de con-certo, clássicas, popular, musicais, shows) afasta uma parcela significativa de indivíduos com aque-las características de gênio artístico identificadas por Hegel: imaginação (fantasia), inspiração, alta reflexão, originalidade, estilo e talento.24

(2) A procura sísifica 25 da despretensão, do sublime, da simplicidade profunda e da verossimilhança ficcional impactante corre contra os desejos e a disponibilidade do sentimento de juízo (urteilsgefuhl) de um público apaixonado pelo melodrama,26 pelo superficial, pelo entretenimento e pelo apaziguamento.

(3) A mundialização da regressão da au-dição (Adorno) inibe a inovação e a experimentação dos compositores e

arranjadores amedrontados pela possibilidade de perda de público.

(4) A paralisia e a inibição criativa gerada pela ansie-dade (angst) da influência27 dos raros ‘sucessos’ do passado são difíceis de serem superadas, e sua presença na consciência dos criadores vai contra a necessidade do esquecimento como uma das exigências de toda ação criativa (Goethe).

(5) A aceitação do conceito de artefato para a música de cinema rotula os seus criadores em minor, uma avaliação incômoda para quem sonha em ser major.

(6) A tensão entre a atração ao agradável, ligado ao interesse e os sentidos, e o sublime, ligado ‘à resistência contra os interesses dos sentidos’,28 quase sempre é resolvida na direção da primeira via, e este sentido de menos risco é sempre apoiado pelos produtores, tradicional-mente, cost-savers.

Conclusão

O cinema ainda não desapareceu da história. Enquanto que outras invenções, ideias ou ideologias, para surpresa de seus acólitos, teóricos e historiadores, têm sempre longevidade curta, o cinema vem se reformando e adaptando à competição das outras mídias, e enfren-tando, na medida do possível, seus limites estruturais e de mercado. Neste mesmo momento, que você lê essas linhas finais, centenas de milhões de espectadores no escuro desses ‘templos pagãos’ chamados cinemas (simulacros da situação do sonho, sono) vêem filmes. Angústias são aplacadas, e novas, encontradas. Emo-ções são despertadas ou suprimidas. Verdades aceitas, revistas e descobertas. Um somatório de sensações e sentimentos próximos do conceito de bonheur. Não é uma contribuição pequena para vidas tão curtas!

24 HEGEL, Georg W.F. Curso de Estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 316-334.25 CAMUS, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951.26 THOMASSEAU, Jean-Marie, op. cit., p. 6: “O melodrama apresenta a luta entre bem e mal absolutos, busca ser ao mesmo tempo universal e cotidiano, procurando comover o público através de uma estética moralizante que corresponde a códigos preestabelecidos. Sua trama é de certa forma imutável; o vilão acaba sempre desmascarado pelo herói, o bem sempre vence o mal, e assim a virtude é sempre premiada e o crime sempre punido”.27 BLOOM, Harold. The anxiety of influence. New York: Oxford University Press, 1966.28 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998. p. 165.

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Genésio Arruda e Oscarito, astros que brilharam na constelação do cinema brasileiro dos anos 30

Pesquisador, programador de cinema e pianista de filmes mudos da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Música pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Carlos Eduardo Pereira

O advento do cinema sonoro e a música no cinema brasileiro na década de 1930

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A década de 1930 foi bastante particular para o cinema nacional e a música, já que foi o momento de consolidação do cinema sonoro. Vemos também no período a transformação da música popular em fenômeno de massa, através de sua difusão radiofônica a partir do final da década de 1920, e o nacionalismo, que se fazia presente tanto na po-lítica como na sociedade e na cultura. Constatamos então uma interpenetração destes elementos, que se verifica nos números musicais cinematográficos com os ídolos do rádio e no nacionalismo musical modernista nas músicas incidentais dos filmes.

Pelo final dos anos 1920, o rádio, que havia chegado ao país em 1922, começou a tomar novos rumos no Brasil, abandonando uma ca-racterística meramente educativa, em que a di-fusão da música erudita fazia parte desta mesma política, e se direcionando mais para a área do entretenimento, se tornando assim mais popular. O próprio governo passaria a incluir a música popular no programa A hora do Brasil. O cinema sonoro surgiu nesse momento muito especial da música popular brasileira, quando esta passou a ser difundida nacionalmente através das ondas de rádio. A música popular havia deixado de ser um evento cultural restrito a pequenos grupos, quando executada ao vivo, e se transformou em um fenômeno de massa. O cinema não apenas se aproveitou desta situação, como também se tornou um grande veículo para a sua difusão. Os filmes eram uma oportunidade para o públi-co conhecer o rosto de seus ídolos, dos quais, anteriormente, só se conhecia a voz.

O cinema sonoro surgiu no final da década de 1920, e chegou quase que simultaneamente no Brasil. No início existiam dois processos sonoros – o Vitaphone e o Movietone.

O Vitaphone, desenvolvido e explorado pela Western Electric, Bell Telephone Laboratories e a Warner Bros., consistia em um sistema de gravação e reprodução do acompanhamento sonoro em discos sincronizados com o filme, ampliando o som a ponto de torná-lo audível em todo o espaço de uma sala de exibição. O Vitaphone apresentava deficiências técnicas quanto à reprodução do som, à sincronia e, por conseguinte, à escuta.

Paralelo ao sistema Vitaphone, em 1926, a Fox, associada aos engenheiros Theodore Case e Earl Sponable, desenvolveu outro processo sonoro, o Movietone, em que o som vinha impresso na pró-pria película. Este sistema de som óptico, usado comercialmente uns três anos mais tarde, foi o que prevaleceu na história cinematográfica.

Em 1927, foi realizado o primeiro filme no sistema Vitaphone no Brasil, O Bem-te-vi, curta-metragem que apresentava o cantor Paraguassu (pseudônimo de Roque Ricciardi) interpretando as canções Triste caboblo e Bem-te-vi. No ano de 1929, o cineasta Luiz de Barros realizou a grande e pioneira experiência do cinema falado brasileiro, o longa-metragem Acabaram-se os otários, com falas e música. Para tal, ele criou um sistema de som próprio, que se assemelhava ao Vitaphone. Em 1931, Wallace Downey rodou o primeiro filme musical sonoro, Coisas nossas, também em Vitaphone, onde vemos a preponderância da música popular brasileira.

Nas primeiras produções no sistema Vitaphone, as trilhas musicais ainda se faziam notar em toda a duração das películas, utilizando uma compilação do repertório erudito ligeiro e peças originais, à maneira do cinema mudo. Os filmes possuíam poucos diálogos (às vezes nenhum), por conta da deficiência técnica quanto à reprodução da voz humana e a sincronia labial.

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Em 1933, foi realizada a primeira produção nacio-nal de longa metragem no sistema Movietone, A voz do Carnaval. Nesta época ocorreu uma mudan-ça na utilização da música incidental nos filmes brasileiros, que começaria a se estabelecer tal qual conhecemos hoje em dia.

Tendo em mente a preferência pelo novo e o gosto pelo progresso tecnológico nas sociedades ociden-tais, era de se supor uma grande e ampla aceitação do cinema sonoro na época de seu advento, no entanto não foi bem isto o que aconteceu. A po-pulação em geral parecia ter adorado a novidade, mas pessoas ligadas à indústria cinematográfica no Brasil tiveram restrições quanto aos filmes falados. Isto se deu por razões técnicas (as deficiências do sistema Vitaphone) e estéticas (muitos considera-vam a supremacia da “arte muda” sobre um cinema sonoro ainda incipiente).

Mesmo com o advento do cinema sonoro, ainda se continuou fazendo filmes silenciosos no Brasil. Quanto aos longas-metragens de ficção, encontra-remos Odisseia de um jovem, filme realizado no Recife em 1934, com produção da Iate Filmes e direção de Alfredo Carneiro; e Rosa de sangue, produção carioca dirigida por Antônio Riolando, com Corita Cunha e Cléo de Verberena no elenco, também do mesmo ano. Quanto aos curtas, a prática do cinema mudo persistiu pelo menos até 1939, com as pro-duções do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), como Leishmaniose visceral americana, Estudos das grandes endemias – aspectos regionais brasileiros e Farol da ilha rasa, todos dirigidos por Humberto Mauro.

O primeiro longa-metragem sonoro brasileiro, Acabaram-se os otários, de 1929, segundo relato de seu diretor, Luiz de Barros,1 nasceu de uma brincadeira. Certo dia, encontrando-se na rua com o senhor Bruno, diretor das Empresas Cinematográficas Reunidas, que estava muito entusiasmado com o cinema falado, o cineasta, para “gozá-lo”, disse que também iria fazer um filme sonoro. Quando perguntado sobre o título, de pilhéria ele falou que se chamaria “Acabaram-se os otários”. Sem se dar conta da brincadeira, o senhor Bruno disse que

fechava o negócio na hora. Restou então ao cine-asta realizar a proeza, tendo que desenvolver um sistema sonoro próprio para a realização do filme.

Luiz de Barros criou então um processo de re-produção do som utilizando um aparelho leve e portátil, sendo possível exibir o filme em cinemas que não possuíam aparelhagem sonora.

Animado com o enorme sucesso de Acabaram-se os otários, Luiz de Barros resolveu fazer outro filme fala-do, desta vez utilizando um sistema mais aprimorado – o Vitaphone tradicional. Ele conseguiu gravar os discos a 33 1/3 rpm na fábrica Odeon, o que permi-tia uma duração de dez minutos de gravação. Assim podia sincronizar os discos com cada parte do filme, que também durava dez minutos. Esta produção de 1930, O babão, tinha músicas de Francisco Mignone, sob o pseudônimo de Chico Bororó, constituindo sua primeira incursão no cinema sonoro.

Podemos classificar a utilização da música no ci-nema brasileiro da década de 30 a partir dos dois sistemas sonoros – o Vitaphone e o Movietone. No Vitaphone a música era quase sempre onipresente, como nos acompanhamentos de filmes silenciosos,

1 BARROS, Luiz de. Minhas memórias de cineasta. Rio de Janeiro: Artenova/Embrafilme, 1978. p. 104-107.

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com os filmes possuindo poucos diálogos. Nas produções em Movietone os diálogos eram bas-tante frequentes, e a música incidental surgia de forma episódica, cumprindo seu caráter funcional. De todo modo, tanto em um sistema quanto em outro, uma música de característica erudita, ou semi-erudita, aparecia como música incidental, e a música popular se fazia presente nos números musicais, especialmente no gênero musical.

O filme sonoro representou quase que uma reinven-ção da arte cinematográfica, e a música adquiriu re-pentinamente toda uma nova importância. Em 1939, o compositor de cinema e grande prêmio de contra-ponto e fuga do Conservatório de Paris, Adolpho Borchard, em depoimento ao semanário parisiense Por Vous, disse que a situação do músico diante do filme é diferente de qualquer outra. Tem que contar com dois elementos essenciais: o “lado exterior” do filme, onde o ritmo musical indica o da imagem – e a “vida interior” que será revelada pela força evocativa do elemento expressivo, isto é, a melodia.2

Entre os compositores que fizeram músicas inci-dentais para os filmes do período, vamos encontrar Radamés Gnattali (Ganga bruta, 1933; Maria Bonita, 1937; Alegria, filme inacabado de 1937; Eterna espe-rança, 1939; Onde estás, felicidade?, 1939); Francisco Mignone (O babão, 1931; Bonequinha de seda, 1936; Alegria, filme inacabado, 1937); Heitor Villa-Lobos (O descobrimento do Brasil, 1937); Heckel Tavares (Casa de caboclo, 1931; Cidade mulher, 1936); Barrozo Netto (Aruanã, 1938); Luís Cosme (Maria Bonita, 1937); Gaó Gurgel (O caçador de diamantes, 1932; O jovem tataravô, 1936; Bombonzinho, 1937); Affonso Martinez Grau (Caçando feras, 1936); Luciano Per-rone (Onde estás, felicidade?, 1939); Augusto Vasseur (Está tudo aí, 1939, fez também a orquestração e regência); Ernani Amorim (Maridinho de luxo, 1938).

A grande maioria desses compositores já havia traba-lhado nas salas de exibição acompanhando filmes mu-dos, inclusive Francisco Mignone, Radamés Gnattali, Heitor Villa-Lobos e Luís Cosme. Vale mencionar os nomes de Gaó e Affonso Martinez Grau. O primeiro

deles, pseudônimo de Odmar do Amaral Gurgel, havia composto uma série de 12 valsas, cada uma delas dedicada a um mês do ano. Estas peças foram utilizadas na compilação para o acompanhamento do filme Barro humano (1929), feita pelo maestro Alberto Lazzoli. Affonso Martinez Grau foi um dos músicos mais especializados em acompanhamento de filmes silenciosos no Brasil. Ainda rapagote, foi pianista do Pathé Palácio, passando depois a reger as orquestras dos cinemas Central, Cine Theatro República e do Theatro Santa Helena, em São Paulo. Nesta última sala regeu a trilha orquestral original do filme O grande desfile (The big parade), do diretor King Vidor. Este mesmo trabalho havia sido realizado no Rio de Janeiro por Francisco Braga, Oswaldo Allioni e J. Gonçalves.

O nacionalismo musical modernista estava em grande parte das músicas incidentais dos filmes da década de 1930. A música, assim como a utilização das paisagens naturais e do povo, constituiu um dos elementos fundamentais para um cinema de caráter nacional, dentro de um projeto nacionalista vigente naquele momento no país.

A música para cinema sempre seguiu um modelo romântico, onde o grande paradigma foi a obra e os procedimentos musicais de Richard Wagner, princi-palmente o leitmotiv. Autores como Claudia Gorbman3 tratam grande parte das músicas de filmes como neorromânticas. No entanto, nas primeiras décadas do século XX, compositores de cinema passaram a adotar posturas modernistas. Não apenas alguns destes músicos já utilizavam esta sintaxe, como tam-bém a linguagem cinematográfica representava um emblema do mundo moderno, onde o gosto pelo mecanicismo, o progresso tecnológico, a velocidade e a fragmentação (inclusive no processo industrial) se refletiam na decupagem dos planos fotográficos e na montagem. No Brasil, a vertente musical modernista adotada nos filmes foi o nacionalismo.

Como vimos, músicos eruditos e também os populares já vinham trabalhando no cinema silen-cioso no país. Com o advento do filme sonoro, a utilização de alguns destes compositores foi um

2 Apud Cinearte, Rio de Janeiro, n. 517, p. 7, 15 ago. 1939.3 GORBMAN, Claudia. Scoring the indian: music in the liberal western. In: BORN, Georgina e HESMONDHALGH, David (Eds.). Western music and its others: difference, representation and appropriation in music. Los Angeles: University of California Press, 2000. p. 234-253.

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processo quase natural. Coincidentemente, grande parte destes profissionais seguia o nacionalismo musical, como Radamés Gnattali, Francisco Mig-none, Heitor Villa-Lobos, entre outros.

Na época, o nacionalismo musical constituía um padrão de modernidade e contemporaneidade. Esses compositores transpuseram seus próprios estilos pessoais a serviço dos filmes. A interação desta textura sonora brasileira com os filmes pro-priamente ditos contribuiu para a construção de produções reconhecíveis como nacionais.

O mais importante trabalho musical para o cinema brasileiro dos anos 30 foi a trilha sonora de Villa-Lobos para o filme O descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro, lançado em dezembro de 1937, em pleno regime do Estado Novo.

O filme segue a estrutura do cinema clássico nar-rativo, mas ainda se assemelha muito aos filmes silenciosos ou sonoros no sistema Vitaphone. Praticamente não existem diálogos, ou são ínfimos, e Humberto Mauro utiliza intertítulos, recurso característico do cinema mudo. A música está presente durante toda a obra.

Em O descobrimento do Brasil, tanto o filme em si, com sua narrativa e suas imagens, como a música são nacionalistas. Do ponto de vista do nacionalismo, o roteiro e a representação imagética se inserem no paradigma do nacionalismo romântico, com seu aspecto livresco e academicista. Já a música se insere nos padrões do nacionalismo modernista.

A música foi gravada com uma orquestra de cerca de sessenta músicos, mais o coro de cem vozes do Orfeão dos Professores do Distrito Federal, no estúdio de som de Fausto Muniz, com a regência do próprio Villa-Lobos. O compositor também par-ticipou da pesquisa de ruídos para a trilha sonora.

Nos filmes musicais temos a supremacia da música popular brasileira em números de canto e dança, tanto nos filmes no sistema Vitaphone como no Movieto-ne. A grande maioria dos compositores de sucesso compôs canções originais, ou teve peças já gravadas utilizadas nos filmes. Também os intérpretes, então ídolos do rádio, eram presenças constantes nas fitas.

Entre os principais filmes musicais do período te-mos Coisas nossas (1931), de Wallace Downey; Alô, alô Brasil (1933), de Wallace Downey, João de Barro e Alberto Ribeiro, primeiro musical carnavalesco realizado no Brasil; Estudantes (1935), de Wallace Downey; Alô, alô Carnaval, de Adhemar Gonzaga; O samba da vida (1937), de Luiz de Barros; Joujoux e balangandans (1939), de Amadeu Castelaneta; e Banana da terra (1939), de Ruy Costa.

Nos musicais a presença da música incidental era irrisória. As músicas orquestrais originais eram uti-lizadas na abertura e no encerramento dos filmes. Muitas vezes na abertura tínhamos um pot-pourri das músicas populares ou temas que seriam apre-sentados no transcorrer da película.

Em um filme como Tererê não resolve (1938), de Luiz de Barros, ouvimos na abertura uma seleção de temas carnavalescos, um samba com marcante percussão, O abre alas de Chiquinha Gonzaga e uma marcha lenta (próxima à marcha-rancho), com orquestração de Augusto Vasseur, regência de J. Rondon e Ernani Amorim, interpretada pela Orquestra do Cassino da Urca. O filme não é ne-cessariamente um musical, mas uma comédia de vaudeville. Por ser ambientado no carnaval carioca, o repertório carnavalesco ouvido no corso da ave-nida Rio Branco e no baile do Teatro João Caetano (Baile das Atrizes) é constante na fita. Não há uma música incidental sequer, e apenas um número mu-sical é apresentado. Este número, com a marchinha Seu condutor, de Herivelto Martins, é interpretado pela dupla Alvarenga e Ranchinho.

Na década de 1930, a música popular brasileira se fazia presente concomitantemente na indústria fonográfica, no rádio e no cinema. Em um proce-dimento típico da indústria cultural, músicas do cinema também eram lançadas em disco. Duas can-ções do filme Ganga bruta foram gravadas em disco pela Columbia, de nº 22226B (381505 e 381506), cantadas por Moacyr B. da Rocha, acompanhadas pela Orquestra Columbia – a canção Ganga bruta, de Heckel Tavares e Joracy Camargo, e a valsa Teus olhos... água parada, de Radamés Gnattali.

No caso de Coisas nossas (1931), primeiro filme mu-sical sonoro brasileiro em longa metragem, apesar

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das limitações do sistema Vitaphone, possuía di-versos esquetes e diálogos humorísticos sertanejos. Vemos desfilar várias músicas populares, interpre-tadas pelas estrelas do rádio em São Paulo. O filme seguia uma vertente sertaneja da cultura brasileira.

Foi na primeira metade dos anos 30 que se começou a fazer os filmes musicais para lançamento na época do carnaval. Estas produções serviam também para divulgar as marchinhas e sambas que seriam sucesso nos festejos momescos. Esta prática perdurou por cerca de três décadas no cinema brasileiro. Em Alô, alô Brasil, a primeira produção deste tipo, mesmo conten-do canções inéditas, algumas já eram conhecidas do público carioca na época do lançamento. Nos musi-cais seguintes tratou-se de apresentar apenas músicas inéditas, como aconteceu com Estudantes. Os filmes musicais carnavalescos se tornaram rapidamente uma tradição. A não realização de nenhum exemplar deste gênero cinematográfico em 1938 causou indignação no compositor Alberto Ribeiro, que considerava esses filmes “a forma mais positiva e atraente de apresen-tação e difusão das músicas do carnaval”.4

Na década de 1930 vimos não somente o estabele-cimento do cinema sonoro, como também a rápida modificação na forma de utilização da música numa nova gramática cinematográfica, que fazia uso também da fala, silêncio, ruídos e outros sons. A música incidental deixou de ser onipresente e passou a ser episódica, conforme as necessidades dramáticas das obras cinematográficas. O cinema sonoro empregou alguns dos mais importantes compositores brasileiros da época. O que vemos nessas produções é o grande uso da música bra-sileira, quer a música nacionalista modernista nas trilhas incidentais, quer a música popular brasileira. Também os principais cantores, então grandes ídolos do rádio, tinham participação constante nos filmes. Foi nesse período que se consolidou um modelo de cinema musical que seria aproveitado nas décadas subsequentes no país.5

4 Cinearte, Rio de Janeiro, n. 479, p. 43, 1º jan. 1938.5 Ver também: CABRAL, Sérgio. No tempo de Almirante: uma história do rádio e da MPB. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. p. 35-55; CINEMATECA BRASILEIRA. Filmografia brasileira. São Paulo: Cinemateca Brasileira/Secretaria do Audiovisual/Ministério da Cultura. Disponível em: <http://www.cinemateca.gov.br>; PEREIRA, Carlos Eduardo. A música no cinema sonoro brasileiro na década de 1930: nacionalismo, música popular e identidade cultural. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.

Ídolo do rádio, o cantor Mário Reis teve uma carreira de sucesso no cinema

Os maestros e compositores Radamés Gnattali e Francisco Mignone começaram suas carreiras acompanhando ao piano filmes silenciosos

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Luiz de Barros, pioneiro do cinema falado e um dos mais produtivos cineastas brasileiros

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1 Vieira, João Luiz. a chanchada e o cinema carioca. in: ramos, Fernão (org.) História do cinema brasileiro. são Paulo: art editora, 1987. p. 149.2 os curtas-metragens de Humberto mauro mencionados neste trabalho estão relacionados no Catálogo de filmes Funarte, edição de 1996.

Villa-Lobos e Noel rosa. alberto Nepomuceno e Carmen miranda. Carlos Gomes e Lamartine Babo: na extensíssima obra de Humberto mauro, as manifestações musicais são de enorme diversidade e desempenham um papel primordial, seja como música diegética ou não-diegética, seja, de modo frequente no caso dos curtas-metragens, funda-mentando o próprio assunto do filme. Assim, pa-rece bastante oportuno estudar a música na obra de Humberto mauro, tanto nos seus curtas-metragens como nos filmes de maior duração.

A música nos curtas e médias- metragens de Humberto Mauro

Humberto mauro produziu mais de duzentos curtas-metragens para o iNCe – instituto Na-cional do Cinema educativo, criado em 1937 por Getúlio Vargas e organizado pelo antropólogo e pioneiro do rádio edgar roquette-Pinto, a pedido do ministro Gustavo Capanema, do ministério da educação e saúde Pública. o iNCe...

...foi o primeiro órgão oficial no Brasil estritamente planejado para o cinema, possuindo função estrita-mente pedagógica, em sintonia com o que o presiden-te definia como o papel principal do cinema – fornecer um programa geral para a educação das massas que valorizasse, principalmente, os aspectos variados e desconhecidos da cultura brasileira.1

Dos curtas-metragens de Humberto mauro2 rela-cionados diretamente com a música, destaca-se a coleção Brasilianas, que o tempo consagrou como um conjunto de clássicos do cinema brasileiro. realizados nos anos 40 e 50, a música está na sua própria origem:

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Humberto Mauro brinca com os animais durante filmagem de Manhã na roça – Brasilianas (1956)

Humberto Mauro e Murilo Salles filmam Carro de bois (1975)

Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de são Paulo. Professor titular da Faculdade Cásper Líbero. autor do livro A música no cinema brasileiro: os inovadores anos 60 (Terceira margem, 2009).

Irineu Guerrini Jr.

Apontamentos para um estudo da música nos filmes de Humberto Mauro

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esses filmes têm como base os cantos de trabalho, a música folclórica e algumas canções populares tradi-cionais. Fazem parte desse conjunto: Aboios e cantigas, de 1954, que apresenta o canto dos vaqueiros para reunir a boiada, trabalho filmado em Volta Grande, minas Gerais, terra natal de Humberto mauro; Canções populares (Azulão e O pinhal), de 1948, com interpreta-ções cinematográficas das duas canções – a primeira foi filmada em Volta Grande, a segunda em Campos do Jordão, sP; Canções populares (Chuá... chuá... e A casinha pequenina), de 1945, com ilustrações dessas can-ções tão conhecidas; Cantos de trabalho – música folclórica brasileira, de 1955, que apresenta o canto do pilão, do barqueiro e da pedra; Engenhos e usinas – música folclórica brasileira, filmado em Volta Grande; Manhã na roça – o carro de bois, de 1956, o alvorecer na roça com a em-bolada de almirante O galo garnisé e roteiro musical de José mauro; e Meus oito anos – canto escolar, 1956, com a ilustração de uma versão musical do poema homônimo de Casimiro de abreu. Há ainda outro curta dirigido por Humberto mauro que não está catalogado como parte do conjunto Brasilianas, mas poderia estar: trata-se de um dos curtas-metragens brasileiros mais conhecidos de todos os tempos: A velha a fiar, de 1964, com música interpretada pelo Trio irakitan, que alguns consideram um videoclipe realizado antes que essa expressão fosse inventada.

mas Humberto mauro também se preocupava em divulgar a produção erudita. Numa das suas palestras, de 8 de novembro de 1943, referindo-se à música dos filmes brasileiros, ele perguntava:

Por que, porém, há de ser sempre música ligeira, can-ções, sambas?... Nós podíamos perfeitamente divulgar

também melodias desconhecidas do público brasilei-ro, de compositores brasileiros notáveis, como José maurício, o próprio Carlos Gomes, Henrique oswald, alberto Nepomuceno, para falar apenas em alguns que já morreram. E podemos ficar certos de que há músicas desses homens absolutamente populares.3

mas, em outra palestra, de 17 de junho de 1944, ele também reconhece que, com a chegada do som, tudo ficou mais complicado e mais caro, inclusive a música:

A música, os direitos autorais, ficou tudo por conta do produtor. antigamente, quem dava a música era o exi-bidor. Hoje, é o produtor. e não pode ser a musguinha de Caixa-Pregos tocando valsinhas e tangos: tem de ser mesmo uma sinfônica. Uma sinfônica ou conjuntos com músicos de classe. Tudo isso custa um dinheirão.4

E ainda sobre a música dos seus filmes, ele revela:

É verdade que contei com o gênio Villa-Lobos. mas, na maioria das vezes, comprava música a metro. Um dia quis colocar um trecho de O guarani, numa fita, e fui procurar o representante da editora. Pediu quarenta contos. eu exclamei: “mas espere aí! Não quero usar o Guarani todo! só beliscar. Um pedaço daqui, outro dali. resumindo: cantei os pedaços que queria e levei pr´a casa setecentos cinquenta mil réis de Carlos Gomes e quinhentos e sessenta de O orvalho vem caindo”.5

Alberto Nepomuceno (1864-1920) é um curta-metra-gem que apresenta aspectos da vida daquele que foi um dos pioneiros do nacionalismo musical na música clássica brasileira. O filme traz trechos da série Brasileira: Alvorada na serra, Intermédio, A

3 ViaNy, alex (org.). Humberto Mauro: sua vida, sua arte, sua trajetória no cinema. rio de Janeiro: arte Nova/Embrafilme, 1978. p. 135.4 ibidem, p. 148.5 ibidem, p. 181.

Partitura da trilha do filme O descobrimento do Brasil (1937), composta por Villa-Lobos

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ApontAmentos pArA um estudo dA músicA nos filmes de Humberto mAuro

sesta na rede e Batuque. o nacionalismo pioneiro de Nepomuceno, assim como o de outros compo-sitores retratados, devia agradar ao nacionalista Humberto mauro – o que não o impediu de de-dicar trabalhos a compositores não identificados com essa corrente musical.

A música de Carlos Gomes aparece em dois filmes de Humberto mauro para o iNCe: Carlos Gomes (O escravo), de 1944, e Carlos Gomes (O guarani), de 1942. mas aqui a informação dada pelo catálogo da Funar-te não é correta. os dois são caracterizados numa categoria genérica, que também aparece em outros títulos: “documentários sobre música e folclore”. Na verdade, são versões para o cinema de trechos das duas óperas de Carlos Gomes que fazem parte dos títulos.6 sobre o Guarani, afirma Sheila Schvarzman, professora visitante do instituto de artes da Unicamp:

Mauro filma a Invocação dos Aimorés, d’O guarani em Carlos Gomes, onde de novo usa a verticalidade das árvo-res no cenário natural para criar a ideia de elevação que a grande cerimônia indígena do conflito entre os Aimorés, Peri acorrentado e a suplicante Ceci sugerem. Uma ária de ópera filmada no meio da floresta da Tijuca, feita basicamente da sabedoria da encenação, que coaduna admiravelmente o ritmo e o fraseado da música com o enquadramento das imagens ordenadas pelas linhas ver-ticais das árvores e do corpo dos cantores, que formam massas de forma, luz e movimento e linhas horizontais que se contrapõem, demarcando os conflitos.7

Por essa descrição, pode-se inferir que Carlos Gomes (O escravo) também tenha sido uma ária de ópera filmada.

mauro dedica um de seus curtas ao republicano e wagneriano Leopoldo miguez, autor da música do Hino à República. o título catalogado é Leopoldo Miguez (Hino à República, Pelo amor e Poema Sinfônico Prometeu). Pela duração, de apenas sete minutos, as obras não são apresentadas integralmente.

Ponteio (2º Concerto para piano e orquestra de Heckel Tavares), de 1941, é outro curta de mauro dedicado à música erudita brasileira. em Pequena história da música, livro de mário de andrade, há uma ilustração fotográfica desse curta-metragem que apresenta uma reprodução de dois fotogramas do filme de 35 mm, incluindo-se as perfurações e a trilha sonora.8

No mesmo livro, por sinal, há ainda outra ilustração semelhante, esta com imagens de souza Lima ao piano, mas sem identificação da música.9

Fantasia brasileira (Concerto para piano e orquestra de J. Otaviano) é de 1943. João otaviano Gonçalves nasceu em Porto alegre, em 1892; teve uma intensa ativi-dade como professor no rio de Janeiro, e deu aulas para Heckel Tavares e Lorenzo Fernandez, entre ou-tros. Faleceu nessa cidade em 1962. É também dele a música que Humberto mauro utilizou nas duas versões que fez para o conto de machado de assis que têm como título Um apólogo – Machado de Assis, de 1936, e Um apólogo: a agulha e a linha – Machado de Assis (1839-1939), de 1939, quando se comemorava o centenário de nascimento do escritor.

Villa-Lobos não poderia faltar nesta relação. É seu o Hino à vitória que inspirou o documentário homônimo de Humberto mauro. Chamou-me a atenção, no citado catálogo, o ano mencionado da sua realização: 1938. Que vitória? Um exame da partitura de Villa-Lobos indica que esse não é o ano correto: na verdade, a com-posição é de 1942, foi dedicada “ao presidente Getúlio Vargas, guia da Juventude Brasileira”,10 e sua letra refere-se à entrada do Brasil na segunda Guerra mundial. Hino à vitória, para coral a quatro vozes, teve palavras de Gustavo Capanema, que foi ministro da educação de Vargas. seus primeiros versos: “Nesta hora sombria do mundo/ Hora grave de guerra e aflição/ Mais uni-dos seremos e nada/ Poderá contra a nossa união...”.11 mereceu uma daquelas apresentações-monstro executadas no estádio do Vasco da Gama, no rio de Janeiro, com um coral de 15 mil escolares,

6 Note-se que mauro preferiu a tradução O escravo e não o título original Lo schiavo, muito mais comum quando se fala dessa obra cujo libreto original é em italiano. o nacionalismo de mauro estava em sintonia com o nacionalismo do governo de Vargas.7 sCHVarZmaN, sheila. O livro das letras luminosas: Humberto mauro e o instituto Nacional de Cinema educativo. Disponível em: <http://www.mnemocine.art.br>. Último acesso em: 22 fev. 2010.8 aNDraDe, mário de. Pequena história da música. 6. ed. são Paulo: martins, 1967. p. 154.9 ibidem, p. 171.10 ViLLa-LoBos, Heitor e CaPaNema, Gustavo. Hino à vitória. são Paulo: irmãos Vitale, 1942. Versão para coro e piano.11 ViLLa-LoBos, Heitor e CaPaNema, Gustavo, op. cit., versão para coral a quatro vozes.

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regido pelo próprio Villa-Lobos. Não tive acesso a esse documentário, mas é provável que se trate de um registro dessa apresentação.

em campo oposto ao nacionalismo de Villa-Lobos e de alberto Nepomuceno, coloca-se Henrique oswald, com obra de inspiração totalmente europeia. É a ele que mauro dedica um de seus curtas-metragens: Hen-rique Oswald (Berceuse), de 1942, descrito no catálogo como “biografia do pianista e compositor brasileiro, suas principais obras, destacando-se a Berceuse”.12

são também de mauro os curtas-metragens Cultura musical, de 1951, coprodução do iNCe com a Brasil Vita Filmes; Dança clássica, de 1939, “documentário sobre dança com orientação de Vera Grabinka e Pierre michailowsky”;13 Dança regional argentina (Escola Sarmien-to), de 1937 (talvez uma visita dessa escola ao rio de Janeiro); O cisne, de 1936, com coreografia da mesma dupla de Dança clássica e inspirado no mais conhecido movimento de O carnaval dos animais, de saint-saens. ainda no campo da dança, encontram-se na sua obra Coreografia popular do Brasil, de 1940 (mas consta no catálogo que esse filme é mudo), e Coreografia, de 1947, com a participação da bailarina maria edith Cornelius, que interpreta O canto do cisne negro, de Villa-Lobos.

outro curta de Humberto mauro que contou com a participação de um compositor erudito brasileiro foi O despertar da redentora, de 1942, com música de Heckel Tavares. se hoje esse título pode remeter ao golpe militar de 1964, na época lembrava a princesa que assinou a Lei Áurea, conforme explica o catálo-go da Funarte, que afirma ser o filme “baseado em argumento da escritora maria eugênia Celso sobre um episódio da vida da Princesa isabel. Filmado no museu imperial de Petrópolis”.

entre os médias-metragens, destaca-se Os bandei-rantes, também produção para o iNCe, de 1940. Este filme, que procura contar “a epopeia do desbravamento e da conquista do território, na procura do ouro e das pedras preciosas”,14 conta

com música de Francisco Braga, cuja composição mais conhecida é o Hino à Bandeira. segundo o próprio diretor, o filme “permitiu que o maestro Francisco Braga fizesse um verdadeiro pot-pourri das suas melhores composições. apenas o Prelúdio era inédito”.15

A música nos longas-metragens de Humberto Mauro

se a obra de Humberto mauro exibe tamanha riqueza musical quando se trata dos seus curtas-metragens, a importância da música também seria marcante em seus longas-metragens.

Ganga bruta, filme de 1933, marca uma fase de tran-sição entre o cinema mudo e falado, com o uso de discos sincronizados com a imagem. mas o som já estava presente no seu planejamento, embora os efeitos sonoros tivessem sido acrescentados na montagem. em seu livro 50 anos de Cinédia, alice Gonzaga, filha de Adhemar Gonzaga, fundador da Cinédia, a empresa produtora, relaciona na ficha técnica as músicas e compositores, bem como o sistema sonoro empregado:

Músicas do filme: Ganga bruta, canção de Heckel Tava-res com letra de Joracy Camargo, Teus olhos...água parada, canção com música de radamés Gnattali; Coco de praia no. 1 e Coco de praia no. 2, canção e letra de Heckel Ta-vares, gravadas em disco Columbia 22226 B, cantadas por moacyr B. rocha. adaptação de música e sons: Bichara Jorge; música: radamés Gnattali. Gravação: sistema Vitafone (com som no disco), rCa Victor (48 discos), sob direção geral de Luiz seel.16

e, como lembra Fernando morais da Costa, em alguns momentos a música do filme guarda relações estreitas com a imagem:

além das canções, há, por exemplo, o batuque que serve de trilha sonora à briga no bar; a própria sequencia

12 BrasiL, ministério da Cultura. Catálogo de filmes Funarte. Pesquisa de angela souza. rio de Janeiro: Funarte, 1996. p. 65.13 ibidem, p. 41.14 ibidem, p. 19.15 ViaNy, alex, op. cit., p. 135.16 GoNZaGa, alice. 50 anos de Cinédia. rio Janeiro: record, 1987. p. 40.

O acordeonista Mário Mascarenhas interpretou um dos personagens principais de O canto da saudade (1952)

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de abertura, na qual a música de casamento faz uma pausa sincronizada com o plano de detalhe da mão da noiva, chamando atenção, pela sua interrupção, para o momento de colocação da aliança. a festa na fazenda é acompanhada pelo violão, em concordância com a imagem. Próximo ao fim, a Ave-Maria, que serve de trilha sonora ao novo casamento, começa com um arranjo de sinos sobre a imagem dos sinos na tela, es-tabelecimento proposital da confusão entre o espaço em que a música se situa, dentro ou fora da ação.17

e, citando um trabalho de Hernani Heffner,18 Costa menciona o uso da já famosa canção Taí, de Joubert de Carvalho, que não consta dos créditos do livro de alice Gonzaga, talvez porque não tenha sido composta especialmente para o filme, sendo usada uma gravação já existente.

Como informa a ficha técnica do filme, em Ganga bruta o som era gravado em discos, que eram preca-riamente sincronizados com o filme. Esse sistema – Vitaphone – foi em pouco tempo substituído pela gravação óptica da trilha sonora na própria película.

em A voz do Carnaval, também de 1933, com di-reção dividida entre mauro e adhemar Gonzaga, a equipe já contava com uma evolução tecnoló-gica para a gravação de som: no ano anterior, a empresa havia importado dos estados Unidos o primeiro aparelho movietone, para gravação do som na película, em trilha óptica. ranchos e cordões foram gravados com som direto nas ruas do rio de Janeiro. alice Gonzaga relaciona em seu livro as canções que se ouvem no filme – entre elas, algumas que viriam a ser clássicos da música popular brasileira:

Música: trechos dos sambas e/ou canções: Linda mo-rena, aí, heim?! e Moleque indigesto, de Lamartine Babo; Boa bola, de Lamartine Babo e P. Valença; Fita amarela, de Noel rosa; Mas como..., de Noel rosa e Francisco alves; Formosa, de J. rui e Nássara; É batucada, de J.

Luís de moraes; Macaco, olha o teu rabo, de Benedito Lacerda e G. Viana; Trem blindado e Moreninha da praia, de Carlos Braga; Vai haver barulho no chatô, de W. silva e Noel rosa; Good bye, boy, de assis Valente; Allo, Jones, de Jurandir santos; e Opa, opa, de maércio e mazinho.19

entre os cantores, destaca-se Carmen miranda, que divide com Lamartine Babo a canção Moleque indigesto, deste último.

Favela dos meus amores, de 1935, foi dirigido por Humberto mauro para a Brasil Vita Filmes, de Car-men Santos, que também atua no filme. De modo pioneiro, foi filmado quase inteiramente no Morro da Providência, no rio de Janeiro, e mostra uma favela autêntica. Conta com músicas de ary Barroso, Custódio mesquita, sílvio Caldas (“...cantava sambas dolentes, como Arrependimento, com Cristóvão de alencar”20) e orestes Barbosa. armando Louzada faz o personagem Nhonhô, diretamente inspirado em sinhô, um dos pioneiros do samba carioca, autor de Jura. Jorge Amado, que assistiu ao filme na época do seu lançamento, escreveu de maneira muito elogiosa sobre o filme, e com relação à música, afirma: “Note-se também, com todos os louvores, a introdução das escolas de samba, o maxixe dançado no cabaré, e todas as músicas do filme que são muito boas”.21 Desse filme, só existem fragmentos.

em 1936, é lançado Cidade-Mulher, outro longa-metragem que Humberto mauro dirigiu para a Brasil Vita Filmes. o enredo girava em torno da montagem de uma revista teatral no Beira-mar Cassino. Foi o único filme brasileiro que contou com canções especialmente compostas por Noel rosa. e havia, também, participações de orlando silva, irmãs Pagãs, Bibi Ferreira (que, além de uma riquíssima carreira de atriz, sempre iria mostrar seus dotes de cantora) e um foxtrote cantado por raul roulien (o gênero ameri-cano apresentado por este último foi provavelmente devido à sua experiência em Hollywood). Não há nenhuma cópia conhecida desse filme.

17 CosTa, Fernando morais da. anos 30 e 40: a música nas produções da Cinédia. in: Freire, rafael de Luna (org.). Nas trilhas do cinema brasileiro. rio de Janeiro: Tela Brasilis/Cinemúsica, 2009. p. 15.18 ramos, Fernão, op. cit., p. 145.19 GoNZaGa, alice, op. cit., p. 12-13.20 ramos, Fernão, op. cit., p. 145.21 amaDo, Jorge. Favela dos meus amores. Boletim de Ariel. s.d., p. 30. in: ramos, Fernão, op. cit., p. 145.

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em O descobrimento do Brasil, de 1937, dramatização da viagem comandada por Pedro Álvares Cabral e produção financiada pelo Instituto do Cacau da Bahia, o compositor é também Heitor Villa-Lobos, que nos anos 50 gravaria uma versão de concerto dessa obra, regendo a orquestra da radiodifusão Francesa. Os créditos do filme esclarecem que foi utilizada uma grande orquestra sinfônica e “Cem vo-zes do orfeão de Professores do Distrito Federal”.22 e mauro participou da gravação da música. Num depoimento a andré andries, para a revista Filme e Cultura, da Embrafilme,23 ele conta que foi ao estúdio onde a música estava sendo gravada, numa manhã de muito calor, e encontrou Villa-Lobos enfurecido com a falta de um violinista, que fora tomar uma cerveja na esquina e, depois de duas horas, ainda não voltara. mas ele acaba achando uma solução:

Lembrei, de repente, que era violinista, tocava muito mal, mas quem sabe... Perguntei ao maestro o que o violino tinha de fazer. ele respondeu que era apenas um ré. Bom – disse eu – se é para dar um ré, eu sei. Começamos a gravar. a orquestra fazia evoluções e o maestro apontava, em determinado momento, a batuta para mim: – réééé...mais evoluções e novamente a batuta apontando:– réééé...a coisa saiu boa, meu ré foi muito elogiado. Depois acabei dando razão ao violinista que fugiu. Tanto calor, para dar apenas um ré.

mais tarde, em 1940, a música de Villa-Lobos estará presente em outro longa-metragem de Humberto mauro: Argila, de 1940, juntamente com composi-ções de radamés Gnattali e Heckel Tavares. o que se ouve de Villa-Lobos nesse filme é um excerto do bailado e poema sinfônico Mandu-Çarará, para coro adulto misto, coro infantil e orquestra sinfônica.

após Argila, o nome de Villa-Lobos se ausenta por um bom período do cinema brasileiro, e é em outro longa-metragem de Humberto mauro que iria reaparecer: O canto da saudade, de 1952, em que o

diretor utiliza uma versão de O canto do pajé, obra de Villa-Lobos de 1933 para coro feminino a cappella. além da música de Villa-Lobos, O canto da saudade conta com músicas de Carlos Gomes, ernesto Na-zareth, Noel rosa e do próprio Humberto mauro. Note-se que um dos protagonistas, o acordeonista Galdino, é feito por mário mascarenhas, nome mui-to popular entre os praticantes e admiradores do instrumento que foi uma verdadeira febre nos anos 50 no Brasil. mascarenhas possuía uma academia de música no rio de Janeiro e publicou métodos e muitos arranjos para acordeom (e também para outros instrumentos, quando o acordeom começou a perder popularidade).

e é novamente o próprio Humberto mauro quem conta um aspecto curioso da trilha musical desse filme, numa época em que o cinema brasileiro estava talvez mais longe do que hoje em dia de ter os mesmos recursos de centros mais avançados:

a trilha sonora seria composta de músicas folclóri-cas locais. acontece que só eu sabia em que cenas elas entravam. Usava, então, um apito, junto com a câmera, para marcar o compasso da caminhada dos atores e outros movimentos. o apito era quase um sincronizador. Depois que o filme ficou pronto e fui colocar a música, pude observar que o apito tinha funcionado. a sincronização do som e da imagem ficou quase que perfeita.24

O canto da saudade foi o último longa-metragem de Humberto mauro, mas ele continuaria dirigindo curtas até 1974. Humberto mauro faleceu no dia 5 de novembro de 1983, na cidade onde nasceu.

Por este breve apanhado inicial, parecem ter ficado evidentes a importância e a diversidade da música nos filmes de Humberto Mauro. Talvez outras pes-quisas sobre a música na obra do diretor mineiro possam se concentrar e se aprofundar num grupo menor de filmes, ou mesmo numa única obra. São esses os votos do autor deste trabalho.25

22 o DesCoBrimeNTo do Brasil. Direção: Humberto mauro. Rio de Janeiro: Mec/Funarte/Riofilme, s/d. Fita VHS.23 BerNarDeT, Jean-Claude. o som no cinema brasileiro. Filme e cultura, rio de Janeiro, ano 14, n. 37, p. 2-25, 1981.24 idem.25 Ver também: TiNHorÃo, José ramos. Música popular: teatro e cinema. Petrópolis: Vozes, 1972.

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Radamés Gnattali regendo a Orquestra Brasileira, criada por ele. Ao seu lado, o violonista Zé Menezes

Músico. Mestrando em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.Daniel Menezes Lovisi

Radamés Gnattali e a trilha musical no cinema brasileiro

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1 Entende-se por música não-diegética aquela que é ouvida durante o filme sem que o espectador veja a fonte de emissão sonora, também chamada de música de fundo. A música diegética, ao contrário, é aquela que coloca em cena seus executantes.2 BARBOSA, Valdinha e DEVOS, Anne Marie. Radamés Gnattali, o eterno experimentador. Rio de Janeiro: Funarte/Instituto Nacional de Música, 1984.3 LINO, Sônia Cristina. Humberto Mauro e o Cinema Novo. Locus: revista de História, Juiz de Fora, v. 6, n. 1, p. 116-126, 2000.4 PEREIRA, Geraldo Santos. Plano geral do cinema brasileiro: história, cultura, economia e legislação. Rio de Janeiro: Borsoi, 1973.

A extensa e múltipla carreira do músico gaúcho Radamés Gnattali já foi examinada sob várias óticas. Alguns pesquisadores preferem analisar as obras sinfônicas do compositor, enquanto outros recorrem às suas peças solo ou concertos para instrumentos como piano e violão. Há ainda os que lançam olha-res sobre sua extensa relação com a música popular brasileira, firmada em anos de atuação na Rádio Nacional do Rio de Janeiro e no trabalho constante como arranjador de discos de inúmeros cantores e cantoras. Este artigo trata de uma parte significativa, porém ainda pouco explorada, da carreira do maes-tro: seu vasto trabalho como compositor de trilhas musicais para o cinema brasileiro.

A música não-diegética,1 que acompanha o cinema desde seu surgimento no final do século XIX, é o destaque na obra musical para cinema do compositor. O desenvolvimento da linguagem cinematográfica no decorrer do século XX foi acompanhado por uma es-pecialização da própria música do filme, contribuindo para a criação de um campo de trabalho repleto de especificidades. Ao compor para o cinema, os músicos precisavam observar atentamente as interações entre imagem e música e ter a consciência de que estrutura-vam uma obra feita para servir a uma história.

Com mais de cinquenta trilhas compostas ao lon-go de cinco décadas de atuação no cinema (1933 a 1983), Radamés firmou-se como um dos mais prolíficos compositores brasileiros, além de um dos mais requisitados profissionais no panorama

da produção cinematográfica nacional. Sua traje-tória como compositor confunde-se com a própria história do cinema brasileiro ao longo do século passado, percorrendo várias tendências estéticas e estabelecendo parcerias importantes com diretores e produtores de destaque no cenário nacional.

A descoberta da música no cinema por Radamés Gnattali

Nascido em Porto Alegre, em 27 de janeiro de 1906, Radamés iniciou sua vida de músico no cinema logo aos 16 anos, acompanhando filmes mudos ao piano no Cine Colombo, ainda em sua cidade natal.2 A necessidade de preencher o vazio sonoro com música constante contribuiu para desenvolver a habilidade de improvisar e a capacidade de sublinhar musicalmente as situações dramáticas vistas na tela, aptidões vitais para um músico e que ajudariam a formar um compositor versátil nos anos seguintes.

A mudança para o Rio de Janeiro em 1932 – cidade onde permaneceu pelo resto da vida – possibilitou a ampliação do contato com personagens importantes do meio artístico e cultural. Já no ano seguinte, Gnat-tali trabalhou em Ganga bruta, filme que mais tarde seria responsável por incluir o diretor Humberto Mauro na lista dos mais importantes cineastas do período mudo.3 Mas Ganga bruta não é um filme em que o som está totalmente ausente. Representante de uma fase pré-industrial do cinema nacional,4 o filme teve partes gravadas com o sistema Movietone – em

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Radamés e Pixinguinha

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Radamés Gnattali

uso nos Estados Unidos desde 1928 e que permitia a gravação óptica do som na própria película. Assim, há alguns momentos em que se ouvem falas dos per-sonagens. Os recursos escassos, porém, tornavam necessária a utilização de todo o potencial semântico das imagens e o uso de intertítulos que esclareciam certas passagens da história para o público.

Em Ganga bruta a música está presente em quase toda a trama e contribui para a efetivação dos objetivos comunicativos do filme. As composições de Gnat-tali reafirmam o que é revelado na tela através de uma relação de subordinação da música às imagens. Pelo uso de uma série de recursos musicais herda-dos principalmente do teatro e da ópera, pode-se compreender parte do processo de criação da obra: cenas tristes recebem música em modo menor, em contraste com o modo maior que aparece em situ-ações alegres, por exemplo. Músicas de andamento ligeiro acompanham cenas de lutas e confusões, numa tentativa constante de ressaltar musicalmente os movimentos físicos dos personagens.

A parceria com Humberto Mauro se seguiu com Argila (1940). Desta vez, Gnattali não aparece como compositor, mas na seleção de músicas de Heitor Villa-Lobos, Heckel Tavares e Edgar Roquette-Pinto.

Hollywood tropical: a implantaçãode um modelo industrial de cinema no Brasil

Fazer uma música ilustrativa na tentativa de repetir os movimentos de personagens e destacar as mais variadas situações dramáticas foi uma forte tendên-cia nas trilhas musicais brasileiras até a década de 1960. O recurso conhecido como mickeymousing5 apareceu muitas vezes nas obras de Gnattali, tanto em filmes do período pré-industrial, quanto na fase industrial, na qual o modelo de grandes estúdios passou a ser a tônica das produções de filmes no país. É neste período que a trilha musical sofre mu-

danças importantes. Com a afirmação definitiva do som no filme, a música recebe tratamento diferente da época do cinema mudo, aparecendo em menor quantidade e em situações específicas.

Cinédia (1930), Atlântida (1941) e Vera Cruz (1949) foram algumas das companhias de cinema nacionais que ampliaram as possibilidades de trabalho para os compositores. A organização da produção de filmes no país buscou amparo no modelo da indústria do cinema dos Estados Unidos, que já exportava para vários países as histórias filmadas em Hollywood.

Entre 1949 e 1960, época em que o modelo in-dustrial já havia se consolidado plenamente no país, Radamés Gnattali estabeleceu um ritmo de produção intenso. Com pleno domínio da técnica composicional para orquestra e instrumentos solo variados, como violão, acordeom e piano, o com-positor escreveu trilhas musicais para 37 filmes.

É notável a influência estética exercida pela cinemato-grafia estadunidense na criação de histórias, ou mesmo na composição de trilhas musicais no cinema nacional. O modelo norte-americano de música para filmes – já plenamente estabelecido desde a década de 1930 – tornou-se uma referência para vários compositores brasileiros. Houve certa padronização no uso de música nos filmes industriais brasileiros e notadamente nas chanchadas,6 que apesar de normalmente possuírem muitos números de música diegética, tinham também uma preocupação no emprego da música de fundo para pontuar várias situações dramáticas.

5 GORBMAN, Claudia. Unheard melodies: narrative film music. Bloomington: Indiana University Press, 1987. Segundo Gorbman, o mickeymousing foi um recurso composicional estabelecido no cinema, cuja característica era o acompanhamento das ações na tela de modo explícito. A música imita a direção ou ritmo dos movimentos de personagens, como quando a queda de um objeto é sublinhada por uma melodia descendente, ou quando uma porta batendo forte é realçada por um acorde na região grave do piano.6 PEREIRA, Geraldo Santos, op. cit., p. 2. Segundo Pereira, as chanchadas – e suas variações naturais como o filme carnavalesco e a paródia satírica – alcançaram grande popularidade a partir da década de 1950. Eram filmes estrelados por famosos artistas cômicos vindos do rádio ou do teatro.

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Neste período, compositores como o próprio Ra-damés se destacaram pela escrita musical fluente e criatividade na utilização de instrumentos ligados à cultura musical brasileira, além de levarem para as telas ritmos como o samba e o baião em arranjos para orquestra e/ou conjuntos de menor porte.

A produção em série de filmes ajuda a firmar um modo de se criar e utilizar trilhas musicais. Com a influência da produção norte-americana, alguns re-cursos musicais tornaram-se uma espécie de “regra geral” em muitos filmes, e ainda é possível encontrá-los até hoje. São exemplos as passagens musicais usadas para atenuar cortes entre cenas, ressaltar momentos psicológicos de personagens, situar o espectador sobre o clima e o local onde vai se passar a trama e antecipar acontecimentos dramáticos.

Rio 40 graus e Cala a boca Etelvina: a trilha musical em filmes de correntes estéticas divergentes

Filmados respectivamente em 1955 e 1958, Rio 40 graus e Cala a boca Etelvina são representantes de duas vertentes distintas do cinema brasileiro. O primeiro, dirigido pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, estabeleceu uma temática divergente das abordadas pelos filmes dos grandes estúdios brasileiros no mesmo período. Questões como a injustiça social, o despreparo dos governantes e a pobreza no Rio de Janeiro são centrais no filme. Com grande liberdade discursiva, Nelson Pereira dos Santos apresenta uma série de personagens que se aproximam muito da vida cotidiana das grandes cidades. O filme busca retratar um Brasil sob a perspectiva realista, com seus problemas sociais, violência e a cegueira dos políticos.

O segundo filme é típico exemplo do gênero chan-chada. A história é uma clara referência às comédias simples e ingênuas presentes em várias cinematogra-fias e comum também no teatro: a empregada de uma família em crise financeira é obrigada a se passar por patroa com o objetivo de enganar um tio muito

rico que promete deixar a herança para os parentes e resolver a falta de dinheiro. Com um roteiro descom-plicado, direto, momentos de “comédia pastelão” e personagens “malandros”, as tensões se resolvem com facilidade e os personagens se confraternizam num happy end 7 comum ao estilo.

Há uma clara diferença entre os dois filmes que vai além do próprio assunto tratado por ambos. Em Rio 40 graus os atores não são grandes “estrelas” do cine-ma nacional, o que faz com que o filme tenha como carro-chefe para atrair o público a sua própria história. O trabalho do diretor Nelson Pereira dos Santos é muito importante na condução de temas delicados e na escolha da maneira de tratá-los. Já em Cala a boca Etelvina há valores agregados ao filme que vão além da história apresentada. A figura da produção, ou seja, da empresa responsável pelo filme, é primordial. Trata-se de mais uma produção da Cinedistri, produtora de vários filmes da mesma linha, o que de algum modo funciona como um certificado de qualidade para o público, que já se prepara para ver seus atores favoritos em cena. Atores como Dercy Gonçalves e Paulo Goulart contribuem com algo mais do que sua atuação no filme. Seus valores como “estrelas” do cinema atraem mais espec-tadores para o produto, uma estratégia mercadológica em largo uso também nos dias de hoje.

Importante salientar que um filme é feito para ser visto, e não se julga aqui a importância ou não de se valer de mais ou menos recursos publicitários no intuito de atrair o público. O que se busca agora é compreender se a trilhas musicais de dois filmes de correntes estéticas distintas também apresentam dife-renças em sua construção e se o modo de utilização da música no filme também difere nas duas produções.

Radamés Gnattali é o responsável pela trilha mu-sical dos dois filmes. Em Rio 40 graus as músicas não-diegéticas foram construídas com base na canção A voz do morro, do sambista e compositor Zé Kéti. O tema musical funciona como um leit-motiv,8 identificando a favela onde habita parte dos

7 MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: Neurose. v. 1. Tradução de Maura Ribeiro Sardinha. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. (Coleção O espírito do tempo). Para o teórico francês, o happy end, ou final feliz dos filmes, é uma entre várias estratégias utilizadas para tornar uma história agradável e capaz de conquistar um público espectador amplo, de várias idades e classes sociais.8 Leitmotiv é uma peça musical que identifica uma situação, personagem ou grupo de personagens, reaparecendo numa trama nos momentos em que se busca ressaltar a repetição, lembrança ou mesmo a aproximação de um momento dramático ou de personagens associados àquela música. Esse recurso foi largamente utilizado nas óperas do compositor alemão oitocentista Richard Wagner.

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Radamés Gnattali

personagens da história, e acaba se relacionando também à pobreza e às dificuldades da comunidade.

O tema principal de A voz do morro é executado por uma orquestra sinfônica. A melodia é tocada pelas cordas, enquanto os metais executam frases contra-pontísticas aumentando a densidade instrumental da peça. É possível ouvir também contracantos na flauta transversa e rápidos arpejos da harpa. A seção rítmica fica a cargo do surdo e da caixa-clara. Ao longo do desenvolvimento da narrativa, Radamés Gnattali cria uma série de variações9 sobre o samba, adequando-as às necessidades dramáticas da história.

Durante todo o filme há 13 entradas de música não-diegética e, de modo geral, pode-se afirmar que a utilização da música está ligada aos cânones estéticos definidos principalmente pelas produções do cinema es-tadunidense. Encontram-se, além dos leitmotivs, o recurso do mickeymousing e entradas musicais cujas características ajudam a situar o espectador quanto ao local onde a história vai se passar – é o caso do samba que ilustra o Rio de Janeiro e liga-se à realidade de uma favela carioca. Há também situações em que a música pontua momen-tos psicológicos vividos pelos personagens de modo intenso. É o que ocorre, por exemplo, numa sequência em que um menino pobre, que vende amendoins para sobreviver, passeia por um parque e contempla as belas paisagens e animais que compõem a natureza exuberante do lugar, esquecendo-se por alguns momentos de sua dura realidade de trabalho e sofrimento. No filme, ouve-se uma variação de A voz do morro em andamento lento e expressivo, carregada de emoção. A música, através de sua natural capacidade de destacar sentimentos e emo-ções, sublinha um raro momento de alegria e poesia na vida sofrida de uma criança trabalhadora.

Ainda que seja um filme mais distanciado dos padrões reinantes no cinema industrial brasileiro da década de 1950, a trilha musical permanece atrelada às formas mais comuns de se articular imagem e música, encontradas em outras obras do período. Um ponto muito importante neste trabalho de Gnattali é a utilização de apenas uma canção popular como mote para a criação de toda a concepção da trilha musical de Rio 40 graus. A criação das variações sobre o samba de Zé Kéti deu unidade e continuidade10 à história.

Em Cala a boca Etelvina há 13 entradas musicais, sendo oito diegéticas e seis não-diegéticas. Dentre as músicas diegéticas, há cinco números musicais que funcionam como verdadeiros videoclips de grandes artistas de sucesso no país em 1958, como Emilinha Borba, Nelson Gonçalves e Jackson do Pandeiro. As músicas diegéticas têm duas funções primordiais: agregar valor à produção cinemato-gráfica através das imagens de estrelas do rádio brasileiro e ajudar na contextualização de cenários específicos.

À Radamés Gnattali coube mais uma vez o trabalho de composição das músicas não-diegéticas, que não aparecem em muito momentos, e em alguns, de maneira bastante rápida. A primeira inserção musical de Radamés Gnattali é o tema de abertura, que tem duração de um minuto e 55 segundos. A música se desenvolve a partir de dois pequenos motivos melódicos transcritos abaixo:

A peça é bastante ligeira. A instrumentação pre-dominante é dos metais: trompetes, trombones e saxofones. Podem ser ouvidas também cordas (predominância dos violinos) e flautas. A seção rítmica fica a cargo da caixa clara e dos pratos. Há também um acompanhamento feito ao piano.

Tema principal de A voz do morro,

de Zé Kéti

9 Em música, “variações” são composições feitas com base em um mesmo tema musical. Em forma de variação, uma mesma peça musical pode receber tratamentos diferenciados, seja na instrumentação, no andamento, na escolha da tonalidade ou em outros aspectos que tornem cada repetição da música diferente.10 GORBMAN, Claudia, op. cit., p. 3. Segundo Gorbman, “unidade” e “continuidade” são dois princípios presentes em muitas trilhas musicais do cinema clássico estadunidense. O princípio da unidade revela que a música, através da repetição de temas ou variações, pode ajudar a dar coesão à história e ligar momentos dramáticos diversos. Já o princípio da continuidade afirma que a música pode estabelecer ligações entre cenas e ajudar a narrativa a seguir um ritmo fluente. Essas ideias foram muito aplicadas em trilhas musicais do cinema brasileiro.

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Radamés utiliza figuras de estilo como glissando11 nos trombones, trinos nas flautas e arpejos velozes nos violinos. A orquestração sugere uma peça de caráter circense, totalmente adequada ao tipo de história que se vai contar em seguida. Características como o andamento e a instrumentação fazem com que a música de abertura ajude a definir o gênero do filme e prepare o espectador para o que será visto na tela.

O que se ouve nas entradas seguintes de música não-diegética são temas curtos que ajudam a atenuar as transições entre cenas, sempre mantendo o caráter burlesco que caracteriza a história. Há momentos em que a música pontua a briga entre alguns perso-nagens. Ouve-se então uma peça que conserva as características da abertura – como a instrumentação e o caráter – o que confere unidade à trilha musical e, consequentemente, à própria história.

O final do filme é marcado pela repetição integral do tema de abertura. Observa-se que a repetição da mesma música para o encerramento contribui para o desfecho da narrativa. Começo e fim são realçados pela trilha musical.12

Cala a boca Etelvina é mais um exemplo de um produto do cinema nacional cujas estratégias de composição e uso da música não-diegética se adéquam aos princípios formalizados em muitos filmes produzidos nos Esta-dos Unidos e que obtiveram grande difusão no Brasil e em outros países. A música busca reforçar as imagens e se coloca em inteira subordinação aos eventos narrados.

Considerações finais

Contratado para compor trilhas musicais de vários filmes de companhias cinematográficas brasileiras, observa-se que Radamés Gnattali coloca-se como um profissional a serviço da narrativa cinematográfica. A experiência como pianista, arranjador, orquestrador e regente foi fundamental para construir um músico de sólida formação, capaz de atuar em diversas frentes. Dos trabalhos realizados no rádio e nas gravadoras de

discos, Radamés adquiriu a capacidade de se adaptar aos mais diferentes estilos musicais e compor para diversas formações instrumentais. Foi essa ‘bagagem musical’ que o músico levou para os filmes.

Suas trilhas musicais mostram-se adequadas aos conteúdos das narrativas. De modo geral, as peças subordinam-se ao ritmo das imagens, contribuem para a unidade formal da história e a continuidade dos fatos narrados. Exercem também a função narrativa, seja ilustrando eventos visuais de maneira redundante ou contextualizando os cenários onde ocorrem as ações.

Nota-se que as trilhas musicais do maestro recebe-ram forte influência do modelo clássico da música de cinema, o que não significa dizer que não têm força criativa. Ao contrário, significa dizer que, como sistema discursivo, a trilha musical dos filmes hollywoodianos alcança bons resultados comuni-cativos, o que leva grande parte dos produtores nacionais a almejarem resultados semelhantes.

Dialogando com o mercado de filmes e com as res-trições impostas a uma música que se subordina às imagens, vemos que Radamés Gnattali foi um músico que sabia exatamente o que desejava obter com suas obras. Separava o que era composição livre, música de concerto que fazia por necessidade orgânica de compor, de uma música aplicada a um produto cinema-tográfico, fosse este produto mais ou menos comprometido com as normas que regiam o mercado de arte e cultura no país. Ao fazer uma clara opção por composições que serviam à linguagem cine-matográfica, observa-se que Gnattali tinha consciência do papel exercido por sua música nos filmes, compreendendo a dinâmica que rege a interação entre imagem e música.

11 O glissando é um tipo de ornamento musical caracterizado pelo deslizamento rápido entre duas notas.12 GORBMAN, Claudia, op. cit., p. 3. Para Gorbman, a utilização de música em momentos marcantes como o começo e o final de um filme é uma estratégia comum no cinema e que pode ser sintetizada sob o princípio da “função narrativa”. Este princípio estabelece que a música tenha a capacidade de realizar demarcações formais, ajudando o espectador a se situar em relação ao tipo de história contada, aos níveis de narração, o tempo e o lugar de ação. Além disso, as peças musicais inseridas na história podem ainda ilustrar, enfatizar e sublinhar momentos narrativos importantes.

Dercy Gonçalves, a atriz principal de Cala a boca Etelvina

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Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. Autor de O som no cinema brasileiro (7Letras, 2008).

Fernando Morais da Costa

Os estudos do som no cinema, da música e a lembrança dos músicos

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O maestro e compositor Remo Usai, no documentário Remo Usai – um músico para o cinema, de Bernardo Uzeda

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O recente crescimento do campo dos estudos de som no cinema no Brasil e, dentro desse campo, o maior interesse pelo caso particular da música para cinema têm sido constituídos por trabalhos que podem privilegiar a história do cinema sonoro brasileiro, e que também podem se ater a questões teóricas sobre a união dos sons com as imagens, a análise de funções narrativas delegadas ao som no geral ou à música em particular. Além desses, um tema que surge nos trabalhos dos pesquisadores, e que interessa em especial a este texto, é a lem-brança dos músicos que compuseram para cinema no Brasil: a análise específica dos seus trabalhos, a rememoração das suas biografias.

O interesse maior pelos estudos do som no cinema reflete no Brasil o que tem acontecido nas últimas três décadas na Europa e nos Estados Unidos. Nomes como Michel Chion, na França, e Rick Alt-man, Claudia Gorbman, entre outros, nos Estados Unidos, vêm escrevendo sistematicamente sobre o som dos filmes no hemisfério norte. O acesso de pesquisadores brasileiros aos seus textos forneceu metodologias, caminhos que moldassem a vontade de analisar a metade sonora dos filmes no âmbito brasileiro das pesquisas sobre o cinema.

Ao mesmo tempo, no campo da música, ocupa espaço cada vez maior a análise da música popular. Dentre outros esforços, é significativa a existência da International Association for the Study of Popular

1 CARRASCO, Ney. Sygkhronos: a formação da poética musical do cinema. São Paulo: Via Lettera/Fapesp, 2003.2 Caso da pesquisa sobre as relações entre sons e imagens no canadense Trinta e três curtas sobre Glenn Gould (François Girard, 1993) e da análise das músicas de Zbigniew Preisner para os filmes de Krzysztof Kieslowski, trabalhos de doutorado e mestrado que encontraram divulgação na forma dos artigos: MIRANDA, Suzana Reck. Filmando a música: as variações da escuta no filme de François Girard. In: MACHADO JR., Rubens et al (Org.). Estudos de cinema Socine VII. São Paulo: Annablume, 2006. p. 51-57; e MIRANDA, Suzana Reck. A liberdade e a duplicidade da música em Kieslowski. RUA – Revista Universitária do Audiovisual, Departamento de Artes e Comunicação, Universidade Federal de São Carlos. Disponível em: <http://www.ufscar.br/rua/site/?p=122>.

Music (IASPM), que congrega pesquisadores em esfera mundial, e, de especial interesse para os pes-quisadores brasileiros, a sua porção latina, a La Rama Latinoamericana de la Asociación Internacional para el Estudio de la Música Popular (IASPM – LA), fundada em 2000, e que realiza encontros bienais.

O fortalecimento de ambos os campos de conhe-cimento, do cinema e da música, no Brasil e na América Latina, tem promovido interseções, tardias talvez, entre eles. Nomes oriundos dos estudos da música e que incorporaram a especificidade da trilha musical para cinema entre os seus interesses têm contribuído para que a música dos filmes seja analisada com mais propriedade, e sua história contada com mais detalhes. Ney Carrasco, autor de Sygkhronos: a formação da poética musical do cinema,1 destaca-se não só pelas contribuições bibliográficas sobre o tema no Brasil, mas também pela partici-pação ativa na formação de demais pesquisadores. Suzana Reck Miranda agrega entre seus interesses a análise da música no cinema internacional,2 revisões críticas da teoria sobre a música no cinema em si e estudos sobre trilhas musicais no cinema brasileiro contemporâneo. Marcia Carvalho tem divulgado com regularidade sua tese de doutorado recém-defendida sobre a história da canção no cinema brasileiro. Outros nomes, como o de Guilherme Maia, já com trajetória consolidada de pesquisador graças ao mestrado e doutorado sobre a música no cinema, podem ser lembrados, além de mais pes-

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Caulos. Correio da Manhã, 1971

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3 GOLDMARK, Daniel; KRAMER, Lawrence e LEPPERT, Richard (Orgs.). Beyond the soundtrack: representing music in cinema. Los Angeles: University of California Press, 2007.4 ALTMAN, Rick. Silent film sound. New York: Columbia University Press, 2004.5 COSTA, Fernando Morais da. O som no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. p .74.

quisadores em formação que começam a também divulgar seus trabalhos.

Na Europa e nos Estados Unidos surgem a cada ano novos livros com recortes variados sobre a mú-sica para cinema. Para citar um, a coletânea Beyond the soundtrack: representing music in cinema 3 traz artigos dos já canônicos Claudia Gorbman, Michel Chion, Richard Dyer e Rick Altman sobre temas como, respectivamente: a importância do uso da música para o que são consideradas marcas autorais de diretores consagrados no cinema contemporâ-neo; a especificidade da situação da performance musical nas telas; as composições de Nino Rota; o acompanhamento musical no período mudo, com o surgimento do tema como ferramenta para unificar a narrativa cinematográfica. Altman consolidou-se, de meados da década de 70 até hoje, como o mais prolífico pesquisador sobre som no cinema do meio acadêmico norte-americano. Com uma tra-jetória que se inicia a partir dos estudos do gênero musical, passa por publicações fundamentais entre os anos 80 e 90, e neste momento culmina com as atuais pesquisas sobre as formas de sonorização no dito cinema mudo. Altman reitera a necessidade de reescrever a história do som no cinema, propondo para esse exame da história novas metodologias e um novo entendimento do objeto de análise. No recente Silent film sound,4 o norte-americano faz uma caudalosa revisão do que se entende como o acompanhamento sonoro das primeiras décadas do cinema, antes do advento do cinema sonoro em definitivo. Altman refuta, a partir de ampla documentação, pressuposições antigas sobre o som do cinema mudo, ao descrever, como vem se tornando cada vez mais estudado, a quantidade de formas que a sonorização das primeiras décadas conheceu. Um dos principais argumentos consiste em demonstrar como o acompanhamento musical não foi uniforme durante o longo período de mais de trinta anos que atende pela alcunha geral de “ci-nema mudo”. Altman lembra que a padronização da música como acompanhamento não ocorreu antes da segunda metade desse período de mais de

três décadas, e que os esforços de uniformização do uso da música nos anos 1920 não encontram simila-ridade na multiplicidade de formas de sonorização dos anos anteriores, quando os filmes podiam ser exibidos, por exemplo, acompanhados de discos, com o trabalho de sonoplastas que falseavam os ruídos sugeridos pela imagem, com um narrador à frente da tela, com atores e cantores atrás dela.

Sobre a sonorização nas primeiras décadas do cine-ma no Brasil, comentamos em texto anterior a fase de prevalência dos discos, aferida especialmente entre 1902 e 1908, o sucesso dos cantantes durante o período comumente designado como a “bela época do cinema brasileiro”, a questão do acompa-nhamento musical e os nomes fundamentais para a história da música brasileira ligados a ela. Os Oito Batutas de Pixinguinha encontravam-se, em 1919, tocando na sala de espera do Cinema Palais, no Rio de Janeiro. Ernesto Nazareth desempenhou função similar no Odeon. O jovem Radamés Gnattali fora, antes de se mudar para o Rio de Janeiro, “pianeiro” no Cine Colombo, em Porto Alegre. Tocaria ainda em salas de cinema cariocas a partir de 1924, ano de sua chegada à cidade.5 Vale lembrar que Gnattali assinaria sua primeira trilha musical para cinema em Ganga bruta (Humberto Mauro, 1933). Sua carreira de compositor e arranjador estende-se até o início da década de 80, com Eles não usam black-tie (Leon Hirszman, 1981), quando escreveu os arranjos para as canções de Adoniran Barbosa. A mesma Cinédia, o estúdio que produziu Ganga bruta, já utilizara os serviços do maestro Alberto Lazzoli na produção anterior Mulher, de 1932. Lazzoli, por sua vez, tra-balhara com o produtor responsável pela fundação da Cinédia, Adhemar Gonzaga, em Barro humano, dirigido pelo próprio em 1929.

Como começamos a dizer, há hoje no Brasil um grupo de pesquisadores que têm se dedicado a estu-dar especificamente o som no cinema, sejam esses pesquisadores vindos da própria área do cinema, sejam eles vindos da música. Fora os resultados de cada pesquisa apresentados individualmente,

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Filmagem de Aurora (1927), de F. W. Murnau, com captação de som no sistema Movietone

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surgem trabalhos que são realizações coletivas, que passam a caracterizar efetivamente um grupo.6 É o caso da publicação Nas trilhas do cinema brasileiro,7 lançada em 2009, por ocasião do 3º Festival Cine-música, encontro este voltado especialmente para o som do cinema brasileiro. No livro, uma série de artigos analisa momentos chave na relação entre a música popular e o cinema brasileiro, com des-taque, muitas vezes, para o papel dos músicos que compuseram para os filmes. Citar aqui o trabalho dos pesquisadores é ao mesmo tempo informar que lacunas importantes no estudo do som e da música vêm sendo preenchidas e fazer reverberar a lembrança dos nomes dos músicos e de seu ofício.

Martin Eikmeier analisa a obra da joia rara Remo Usai, tema de seu doutorado. Tem sido lembrada recentemente a especificidade da formação de Usai dentro do universo de compositores que prestaram serviços ao cinema nacional.8 No artigo “Remo Usai: compondo entre o encanto e o desencanto no cinema brasileiro”, Eikmeier descreve a trajetó-ria que se inicia nas aulas de orquestração com Leo Peracchi (este o compositor das trilhas musicais de, por exemplo, Barnabé, tu és meu – 1952, Amei um bicheiro – 1952, Pintando o sete – 1960) e a especializa-

6 Exemplo disso, além do que iremos citar com mais detalhes, é o nicho de discussão específica sobre o som no cinema nos encontros mais recentes da Socine – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual.7 FREIRE, Rafael de Luna (Org.). Nas trilhas do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Tela Brasilis/Cinemúsica, 2009.8 Dentro dos esforços para que nem a pessoa nem sua obra caiam no esquecimento, destacam-se a lembrança do maestro pelo Festival Cinemúsica, onde foi premiado pelo conjunto da obra, e o empenho pessoal de Tim Rescala. Sobre a propalada raridade da formação específica de músicos para cinema no Brasil, devemos dizer que o panorama vem, paulatinamente, mudando. Surgem, a partir dessa mudança, nomes como o de Antonio Pinto, cujo sucesso das trilhas para produções brasileiras recentes pavimentou o caminho para uma atual carreira de sucesso no cinema norte-americano.9 Ibidem, p. 65-83.

ção nos Estados Unidos, onde Usai seria aluno de Miklós Rózsa, nome cuja importância para a música do cinema clássico norte-americano dispensa aqui explicações. Eikmeier examina detalhadamente dois trabalhos de Remo Usai: a música para a chanchada E o bicho não deu (J.B. Tanko, 1958) e para Boca de Ouro (Nelson Pereira dos Santos, 1962).9 Vale destacar que a parceria com Nelson Pereira dos Santos concreti-zaria, na sequência, a mais renomada trilha musical de Usai, em Mandacaru vermelho (1963). É conhecida a união de ritmos nordestinos com as técnicas de orquestração vindas do cinema clássico sintetizada neste trabalho. Dentro da obra que perpassa a dé-cada de 70 e chega a meados dos anos 80, o próprio Usai orgulha-se ainda da suíte composta para O caso Cláudia (Miguel Borges, 1979).

No mesmo livro, Irineu Guerrini Jr. analisa a pluralidade de alternativas criadas para o uso da música na década de 1960. Não faltam comentários sobre o papel de Sérgio Ricardo como compositor de Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), a música de Luiz Bonfá em Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962), a parceria entre Rogério Duprat e Walter Hugo Khouri, exemplificada por Noite vazia (1964), a colagem de O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), a experimentação no limiar entre música e ruído, sugerida e gravada por Geraldo José em Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963). No texto “Anos 1970: o desenlace da polifonia tropical e a marginália na música de cinema”, Marcia Carvalho cita as variadas colabo-rações entre a música popular e os filmes daquela década. São célebres os arranjos vocais de Caetano Veloso para São Bernardo (Leon Hirszman, 1972); as canções de Chico Buarque marcam presença em filmes distintos como Dona Flor e seus dois maridos, dirigido por Bruno Barreto (1976), Quando o carnaval chegar (1972) e Bye bye Brasil (1979), ambos dirigidos por Cacá Diegues; em O amuleto de Ogum (Nelson

Alberto Lazzoli e Leo Peracchi compuseram e dirigiram trilhas de filmes da Cinédia e da Atlândida

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10 Ibidem, p. 84-95.11 Ibidem, p. 96-118.12 Ibidem, p. 119-130.13 COSTA, Fernando Morais da, op. cit.14 Ver também: GUERRINI JR., Irineu. A música no cinema brasileiro: os inovadores anos sessenta. São Paulo: Terceira Margem, 2009; MAIA, Guilherme. Alguns aspectos da música no cinema brasileiro moderno. Digitarama – revista online do curso de cinema da Uni-versidade Estácio de Sá. Disponível em: <http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digitarama>.

Pereira dos Santos, 1974), Jards Macalé incorpora em sua música os ruídos gravados para o filme por, mais uma vez, Geraldo José.10 Lembraríamos ainda parcerias efetivas como a de Milton Nascimento e Ruy Guerra, que escreveram juntos a música do pouco citado A queda (1975), a continuação do mais lembrado Os fuzis.

Em “Cidade oculta: o jogo entre a tradição e a ruptura no campo dos sonhos dos anos 1980”, Ney Carrasco analisa a música do filme de Chi-co Botelho e a presença nas telas da chamada Vanguarda Paulistana, movimento integrado por Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e outros.11 Em “Bicho de sete cabeças contado pelas canções”, Suzana Reck Miranda comenta as funções das músicas compostas por André Abujamra para o filme de Laís Bodanzky, bem como das canções pré-existentes de Dorival Caymmi, caso da se-quência em que Quem vem pra beira do mar parece não vir do espaço da ação até o momento em que a descobrimos cantada por um dos internos; da música que empresta o título ao filme, compos-ta por Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Renato Rocha; e acima de tudo das canções de Arnaldo Antunes que pontuam a narrativa.12 Filmes como Bicho de sete cabeças ou Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997) mantêm em produções mais recentes a relação íntima entre música popular e cinema brasileiro que fora fundamental em tantos momentos da história do último, como atestam as análises não só das décadas de 1960 e 1970, mas também o exame de momentos anteriores, como a própria passagem para o sonoro, ou mesmo dos filmes cantantes entre o fim da década de 1900 e o início da de 1910, como já analisamos antes.13

No conjunto de textos que citamos, são lembradas ainda as músicas das chanchadas, modelo duradou-ro de indiscutível sucesso da união entre música e cinema, através da análise de Carnaval Atlântida, feita

por Leonardo Côrtes Macário no texto “Canções para o carnaval”. É lançado um novo olhar sobre a trilha musical das produções da Vera Cruz: Cíntia Campolina de Onofre procura, em seu estudo, en-tender não apenas as sempre citadas semelhanças entre aquelas composições e as do modelo narrativo clássico, mas também as rupturas que não poderiam evidentemente deixar de existir.

Se nos demoramos em mencionar tais pesquisas recentes em torno da música composta para cinema no Brasil é porque entendemos que esses esforços vêm, aos poucos, mapeando um vasto terreno a ser explorado. Por vezes, filmes já canônicos e fartamente analisados são mais uma vez examina-dos, embora a análise particular de suas músicas seja ainda inédita; por outras, surgem objetos surpreendentes, intocados dentro da história do cinema brasileiro exatamente pelo fato de que não haviam sido, ainda, ouvidos com atenção. E, como dissemos, parte fundamental desses trabalhos é a pesquisa relativa ao ofício do músico de cinema, tenha tido ele a formação específica para isso, o que é raro, ou emprestasse aos filmes serviços vindos da música popular, o que foi comum.14

Geraldo José foi responsável pela sonoplastia de Vidas secas,

de Nelson Pereira dos Santos

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Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul e dos cursos de graduação da Universidade Metodista de São Paulo. Autor do livro Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi (Ateliê, 2007) e coorganizador de Mutações da cultura midiática (Paulinas, 2009).

Baile perfumado: entre o som do manguebeat e as imagens do árido movie

Herom Vargas

Cena do filme Baile perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas

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“Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar.”

Esta foi uma das máximas do cantor e compositor pernambucano Francisco de Assis França, conhe-cido como Chico Science, um dos líderes do man-guebeat, movimentação musical que sacudiu Recife e todo o país nos anos 1990. Cantada em Um passeio no mundo livre, composição de Chico e do grupo Nação Zumbi (CD Afrociberdelia), a frase indica a proposta inquieta de desenvolvimento e experimentação bradada por jovens que, naquela década, percebiam certa calmaria na cultura pop pernambucana frente às produções que vinham do comercial e viciado eixo Rio-São Paulo. Desde os anos 80, o que se ouvia na cidade eram os sucessos do sudeste, repetidos à exaustão pelas emissoras de rádio e TV.

Inspirada no punk e no hip hop, a saída encontrada foi arregaçar as mangas e tentar fazer o próprio som, cavar oportunidades em bares e casas notur-nas de Recife, organizar festivais e shows em coo-perativa para fazerem ouvir seus acordes e letras. Não tardou para o público e alguns mediadores culturais observarem que em Recife borbulhava uma nova cena musical. Jornalistas, como José Teles e Marcelo Pereira, e empresários e agitadores culturais, como Roger de Renor e Paulo André, abriram espaços para que o novo som pudesse ser ouvido pelos curiosos e inquietos.

Apesar de vários grupos de músicos terem conso-lidado o movimento – como Mundo Livre S/A, Mestre Ambrósio, DJ Dolores, Comadre Florzi-nha, Querosene Jacaré, entre outros – o som que mais atraiu a atenção foi o de Chico Science & Nação Zumbi, cujo primeiro disco Da lama ao caos fora lançado em 1994 pelo selo Chaos, da Sony. Inspirados na metáfora da riqueza orgânica do

mangue, os músicos produziram uma consistente mistura de ritmos, instrumentos e timbres musicais locais com gêneros ouvidos no campo da música pop: buscaram a força e a síncope do batuque dos maracatus (nação e rural) e cruzaram-no com a força da guitarra e o balanço do funk; mesclaram a entonação da embolada com a cadência do rap; a leveza hipnótica da ciranda, do coco e do baião com timbres sampleados1 de várias origens.

Se na música popular o sucesso das experimenta-ções foi grande, sobretudo por conta dos festivais, dos discos, das turnês das bandas etc., a contami-nação que o manguebeat proporcionou em outras áreas foi maior ainda. Parecia que toda cidade de Recife teria sacudida sua poeira acumulada por anos de paralisia artística, frágeis políticas cultu-rais locais, somado ao peso do tradicionalismo do movimento armorial, liderado desde os anos 1970 pelo escritor e dramaturgo Ariano Suassuna. As boas vibrações do mangue contaminaram a moda (no trabalho do figurinista Eduardo Ferreira, que buscou inspiração em materiais e formas locais), as artes plásticas (destaque para as esculturas de Evêncio Vasconcelos e de Augusto Ferrer), a sea-ra literária (o romance Balada para uma serpente, de Paulo Costa) e a dança (com o espetáculo Zambo, do Grupo Experimental, de 1998, coreografado por Mônica Lira e Sonaly Macedo).

No entanto, foi no cinema pernambucano que a proposta cultural e estética do mangue se soli-dificou e gerou ótimos frutos naquilo que ficou conhecido como “árido movie”, uma importante movimentação no campo cinematográfico do estado. Neste artigo, veremos que, por conta de

1 Sampler é um aparelho digital que grava trecho de uma música ou um timbre para ser reproduzido conforme a modulação que se queira. “Samplear” é o ato de copiar e colar este som gravado numa música.

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algumas condições especiais, as relações entre ci-nema e música popular em Pernambuco nos anos 90 foram muito produtivas e inovadoras.

Cinema em Pernambuco

A rigor, se falarmos como uma distante panorâ-mica, o cinema de Pernambuco tem características parecidas com toda a cinematografia nacional: dependência do filme norte-americano, falta de estrutura e história baseada em ciclos.

Um período áureo da produção no estado foi a década de 1920, com o ciclo regional e filmes de importância e repercussão nacional – como A filha do advogado (1926), de Jota Soares2 – até o surgimento do cinema sonoro, que fez decair o ciclo por conta das dificuldades e gastos elevados com a nova estrutura de equipamentos e laboratórios. Neste formato, os filmes norte-americanos e, no máximo, as produções cariocas farão sucesso de público no país inteiro.

Em Pernambuco, salvo uma ou outra película de destaque, o trabalho com cinema só recomeça com mais força nos anos 70, época de ditadura, quando a alternativa mais barata da bitola de 8 mm passa a ser usada por jovens cineastas ansiosos por experimentações, comportamento próprio da contracultura. A década marca o surgimento de clubes e cooperativas de produção alternativa, além de festivais e cursos de cinema, fatos que mobili-zaram cada vez mais os universitários. Ganharam destaque, entre documentaristas e diretores de ficção, os jovens Fernando Spencer, Celso Marconi, Jomard Muniz de Britto, Kátia Mesel, entre outros, alguns nitidamente influenciados pelas pesquisas de linguagem de Glauber Rocha. Essa produção alternativa em super-8 foi fundamental para a to-mada de posições por parte desse novo grupo de produtores, conforme explica Mariângela Bonetti:3 “A produção em super-8 serviu de instrumento para a revisão de posturas políticas, de costumes e padrões de comportamento, foi um suporte que visou transformações, quebra de tabus […]. Na

tela, o filme parecia precário, mas delineava-se a busca por novas formas de expressão”.

Nos anos 80, sempre com apoio da Embrafilme, a cena audiovisual continuou com vários docu-mentários e películas de ficção de maior ou menor repercussão. Até que o fechamento repentino da estatal federal abortou esse processo de produção, que só foi retomado em meados da década de 1990, com novos instrumentos de financiamento público e privado e leis de incentivo fiscal. É nesse contexto que o cinema pernambucano reage, num movimento paralelo aos produtores do sudeste denominado “retomada”, cujo principal símbolo fora o filme Carlota Joaquina, princesa do Brasil (1995), de Carla Camurati. Em Pernambuco, a marca da retomada ocorreu com a fita That’s a lero-lero (1994), de Lírio Ferreira e Amin Stepple, que reconstituía a passagem de Orson Welles por Recife, em 1942, baseado em matérias de jornais da época. Rodado em 16 mm, este filme foi considerado um dos primeiros a identificar um novo ciclo de produção local, seu diretor e outros criadores, como Cláudio Assis, Paulo Caldas, Adelina Pontual, Hilton Lacer-da e Marcelo Gomes, ficaram conhecidos como produtores do chamado “árido movie”.

2 O filme Baile perfumado, a ser discutido adiante, tem trechos deste filme de Jota Soares incorporado à sua narrativa.3 BONETTI, Mariângela C. J. Manguebeat e árido movie: o som em Baile perfumado. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semió-tica) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003. p. 37.

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Vale lembrar que, nos anos 90, alguns desses criadores utilizaram o vídeo como suporte mais barato e de fácil manuseio como forma de atuarem no mercado criativo do audiovisual, sobretudo na produção de videoclipes para novos artistas que surgiam ligados ao manguebeat.

Árido movie, manguebeate Baile perfumado

Por mais que a ideia de um movimento gere dis-cussões sobre as definições estéticas, o árido movie acabou por fixar seus limites em algumas fitas roda-das em Pernambuco na década de 90. Entre vários curtas e além do já citado That’s a lero-lero, três longas foram destaque: Baile perfumado (de Lírio Ferreira e Paulo Caldas – 1997), O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas (de Paulo Caldas e Marcelo Luna – 2000) e Amarelo manga (de Cláudio Assis – 2003).

De imediato, algumas coisas há em comum entre esses filmes, como certa visualização da violência e o uso de músicas e/ou músicos da cena mangue de Recife (Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Mestre Ambrósio). No entanto, é pos-sível pensarmos em outros elementos que também os relacionam à música popular da época. Como todo nome, o termo “árido movie” foi criado depois das obras, num momento em que alguns cineastas pernambucanos discutiam ideias sobre o manguebeat (cujas estéticas já eram conhecidas) e suas relações com o novo cinema que criavam. Uma das observações era quanto ao uso criativo da trilha sonora, distanciando-se das relações redundantes típicas do cinema clássico. Nesses filmes, a música não apenas repete o que as imagens já dizem, mas operam novos e distintos sentidos, muitas vezes em contraponto ao que se vê na tela. Assim, é possível dizer que o árido e o mangue entram em diálogo sem serem idênticos, sem se redundarem, até porque, no sentido denotativo, árido é o oposto da umidade do mangue.

Interessa-me especialmente o filme Baile perfuma-do. Nele é possível traduzir com muita riqueza as relações entre imagem e sua narrativa e a música popular utilizada. A obra conta a saga do mascate, fotógrafo e cinegrafista Benjamin Abrahão, de origem libanesa, na tentativa de registrar imagens

do bando de cangaceiros de Lampião no sertão nordestino entre os anos de 1934 e 1938. Baseada em pesquisas, livros, jornais, arquivos, nas falas e expressões do sertanejo, nos filmes do próprio Abrahão e em sua caderneta de anotações, ambos guardados no acervo do historiador Frederico Pernambucano de Mello, a história real deste personagem é contada por Caldas e Ferreira não apenas como documentário (apesar de serem usadas cenas dos filmes do libanês e a narrativa tentar reconstituir o real como um historiador), mas também como reconstrução ficcional com o uso de elementos poéticos singulares. Além disso, a história do personagem central do filme funcionava como metáfora do fazer cinema no Brasil: se, na década de 1930, o libanês se batia com coronéis, produtores e governo para ver nas telas a filmagem que fizera dos cangaceiros, nos anos 90, os cine-astas também tinham que se virar para conseguir verbas para suas realizações.

A proposta do filme (como em outras películas do árido movie) é de uma criação com linguagem mo-derna e baixo custo, na tentativa de traduzir para o contemporâneo um personagem histórico, porém, sem transformá-lo em herói, mártir ou exemplo a ser seguido. Sem usar cegamente a linguagem clássica, ousava se lançar em experimentações e pesquisas de linguagem dentro das possibilidades do contexto histórico, porém, sem a pretensão de se transformar em manifestação puramente local, muito menos de gueto. Ao contrário, vislumbrava-se usar a tradição (no caso, o cangaço, o cinegrafista e o contexto dos anos 30) recriada de maneira moderna e acessível como obra eminentemente nacional e que colocasse Recife no mapa da pro-dução cinematográfica brasileira. Este parece ser o primeiro elo entre o árido movie e o mangue-beat. Tal qual o filme, a proposta musical trazia como metáfora – inscrita inclusive no manifesto Caranguejos com Cérebro, de Fred Zero Quatro e Renato Lins – a parabólica fincada na lama para fazer a troca dialógica de vibrações entre a riqueza da cultura local e os elementos universais da cul-tura pop. Como disse Chico Science, em Monólogo ao pé do ouvido, faixa de abertura do disco Da lama ao caos: “Modernizar o passado é uma evolução musical”. O cinema de Recife acompanhará esse sentido expresso.

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Baile perfumado

Um elemento que demonstra essa modernização e o rompimento com formas anteriores presentes no cinema brasileiro é a representação do cangaço. Na história do cinema nacional, sobretudo no nor-destino, a temática fora tratada de várias maneiras. Duas delas têm sentidos opostos. Uma está no uso do esquema maniqueísta bandido e mocinho, no qual o cangaceiro representa o bandido e, com ele, a violência ameaçadora, o fundo religioso e, por fim, sua colocação como justiceiro e protetor dos fracos. O exemplo, entre muitos filmes, pode ser visto em O cangaceiro (1953), de Lima Barreto. Outra aborda-gem do cangaço é a de sua relação com o problema social. Nela, esse personagem é visto como produto das ações da polícia e das elites, da concentração de terras e da pobreza do sertanejo nordestino. Neste sentido, o cangaceiro pode ser entendido como ins-trumento no caminho de salvação do povo contra a exploração, como é nítido no clássico Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha.

Pois em Baile perfumado o cangaço é representado de outra maneira, fora do esquema bandido-mocinho e sem a imagem de produto libertário do sertão e do povo. Aqui, o personagem está dentro das es-truturas que definem a dinâmica de sobrevivência no contexto sociopolítico nordestino do início do século XX. Conforme a historiadora Vitória Fonseca,4 Lampião não se mostra na película como bandido social, não se trata de um revolucioná-rio e muito menos está preocupado em libertar os explorados ou transformar a sociedade. Sua função é unicamente sobreviver no esquema no qual está inserido e que envolve coronéis, polícia, símbolos da religiosidade popular (o padre Cícero, por exemplo), a seca e um governo ditatorial (o Estado Novo getulista). Não é a toa que Lampião é mostrado no filme por seu viés aburguesado, que aprecia perfume e uísque importados e gosta de dançar. Também por isso, o tenente Lindalvo Rosa, vingador em sua luta de caça a Lampião, é

4 FONSECA, Vitória Azevedo da. O cinema na história e a história no cinema: pesquisa e criação em três experiências cinematográficas dos anos 1990. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.

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mostrado em cena molestando um morador e sua mulher para contarem a ele o paradeiro do capitão do cangaço, ou cortando impiedosamente a cabeça de um membro do bando.

Da mesma forma, a saga de Benjamin Abrahão permeia, de maneira criativa e flexível por ter que tratar com todos esses âmbitos, as entranhas do sistema, desde a luta dos mais pobres em meio à seca até as decisões do governo de censurar seu filme. A originalidade do tratamento do cangaço remete à vontade desse cinema em falar para todos usando características históricas, sociais e políticas que se remetem à contemporaneidade, sem moda-lizações ou mitificações.

Um segundo aspecto de contato entre o mangue e o árido foi o sistema de produção cooperativista, for-ma coletiva de criação e de trabalho. Se os músicos criaram uma cena a partir de apresentações e festi-vais de música em que cada um dava seu trabalho para a criação final, o filme Baile perfumado tornou-se emblemático por ter sido dirigido em dupla e produzido por amigos: o fotógrafo Paulo Jacinto dos Reis, o roteirista Hilton Lacerda, o diretor de produção Cláudio Assis, os assistentes de direção Marcelo Gomes e Adelina Pontual, os produtores Germano Coelho, Aramis Trindade (também como ator, com o personagem do tenente Lindalvo) e Marcelo Pinheiro, entre outros. É importante lembrar ainda que esse espírito coletivo foi parti-lhado pela juventude da maioria dos participantes. Da mesma forma que os músicos do manguebeat, muitos da equipe do filme eram de Pernambuco e estavam pela primeira vez naquelas funções, fato que trouxe maior dedicação e disposição às pes-quisas, aspectos importantes para a realização do filme. Inclusive a elaboração da trilha sonora foi o primeiro trabalho dos “mangue boys” com cinema.

Outro vínculo entre árido e mangue está na própria utilização das músicas dos jovens compositores e músicos na trilha do filme Baile perfumado, forma amistosa e produtiva de conjugar estéticas em prol de uma movimentação cultural conjunta. Gravadas entre 1995 e 1996, período fértil do manguebeat, especialmente pela presença de Chico Science, as músicas tiveram papel fundamental na história, ora compondo personagens, ora rompendo expectati-

vas narrativas. Da banda Chico Science & Nação Zumbi há as faixas Angicos, que não entrou na edição final do filme, mas consta do CD da trilha, a instrumental Salustiano song e a representativa Sangue de bairro, ambas gravadas no segundo CD do grupo, Afrociberdelia (1996). Fred Zero Quatro (da banda Mundo Livre S/A) compôs a canção Baile perfumado, que aparece cantada por Stela Campos nos créditos finais e em versões instrumentais no decorrer do filme, e Tenente Lindalvo, tema do per-sonagem policial que persegue Lampião.

Siba, então membro do Mestre Ambrósio, criou o forró Baile catingoso (o grupo aparece numa cena tocando para os cangaceiros), as músicas Mamede, Chico rural, Fulô de junco e o tema Benjaab, em parceria com Lenine, para o personagem Abrahão. Nesta última, é nítido o uso de escalas musicais orientais tocadas em sua rabeca, escala e instrumento de ori-gens mouras fincadas na península ibérica e trazidas ao sertão em mesclas culturais ancestrais. Por fim, Paulo André, empresário criador do representativo

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e histórico festival musical Abril Pró Rock, diretor musical do filme, compôs as faixas DIP e Abertura 1900, esta última com a voz de Alceu Valença e que sonoriza a invasão da casa do personagem Zé do Zito e sua agressão pelos cangaceiros.

Das canções, as duas de Chico Science e Nação Zumbi merecem destaque. Sangue de bairro é a peça musical que soa no segundo trecho do filme quan-do, após um extenso plano-sequência da morte de padre Cícero e guiado pelo andar do personagem Abrahão, aparecem na tela cenas aéreas do Raso da Catarina, região de canyons no estado da Bahia conhecida também como lugar por onde Lampião passara várias vezes. Aqui, ouvem-se apenas os trechos instrumentais. A versão cantada volta no final do filme, após a morte do cangaceiro, quando retomam as cenas da região mescladas às imagens antigas em preto e branco dos filmes de Abrahão. A letra, de Chico Science e Ortinho, membro do grupo recifense Querosene Jacaré, é daquelas que exploram a visualidade ao tratar da degola dos cangaceiros do mote de Lampião. Sobre uma base de baixo grave, guitarra distorcida e bateria ruidosa, um xaxado de sonoridade intensa ao estilo hardcore, a voz rápida e gritada de Science enumera alguns dos principais componentes do grupo de cangaceiros: “Bezouro, Moderno, Ezequiel, Can-deeiro, Seca Preta, Labareda, Azulão, Arvoredo, Quina-Quina, Bananeira, Sabonete, Catingueira, Limoeiro, Lamparina, Mergulhão, Corisco, Volta

Seca, Jararaca, Cajarana, Viriato, Gitirana, Moita-Brava, Meia-Noite, Zambelê”. Depois, ainda num canto áspero e pronúncia acelerada, a letra desenha a imagem imediata e angustiante de uma cabeça recém-degolada e que é rapidamente virada para o próprio corpo para vê-lo estrebuchando em sangue por alguns segundos. Ao final, a dúvida existencial de uma cabeça por não saber o que fazer entre viver e morrer: “Quando degolaram minha cabeça/ Passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo/ E não sabia o que fazer/ Morrer, viver, morrer, viver!”. O andamento rápi-do, os sons graves e distorcidos e a textura da voz aumentam a tensão da cena musical e remetem-se à violência impressa no filme, em especial nas cenas finais quando Benjamin Abrahão é assassinado e são encontrados degolados os corpos do grupo de cangaceiros. Ao mesmo tempo, esses elementos poético-sonoros atualizam as referências históricas e culturais do cangaço traduzido pelo filme como fenômeno sociopolítico.

A segunda canção é Angicos,5 de Chico Science e Lúcio Maia, guitarrista da Nação Zumbi. Em ritmo nordestino “agalopado” com sons sui generis de cítara indiana, a letra traduz uma possível voz de Lampião quando é assassinado na fazenda de Angicos, em julho de 1938: “Eu tô indo pra Vênus/ Encontrar Maria”. Na letra, o cangaceiro diz que não dá ouvi-dos ao “seu doutor”, pois “O perfume que eu uso/ Não é como o seu”. Até que seu corpo cai e sua alma

5 Angicos foi gravada também no primeiro CD do grupo pernambucano Comadre Florzinha com vozes femininas e instrumentos de percussão tradicionais (zabumba, alfaia, djembe, pandeiro etc.).

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sai “... pra soltar raio laser/ Pra lumiar/ As terras do Cariri”. Apesar de não ter sido aproveitada no filme, a peça foi composta para a película e não deixa de traduzir a instância mítica do cangaceiro morto, citada visualmente no filme nas cenas finais no canyon em que Lampião reaparece sobre um grande platô a reverenciar a caatinga e o sertão.

Ao final, já com os créditos na tela, ouve-se a canção-tema Baile perfumado, de Fred Zero Quatro, um tango tocado com guitarra distorcida e cantado expressivamente por Stela Campos. Se o arranjo para o tango soa certa estranheza, a letra parece

indicar o início do percurso finalizado pela morte em Angicos. Apresenta o sentimento de amor louco de um homem a uma mulher cujo doce perfume altera-lhe a razão e inspira um cheiro mesclado de amor e morte, virtude e loucura, paixão e terror: “Veneno faz o mundo girar/ Um calafrio de medo eu não posso evitar/ Quando ela espalha o seu doce perfume/ Sinto no peito a paixão e o terror/ Se alguém soubesse o que me passa/ Ao vê-la alegre e dançando/ Me invade um cheiro de morte/ Sinto a loucura no ar/ Quando ela chega e pede um tango/ Me perco todo em seu rastro/ Não há razão nem virtude/ Só o seu amor, fleur d’amour ”.6

6 Ver também: FIGUERÔA, Alexandre. Cinema pernambucano, uma história em ciclos. Recife: Fundação de Cultura da Cidade de Recife, 2000; MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no nordeste do Brasil. 2. ed. São Paulo: A Girafa/Fundaj, 2004; VARGAS, Herom. Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi. Cotia: Ateliê Editorial, 2007; YAKHNI, Sarah. O baile perfumado: subversões no cangaço. Disponível em: <http://www.mnemocine.com.br/cinema/crit/sarahbaile.htm>. Publicado em: jul. 2000. Acesso em: abr. 2010.

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Waldemar, Bide, Ruben, João da Baiana, Pixinguinha, Donga,

Alfredinho, Mirinho e J. Cascata

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Nesta edição da Revista

Recine especialmente dedicada à música brasileira, ele não poderia faltar. Pesquisador incansá-

vel, com mais de vinte livros publicados sobre cultura e música popular, o jornalista e crítico musical José Ramos Tinhorão reuniu em

seu acervo partituras, livros, revistas, documentos raros e milhares de discos de diferentes formatos gravados entre 1902 e 1990. Todo esse material, que está hoje

no Instituto Moreira Salles em São Paulo, foi fundamental para que Tinhorão registrasse a história da música popular brasileira desde os seus primórdios.

Tinhorão começou sua carreira como copidesque no Diário Carioca, jornal que revolucionou a impren-sa brasileira ao adotar, inspirado no modelo americano, o lide, o primeiro parágrafo de

uma matéria jornalística que destaca os principais fatos da notícia. Era o início dos anos 50, época romântica do jornalismo, profissionais mal pagos,

porém talentosos, e boêmios em sua maioria. Tinhorão convivia na redação do Diário com ninguém menos que Carlos Castello Branco,

Janio de Freitas e Nilson Lage, alguns dos maiores símbolos do jornalismo nacional. Mas aquele humilde copidesque não se con-tentaria em permanecer apenas reescrevendo o texto alheio. Exercitava sua vocação pesqui- sando e escrevendo artigos para outras publicações, o que mais tarde o faria um dos maiores conhecedores da música e da cultura popular brasileira.

Colaborador de vários periódi- cos, entre eles o Correio da Manhã, Última Hora, O Pas- quim, as revistas O Cruzeiro e Veja em seus primeiros tempos, e nas TVs Excelsior, Globo e Rio, Tinhorão voltou ao Jornal do Brasil em 1974, de onde fora de-mitido após a greve dos jornalistas de 1962. No lendário jornal carioca, assinava uma coluna de crítica musical que causou grandes polêmicas no meio cultural: suas opiniões quase sem- pre eram contra a corrente, desafiava

o senso comum, colecionando controvérsias com nomes de peso da MPB.

Mas José Ramos, apelidado de Tinhorão (nome de uma planta venenosa) ainda nos tempos de brilhante redator de textos-legendas do Diário Carioca, se realizava mesmo era pesquisando

e escrevendo seus livros sobre a música brasileira. Sem Tinhorão, hoje não teríamos tanto conhecimento sobre o que talvez seja a maior riqueza do Brasil: a nossa música, tão

original e capaz de absorver tantas influências, para o bem e para o mal. O leitor que já o conhece poderá relembrar seu estilo. E aquele que nunca

o leu, aproveite esta grande oportunidade de ser apresentado a um mito do jornalismo brasileiro e um dos maiores

pesquisadores de nossa cultura.

Instituto Moreira Salles

Pesquisador apaixonado, crítico implacável

Entrevista com José Ramos Tinhorão

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recine: Quais as verdadeiras ori-gens da música popular brasileira?

tinhorão: Música popular, tal como a entendemos hoje – pro-dução sonora para acompanha-mento de canto e dança destinada à diversão ou lazer da gente ur-bana – é uma criação particular do Ocidente, surgida a partir do século XVI como reflexo das novas relações socioculturais estabelecidas com o advento do individualismo burguês. Com a superação, pelos homens da cidade, do sentido associativo característico da vida rural (até hoje manifesto nas festas da gente do campo estudadas pelo folclore), a noção de indivíduo levou à necessidade da busca de formas pessoais de diversão, fa-zendo surgir, com o advento da canção, a figura do músico que acompanhava seu canto com o uso de um instrumento musical. Descida de sua primeira versão cortesã de canção trovadoresca para as vozes das ruas, através da mediação democrática de jograis populares, a moderna forma de canto acompanhado ganhou o nome genérico de cantiga. Sob tal designação passou-se então a indicar genericamente todos os cantares anônimos das cidades que apresentavam a característica de aproveitar, nos versos, não mais apenas os lances amorosos cultivados na tradição trovadores-ca e nas histórias cavalheirescas contadas/cantadas sob a forma de romance, mas também os fatos mais prosaicos da vida urbana. Exatamente como se podia com-provar, ainda no século XVI, pelo exemplo da cantiga popular citada pelo poeta cego português Balta-sar Dias, nos versos moralizantes

dirigidos às moças do tempo de seu “Conselho para bem cazar”, em que advertia:

Convém à mulher d´agoratemperar-se no falar:e não há muito de andar,porque ir muitas vezes forafaz a muitos mal cuidar.E também há de atentarum mote ou cantiguinha,que a muitos ouvi cantar,que a mulher e a galinhase percam pelo andar

recine: Nos primeiros séculos de música no Brasil, que nomes po-demos destacar como sendo os de precursores da música brasileira?

tinhorão: Como as tais cantigui-nhas que “a muitos ouvi cantar”, conforme testemunhava pelos meados do século XVI o poeta Baltasar Dias, ainda não partiam de autores identificáveis, ligados a quaisquer formas já reconheci-das como de música popular no sentido moderno, para que isto acontecesse seria preciso esperar até a segunda metade do século XVIII, quando desponta em Portugal a figura de um poeta brasileiro chamado Domingos Caldas Barbosa, introdutor de dois gêneros de canto acom-panhados à viola, baseados em motivos de danças africano-brasileiras: o lundu e a modinha.

recine: Como os compositores conseguiam divulgar suas obras musicais no tempo em que não havia rádio e TV?

tinhorão: Para divulgação de suas composições, os primeiros cria-dores do que se viria a conhecer como música popular urbana

(mais tarde conhecida também como música de massa) conta-vam apenas com apresentações pessoais no âmbito fechado dos salões, acompanhando-se à viola de cordas de arame ou cavaquinho – a exemplo do próprio Caldas Barbosa e de seu contemporâ-neo, o também mulato brasileiro Joaquim Manoel –, ou com a notação de suas músicas em pa-pel por iniciativa de músicos de escola, que lhes apagava a riqueza do sincopado rítmico em favor da valorização melódica ao gosto da música italiana do tempo.

recine: Que tipo de música fazia sucesso no Brasil entre o final do século XIX e início do século XX?

tinhorão: No Brasil, tanto o lundu derivado do ritmo dos batuques de negros quanto a modinha que lhe enfeitava o canto já eram conhe-cidos desde os setecentos. Foram estes dois primeiros gêneros de música popular que predomina-ram no período, mas indicando desde logo uma diferença moti-vada pela realidade da sociedade de classes: o lundu cultivado pelas camadas baixas; a modinha pelos grupos da emergente classe média das salas e, mais democraticamen-te, pelos mestiços cantores de serenatas de rua.

recine: Qual a importância do teatro de revista para a música popular brasileira?

tinhorão: A partir da segunda metade do século XIX, essas duas criações nacionais da modinha e do lundu começariam a enfrentar a concorrência dos gêneros de música de dança importados da Europa, como seriam os casos

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da valsa, do schottisch (aportugue-sado como chótis ou chote), da polca, da quadrilha, da mazurca e das cançonetas (via França) e zarzuelas (via Espanha). Tais “no-vidades” na área das criações de música de dança representavam, todas, a repercussão do surgi-mento, na França e na Espanha, de um novo tipo de teatro cha-mado genericamente de vaudeville que, nascido em palquinhos de cafés-cantantes e cafés-concerto, vinha atender à necessidade de lazer da crescente massa das no-vas camadas populares e médias surgidas entre os períodos da Comuna de Paris de 1848 e o Segundo Império Burguês, que se estendeu na França de 1852 à Terceira República de 1870. Em coerência com essa sua origem em palcos europeus da segunda metade dos oitocentos, tais gê-neros importados despertaram no Brasil em teatros e centros de diversão urbana de tipo moderno, que ao tempo surgiam no Rio de Janeiro com a criação dos primei-ros cafés-concerto, como o Salão Paraíso (depois Folias Parisienses) em 1858, na rua dos Inválidos, e dos cafés-cantantes, como o Al-cazar Lyrique, do francês Joseph Arnaud, em 1859, na rua da Vala. Lançado pelos franceses o novo modelo de diversão pública com teatro e música – chamado a partir do próprio ano de 1859 de “gênero alegre” –, um membro do Conservatório Dramático Brasileiro e autor de romances em folhetins, Justino de Figueiredo Novais, introduziu com sua peça As surpresas do sr. José da Piedade a variante do teatro musicado de-nominada “revista do ano”, que glosava os acontecimentos mais comentados do ano anterior, com

humor crítico e números de dan-ça. A peça fracassou (proibida por criticar um jornal “governista”, foi retirada de cena após algumas representações), mas o gênero ia firmar-se a partir da década de 1870 como o principal lançador e divulgador dos mais variados tipos de danças (estrangeiras ou locais, como o maxixe e o tango brasileiro) e de novas formas de canto (como a canção francesa de palco falado-representada, no Brasil chamada de cançoneta). Tudo logo popularizado, inclusive sob a forma híbrida de “canção sertaneja” que traía a influência das modinhas de serenata.

recine: Quem era o público desse teatro?

tinhorão: O sucesso obtido pelo teatro de revista – que se sobre-punha às imitações francesas de cafés-concerto e cafés-cantantes (logo democratizado como “cho-pes berrantes”) e dos cabarés – explicava-se, aliás, pelo próprio momento histórico vivido pelo Brasil. Saído da Guerra do Pa-raguai em 1870 em conflito com a estreiteza do regime de explo-ração do trabalho escravo – que explicaria a criação do Partido Republicano naquele mesmo ano de 1870 –, o país via aumentar em sua capital, o Rio de Janeiro, a di-versificação social provocada pela multiplicação dos serviços, que agora enchia as ruas não apenas de militares, servidores do Esta-do e empregados do comércio, mas de uma crescente massa de funcionários de serviços públicos (gás, água, esgotos, transportes etc), anunciadores do advento de uma nova classe média. Esse seria o público do teatro de revista.

recine: É verdade que grandes nomes de nossa música come-çaram suas carreiras compondo e cantando nas peças dos teatros de revista?

tinhorão: Era, pois exatamente para essa gente nova saída das camadas médias urbanas – os trabalhadores mais humildes não tinham acesso às formas pagas de lazer – que o teatro de revista e dos palquinhos de cafés-cantantes e chopes berrantes continuaria não apenas a divulgar, mas a produzir as formas mais típicas de música popular da segunda metade do século XIX. É que embora sob a influência dos gêneros europeus divulgados em partituras de piano oferecidas às elites pelos editores de música (geralmente franceses como Pierre Laforge, italianos como Isidoro Bevilaqua ou a Vi-úva Filippone, herdeira dos sócios Filippone e Tornaghi, portugueses como Rafael Coelho Machado e até alemães, como os irmãos Bus-chmann), o teatro musicado aca-baria por nacionalizar tais modelos importados. E isso se daria não por iniciativa dos maestros de suas orquestras (como os portugueses Gomes Cardim, Lino d’Assunção ou Francisco de Sá Noronha, o espanhol Júlio Cristobal, ou de origem italiana como Nicolino Milano), mas como reflexo neces-

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sário das criações populares que surgiam pelas ruas ao influxo dos sons dos coretos de praça e dos grupos de serenata praticantes do estilo choro. Assim como o clima que predominava nessa fase de instauração do teatro musicado no Brasil era o do cosmopolitis-mo, não havia ainda composi-tores capazes de se destacarem individualmente como autores de gêneros de música popular no sentido moderno do termo, o que fazia dos possíveis “sucessos” um fenômeno sempre eventual. Um exemplo disso seria representado pelo primeiro grande sucesso de um tango (na verdade um lundu amaxixado), tornado nacional a partir de seu lançamento, em 1885, na revista cômica Cocota, de Artur Azevedo e Moreira Sampaio: o “tango” intitulado Chô araúna. Pois esse Chô araúna, que a partir daí seria cantado pelas ruas em todo o Brasil, já fora lançado an-teriormente pelo ativo empresário e autor português Souza Bastos na versão brasileira de sua peça Do inferno a Paris, de 1882, como comprova indicação expressa na partitura editada no Rio de Janeiro pelo Estabelecimento de Pianos e Músicas de Buschmann & Guimarães: “Tango da ópera Do inferno a Paris”.

recine: O teatro foi responsável pela ascensão social da música feita por compositores das camadas mais humildes da sociedade carioca?

tinhorão: Em verdade, apesar da história do teatro nacional apon-tar, ainda no século XIX, alguns nomes de compositores como Henrique Alves de Mesquita (1830-1906) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935), composições de su-

cesso em matéria de música popu-lar atribuídas a autores conhecidos só começam a aparecer no teatro de revista no século XX. E nunca como produção dos músicos dos teatros, mas de novos profissionais ligados ao disco, que a partir das gravações mecânicas pela Casa Edison, do Rio de Janeiro, anun-ciavam o advento da era da música de massa. E isso só se dá, realmen-te, com o lançamento, em 1906, na revista O maxixe, de Bastos Tigre, do tango-chula de Arquimedes de Oliveira Vem cá mulata. Uma composição destinada, aliás, a tal repercussão que, transformada no maior sucesso do carnaval de 1906, ia inspirar no ano seguinte à parceria José do Patrocínio Filho e Chicote Thoreau o lançamento da revista que lhe aproveitava não apenas o título Vem cá mulata, mas revelava a continuidade do sucesso do estribilho que chegou a provo-car os pruridos do escritor, filho de mãe negra, Lima Barreto: “Vem cá mulata – Não vou lá não”.

recine: Pode-se dizer que o teatro de revista passou por uma revo-lução no decorrer dos anos: o cinema, a popularização do rádio e até mesmo a mudança de códi-gos morais teriam influenciado o teatro a apresentar espetáculos que causassem mais impacto nas pla-teias. Teria acontecido o mesmo com a música? O cinema, o rádio e as novas tecnologias de gravação fizeram diferença para a música popular no início do século XX?

tinhorão: Certamente, a populari-dade alcançada pela divulgação de músicas pela moderna tecnologia no campo da difusão de sons – e logo, também, na de imagens através do cinema, a partir dos

“filmes falados” – estava desti-nada a provocar o encaminha-mento do teatro de revista, ainda, muito dialogado, para o tipo de espetáculo denominado show. Novidade em que o movimento e o colorido de danças e efeitos de luz, sobrepondo-se às falas, resumiam o espetáculo a uma trilha sonora destinada à exibição plástica dos corpos de vedetes e coristas. Para a música popular a única contribuição dessa nova realidade foi o aparecimento da vedete-cantora, para as quais se compunham geralmente apenas marchas e sambas buliçosos, destinados à imediata gravação em discos para o carnaval.

recine: O teatro musical foi a grande fonte de inspiração dos filmes musicais brasileiros?

tinhorão: Essa nova realidade, que no cinema dos Estados Unidos desencadearia a era dos “musicais”, embora não chegando a contar no cinema brasileiro com produção equivalente, levou a uma espécie de pasticho do teatro musicado em sua trajetória para o show de cassino, herdeiro, por sua vez, das velhas revistas dos palcos da Praça Tira-dentes. Isso seria feito dos fins da década de 1930 à década de 1950, quando, primeiro com os filmes carnavalescos e, em seguida, com as comédias-revista denominadas de “chanchadas”, se transportou no Brasil para o século XX a graça dos compéres das velhas revistas do século XIX, a fim de animar o frágil fio dos enredos dos filmes.

recine: A música tocada nos cine-mas (na sala de espera) teve im-portância para a formação de um estilo original de música brasileira?

Aracy Cortes, a primeira grande cantora popular brasileira e um dos maiores nomes do teatro de revista nos anos 20 e 30. Lançou nas peças em que atuava composições de Ary Barroso, Sinhô, Assis Valente, Noel Rosa, entre outros

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tinhorão: O resultado do atre-lamento do cinema dedicado às camadas populares ao modelo vindo das revistas de teatro estava destinado a originar, em todo o caso, uma originalidade nacional: em lugar dos filmes contribuí-rem eles mesmos para a música popular, foi à existência de salas de espera nos cinemas que se passaria a dever uma impensada contribuição. É que, por constitu-írem as salas de espera um espaço de sociabilidade – havia sempre uma bonbonière à disposição do público no intervalo das sessões –, os cinemas passaram a admitir também, a partir da década de 1920, além de pequenas orques-tras, grupos de músicos populares componentes de jazz-bands. Essas jazz-bands, que lançavam a novida-de da bateria de bombo e pratos acionados por pedal, trazida ao Brasil pelo norte-americano Harry Kosarin na virada dos anos 1919/1920, ao passarem a tocar gêneros de música brasileira em estilo de música de dança ameri-cana de moda na época, foram levadas a alterar o ritmo tradicio-nal, através de sua aceleração e apelo a breques e aplicação de riffs particulares do estilo jazz. O re-sultado dessa influência ia reper-cutir principalmente na música de carnaval, onde o acompanha-mento das agora popularmente chamadas marchinhas – como as do compositor e líder de jazz-band José Francisco de Freitas, o maestro Freitinhas – soavam nas gravações em disco como caco-etes sonoros da música de dança comercial norte-americana.

recine: A linguagem do cinema teria influenciado o gênero mu-

sical brasileiro, quando as melo-dias acompanhavam os filmes, uma vez que as músicas tinham necessariamente que dar o clima, a atmosfera da cena?

No que se refere à música divul-gada em filmes, sua influência sobre a música brasileira seria praticamente nula porque, em-bora alguns compositores espe-cialistas no gênero romântico tentassem acompanhar o modelo das canções americanas “de cine-ma”, a indústria do disco preferia estimular no mercado interno a alternativa das “versões”, que serviam à popularização das pró-prias melodias norte-americanas ouvidas nos filmes, com grande vantagem comercial em relação aos custos de uma produção local.

recine: Você mantém a crítica à música produzida pela classe dominante, especialmente a bossa nova?

tinhorão: A tendência da acomo-dação dos compositores brasilei-ros à realidade desfavorável, mas tida como “natural”, de seguir os modelos exportados pela indús-tria cultural internacional tendeu a aumentar ao longo das décadas de 1940 e 1950. Com o advento da Segunda Guerra Mundial, em 1939, os Estados Unidos, obrigados pela necessidade de obtenção de matérias-primas em países do hemisfério sul, decidi-ram pela adoção de uma Política de Boa Vizinhança capaz de fortalecer suas relações com os pretendidos parceiros, inclusive no campo cultural. Essa política de aproximação simpática ten-deria a mobilizar, nos Estados Unidos, as duas instituições em-

presariais mais abertas à adesão aos interesses do governo: a dos fabricantes de produtos de diver-são pública de Hollywood e de música dirigida ao lazer pessoal das grandes gravadoras de discos. O resultado de tal política, na prá-tica, foi a invasão do mercado do centro-sul americano pelos filmes hollywoodianos e desenhos ani-mados dos estúdios Disney, todos carregados da visão ideológica das excelências do american way of life. O que implicava, naturalmen-te, a ampla difusão de discos de ritmos “latinos” gravados sempre nos Estados Unidos – congas, rumbas, boleros, tangos, sambas e até marchinhas devidamente americanizadas – muitas vezes sob a batuta do maestro Xavier Cugat, imigrado da Espanha. E, assim, como essa fase de boa vontade para a conquista ideoló-gica dos mercados sul-americanos coincidia com a presença crescen-te da própria música americana, quando no pós-guerra os Estados Unidos desmobilizaram sua polí-tica de “cooperação hemisférica”, os chamados ritmos latinos desa-pareceram subitamente do mer-cado, mas os norte-americanos continuaram a vender. A partir desse momento, o Brasil, princi-palmente na área da classe média, ia atrelar-se definitivamente às novidades musicais importadas, agora divididas em dois planos: a dos estratos mais elevados, ad-miradores do jazz – já expurgado nos EUA do primitivismo negro do hot em favor da delicadeza branca do cool –, e das camadas populares mais abertas à ebulição do rock, logo diluído na forma “nacional” do iê-iê-iê. Praticado de início pelos jovens de nível universitário em estilo americano,

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no que se convencionou chamar de samba sessions, o samba jazzi-ficado ia passar então por um processo de “nacionalização”, em tudo equivalente ao que na área da política econômica recebia o nome de desenvolvimentismo: a montagem, com matéria-prima e mão de obra local, de produtos da inteligência estrangeira sujeitos ao pagamento de royalties. Assim, como no caso da inteligência mu-sical na área das camadas médias brasileiras mais sofisticadas, o modelo mais apreciado e culti-vado era o cool jazz americano importado da Califórnia, ia ser a partir dele que jovens cariocas de nível universitário reuniriam o hardware necessário à obtenção do software da bossa nova. Na construção desse mecanismo, o único elemento musical capaz de patente brasileira seria a batida de violão de João Gilberto.

recine: Qual a sua opinião sobre o rock nacional e o movimento tro-picalista? Teriam importância, em seu modo de ver, para o conjunto da música brasileira?

tinhorão: Após dez anos de con-vívio desse fake jazzístico com a bossa nova, a impressão de já visto da batida necessariamente repetitiva do acompanhamento a la João Gilberto, entrou a so-frer crescente desgaste, em face da agressividade do estilo rock, que em suas versões tupiniquins começava também a pretender-se “brasileiro”. Foi a tentativa de sobrepujar essa realidade implí-cita na aceitação pura e simples de estilos importados que gerou entre uma elite de compositores provincianos de bossa nova – logo conhecida genericamente

como “os baianos” – a ideia da elaboração de uma resposta criativa: a da obtenção de um produto musical brasileiro novo, a partir do recurso denominado em linguagem antropológica de “magia simpática”. Ou seja, a tentativa de alguém incorporar virtudes alheias pela absorção do corpo do outro, invejado por suas qualidades. E, assim, com base nessa crença primitiva cultivada pelos indígenas brasileiros na prática cerimonial da antropo-fagia – que o poeta Oswald de Andrade procurara transportar para a literatura em seu Manifesto Antropófago de 1928 –, o grupo dos “baianos” passou à tentativa de fusão provocativamente irô-nica de estilos tradicionais por eles julgados subdesenvolvidos e de mau gosto (gravação por Caetano Veloso em 1968 da can-ção Coração materno, do berrante tenor Vicente Celestino, logo convidado para show tropicalista em um hotel de São Paulo, aliás, frustrado pela morte do cantor horas antes), com os de som uni-versal inaugurados pelo rock. Em última análise, seria a tentativa de – segundo o próprio Caetano Veloso – “retomada da tradição da música brasileira na medida em que João Gilberto fez”. O que queria dizer, por lógica de bom entendimento, repetir com uso da linguagem universal do rock a façanha atribuída à bossa nova da obtenção de música brasileira a partir do cool jazz norte-americano. O resultado de tais tentativas para a música po-pular de tradição historicamente brasileira seria sua limitação ao gosto restrito de grupos de classe média frequentadores de festivais da canção, onde o que começara

como imitação do estilo bossa novista da batida do violão de João Gilberto ia transformar-se no delírio orquestral de maestros arranjadores possuídos de paixão erudita mal correspondida.

recine: As músicas regionais da atualidade (em especial Bahia, Per-nambuco e Pará) teriam alguma coisa a contribuir positivamente para o processo de enriqueci-mento da música brasileira não produzida no eixo Rio-São Paulo?

tinhorão: O desmonte pela inter-venção do poder militar no cam-po das buscas de saída criativa para a música popular, no âmbito da classe média, ia disseminar, a partir da década de 70, um tipo de busca de sucesso a todo o custo, desligado de propostas estéticas definidas, o que marcaria o advento da era do oportunis-mo pop-rock. Isso se revelaria pelo surgimento de ondas de jovens arrivistas, reunidos em

Capa de partitura de O mugunzá, de F. Carvalho, lundu baiano cantado por Pepa Ruiz na peça Tim-Tim por Tim-Tim, de Souza Bastos

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Tinhorão nos anos 60

grupos dispostos a “fazer o sul”, movidos apenas pelo desejo de um lugar no mercado onde, de longe, viram girar o dinheiro. Foi a época dos que já pelos nomes apontavam sua origem (como os Novos Baianos e o pessoal do Ceará), ou que logo a revela-riam: os mineiros no conjuntos O Terço e 14 Bis, os alagoanos no Luz-Som-Dimensão, ou LSD (Djavan à frente). E todos logo seguidos de livres-atiradores dis-postos à aventura da carreira solo, movidos todos pela tentativa de faturamento nos mais variados estilos de música de consumo. Tudo sem nada a ver, naturalmen-te, com o que se pudesse chamar com o devido respeito, de música popular brasileira.

recine: Recentemente, teve início uma profusão de textos sobre música brasileira. Você tem lido? Quais as biografias que mais agra-daram pela seriedade da pesquisa?

tinhorão: A profusão de textos sobre música popular brasileira a partir da década de 1980 marca a entrada da inteligência universitá-ria brasileira na área dos estudos sociais, inaugurada pela corrente histórica francesa dos Annales, que, ao preocupar-se com os fenômenos do cotidiano, gerou a valorização dos fatos da vida urbana, em detrimento do inte-resse pela cultura do mundo rural, monopolizado pelo folclore. No Brasil, como esse estudo da reali-

dade urbana exige, naturalmente, não apenas o conhecimento pon-tual de História, mas de avaliação dos fatos dentro de um conceito de História Social, que logo evo-lui para o de História Cultural (por envolver o campo estrito de criações ligadas à vida das cidades como um todo), os estudos sobre música popular começaram pelo mais fácil: o levantamento biográ-fico dos artistas de maior sucesso. Iniciado o ciclo na década de 1970 – aliás, com atraso em re-lação aos lançamentos pioneiros de Chiquinha Gonzaga, compositora popular brasileira, de Marisa Lira, em 1939; Carmen Miranda: vida, glória, amor e morte, de Queiroz Júnior, em 1955; e No tempo de Noel Rosa, de Almirante, 1963 –, as biografias de figuras da música popular multiplicaram-se, inclu-sive com o estímulo de prêmios oficiais, como os instituídos pela Funarte na década de 80. Até o início dos anos 2000, entre as dezenas de biografias já publica-das em livro, duas revelaram-se insuperáveis pela amplitude da pesquisa: Chiquinha Gonzaga, uma história de vida, de Edinha Diniz, de 1984 (com nova edição revis-ta e atualizada em 2009), e Noel Rosa, uma biografia, da dupla João Máximo e Carlos Didier, de 1990.

recine: Na condição de pesquisa-dor detalhista, colecionador de documentos raros, qual a reali-dade atual de acesso aos acervos, comparada com o período dos anos 1960 e 1970?

tinhorão: A reunião de material capaz de servir à história da mú-sica popular no Brasil – partituras, rolos de gramofone e de pianolas, folhetos e jornais de modinhas

(coletâneas dos versos de compo-sições cantadas), revistas e jornais especializados (nas áreas de teatro musicado, cinema, disco, rádio e televisão), gravações em fitas e discos em CD áudio ou com imagens em VHS e DVD – foi sempre episódica e rara no Brasil. Geralmente iniciativa individual de colecionadores particulares, os acervos daí resultantes não chegam a formar um fundo de documentação comum, mas constituem apenas o resultado de diferentes interesses pessoais. A única tentativa de centralização e documentação envolvendo essas fontes assim esparsas foi a criação, em 1965, pelo governo carioca, do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, que partia do material reunido em 25 anos de atividades do radialista Henrique Foréis Domingues, o Almirante. Após uma série de iniciativas de interesse (como a gravação de depoimentos de velhos compositores, músicos e cantores vindos do século XIX), a falta de verbas e um princípio de incêndio reduziram o Museu da Imagem e do Som do Rio a apenas mais um museu, no pejo-rativo sentido da palavra. A rea-lidade da dispersão dos acervos de interesse para o conhecimento do fenômeno da música popular em mãos de particulares, ou guarda espalhada por diferentes instituições oficiais – institutos de música, bibliotecas públicas, sociedades arrecadadoras de di-reitos autorais etc – continuaria a prevalecer pelas décadas de 1970 a 1990, até se vislumbrar, afinal, uma possibilidade de mudança com a formação, no Instituto Moreira Salles (no ano de 2000 em São Paulo, e desde 2010 no

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Rio de Janeiro), do chamado acervo Tinhorão. Criado ao lon-go de quarenta anos de busca de material, capaz de servir, especifi-camente, como fonte documental para o estudo da música popular brasileira.

recine: Após a entrega de sua coleção aos cuidados de uma instituição de preservação você continua guardando materiais?

tinhorão: Em coerência com o princípio de que a história constitui um processo em que os acontecimentos se sucedem de forma contínua ao longo do tem-po, o acompanhamento dos fatos é indispensável à compreensão dessa evolução, o que transforma o pesquisador num recolhedor permanente de tudo o que possa servir à captação da realidade em movimento. Assim, qualquer relato dos fenômenos históricos terá que contar, para aferição de sua veracidade, com a exibição de documentos que o ilustrem e comprovem. Essa necessidade faz com que a busca de tudo o que possa servir de material de convencimento na descrição do fato histórico se transforme numa atividade permanente que implica, para o pesquisador, a necessidade da descoberta ou localização sempre renovada de novos documentos. Com o passar do tempo, o volume de material obtido ultrapassa normalmente a capacidade de o pesquisador manter a sua guarda, o que deter-mina – ao menos como medida lógica e desejável – a transferência do acervo do âmbito pessoal para um espaço público. No caso do Acervo Tinhorão, a tendência à sua expansão continua, agora

com sua possibilidade de enri-quecimento contínuo aumentada pela gerência da instituição que o detém, o Instituto Moreira Salles, e a magra mas constante contri-buição do pesquisador que lhe empresta o nome.

recine: As polêmicas do passa-do, quando publicamente eram travados debates sobre música brasileira, incomodaram você? As discussões alimentavam os leitores, havia uma efervescência, isso não era positivo? Você não acha que falta hoje uma boa po-lêmica, um debate, que fosse tão rico quanto aquele do qual você participou como protagonista?

tinhorão: As polêmicas que envolveram – e ainda envolvem – esse indigitado Tinhorão, estu-dioso de temas ligados à história da música popular brasileira, constituem um fenômeno natural da forma aberta e incisiva com que respondeu à provocação dos fatos levados à sua apreciação crítica. Assim, não há porque se sentir incomodado com a repercussão causada por suas opiniões, quando mais não seja considerado o princípio popular de que “o pau que canta aqui, can-ta lá”. Aliás, quando as respostas às críticas não vêm apenas sob a forma rasteira de xingamentos, revelam-se sempre importantes para o estabelecimento de um diálogo capaz de servir a uma boa troca de ideias. Infelizmente, é bem verdade que isso quase nunca acontece, por esbarrar sempre na mesma dificuldade: é que para haver troca de ideias, é preciso ter ideias. Quem sabe não reside aí a explicação para a atual falta de debates?

recine: Você adota a internet como meio de pesquisa?

tinhorão: Como fornecedor – divulgador de informações sobre todos os campos de conhecimen-to – não para ser tomado como fonte, como muitos admitem – a internet revela hoje importância só comparável à inaugurada no século XVIII com o aparecimento da Enciclopédia francesa, com a vantagem da possibilidade de sua permanente atualização. Assim, como instrumento de pesquisa, o uso da internet sendo insuperável na rapidez do acesso à informa-ção reserva ao mesmo tempo o maior perigo a que se sujeita um pesquisador: tomar a quantidade pela qualidade. Isso quer dizer que o uso da internet é indispensável. Desde que se saiba o que na infor-mação é dispensável.

recine: Hoje você se dedica a qual pesquisa?

tinhorão: Infelizmente neste ponto pouco ajudado pela internet – a não ser pelo acesso aos títulos de magra bibliografia disponível – ando na pista de um tema intrigante na área dos estudos sobre o negro africa-no e seus descendentes crioulos no Brasil: por que o folguedo de coroação de Reis do Congo, tão difundido em todo o país, se na história política das etnias africanas nunca existiram reis? Tenho sobre a minha mesa 58 títulos de livros e artigos sobre a África (em geral) e sobre o fenômeno da coroação de rei de congo em Portugal e no Brasil (em particular), e em nenhum desses trabalhos sequer se põe essa indagação. Não é curioso? A ten-tativa de resposta, então, será mais uma do Tinhorão.

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Radamés Gnattali toca

flauta cercado por Garoto,

no violão, Chiquinho do

Acordeom e Billy Blanco

no pandeiro

Violonista, cantora e pesquisadora. Mestranda em Musicologia e licenciada em Educação Musical pela Univer-sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Desenvolveu o projeto Enciclopédia Ilustrada do Choro no Século XIX. Professora da Escola Portátil de Música.

Anna Paes de Carvalho

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Até pouco tempo atrás, o choro, principal gênero de música instrumental brasileira, era estigmatizado como uma música de gente velha, repetitiva, cris-talizada no tempo, que nunca se renovava. Houve um período em que o repertório do choro parecia se esgotar nos mesmos clássicos – Noites cariocas, Brasileirinho, Pedacinhos do céu, Lamentos, Naquele tempo, Carinhoso, Tico-tico no fubá, Brejeiro, Odeon, Flor amorosa –, em arranjos para a tradicional formação regional: violões, cavaquinho e pandeiro; e um ou dois instrumentos solistas. Mas qualquer pessoa que aceitar a aventura de percorrer a trajetória desse gênero desde a sua origem aos dias de hoje perceberá o quão superficial foi essa visão.

É tão flagrante a ampliação do cenário do choro que hoje em dia dificilmente seria possível taxar o gênero como passadista. O choro vem atraindo um número cada vez maior de jovens músicos que veem no gênero a escola ideal para sua formação; programas de rádio com repertório de choro vão ao ar com maior frequência; cursos e oficinas são organizados em várias cidades; as universidades, que durante muito tempo estiveram alheias à nossa música popular, acolhem o choro em seus cursos de música; diversas teses acadêmicas vêm sendo feitas, não só no Brasil como no exterior, tendo o choro como objeto de estudo; músicos de extraordinário talento vêm surgindo e lançando no mercado CDs de excelente qualidade, muitos deles com repertório autoral. Percebe-se claramente que o choro vive um momento de grande fertilidade, mas a que fato podemos atribuir essa guinada?

Para responder a essa pergunta é necessário nos vol-tarmos para o fato histórico que foi o encontro do maestro Radamés Gnattali (RS, 1906-1988) com uma nova geração de músicos de choro que despontava no final da década de 1970. O grupo de músicos que

constituiu a primeira formação da Camerata Carioca, o bandolinista Joel Nascimento, a cavaquinista Lucia-na Rabello, os violonistas Raphael Rabello, Maurício Carrilho e Luiz Otávio Braga, e o pandeirista Celsinho Silva, além dos violonistas Sérgio e Odair Assad, que formariam o célebre Duo Assad, são alguns dos jo-vens que tiveram a sorte de conviver e usufruir dos ensinamentos desse grande mestre que, nessa fase da vida, já acumulava cinquenta anos de carreira.

Radamés foi peça chave para a abertura de uma nova perspectiva no universo do choro, transpon-do a barreira entre a música popular e a música erudita. Sua Suíte Retratos (que homenageia quatro mestres do choro: Pixinguinha, Anacleto de Me-deiros, Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga), uma peça de concerto para bandolim, regional de choro e orquestra de cordas, dedicada a Jacob do Bandolim e gravada originalmente por ele, foi um divisor de águas na história da música popular bra-sileira. Pela primeira vez um compositor brasileiro compunha uma peça que integrava a linguagem e a instrumentação do choro à música de concerto.

A Camerata Carioca apresentou a Suíte Retratos em 1979, no famoso espetáculo Tributo a Jacob do Ban-dolim, e deslanchou na década de 1980 em outros trabalhos inovadores, como o espetáculo dirigido por Hermínio Bello de Carvalho, Vivaldi e Pixingui-nha, revelando o ponto em comum entre o choro e a música barroca através da arte do contraponto. Seguindo o exemplo da Camerata, novos grupos surgiram com a certeza de que para se tocar choro não era necessário repetir os mesmos clássicos do repertório do gênero, nem reproduzir os mesmos arranjos ou a mesma instrumentação tradicional.

Mas talvez o maior ensinamento de Radamés tenha sido a sua reverência aos grandes mestres, o exem-

Texto editado especialmente para esta publicação a partir do ensaio elaborado para o projeto Músicos do Brasil: uma enciclopédia, patro-cinado pela Petrobras, através da Lei Rouanet.

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plo da sua postura em acreditar que a renovação de um gênero só é possível a partir de um profundo conhecimento das suas raízes. Postura igualmente defendida por Villa-Lobos na geração anterior.

Seguindo esse princípio, dez anos após a morte de Radamés, um de seus discípulos, Maurício Carrilho, empreende uma pesquisa com apoio do Programa de Bolsas da Fundação Rio-Arte: Inventário do repertório do choro (1870-1920), com intuito de preencher uma enorme lacuna de conhecimento do repertório das origens do choro. Realizei essa pesquisa em parceria com Maurício, e reunimos mais de seis mil obras em partituras manuscritas e editadas, de cerca de 1.300 compositores nascidos no século XIX. Com base nesse material, reunido e catalogado, várias gravações contemporâneas puderam ser feitas, lançadas a partir de 2002 pela primeira gravadora especializada em choro, a Acari Records, criada por Maurício Carrilho e Luciana Rabello. Ao mesmo tempo em que eram lan-çados esses CDs, passávamos a ter acesso ao precioso acervo de discos de 78 rpm de Humberto Franceschi, recentemente digitalizado e incorporado ao Centro Petrobras de Referência da Música Brasileira, conten-do grande parte da produção fonográfica realizada no Brasil nas primeiras décadas do século XX.

Esse conhecimento passou a ser transmitido no Rio de Janeiro a partir do ano 2000, época da fundação da Escola Portátil de Música, e serviu como fonte de inspiração para criação de novas composições entre alunos e professores, fato que vem aconte-cendo até os dias de hoje.

A pesquisa também permitiu que começássemos a delinear a árvore genealógica do choro com uma perspectiva musical e não apenas histórica. Duas figuras centrais contribuíram para o delineamento dessa árvore: a primeira delas foi Alexandre Gonçal-ves Pinto, violonista, cavaquinista e carteiro, nascido no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Conhecido pelo apelido de “Animal”, Gonçalves Pinto foi o primeiro músico a nos oferecer como le-gado seu livro de memórias, O choro: reminiscências dos chorões antigos, editado em 1936, já no final da sua vida, no qual relaciona mais de 460 personalidades das primeiras gerações do choro em pequenas biografias, relatando aspectos musicais e sociais em histórias divertidíssimas testemunhadas por ele, e vividas

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entre os chorões na virada do século XIX para o século XX. Esse livro, segundo muitos musicólogos, tornou-se a principal referência bibliográfica sobre o choro. A segunda figura central foi o jornalista e crítico carioca Ary Vasconcelos (1926-2003), um dos mais importantes estudiosos da música popular brasileira. Vasconcelos foi o primeiro pesquisador a fazer uma análise da história do choro em gerações e a iniciar um inventário do seu repertório a partir da sua própria coleção de discos de 78 rpm.

Seguindo os passos desses grandes mestres, começo então a mapear a árvore genealógica do choro de forma panorâmica, com intuito de ressaltar as ca-racterísticas principais de cada geração, destacando seus principais expoentes. Neste ensaio estão foca-lizadas apenas seis gerações, visto que a trajetória das que surgiram a partir da década de 1980 ainda está em desenvolvimento. O critério utilizado aqui para classificação de expoentes de uma determinada geração considera não só a época de nascimento, mas também a representatividade da sua produção musical num período específico da história do choro.

A primeira geração

O choro nasce no Rio de Janeiro, na segunda me-tade do século XIX, quando músicos brasileiros começam a se organizar em grupos instrumentais compostos por flauta, cavaquinho e violão, e passam a interpretar as danças europeias introduzindo ele-mentos rítmicos do batuque e do lundu, provenien-tes da cultura dos escravos africanos. O choro nessa época ainda não designava um gênero e sim o grupo instrumental que tocava as danças europeias de for-ma particular. Até então esses gêneros importados, entre eles a polca, a quadrilha, o schottisch, o pas-de-quatre, a valsa, a mazurca, o tango e a habanera, quando tocados por orquestras nos bailes nobres da cidade, mantinham suas características originais preservadas. A polca foi o gênero que mais caiu no gosto popular, tornando-se a principal matriz do choro. Começam a surgir edições de partituras com diversas modalidades de polcas (polca-lundu, polca-tango, polca-maxixe, polca-cateretê, polca-chula), revelando o seu processo de nacionalização.

Neste período merecem destaque os seguintes compositores pioneiros: o flautista Joaquim Callado

(RJ, 1848-1880), músico de grande fama pelo seu virtuosismo, o primeiro a formar um conjunto de choro; o maestro Henrique Alves de Mesquita (RJ, 1830-1906), muito prestigiado na corte do Rio de Janeiro, autor do primeiro tango brasileiro, gênero que surgiu como resultado da fusão da polca já nacionalizada com as danças espanholas (zarzuelas, tangos andaluzes e habaneras), em voga na década de 1860; a pianista Chiquinha Gonzaga (RJ, 1847-1935), primeira mulher a se profissionalizar como musicista popular e maestrina, produzindo cente-nas de músicas nos seus 88 anos de vida, entre elas vários clássicos que marcaram a história da música popular e do teatro brasileiro; e o pianista Ernesto Nazareth (RJ, 1863-1934), consolidador do tango brasileiro, que enriqueceu o repertório do choro compondo peças de grande sofisticação harmônica, trazendo para o piano a rítmica das polcas e lundus tocados pelos grupos instrumentais de choro.

À primeira geração pertencem ainda os flautistas Duque Estrada Meyer (RJ, 1848-1905), Viriato Figueira da Silva (RJ, 1851-1883), Juca Kallut (RJ, 1857-1922), Pedro Galdino (RJ, 1860?-1919), Pe-dro de Alcântara (RJ, 1866-1929) e o cavaquinista Galdino Barreto (RJ, 1850-1933?), criador de uma escola de cavaquinho perpetuada por seus discí-pulos Mário Álvares (RJ, 1861-1905) e Waldiro Frederico Tramontano, o Canhoto (RJ, 1908-1987).

A segunda geração

De 1889, ano da Proclamação da República, até o final da década de 1920 é a fase em que o choro se consolida como gênero. A abolição da escravatura e os progressos tecnológicos provocam mudanças na estrutura da sociedade brasileira. Surge uma classe social intermediária no Rio de Janeiro, inexistente até então, de funcionários públicos (carteiros, funcionários dos telégrafos, da Casa da Moeda, do Arsenal da Marinha, das estradas de ferro, da Alfândega), que muito irá contribuir para o desen-volvimento do choro, tocando de forma diletante, nos quintais, nas festas e bailes da cidade.

Esse é o período em que a formação instrumental dos conjuntos de choro se amplia, incorporando instrumentos como o clarinete, o oficleide, o trompete, o trombone e o bombardino, e esse

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Souza (RJ, 1865?-1920) e Casemiro G. Rocha (RJ, 1880-1912). O primeiro, autor da valsa Clélia, e o segundo, autor da famosa polca Rato rato.

Pertencem a essa geração os seguintes mestres com-positores: o trompetista Albertino Pimentel (RJ, 1874-1929), sucessor de Anacleto como regente da Banda do Corpo de Bombeiros; o oficleidista, trombonista e bombardinista Irineu de Almeida (RJ, 1873-1916), mestre na arte do contraponto e professor de Pixin-guinha; o cavaquinista virtuose Mário Álvares (RJ, 1861-1905), professor de Donga e Pixinguinha; os violonistas Satyro Bilhar (CE, 1860-1927), Quincas Laranjeiras (PE, 1873-1935) e João Pernambuco (PE, 1883-1947), mestres que contribuíram para elevar o reconhecimento do violão como instrumento solista; Arthur de Souza Nascimento, o Tute (RJ, 1886-1951), primeiro violonista de sete cordas da história do choro, que também pertenceu à primeira formação da Banda do Corpo de Bombeiros tocando bombo e prato; o flautista virtuose Patápio Silva (RJ, 1880-1907), primeiro solista a realizar um registro fono-gráfico no Brasil em 1902; Candinho Silva (RJ, 1879-1960), trombonista da orquestra do Teatro Municipal, autor de centenas de choros recolhidos em partituras manuscritas por Jacob do Bandolim. Também se insere nesta geração o maestro Heitor Villa-Lobos (RJ, 1887-1959), pois embora sua obra pertença ao

fato se deve em grande parte à atuação de um dos principais mestres do choro: Anacleto de Medeiros (RJ, 1866-1907). Anacleto levou o choro ao recesso das bandas civis e militares, foi fundador e primeiro mestre da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro em 1896, regendo-a em solenidades, festas públicas e diante dos primeiros aparelhos de gravação da Casa Edison para registro dos primei-ros discos brasileiros. No repertório das bandas, o gênero de maior popularidade nessa época é o maxixe. Surgido inicialmente como uma dança praticada nos bailes populares da Cidade Nova, o maxixe se desenvolveu nas primeiras décadas do século XX, executado por bandas e orquestras nas sociedades carnavalescas e no teatro de revista.

Despontaram nessa fase, no âmbito das bandas ou ranchos carnavalescos, os seguintes instrumentistas de sopro: Leandro Sant’anna (RJ, 1870?-1930?), Raul Malaguti (RJ, 1880?-1940?), tio do pianista, compositor e arranjador Paulo Malaguti, dos dias atuais; José Silva (Baianinho) (RJ, 1880?-1965?); Manoel Malaquias (RJ, 1870?-1940?); Zumba (José Gonçalves Jr.) (PE, 1889-1974) e André Vitor Correia (RJ, 1888-1948) – todos clarinetistas, sendo que os dois últimos também foram saxofonistas; o trombonista Álvaro Sandim (RJ, 1862-1922), autor do clássico Flor do abacate; e os trompetistas Luiz de

Altamiro Carrilho, Gilson Freitas, Orlando Silveira, Canhoto, Dino Sete Cordas e Meira PN

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âmbito da música de concerto, ela também reflete a enorme influência da linguagem do choro adquirida no convívio com os principais chorões desse tempo em reuniões musicais.

É a partir da segunda geração que o choro deixa de ser uma música restrita ao Rio de Janeiro, passando a se expandir por vários estados brasileiros, como podemos constatar: no Pará, nas obras de Clemente Ferreira Júnior (1864-1917) e José Agostinho da Fonseca (1886-1945); no Maranhão, Adelman Brasil Corrêa (1884-1947); no Rio Grande do Norte, To-nheca Dantas (1870-1940); em Pernambuco, Alfredo Gama (1867-1932); em Alagoas, Misael Domingues (1857-1932); em São Paulo, nas obras de Zequinha de Abreu (1880-1935), Eduardo Souto (1882-1942) e Marcelo Tupinambá (1889-1953); e no Rio Grande do Sul, na obra de Octávio Dutra (1884-1937).

A terceira geração

A terceira geração do choro é marcada pelo início da influência norte-americana na presença de jazz bands e orquestras de salão, no início da década de 1920. É nessa fase que desponta o grande Pixin-guinha (Alfredo da Rocha Viana Filho) (RJ, 1897-1973), um dos pilares da música popular brasileira, cuja trajetória como compositor, instrumentista, regente e orquestrador contribuiu para fixar as bases do choro contemporâneo.

No início de sua carreira, Pixinguinha criou o len-dário conjunto Os Oito Batutas com a finalidade de tocar no elegante Cinema Palais, onde tradicional-mente apenas músicos eruditos se apresentavam. Com a formação instrumental de flauta, violões, cavaquinho, bandola, pandeiro, ganzá e reco-reco, e com repertório composto de maxixes, sambas e emboladas nordestinas, a atuação do conjunto fez um sucesso estrondoso, chamando a atenção de pessoas influentes da sociedade carioca, como Arnaldo Guinle, que em 1922 decidiu patrocinar uma viagem do conjunto a Paris. Os Oito Batutas fazem a primeira excursão internacional de um conjunto de música popular brasileira. A plateia francesa, que de música popular só conhecia o jazz americano e o tango argentino, foi surpreendida e contagiada pela força da música popular brasileira autêntica e pela flauta genial de Pixinguinha.

De volta ao Brasil, após a participação nas co-memorações do Centenário da Independência, o grupo seguiu para a Argentina, onde realizou vinte gravações mecânicas. Nessas gravações, a percussão, que até então só havia aparecido nas gravações de bandas, é ouvida pela primeira vez numa pequena formação instrumental. Ouve-se também a estreia do saxofone de Pixinguinha.

Após a dissolução dos Batutas, surgem as pri-meiras orquestrações de Pixinguinha para novos conjuntos instrumentais, como a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, Orquestra J. Thomaz, Orques-tra Victor Brasileira e a Diabos do Céu.

Outros nomes de destaque na terceira geração do choro além dos já citados são: os pandei-ristas Jacó Palmieri (RJ, 1880?-1960?) e João da Baiana (João Machado Guedes) (RJ, 1887-1974), este último considerado o primeiro grande mestre no instrumento; os flautistas Antô-nio Maria Passos (RJ, 1880?-1940?), Agenor Bens (RJ, 1890?-1950?), Raul Silva (SP, 1889-1938); os clarinetistas Louro (Lourival Inácio de Carvalho) (RJ, 1894-1956) e Marambá (José Mariano da Fonseca Barbosa) (PE, 1896-1968), irmão do mestre Capiba; os sa-xofonistas Romeu Silva (RJ, 1893-1958) e Ratinho (Severino Rangel de Carvalho) (PE, 1896-1972); os trompetistas Bonfiglio de Oliveira (SP, 1894-1940) e Napoleão Tavares (MG, 1892-1965); o cavaqui-nista Nelson Alves (RJ, 1895-1960); os violonistas Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos) (RJ, 1890-1974), Américo Jacomino (SP, 1889-1928), José do Carmo (PE, 1895-1977), Alfredo Medeiros (PE, 1892-1961), Romualdo Miranda (PE, 1898-1971) e Levino da Conceição (RS?, 1895-1955); os bandolinistas Adalberto de Azevedo (Betinho) (RJ, 1896-1969) e Aristides Júlio de Oliveira, o Moleque Diabo (RJ?, 1895?-1938); os pianistas Sinhô (José Barbosa da Silva) (RJ, 1888-1930), Luís Nunes Sam-paio (Careca) (RJ, 1886-1953), Aristides Borges (RJ, 1884-1967), Freire Júnior (RJ, 1881-1956), Oswaldo Cardoso de Meneses (RJ, 1893-1935) e Tia Amélia (PE, 1894-1983); e o compositor Erothides de Campos (SP, 1896-1945).

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a 1950, o conjunto vive uma fase brilhante, com a entrada de Pixinguinha fazendo os famosos contra-pontos aos solos de Benedito no programa O pessoal da velha guarda, dirigido por Almirante na Rádio Tupi.

A partir de 1951, com as constantes ausências de Benedito, Canhoto assume a liderança do grupo, chamando o flautista Altamiro Carrilho (RJ, 1924) e mais tarde o acordeonista Orlando Silveira (SP, 1922-1993). Assim nasce o lendário Regional do Canhoto, o mais célebre regional da história da música popular brasileira.

Outros grandes nomes que deslancharam suas carreiras nas rádios e orquestras desse tempo foram: o genial bandolinista Luperce Miranda (PE, 1904-1977); o clarinetista e saxofonista Luís Americano (SE, 1900-1960); os flautistas Dante Santoro (RS, 1904-1969), João Dias Carrasqueira (SP, 1908-2000) e Copinha (Nicolino Cópia) (SP, 1910-1984); os saxofonistas Sandoval Dias (BA, 1906) e Fon-Fon (Otaviano Romero Monteiro) (AL, 1908-1951), este também diretor de orques-tra; os bateristas Valfrido Silva (RJ, 1904-1972) e Luciano Perrone (RJ, 1908-2001), precursores na criação do estilo brasileiro de se tocar bateria, sendo o último, mestre de nosso contemporâneo Oscar Bolão; os pianistas Nonô (Romualdo Peixoto) (RJ, 1901-1954), tio dos cantores Cyro Monteiro e Cauby Peixoto, Custódio Mesquita (RJ, 1910-1945), Gaó (Odmar do Amaral Gurgel) (SP, 1909-1992), Vadico (Oswaldo de Almeida Gogliano) (SP, 1910-1962) e Carolina Cardoso de Meneses (RJ, 1916-

A quarta geração

Em 1927, o progresso tecnológico representado pela chegada de microfones, autofalantes, vitrolas e discos elétricos abre uma nova fase na história da música popular brasileira. Até então, os cantores precisavam berrar dentro dos tubos acústicos e os músicos tinham que tocar com toda força para que fosse impressa a cera da matriz do disco. A mudança permitirá o surgimento de gravações de sons jamais ouvidos na música instrumental, no registro de solos de violão, bandolim e cavaquinho; e na música vocal, no registro de vozes menos empostadas e mais espontâneas.

A fase de 1930 a 1945 é considerada a Época de Ouro do Rádio, quando surge um grande merca-do de trabalho para instrumentistas, arranjadores, compositores e cantores. A atividade do compo-sitor popular ganha valor comercial e cresce o número de sociedades defensoras dos direitos do autor, tendo sido a SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) a primeira delas, fundada em 1917 pela pioneira Chiquinha Gonzaga.

Os músicos de choro irão atuar em conjuntos regionais contratados para acompanhar grandes estrelas da música vocal (Mário Reis, Sílvio Cal-das, Francisco Alves, Moreira da Silva, Carmen Miranda, Aracy de Almeida, Orlando Silva etc.) em programas de rádios como a Rádio Mayrink Veiga e a Rádio Nacional, sendo valorizados por terem grande versatilidade para tocar de ouvido, impro-visar arranjos instantâneos e tapar os “buracos” da programação com um vasto repertório de choros. Pixinguinha e Radamés Gnattali serão os princi-pais responsáveis pelos arranjos de orquestras no acompanhamento de cantores, criando uma escola brasileira de orquestração.

O conjunto regional de maior destaque nessa época é o do flautista Benedito Lacerda (RJ, 1903-1958), que reúne alguns dos melhores músicos de acompa-nhamento da história da música popular brasileira: Dino Sete Cordas (Horondino José da Silva) (RJ, 1918-2006) e Meira (Jaime Tomás Florence) (PE, 1909-1982) nos violões e Canhoto (Waldiro Frederico Tramontano) (1908-1987) no cavaquinho. De 1946

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1999), herdeira de uma linhagem de várias gerações de pianistas em sua família. Foi célebre o seu duo com o violonista Garoto (Aníbal Augusto Sardi-nha) (SP, 1915-1955), um dos principais mestres do violão brasileiro, virtuose de vários instrumentos de corda. Outros violonistas que se destacaram foram Armandinho Neves (SP, 1902-1976), Antônio Rago (SP, 1916), Dilermando Reis (SP, 1916-1977) e Lau-rindo de Almeida (SP, 1917-1995); o violinista Fafá Lemos (Rafael Lemos Júnior) (RJ, 1921-2004) e o acordeonista Antenógenes Silva (MG, 1907-2001), autor da famosa valsa Saudades do Matão.

A quinta geração

Na segunda metade da década de 1940 tem início a fase em que se destacam as estreias em disco de gran-des ícones do choro: Jacob do Bandolim (RJ, 1918-1969), com seu choro-sambado Treme-treme, e o solista de cavaquinho Waldir Azevedo (RJ, 1923-1980), com o choro Brasileirinho, ambos lançados em 1947.

O clarinetista e saxofonista Abel Ferreira (MG, 1915-1980) deslancha a sua carreira em 1946, com a gravação de Chorando baixinho; o trombonista Raul de Barros (RJ, 1915-2009), autor do clássi-co Na Glória, grava em 1948 seu primeiro disco com composições de Donga: Pobre vive de teimoso e Malabarista. No ano seguinte, o flautista Altamiro Carrilho (RJ, 1924) grava dois choros de sua au-toria, Flauteando na Chacrinha e Travessuras do Sérgio. Alguns anos mais tarde faria enorme sucesso com o maxixe Rio antigo, gravado por sua Bandinha. O acordeonista Luiz Gonzaga (PE, 1912-1989), que no início da década de 1940 surgira como instru-mentista de choro e música regional nordestina, se lança como cantor em 1946, gravando Baião, parceria com o compositor Humberto Teixeira que ditaria o gênero da nova moda nacional dos anos 50. Nessa fase também estreiam em discos o acordeonista Sivuca (PB, 1930-2006) e Chiquinho do Acordeom (Romeu Seibel) (RS, 1928-1993), além do cavaquinista Edinaldo Vieira Lima, o Índio do Cavaquinho (AL, 1924-2003).

O lançamento da carreira desses grandes ícones do choro, curiosamente, se dá em meio a um cenário musical onde a influência da música norte-americana se faz sentir: na música vocal, nos

gêneros fox-canção e samba-canção estilo “dor de cotovelo”; e na música instrumental, no sucesso de grandes orquestras inspiradas nas big bands, que tocam em cassinos, teatros e salões de gafieira. Destacam-se orquestras como as dos maestros Fon-Fon, Carioca, Cipó e a célebre Orquestra Ta-bajara, do clarinetista Severino Araújo (PE, 1917), atuante até hoje, que lança sua primeira gravação em 1945 com Chorinho em Aldeia. Essas orquestras lançaram instrumentistas virtuoses, entre os quais compositores que enriqueceram o repertório do choro com suas composições marcadas pelo estilo jazzístico. É o caso do saxofonista K-Ximbinho (Sebastião de Barros) (RN, 1917-1980), autor dos clássicos Sonoroso, Ternura e Sempre; o trompetista Porfírio Costa (PB, 1913), autor de Peguei a reta; o trombonista José Leocádio, autor de Paraquedista, gravado também com letra pelo cantor Jorge Veiga; Zé Bodega (PE, 1923-2003), considerado um dos maiores saxofonistas brasileiros; o próprio Seve-rino Araújo, autor do clássico Espinha de bacalhau; o trombonista Norato (MG, 1923) e o clarinetista Paulo Moura (SP, 1933-2010).

Desde o início da década de 1940, o maestro César Guerra-Peixe (RJ, 1914-1993), compositor erudi-to e popular, musicólogo, violinista e arranjador, compõe uma série de peças para orquestra de salão incluindo choros, sambas, marchas e sambas-canções. Destacamos entre elas os choros para

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No sentido horário: Waldir Azevedo no cavaquinho, Abel Ferreira , Paulo Moura, Zé da Velha, Copinha e Joel Nascimento

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O chOrO e sua árvOre genealógica

de Ouro, formado por alguns dos melhores acom-panhadores de choro de todos os tempos: Dino Sete Cordas, César Faria (pai de Paulinho da Viola) (RJ, 1919-2007), Carlos Leite (violões), Jonas Silva (cavaquinho) (RJ, 1934-1997) e Gilberto d’Ávila (pandeiro); além do primeiro disco do maestro Moacir Santos, intitulado Coisas, trazendo uma linguagem musical moderna que influenciaria uma geração de músicos de choro na década seguinte.

Embora o choro não ocupasse mais um lugar de destaque no mercado fonográfico a partir da bossa nova, a sua influência continuará se fazendo sentir na produção dos principais compositores da música popular brasileira desse tempo. Podemos observá-la na obra de Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo, Francis Hime, Baden Powell (RJ, 1937-2000), este discípulo do mestre Meira, assim como foram Mau-rício Carrilho e Raphael Rabello (RJ, 1962-1995).

A sexta geração

Chegamos aos anos 1970, década em que vários acontecimentos irão contribuir para um movi-mento de revitalização do choro. No mesmo ano da morte de Pixinguinha, 1973, a participação do Conjunto Época de Ouro com nova formação após a morte de Jacob, com Déo Rian (RJ, 1944) ao bandolim, Damásio (violão) e Jorginho do Pandeiro (RJ, 1930), e os veteranos Dino Sete Cordas, César Faria e Jonas no show Sarau, de Paulinho da Viola, torna-se a grande atração da temporada.

Em 1976, Paulinho da Viola evidencia seu berço musical, lançando o disco Memórias chorando, em que grava choros dos mestres Ary Barroso e Pi-xinguinha, além de choros de sua autoria em solos de cavaquinho e violão.

Surge no mercado fonográfico, dominado pelas multinacionais, a gravadora Marcus Pereira, preo-cupada em enaltecer a obra de artistas do choro, lançando os discos A música de Donga; Brasil, flauta, bandolim e violão, com Evandro do Bandolim e Regional; Brasil trombone, com o trombonista Raul de Barros; Brasil, sax e clarineta, com Abel Ferreira; Pixinguinha, de novo, com Altamiro Carrilho e Car-los Poyares (ES, 1928-2004), Arthur Moreira Lima interpreta Ernesto Nazareth vol. I e II etc.

quinteto de saxofones e orquestra, nos quais faz uso de harmonizações que seriam popularizadas somente vinte anos mais tarde.

Surgem novos conjuntos trazendo arranjos e formações instrumentais inéditas: o Quinteto Radamés Gnattali, composto pelo próprio Radamés ao piano, Chiquinho do Acordeom, Luciano Perrone na bateria, Pedro Vidal Ra-mos no contrabaixo e Zé Menezes (CE, 1921) na guitarra elétrica; o Trio Surdina, formado

por Fafá Lemos, Chiquinho do Acordeom e Garoto. Alguns músicos irão desenvolver suas

carreiras fora do Brasil, incorporando outras lin-guagens, mesmo tendo suas raízes no choro: é o caso dos violonistas Bola Sete (Djalma de Andrade) (RJ, 1923-1987) e Laurindo de Almeida; e do saxo-fonista e maestro Moacir Santos (PE, 1924-2006), que só recentemente teve suas composições de choro reveladas.

Abrimos um parêntese para ressaltar nessa fase a trajetória notável do instrumentista, compositor e pesquisador Jacob do Bandolim. Prevendo as dificuldades para viver como músico de choro e por não querer fazer concessões à indústria fo-nográfica, Jacob segue a tradição dos chorões da segunda geração e torna-se funcionário público. Talvez esse fato explique a constância da sua car-reira, imune aos modismos, recuperando a obra de vários mestres do passado e renovando o gênero com suas próprias composições, que hoje são parte do repertório fundamental do gênero.

Jacob foi responsável por manter acesa a tradição das rodas de choro, fazendo saraus memoráveis na sua casa em Jacarepaguá. Um dos saraus mais lembrados foi em 1959, quando convidou músicos pernambu-canos, além do genial violonista Canhoto da Paraíba (PB, 1928), para um encontro com Pixinguinha, Dilermando Reis e Radamés Gnattali, entre outros.

A partir do final da década de 1950, a produção musical no ambiente do choro fica ofuscada pelo movimento da bossa nova. Entretanto, alguns dis-cos fundamentais serão produzidos na década de 1960, entre eles: Choros imortais vol. 1 e 2, por Altami-ro Carrilho e Regional do Canhoto; Vibrações, por Jacob do Bandolim e o lendário Conjunto Época

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A tradição das rodas de choro se mantém em bares cariocas como o Sovaco de Cobra, na Penha, ponto de encontro de chorões estreantes e veteranos. Os grupos que se destacam no Rio de Janeiro nesse período são Os Carioquinhas, que em 1977 lança seu único LP, o Galo Preto e o Nó em Pingo d’Água. Os dois últimos fazem suas estreias fono-gráficas respectivamente em 1978 e 1983, e estão em atividade até os dias de hoje.

A partir de 1977, a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro passa a estimular a formação de novos conjuntos, lançando o projeto Concerto de Choro e promovendo concursos anuais de conjuntos de choro. Em São Paulo, a TV Bandeirantes começa a promover o Festival Nacional de Choro, do qual participam grupos de chorões de vários estados, en-tre eles o Amigos do Choro, do bandolinista Rossini Ferreira (PE, 1919-2001); o Lenha da Casa, do flau-tista Plauto Cruz (RS, 1929); o Regional do Evandro (PB, 1932-1994), do bandolinista Josevandro Pires de Carvalho; o Conjunto Atlântico, no qual se des-tacam o violonista Antonio d’Auria (SP, 1912-1998) e o bandolinista Izaías Bueno de Almeida (SP, 1937); e o regional de Esmeraldino Salles (SP, 1926-1979), parceiro do acordeonista Orlando Silveira.

Surgem clubes do choro que se espalham pelo país. Merece destaque o Clube do Choro de Brasília, que surgiu a partir do encontro de chorões que se reuniam pra tocar na casa da flautista Odette Ernest Dias (Paris, 1929), e também do jornalista Raimundo de Brito, entre eles Waldir Azevedo, residente em Brasília desde 1971.

Radamés lança em 1975 o disco do seu novo sexteto, que conta com a participação do pianista Laércio de Freitas (SP, 1941), além dos integrantes do seu quinteto. Na década de 80, a experiência da Camerata Carioca abre caminho para o surgimento de grupos como o Água de Moringa, ainda em atividade, e a Orquestra de Cordas Brasileiras, ins-pirados na mesma linguagem de arranjo. Também têm destaque a Orquestra de Cordas Dedilhadas de Pernambuco e a Oficina de Cordas – celeiro de excelentes instrumentistas como os violonistas João Lyra, Henrique Annes, Bozó, os bandolinistas Marco César, Ivanildo Maciel e Adalberto Caval-canti, os violistas Nilton Rangel e Adelmo Arco-

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verde – cujos primeiros discos foram idealizados por Hermínio Bello de Carvalho, então diretor da Divisão de Música Popular Brasileira da Funarte.

Outro lançamento precioso, idealizado por Hermínio em 1982, é o encontro do jovem violonista Raphael Rabello com o mestre Radamés Gnattali num disco dedicado à obra de Garoto. Raphael Sete Cordas, como se tornou conhecido, sendo discípulo direto de Dino Sete Cordas, desponta sua carreira de solista lançando quatro anos depois parte da obra de Rada-més para violão solo, no disco Raphael Rabello interpreta Radamés Gnattali. Raphael se projeta como um dos maiores violonistas brasileiros realizando centenas de shows e gravações como solista e acompanhante, e, apesar do seu falecimento prematuro, ainda é referên-cia para o surgimento de novas gerações de excelentes violonistas brasileiros e estrangeiros.

O crescente interesse de músicos estrangeiros pelo choro aponta para uma perspectiva de internacio-nalização do gênero no século 21. Em países como Estados Unidos, Japão e França existem clubes de choro empenhados em divulgar o gênero, realizan-do shows e workshops.

O enorme poder de congregação do choro continu-ará reunindo músicos de origens, culturas e idades diferentes, que se orgulham de cultivar esse gênero musical. Conscientes da ancestralidade do choro, a maior herança cultural da música popular brasileira, futuros músicos e pesquisadores vão seguir comple-tando essa árvore, desvendando a obra de mestres do passado e revelando a atuação dos músicos de hoje.

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Noite dos Choristas, programa exibido ao vivo pela TV Record

de São Paulo, em 12 de maio de 1955. Organizado por Jacob do

Bandolim, reuniu setenta músicos comandados por Pixinguinha.

Devido ao grande sucesso, houve uma segunda edição do

programa em 1956

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A grande viagem

Ivan Dias

“O brasileiro é o português

à solta”Professor Agostinho da Silva

Filósofo português

Cavaco Lisboa

Cineasta português. Diretor do documentário Apanhei-te cavaquinho (2010).

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Quando, em 2002, terminei uma enorme recolha etnomusicológica em

Portugal para a série documental Povo que canta, descobri que o menor dos cordofones populares era de todos o mais viajado

e o mais celebrado por diversas culturas e credos de todo o planeta. Nasci em Braga, Verde Minho, Norte de Portugal, com o Braguinha sempre por perto.

Braguinha era o nome carinhoso e pioneiro que esse pequeno cavaco (literalmente, pedaço de madeira em Portugal que, invariavelmente, termina na lareira numa noite de rigoroso inver-

no bracarense) tomou pelos seus inúmeros tocadores, que aproveitavam a sua humilde dimensão e capacidade de animar bailaricos e festinhas para levá-lo em intermináveis viagens durante toda

a época dos descobrimentos e os séculos que se seguiram de trocas culturais e comerciais. Assim, o cavaquinho foi de Braga para Lisboa e de Lisboa para o mundo, em todos os continentes. Da Ilha da Madeira a Cabo Verde, do Havaí a Goa, de Macau à Indonésia, todos foram adotando o cavaquinho como seu, e hoje chegam a achar estranho que alguém lhes diga que aquele instrumento viajou milhares de milhas náuticas da sua origem até encontrar outro berço, outras mãos que o tocassem.

Mas foi no Brasil, e principalmente na portuguesíssima cidade do Rio de Janeiro, que a célebre frase do professor Agostinho da Silva mais sentido fez. O cavaquinho, também ele, se soltou como os portugueses aqui chegados depois de Cabral, encantados com as belezas naturais e humanas que abundavam neste paraíso de Vera Cruz, e aqui encontrou seu esplendor.

Essa é a nossa história! De como essa viagem de um humilde Braguinha se transformou na própria viagem do povo brasileiro e das suas indesmentíveis e irrefutáveis origens

lusitanas. De como através da música se pode contar a história dos povos e de como acabamos realizando que essa é a viagem mais importante de todas

as que esse peculiar instrumento deixou de legado para todos nós.

musicosdobrasil.

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Cavaco Minho

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O com

positor da Portela Alvaiade e seu cavaco

Waldir Azevedo

Apanhei-te cavaquinho!

Não se sabe ao certo quando o cavaquinho chegou no Brasil, mas foi bem antes da Corte portuguesa, que veio em 1808. Alguns acreditam que os primei-ros cavaquinistas que pisaram aqui eram da Ilha da Madeira, porque sempre se usou palheta para tocar o instrumento como lá. No acompanhamento das modinhas e dos lundus, o cavaquinho já estava ao lado das violas e violões. Era na rua das Violas que se concentravam as oficinas dos violeiros.

Mas teve que se esperar mais um pouco para que surgisse o primeiro tipo de conjunto em que seu papel era primordial – o trio de choro, flauta, violão e cavaquinho. A música que esse grupo executava era uma adaptação de danças que vieram da Europa, como a polca e a valsa, tocada de uma maneira chorada, com um toque luso-brasileiro de melancolia.

Os músicos que tocavam desse jeito eram cha-mados de chorões, e foi pela década de 1870 que nasceu esse jeito de tocar. A polca se misturou com o lundu, resultando em algo realmente novo.

No comecinho do século XX, o cavaquinho apa-recia em duas situações: no terno do choro e nos blocos que se organizavam para o carnaval e as festas de bairro e de padroeira. Nesses blocos ele continuava a exercer a sua vocação de instrumento itinerante, que anda na rua, dando o tom para o povo cantar. Enquanto os grupos de choro, com algumas modificações, foram se transformando no que seria o chamado “conjunto regional” - uma base de dois violões, cavaquinho, pandeiro e um solista -, os blocos se transformaram, no final da década de 1920, nas escolas de samba. Nelas, o cavaquinho teve, desde a primeira hora, uma função muito decisiva. A partir da chegada da gravação elétrica, em 1928, e do sucesso de cantores como

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Cavaquinista, compositor, arranjador e produtor musical.Henrique Cazes

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Francisco Alves, Mário Reis e depois Carmen Miranda, o samba se transformou num negócio lucrativo, e um músico muito esperto percebeu isso antes dos outros. Foi o flautista e compositor Benedito Lacerda. Ele viu que acompanhar samba era um mercado de trabalho e, para isso, começou a organizar conjuntos que eram especialmente bons.

O sucesso dos sambas batucados acompanhados pelo conto de Benedito Lacerda foi copiado de norte a sul do país. Em cada estação de rádio surgiu um regional para resolver todo tipo de problema mu-sical, tocando sem arranjos, improvisando na hora.

Em cada regional desses havia um cavaquinho fazendo a ligação entre o som dos violões e do pandeiro. Sem cavaquinho o regional não dá liga. Foram essas oportunidades profissionais que fize-ram o instrumento evoluir.

Waldir Azevedo gostava de música desde garoto, e um dia pediu à sua avó um bandolim. Ela, que era portuguesa, disse que primeiro ele arranjasse um emprestado e aprendesse o Fado da Severa, que só depois ganharia o instrumento.

Aprendido e tocado o fado, ele experimentou de-pois o violão e o violão tenor, mas como não levava a possibilidade de ser músico a sério, foi trabalhar em escritórios antes dos 18 anos. Cedo se casou, e ainda na lua de mel surgiu um convite irrecusá-vel. Era para tocar no regional da Rádio Clube do Brasil, dirigido pelo violonista Dilermando Reis. Ele deixou a mulher na lua de mel e veio ao Rio fazer um teste na rádio. Foi na loja Ao Bandolim de Ouro e conseguiu um cavaquinho emprestado, com o compromisso de comprá-lo se passasse no teste. Passou e assumiu o emprego, onde ganharia o dobro de seu outro trabalho.

O emprego era bom, mas ele ainda não tinha mos-trado ao mundo um novo som do cavaquinho. Essa história começou quando um sobrinho pediu para que ele tocasse um cavaquinho de brinquedo com uma corda só (eu pego um cavaquinho de brinquedo e toco com uma corda só). Ele ficou com o brinquedinho na mão até que surgiu um tema que dava para aprovei-tar. De noite, na Rádio Clube, ele acabou de fazer esse choro ligeiro e ali mesmo o tocou muitas vezes. A música chamou a atenção, e ele foi chamado para gravar na Continental. O disco estourou, fez um sucesso que nunca um instrumentista tinha tido no Brasil. Aparecia Waldir e seu Brasileirinho.

Depois de estrear com um sucesso absurdo, era difícil imaginar que Waldir atingiria algo a mais. Mas foi o que aconteceu com outros sucessos, como o choro dolente Pedacinhos do céu e Delicado.

Com o fim da chamada era do rádio, em meados da década de 1960, e a morte de lideranças importan-tes, como o Jacob do Bandolim, em 1969, houve uma fase de declínio dos conjuntos regionais. Os músicos de regionais eram taxados pela turma da bossa nova como quadrados, porque não usavam acordes alterados. O cavaquinho então era visto como o símbolo do atraso musical, e muito se contava a piada que era um instrumento pequeno para preto poder tocar algemado.

Num cenário tão negativo, o resgate do cavaquinho se deu por um caminho inesperado, o caminho do pop. O sucesso dos Novos Baianos, que mistura-vam cavaquinho e guitarra com distorção, pandeiro e baixo elétrico, marcou a minha geração. Eu tinha 12 anos quando o disco Acabou Chorare estourou, e foi aí que eu quis “apanhar o cavaquinho”. E no fim dessa viagem cinematográfica, pude com propriedade falar “Apanhei-te cavaquinho!”.

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ação

O encontro de Henrique Cazes (ao centro), Mané do Cavaco (à esquerda) e Alceu Maia nas filmagens do documentário Apanhei-te cavaquinho, de Ivan Dias

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Até a gravação de Pelo telefone (Donga e Mauro de Almeida), em fins de 1916, a palavra samba não designava um gênero musical, servindo apenas para dar nome às festas com música e dança que os negros promoviam desde o tempo da escravidão. Tinha, enfim, o mesmo significado que teria, mais tarde, a palavra pagode, também uma reunião festiva com música e dança, que acabaria definindo não um gênero musical, mas um estilo de samba.

A versão mais aceita da origem da palavra samba é a de que vem de semba, que, no dialeto quimbundo, falado principalmente em Angola, significa umbigada, o toque com a barriga de um dançarino no outro, convidando-o a ocupar o centro das danças de roda, tão comuns no Brasil, na região que o folclorista Édison Car-neiro batizou de “área nacional do samba”, do Maranhão até São Paulo.

Ismael Silva e as baianas

Jornalista e escritor. Autor de vários livros sobre a música popular brasileira.Sérgio Cabral

Quase duzentos anos de samba

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Em suas pesquisas, Édison Carneiro descobriu que, no dia 3 de fevereiro de 1838, frei Miguel do Sa-cramento Lopes Gama registrava a palavra samba na revista pernambucana Carapuceiro, ao protestar contra o que chamou de “samba d’almocreve”. Na mesma revista, com data de 12 de novembro de 1842, frei Miguel do Sacramento voltava a escrever a palavra na seguinte quadrinha:

Aqui pelo nosso matoQu’ estava então mui tatambaNão se sabia outra coisaSenão a dança do samba.

Não há dúvida de que o religioso referia-se às festas dos negros nos engenhos de açúcar pernambuca-nos, quando, provavelmente, cantavam e dançavam

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Partitura de Pelo telefone (Donga e Mauro de Almeida), o primeiro samba gravado

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Sinhô, o Rei do Samba

o maracatu, uma das manifestações de uma família de sobrenome Samba, sempre com características regionais próprias. Os componentes de tal família ganharam formas e nomes diferentes, de acordo com a região em que nasceram: os tambores de mina e de crioula no Maranhão, o milindô do Piauí, o bambelô do Rio Grande do Norte, as variedades de coco de todo o Nordeste (principalmente de Alagoas), o samba de roda e o bate-baú da Bahia, o jongo do Espírito Santo, do estado do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, o lundu da cidade do Rio e o samba rural e samba de lenço de São Paulo.

Capital brasileira desde 1763, o Rio de Janeiro era o destino de levas de brasileiros livres e escravos, além de africanos vindos diretamente dos seus países de origem, o que fez da cidade uma espécie de síntese da cultura popular do país. Somando-se a tudo isso o fato de chegarem ao Rio de Janeiro, em primeira mão e em maior volume, as novidades europeias, incluindo a música, seria natural que surgissem em território carioca as primeiras mani-festações brasileiras de música urbana. No século XIX, o lundu já não era apenas rural, a modinha portuguesa abrasileirava-se e surgiam o maxixe, o primeiro gênero musical de características urbanas genuinamente brasileiras, e o choro, linguagem musical que é filha legítima do casamento do jeito afro-brasileiro de executar um instrumento musi-cal com manifestações da música europeia, com destaque para a polca, o xote e a valsa. A polca, especialmente, era tocada de um jeito tão brasileiro que inspirou versos de Machado de Assis:

Mas a polca? A polca veioDe longas terras estranhasGalgando o que acabou permeioMares, cidades, montanhasAqui ficou, aqui moraMas de feições mudadasQue até discute ou memoraCoisas velhas intrincadas.

Por ser mãe do maxixe, a polca é, sem dúvida, uma das avós do samba, que, nos primeiros anos do século XX, era cantado apenas em cima dos ritmos criados pelos negros ou, quando apresentado por músicos, muito influenciado pelo maxixe. Tão influenciado que Pelo telefone (Donga e Mauro de

Almeida), lançado para o carnaval de 1917 e con-siderado o primeiro samba gravado, tinha muito mais de maxixe do que do samba que passaria a ser cantado a partir do final da década de 1920. De qualquer maneira, o Pelo telefone, samba criado nas reuniões diárias na casa de Tia Ciata, colocou em circulação um gênero musical chamado samba. A partir dele, muitos discos foram lançados com a identificação de samba, embora, muitas vezes, não tivessem nada a ver com samba.

Mas o samba mesmo corria solto na casa de Tia Ciata, com a participação de muitos pioneiros, entre eles o próprio Donga (Ernesto dos Santos), Hilário Jovino Ferreira, João da Baiana (João Machado Gue-des), Heitor dos Prazeres e Sinhô (José Barbosa da Silva), sendo este o grande destaque em matéria de samba, ganhando por isso o título de “Rei do Sam-ba”. Os sambas de maior sucesso da década de 1920 (Jura, Gosto que me enrosco e A favela vai abaixo) foram compostos por ele. Pixinguinha também comparecia à casa de Tia Ciata, mas para tocar choro. Como ele disse no depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, o choro ocupava a sala e o samba, o quintal. Era uma casa muito grande, com oito quartos e com um abacateiro no quintal constantemente pelado, porque as suas folhas eram arrancadas para fazer um chá destinado a curar a ressaca dos frequentadores. Ficava nas proximidades da Praça Onze, na rua Visconde de Itaúna. Tanto a praça quanto a rua desapareceram para dar passagem à avenida Presidente Vargas.

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A casa da Tia Ciata era, sobretudo, um refúgio para quem quisesse compor, cantar ou tocar samba, atividades consideradas antilegais, apontadas como manifestações de vadiagem, malandragem e outras acusações do gênero. O compositor e ritmista João da Baiana, detido várias vezes por tocar ou simples-mente carregar o pandeiro, contava que os sambistas também se refugiavam nos centros de macumba, desde que estes fossem amparados por proteção de políticos, condição fundamental para que funcionas-sem, pois as religiões de origem africana também eram perseguidas. Ainda assim, como os policiais desconheciam a diferença entre os ritmos do samba e os da cantoria religiosa, invadiam essas casas com a seguinte justificativa: “Recebemos a denúncia de que aqui se canta samba”. Puro racismo.

Não bastasse a perseguição policial, a primeira geração do samba sofreria outro golpe no final da década de 1920, quando esse tipo de música passou a receber um tratamento muito especial de uma ge-ração de jovens compositores do bairro do Estácio de Sá. Foi uma novidade que chamou a atenção de toda a comunidade do samba, exatamente a comunidade negra que vivia nas proximidades do Centro do Rio de Janeiro (incluindo os bairros Catumbi, Rio Comprido, Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Morro da Favela – o antigo nome do tradi-

cional Morro da Providência –, a Cidade Nova e o próprio Estácio de Sá), com a Praça Onze servindo de ponto de encontro da comunidade. Em pouco tempo, a música do Estácio chegava ao subúrbio e às favelas mais distantes, principalmente Madureira, Mangueira e Salgueiro. Além disso, os cantores, a começar pelo já consagrado Francisco Alves e pelo novato Mário Reis, que gravavam os sambas dos pioneiros, passaram a dar preferência à obra da rapaziada que compunha um novo tipo de samba. O grupo de sambistas do Estácio era liderado por Rubens Barcelos, que morreu muito jovem, antes dos sambas do bairro circularem na cidade. Ficaram o irmão dele, Alcebíades Barcelos, o Bide (1902-1975), além de Ismael Silva (1905-1978), Nilton Bastos (1899-1931), Edgar Marcelino dos Passos (1900-1931), Oswaldo Vasques, o Baiaco (1903-1935), Sílvio Fernandes, o Brancura (1908-1935), Eurípedes Capelani, Aurélio Gomes e outros.

O segredo da revolução musical promovida por essa turma foi a necessidade de um samba para animar o bloco carnavalesco Deixa Falar, criado pelos sambistas do Estácio de Sá.

Numa entrevista que me concedeu, Ismael Silva disse que, para sair no carnaval, o pessoal preci-sava de um tipo de samba que ajudasse a desfilar e cantar ao mesmo tempo, e que permitisse uma movimentação com os braços, dentro do ritmo. “Quando comecei”, afirmou, “o samba não dava para os agrupamentos carnavalescos andarem nas ruas, conforme a gente vê hoje em dia. O estilo não dava para andar. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Como é que um bloco ia andar na rua assim? Aí, a gente começou a fazer um samba assim: bum bumbum paticumbumprugurundum”, expressão que, em 1982, batizaria o enredo da Escola de Samba Império Serrano, campeã do carnaval daquele ano.

A história acabou reservando para o bloco carna-valesco Deixa Falar a honra de ter sido o criador da mais exuberante manifestação do samba nos dias de carnaval, as escolas de samba. Foi o primeiro grupo carnavalesco a ser chamado de escola de samba, não por pretender acrescentar alguma novidade no Carnaval, mas por ser integrado por sambistas considerados professores de samba. Como havia no Largo do Estácio, nas proximidades da sede do

Noel Rosa

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Deixar Falar, uma escola normal que formava pro-fessores para trabalharem nas escolas municipais, os professores de samba seriam aqueles compositores e ritmistas responsáveis por uma nova forma de samba. Ou seja: o Deixa Falar foi a primeira escola de samba sem nunca ter sido escola de samba, já que foi bloco desde a sua criação, em 1928, e foi transformado para rancho carnavalesco em 1932, experiência fatal, pois, acabado o carnaval, acabou também o Deixa Falar.

Os sambistas do Estácio de Sá criaram, enfim, o samba de carnaval, que teria a fórmula adotada por todas as gerações seguintes de compositores fazedores de samba. O “Rei do Samba”, Sinhô, sentiu o golpe. Numa entrevista ao Diário Carioca, em janeiro de 1930, reagiu: “A evolução do samba? Com franqueza, não sei se o que ora se observa devemos chamar de evolução. Os modernistas es-crevem umas coisas muito parecidas com marcha e dizem que é samba”.

Foi um debate que perdurou enquanto viveram os compositores envolvidos. Na década de 1960, numa mesa de bar, perguntei aos compositores Donga e Ismael Silva qual é o verdadeiro samba. Eis as respostas, cada um deles cantando os seus sambas mais conhecidos:

Donga – Ué, o samba é isso há muito tempo: “O chefe da polícia/ Pelo telefone/ Mandou me avisar/ Que na Carioca tem uma roleta para se jogar”.Ismael – Isso é maxixe.Donga – Então, o que é samba?

Ismael – “Se você jurar/ Que me tem amor/ Eu posso me regenerar/ Mas se é/ Para fingir, mulher/ A orgia assim não vou deixar”.Donga – Isto não é samba, é marcha.

O cantor Francisco Alves descobriu os sambas do Estácio e percebeu imediatamente que se tratava, em matéria de repertório, de uma mina de ouro. Gravou, inicialmente, A malandragem, de Alcebíades Barcelos, o Bide (além de excelente compositor e grande ritmista, foi ele o inventor do surdo como instrumento de percussão, no tempo do Bloco Deixa Falar), e, depois, comprou por cem mil-réis o samba Me faz carinho, de Ismael Silva. Mas o negócio não ficou apenas num samba: foi estabelecido que todo samba de Ismael Silva (com ou sem parceiros), se fosse gravado por Francisco Alves, teria também o nome dele como autor.

A passagem da década de 1920 para a de 1930 não foi apenas para o samba, mas para toda a música popular brasileira, pois marcou também uma revolução no sistema de gravação de disco, com a introdução do sistema elétrico, acabando com a exclusividade dos cantores com grande potência de voz, como deter-minava o antigo sistema mecânico de gravação, que captava apenas as vozes mais fortes, a dos cantores capazes de emitir o chamado dó de peito. O sistema elétrico, com uso do microfone, permitiu que canto-res novos, como Mário Reis, Luís Barbosa, Carmen Miranda e outros, renovassem a maneira brasileira de cantar. E a música brasileira, sem dúvida, passou a ser cantada bem melhor.

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PNm 00187. Museu da Imagem e do Som

O rádio também passou por uma profunda renova-ção naquela fase, não só com o aumento da potência, mas também com a multiplicação da produção de aparelhos, além da introdução de métodos mais modernos de venda, como, por exemplo, a venda à prestação. De fato, somente na passagem da década de 1920 para a de 1930 o rádio passou a servir à divulgação de música (até então, a divulgação ocor-ria nos espetáculos teatrais e na venda de músicas impressas). O rádio e a vitrola ocuparam, nas salas da classe média brasileira, o lugar dos pianos.

Outras formas de samba foram inventadas com o aparecimento de novos criadores surgidos com as oportunidades abertas pelas gravadoras. Foi um momento único da história da nossa música, em que as ofertas para gravar um disco eram maiores do que a procura. A disponibilidade das gravadoras pode ser medida pelo número de discos gravados com discursos e hinos inspirados na Revolução de 1930, a maioria desprovida de qualquer importân-cia. Graças à conjuntura, uma imensa quantidade

de compositores teve condições de levar suas músicas para o disco. Foi assim que a música popular brasileira, de um modo geral, e o samba, em particular, foram enriquecidos por uma mag-nífica geração de criadores, uma das melhores de todos os tempos. Eram compositores de variadas procedências, dos morros e da cidade. Noel Rosa, Cartola, Ary Barroso, João de Barro e Lamartine Babo são exemplos de nomes que se somaram aos novos cantores. O aparecimento de Cartola, por exemplo, foi emblemático. Ele fazia os seus sambas pensando apenas nos sambistas e nas pas-toras do Morro de Mangueira e da escola de samba que fundara no dia 28 de abril de 1929, a Estação Primeira (a escola acha que foi fundada em 1928, mas foi em 1929, conforme é demonstrado no meu livro As escolas de samba do Rio de Janeiro). Só soube que samba poderia ser uma fonte de renda quando foi procurado pelo cantor Mário Reis, interessado na compra do seu samba Infeliz sorte. A venda foi realizada por trezentos mil-réis. Fui testemunha do destino desse negócio, durante um jantar em

Herivelto Martins

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Quase duzentos anos de samba

Ataulfo Alves (à direita), suas pastoras e ritmistas

homenagem aos sessenta anos do crítico e histo-riador de música popular Lúcio Rangel, quando, ao reencontrar Cartola, Mário Reis revelou: “Aquele samba que te comprei por trezentos mil-réis rendeu apenas 250. Fiquei no prejuízo”.

Em 1929, o conjunto Bando de Tangarás, com-posto por jovens de Vila Isabel (Noel Rosa, João de Barro, Almirante, Henrique Brito e Álvaro Miranda), deu início à sua carreira, claramente in-fluenciado pela música nordestina, razão pela qual Noel não começou como sambista, mas com duas músicas de sabor nordestino, Minha viola e Festa no céu. Por isso, Almirante admirou-se quando Noel compôs o samba Eu vou pra Vila. “Nunca imaginei que Noel sabia fazer samba”, revelaria, anos depois, em seu livro No tempo de Noel Rosa.

Noel Rosa foi o grande nome daquela geração pela beleza das suas obras e pelas novidades que introdu-ziu no samba, tanto nas letras quanto nas músicas. Em fins de 1930, ele gravou, para o carnaval de 1931, o samba Com que roupa, que surpreendeu pela habilidade com que desenvolveu a letra dentro da música. O crítico Cruz Cordeiro, da revista Phono-

Arte, a primeira publicação dedicada à nossa música popular, foi um dos que se surpreenderam com o talento do compositor. Eis o que escreveu sobre Com que roupa: “Esse samba, desde logo, projetou-se como um dos prováveis êxitos do carnaval que aí vem. A nosso ver, esse samba, que todo o Rio já sabe de cor, é excelente pela originalidade da letra e o sabor esquisito do ritmo, dentro do qual a letra está magnificamente bem enquadrada. Reparem como caem dentro da música e do ritmo as rimas conduta, luta, fruta, sopa, roupa, estopa. Enviamos daqui os nossos parabéns a Noel Rosa pela originalidade do seu samba, que ele próprio canta com graça e especial sabor, acompanhado por destro regional”. Noel foi, de fato, um dos pais do samba, incluindo o samba-canção, como demonstram suas obras Último desejo, Três apitos e X do problema. Mas quem fez o primeiro samba-canção, Linda flor, em 1929, foi o trio Henrique Vogeler, Marques Porto e Luiz Peixoto.

A partir de compositores como Noel Rosa e Ary Barroso, vindos depois Herivelto Martins, Ataulfo Alves, Wilson Batista, Roberto Martins, Geraldo Pereira e vários outros, o samba foi adquirindo novas formas. Os próprios cantores também se en-

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carregavam de fazer modificações, como ocorreu, por exemplo, com Luís Barbosa, que consagrou o breque, ou seja, frases intercaladas, geralmente por improviso, nos intervalos das músicas. Mas quem radicalizou em matéria de breque foi Moreira da Silva, em 1935, quando parava a música para improvisar longas falas. Ele próprio contava que, num show em que cantava o samba Jogo proibido, de Tancredo Silva, chamou a atenção do violonista, que se atrapalhou no acompanhamento. Justifi-cativa do violonista: “É que estou acostumado a acompanhar música. Conversa é a primeira vez”.

Em 1939, Ary Barroso criou, com Aquarela do Brasil, o chamado samba-exaltação, que esteve muito em moda na primeira metade da década de 1940, período em que a Segunda Guerra Mundial e a pressão do governo Vargas levaram muitos compositores a exaltarem as belezas do Brasil, país que, para muitas letras desses sambas, era bem mais agradável do que o Paraíso.

Na década de 1940, as escolas de samba acrescen-taram mais um tipo de samba, o samba-enredo,

um tipo de música destinado a contar os enredos. Havia neles um certo clima de samba-exaltação, que seria abandonado com o passar do tempo, até que eles se transformassem completamente nos últimos anos do século XX.

As principais novidades dos 40 atingiram parti-cularmente o samba-canção, primeiramente pela influência do bolero (nascia o chamado sambolero) e, depois, da música norte-americana, particular-mente pelo grande êxito no Brasil das baladas cantadas por Bing Crosby e Frank Sinatra. O primeiro exemplo de um samba com tal influência foi Copacabana (João de Barro e Alberto Ribeiro), gravado por Dick Farney, que, até então, cantava apenas músicas americanas. De qualquer maneira, o formato dos sambas-canções deste tipo (Marina, de Dorival Caymmi, é outro exemplo), que alguns críticos chamavam de samba blue, somou-se a experiências renovadoras feitas por compositores como Custódio Mesquita, Garoto e outros, que iriam resultar, na década de 1950, na bossa nova.

Aí, é outra história.

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Desafinando o coro dos contentes música e política sob o Estado Novo

Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia. Editor da revista ArtCultura. Presidente em exercício da seção latino-americana da International Association for the Study of Popular Music (IASPM-AL). Autor de Dialética da dominação (Papirus, 1984) e O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil (Boitempo, 2007).

Adalberto Paranhos

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Getúlio, a primeira-dama d. Darcy Vargas e os artistas da Rádio Nacional. Enrtre eles, Dorival Caymmi, J. Cascata, Braguinha, Carmen Barbosa, Almirante, Canhoto, Leonel Azevedo, Dircinha Batista, Oswaldo Santiago, Erastone Frazão, Lamartine Babo, Antônio Almeida, Pimpinela, Carlos Galhardo, Benedito Lacerda, Paulo Tapajós, Hoche Ponte, Orlando Silva, Haroldo Tapajós e Alcir Pires Vermelho

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O Estado brasileiro, particularmente no pós-1930, roubou a cena histórica, sendo convertido, numa arraigada tradição intelectual, no grande sujeito da nossa história. É como se o foco de luz do pen-samento nacional se projetasse em direção a esse protagonista sem igual, condenando os demais ato-res sociais a se recolher à função de coadjuvantes. Quanto aos trabalhadores e à massa da população, restaria resignar-se ante a condição de meros figu-rantes, engrossando as fileiras do coro. Não era este o espaço reservado na tragédia grega aos escravos, às mulheres, às crianças, aos velhos, aos mendigos e aos inválidos de uma maneira geral?1

No caso da tradição brasileira à qual me refiro, o que surpreende, à primeira vista, é que seu leito seja suficientemente amplo para acolher contribuições de procedências as mais distintas, surgidas à direita e à esquerda do espectro político-ideológico nacio-nal. A luminosidade do Estado, nesse viés analítico, ofusca a presença de outros sujeitos sociais. A plateia sobe ao palco – quando sobe – sem rosto próprio ou desfigurada.

Com frequência a história se repete quando se abordam as relações entre o “Estado Novo”, o tra-balhismo getulista e as classes trabalhadoras. O cer-co do silêncio que se montou em torno das práticas e discursos que destoavam das normas instituídas levou muita gente, por muito tempo, a acreditar no triunfo de um pretenso “coro da unanimidade nacional” sob aquele regime de ordem-unida. No limite, seria o equivalente a dizer que a sociedade brasileira não passaria de simples câmara de eco

1 A alusão à tragédia grega como metáfora de um discurso heroico sobre a política é sugerida por NuN, José. A rebelião do coro. Desvios, São Paulo, ano 1, n. 2, p. 104-117, ago. 1983.2 É o que garante, por exemplo, PEDRO, Antonio. Samba da legitimidade. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, 1980.

da fala estatal, que, para impor-se, contou com o emprego, à larga, de um sem-número de meios de coerção e de produção de consenso.

O cenário musical não poderia, evidentemente, fugir à regra. A julgar por boa parcela dos escritos sobre a música popular industrializada no período estado-novista, os compositores populares teriam sido devidamente enquadrados nos novos códigos de comportamento, colocando de lado o tradicional elogio à malandragem. Numa palavra, eles teriam se deixado capturar na rede do culto ao trabalho.2

Trafegando na contramão dessa corrente analítica, este texto procura levantar uma parte do véu que encobre manifestações que desafinam o “coro dos contentes” durante o “Estado Novo”. Apoiada principalmente no DIP (Departamento de Impren-sa e Propaganda), a ditadura estado-novista buscou a instauração de certo tipo de sociedade disciplinar, simultaneamente à fabricação de um determinado perfil identitário do trabalhador brasileiro dócil à dominação capitalista. Sua ação, via ideologia do trabalhismo, esteve longe, porém, de alcançar a unanimidade pretendida. Quando não nos pren-demos à superfície dos fatos, que inflaciona as aparências, e nos lançamos à investigação empírica da produção fonográfica dessa época, a situação muda de figura. Apesar da férrea censura do DIP, evidenciam-se, então, as “lutas de representações” que giram ao redor do trabalho e do trabalhador.

Se, de um lado, houve um número elevado de composições e compositores populares sintoni-

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DesafinanDo o coro Dos contentes

zados com o regime então vigente e a valorização do trabalho, de outro despontaram, como uma espécie de discurso alternativo ou de vozes des-toantes, canções (sambas, em sua maioria) que traçaram linhas de fuga em relação à “palavra estatal”. Neste caso, pelo menos até 1943/1944, não nos deparamos, é óbvio, com a contestação aberta aos dogmas ideológicos oficiais. Nem por isso deixaram de circular socialmente imagens e concepções que puseram em movimento outros valores. Essa constatação equivale a um atestado de que, ao intervir discursivamente nos problemas vinculados ao mundo do trabalho, a área da música popular industrializada não se reduziu a mera caixa de ressonância do discurso hegemônico.3 A partir daí ficam, no mínimo, abaladas algumas crenças ge-neralizadas que ainda perduram acerca das relações Estado/música popular sob o “Estado Novo”.

Afasto-me, portanto, do campo dos consensos idealizados para pisar o chão que é próprio da vida na sociedade capitalista, marcada por conflitos que a atingem de ponta a ponta. Como frisou Roger Chartier, “esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num cam-po de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação”.4

O “lado B” da história

Gerar um “novo homem”, um cidadão modelar, ajus-tado aos princípios de cidadania incensados pelo “Es-tado Novo”, era tarefa prioritária do “Brasil Novo” que se tentava forjar. Tornava-se imperioso espantar de uma vez por todas o fantasma da vadiagem ou da contestação ao sistema de trabalho reinante.

Afinada por esse diapasão, a Constituição promul-gada em 10 de novembro de 1937 assemelhava

ociosidade a crime e prescrevia, no seu artigo 136, que “o trabalho é um dever social”. Já o artigo 139 capitulava a greve como “recurso antissocial”, ato delituoso passível de prisão por três a 18 meses, mais as penas acessórias cabíveis, conforme esti-pulava o artigo 165 do Código Penal.

O trabalho disciplinado era a régua por meio da qual se mediria o senso de responsabilidade social dos cidadãos, especialmente dos membros das classes populares. Mais do que isso, ele exprimiria parte do sentimento de gratidão que os trabalhadores deve-riam cultivar, como reconhecimento da “outorga” da legislação social pelo “gênio do estadista” que presi-dia o Brasil. Afinal, como pregava Azevedo Amaral, um dos principais ideólogos do autoritarismo, “com as leis trabalhistas de Getúlio Vargas, o trabalhador brasileiro sentiu pela primeira vez na nossa história ser verdadeiramente um cidadão”.5

A cruzada antimalandragem, desencadeada pelo DIP de 1940 em diante, objetivou interromper a relação visceral que uniu, historicamente, o samba à malandragem. Essa ofensiva se conectava, aliás, a reações existentes no próprio front da música popular brasileira ao longo dos anos 30. Nele se fariam ouvir vários defensores da “higienização po-ética do samba” ou do “saneamento e regeneração temática” das canções populares.6

Com a entrada em ação do DIP, de fato apertaram-se os nós da camisa de força imposta aos compositores. Estes foram, por assim dizer, sitiados pelas forças con-servadoras à frente do governo Vargas: seja prodigali-zando favores, seja por intermédio da repressão e/ou censura, buscou-se, a qualquer custo, atraí-los para o terreno do oficialismo. Adentramos nos domínios da paráfrase. Esta, tal como nos sambas-exaltação, atua, fundamentalmente, como recurso argumentativo

3 Hegemonia, como já mostraram Antonio Gramsci, Raymond Williams e E. P. Thompson, não se confunde com dominação ou imposição absoluta, muito menos com uniformização. Tal conclusão se aplica a todos os campos, inclusive ao cultural. Disso decorre a advertência de que “na verdade o próprio termo ‘cultura’, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do conjunto”. THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 17.4 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990. p. 17.5 AMARAL, Azevedo. Getúlio Vargas, estadista. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1941. p. 116. Para a desmontagem crítica do mito da doação, ver PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007.6 PARANHOS, Adalberto. O Brasil dá samba? Os sambistas e a invenção do samba como “coisa nossa”. In: TORRES, Rodrigo (Ed.). Música popular en América Latina. Santiago de Chile: Fondart, 1999. p. 193-232.

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de reforço e celebração da identidade. Distingue-se, por consequência, de forma radical, da paródia, pois o procedimento parodístico sublinha a diferença, quando não institui a inversão.

Aparentemente, o esforço governamental foi bem-sucedido. Uma das mais destacadas estudiosas do período chega ao ponto de assegurar que “o DIP tinha um controle absoluto sobre tudo o que se relacionava à musica popular”,7 bloqueando todos os canais por onde pudesse se insinuar um contra-discurso. As coisas teriam se passado, efetivamente, desse jeito? Depois de ouvir centenas e centenas de gravações originais de discos 78 rpm lançados entre 1940 e 1945, concluí que essas afirmações taxativas sobre o monopólio do poder estatal precisam ser revistas. Trata-se de dar ouvidos ao “lado B” da história do “Estado Novo”.

uma observação preliminar se impõe. Para mim, que não me limito a trabalhar com o par antité-tico conformismo x resistência, os sambas aqui examinados não se caracterizam necessariamente como um contradiscurso. A maioria das gravações mencionadas destoa, no todo ou em parte, do coro estado-novista, sendo expressão concreta de mo-dos de pensar e agir alternativos. Não têm, em geral, o claro propósito de contestar a ordem disciplinar estabelecida. Tais sambas estão, isso sim, impregna-

dos de experiências vividas sob a lógica de outros valores e outras concepções presentes, em estado prático, nas vivências cotidianas dos sambistas. A meu ver, há, enfim, mais coisa entre o conformar-se e o resistir do que imagina a vã política.

Sem pretender negar a adesão espontânea, forçada ou interessada de muitos compositores populares à cantilena estado-novista, o que se percebe, em dezenas de registros fonográficos, é que, apesar dos pesares, o coro dos diferentes jamais deixou de se manifestar, de maneira mais ou menos sutil, conforme as circunstâncias.

Sutileza é o que não falta, por exemplo, na gravação de Onde o céu azul é mais azul,8 um samba-exaltação que canta “o meu Brasil grande e tão feliz”, onde se “trabalha muito pra sonhar depois”. Até aí nada de mais. O que nela impressiona, acima de tudo, é a possibilidade da utilização da linguagem sonora como metalinguagem. Sem querer esgotar toda a gama de significados do arranjo do maestro Rada-més Gnattali, destaco que ele parece desenhar um notável contraponto crítico ao teor nacionalista/ufanista da mensagem literal da composição, escrita segundo os moldes do figurino estado-novista. A introdução, na conjugação de metais, contrabaixo e bateria, soa às big-bands norte-americanas, com a pulsação do jazz “made in uSA”. E por aí vai o arranjo cuja sonoridade, com a harmonização à base de um naipe de metais, nos transporta, em outros momentos, para um contexto rítmico-timbrístico de além-Brasil,9 notadamente no final da execução, configurando como que um approach pré-tropicalista.

Logo se vê que, no trabalho com registros musicais, é necessário não nos tornarmos reféns da litera-lidade da canção. O que eu desejo enfatizar é que não basta nos atermos às letras das músicas. Antes, é indispensável nos darmos conta de que elas não têm existência autônoma na criação musical. Tanto que é importante atentar inclusive para o discurso

7 GOMES, Ângela Maria de Castro. A construção do homem novo: o trabalhador brasileiro. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi et al. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 151-166 (citação da p. 159).8 Onde o céu azul é mais azul ( João de Barro, Alberto Ribeiro e Alcir Pires Vermelho), Francisco Alves. 78 rpm, Colúmbia, 1940.9 Não foi à toa que, embora rasgasse elogios ao talento de Radamés Gnattali, Mário de Andrade ponderava, em 1939: “É certo que ‘jazzifica’ um pouco demais para o meu gosto defensivamente nacional”. ANDRADE, Mário de. Música, doce música. 2. ed. São Paulo/Brasília: Martins/MEC, 1976. p. 286.

Assis Valente e Lúcio Alves

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Ismael Silva

musical pronunciado de forma não-literal, ou seja, como um discurso nu de palavras que pode até entrar em choque com a expressão literal imediata de uma composição.10

“O amor regenera o malandro”11 serve como mais um exemplo. Nes-te samba, à semelhança de muitos outros dessa época, se diz que

Sou de opiniãoDe que todo malandroTem que se regenerarSe compenetrar (e ainda mais: breque)Que todo mundo deve terO seu trabalho para o amor merecer

A primeira impressão, entretanto, se desfaz ao acompanharmos a performance dos intérpretes, Joel e Gaúcho, no fecho da segunda estrofe:

RegeneradoEle pensa no amorMas pra merecer carinhoTem que ser trabalhador (que horror!: breque)

O uso do breque a duas vozes – breque que, neste caso, é anunciador de distanciamento crítico – bota por terra todo o blablabá estado-novista que pare-cia haver contagiado a gravação.

Mais uma vez, abro um parêntese para um aparte de natureza metodológica. Convém nos mantermos alertas para o fato de que uma canção não existe simplesmente no plano abstrato. Importa é o seu fazer-se, a formatação que recebe ao ser interpreta-da/reinterpretada. Nessa perspectiva, entendo que interpretar é também compor, pois quem interpreta

decompõe e recompõe uma composição, podendo investi-la de sentidos não imaginados ou mesmo deliberadamente não pretendidos pelo seu autor. Daí o perigo de tomar abstratamente uma canção, resumida à peça fria da letra ou da partitura. Sua realização sonora, do arranjo à interpretação vocal, tudo é portador de sentidos.12

É o que se verifica em O amor regenera o malandro. Quem tomá-la ao pé da letra, ou melhor, quem se der apenas ao trabalho de pesquisar as revistas de modinhas, nas quais se publicavam letras das canções populares, se fixará no acessório e não apreenderá o principal de sua gravação. Restringir a análise de uma música exclusivamente à sua letra resulta no rebaixamento da canção – por defini-ção, uma obra musical revestida de letra – a mero documento escrito, amesquinhando seu campo de significações e esvaziando-o de sonoridade. Não é suficiente sequer o acesso à partitura. No caso desse samba, ela nada mais faz do que estampar a letra da composição, sem os breques que lhe foram posteriormente incorporados.13 Obviamente, o último breque não constava da letra submetida ao crivo da censura.

Malandramente, a interpretação de Joel e Gaúcho é sincopada de cabo a rabo. E eles, com o caco que introduzem, quebram a aparente harmonia estabelecida na letra, subvertendo seu conteúdo original. Comportamento, por sinal, tipicamente malandro, como o caracterizam Gilberto Vas-concellos e Matinas Suzuki Jr.: nele há a aparente aceitação das regras instituídas como estratégia de sobrevivência.14

O verbo malandrar era conjugado em atos por muitos outros personagens da música popular brasileira. Alguns deles habitavam o mundo do

10 Essas e outras reflexões de caráter metodológico sobre a relação entre música e história são desenvolvidas em PARANHOS, Adal-berto. A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo. ArtCultura, Edufu, uberlândia, n. 9, p. 22-31, jul./dez. 2004.11 O amor regenera o malandro (Sebastião Figueiredo), Joel e Gaúcho. 78 rpm, Colúmbia, 1940.12 Por essa razão, Paul Zumthor chama a atenção para a “riqueza expressiva da voz” e os “valores que seu volume, suas inflexões, seus percursos atribuem à linguagem que ela formaliza”, e conclui que “o intérprete [...] significa”. ZuMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 134 e 228.13 A partitura de O amor regenera o malandro contou com edição de A Melodia, Rio de Janeiro, s/d.14 Cf. VASCONCELLOS, Gilberto e SuZukI JR., Matinas. A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (Dir.). História geral da civilização brasileira. Tomo III – O Brasil republicano (Economia e cultura – 1930/1964). São Paulo: Difel, 1984. p. 520.

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compositor Assis Valente, mulato de origem hu-milde, que dividia seu tempo entre a arte de fazer prótese dentária e a arte de compor. Recenseamento15 ilustra, à perfeição, os dribles aplicados na censura.

Cronista musical do cotidiano, Assis Valente se aproveita de um assunto que figurava na ordem do dia, o censo de 1940. Narra a subida ao morro do bisbilhoteiro agente recenseador que quis tirar a limpo toda a vida de um casal não-casado e, entre outras coisas, “perguntou se meu moreno era de-cente/ e se era do batente/ ou era da folia”. Diante dessa interpelação, a mulher, que se declara “obe-diente a tudo que é da lei”, foi logo se explicando:

O meu moreno é brasileiroÉ fuzileiroE é quem sai com a bandeiraDo seu batalhão...A nossa casa não tem nada de grandezaMas vivemos na pobrezaSem dever tostãoTem um pandeiro, tem cuíca e um tamborimum reco-reco, um cavaquinhoE um violão

O arremate é digno do mestre Assis Valente:

Fiquei pensandoE comecei a descreverTudo, tudo de valorQue meu Brasil me deu...Um céu azul, um Pão de Açúcar sem fareloUm pano verde-amareloTudo isso é meu!Tem feriado que pra mim vale fortuna...

Eis uma obra que, parecendo reproduzir o discurso dominante do “Brasil grande e trabalhador” dos apologistas do “Estado Novo”, desmonta com perspicácia os argumentos oficiais, salpicando de ironia a fala da mulher que responde ao funcionário

que a entrevista. Seu “moreno”, ao que tudo indica, nem de longe poderia ser catalogado no exército regular de “trabalhadores do Brasil”, ele que seria talvez porta-bandeira (ou melhor, mestre-sala) de escola de samba. No barraco em que moravam e em que “a criança [...] no chão dormia”, faltava tudo – imagem que contrasta com a do “Brasil novo” vomitada pela propaganda governamental. Tudo, em termos: não faltavam os apetrechos reclamados pelo samba. Afinal de contas, o que o “Estado Novo” lhes dera?

No entanto, a mulher, à primeira vista, era toda felicidade. Ora, segundo os códigos da malan-dragem, fingir é fundamental, ou por outra, a arte da dissimulação é ponto de honra. Por isso, não é sinal de inteligência oferecer-se como caça ao caçador. Noel Rosa e Ismael Silva, que entendiam do riscado, já não tinham advertido, em Escola de malandro, que “fin-gindo é que se leva vantagem/ isso, sim, é que é malandragem”?16 Nessas circunstâncias, Assis Valente demonstra, com habilidade, como discurso e contradiscurso podem se entrecruzar, extraindo daí um resultado que se choca com a pregação do governo Vargas. Detalhe que não é desprovido de maior significação: Recenseamento é um samba-choro, e o acompanhamento cria uma atmosfera musical típica das gafieiras...

Houve, contudo, quem foi direto e reto ao mundo das agruras do trabalhador. Sem maquiar o seu dia a dia, Ciro de Souza, sambista de Vila Isabel, descreve a Vida apertada17 de um estivador:

Meu Deus, que vida apertadaTrabalho, não tenho nadaVivo num martírio sem igual

15 Recenseamento (Assis Valente), Carmen Miranda. 78 rpm, Odeon, 1940.16 Escola de malandro (Orlando Luiz Machado), Noel Rosa e Ismael Silva. 78 rpm, Odeon, 1932. Sabe-se que o “autor” Orlando, no caso, de compositor só levou a fama e entrou com o estribilho, pois o restante da canção é de autoria da dupla Noel e Ismael. Cf. MÁXIMO, João e DIDIER, Carlos. Noel Rosa: uma biografia. Brasília: Linha Gráfica/unB, 1990.17 Vida apertada (Ciro de Souza), Ciro Monteiro. 78 rpm, Victor, 1940.

Wilson Batista

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DesafinanDo o coro Dos contentes

A vida não tem encantoPara quem padece tantoDesse jeito eu acabo mal

E ele prossegue, na segunda parte:

Ser pobre não é defeitoMas é infelicidadeNem sequer tenho direitoDe gozar a mocidadeSaio tarde do trabalhoChego em casa semimortoPois enfrento uma estivaTodo dia lá no 2No cais do porto(Tadinho de mim: breque)

Estamos, aqui, como em outras composições da época, bastante longe da assimilação dos princípios trabalhistas de enaltecimento do trabalho.18 Tudo se opõe à visão do reino dos céus que teria baixado à terra pelas mãos de Getúlio Vargas. Nada remete à grandeza e à grandiloquência que o regime exalava. Até nos aspectos estritamente musicais é possível atentar para isso. O acompanhamento, ao contrário dos adornos orquestrais que vestiam os sambas-exaltação, é confiado a um conjunto regional. Ele é todo balançado, entrecortado por breques, desde o seu início, com um breque ao piano. O tom mais coloquial do cantor Ciro Monteiro se diferencia claramente do estilo de interpretação mais impos-tado de um Francisco Alves, como, por exemplo, em Onde o céu azul é mais azul.

Sob esse prisma, como já ressaltou Santuza Cam-braia Naves, modernismo e música popular se davam as mãos, mesmo que por vias transversas. Nela impera, intuitivamente, a “estética da simpli-cidade” – que a aproxima do modernismo literário de Oswald de Andrade, de Mário de Andrade e de

Manuel Bandeira –, em contraposição à “estética da monumentalidade” que recheia o projeto musical modernista de um Villa-Lobos.19

Mais ainda: se, no rastro da Semana de Arte Mo-derna, associarmos o modernismo, entre outras características, ao “esforço por tematizar aspectos da vida moderna”, implicando a “valorização do prosaico da vida e da descrição do cotidiano real”,20 estreitam-se, sem dúvida, as suas relações com a música popular brasileira. E, realisticamente, Vida apertada elabora uma rima de pé quebrado: trabalho, nessa canção, rima com martírio e miserê.

Realismo e sonho caminham juntos, por outro lado, no samba de breque Acertei no milhar,21 de Wilson Batista, sambista que jamais revelou a menor inclinação pelo trabalho regular. Qual o primeiro pensamento que ocorre ao personagem da música, um “vagolino” que tira a sorte grande no jogo do bicho?

Etelvina, minha filha!Acertei no milharGanhei 500 contosNão vou mais trabalhar

Eufórico, ele começa a fazer planos mirabolantes, inclusive de “comprar um avião azul/ para percor-rer a América do Sul”. Porém, de repente, não mais que de repente, soou o despertador e “Etelvina me chamou:/ está na hora do batente/ [...] Foi um sonho, minha gente”.

Escoou-se o momento do sonho, e a realidade co-brava os seus direitos. A moral da história atropela as formulações habituais que justificam a domina-ção social e as desigualdades de classe: como regra geral, a ascensão social pela via do trabalho tem muito de quimera.

18 Sobre a ideologia do trabalhismo, ver PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala, op. cit.19 NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. Acrescente-se que a simplicidade acompanhava igualmente o processo de produção e/ou utilização de vários instrumentos musicais: o surdo, feito de couro de boi (conhecido como raspa), a caixa de fósforos ou o chapéu de palha, convertidos em artefatos de percussão.20 SANT’ANNA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 131.21 Acertei no milhar (Wilson Batista e Geraldo Pereira), Moreira da Silva. 78 rpm, Odeon, 1940. Sabidamente, Geraldo Pereira apenas emprestou seu nome à composição, toda ela de autoria de seu “parceiro”. Cf. GOMES, Bruno Ferreira. Wilson Batista e sua época. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. p. 26.

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Moral da história

Uma enxurrada de críticas à malandragem atin-gia em cheio as trincheiras da música popular brasileira durante o “Estado Novo”. A “boêmia improdutiva” estava na berlinda. Não era sem quê nem por quê: com base nos dispositivos consti-tucionais, o ditador Getúlio Vargas proclamaria, de novo, nas festividades do primeiro de maio de 1943, que “a ociosidade deve ser considerada crime contra o interesse coletivo”.22 Mesmo assim, de maneira enviesada que fosse, tipos que viviam mais ou menos à margem do trabalho continua-vam a aparecer em muitas composições.

Além do mais, quando ajustamos as lentes para enxergar melhor, por meio das canções, as re-presentações da realidade social em movimento, a visão que recolhemos nos mostra também mu-lheres quebrando algumas cadeias dos padrões de comportamento instituídos. Despontam, em muitos casos, figuras femininas que caíam na folia, com uma vida relativamente liberada das amarras convencionais. Essas mulheres “do barulho”,

“do balacobaco”, infelicitavam a vida dos seus parceiros: trocavam, com facilidade, as prendas domésticas pela gandaia, como se ouve em Oh! Seu Oscar, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, com Ciro Monteiro; e Madalena, de Bide e Marçal, com os Anjos do Inferno, o que os irritava profunda-mente, como se nota em Acabou a sopa, de Geraldo Pereira e Augusto Garcez, com Ciro Monteiro.23

A cruzada antimalandragem patrocinada pelo DIP foi impulsionada por propósitos “educativos” e “civilizadores”. Sob essa ótica, o samba deveria ser atraído para o raio de influência governamental. Vê-se que nem tudo correu às mil maravilhas, tal como imaginado pelos defensores da ditadura.

Mal findara o “Estado Novo”, com a deposição de Getúlio Vargas, o carnaval de 1946 como que faria, metaforicamente, um acerto de contas com a ideologia do trabalhismo que fora propagada aos quatro cantos do Brasil. Ele emplacaria no Rio de Janeiro um sucesso retumbante, o samba Trabalhar, eu não.24 Nesta canção – que seria também entoada pelos trabalhadores do porto de Santos durante uma greve de 1946, quando de seu enfrentamento com a “polícia democrática” do governo Dutra – se conti-nuava a protestar contra a distribuição brutalmente desigual dos ganhos gerados pelo trabalho na socie-dade capitalista. Seus versos dispensam comentários:

Eu trabalho como um loucoAté fiz calo na mãoO meu patrão ficou ricoE eu pobre sem tostãoFoi por isso que agoraEu mudei de opiniãoTrabalhar, eu não, eu não!Trabalhar, eu não, eu não!Trabalhar, eu não!

22 VARGAS, Getúlio. Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, ano 9, n. 105, mai. 1943.23 Cavava-se, desse modo, uma distância abismal entre as mulheres representadas nessas canções e a concepção da “senhora do lar proletária” idealizada pelo ministro do Trabalho MARCONDES FILHO. Trabalhadores do Brasil! Rio de Janeiro: Revista Judiciária, 1943. uma análise pormenorizada dessa questão consta de PARANHOS, Adalberto. Além das amélias: música popular e relações de gênero sob o “Estado Novo”. ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte, Edufu, uberlândia, v. 8, n. 13, p. 163-174, jul./dez. 2006.24 Trabalhar, eu não (Almeidinha), Joel de Almeida. 78 rpm, Odeon, 1946. No caso, o sucesso popular antecedeu à gravação em disco dessa composição.

Ciro Monteiro deu seu ritmo para as canções de Ataulfo Alves, Wilson Batista e Geraldo Pereira

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Roberto Carlos, Nana Caymmi, Vinicius de Moraes,

Dorival Caymmi, Marisa Gata Mansa e Jocafi

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Dedicatória de Carmen Miranda

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Escritor. Autor de Carmen: uma biografia (Companhia das Letras, 2005) e Era no tempo do rei: um romance da chegada da Corte (Alfaguara, 2007), entre muitos outros livros.

Ruy Castro

A nossa Carmen A maior luso-brasileira de todos os tempos

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Hoje podemos dizer tranquilamente: Carmen Miranda era tudo.

Dos 20 aos 30 anos, entre 1929 e 1939, ela foi a maior estrela brasileira do disco, do rádio, do cinema, dos palcos e dos cassinos – recordista em número de gravações, vendas de discos, cachês, salários e, principalmente, em amor. Era adorada pelo público, respeitada pelos colegas, disputada pelos veículos, desejada como mulher. Brasileiros de todos os sexos, classes, idades e níveis culturais não sabiam o que nela mais admirar: se a artista ou a pessoa. E sua história só pode ser contada em superlativos.

Até então, nenhuma outra mulher fora tão famosa na história do Brasil. Antes dela, a princesa Isabel, por volta de 1888, pode ter chegado perto – mas Carmen seria ainda mais popular, porque já se beneficiou do rádio, embora este estivesse apenas começando, e porque estava acima das divisões políticas. Com ela, o samba se tornou a língua falada no país – e o Car-naval, o golpe mortal naquela história de o brasileiro ser o produto de “três raças tristes”. (Se era, deixou de ser, assim que Carmen entrou em cena – porque ela pode ter sido a inventora da alegria brasileira.)

Tudo isto ainda é mais extraordinário quando se sabe que Carmen era de origem portuguesa – nas-cida em Várzea de Ovelha, concelho de Marco de Canavezes, distrito do Porto –, de pais, mães e avós portugueses, e trazida para o Brasil por sua família aos dez meses de idade, em novembro de 1909. Mas teria Carmen realmente deixado Portugal?

Naquele ano, o Rio era tão português quanto se podia ser, com seus quase duzentos mil portugue-ses natos (mais do que o Porto, cuja população era de cerca de 150 mil, incluindo os estrangeiros que lá viviam) e os outros tantos ou mais, nascidos no

Rio, que eram descendentes diretos, filhos de pai e mãe portugueses. A língua que se falava nas ruas do Rio ainda era, em grande parte, o português de Portugal – ruas estas calçadas com pedras, ora veja, “portuguesas” (como as que calçam Portugal inteiro). O traçado irregular dos becos e vielas lem-brava o passado colonial, assim como as fachadas mouriscas dos sobrados e manuelinas das igrejas. Os portugueses dominavam no Rio o comércio de tecidos, cigarros, feijão, café, milho, azeite, pescado, vinhos, gelo e praticamente todo o retalho. Era este o Rio que recebeu a pequena Carmen.

Ao chegar ao Rio, o pai de Carmen, senhor Pinto, empregou-se na barbearia de um português (que depois facilitou a que ele tivesse a sua própria bar-bearia). Os primeiros bairros e ruas em que a família foi morar, no Centro da cidade, eram os preferidos da colônia portuguesa mais pobre. A primeira canção que Carmen cantou publicamente (aos cinco anos, no aniversário de seu pai) foi um fado, que lhe foi ensinado por sua irmã Olinda, dois anos mais velha. Olinda, por sinal, cairia tuberculosa aos 18 anos, em 1925, e seria mandada para tratar-se no Sanatório do Caramulo, em Portugal, onde morreria aos 23.

A identidade portuguesa da família foi sustenta-da por dona Maria, mãe de Carmen. Ela nunca perdeu a fala lusitana, nunca abdicou de sua pro-funda fé católica (que repassaria para Carmen) e acompanhou sua filha por toda parte até o fim. Na “pensão diurna” que mantiveram de 1925 a 1931 na Travessa do Comércio (antigo Arco do Telles), apenas para almoços, comandada por dona Maria, comiam diariamente os inúmeros rapazes da colô-nia portuguesa que trabalhavam nas proximidades e com quem Carmen conviveria por muitos anos. Uma outra irmã de Carmen, Cecília, três anos mais nova, casar-se-ia com um deles.

Moura. Correio da Manhã, 1957

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A nossA CArmen

Ou seja, há muito mais do que vestígios da herança portuguesa na trajetória de Carmen Miranda. Sim, ela se tornaria, desde a adolescência, uma perfeita carioca – mas não era preciso ter um ouvido tão agu-do para se perceber, na sua fala de adulta, muito da música da fala portuguesa (como, aliás, em inúmeros cariocas daquele tempo). Mais importante: apesar de considerar-se, por todos os motivos, brasileira, Carmen nunca abdicou da cidadania portuguesa. E sua dedicação aos parentes que ficaram para trás, na pequena aldeia do Norte de Portugal, é histórica: nunca deixou de se comunicar com eles e de ajudá-los, na forma de dinheiro ou de presentes. Para sua família de Várzea de Ovelha, ela nunca foi embora, nunca partiu – pergunte aos sobreviventes. O irô-nico é que esses seus parentes, com quem conversei por uma manhã inteira em 2004, eram incapazes de acreditar no que eu lhes dizia: foi Carmen, com seu jeito de falar e cantar – que eram, no fundo, a mesma coisa –, que nos tornou mais brasileiros.

Aos 30 anos recém-feitos, em 1939, rica, bonita e independente, Carmen, se quisesse, poderia ter se aposentado no Rio, escolhido um marido entre os pretendentes e se recolhido ao seu palacete no bairro da Urca. Em vez disso, aceitou o desafio da aventura americana. Convidada para trabalhar na Broadway, em Nova York, resolveu começar tudo de novo, no mercado mais disputado do mundo. Na sua noite de estreia em Streets of Paris, uma revista musical produzida pelo megaempresário Lee Shubert, poucos dias depois de chegar, levou apenas seis minutos para se tornar um nome nos Estados Unidos! E, então, o sucesso se repetiu, só que em escala vertiginosa. Em questão de semanas, o teatro, o rádio, os discos, os night-clubs, as capas de revistas, os anúncios de publicidade e até as vitrines das grandes lojas, todos a queriam. Hollywood, também – e, mais uma vez, bastou um filme para seu nome ganhar dimensão mundial.

Não há nenhum exagero nessas afirmações. Na verdade, elas não refletem nem sombra do que Carmen Miranda significou nos anos 40 e 50. Ela foi maior até do que sua própria lenda. O Brasil é que não compreendeu a dimensão dessa lenda. Por uma circunstância da época ou por uma carac-terística nossa, nem sempre soubemos aceitar seu sucesso americano.

Um ano depois da partida, Carmen veio ao Rio, de férias, e apresentou-se em seu palco favorito: o do Cassino da Urca – mas foi recebida com hostilidade por uma certa casta política então no poder e que se julgava com direitos sobre ela: os membros pró-nazistas do governo de Getúlio Vargas. Carmen sofreu com isto. Foi para Hollywood e inventou um Brasil só para ela, à beira de sua piscina em Beverly Hills, onde todos os brasileiros de passagem se sen-tiam em casa. E, por vários motivos, um dos quais a guerra, passou 14 anos sem voltar ao Brasil, numa eternidade de distância entre a cantora e seu país.

Durante todo esse tempo, em que fazia um filme depois do outro e se tornou, em 1944, a mulher mais bem paga dos Estados Unidos (e talvez do mundo), poucos souberam do inferno íntimo que se escondia sob seus turbantes e fantasias. Carmen não conseguia resolver o seu dilema: continuar escrava do palco ou casar-se, ter filhos (sua grande aspiração) e sossegar. Mas vários fatores a impe-diam de parar: o sucesso, as solicitações – e, princi-palmente, uma cruel combinação de estimulantes e soníferos que seus médicos lhe receitavam. Depois

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de muitos namorados americanos, Carmen viu-se, aos 38 anos, solteira e já numa idade limite para ser mãe pela primeira vez. E, então, um homem (muito abaixo do que ela merecia) a pediu em casamento. Sem pensar muito, aceitou-o – para surpresa de sua própria família. Mas Carmen não conseguiu ser mãe, nem teve um casamento feliz. Sua história, a partir daí, foi uma roda viva de shows por todos os Estados Unidos, pela Europa e por Cuba, de cachês astronômicos e de milhares de cápsulas coloridas que arruinaram sua saúde.

Não apenas arruinaram – foram-lhe mortais. Uma consequência desses medicamentos é a dependên-cia química, a incapacidade de o organismo, depois de algum tempo, funcionar sem eles. A partir de certo momento, Carmen já não conseguia dormir, e, em pelo menos uma ocasião, teve de receber uma dose de anestesia cirúrgica para recuperar algumas horas de sono. Essa violência aconteceu durante sua ida de navio para Londres, a fim de se apresen-tar no Palladium, em 1948, mas pode ter ocorrido outras vezes. Com a dependência finalmente insta-lada, Carmen não teve ninguém – médico, marido ou amigo – que entendesse seu problema e tomasse a decisão correta: uma internação prolongada, para limpar o organismo dos medicamentos até o último vestígio, e a consciência de que, a partir dali, teria de ficar longe deles. É verdade que sua geração foi cobaia de tais medicamentos – pouco mais de dez anos depois que eles tinham sido inventados, os próprios laboratórios ainda não tinham consciência de seu poder sobre o corpo e a mente dos usuários.

Outra consequência dessa carga de remédios (ou de qualquer droga) é a depressão, e Carmen levou todos os primeiros anos da década de 50 alternando fases de depressão profunda com a necessidade de recuperar-se e enfrentar o palco. Para isso, aplicaram-lhe até eletrochoques. Mas, ao fim e ao cabo, a depressão prevaleceu, e sua irmã Aurora foi a Los Angeles buscá-la para uma temporada de “repouso” no Brasil – de que Carmen estava ausente havia 14 anos. Em fins de 1954, Carmen chegou ao Rio, passou as primeiras semanas de molho (a cargo do dr. Aloysio Salles, médico com surpreendente – para a época – conhecimento dos processos de depen-dência) e ficou bem o suficiente para aproveitar sua temporada carioca: durante os meses de fevereiro

e março, foi homenageada em todos os bailes de carnaval, peças de teatro e boates a que compareceu. Era o Brasil de novo com a sua Pequena Notável.

Mas compromissos assumidos por seu marido obrigaram Carmen a voltar para Beverly Hills, in-terrompendo o tratamento e devolvendo-a à rotina de viagens, shows e outros compromissos – e ao consumo das bolinhas. Pouco mais de três meses depois de sua volta aos Estados Unidos, o coração de Carmen – bombardeado pelos medicamentos durante todo o seu período americano – não resis-tiu. O primeiro aviso se deu na tarde do dia 4 de agosto, durante a filmagem de um número musical para o programa de televisão de Jimmy Durante. O joelho de Carmen se dobrou, ela sentiu falta de ar, recuperou-se, sorriu e continuou o número – tudo isto existe em imagens. Na madrugada do dia 5, em seu quarto, em casa, veio o enfarte fatal. Só foi encontrada pela manhã. Tinha 46 anos.

O sepultamento se deu no Rio, uma semana depois. Carmen foi velada na Câmara dos Vereadores carioca. Centenas de milhares de pessoas passaram pelo seu caixão e outras tantas a levaram em cortejo até o Ce-mitério de São João Batista, cantando seus sucessos – Camisa listada, Primavera no Rio, Tic-tac do meu coração, Na batucada da vida, Mamãe, eu quero e, claro, Taí (Pra você gostar de mim). Carmen finalmente voltava para junto dos seus – que, na verdade, éramos todos nós.

Ruy Castro

Acervo Ruy Castro

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Igualmente ao processo de formação da musicalidade das demais regiões do Brasil, a dita música nordestina tam-bém teve sua estruturação oriunda da miscigenação dos nativos indígenas com os colonizadores europeus e, posteriormente, com os negros vindos da África. Depois de tudo misturado neste caldeirão multicultural, o saber e o fazer do povo que formou cada um dos estados do Nordeste é que delineou as peculiaridades hoje tidas como representativas, tais como o frevo em Pernambuco e os diversos ritmos e sotaques do bumba-meu-boi no Maranhão, e tantos outros, que em tese somente se formataram na primeira metade do século XX.

Na Bahia, onde começa o Nordeste em direção ao Norte do Brasil, primeira capital do Império e pon-to de partida para a expansão da coroa portuguesa, os missionários, ao perceberem a musicalidade das diversas nações indígenas que povoavam este solo Brasílis, chegaram a substituir o cantochão (canto litúrgico ou gregoriano) por melodias nativas,

sobrepondo-lhes textos cristãos e da cultura europeia no ofício de catequese. As nações

que escaparam do jugo dominador e das epidemias que dizimaram grande número de índios enfronharam-se

principalmente para a região Norte do país, preservando seus cânticos originais.

Muitos remanes-centes do litoral, que

foram os mais afeta-dos com a colonização,

têm buscado resgatar seus costumes e, notadamente, sua

musicalidade, através das danças e das cerimônias.

Prova disto são os muitos documentários, gravação de

DVDs e CDs que registram o repertório de várias nações nordestinas,

como os Xocós de Sergipe, os Cariris-Xocós de Alagoas, Pancararús de Pernambuco e outras de cada estado daquela região que gravaram ou tiveram seu cantar recolhidos, constituindo-se no que poderíamos chamar de “música primitiva” do Nordeste, ou ainda, na classificação atual, a chamada “música étnica”.

O trabalho de catequese através da música reali-zado pelos jesuítas também é citado na biografia musical brasileira como os primeiros tempos da música erudita no país. Neste tempo, as cidades mais importantes eram simples povoados, e deste início poucos registros foram encontrados, como os da Igreja da Sé (Salvador-BA), que comprovam as atividades de Francisco de Vaccas como mestre de capela e Pedro da Fonseca como organista.

Num segundo momento, o mesmo caso de domina-ção cultural ocorreu em nosso país com o negro, que contribuiu com uma parcela significativa para a música nordestina, principalmente através do ritmo e da dan-ça. Foram trazidos da África aos milhares por volta do século XVI, porém, mesmo em grande número, sua raça era considerada inferior e, consequentemente, sua cultura, sendo subjugados ao trabalho escravo.

No Nordeste, a mão de obra escrava foi destina-da em sua maioria aos engenhos e plantações de cana de açúcar, onde após o trabalho os escravos eram trancafiados, sendo proibidos de realizar seus rituais, suas danças e seus cânticos. Muitos deles fugiram formando os quilombos, ou se rebelaram,

O Frevo

Cantor, compositor e multi-instrumentista, ocupa a cadeira número 23 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel e número 7 do Movimento Cultural da Academia Sergipana de Letras. Natural de Sergipe, produz e apresenta o programa de forró Puxa o fole, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro.

José Sergival da Silva

A música nordestina, brasileira

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realizando às escondidas suas festas, preservando suas representações musicais.

Segundo alguns etnólogos que aprofundaram seus estudos neste particular musical, duas correntes se notabilizaram nesses caminhos trilhados pelo negro na música brasileira, a corrente afro-religiosa e a corrente do afro-batuque.

Do segmento denominado afro-religioso, se encai-xam basicamente as coroações dos Reis de Congo e as músicas de terreiro presentes em todos os estados nordestinos, mais notadamente na Bahia. São inúmeros grupos de caráter religioso que, se utilizando da música, fundem-se com o profano, com grupos de ação artístico-cultural e também os chamados de grupos folclóricos.

Na Bahia, como principais podemos citar os afoxés, outrora chamados de “candomblé de rua” (cordão carnavalesco de adeptos da tradição dos orixás), onde o clube Pândegos d’África é considerado como o primeiro afoxé baiano; os Filhos de Gan-dhi, que tem no cantor e compositor Gilberto Gil seu mais ilustre integrante; e blocos afro como o Olodum e o Ilê Aiyê, entre outras numerosas agremiações espalhadas pela capital e interior desse estado com grandeza territorial.

Do estado de Sergipe, a Taieira de Bilina (em me-mória), Cacumbi do Mestre Déca e o Grupo São Gonçalo do Mestre Sales (aculturação portuguesa sobre os negros do Quilombo Mussuca da cidade Laranjeiras), além de blocos e grupos afro-culturais como o Axé-Kizomba, João Mulungu, SACI e Qui-lombo. Já em Alagoas, as Taieiras Ganga Zumba do Mestre Carlos e Axé-Zumbi do Mestre Geral-do, que louvam São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, padroeiros dos pretos. Afoxé Odô

Yá, os maracatus Baque Alagoano - que tem na coordenação musical o Mestre Dalmo -, Coletivo Afro-Caeté e Nação A Corte de Airá.

De Pernambuco, os maracatus Nação ou de Ba-que Virado, que são cortejos aos Reis do Congo, e os maracatus de Baque Solto, que misturam a cultura afro com a indígena, com destaque para os coloridos caboclos de lança que apontam a cidade de Nazaré da Mata como a “terra do maracatu”. Dada a grande quantidade, citaremos apenas alguns representantes como o Maracambuco, Maracatu A Cabralada, Maracatu Nação Aurora Africana, Maracatu Nação Oxum Mirim, Maracatu Nação Cambinda Estrela, Nação Pernambuco, Maracatu Rural Estrela de Ouro e o Cambinda Brasileira,

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Orquestra Nordestina

O Descobrimento.

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A músicA nordestinA, brAsileirA

que é considerado o mais antigo. Do Rio Grande do Norte, o Congo de Guerra do Distrito de Ta-boão (Ceará Mirim - RN) e a dança guerreira do Espontão (Jardim do Seridó e Caicó - RN), Bloco Afoxé Estrela da Manhã, entre outros.

Do Ceará, o Movimento Negro Unificado (MNU), Grupo Afro de Mulheres Brasileiras (Gamb) e União dos Negros pela Igualdade Racial (Unegro) têm realizado excelente tra-balho de fortalecimento do maracatu do Ceará, cujo dia é comemorado em 25 de março, pois neste dia em 1884 o Ceará foi o primeiro estado brasileiro a abolir seus escravos, quatro anos portanto antes da Lei Áurea. Do maracatu, os principais nomes do Ceará são os grupos do sr. Milton de Sousa (em memória), o professor Des-cartes Gadelha, mestre de mara-catu, e alguns grupos como o Rei Zumbi, Nação Iracema, Kizomba, Vozes da África, Nação Fortaleza, Afoxé Filhos de Oyá e outros.

Do Piauí, Grupo Afro-Ijexá, Grupo Afro-BAI, Grupo Afro-Maravir, Grupo Afro-Cul-tural Coisa de Nêgo, Afoxá e outros. E, finalmente, do Maranhão, o Cacuriá, o Tambor de Mina (onde a Casa das Minas e a Casa Fanti-Ashanti, em São Luís, são os principais locais), o Bloco Afro Akomabu e a Associação Cultural Axé das Yabás.

Do segmento denominado afro-batuque, os principais ritmos são o samba – que se subdividiu em rural e urbano –, o coco, o jongo e muitos outros. O de-nominado samba rural é, em termos gerais, batido na palma da mão, no ritmo do sapateado, marcando coreografias em forma de roda com umbigadas, ora utilizando o ganzá, o pandeiro, o reco-reco ou tam-bores em algumas modalidades. Já o denominado samba urbano era tocado e cantado em sua formação inicial com violão, cavaquinho e flauta, tendo outros instrumentos sido inseridos ao longo dos tempos.

As festas de danças dos negros escravos eram cha-madas de samba, sempre conduzidas por diversos tipos de batuques, e até mesmo os bailes de latada ou

forrobodós pelo interior do Nordeste, antes do baião e da denominação forró, também eram chamados de “samba”, conforme registros do próprio Luiz Gonzaga em inúmeras gravações. Ir para o samba, portanto, significava ir para uma festa ou baile, onde a música e a dança eram os principais elementos.

E assim, de acordo com as peculiaridades de cada lugar, seja zona rural ou zona

urbana, o samba foi ganhando al-gumas formas e denominações

no Nordeste, como o samba de roda (Bahia), samba de pare-lha (Sergipe), os diversos ti-pos de coco (hoje tido como gênero, notadamente pela expressiva contribuição de Jackson do Pandeiro – o rei do ritmo) e outros tantos.

Em Alagoas podemos citar as Baianas, Cambindas, Sam-

ba de Matuto, Negras da Costa e as Caboclinhas, além dos lun-

dus, os pagodes – não confundir com os grupos de pagode paulista

– e inúmeras modalidades de coco com dança e canto: o de embolada, coco topado,

remado, travessão, cavalo manco, trupé repartido, o sete e meio, o xipapá, o falado, o dobrado, o tran-quiado, o de entrega, o de roda, o coco solto etc. Em Sergipe, do afro-batuque podemos citar o Lambe-Sujo e Caboclinhos do Mestre Zé Rolinha (auto de guerra entre negros e índios que é encenado na cidade his-tórica de Laranjeiras todos os anos em meados de outubro), além do Samba de Parelha comandado pela Mestra Dona Nadir do povoado Mussuca.

Dos primórdios, as músicas das “profissões de ga-nho”, com seus vendedores de rua ou ambulantes apregoando seus produtos através de frases cantadas, ainda são encontradas em praticamente todas as ci-dades do Nordeste. Já na chamada música erudita e também nas partituras, a contribuição do negro no Brasil somente foi notada a partir do final do século XIX, por meio das escritas da maestrina Chiquinha Gonzaga e das pesquisas do maestro Heitor Villa-Lobos por conta de seu engajamento na Semana de Arte Moderna (1922), que postulava que a identidade

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nacional estaria nas cantigas do povo, fruto da misci-genação do índio, do negro e do colonizador europeu.

Por falar no colonizador europeu, sua principal con-tribuição, dentre outras, foi a notação musical ou a escrita em partituras, trazendo-nos também alguns instrumentos de câmara e outros marciais. Alguns deles, inclusive, foram adaptados pelo saber de arte-sãos nordestinos que desenvolveram instrumentos similares, porém peculiares no Nordeste, como a rabeca, que, inspirada no violino, foi o primeiro instru-mento melódico utilizado no forró, pois o acordeom somente foi difundido no Brasil com a imigração dos alemães no início do século XIX, e o pífano.

Do primeiro instrumento, grandes nomes como o famoso Cego Oliveira (José Oliveira, nascido no Crato – CE), Nélson da Rabeca (Marechal Deodo-ro – AL), de Pernambuco, o João Salustiano, pai do também rabequeiro e luthier Mestre Salustiano, Sérgio Roberto Veloso de Oliveira (de nome artístico Siba), Antônio Nóbrega (Quinteto Armorial), do Piauí, o mestre Joaquim Carlota (Bom Jesus – PI) e Valdecir Araújo (Teresina – PI), do Maranhão, o mestre ra-bequeiro Erandino e também o Pedro Rabequeiro (Timon – MA), Manoel Flandeiro (Pedreiras – MA), Beto Brito (João Pessoa – PB) e muitos outros.

A banda de pífanos e seus similares, que são os ternos de zabumba e o esquenta mulher ou muié, são formados geralmente por dois pífanos (ou pífaros, tocados transversalmente e bocal em furo superior – embo-cadura aberta) ou duas gaitas (tocadas à 45 graus e feitas com bocal em apito – embocadura fechada), feitos geralmente de taboca ou cano de PVC, acom-panhados por zabumba, caixa e pratos. Foram ins-pirados nas fanfarras militares. Destacamos desta formação a famosa Banda de Pífanos de Caruaru (Caruaru – PE), Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto (Crato – CE), Zabumba de Quendera (Aracaju – SE), Banda de Pífanos Esquenta Muié (Marechal Deodoro – AL), Banda de Pífanos de São José de Piranhas (PB) e outras mais.

O Movimento dos Poetas Trovadores surgido no século XII na Península Ibérica, onde se produziam cantigas – poemas para se cantar acompanhados ao som de violas e alaúdes na condição de artistas ambulantes –, tinha como temas os romances

impossíveis, duelos entre cavaleiros com final feliz e donzelas. Estas narrativas também foram trazidas pelos colonizadores, considerados como origem dos trovadores de cordel (Leandro Gomes de Barros, Patativa do Assaré, João Firmino etc.) e de uma das mais típicas expressões musicais do Nordeste que são os violeiros repentistas, que têm como grandes nomes o imortal Zé Limeira – o po-eta do absurdo –, Ivanildo Vila Nova, Sebastião da Silva, Moacir Laurentino, Irmãos Anacleto e tantos outros, com seus duelos e versos de improvisos em métricas que vão da sextilha ao martelo agalopado.

O catolicismo, profundamente arraigado em Por-tugal, nos trouxe também uma série de tradições e festividades que ajudaram a formar nosso calen-dário, nos legando folguedos que se misturaram com a cultura indígena e a negra, como o bumba-meu-boi, que se desenvolveu no Maranhão, reisa-do, cavalhada, cantigas de roda, chegança, autos natalinos, carnaval, festejos juninos e tantos outros, consolidando a musicalidade típica de determinado estado do Nordeste, mesmo coexistindo em outros. Começaremos pelo carnaval, nos detendo somente aos estados de maior expressão: o de Pernambuco (Olinda e Recife), com a sua tradição do frevo, e o da Bahia, com a sua tradição dos trios elétricos to-cando marcha carnavalesca, axé music e outros ritmos.

O frevo pernambucano tem sua origem nas primeiras bandas de música marcial, que executavam basica-mente dobrados e marchas em meados do século XIX. Por essa mesma época, surgiram os primei-

Festa Junina no Arraiá.

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ros clubes de carnaval pernambucanos, cada um possuindo sua banda de música que trazia à frente capoeiristas para intimidar os grupos rivais. Estes, como disfarce para fugir da polícia, modificavam os golpes acompanhando a música, surgindo daí, tempos depois, o “passo” (dança do frevo), hoje dançado por todos os foliões daquele estado e, principalmente, por bailarinos com vestes típicas e sombrinhas coloridas que dominam os diversos tipos de passo.

Historiadores afirmam que a origem da palavra frevo vem da corruptela de fervo, de ferver ao som da música, e que o gênero se divide em frevo de rua, que é exclusivamente instrumental – tem como grandes nomes o Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas do Recife, considerado o mais antigo, e o C.C.M. Lenhadores, entre outros. Atualmente, a Spok Frevo Orquestra, segundo seu criador maestro Spok, vem desenvolvendo o que ele chama de frevo de palco, com um “frevo para as pessoas escutarem”, cultuando grandes nomes como Maestro Duda, Clóvis Pereira e Levino Ferreira. Há também o frevo canção, com introdução orquestral e letra para um cantor so-lista. Tem como grandes nomes Alceu Valença, Claudionor Germano e tantos outros, e como principais compositores o Capiba, Nelson Ferreira e o próprio Alceu Valença; e, finalmente, o frevo de bloco, executado por orquestra de pau e corda – basicamente violões, cavaquinhos, violinos, sopro, percussão e alguns trazem um coral feminino. Tem como principais blocos o Galo da Madrugada, o Bacalhau do Batata e As Virgens de Olinda. Seus principais compositores são os irmãos Raul e Edgard Moraes, Luiz Faustino e Fátima de Castro.

Já o carnaval da Bahia, que inicialmente contava com luxuosos desfiles alegóricos em carros parti-culares, pranchas puxadas por animais e grupos de mascarados conhecidos como Caretas, vestidos de Clóvis, construiu sua história galgada no trio elétrico, que nada mais é do que um caminhão adaptado e equipado com um potente sistema de luz e som, que funciona como um palco ambulante, onde no alto ficam os cantores, músicos e bailarinos. Na ver-dade, o nome trio elétrico é mais uma corruptela que inicialmente denominava o trio de músicos Dodô, Osmar e Temístocles, que desfilavam em cima de uma fobica (Ford Bigode 1929), onde também iam a aparelhagem de som e os altofalantes. Assim, a partir deste formato, outros trios de músicos ou grupos foram surgindo e copiando a ideia, e com o tempo, o nome trio elétrico passa a denominar o caminhão.

O repertório era instrumental, composto de mar-chas carnavalescas, frevos, maxixes, dobrados e do passo doble. Uma curiosidade é que a canção Pombo correio, música de Osmar e letra de Moraes Moreira, que estourou no carnaval de 1977, foi a primeira música carnavalesca cantada em um trio elétrico, abrindo a chancela para todos os cantores que vieram depois. Até os anos 80, diferentemen-te de dançar o frevo com seus passos métricos e definidos, a dança de trio era o “pulo”, pular atrás do trio de forma espontânea ao som da música. Somente na segunda metade dos anos 80 é que o cantor e compositor Luiz Caldas lança a música fricote, trazendo nova sonoridade à música de trio ao utilizar teclados, estimulando através de seu jeito de conduzir a “massa” o surgimento das danças coreografadas no ritmo que denominou de deboche.

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A guitarra baiana, que atualmente tem como seu principal fabricante o luthier Elifas Santana, era o instrumento que predominava nos trios elétri-cos. Com seu som característico, e àquela época praticamente exclusiva do grande instrumentista Armandinho, filho de Osmar, vai perdendo cada vez mais seu espaço para as bandas de trio elétrico com cantores, teclados, bateria, guitarras elétricas e percussões, estruturadas em megaempresas.

O carnaval da Bahia então ganha outra cara, com o surgimento de vários artistas como Durval Lélis (Asa de Águia), Carlinhos Brown (Timbalada), Sarajane, Margareth Menezes, Jerônimo, Netinho, Ricardo Chaves, grupos como o Chiclete com Banana (Bel Marques), Cheiro de Amor, Muzenza, Olodum, can-tores de blocos afros, samba-reggae e tantos outros que subiram ao trio. Até que, na metade dos anos 90, surge o grupo Gerasamba e sua dissidência É o Tchan, abrindo as portas para que os grupos de pa-gode e de samba frequentem também os trios. Todos estes acontecimentos juntos e mais algumas pitadas de baianidade formaram a chamada “axé music”.

Hoje, a maioria dos trios elétricos funciona como um bloco particular, cercados por cordas de isolamento onde os foliões dançam vestidos em “abadás”, com toda uma estrutura de segurança, carro de apoio e ou-tras sofisticações, enquanto os não sócios, denomina-dos de “pipoca”, aproveitam pulando nos arredores.

Já o bumba-meu-boi é uma tradição que se consoli-dou no Maranhão e que data sua origem no século XVIII, sendo realizado nos meses de junho e julho em contraponto às festas juninas, principalmente em São

Luís, onde grupos se espalham desde as periferias até os arraiais do Centro e dos shoppings da ilha, na parte nova ou antiga da cidade, reunindo grupos de todo o estado do Maranhão para brincar até amanhecer o dia.

O enredo da festa do bumba-meu-boi resgata uma história típica das relações sociais e econômicas da região durante o período colonial, marcadas pela monocultura, criação extensiva de gado e escravi-dão. Numa fazenda de gado, Pai Francisco mata um boi de estimação que era o mais bonito e valioso de seu senhor para satisfazer sua esposa, Mãe Catirina, que estava com desejo de gravidez, querendo comer a língua do bovino. Quando descobre o sumiço do animal, o senhor fica furioso e, após investigar entre seus escravos e índios, descobre o autor do crime e obriga Pai Francisco a trazer o boi de volta. Pajés e curandeiros são convocados para salvar o escravo e, quando o boi ressuscita urrando, todos participam de uma enorme festa para comemorar o milagre.

Brincadeira democrática que incorpora quem passa pelo caminho, o bumba-meu-boi já foi alvo de per-seguições da polícia e das elites por ser uma festa mantida pela população negra da cidade, chegando a ser proibida entre 1861 e 1868. Mas, atualmente, incorporados à identidade maranhense, existem mais de cem grupos de bumba-meu-boi na cidade de São Luís subdivididos em diversos sotaques. Cada sotaque tem características próprias que se ma-nifestam nas roupas, na escolha dos instrumentos, no tipo de cadência da música e nas coreografias. Deteremos a citar alguns como o Sotaque de Matraca ou da Ilha (Boi de Maracanã, Boi da Maioba, Boi da O Batuque.

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Pindoba, Boi de Iguaíba, Boi da Madre Deus, Boi do Bairro de Fátima etc.), Sotaque de Zabumba (Boi de Guimarães de Seu Marcelino Azevedo, Boi da Areinha de Seu Constâncio, Boi da Fé em Deus de Dona Teresinha Jansen, Boi da Liberdade de Seu Leonardo, Boi da Vila Passos de Seu Canuto, Boi do Bairro de Fátima de Dona Zeca etc.), Sotaque da Baixada ou Pandeirão (Boi de Pindaré, Boi de São João Batista, Boi de São Vicente de Ferrer, Boi de Viana, Boi de Santa Fé etc.), Sotaque de Orquestra (Boi de Axixá, Boi de Morros, Boi de Nina Rodrigues, Boi da Lua, Boi do CEIC etc.) e, por último, o Sotaque de Costa-de-Mão (Boi de Cururupu etc.).

De todos os festejos do Nordeste, a festa junina é a mais rica em elementos culturais da região por se fazer presente em todos os estados nordestinos e estar arraigada na população desde a mais tenra infância, tanto na cidade, através das quadrilhas juninas infantis e festinhas organizadas pelas creches e escolinhas, quanto na zona rural, onde os pequeninos partici-pam da queima da fogueira e dos fogos, mantendo a tradição que passa dos pais para os filhos.

De forma pontual, o ciclo junino se inicia no dia de São José (19 de março – dia em que se planta o milho. Reza a tradição que, se chover neste dia, o sertanejo terá uma boa colheita), passando por Santo Antônio (13 de junho – tido como santo casamenteiro), culminando com São João (24 de junho – patrono dos festejos, atribui-se à sua mãe, Izabel, o acendimento da fogueira que foi utilizada para sinalizar à sua prima Maria, mãe de Jesus, o nascimento de João) e fechando o período com São Pedro (29 de junho – cultuado pelos pescadores, é tido como o guardião das portas do céu e do controle da chuva). Os festejos a cada santo iniciam-se na noite de véspera, ou seja, como no Natal, na noite anterior à data oficial. Muitas capitais ainda preservam o hábito de acender a fogueira na porta de casa durante todos estes dias de véspera, porém, a maior incidência fica mesmo é no interior dos estados.

Embasada nos ritmos musicais, a dança junina é um capítulo à parte, no qual podemos tecer pince-ladas resumidas, concentrando o foco no aspecto musical, onde a primeira a se destacar foi o baião, que é dançada no ritmo de mesmo nome criado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Com o tempo, originou-se dela o ritmo conhecido como

forró, que nada mais é do que um baião tocado mais ligeiro, com dança e andamento mais rápido, de acordo com a batida da zabumba.

O ritmo do baião tornou-se um grande sucesso na década de 40, época de ouro do rádio brasileiro, e logo se instituiu um reinado onde Luiz Gonzaga era o Rei, Carmélia Alves, a Rainha do Baião, Luiz Vieira, o Príncipe, e Humberto Teixeira, o Doutor do Baião.

Já o xote, que é uma corruptela da palavra schottisch, de origem alemã, que significa “escocesa”, em refe-rência à polca escocesa, foi trazido para o Brasil pela Corte e tornou-se apreciado como dança da elite. Caiu no gosto popular, e hoje é dançada ao ritmo de mesmo nome. Sendo um dos ritmos preferidos no Sudeste na atualidade, muitos nomes dedicam seus trabalhos ao xote, como Flávio José, Jorge de Altinho, Adelmário Coelho, Amoroza, e grandes compositores como Antônio Barros, Cecéu, João Silva, Maciel Melo, Ismar Barreto, Zé Dantas etc.

O xaxado é uma dança de criação do bando de cangaceiros de Lampião, que dançavam em círculo, inicialmente abraçados ao fuzil, antes da entrada de mulheres no bando. A palavra xaxado é uma corrupte-la de “sachar” – ato ou efeito de juntar a terra ao caule do feijão de poucos dias de brotado na plantação com uma enxada. No reinado do Gonzagão, Marinês era a Rainha do Xaxado, tendo gravado vários discos neste ritmo, observando que existem diversas variações da dança xaxado, o que dá origem a inúmeros grupos es-palhados pelo Nordeste. Vestidos à caráter, ou seja, de cangaceiros, destacam-se os grupos de Serra Talhada (PE), tida como a “capital do xaxado”, por ser a terra natal de Virgulino Ferreira, o Lampião. Entre eles, o denominado Grupo de Xaxado Cabras de Lampião e o Grupo de Xaxado Manoel Martins, que, unidos pela dança, apresentam também a teatralidade dos cangaceiros, me detendo nestes.

Entre muitos outros ritmos que não particulariza-remos, a marchinha junina ou arrastapé é o mais acelerado e animado, sendo o preferido para a dança coletiva improvisada ou de passos ensaiados, como as quadrilhas juninas que no Nordeste existem em quantidade infindável. Com figurinos impecáveis, todos os anos elas participam de concursos de alto nível entre si, e os trajes ou caracterizações principais

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são os de matuto, cangaceiro, vaqueiro e representa-ção de personagens da região como Lampião, Maria Bonita, Padre Cícero, o Coronel, o Rei e a Rainha do Milho, o Capelão, o Delegado, os Padrinhos e os Noivos, tão festejados no casamento caipira.

Além dos nomes já citados nos parágrafos anteriores em ritmo específico, aqui repetidos pela amplitude da obra, confesso que, para registrar todos os artistas forrozeiros do Nordeste seria necessário várias pá-ginas, o que me reservarei a citar mais alguns, como forma de homenagem a todos, mesmo correndo o risco de esquecer alguém. Começo reverenciando a importância dos anônimos triangleiros, que às vezes são o cantor principal dos trios pé de serra, passo para os zabumbeiros mais conhecidos, como o Dió, Quartinha e Durval Pereira. Os sanfoneiros Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Sivuca, Oswaldinho, Flávio José, Camarão, Duda da Passira, Genaro, Waltinho, Cobra Verde, Cesinha, Mestrinho, Adel-son Viana, Marcelo Caldi, muitos destes, cantores e compositores. Também o Januário (pai de Luiz Gonzaga), Severino Januário (irmão de Luiz Gon-zaga), Gérson Filho, Zé Calixto, Pedro Sertanejo, Negão dos Oito Baixos, Abdias e tantos outros pé de bode (sanfona de oito baixos). Os cantores Alcy-mar Monteiro, Clemilda, Marinês, Anastácia, Trio Nordestino, Genival Lacerda, Mestre Zinho, Jorge de Altinho, Nando Cordel, Maciel Melo, Petrúcio Amorim, Iráh Caldeira, Adelmário Coelho e o rei do coco e do rojão Jackson do Pandeiro.

Que trafegam pelo forró com uma linguagem própria, pela música folclórica ou regional cantando frevos, cirandas, canções e gêneros que podemos colocar no mesmo caldeirão e chamar de MPB, são os artistas Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Fagner, Ednardo, Lenine, Chico César, Zeca Baleiro, Rita Ribeiro, Papete, Carlinhos Veloz, Chiko Queiroga & Antônio Rogério, Ismar Barreto, Amoroza, Irineu Fontes, Rogério, Patrícia Polayne, Djavan, Belchior, Eliezer Setton, Ibys Maceióh, Crys-tal, Cátia de França. A percussão de Naná Vasconcelos e Hermeto Paschoal. O samba da “Marrom” Alcione. A cantoria de Elomar Figueira de Melo, Xangai, Vital Farias, Fábio Paes, Gereba e Rose. O “manguebeat” de Chico Science e Nação Zumbi. Os tropicalistas Tom Zé, Caetano, Gal Costa, Maria Bethânia, Gilber-to Gil, a música praieira de Dorival Caymmi e muitos outros que me fogem à mente.

Mas a música do Nordeste não se resume somente ao forró, ao frevo, ao folclore ou à dita música regional. Muitos artistas consolidaram uma carreira musical vitoriosa em outros estilos, ou como exímios instru-mentistas, formando músicos no chorinho, no samba, no rock, no reggae, na música brega ou romântica, na música clássica ou popular, numa gama tão com-plexa e intensamente bela e maviosa, que somadas à música produzida nas demais regiões do Brasil, cada uma com seu valor e suas características, fazem da música brasileira reconhecidamente uma das mais importantes e completas de todo o planeta.1

1 Ver também: ALBIN, Ricardo Cravo. Samba. Disponível em: <http://www.dicionariompb.com.br>. Acesso em: 30 abr. 2010; GÓES, Fred. 50 anos de trio elétrico. Salvador: Corrupio, 2000; LOPES, Nei. A presença da música africana na música popular brasileira. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br>. Acesso em: 27 abr. 2010; MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994; Sites das Secretarias e/ou Fundação de Cultura, Turismo e Educação dos estados do Nordeste. Acessos em: 13 abr./25 mai. 2010; WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Música do Brasil. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org>. Acesso em: 25 abr. 2010.

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O popular e o erudito: Ary Barroso e Heitor Villa-Lobos

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1 Este texto é parte de um capítulo do meu livro Diálogo com cartas, a ser publicado em breve.2 KOSTELANETZ, Richard. Conversing with Cage. New York: Limelight Editions, 1988.3 NYMAN, Michael. Experimental music. New York: Schirmer Books, 1974.4 Termo usado por Webern e Schoenberg significando melodias de som e cor. Webern e Schoenberg acreditavam ser um conceito musical da maior importância. Existe uma controvérsia sobre quem usou primeiro este termo.

John Cage disse que “a palavra experimental não deve descrever um ato em termos de julgamento fu-turo quanto a seu sucesso ou fracasso, e sim ser apli-cada a um ato, cujo resultado seja desconhecido”.2

Sem dúvida, o movimento precursor deste termo foi o dadaísmo no começo do século XX e, parti-cularmente, a estética e a irreverência de Erik Satie. Segundo Michael Newman,3 a divisão se torna polêmica entre os vanguardistas (compositores europeus pós-seriais como Boulez, Stockhausen, Xenakis e Berio) e experimentalistas que não se prendem aos axiomas ocidentais da tradição mu-sical pós-renascentista – movimento nos Estados Unidos com precursores como Varèse, Ives, que culmina com Cage.

É interessante notar que Anton Webern também foi visto sob diferentes prismas pelos europeus e americanos. Os vanguardistas (europeus) analisavam racionalmente os procedimentos seriais de sua obra na construção de um sistema musical totalmente controlado e controlável. Enquanto isto, os ame-ricanos (experimentalistas) se interessavam mais pelo pontilismo como uma espacialização sonora no que diz respeito à questão som/silêncio. John Cage escolhe ao acaso materiais do Sócrates de Satie para compor Cheap imitation referindo-se à técnica composicional de Webern (klangfarbernmelodien).4

Em 1936, Varèse afirmou que “chegará o tempo em que o compositor, depois de escrever graficamente sua partitura, verá esta partitura automaticamente

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Jocy de Oliveira, solista sob a regência de Igor Stravinsky, com a St. Louis Symphony, 1966

Compositora, pianista e artista multimídia. Autora de seis óperas (composição, roteiro e direção).Jocy de Oliveira

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ser lida por uma máquina que fielmente a transmi-tirá ao ouvinte”. Em 1937, Cage completou: “Se o ponto de discórdia no passado foi a dissonância e consonância, no futuro será sobre o ruído e som chamado musical”.5 Em 1920, experimentos com instrumentos eletrônicos para criar novas fontes sonoras foram iniciados com Otto Lüening e Pierre Schaeffer, e em 1923, Theremim inventa seu próprio instrumento.

No Brasil, a tão celebrada e mitificada Semana de Arte Moderna de 1922 certamente não apresentou nenhum indício de experimentalismo musical. Pelo contrário, ignorou o que havia de mais novo e revolucionário nestas primeiras duas décadas no âmbito da criação musical internacional e só programou obras antigas e pouco representativas de Villa-Lobos (apesar de que Villa-Lobos já havia composto o seu Sexteto místico, de 1917, e os po-emas sinfônicos Amazonas e Uirapuru, do mesmo período, que só foram estreados em 1929 e 1935, respectivamente).

Durante a Semana de Arte Moderna, Ernâni Braga executou ao piano Embryons desséchés (1913), de Erik Satie, uma paródia à Marcha fúnebre de Chopin, chamando-a de citação da célebre Mazurka de Schu-bert. Em protesto, Guiomar Novaes tocou Debussy.

Villa-Lobos entrou no palco de casaca e chinelo, se apoiando num guarda-chuva (o que poderia ter sido uma manifestação transgressora), mas a razão era apenas sua crise de ácido úrico que o impos-sibilitou de calçar sapatos. Assim, absolutamente nada aconteceu de inovador no universo musical da celebrada Semana.

5 KOSTELANETZ, Richard, op. cit.

Villa-Lobos viria a compor uma de suas melhores obras – o Noneto (Impressão rápida de todo Brasil) – em 1923. Se Villa-Lobos conhecia a obra de Stravinsky antes de sua primeira ida à Europa, não invalida sua originalidade e mesmo certa irreverência que torna sua música tão diferenciada. O resultado geral do conjunto de suas obras é, entretanto, bastante desi-gual: obras exuberantes, brilhantes, inovadoras; e ou-tras sem originalidade ou interesse e apenas beirando um saudoso romantismo. A escritura em algumas de suas obras é, às vezes, inconsistente, mas Villa-Lobos é mistério, gratuidade, ironia, genialidade.

De certa forma, é um paradoxo, pois, se analisarmos a obra de Villa-Lobos em relação ao momento insti-gante que ocorria na Europa nas primeiras décadas do século XX, ele passava à margem dessas cor-rentes. Porém, se considerarmos nosso calendário brasileiro e meio ambiente, a coragem e liberdade que o levaram a seguir sua intuição no tratamento e mistura de materiais compositivos na busca por uma identidade fazem dele um transgressor no cenário nacional e mesmo internacional.

E qual foi este cenário internacional que Villa-Lobos encontrou ao viajar pela primeira vez para Paris?

É importante termos em conta sua chegada à Eu-ropa, vindo do hemisfério sul, na década de 20, e levando uma modesta bagagem musical em relação à tradição europeia.

Em primeiro lugar, é interessante comparar as obras relevantes escritas naquele estimulante perí-odo de 1912 a 1925: Les noces, de Stravinsky (obra iniciada em 1913 e que passou por várias instru-

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grande orquestra, datado de 1921, construindo um novo horizonte sonoro.

Em 1912, Diaghilev faz uma encomenda à Debus-sy estimulando o compositor a uma importante mudança de rumo, passando a usar harmonias e texturas mais livres e ousadas em seu balé Jeux, que de certa forma foi abafado pelo impacto ex-traordinário de Stravinsky com o Sacre du printempts. Porém, anos mais tarde, Boulez resgata a partitura de Jeux, mostrando até mesmo paralelos com o serialismo de Webern.

Interessante notar ainda o dadaísmo em Satie, que deixou marcas nos futuros experimentalistas ame-ricanos, como Cage, e nos minimalistas. Sua obra Musique d’ameublement, para pequena orquestra, foi escrita em 1923!

É neste cenário extraordinário, de 1923, eferves-cente de inovações e descobertas, que Villa-Lobos desembarca em Paris e tem a coragem de dizer: “Não vim para aprender, e sim mostrar o que fiz”.7 Ora, se ele tivesse conhecimento do que estava sendo criado na época, ele teria se sentido mais inseguro e quem sabe não tivesse ousado. Sua desinformação foi um fator positivo, porque neste cenário de impactantes descobertas sonoras ele apresentou seu Noneto, que pode bem se situar entre as obras criadas naquele momento. Não po-deríamos citá-lo como uma obra de vanguardismo pioneiro, mas não deixa de ter ousadia nas cores fauvistas, de caráter primitivista, em contraste ao impressionismo encontrado em Paris, com ritmos brasileiros ousadamente incluídos a uma escritura ímpar, exótico texto onomatopaico de sílabas indígenas, inventadas num cantar, gritar pelo coro e alguns exemplos surpreendentes de técnicas es-tendidas utilizadas pelos sopros. Então, de certo modo, era uma obra vanguardista para a época.

Esta obra estreada em 30 de maio de 1924 nos impressiona pela sua escritura e o uso de efeitos e ritmos modernos, harmonias post tonais, densi-dade harmônica em acordes complexos, invenção na métrica e formas não convencionais, o uso de

6 SCHOENBERG, Arnold. Berliner Tagebuch. Frankfurt: Ullstein/Propyläen, 1974.7 HORTA, Luiz Paulo. Heitor Villa-Lobos. Rio de Janeiro: Alumbramento/Livroarte,1986.

mentações e versões, tendo em junho de 1923 a primeira audição de sua versão final com quatro pianos, percussão e coro). É curioso que, como o Noneto de Villa-Lobos, é também uma obra para grupo de câmera e coro. Embora Stravinsky já ti-vesse abalado o mundo musical com sua invenção rítmica do Sacre du printemps em 1913, em Les noces ele continua permeando este caminho e com nítidas e marcantes raízes primitivistas russas.

Por outro lado, Arnold Schoenberg em julho de 1921 escreveu (de forma um tanto arrogante) ao seu aluno Josef Rufer: “Hoje acredito que descobri algo que asse-gurará a supremacia da música germânica por duzentos anos”.6 Referia-se a seu método dodecafônico que se consolidou na sua peça, a valsa, último movimento da suíte para piano Op. 25, de 1921, tornando-se esta a primeira peça escrita no sistema dodecafônico.

Três segmentos de Wozzeck, de Alban Berg, foram apresentados em 1924.

Varèse, entretanto, seguia um caminho à parte, totalmente original e solitário com Amériques, para

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polirritmia entre o piano e a harpa e a percussão, assim como técnicas estendidas. Por exemplo: é solicitado ao flautista forçar com os lábios a embocadura do instrumento, soprando forte e criando um som com muitos harmônicos. Para o clarinetista, ele solicita que toque no bocal apenas soprando como se fosse numa trompa e também cante as notas escritas.

A percussão com inúmeros instrumentos brasilei-ros usada por Villa-Lobos no Noneto nunca tinha sido ouvida na Europa. Ele pede, por exemplo, para um dos percussionistas tocar vários instrumentos (hoje em dia habitual, mas não era comum na época e tinha precedente apenas na História do soldado, de Stravinsky, escrita em 1918, e na Criação do mundo, de Darius Milhaud, de 1923.)

A personalidade irreverente de Villa-Lobos e sua obra carismática lhe valeram o apelido dado pelos franceses de “le sauvage brésilien” e marcaram seu sucesso internacional, coroado pelo fetiche de um personagem vindo do hemisfério sul na década de 1920 e que, segundo a crítica Anaïs Fléchet, para os franceses tratava-se da revelação do “outro”, um outro radical e brutalmente diferente do europeu civilizado.

Em resumo, introduzindo e mesclando raízes bra-sileiras à tradição europeia, Villa-Lobos produziu seu ciclo mais marcante e original – Os choros – entre 1920 e 1928.

Os choros deixam transparecer suas raízes nos “chorões”, espírito característico do Rio de Janei-ro com toda a variedade de ritmos e cores de sua nítida brasilidade, alguns deles enquadrados no conceito de “primitivo”, num contexto artístico de vanguarda, e com características marcantes pelo uso de “obstinatos” e elaboração rítmica dos elementos sonoros. Mas os Choros vão muito além de seu ponto de partida nos “chorões”, que não nos cabe neste momento analisar.

Encontrei Villa-Lobos em seu apartamento no Centro do Rio apenas uma vez. Era muito jovem e recém-casada com o maestro Eleazar de Carva-lho. A lembrança que me ficou do Villa foi de seu charuto (que me deixava enjoada) e ele atrás de

uma grande mesa escura compondo com o rádio ligado! Aquilo me intrigou profundamente porque era difícil conceber alguém ser capaz de compor uma obra complexa e densa ouvindo rádio...

Mas, por coincidência, anos mais tarde, estudava o Momoprecoce de Villa-Lobos no estúdio do compo-sitor italiano Luciano Berio, em Milão, enquanto ele compunha. Às vezes, parava para fazer uma observação sobre a obra...

Em 1939, Hans-Joachim Koellreutter, com um grupo de músicos, criou o Grupo Música Viva, seguido posteriormente de seus mais proeminentes discípulos: Claudio Santoro e Guerra-Peixe, aos quais se junta mais tarde Edino Krieger. Em 1946, o Grupo Música Viva declara “apoiar tudo o que favorece o nascimento e o crescimento do novo”.Este movimento representa, sem dúvida, o grande passo que influenciará as próximas gerações de compositores brasileiros, no sentido de estabele-cer uma ruptura e indicar uma nova direção que extrapole os modelos nacionalistas, que só trou-xeram uma regressão ao nosso desenvolvimento musical. Koellreutter, vindo da Alemanha, trazia para seus seguidores o conhecimento do sistema dodecafônico.

Embora a primeira peça dodecafônica de Santoro tenha sido composta em 1939, data de 1944 – mes-mo ano do primeiro manifesto do Grupo Música Viva – sua obra mais importante daquele período: a Música concertante para piano e grande orquestra. Encontrando esta partitura perdida numa gaveta, levei-a para Bruxelas e consegui que a Radio Télé-vision Belge mandasse fazer o material de orquestra e a programasse, pois Santoro não tinha como arcar com esse custo. Guardei esta única partitura original (dedicada a mim) e mandei uma fotocópia para Santoro. A obra foi apresentada apenas uma vez, estreada por mim e regida por Eleazar de Car-valho, com a orquestra da Rádio Televisão Belga em Bruxelas, 1964. Nunca mais foi executada!

Morto em 1989, da vasta lista de obras deixadas por Claudio Santoro, a Música concertante é uma das muitas desconhecidas no Brasil, entre tantas iné-ditas! Recentemente, doei esta histórica partitura original à Fundação Claudio Santoro.

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Música experiMental, ainda existe?

Voltando a Pierre Schaeffer,8 que em 1920 foi um pioneiro de experimentos com instrumentos ele-trônicos, em 1948 ele apresenta seu Concerto de ruídos (música concreta composta com sons naturais e instrumentais) na ORTF (Rádio Francesa). John Cage compõe Imaginary landscape nº 1 em 1939, com utilização de microfones, amplificação e manipu-lação, podendo ser considerada sua primeira peça de música eletrônica ao vivo. Quatro anos mais tarde, em 1952, Cage aplica seus procedimentos de chance na construção de sua peça para fita magnética William Mix, apresentando seu primeiro concerto de música “eletroacústica”, onde unia os procedimentos rudimentares eletrônicos aos concretos. Por conseguinte, tudo indica que 1939 a 1952 foram os anos de maior experimentação.

Sabe-se que uma obra experimental não significa ne-cessariamente ser uma obra-prima; no entanto, sem uma pesquisa e inquietação, não serão descobertas vias instigantes que contribuam para o desenvol-vimento de uma nova linguagem artística musical.

A década de 1960 nos trouxe um momento mar-cante do ponto de vista de uma revolução social, cultural e sexual (marcante também para a mulher no sentido criador), refletindo na música um retor-no ao liberto espírito dadaísta. Assim, para mim, a década de 60 foi como um divisor de águas, pois meu processo de contar uma “estória” não linear (usando teatro/música) data desta época.

Em 1961, o Movimento Música Nova foi pela primeira vez apresentado ao público na Bienal de São Paulo. Liderado por Gilberto Mendes, Willy Correa de Oliveira, Damiano Cozzella e Rogério Duprat, o Movimento Música Nova de São Paulo escolhe primeiro o caminho do seria-lismo, seguindo a escola de Darmstadt, e depois parte em direção a Cage, com a herança de Satie e do dadaísmo. Seguindo este caminho, Gilberto Mendes, durante os seus anos de experimenta-lismo (1963), como hoje ele se refere, compõe sua instigante peça Nascemorre e adota a poesia concreta de Haroldo de Campos.

Nos anos 1960, Santoro volta para um período experimental, explorando uma linguagem pós-serial, meios eletroacústicos, fazendo também uso de procedimentos aleatórios na sua música. Poucos anos depois, Jorge Antunes inicia sua investigação com osciladores e manipulação da velocidade de áudio por meio de fita magnética. Em setembro de 1961, minha peça Apague meu spot light estreou no Teatro Municipal de São Paulo, como parte da programação da Bienal de São Paulo, e no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, durante a Primeira Semana de Música de Vanguarda, evento concebido e realizado sob nossa curadoria. Este espetáculo em parceria com Luciano Berio representou a primeira apresentação de música eletrônica no Brasil, e teve a participação do Teatro dos Sete (com Fernanda Montenegro, Sergio Britto e Ítalo Rossi, entre ou-tros), assim como do compositor Luciano Berio.

Nesta mesma década, Stravinsky, convertido ao serialismo, me afirma que não existe outro cami-nho para a música que não este. Verdade que seu serialismo será sempre pautado por um caráter fortemente rítmico, isto é, stravinskiano! É o que noto ao trabalhar com ele os seus Movements para piano e orquestra, executando como solista a primeira audição na Bélgica com a Orchestre de la Radio & Télévision Belge, em 1962.

Foi em 1966, durante a apresentação da Segunda Semana de Música de Vanguarda no Rio, que trouxemos o compositor Iannis Xenakis e o per-cussionista Rich O’Donnell, com quem eu tinha

Claudio Santoro

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8 SCHAEFFER, Pierre. Traité des objets musicaux. Paris: Editions du Seuil, 1966.

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Edino Krieger

um duo (piano e percussão) nos Estados Unidos. Pela primeira vez no Brasil, executamos um reper-tório contemporâneo para a vasta instrumentação trazida por ele. Como duo ou solo, apresentamos várias estreias no Brasil de Xenakis, Myron Scha-effer, Santoro, Maderna, Ramati, Ben Johnston, Subotnick, J. Hiller, Berio, Cage, Stockhausen, além de uma homenagem ao centenário de Satie. Isto desencadeou um grande interesse no Brasil pelo repertório contemporâneo para percussão, que posteriormente foi liderado por John Boud-ler, originando uma geração nova de excelentes percussionistas.

Para esta ocasião, Berio nos indica que não deseja uma audição unicamente acusmática de Visage, e propõe improvisar com a participação cênica de Cathy Berberian ou uma bailarina, com algum equipamento extremamente básico de luz, o que também não poderia resultar em nada muito ela-borado e profissional.

Com exceção da montagem de algumas grandes peças de música - teatro e óperas contemporâneas -, na época, o conceito cênico para apresentação de concertos de música contemporânea era muito simples e quase infantil. Em vários compositores, a cena se limitava a pequenos gestos ou movi-mentos sempre ligados a um senso supostamente humorístico. Poucos conseguiram, como Mauricio Kagel, resultados surpreendentes de pequenos eventos musicais/cênicos. O próprio Stockhau-sen, fora das poucas produções completas de suas óperas, e tratando-se de seus concertos, criava sua própria luz (usando apenas um canhão!) e dirigia a parte cênica, resultando visualmente muito pobre, apesar da perfeição musical.

As breves observações que faço são relevantes para situar um aspecto do desenvolvimento da criatividade musical, inserindo a brasileira, que muitas vezes é marginalizada dos compêndios internacionais da música contemporânea aci-ma do Equador. Baseio-me principalmente em quarenta anos de vivência, permeando algumas vezes esses caminhos chamados experimentais. Deixo aos teóricos a possibilidade de analisá-los e de catalogá-los no seu devido tempo e na sua devida importância.

Minha trajetória no Brasil foi sempre um pouco solitária, sem afiliar-me a grupos, manifestos ou coisas do gênero (embora tenha tido a gratificante colaboração de intérpretes e artistas que me acom-panham por décadas). Assim, neste texto, lembro alguns fatos que têm ficado à margem da pesquisa de nossos musicólogos - homens, empenhados na reconstrução da música contemporânea brasileira. Afinal, ainda está por ser escrita a musicologia brasi-leira sob a ótica da mulher e da literatura de gênero.

A informação e os mecanismos da mídia eletrônica têm afetado nossa visão do mundo e, portanto, interferem também na concepção e construção do formato de uma performance. A arquitetura do teatro está ainda por ser redefinida. Nós vivemos numa cultura visual. Entretanto, nossos concertos não mostram nenhuma preocupação com o ato teatral de uma performance.

Em nenhum outro período histórico houve tal distanciamento entre a verdadeira criação musical e o ouvinte.

Música experimental, ainda existe? Acho que não. O que existe é um somatório de pesquisas musicais, muitas vezes quase anônimas, que refletirão nossos dias, e o artista como a última utopia da criação.

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João Gilberto e Stan Getz

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Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de História da USP.Marcos Napolitano

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1 NAPOLITANO, Marcos. Síncope das ideias: a questão da tradição na MPB. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007.

Na noite de 29 de setembro de 1968, na final do Festival Internacional da Canção, a plateia de vinte mil pessoas, sem falar nos milhões de telespectadores, estava em suspense. Qual canção ganharia a fase na-cional do Festival? Notadamente jovem e estudantil, a plateia preferia Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, compositor e cantor, ídolo máximo das esquerdas. Mas o júri, por uma diferença de três pontos, preferiu dar a vitória à Sabiá, canção sutil, melancólica e sofisticada, de Chico Buarque e Tom Jobim. Quando o apresentador Hilton Gomes, sole-nemente, anunciou Pra não dizer que não falei das flores para o segundo lugar, o público recebeu o resultado com uma enorme vaia e explodiu num coro uníssono: “É marmelada! É marmelada!”. Vandré tentou acal-mar a multidão, mas só o conseguiu quando proferiu uma frase que ficou famosa: “A vida não se resume em festivais”. Em seguida, acompanhado por um coro de vinte mil vozes, sentado num banquinho e ao som de um violão, aqui colocados em um sentido ao mesmo tempo diferente e tributário de João Gilberto, Vandré cantou a música que o transformou num verdadeiro mito vivo da cultura popular brasileira: “Caminhando e cantando e seguindo a canção....”

O resto é história. E memória

A princípio, entre a revolução estética da bossa nova, de 1959, e a revolução política proposta pelas “can-ções participantes”, em 1968, parece haver um abismo total. Mas, além de banquinhos e violões, utilizados tanto por João Gilberto quanto por Geraldo Vandré, entre outros, havia um fio tênue a unir estes dois momentos mágicos, sinalizadores de uma época em que a canção ocupou o centro da esfera pública. Em outras palavras, a canção politicamente engajada dos

anos 1960 era filha rebelde da bossa nova que, por sua vez, era filha rebelde do samba urbano carioca dos anos 30. Foi nessa estrutura nada elementar de parentesco que se construiu uma dada tradição mu-sical brasileira, mesclando tradições que vinham das classes populares com o que havia de mais atualizado na música popular internacional.1 Essa mistura nem sempre foi harmônica e consensual, mas demarcou uma atitude, um procedimento criativo, que caracteri-zou o cancionista brasileiro do século XX, afirmando a ruptura na tradição e a tradição da ruptura, como afirmou certa vez Caetano Veloso.

Foram dois cancionistas ligados à bossa nova que politizaram deliberadamente a canção, como um pro-jeto estético e ideológico consciente e assumido: Sérgio Ricardo e Carlos Lyra. Entre 1961 e 1963, nos anos agitados do governo João Goulart, os dois composi-tores gravaram clássicos da canção engajada brasileira, ainda com uma levada de bossa nova: Zelão, Barravento, Esse mundo é meu (Sérgio Ricardo) e Influência do jazz , Aruanda, Feio não é bonito (Carlos Lyra). Estas canções traziam os elementos temáticos que se consagrariam como paradigma de canção de protesto: o homem comum do povo, simbolizado por alguns tipos ide-ais – o favelado, o sertanejo, o pescador – como os verdadeiros heróis da história; o estabelecimento de uma nova geografia política da nação-povo – o morro, a comunidade praieira e o sertão; o papel da canção (bem como do “cantador”), heróis da consciência na-cional-popular. O objetivo era construir, sob as bases melódico-harmônicas da bossa nova, um novo edifício musical, cujo acabamento, fachada e decoração finais procuravam incluir elementos da tradição popular. Neste contexto, os jovens compositores engajados foram ao encontro do povo, seguindo a proposta no

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Noites de gala, dias de luta

manifesto do Centro Popular de Cultura da UNE, em 1962, mas indo além dos termos do seu famoso “manifesto”, que pedia ao artista uma simplificação da sua linguagem em nome da comunicabilidade com o “povo” dos sertões e do morro, lugares míticos da so-nhada “revolução brasileira” projetada sob o governo João Goulart e abortada pelo golpe em 1964.2 Ao lado de Nara Leão, lançaram as bases da “Moderna Música Popular Brasileira”, sublimando na música popular a utopia impossibilitada pela reação conservadora que triunfaria em 1964, qual seja: a afirmação de um país moderno, democrático e sofisticado pela integração de classes, etnias e regiões.

Antes do golpe militar, os cancionistas engajados tentavam conciliar suas carreiras profissionais com as atividades de militância, sobretudo na área cultural do movimento estudantil. Além de gravar discos para a indústria fonográfica, era comum participar de projetos coletivos, cantar nas praças e portas de fábricas, nos sindicatos urbanos e ru-rais. Depois de 1964, esse elo foi cortado, com a imediata repressão aos movimentos e organizações populares que não precisou do ato institucional nº

5 para ser desencadeada. A canção Marcha de

Quarta-Feira de Cin-zas, composta por Carlos Lyra em

1963, ganhava uma dimensão proféti-

ca, reapropriada no pós-golpe como hino

da resistência: “Acabou nosso carnaval/ Nin-guém ouve cantar can-ções/.../ E no entanto é preciso cantar/ É preciso cantar/ E alegrar a cidade”.

Curiosamente, no caso da música popular, o con-texto autoritário, paradoxalmente, só fez aumentar o circuito das canções engajadas, sobretudo entre os jovens estudantes mais politizados. Em um primeiro momento, foram os espetáculos ao vivo, tais como Opinião (1964), Arena conta Zumbi (1965) e os shows estudantis do Teatro Paramount em São Paulo, que ampliaram este circuito. No mesmo ano de 1965, surgiam os festivais da canção e o programa Fino da bossa, na TV Record de São Paulo. No ano seguinte, essa mesma emissora assumiu a realização dos fes-tivais da canção, consolidando a febre televisiva em torno do gênero, que durou até o início dos anos 70.

Para além de significar uma “ida ao povo”, por parte do jovem músico engajado, estes espetáculos são reveladores de um processo de “educação sen-timental” para redescobrir as bases populares de um projeto nacional, estético e ideológico a um só tempo, cuja derrota de 1964 ainda não era vista como definitiva. Nascia o conceito moderno de Música Popular Brasileira (MPB), cuja sigla passou a ser escrita com maiúsculas, como se fosse um partido político e poético. Mais do que um gênero musical, a MPB transformou-se em instituição sociocultural e rótulo de mercado, chancela do gosto hegemônico às canções engajadas dotadas de qualidade poética e musical. A chegada deste tipo de música na televisão potencializaria como nunca este processo de popu-larização do gênero. A partir de então, além das pla-teias estudantis, os telespectadores de outras faixas socioculturais e etárias teriam acesso à “moderna” MPB. Se o rádio teve papel central na formatação da canção brasileira dos anos 1930 e 1940, a televisão desempenharia papel semelhante nos anos 1960.

A maior estrela da “música na era da TV” foi Elis Regina, contratada pela TV Record de São Paulo para apresentar o Fino da bossa. Apesar do nome, o programa veiculava canções que, em sua maioria, pareciam negar o intimismo, as sutilezas musicais e as poéticas amenas das praias da Zona Sul do Rio, que consagraram a bossa nova. Cantores e compositores do passado, oriundos do rádio, sambistas de morro e jovens cantores egressos dos shows estudantis dividiam o palco sob o comando festivo de Elis

2 CONTIER, Arnaldo. Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (Os anos 60). Revista Brasileira de História, Anpuh/Humanitas/Fapesp, São Paulo, v. 18, n. 35, p. 13-52, 1998.

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acusada de fazer a música brasileira “regredir” aos anos 1950, dado o seu exagero performático e o abuso de ornamentos e virtuosismos vocais, antítese do despojamento sofisticado e elegante conquistado a partir de João Gilberto. Chico Buarque, por sua vez, será um dos alvos das críticas dos tropicalistas, acusado de ser um “avô” da música popular brasilei-ra aos 24 anos, dada sua filiação estética, ao menos naquele momento, ao samba urbano dos anos 30. Essas tensões nascidas nos anos 60 iriam se aplacar somente na década seguinte, no momento em que a sigla MPB parecia suficientemente larga e prestigiada para abarcar todos os estilos e nomes musicais con-sumidos pelas classes médias de oposição ao regime militar. Sintomaticamente, dois álbuns antológicos sinalizavam que os antigos desafetos e incompatibi-lidades estéticas estavam superados: Chico e Caetano juntos e ao vivo (1972) e Elis e Tom (1974).

Um dos mitos que a memória social criou sobre a época é a visão romantizada dos festivais da can-ção, tidos como eventos cuja faceta comercial era subordinada aos objetivos culturais e políticos. Não obstante o caráter meio artesanal daqueles programas, inviabilizados com o domínio do novo padrão técnico e empresarial que a Rede Globo imprimiria a partir dos anos 1970, os festivais nasceram cercados de um aparato comercial, sobretudo os Festivais de MPB (TV Record) e o Festival Internacional da Canção (parceria da Secretaria de Turismo da Guanabara com a Rede Globo). Entre 1966 e 1972, primeiro na TV Record e depois na Rede Globo, os festivais marca-ram uma experiência visual da música, ampliando os circuitos sociais da canção, particularmente, da MPB nacional-popular, que tinha espaço privilegiado nestes eventos, ao menos até o “susto tropicalista” de 1968. Grandes clássicos foram veiculados nos festivais, como Arrastão (Edu Lobo/Vinicius de Moraes), A banda (Chico Buarque), Disparada (Geraldo Vandré), Ponteio (Edu Lobo/Capinam), Sabiá (Chico Buarque/Tom Jobim), Alegria, alegria (Caetano Veloso), Domingo no parque (Gilberto Gil), entre tantas outras.

Do ponto de vista da indústria fonográfica, a con-solidação da MPB e de seus ídolos (quase todos compositores e cantores a um só tempo) significou a constituição de um elenco de artistas de contrato fixo que também supriam, de maneira eficaz e cons-tante, a demanda por novas canções de qualidade.

Regina e Jair Rodrigues. Longe de um clima solene de comício, a canção engajada brasileira se consagrava comercialmente na TV como parte de um grande baile nacionalista, com pitadas de hot jazz.

De qualquer forma, o sucesso de audiência do Fino da bossa demonstrava a viabilidade de veicular can-ções na TV numa escala até então nunca vista, para além dos programas de variedades tão marcantes na grade televisual dos anos 50. Assim nasceram os len-dários festivais da TV Record de São Paulo, produzi-dos por Solano Ribeiro. Ao lado de Chico Buarque de Hollanda, outro ídolo televisual de primeira hora, Elis ajudou a ampliar o circuito sociocultural que consumia MPB, agregando antigas audiências radio-fônicas que passaram ao largo dos debates e rupturas estéticas promovidas pela bossa nova de 1959. Seja no plano da interpretação (Elis) e da composição (Chico), ambos apontavam para uma nova relação entre tradição e modernidade. Não por acaso, ambos foram muito criticados pelas correntes de opinião que defendiam um conceito menos conciliador da modernidade musical. Elis Regina foi duramente questionada pela crítica alinhada com a bossa nova,

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Noites de gala, dias de luta

Gilberto Gil, Nara Leão, Caetano Veloso e os Mutantes

NL 001223. Museu da Imagem e do Som

Esta demanda tinha seu epicentro nos setores mais escolarizados da classe média, cada vez mais identi-ficada com a oposição ao regime, ainda que pouco estivesse disposta a apoiar aventuras políticas mais radicais contra ele, sobretudo depois do verdadeiro massacre sofrido pela luta armada de esquerda entre 1969 e 1972. Os “anos de chumbo” e a censura que marcou aquele momento histórico, ao invés de diluir a MPB, ampliaram ainda mais o seu mercado, pois a simples experiência de ouvir canções, ainda que na surdina do ambiente privado, ganhava ares de resis-tência cultural e política. Além do deleite estético.

Os discos de MPB eram voltados para uma parcela com maior poder aquisitivo da população, permitin-do a mobilização dos melhores músicos, técnicos e estúdios, mesmo que isto custasse mais caro do que um disco voltado para as camadas mais populares. Ou seja, ainda que vendessem menos, quantitativamente falando, possuíam maior valor agregado e apontavam para uma vendagem de longo prazo, pois a indústria passava a oferecer o artista e não apenas a canção. O mer-cado de canções brasileiras, que teve um forte impul-so com a bossa nova, ampliava-se sob a hegemonia da MPB. Para se ter ideia da importância comercial destes anos mágicos da canção brasileira, basta dizer que, em 1959, cerca de 35% do mercado era ocupado por canções gravadas no Brasil. Em 1969, esta fatia do mercado fonográfico havia saltado para 65%.3 Mesmo vendendo menos do que as canções de feição mais “popular”, a MPB ocupava faixas de consumo

com maior poder aquisitivo, gerando maiores lucros para as empresas. Para a indústria, do disco e da TV, a canção engajada de esquerda era um bom negócio. Isto não diminui o papel político da canção, mas o coloca diante de um amplo conjunto de dilemas e contradições que não pode passar despercebido por quem deseja conhecer aquele momento histórico de maneira mais aprofundada.

Prova deste sucesso comercial consolidado ainda nos anos 1960 foi a corrida dos cantores da Jovem Guarda “alienada”, vista como antítese da MPB “en-gajada”, aos festivais da canção, particularmente no festival de 1967. Detalhe: a participação dos jovem-guardistas neste ano se fez defendendo músicas com toques de protesto. Roberto Carlos, o Rei, cantou Maria Carnaval e Cinzas, um samba melodioso que fala das agruras da infância na favela. Erasmo Carlos, o Tremendão, cantava Capoeirada, canção com mote nacional-popular. Demetrius interpretou Minha gente, que falava da dura vida do povo. Esse cruzamento de fronteiras na direção da MPB demonstra a impor-tância comercial e o prestígio social que este gênero possuía, fazendo com que os jovemguardistas aban-donassem momentaneamente as guitarras elétricas para empunhar o estandarte do engajamento, ainda que isto parecesse postiço.

A guitarra elétrica, vista pela esquerda nacionalista como símbolo do imperialismo cultural, foi motivo até de passeata, ocorrida justamente um pouco antes

3 NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959/1968). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001.

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do 3º Festival da Record, em julho de 1967. Mas, se a Jovem Guarda abandonava as guitarras para cantar MPB, dois compositores que faziam partes dos seus quadros inseriam a guitarra elétrica nos festivais, causando certo escândalo nos nacionalistas: Caetano Veloso e Gilberto Gil defenderam suas canções ino-vadoras – Alegria, alegria e Domingo no parque – que não apenas veiculavam letras com temas mais urbanos e cotidianos, menos épicas e heroicas, mas apresenta-vam arranjos eletrificados, verdadeira heresia para os cultores do violão como símbolo da “pureza musical brasileira” que, a rigor, nunca tinha existido. Estavam lançadas as bases do Tropicalismo musical.

O Tropicalismo consagrou-se logo no início de 1968 como um movimento que pretendia ampliar o con-ceito de crítica social e política, presente nas canções de MPB, para uma crítica de tipo comportamental e cultural, inspirada nos temas da contracultura e nas estéticas mais radicais da vanguarda literária modernista, como a antropofagia de Oswald de Andrade.4 O festival da TV Record de 1968 foi o palco de consagração dos tropicalistas que, além de tudo, ganharam um programa de televisão próprio (Divinos e maravilhosos), do qual, infelizmente, nada sobrou, ao que se sabe. No 3º Festival Internacional da Canção, do mesmo ano, ao defender a polêmica canção É proibido proibir, Caetano Veloso provocou a ira da plateia politizada, pois a música não apenas mergulhava de vez na estética da contracultura, cri-ticada pela juventude politizada de esquerda, como também apresentava uma letra na qual a revolução era apresentada na sua forma libertária, erótica e rebelde. Aos berros, Caetano reagiu contra o conservadorismo musical da plateia: “Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder [...] Se vocês forem em política, como são em estética, estamos feitos”.

Alguns dias depois, na final do 3º FIC, até então um festival mais bem comportado e sem grande impac-to na opinião pública (ao contrário do Festival da Record), a politização da canção brasileira atingia o ápice: Vandré apresentava uma versão de revolução mais aceita pela juventude de esquerda da época, Pra não dizer que não falei das flores. Os “indecisos cordões”

que “ainda fazem da flor seu mais forte refrão/ e acreditam nas flores vencendo o canhão” eram criti-cados. Havia chegado a hora da luta armada contra o regime militar, os grupos guerrilheiros já estavam em franca atividade e o Brasil já tinha a sua Marselhesa: “Vem vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”.

Quando a hora chegou, não veio na forma da revolução cantada e decantada pela esquerda, mas como repressão policial-militar e censura. Este novo impulso repressivo, momentaneamente, desorganizou o mercado de festivais da canção – eventos que precisavam de público vibrante e participativo em torno de canções engajadas – e fechou um ciclo iniciado em 1959.

A vida musical brasileira não se resumiria aos festi-vais da canção; o tipo de canção que se confundia com a sigla MPB, tinha vindo para ficar. A questão é que o mesmo autoritarismo que cerceava as liber-dades públicas, à medida que era modernizante do ponto de vista econômico, não podia conter por muito tempo os efeitos sociais, culturais e políticos de um processo estrutural que ele mesmo incentivava. Desta contradição, nasceu o Brasil contemporâneo, do qual a MPB é testemunho involuntário e sintoma cultural, ainda que a utopia que a caracterizava tenha sido derrotada politicamente. Nos anos 1970, com o mercado ainda mais ampliado, ela seria a trilha sonora da resistência democrática até perder espaço comercial nos anos 80, em-bora tenha permanecido como signo de prestígio e qualidade cultural até hoje. Se não fez a revolução, ajudou a construir uma memória social que, contraditoriamente, fez triunfar uma visão crítica do período do regime militar, derrotando na batalha cultural aqueles que tinham triunfado na batalha política.5

4 FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 1995.5 Ver também: MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.

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Nara Leão, Zé Kéti e João

do Vale no show Opinião (1964-1965), marco da

canção politicamente

engajada brasileira

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A nata da MPB reunida no jardim da casa de Vinicius de Moraes, em agosto de 1967. A partir da esquerda: Lenita Plonkzinska, Edu Lobo, Tom Jobim, Torquato Neto, Caetano Veloso, Capinam, Paulinho da Viola, Sidney Miller, Zé Kéti, Sonia Hirsch, Olívia Hime, Francis Hime, Luiz Eça, João Araújo, Dori Caymmi, Linda Batista, Chico Buarque, Luis Bonfá, Tuca, Maria Helena Toledo, Braguinha, Nelson Motta, Jandira Negrão de Lima e Vinicius de Moraes

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Torquato Neto

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Socióloga. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Professora do curso de Especia-lização em Gestão da Comunicação e Marketing Institucional da Universidade Castelo Branco, Rio de Janeiro.

Janaina Faustino Ribeiro

Torquato Neto e as discussões sobre a música popular brasileira nos anos 1960

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LUZ,CÂMERA:A MÚSICABRASILEIRA

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Elis Regina por Jorge Ivan. Última Hora, 1972

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TorquaTo NeTo

Sports, entre março e outubro de 1967.4 A hipótese é que a coluna constituiu um objeto privilegiado de diversas disputas e contradições relacionadas aos projetos de construção da música popular, sendo Torquato um dos principais agentes no processo. Em um primeiro momento, abordaremos sua bio-grafia em consonância com as articulações em torno dos movimentos musicais dos anos 60. Alguns tex-tos da coluna serão discutidos logo em seguida a fim de demonstrar sua visão acerca da música nacional.

Torquato Neto e a música popular brasileira dos anos 1960

Notadamente, como pano de fundo das lutas polí-ticas e estéticas do período pós-64 figurava a busca pela construção de uma nação livre do modelo au-toritário implantado e, ainda, integrada aos difusos pressupostos de brasilidade e modernidade. Era imprescindível que nossas manifestações culturais fossem observadas como uma espécie de reposi-tório de “autênticas raízes” nacionais, manancial onde artistas e intelectuais deveriam encontrar elementos para suas criações sem deixar, contudo, de preservá-lo de qualquer desvirtuamento ou es-trangeirismo. Esta constituía a principal “bandeira” da chamada cultura “nacional popular”.5

Um dos principais objetivos das expressões artís-ticas inspiradas na proposta “nacional-popular” era encontrar referências estéticas que tornassem possível a afirmação ideológica da esquerda no campo da cultura. No caso específico do campo musical, o impasse político-ideológico vivido em função da frustração causada pelo golpe de 1964

Apesar de praticamente esquecido, Torquato Neto foi um dos mais relevantes e criativos personagens do meio cultural brasileiro entre as décadas de 1960 e 1970. Sua atuação se deu em vários campos e movimentos artísticos, sendo balizada pela tomada de posição sempre vigorosa em favor dos princí-pios nos quais acreditava. Poeta, letrista de canções populares, crítico musical, polemista, jornalista e cineasta, Torquato converteu-se em um dos prin-cipais agentes formadores de critérios valorativos da música popular brasileira contemporânea.

A personalidade combativa e a incapacidade de fa-zer concessões podem ser apontadas como fatores determinantes para que sua figura passasse a ocupar um lugar de subalternidade em nossa historiografia cultural. Estas são indicações importantes para es-clarecer alguns dos porquês deste artista ter entrado para a história como uma espécie de coadjuvante maldito, cuja imagem oscila entre a do letrista sui-cida e romântico da Tropicália, e aquela do “mito do poeta morto jovem”,1 erguido sob a égide da contracultura. Como salienta seu biógrafo Toninho Vaz,2 Torquato tornou-se um “tema-tabu”.

Aqui pretendemos enfocar a contribuição de Tor-quato para a reflexão sobre a música popular. Este artigo deriva de uma pesquisa de mestrado que buscou resgatar alguns de seus pressupostos de construção de um ideário musical brasileiro.3 Nosso objetivo é recuperar algumas destas ideias, marcadas por contradições, sutilezas, idas e vindas, lançando luz sobre o período em que o poeta exerceu a função de crítico musical. Para tanto, realizamos uma análise da coluna “Música Popular”, publicada no Jornal dos

1 Nos dez anos de morte de Torquato Neto, Paulo Leminski escreveu para o jornal Folha de São Paulo, em 7 de novembro de 1982, um artigo chamado “Os últimos dias de um romântico”, em que afirmava: “Torquato é, talvez, o único ‘mito’ poético dessa geração que aí está, mito, aqui, no sentido originário de figura-síntese de uma ideia com força e valores coletivos. Arquétipo. Modelo. Forma-cristal. Para esta geração (como delimitá-la?). Torquato encarna um dos mitos mais caros de nossa gente: o mito do poeta morto jovem. Esse mito de extração romântica tem uma linhagem que começa no Werner de Goethe, passa por Musset, Nerval, e, entre nós, por Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Augusto de Campos, Cruz e Souza, os ‘prematuramente desaparecidos’”. (LEMINSKI, Paulo. In: VAZ, Toninho. Pra mim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p. 207-208).2 Ibidem, p. 11.3 RIBEIRO, Janaina Faustino. A crítica musical dos anos 1960 e o processo de construção da MPB: uma análise da coluna “Música Popular”, de Torquato Neto. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. A pesquisa contou com os auspícios do programa Bolsa Nota 10 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).4 Vale lembrar que a única referência encontrada sobre a coluna “Música Popular” foi o artigo de Frederico Coelho (COELHO, Frederico. A formação de um tropicalista: um breve estudo da coluna “Música Popular”, de Torquato Neto. Estudos Históricos, CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, v. 2, n. 30, p. 129-146, 2002). Este foi o ponto de partida para o desenvolvimento de nossa análise na pesquisa de mestrado.5 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004; NAPO-LITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001.6 NAPOLITANO, Marcos apud RIBEIRO, Janaina Faustino, op. cit., p. 47-49.

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serviu como estímulo à procura pela demarcação de novos modelos culturais em um contexto por um lado emergente e difuso, e por outro, crescen-temente organizado e orientado pelo mercado. Este foi um dos grandes desafios naquela época de nas-cimento da “MPB” – símbolo máximo em torno do qual giravam as disputas: criar um estilo musical brasileiro, engajado e ao mesmo tempo voltado para um público renovado e inserido no contraditório ambiente de modernização nacional.

Também chamada de ‘canção engajada’ ou ‘música de protesto’, a MPB foi forjada por estes artistas identificados com a esquerda a fim de contribuir no processo de “esclarecimento” das massas e de resgate de valores nacionais que consideravam “autênticos”. Poderíamos caracterizar a MPB da seguinte forma: (1) uma sonoridade gerada nos programas e festivais de TV, possuidora de um sentido ideológico reconhecível; (2) um tipo de música que valorizava as inovações esté-ticas propostas pela bossa nova desde finais dos anos 50, cujos artistas ambicionavam se legitimar através da conservação e preservação de traços da nossa história musical considerados tradicionais ou folclóricos e, por fim, (3) uma sonoridade que almejava realizar-se como um produto comercial plenamente viável, disputando espaço com outras vertentes musicais da época. Isto significa que, como resultado de um conjunto de in-teresses – comerciais e ideológicos –, a MPB ilustrava a busca pela definição de nossa identidade através da conciliação tensa entre tradição e modernidade.6

Assíduo frequentador da sede do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes na cidade do Rio de Janeiro, Torquato foi profundamente influenciado por este ambiente intelectual, politica-mente voltado à esquerda, e enxergou no Centro o espaço onde poderia desenvolver projetos políticos pautados pela ideologia nacional-popular. A sede do CPC era um lugar em torno do qual aquela geração de artistas se aglutinava e refletia sobre as possibilidades de desenvolvimento do país através da cultura. Ne-nhum dos artistas à época – incluindo aqui Caetano Veloso e Gilberto Gil, que se tornariam, ao lado de

Torquato, tropicalistas mais tarde – deixou de sofrer algum tipo de influência da ideologia cepecista.7

Por não ser cantor ou instrumentista, Torquato não conseguia sobreviver somente da música e tirava seu sustento da atividade jornalística realizada na agência de notícias criada no Aeroporto Internacional do Galeão (antes de se transferir para o Jornal dos Sports, em 1967). Paralelamente a esta atividade, ele escrevia poemas para serem musicados pelos amigos artistas. Entre 1965 e 1966, Torquato compôs diversas canções em parceria com nomes como Gilberto Gil e Edu Lobo – moder-nista convicto e engajado artista do CPC – entre outros importantes compositores da MPB. Influenciado pelo modernismo brasileiro dos anos 20, Torquato agia, ainda, como um “homem de bastidores”, uma espé-cie de ideólogo que pensava as intervenções artísticas escrevendo textos críticos e manifestos.8 Todas estas atividades lhe deram a legitimidade necessária para se propor a ser também crítico musical.

Segundo Marcos Napolitano, foi a partir de 1967 que as contradições internas ao cenário musical brasileiro se avolumaram. Alguns aspectos foram decisivos neste processo, dentre eles: o recrudescimento do aparato militar aliado à exacerbação das divergências políticas e das disputas entre os músicos por espaços privilegiados no mercado de bens simbólicos; e o “novo lugar social” da canção popular, ratificando as intrínsecas relações existentes entre a televisão comercial, através dos festivais, e os artistas da MPB politizada. Algumas perguntas foram postas para a canção brasileira engajada àquela altura: onde, como e para quem cantar naquela época? Onde estaria o “povo brasileiro”, este idealizado receptor das mensagens esclarecedoras? Onde e como aqueles artistas poderiam encontrá-lo?9

Em meados de 1967, desilu-dido com as ideias da pers-pectiva nacional-popular, Torquato sugeriu, ao lado dos amigos e parceiros Ca-

7 PIRES, Paulo Roberto (Org.). Torquatália: do lado de dentro. v. 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.8 VAZ, Toninho, op. cit.9 NAPOLITANO, Marcos apud RIBEIRO, Janaina Faustino, op. cit., p. 47.10 PIRES, Paulo Roberto, op. cit., p. 63. Grifos do autor.

PNq 00051. Museu da Imagem e do Som

Caetano Veloso e Gilberto Gil

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TorquaTo NeTo

O panorama crítico da década de 1960

As principais linhas de força concernentes ao pensa-mento da crítica musical do período se definiram ao longo dos anos 60, depois do lançamento da bossa nova. De um lado estavam os defensores do padrão estabelecido nas críticas realizadas pela Revista de Música Popular (publicada em finais dos anos 50), baseado no nacionalismo de esquerda e em pressupostos de autenticidade; no lado oposto figuravam nomes cujos critérios de avaliação e interpretação musical demons-travam, do mesmo modo com base em alguns parâ-metros, maior flexibilidade e adaptação. Ao primeiro grupo alinhavam-se críticos como Lúcio Rangel, Sérgio Cabral e, sobretudo, José Ramos Tinhorão. Augusto de Campos, Silvio Túlio Cardoso, Ary Vasconcellos e Nelson Motta seriam os componentes daquilo que identificamos como esta segunda corrente estética.13

A coluna “Música Popular” retratava não apenas este período de transformação na música popular brasileira como, ainda, os debates sobre os critérios valorativos para apreciá-la. Torquato escrevia com periodicidade quase diária no suplemento cultural “O Sol” do Jornal dos Sports, ao lado de colunistas como Mister Eco, Isabel Câmara e Fernando Lobo. O Jornal dos Sports não possuía o prestígio de outras publicações como o Jornal do Brasil ou o Correio da Manhã. Todavia, o status da coluna não estava atrelado à importância do jornal, mas ao crescente prestígio de Torquato, que já se destacava como uma espécie de testemunha ocular dos fatos narrados e possuía, em seu círculo de amizades, artistas como Chico Buarque, Capinam, Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Seguindo a periodização elaborada por Frederico Coelho acerca das duas fases por que passou a colu-na, salientamos que na primeira Torquato endossava com veemência e a partir de rígidos critérios valorati-vos o que chamava de ‘boa música popular’, aliando-se ao projeto nacional-popular da intelectualidade de esquerda dos anos 60. Na segunda, em contato com

etano Veloso e Gilberto Gil, a implosão daquele ambiente da intelectualidade de esquerda, tornan-do-se um dos idealizadores da Tropicália. No texto “Torquatália III”, Torquato assinalava: “Na música popular brasileira [...] a repressão é absolutamente evidente: ninguém, a bem da verdade, esconde o seu jogo. Estamos todos ao redor da mesa, a mesma mesa, e somos vistos. Pois é: é preciso virar a mesa [...]”.10 Assim, a Tropicália nasceu em franco diálo-go com a MPB e, talvez, a causa de tantos embates entre os artistas daquela geração tenha sido o fato de que a proposta de ampliação das possibilidades de criação em seu interior partiu de “dentro”, isto é, de um grupo de amigos universitários, de classe média que, até então, aparentava coesão em suas propostas ideológicas, estéticas e políticas.

“Desconfiando dos mitos nacionalistas e do dis-curso militante do populismo, percebendo os im-passes do processo cultural brasileiro e recebendo informações dos movimentos culturais e políticos da juventude que explodiam nos EUA e na Europa [...]”,11 a Tropicália promoveu uma releitura daquilo que se considerava nossa tradição e colocou em xeque as manifestações culturais apreciadas pelos engajados como nossos valores “naturais” ou “au-tênticos”. Daí certa rejeição tropicalista ao samba, exaltado pelos músicos da MPB como a sonoridade nacional e popular por excelência que, em função disso, deveria ser resguardada.12 O objetivo era “desmontar” o projeto nacionalista e ocupar todos os espaços nos meios de massa para difundir seu ideário universalista, integrado aos pressupostos de modernização da cultura internacional-popular.

A coluna “Música Popular” ilustrou essas duas fases vividas por Torquato Neto. Neste espaço o poeta construiu um complexo e sutil panorama acerca da música popular brasileira, demonstrando as diversas contradições valorativas e ideológicas nas quais estava envolvido. Alguns destes parado-xos serão apresentados a seguir.

11 HOLLANDA, Heloisa Buarque, op. cit., p. 61.12 Como é possível notar através da escuta dos álbuns tropicalistas, não há qualquer referência ao samba em termos melódicos, esti-lísticos, harmônicos ou mesmo de letra nas canções.13 NAVES, Santuza Cambraia. Projeto Crítica cultural e cultura popular. Núcleo de Estudos Musicais, Universidade Cândido Mendes, 2000 apud RIBEIRO, Janaina Faustino, op. cit., p. 137-140.14 Frederico Coelho focou sua análise nestas fases pelas quais passou Torquato Neto ao longo do ano de 1967. Seu objetivo foi ana-

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formal, Torquato considerava que os músicos da JG pecavam pela falta de originalidade e por imitar o iê-iê-iê internacional. Para ele, esta sonoridade era mal construída e pouco elaborada. O proble-ma, neste sentido, não era apreciar canções em inglês – o que ele salienta que fazia “com prazer” –, mas copiar o elemento estrangeiro sem usá-lo na produção de algo novo.

Os textos intitulados “Festival” e “Festival (con-clusão)”, publicados respectivamente em 5 e 6 de abril de 1967, demonstram uma visão projetiva de Torquato. Defendendo a relevância dos festivais para a consagração daquela que, para ele, era “a melhor música brasileira”, o poeta criticou dura-mente o governo brasileiro por identificar o que seria uma falta de comprometimento em relação à importância do papel da música na política cultu-ral. Em tom agressivo, ele questionou: “A Divisão Cultural [um departamento do Ministério da Cul-tura] existe para isso também, ou não? A não ser que Música Popular não esteja catalogada entre as formas de cultura dignas do apoio oficial, o que é uma pena. E mais: uma burrice”.16

Fazendo referência a Chico Buarque, Edu Lobo e Geraldo Vandré, todos artistas pertencentes ao grupo do qual fazia parte, Tor-quato, exultante em função das críticas positivas recebi-das de jornalistas e artistas estrangeiros durante o Festival Internacional da Canção, defendeu uma postura estraté-gica para aproveitar “a oportunidade de intro-duzir a nossa música no mercado internacional”. Ao exclamar que “é rica e bela a música brasileira”, o compositor provocou

novos formatos artísticos e com o ‘grupo baiano’ (como os tropicalistas eram chamados pela imprensa à época), o compositor reviu suas posições, passando a criticar os músicos engajados pelo que entendia ser sua estreiteza nacionalista.14 Assim, com base nesta formulação, partimos do pressuposto de que Tor-quato terminou se filiando às duas correntes críticas mencionadas, pois ambas estavam perpassando, em conflito, a sua construção discursiva sobre a música popular brasileira. Vejamos de que modo estas visões se articulavam em seus escritos.

A coluna “Música Popular”

Torquato Neto frequentemente era acusado pelos leitores do Jornal dos Sports de ser intransigente com os artistas da Jovem Guarda. No texto “Da corres-pondência”, publicado em 18 de abril, ele explicou os motivos de suas constantes críticas negativas àqueles músicos. Referindo-se às cartas agressivas que vinha recebendo de fãs de Roberto e Erasmo Carlos, o crítico reconheceu sua “má vontade”. E foi categórico: “Essa ‘má vontade’ existe realmente. E existe na medida em que o iê-iê-iê brasileiro é quase totalmente débil mental, pobre e burro”. No mo-mento seguinte, salientou que costumava apreciar, “com prazer”, os Beatles e o grupo The Mamas and The Papas. Fazendo distinções, escreveu: “Mas daí aos Brazilian Bitles ou a Renato e seus Blue Caps vai uma distância que eu não percorro”. Mencionando uma suposta “imbecilidade de Erasmo Carlos” e ratificando ser “impossível aceitar a ‘ternurinha’ analfabeta de Vanderleia”, Torquato elogiou apenas Roberto Carlos, afirmando que o artista “tem boa voz, é musical e afinado”.15

Aqui é possível notar que, nesta fase, Torquato sofria uma forte influência das ideias cepecistas. Este trecho deixa evidente que o critério valorativo utilizado para depreciar a Jovem Guarda não era o nacionalismo, mas sim os aspectos propriamente formais da música. Preocupado com a pesquisa

lisar o processo de formação da estética tropicalista do compositor e do grupo do qual fazia parte. Aqui pretendemos explorar de que forma Torquato terminou colaborando para tornar ainda mais complexa a construção de uma identidade musical – brasileira e não propriamente tropicalista – ora identificada com valores tradicionais, marcados pelo ideal de autenticidade, ora experimental, inclusiva e pautada por propostas de hibridização e mistura com a cultura internacional-popular.15 PIRES, Paulo Roberto. Torquatália: Geleia Geral. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p. 69.16 Ibidem, p. 61.

Torquato e Scarlet Moon no filme Nosferatu no Brasil (1971), de Ivan Cardoso

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TorquaTo NeTo

nho ouvido poucos tão lúcidos”.19 Percebe-se que a aceitação do samba como manifestação cultural “autêntica” ainda era visível.

Incipientes mudanças começavam a aparecer nos textos intitulados “Três tópicos” e “Vai fazer um ano!”, publicados em 23 de maio e 13 de junho, respectivamente. No primeiro, Torquato já fazia alusões às transformações nas quais ele estava envolvido no campo da música popular. Ao citar literalmente um trecho de uma entrevista concedida pelo amigo Gilberto Gil dois dias antes ao jornal, em que o baiano mencionava a urgência da insti-tucionalização de um novo movimento na música brasileira, Torquato já destacava a necessidade de “organização do trabalho em planos de verdadei-ra luta”.20 No segundo artigo o crítico anunciava que completaria um ano que ele vinha alertando os amigos e parceiros da MPB para os perigos da estagnação artística, da acomodação com sucessos fáceis como A banda e Disparada, e da repetição de fórmulas produzidas nos festivais.

Torquato era direto: “‘A banda’ fez escola, e bem ruinzinha. [...] a maior parte dos compositores preferiu sair na onda, e jogar para o lado aquele preceito tão saudável da pesquisa como elemento decisivo na evolução de um processo cultural qualquer [...]”.21 Segundo Torquato, tal erro era cometido por importantes nomes daquela geração que, pretendendo manter o status quo, paralisavam os avanços estéticos, a pesquisa formal e temiam a ousadia nas composições. O crítico tam-bém esboçava seu descontentamento com a perspectiva nacional-popular, chamando as canções do protesto de “bobagens neorrealistas”, e protestava contra aqueles que rejeitavam as propostas de re-

o crítico José Ramos Tinhorão: “Não adianta que [...] Tinhorão ache isto absurdo de ‘entreguista’. [...] A música brasileira deve ser ouvida nos outros países e [...] necessita de quem a promova lá fora. Mandemos nossas ‘caravanas’ de artistas”.17

Esta atitude de Torquato sinalizava uma tentati-va, mesmo que não plenamente consciente, de ocupar um lugar não apenas nos meios de massa, mas, sobretudo, na história musical brasileira. E este espaço deveria ser tomado por artistas que estivessem dispostos a encarar a luta pela cons-trução de uma música que fosse popular e moderna – estivessem estes artistas identificados com o projeto nacional-popular ou com os pressupostos tropicalistas, como veremos mais adiante. Parece-nos que, apesar de bastante difusas e marcadas por certa amplitude analítica, estas premissas nortearam toda a sua construção discursiva sobre a “música popular brasileira” em um primeiro momento. Por isso, para ele, era imprescindível que se produzis-se uma história do samba no Brasil. Em “Uma história do samba”, de 7 de abril, comparando o ritmo brasileiro ao jazz, o autor salientava que, ao contrário deste, aquele recebia pouca atenção dos historiadores e críticos. “O que falta é uma história do samba mesma, pelo menos contando a história da música popular brasileira até 1950 [...]. O samba não teve ainda o seu historiador”,18 concluía.

Em “Paulinho”, de 6 de maio, Torquato fez uma de-claração de amor a Paulinho da Viola. Em um texto emocionado onde afirmava ser o sambista carioca “um dos mais felizes poetas da Música Popular Brasileira em todos os tempos”, ele louvou o “seu jeito muito pessoal de cantar, com uma sensibili-dade e uma afinação fora do comum”, “um modo todo seu e muito comovente”. Segundo Torquato, ao acompanhar o show de Paulinho no espetáculo Rosa de ouro, ele “estava conhecendo um dos mais inspirados sambistas desta geração. Um compositor inspirado e sincero, dono de melodias lindas e de versos como te-

17 Ibidem, p. 58.18 Ibidem, p. 61. Grifos do autor.19 Ibidem, p. 85.20 Ibidem, p. 111.21 Ibidem, p. 131. Grifos nossos.

Paulinho da Viola, um

compositor inspirado e sincero, nas palavras de

Torquato Neto

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Viola, o Baden e tantos outros continuam acreditando. No samba. Daqui eu aplaudo, e me comovo”.25

O trecho acima e o momento vivido pelo compo-sitor desvelam o paradoxo: por um lado, havia uma busca por “continuar acreditando”, o que pode ser entendido como uma tentativa de permanecer vin-culado a alguns ideais da cultura nacional-popular, valorizando ritmos considerados autênticos e tra-dicionais. Eleito o gênero popular brasileiro por excelência, o samba funcionava como uma espécie de “bandeira” integrada aos ideais algo limitadores e exclusivos da perspectiva de esquerda. Por outro, já existia a inquietação pelo novo, a busca por novas linguagens, pelo ajustamento àquele tempo, a preo-cupação com a pesquisa formal (presente em todas as fases de sua vida), a experimentação e a atualização em termos estéticos. Torquato terminou elaboran-do, desta forma, mesmo que de maneira por vezes caótica, contraditória, nem sempre coerente ou sis-tematizada, um projeto de formação de uma música popular brasileira ora identificada com parâmetros valorativos bem delineados e rígidos, ora marcada pela flexibilidade e pela capacidade de reinvenção.

Considerações finais

A coluna “Música Popular”, publicada por Torquato Neto entre os meses de março e outubro de 1967, foi um objeto privilegiado em que pudemos obser-var, com clareza, algumas das principais discussões políticas e estéticas de seu tempo, indicando à música popular brasileira alguns caminhos a serem seguidos em termos de criação. Torquato não ocultou, em seus textos, os paradoxos, as incoerências e as sutilezas de seu pensamento, e ajudou a construir, com base em vários critérios valorativos, duas propostas de ‘tradi-ção’ musical que, apesar de contrapostas, comporiam uma identidade musical nacional. Estas visões se encontravam em permanente contradição, estando entrecortadas e imbricadas nos diversos momentos não apenas da coluna, mas de sua própria vida.26

novação no interior da música popular. Assim ques-tionava: “De que adianta – eu quero saber – reprisar bobagens neorrealistas em tema de canções para um público que, gradativamente, vai ultrapassando esta fase [...] exigindo do trabalho de cada um de nós uma resposta à série de perguntas que eles nos fazem?”.22 Afirmando o quanto era urgente que sua geração compreendesse as demandas do público renovado na-quele contexto, fez uma ressalva: “Não me entendam mal: Paulinho da Viola, falando lúcida e francamente sobre o amor, está mais por dentro do que se precisa fazer do que a maior parte das pessoas pode supor ”.23

Àquela altura, duras críticas já eram dirigidas aos antigos parceiros do “nacional-popular”: “O Vandré está fazendo palestras em universidades dizendo que nós [os tropicalistas] estamos fugindo das raízes. Mas eu não admito fazer música revolucionária, como ele pretende, com as formas tradicionais”.24 Percebe-se aqui que a questão que permeava seu pensamento dizia respeito às apropriações das manifestações tradicio-nais, isto é, ele aceitaria fazer música revolucionária, mas desde que pudesse fundir linguagens culturais identificadas com a cultura internacional-popular às nossas formas “autênticas”, criando algo novo.

Em outro momento, em “O artigo do dia”, publi-cado em 22 de agosto – período em que Torquato já se encontrava vinculado às ideias tropicalistas – disparou críticas àqueles que, entusiasmados pela musicalidade e pela atitude dos Beatles, acreditavam em uma suposta “decadência do samba”. Como sempre combativo, o autor respondeu: “Os Beatles estão aí [...], ensinando o seu ‘Liverpool Beat’ para quem quiser aprender. E o samba – tenho ouvido dizer – é primitivo demais, não dá para ser tocado daquela maneira [...]”. Esperançoso, ele se mani-

festou de modo contraditório: “E vamos ficar sabendo que não há solução, que devemos aderir,

que devemos ‘nos atualizar’, porque o tempo é este [...]. Mesmo assim, o Chico, o Sidney, o Paulinho da

22 Ibidem, p.132.23 Idem. Grifos nossos.24 VAZ, Toninho, op. cit., p. 90-91. Grifos nossos.25 PIRES, Paulo Roberto. Torquatália: Geleia Geral. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p. 164. Grifos nossos.26 Outros textos de referência: FAUSTINO, Janaina Ribeiro. As fronteiras de Torquato Neto; e Vida toda linguagem. Disponíveis em: <http://www.geradorauxiliar.blogspot.com>.

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Selo

s das principais gravadoras de disc

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Pesquisador da música popular brasileira e fotógrafo. Autor de A casa Edison e seu tempo (Sarapuí, 2002) e Registro sonoro por meios mecânicos no Brasil (Studio HMF, 1984).

Humberto Moraes Franceschi

Dados sobre o início do registro sonoro no Brasil

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A descoberta do som para o futuro dono da Casa Edison, o tcheco Frederico Figner, deu-se aos 23 anos de idade, em 1889, quando ainda era morador em San Antonio, no Texas. O encontro foi relatado por ele próprio: “Em San Antonio, na Houston Street, estava exposto, na rua, um fonógrafo en-costado numa porta. Eu o vi muitas vezes, mas não tive curiosidade de ver o que era aquilo. Uns canudos que as pessoas punham nos ouvidos e riam”. Em seguida, descreve: “Era a base de uma máquina de costura que tinha que ser tocada com os pés, para fazer funcionar o fonógrafo”.

Dois anos depois, em maio de 1891, veio para o Brasil já familiarizado com o processo. Desembar-cou no porto de Belém do Pará, onde começou a trajetória daquele que viria a ser a figura mais importante do início do registro sonoro, não só do Brasil, mas de toda América Latina. Trazia um

fonógrafo elétrico alimentado por pilhas, com-prado na Pacific Phonograph Company de São Francisco, com vários cilindros virgens para gravar, vidros para diafragmas, tubos, baterias e acessórios sobressalentes para um ano. De Belém parte para Manaus, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife e Sal-vador exibindo o fonógrafo a mil réis por pessoa. Ao cabo de todas essas exibições e já possuidor de farto material gravado, chega finalmente ao Rio de Janeiro em 21 de abril de 1892.

Ao chegar aqui, Figner não trazia com ele o pri-meiro fonógrafo. Por duas vezes, antes dele, os cariocas tinham visto ou tomado conhecimento da máquina falante. A primeira através de uma nota de jornal comunicando a

O fonógrafo inventado por Thomas Edison para o registro da voz falada logo se tornou um instrumento para gravação de música

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DaDos sobre o início Do registro sonoro no brasil

apresentação numa das Conferências da Glória, re-alizada em meados de 1878. Essas Conferências da Glória, criadas por portaria de 30 de agosto de 1872 como conferências pedagógicas sobre assuntos de interesse público, realizavam-se no edifício destinado à Escola da Freguesia da Glória (no atual Largo do Machado) aos domingos pela manhã, e contavam com a assistência regular do imperador.

O segundo fonógrafo foi trazido pelo comendador Carlos Monteiro de Sousa, um engenheiro eletri-cista que, em 1884, por ocasião de sua posse como membro do Instituto Americano de Engenheiros Eletricistas, conheceu e tornou-se amigo de Tho-mas Edison. Em novembro de 1889, proporcionou demonstrações do fonógrafo à família imperial. Nem a apresentação da Conferência da Glória, nem a do comendador Carlos Monteiro de Sousa tiveram repercussão significativa. Quem realmente incentivou e divulgou o fonógrafo no Rio de Ja-neiro, como já o fizera no Norte e no Nordeste, e mais tarde em todo o Brasil, foi Frederico Figner.

A divulgação no Rio de Janeiro começou pouco depois de sua chegada, quando alugou uma porta na Galeria Moncada, situada na rua do Ouvidor,

nº 167. Era uma galeria para venda de pinturas dos melhores artistas da época. A repercussão foi grande, e o sucesso dessas exibições, somado a tudo que realizara desde a sua chegada ao Brasil, deram a Figner cinquenta contos de réis. Para nós, hoje, esse valor tem outro sentido. Representa o fato de cinquenta mil pessoas, em menos de um ano, terem ido a um recinto pago para ouvir o fonógrafo.

Em 1893 viaja à Europa e passa 38 dias em Milão onde, além de gravar alguns artistas de fama no Teatro Alla Scala, teve a oportunidade de mostrar o fonógra-fo ao compositor Giuseppe Verdi, que o desconhecia.

Voltando da Europa pelos Estados Unidos, em 1894, vai à Exposição de Chicago e descobre o kinetos-cópio. Aqui no Rio, acoplando fonógrafos ao kine-toscópio, Figner os transforma de simples máquinas de imagens semimóveis em animada combinação de imagens e sons, precursoras inconscientes do cinema sonoro, com sucesso de público.

A descrição que Figner faz do aparelho é bastante detalhada:

Um armário de 1,20m de altura, por dentro do qual, sobre roldanas se movia uma fita igual às de cinema de hoje, com os mesmos quatro furos e por cima do armário, numa ponta, havia um buraco com um vidro de aumento por onde se espiava. Entre a fita e a luz que estava por baixo, girava uma roda de folha de uns 25cm de diâmetro, que tinha uma abertura de uns 4mm e que produzia o efeito de movimento e iluminava o quadrado da fita. Cada fotografia correspondia a uma volta da roda. Eram 16 fotografias por segundo. Espiava-se por um vidro de aumento. As fitas eram de 50 pés de comprimento e as cenas eram pequenas. Brigas de boxe, brigas de galo, danças etc. Mas era uma novidade. Comprei seis kinetoscópios e uns fonógrafos e trouxe-os para o Rio. Aluguei metade da loja 116, hoje 164, da rua do Ouvidor, e preparei-os para serem expostos ao público, mas como havia fita com o box onde se via gente gesticulando e briga de galos que também tinha espectadores que moviam os lábios, eu engendrei de colocar ao lado do motor, dentro do armário, um fonógrafo com cilindros preparados para as diversas fitas com falação e gritaria adequada ou música para danças, e assim transformei o kinetoscópio em kinetofone. Era o cinema falado do qual ainda não

Ditafone, aparelho usado

para gravar mensagens e discursos em

tubos de cera para serem

datilografados depois

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se sonhava. Fiquei no Rio bastante tempo exibindo os kinetoscópios e kinetofones e os fonógrafos.

As gravações para venda, geralmente feitas a partir de cilindros gravados que eram preparados para novo uso, atingiram, em princípios de 1898, quantidade já comercializável. O preparo consistia numa operação feita por um instrumento denomi-nado raspador, cuja função era apagar os sulcos dos registros sonoros do cilindro de cera através da raspagem de sua superfície, tornando-a de tal forma lisa que uma nova gravação pudesse ser obtida, e assim sucessivamente até que a camada de cera não tivesse mais espessura que permitisse nova gravação. Este instrumento compunha-se de uma pequena faca de safira fixada na guia do braço do fonógrafo, articulada para pesar ligeiramente sobre a superfície do cilindro enquanto o motor girava rapidamente. Esta faca, tocando a superfí-cie, girando e avançando a cada volta, raspava os sulcos até que o cilindro estivesse completamente limpo. A qualidade da raspagem era determinada pela rotação do mandril.

Sobre esta atividade, assinalamos o depoimento do próprio Figner pela importância histórica de sua declaração: “Às vezes, raspava os cilindros até meia-noite, e tomava a barca para Niterói; e às 8 horas já estava na loja para fazer a gravação. Pagava mil

réis por cada canção e vendia os cilindros a cinco mil réis. E quanto se gravava, quanto se vendia. Também importava os cilindros, já gravados com músicas, dos Estados Unidos”.

O próprio Figner é quem nos diz não ter sido ele o único a gravar cilindros para venda, e que já havia concorrência tanto no negócio de gravação como no de vendas: “No negócio de cilindros, só tive um competidor, de nome Martins, que também estava estabelecido na rua do Ouvidor. Muito fanfarrão, meteu-se a fabricar os cilindros aqui e era o representante da Gramophone Company. Eu nunca, em tempo algum, me ocupei com os meus concorrentes”.

O Martins, a quem Figner se refere, era o portu-guês Arthur Augusto Vilar Martins, que, em 1895, associado a outro português, Arnaldo Castilho de Castro, estabeleceu comércio de chá, cera, semen-tes, plantas, louças e perfumaria, na loja da rua do Ouvidor, nº 69, denominada Casa Ao Bogary. Em 1900, após distrato, Arthur Martins registrou firma individual e tornou-se representante da Gramophone Co. de Londres que, fundada em 1898, adquiriu no ano seguinte todos os direitos das patentes de Berliner, o inventor do disco, e adotou a marca registrada Angel. Razão pela qual nos discos Berliner de sete polegadas, gravados no final da década de 1890, estavam, além dos dizeres

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Anúncio da Casa Edison

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referentes à gravação, a marca Angel da Gramophone e, nos que eram vendidos no Brasil, a marca Ao Bogary 69 Rua do Ouvidor, ambas impressas, a quente, na própria massa do disco. Este fato, que deveria apenas provar ser a Casa Ao Bogary representante da Gra-mophone Co., gerou grande controvérsia, havendo hoje quem afirme ser a etiqueta Ao

Bogary marca de uma fábrica de discos e, mais ainda, ser a primeira

fábrica de discos no Brasil. Confundem porque esquecem ou desconhecem que os

discos Berliner da primeira fase não traziam etiquetas de papel impresso, os dizeres eram ma-nuscritos a estilete na própria massa do disco.

Também em 1900, Figner registra firma individual e dá a ela o nome de Casa Edison. Em julho de 1901, ocorre transformação radical na vida de Figner ao receber carta proposta de Frederich Prescott, principal responsável por uma das maiores gravadoras europeias - a Zonophone Company - para gravar música popular e juntos assumirem o controle da patente do disco duplo para o Brasil, ou seja, disco com gravação dos dois lados, recebendo um terço dos direitos.

Apesar do processo ser empírico e de ter que assu-mir toda a responsabilidade do empreendimento, Figner aceitou. Com a proposta aceita e a patente legalmente registrada sob o nº 3465, passa a fazer uso desse direito com a gravação de dezenas de músicas processadas por um técnico alemão es-pecialmente designado por cláusula contratual. O contrato determinava a gravação de 175 ceras de sete polegadas e 75 de dez polegadas trazidas da Alemanha, das quais Figner seria obrigado a comprar 250 cópias de cada matriz, ou seja, 43.750 discos de sete polegadas e 18.750 discos de dez po-legadas em dois anos, num total de 62.500. Quan-tidade astronômica para um mercado inexistente. A solução encontrada por Figner para a venda dessa enorme quantidade foi, além de anunciar profusamente pelos jornais, obter a prensagem de músicas brasileiras nos dois lados do disco, de

acordo com os pedidos dos fregueses, solução que criou mercado para o disco brasileiro. O contrato propunha de um lado música brasileira e do outro música estrangeira.

Imediatamente alugou a casa nº 105, pegada à sua loja 107 da rua do Ouvidor, sede da Casa Edison, e construiu na área descoberta dos fundos da casa um puxado coberto com folhas de zinco. O puxado media 8,5 x 5,5m.

Por exigência do técnico alemão responsável pelas gravações, a sala de paredes nuas necessitou ser dividida em duas. Uma pequena de 1,5m para o gravador e outra com 7m para os músicos. Nessa parede divisória foi instalado o receptor de som, que não era senão um cone de metal, à semelhança de um balde, chumbado na parte voltada para a área maior e ligado ao gravador por um tubo que afinava até a agulha de gravação.

A parte da sala destinada aos músicos poderia re-ceber de dez a 12 figuras, se fossem instrumentos pequenos. No caso de instrumentos maiores como tuba, bombardão, oficleide ou tambor grande, reduzia-se a seis ou oito figuras. As gravações po-deriam ser feitas em semicírculo ou em pequena arquibancada.

Figner entregou ao mestre da banda do Corpo de Bombeiros, o maestro Anacleto de Medeiros, todos os arranjos, a escolha dos músicos e a execução para que a gravação soasse como a banda inteira.

Feitos os arranjos e os ensaios, na primeira semana de janeiro de 1902 começaram as gravações - dez pela manhã e dez à tarde -, com perspectiva de término em duas semanas. Sobre essas gravações, Figner declarou: “Eu já tinha me mudado para a casa pegada ao 107 e tinha levantado um puxado nos fundos, preparei a sala e em poucos dias está-vamos gravando músicas com a banda do Corpo de Bombeiros, com a banda da Casa Edison e com cantores cantando modinhas e lundus”.

As ceras das primeiras gravações na Europa eram muito duras, e tornadas mais duras ainda pelo frio do inverno. Apesar de muito ruins, os padrões de qualidade já estavam estabelecidos: em setembro por

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Sarah Bernhardt na Sala Pleyel, em Paris, e em outubro por Enrico Caruso no Teatro Alla Scala, em Milão.

Como tudo era empírico, as ceras do Rio de Janei-ro, debaixo de muitas reservas, foram embarcadas para a Alemanha sem saber no que dariam. Havia preocupação em Berlim quanto a um possível insucesso pelo desconhecimento das condições de clima durante o processamento. Preocupação infundada. O clima tropical colaborou. O calor do verão carioca numa sala inteiramente fechada fez com que as ceras duras vindas do inverno europeu se tornassem macias, e o sulco que a agulha gravadora fez na cera era várias vezes mais fundo do que na Europa, tornando a gravação mais alta e o som mais limpo. E ninguém notou. Havia um segredo nessas gravações que seria desvendado. A curiosidade foi tal que, nas novas gravações feitas em abril, não veio mais o técnico, e sim o próprio engenheiro chefe a desvendar o mistério entre a Sala Pleyel com Sarah Bernhardt em Paris, Enrico Caruso no Teatro Alla Scala em Milão e o puxado da rua do Ouvidor.

Na realidade, o segredo foi desvendado quando se descobriu que o calor do verão carioca tinha pro-duzido o primeiro e verdadeiro avanço tecnológico de todo aquele processo empírico. O aquecimento das ceras tornou-se padrão em todo o mundo e durou até o fim das gravações em cera.

Algumas semanas mais tarde, veio o resultado, “os discos que nós aceitamos são muito bons, muito melhores do que qualquer coisa que jamais fizemos na Zonofone”.

A Zonofone, que gravou as primeiras músicas no Brasil, foi vendida no final de 1902, e as gravações brasileiras passaram quase um ano sem ser pren-sadas. Com a fundação da International Talking Machine-Odeon, em agosto de 1903, essas ceras foram classificadas e numeradas para veiculação comercial. Na Zonofone, as atenções estavam vol-tadas para as gravações de celebridades do mundo da música na Europa.

Ainda hoje permanece afirmativa equivocada quanto à primeira música gravada no Brasil ser o Isto é bom, lundu de Xisto Bahia, cantado pelo Baiano, em disco Zonofone nº 10.001. A afirmação decorre de ter ele

recebido o nº 1 no catálogo da Casa Edison para 1902. Não existe nenhuma relação numérica das primeiras gravações, nem por Figner nem pela Zonofone, que possa dar veracidade a essa afirmação. Prescott deteve as ceras após a venda da Zonofone e as incorporou à International Talking Machine-Odeon.

Na classificação feita pela International Talking Machine-Odeon para as gravações Zonofone foram estabelecidos códigos de numeração. As aproximadamente 780 gravações feitas pela Zo-nofone em janeiro e abril de 1902 e por Figner no final do primeiro semestre receberam codificação RX para os discos de 27cm e R para os de 19cm. Pode-se afirmar com segurança que as gravações com o código RX visível na massa do disco foram feitas no primeiro semestre de 1902, bem como as com R até as duas primeiras centenas. As que tiveram o código mudado para XR e receberam numeração contínua a partir de XR-501 foram gravadas sob orientação de Figner diretamente para a International Talking Machine-Odeon, cuja atividade de gravação para o Brasil começou em outubro de 1903, chegando até quase o final de 1911 com 1.975 ceras gravadas.

Detalhe em um disco da marca Ao Bogary, representante da Gramophone Company no Brasil

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O disco de 19cm não sofreu mudança, manteve-se o código R mesmo depois da inauguração da fábrica brasileira, e a numeração foi contínua até a cera nº 1.971, gravada em 15 de março de 1914, que fechou a série.

Nos primeiros momentos da relação comercial entre a Casa Edison e a gravadora alemã, Figner foi solicitado a sugerir uma marca ou monograma para as gravações Zonofone feitas no Brasil. Figner fez o mais acertado comercialmente, nem marca nem monograma, apenas uma característica: a de que todos os discos gravados pela Casa Edison apre-sentassem a mesma aparência visual, fundo amarelo e letras prateadas. Essa etiqueta deu singularidade de marca nos discos fabricados para a Casa Edi-son. Essa foi a primeira de muitas demonstrações da grande habilidade comercial demonstrada por Figner, que nunca teve nenhuma preocupação de natureza cultural, sua tenacidade de trabalho esteve sempre voltada apenas para ganhar dinheiro.

Convém lembrar que todas as gravações da Casa Edison etiquetadas com a marca Odeon foram se-lecionadas e financiadas por Figner, e processadas e prensadas na Alemanha no período de 1902 a 1912. A partir de 1913, não houve mais numeração na cera. Todo o processo de fabricação passou a ser feito na fábrica do Rio de Janeiro, sem mais necessidade de indicação do título para montar a etiqueta. A fábrica Odeon estava instalada na antiga rua 28 de Setem-bro, nº 50, atualmente rua João Alfredo, no bairro da Tijuca. Para a época, a fábrica era considerada de grande porte, pois tinha capacidade de produzir um milhão e meio de discos por ano. Abrangia todo o processo, desde o primeiro tratamento da cera gravada, até a produção dos chamados biscuits, que eram os discos antes de serem prensados.

Apenas para ilustrar: mantinha trinta prensas ma-nuais produzindo 4.166 discos por dia, ou seja, 13 por hora de prensa e um em cada quatro minutos, perfazendo um total de 125 mil por mês.

Há uma curiosidade entre os discos da Casa Edi-son. Alguns apresentam rótulo diferente do ama-relo padrão. São os que ficaram conhecidos como bandeira brasileira. A opção por esse rótulo deveu-se à inauguração da fábrica do Rio de Janeiro, em

Catálogo da Casa Edison de 1902

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1913. Foi usado apenas nos três primeiros meses de funcionamento, e somente em reprensagens de gravações anteriores a 1911. Não houve crité-rio de escolha para privilegiar as gravações mais significativas, tudo indica que foram etiquetadas obedecendo ao fluxo normal dos pedidos. Não há nenhuma gravação de Patápio Silva, da banda do Corpo de Bombeiros ou de Ernesto Nazareth ostentando esse rótulo.

No mesmo ano de 1913, dando prosseguimento ao que já fizera cinco anos antes, a Casa Edison enviou seu principal técnico de gravação para documentar o que havia de mais representativo no panorama musical gaúcho. Foram gravadas 101 ceras entre os dias 11 e 21 de julho. Alguns jornais gaúchos anunciaram-nos como discos riograndenses, embora esses nomes não constassem nas etiquetas, onde estava impresso apenas Odeon e indústria brasileira. Dessa série, destaca-se o Grupo Terror dos Facões, com composições e interpretações de alta qualidade.

Ainda em 1913, e talvez mesmo como prossegui-mento do que foi feito em Porto Alegre, a Casa Edison gravou duas séries em São Paulo: a primeira, com 82 músicas, e a segunda, com 69 músicas. Ambas receberam numeração contínua da série 120.000, com o rótulo apresentando numeração paralela correspondente ao índice paulista: S.P.1 a S.P.82 e S.P.83 a S.P.141. A Casa Edison preen-cheu, com essa série, claros existentes na sequência numérica da série 120.000 devido à retirada de gravações imperfeitas ou que tivessem perdido atualidade, para atender inúmeros pedidos da su-cursal de São Paulo destinados ao novo mercado formado pelos imigrantes italianos.

O mercado de discos no Brasil tinha crescido de ma-neira surpreendente. Há um depoimento de Figner, datado de 1912, ainda hoje espantoso: “No primeiro ano que retomei conta de meu negócio, vendi 840 mil discos e tive um lucro líquido de 700 contos”. Figner havia permanecido na Europa por quase dois anos.

Fato importante mesmo foi a declaração de Georg Cohn, diretor técnico da fábrica do Rio de Janeiro, informando a Figner que as matrizes defeituosas poderiam ser refeitas, pois as madres das gravações brasileiras processadas na Alemanha estavam todas

depositadas na fábrica da Tijuca. Além das madres que vieram da Alemanha, todas as gravações feitas na fábrica carioca foram igualmente mantidas arquivadas, tanto as da fase mecânica como as elétricas, num total de 33.518 madres. Foi quase tudo que o Brasil gravou.

Durante a década de 40, não há confirmação de data nem documentos comprobatórios, um diretor da fábrica, alguns dizem ser argentino, resolveu acabar com esse arquivo, alegando que teria me-lhor aproveitamento para o espaço ocupado pelas madres antigas, e praticou impunemente o maior crime perpetrado contra a cultura popular brasilei-ra. Vendeu a peso para derreter todo o acervo, que resultou em 47 toneladas de cobre e quinhentos quilos de prata. E não aconteceu nada, nem pro-testo, nem notícia de jornal, nos meios musicais não houve qualquer reação. O que restou são os discos comerciais preservados em acervos privados e em alguns públicos. O que não existir neles está irremediavelmente perdido. É inacreditável o que se perdeu decorrente do crime praticado por um estrangeiro do qual não se sabe nem o nome.

Selo da gravadora Zonophone

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O “Formigão” Ciro Monteiro e Marisa Gata

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o Correio da Manhã, 1959

O acervo sonoro do Arquivo Nacional

Técnicos da Equipe de Documentos Sonoros da Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos do Arquivo Nacional.

Almerício de Souza, Elisabeth Chaffim, Mara Luci de Araújo, Nei Silveira e Pablo Ferraz

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Criada em 21 de novembro de 1958, pelo decreto nº 44.682, a Seção de Documentação Sonora do Arquivo Nacional entrou em atividade no dia 30 de abril de 1964. Inicialmente, era composta apenas por seu chefe, Sérgio Gonçalves da Silva, e mais um funcionário. As dificuldades eram muitas, tanto em relação às necessidades técnicas de climatiza-ção quanto a pessoal qualificado. Funcionou sem qualquer equipamento até 1965, quando finalmente chegaram ao setor um gravador Sony, um toca-discos Garrard e seis carretéis de fita para gravação. Outros equipamentos chegaram em 1967 e 1968, formando uma estrutura razoável para o trabalho.

Pouco tempo depois, a Agência Nacional e a Rádio Ministério da Educação depositaram seus acervos sonoros no Arquivo Nacional. Também foram incorporados discos da Casa Edison (primeira gravadora de discos do Rio de Janeiro), da Rádio Mayrink Veiga, Sesi e outros mais.

Se até 1970 o interesse principal dos consulentes recaía sobre os discursos de Getúlio Vargas, nos anos se-guintes cresceu a procura por temas folclóricos, hinos, marchas militares e instrumentos musicais brasileiros, ou seja, temas da brasilidade. Esse interesse culminou em uma exposição sobre o folclore musical brasileiro realizada pelo Arquivo Nacional no ano de 1979.

Na década de 1980, a necessidade de uma rees-truturação do setor era evidente, com a aquisição de armários próprios e escaninhos – os discos até então estavam organizados no sentido horizon-tal. Os cabeçalhos de assuntos foram descritos e normalizados, e tal catalogação conferiu maior dinamismo ao trabalho dos técnicos e à pesquisa.

Atualmente chamada de Equipe de Documentos Sonoros (EDS), a seção conta com cinco servido-

res, supervisionados por Elisabeth Chaffim Mar-tins, e uma estrutura de duas salas e um depósito climatizado para a guarda do acervo.

A importância do acervo

O acervo sonoro do Arquivo Nacional é composto por mais de dez mil documentos sonoros, entre dis-cos e fitas audiomagnéticas, referentes ao período de 1902-1985. Neste conjunto de documentos es-tão registrados momentos importantes da memória nacional, em forma de reportagens, comentários e discursos dos presidentes Getúlio Vargas, Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, entre outros, datados de 1935 até 1975, material pertencente ao acervo da Agência Nacional (discos de dez, 12 e 16 polegadas, goma-laca, acetato sobre alumínio, nitrato sobre vidro e vinil. Total de 508 discos, 151 fitas cassetes e 165 fitas de carretel aberto ou fitas rolo). Há também a memória dos discursos e pronunciamentos do presidente João Figueiredo, do acervo da Presidência da República (62 fitas cassetes e 261 fitas rolo); jingles da Rádio Mayrink Veiga na década de 60 (108 discos de vinil de dez polegadas. Também armazenados em minidisc e CDs).

A riqueza musical brasileira aparece tan-to no acervo de música erudita, contendo sinfonias, óperas, música de câmara, poemas sinfônicos e estudos de piano dos anos 1940 e 1950 (901 discos de 12 polegadas de goma-laca, separados por gravadora. A Columbia é a maior coleção, 455 discos), como no acervo de música popular das décadas de

Ópera Aída, de Verdi, da coleção de música erudita

A bicharada, disco do músico e compositor Djalma Ferreira, coleção de música popular

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O acervO sOnOrO dO arquivO naciOnal

1930 a 1950 (3.943 discos de vinil de dez polegadas), com a variedade de gêneros musicais característica do Brasil: samba, marcha, bolero, polca, foxtrote, tango, choro, batucada, rancheira, baião, frevo, galope, moda, rasqueado, beguine e calipso. Some-se a tudo isso o acervo doado pelo pesquisador Humberto Franceschi (2.530 discos), onde se en-contram intérpretes como Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda, Pixinguinha, Sílvio Caldas e Orlando Silva; e também o acervo da Casa Edison a partir de 1902, os primeiros discos fabricados no Brasil, alguns assinados pelos intérpretes na cera de gravação para dar mais credibilidade (68 discos de 10,5 polegadas, à base de goma-laca).

Alguns fundos sob a guarda do Arquivo Nacional:

Mário Lago

Compositor de marchinhas e sambas (o mais famoso é Ai, que saudades da Amélia, composto em parceria com Ataulfo Alves, em 1942), poeta, radialista e autor de peças para o teatro de revista, Mário Lago também cantava e atuava. Trabalhou em novelas de grande sucesso na Rede Globo, como O sheik de Agadir, Selva de pedra, O casarão, entre outras. Dedicou-se também à literatura, escrevendo livros de memórias, entre os quais Reminiscências do sol quadrado e Na rolança do tempo. Um disco no acervo.

San Tiago Dantas

Ministro das Relações Exteriores do governo de João Goulart, San Tiago Dantas foi um dos mais influentes políticos brasileiros na década de 1950. Seu acervo é composto por 12 discos de vinil

(discos de sete e dez polegadas), tendo como tema campanhas eleitorais da década de 1960.

Moysés Weltman

Radialista e escritor, autor de Jerônimo, o herói do ser-tão, seriado que foi ao ar durante 14 anos na Rádio Nacional e na década de 70 na TV Tupi. Trabalhou na Rádio Globo, com o radialista Haroldo de An-drade. 931 fitas rolo no acervo.

Rádio Jornal do Brasil

A emissora de rádio carioca funcionou de 1935 até 1993 e destacou-se pelo investimento no jornalis-mo e pela credibilidade junto aos ouvintes. Este fundo é formado por 13 discos de vinil e um CD, contendo gravações do programa Música e infor-mação, no período de 1964-1976, uma compilação anual dos principais acontecimentos transmitidos pela emissora. Estão disponíveis para acesso através de CD. A entrada do acervo foi formalizada através de um termo de doação, em março de 2008, entre o Arquivo Nacional e a Rádio Jornal do Brasil.

Serviço Social da Indústria – SESI

Surgido na Era Vargas, o Sesi atende os traba-lhadores da indústria, promovendo cursos de aprimoramento profissional, atividades de lazer e programas de saúde. Datado das décadas de 1950 e 1960, o acervo é composto por 238 discos e 81 fitas cassetes, e tem como conteúdo programas educativos destinados ao público infantil.

Comissão Executiva da Comemoração

do Sesquicentenário da Independência

Criada com o objetivo de realizar a programação elaborada pela comissão nacional instituída em 1971, que tinha a função de programar e coordenar as comemorações do Sesquicentenário da Indepen-dência. Cinco discos no acervo.

Departamento Nacional de Obras

e Saneamento – DNOS

O órgão teve como atribuições fundamentais a exe-cução da política nacional de saneamento ambiental em áreas rurais e urbanas e as obras de irrigação, tendo passado por diversas vinculações, entre as quais aos ministérios do Interior, do Desenvolvi-mento Urbano e Meio Ambiente e da Agricultura. Em 1990, o DNOS foi extinto, sendo repassadas

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várias de suas competências a órgãos do Ministério da Agricultura e Reforma Agrária, Secretaria de De-senvolvimento Regional da Presidência da República e Ministério da Infraestrutura. Um disco no acervo.

Federação Brasileira pelo Progresso Feminino

Fundada por Bertha Lutz em 9 de agosto de 1922, com sede no Rio de Janeiro, lutava pela emancipação feminina e por maior participação das mulheres na política e na sociedade. A grande conquista da Fede-ração foi a extensão do direito de voto às mulheres. Embora tenha tido sua ação diminuída durante o Estado Novo, a instituição manteve-se funcionando nas décadas seguintes, persistindo na defesa dos direitos da mulher. 16 fitas rolo no acervo.

Fundação Centro Brasileiro para a Infância

e Adolescência – FCBIA

Instituída após a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, e extinta em 1995, a FCBIA era vinculada ao Ministério da Ação Social, e tinha como princípio proteger os direitos básicos da criança. Três fitas cassetes no acervo.

Instituto Brasileiro do Café – IBC

O Instituto Brasileiro do Café (IBC) foi criado em 1952, como entidade autárquica vinculada ao Minis-tério da Fazenda, herdando o acervo, os funcionários e os bens móveis e imóveis do extinto Departamento Nacional do Café. Em 1960, o Instituto passou para o âmbito do recém-criado Ministério da Indústria e do Comércio. O órgão tinha por atribuições exe-cutar a política cafeeira nacional, prestar assistência técnica e econômica à cafeicultura e controlar a comercialização do café. Foi extinto em 1990. Um disco e quatro fitas cassetes no acervo.

Serviço de Censura e Diversões Públicas - SCDP

Os Serviços de Censura de Diversões Públicas foram criados pelo decreto nº 70.665, de 2/6/1972, que de-finiu a estrutura do Departamento de Polícia Federal (DPF). Eram subordinados às Superintendências Regionais do DPF e foram extintos, juntamente com a Divisão de Censura de Diversões Públicas, pela Constituição Federal de 1988 que, em seu artigo 220, proíbe “qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Suas funções incluíam execu-tar a censura dos programas ao vivo nas emissoras de rádio e televisão, ensaios gerais de apresentações

teatrais, letras musicais, propagandas comerciais etc. 14 fitas cassetes e um disco no acervo.

Fonte de pesquisa de grande importância para os pes-quisadores da música brasileira, entre outros temas, o acervo de documentos sonoros do Arquivo Nacional guarda preciosidades que precisam ser descobertas. A pesquisa pode ser feita na Sala de Consultas da instituição, com a orientação de nossos servidores.

Depósito climatizado para a guarda do acervo

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Elizeth Cardoso e Elis Regina

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Música para ler Breve roteiro de fontes textuais sobre música brasileira no Arquivo Nacional

Ataulfo Alves e Elizeth Cardoso fichados pela Delegacia de Costumes e Diversões do Rio de Janeiro, nos anos 40

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alAline Torres, Leonardo Fontes, Rodrigo Mourelle, Marcus Alves, Ricardo Silva e Thiago C. Mourelle

A letra da música Escravos de Jó, de Milton Nascimento e Fernando Brant, rasurada pelos censores e a versão final com o que restou após os cortes, 1973

Técnicos da Coordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional. Esta pesquisa contou com a colaboração de Beatriz Monteiro, Carla Lopes, Cláudia Teresa, Daniele Catalão, Fábio Teixeira, Flávio Chagas, Joyce Roehrs, Josimar Matos, Luzidea Azevedo, Mariza Sant’Ana, Mauro Lerner e Sátiro Nunes.

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Para quem não sabe, visitar e pesquisar no Arquivo Nacional pode ser um grande programa, inclusive musical. Previsto na Constituição de 1824, o órgão foi criado efetivamente em 1838, ainda como Arquivo Público do Império. São 172 anos recolhendo a docu-mentação oficial proveniente dos três Poderes, além de acervos doados por pessoas, famílias e instituições privadas. O Arquivo Nacional se constitui, assim, na principal instituição arquivística do país, responsável pela guarda, tratamento e difusão de um conjunto documental que registra grande parte de nossa história e serve de fonte aos mais variados temas de pesquisa.

Apresenta-se, a seguir, um levantamento dos con-juntos documentais que contribuem para contar a história da música brasileira. Embora o acervo seja composto por diversos gêneros documentais, este artigo se dedica especificamente à documentação custodiada pela Coordenação de Documentos Escritos, que se subdivide em três grandes áreas: Documentos do Judiciário e Extrajudicial, Docu-mentos Privados e Documentos do Executivo e Legislativo, por onde se inicia nossa viagem.

Objeto de interesse de múltiplos pesquisadores, o conjunto de Letras Musicais, que integra o acervo proveniente do Serviço de Censura de Diversões Públicas, compõe-se de um total de 79 mil letras produzidas entre 1968 e 1988, e inclui pareceres de censores anotados nas margens, refletindo uma diversidade de opiniões e interpretações. Essa documentação foi objeto de recolhimento em abril de 1993 e maio de 1995. Alertado sobre a existência, na sede do Departamento de Polícia Federal no Rio de Janeiro, de um conjunto de

documentos oriundos do Serviço de Censura de Diversões Públicas sem qualquer identificação, o Arquivo Nacional determinou a ida de uma equipe técnica ao local. A situação encontrada já era por si só assustadora. Em meio ao lixo de toda espécie, espalhados pelo chão e amontoados, acumulavam-se pareceres de censores, roteiros de peças teatrais e programas de televisão, material promocional de cinema, periódicos e letras musicais. Imediatamente providenciou-se o recolhimento deste acervo ao Arquivo Nacional, e o trabalho de higienização e acondicionamento foi iniciado, enquanto se elabo-rava o inventário da documentação.

O que se viu foi um tesouro. Em uma mesma letra musical, pareceres divergentes – ora proibindo, ora liberando a composição –, análises detalhadas e breves comentários, trechos rabiscados, observações e críti-cas eram encontrados. A área artística era um foco de “subversão” permanente no qual se deveria manter constante vigilância. Uma frase, por mais pueril que parecesse, poderia, aos olhos atentos dos que zelavam pela “normalidade” institucional, se transformar em uma convocação à rebelião contra o poder vigente. Uma citação ao “rei velho e cansado”, constante da música Despedida, de Geraldo Vandré e Geraldo Aze-vedo,1 é vetada pelo seu “conteúdo político”. Das seis estrofes da música Escravos de Jó, de Milton Nascimen-to e Fernando Brant,2 só uma permaneceu, que seria gravada no disco Milagre dos peixes. Chico Buarque, um dos artistas mais visados pela censura, viu sua música Partido alto3 ser vetada e liberada com restrições no mesmo ano. No verso da letra o censor reconhece “o poeta de tão lindas canções”, mas ataca a falta de respeito do autor ao citar Deus e Jesus Cristo, para

Agnaldo Neves

Técnicos da CODES. Sentados: Rodrigo, Thiago e Ricardo. Em pé: Leonardo, Marcus e Aline

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com “este povo tão generoso que lhe dá o sustento comprando os seus discos”. O acervo permite que se vislumbre o entrelaçamento entre moral e política no período do regime militar, quando uns poucos decidiam o que podia ser visto e ouvido.

O controle da atividade artística no país, no entan-to, tem registros e mecanismos anteriores àqueles anos. Durante o Estado Novo, os artistas – baila-rinos, palhaços, atores, compositores, cantores e outros – passaram a ser fichados pela Delegacia de Costumes e Diversões do Rio de Janeiro,4 de acor-do com as funções por eles exercidas. Deste modo, é no acervo da referida delegacia que encontramos as fichas de importantes personalidades do univer-so musical da época, como os cantores Ataulfo Alves, Vicente Celestino, Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Francisco Alves, Herivelto Martins e Orlando Silva, ou o speaker Ary Barroso. O acervo encontra-se classificado em ordem alfabética pelo nome verdadeiro do artista. Dessa maneira, quem procurar por Dolores Duran, Dalva de Oliveira, Dircinha Batista e Linda Batista, por exemplo, só as encontrará no campo “pseudônimo” das fichas de Adiléia Silva da Rocha, Vicentina Paula de Oliveira, Dirce de Oliveira e Florinda de Oliveira, respectivamente. O documento referente a Carmen Miranda, ou melhor, a Maria do Carmo Miranda da Cunha possui ainda uma observação transversal em vermelho: “falecida”. Além de retratos 3x4, endereço, estatura e cor dos olhos, algumas fichas trazem ainda informações como data de início da carreira, contratos celebrados e salários.

A atuação da polícia no controle do cenário musical brasileiro remonta a épocas ainda mais distantes que os anos estadonovistas, o que pode ser visto na documentação examinada pelo Grupo de Identificação de Fundos Internos (GIFI) do Arquivo Nacional. Destacam-se, neste acervo, o

movimento de associação em torno da música popular e do carnaval no Rio de Janeiro, nos anos iniciais do século XX, e o poder exercido pela polícia nessa nova conformação. A criação e o desfile – ou as “passeatas”, como eram chamadas – de diversos grêmios carnavalescos surgidos naquele período estavam submetidos à aprovação policial. “Destemi-dos”, “caprichosos”, “democráticos”, “inocentes” ou “endiabrados” das mais diversas localidades do Rio de Janeiro, em especial os do Centro e Zona Norte, enviaram à Secretaria de Polícia do Distrito Federal pedidos de autorização para funcionar, para sair às ruas ou simplesmente para tocar o “Zé Pereira”, principalmente durante o carnaval. Em geral, aos requerimentos se anexavam os estatutos da agremiação, que também eram objeto de avaliação por parte da polícia, podendo ser deferidos ou não.

Foi o que fizeram, por exemplo, os Heróis de São Cristóvão5 e os Destemidos da Conceição,6 em 1906; os Decididos de Botafogo,7 em 1907; e o Club Recreativo Carnavalesco Rosa de Ouro,8 em 1908. Na Gávea surge, em 1907, o Club Recreativo Chu-veiro de Ouro,9 que, um ano depois, geraria o Grê-mio Carnavalesco Filhos do Chuveiro de Ouro.10 Na rua Santo Amaro, no bairro carioca do Catete, a Sociedade Carnavalesca Amante das Morenas pede licença para sair “sem fazer uso de armas de defesas, nem alusões a certas e determinadas pessoas”, e cuidando de “obedecer a mão das ruas”.11

A composição social e o comportamento moral das agremiações são enaltecidos tanto nos requerimen-tos quanto nas licenças concedidas, como no caso do delegado que resolve deferir o pedido feito pela Sociedade Dansante Carnavalesca Destemidos do Fogo, por ter sua diretoria “composta de homens de trabalho”.12 Alguns clubes carnavalescos res-saltam já possuírem autorização para funcionar no ano corrente ao pleitearem o desfile, talvez para re-

4 BR AN,RIO OC.5 BR AN,RIO OI.0.0.6C213.6 Idem.7 BR AN,RIO OI.0.0.6C250.8 BR AN,RIO OI.0.0.6C251.9 BR AN,RIO OI.0.0.6C250.10 Idem.11 BR AN,RIO OI.0.0.6C170.

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afirmarem seu estatuto legal, já que uma certa aura de marginalidade envolvia esse mundo à época. Como se percebe, o acervo identificado pelo GIFI é fonte obrigatória para o pesquisador interessado nos primórdios do samba e do carnaval carioca.

Voltando um pouco mais no tempo, o acervo dos Privilégios Industriais, que reúne pedidos de concessão de patentes para os mais diversos inven-tos, exibe um interessante registro das inovações propostas para o mundo musical, sobretudo de fins do século XIX até o ano de 1910. Os projetos de instrumentos musicais são recorrentes, como os vários modelos de “corneta-clarim”, acompa-nhados de desenhos explicativos e batizados com nomes como “Rio Branco”13 ou “Marechal Hermes da Fonseca”.14 Constam também instrumentos como o “laudeon”,15 o “litophone”16 e o “terno fontes de vozes”.17 Enquanto alguns inventavam novos métodos de escrita musical, outros criavam máquinas e aparelhos que escreviam as partituras ou que captavam os sons e os transcreviam para o papel, como propunha o “pianógrafo”.18 Pascoal Segreto, por exemplo, registrou em 1906 um “novo aparelho automático para audição de peças teatrais com vistas animadas ou não”.19

A música marca presença até mesmo na documen-tação referente ao período imperial, como se pode perceber no arquivo proveniente da Mordomia-Mor da Casa Real e Imperial, uma espécie de órgão responsável pela gestão do Palácio Imperial, administrando receitas e despesas, contratando e dispensando funcionários. Constam nesse conjunto documental as folhas de pagamento dos mestres do imperador, que incluem os “ditos” de música e seus respectivos ordenados.20

O Arquivo Nacional é responsável também por um importante acervo de natureza privada, produzido e acumulado por pessoas, famílias e instituições, e adquirido ao longo dos anos por meio de compra ou doação. São vários os conjuntos documentais que registram a história da música brasileira – sejam os oriundos de entidades como o jornal Correio da Manhã e a Rádio Mayrink Veiga,21 sejam aqueles provenientes de músicos, compositores, pesqui-sadores do tema ou, ainda, de figuras anônimas.

É este o caso, por exemplo, de Norival Mesquita,22 que compôs uma música em homenagem à chega-da do homem à Lua. Se não alcançou o objetivo de conseguir quem financiasse a gravação de seus versos, foi longe ao se corresponder com perso-nalidades e entidades do mais alto escalão. Em sua busca por apoio, o contador aposentado de Lins de Vasconcelos, no Rio de Janeiro, comunicou-se com Bill Clinton, Ulysses Guimarães, com a Presidência da República, os ministérios da Cultura e da Ae-ronáutica, com a National Aeronautics and Space Administration (NASA), a National Geographic Society e diversas embaixadas, chegando mesmo aos astronautas Armstrong, Collins e Aldrin. Uma saga devidamente organizada e encadernada que virou notícia do jornal O Dia em 1989, e atualmente integra a coleção de documentos avulsos doados ao Arquivo Nacional, denominada Itens Documentais.

Nesta coleção, cons-tam também docu-mentos produzidos pelo maestro Carlos Gomes, tais como as cartas em que organiza um concerto no fim

12 BR AN,RIO OI.0.0.6C250.13 BR AN,RIO PI.0.0.4984.14 BR AN,RIO PI.0.0.4960.15 BR AN,RIO PI.0.0.5967.16 BR AN,RIO PI.0.0.450.17 BR AN,RIO PI.0.0.5140.18 BR AN,RIO PI.0.0.9021.19 BR AN,RIO PI.0.0.4312.20 BR AN,RIO 0O.AVU.0.caixa 10, pacote 2, documento 2.21 BR AN,RIO SG.22 BR AN,RIO QN notação 73.33.

Estatutos do Grupo Carnavalesco Destemidos da Conceição, 1906

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do século XIX em Milão,23 e um manuscrito de sua obra-prima, a ópera Il guarany.24 Nos Itens Documen-tais, e também na coleção Partituras Musicais, encon-tram-se registros os mais variados, de marchinhas25 a hinos – como o da Independência,26 os de alguns es-tados27 e um homenageando os presidentes de Brasil e Argentina,28 respectivamente Campos Salles e Julio Roca. Essas coleções incluem ainda o “Programa de Musica dos Estabelecimentos de Ensino do Districto Federal”,29 de 1930, e uma apostila da Universidad Nacional de Cuyo, de Mendoza, Argentina, acerca do “Archivo de Musica Religiosa de la Capitania Geral das Minas Gerais”,30 do século XVIII.

Outro importante acervo é o de Luís Gastão d’Escragnolle Dória, jornalista, professor, pesquisa-dor e escritor, que foi diretor do Arquivo Nacional e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-leiro. Os cinquenta anos da estreia da referida ópera de Carlos Gomes, no Scala de Milão, ganharam um artigo em 1920,31 enquanto em outro, de 1925, Dória ressalta a valsa, gênero tão presente nos bailes do Império, que ressoou dos instrumentos musicais para as penas dos poetas Casimiro de Abreu, Álva-res de Azevedo, Castro Alves e Maciel Monteiro.32 Contudo, a figura mais recorrente em sua documen-tação é Francisco Manoel da Silva, autor do Hino Nacional, objeto de inúmeros trabalhos. O arquivo de Dória conta ainda com uma preciosidade, um manuscrito do discurso proferido por Francisco na inauguração do primeiro conservatório de música

brasileiro, que “era uma necessidade de há muito reclamada pelo progresso da nossa civilização” e, segundo o autor, “um serviço que a posteridade nos deve levar em conta”.33

O presidente Campos Salles, além de hino, ganhou também uma marcha militar do músico e compo-sitor Henrique Oswald, sob o título A República,34

cuja partitura integra o acervo de sua família,35 do qual também fazem parte cadernos, versões e par-tituras de músicas para instrumentos específicos, duetos, trios, quartetos e mesmo para orquestras inteiras. São partituras rasuradas, rabiscadas, em suas versões finais ou preliminares, demonstrando o processo criativo do artista em composições como óperas e sinfonias.

Enquanto a música erudita é o objeto de trabalho de Henrique Oswald, a música brasileira de origem africana perpassa, por sua vez, o arquivo de Maria Beatriz do Nascimento – professora, historiado-ra e militante do movimento negro, falecida em 1995. Nesse conjunto documental, destacam-se um projeto do filme Clementina de Jesus,36 de He-lena Martinho da Rocha, e um estudo de Lauro Cavalcanti sobre o soul,37 apresentado em 1981 no 5º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS). Da mesma forma, merecem men-ção os diversos prospectos e folhetos de grupos como Olodum,38 Malê de Balê,39 Alaa Fin Aiyê40 e

23 BR AN,RIO QN notação 73.8.24 BR AN,RIO QN notação 72.8.25 BR AN,RIO S6 pasta 1.26 BR AN,RIO QN notação 73.29.27 BR AN,RIO QN notação 72.11; BR AN,RIO S6 pastas 7, 8 e 9.28 BR AN,RIO S6 pasta 4.29 BR AN,RIO S6 pasta 5.30 BR AN,RIO S6 pasta 6.31 BR AN,RIO RE notação 107.3.32 BR AN,RIO RE notação 86.46.33 BR AN,RIO RE notação 22.1.34 BR AN,RIO QJ caixa 4, pacote 7, documento 34.35 BR AN,RIO QJ.36 BR AN,RIO 2D caixa 7, envelope 7.37 BR AN,RIO 2D caixa 26, envelope 3.38 BR AN,RIO 2D caixa 29, pacote 1, documento 4.39 Idem.40 BR AN,RIO 2D caixa 25, envelope 1.

Folheto do grupo Olodum

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Ilê Aiyê,41 bem como os documentos das escolas de samba Quilombo42 e Paraíso do Tuiutí,43 e um roteiro do enredo e da organização do desfile com a ordem e o significado de fantasias, adereços, alas e alegorias da Unidos de Lucas.44

O samba também encontra morada na documentação produzida e acumulada por João Ferreira Gomes, o Jota Efegê. Jornalista e pesquisador, agraciado com honrarias pela Portela,45 Associação das Escolas de Samba da Guanabara,46 Embaixada do Sossego,47 Camisa Verde e Branco48 e Filhotes da X-9,49 em 1980 recebeu um pedido de Carlos Drummond de Andrade, em versos, para que voltasse a frequentar o “Castelo”50 – como também era conhecido o Clube dos Democráticos, do qual era sócio-honorário desde 1968.51 A música brasileira ressoa nos inúmeros ar-tigos de Jota Efegê52 sobre maxixe, frevo, embolada, marchinha, samba, bossa nova, choro; sobre grupos, bandas, cordões, ranchos, escolas de samba, agremia-ções; sobre cantores e compositores; sobre a história do carnaval. Quando o assunto é carnaval, seus textos dividem espaço com artigos e reportagens de autores como Haroldo Costa53 e Sérgio Cabral. Este último assina uma série de 25 artigos sobre personagens marcantes, as origens do samba, dos instrumentos e das escolas, publicada pelo Jornal do Brasil em 1961.54

A documentação proveniente do jornal Correio da Manhã, outro importante diário carioca, que circu-

lou de 1901 a 1974, integra também o acervo do Arquivo Nacional, e é composta por milhares de re-gistros iconográficos, além de laudas datilografadas, rascunhos de matérias publicadas e um expressivo número de recortes do jornal e de outros periódicos. Os documentos escritos se encontram distribuídos em dossiês temáticos, que reproduzem a ordenação original conferida ao acervo pelo próprio Correio, e são fonte inesgotável para as mais variadas pesquisas.

No que toca à música brasileira, ali estão notícias, crônicas – muitas delas escritas por Carlos Drum-mond de Andrade – e outros textos sobre músicos, compositores, ritmos, instrumentos, espetáculos, aparelhos sonoros e uma infinidade de aspectos relacionados ao tema. Destaca-se a quantidade de dossiês referentes aos festivais de música ocorridos nos anos 1970, incluindo o Festival de Música da Favela,55 o Festival Nacional do Compositor de Samba,56 o Festival Eclesiástico57 e até o Festival Penitenciário de Música.58 O Festival de Verão de Guarapari, idealizado como uma espécie de Woodstock dos trópicos – chegando a ser chama-do de “Guaraparistock” – atraiu hippies de várias partes do país, que acabaram presos ou expulsos da cidade pela polícia, na tentativa de garantir o evento exclusivamente para “pessoas de bem”.59

Mário Lago, militante político, ator, cantor e com-positor, é outra importante figura da história da

41 BR AN,RIO 2D caixa 4, documento 50.42 BR AN,RIO 2D caixa 5, envelope 1, documento 17.43 BR AN,RIO 2D caixa 5, envelope 1, documento 10.44 BR AN,RIO 2D caixa 5, envelope 2.45 BR AN,RIO TM notação 1.2.6.46 BR AN,RIO TM notação 1.2.10.47 BR AN,RIO TM notação 1.2.2.48 BR AN,RIO TM notação 1.2.1.49 BR AN,RIO TM notação 1.2.7.50 BR AN,RIO TM notação 2.2.11.51 BR AN,RIO TM notação 1.2.11.52 BR AN,RIO TM notação 4.1.53 BR AN,RIO TM notação 4.2.46.54 BR AN,RIO TM notação 4.2.57 a BR AN,RIO TM notação 4.2.81.55 BR AN,RIO PH.0.TXT.5405.56 BR AN,RIO PH.0.TXT.4617.57 Idem.58 Idem.59 BR AN,RIO PH.0.TXT.4615.

Homenagem da Portela ao jornalista Jota Efegê, agosto de 1964

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música brasileira que tem seu acervo depositado no Arquivo Nacional. Em meio aos seus papéis encontramos programas60 e roteiros de shows,61 partituras,62 listagens das músicas63 por ele compos-tas e textos autobiográficos que versam não apenas sobre sua produção musical,64 mas também sobre a visão desse artista de televisão, teatro e rádio acerca do mercado fonográfico e da censura.65

A Rádio Mayrink Veiga66 também não poderia ser esquecida. Fundada na década de 1920 e fechada pelo regime militar em 1964, foi líder de audiência nos anos 1930. O acervo da instituição é composto por partituras, registros de empregados e artistas, rescisões de contratos, memorandos, comunicações internas e correspondência, que transmitem parte da história da música brasileira, principalmente no que se refere aos seus bastidores, revelando aspectos administrativos e cotidianos da indústria musical.

O Arquivo Nacional conta ainda com documentos acumulados e produzidos pelo Poder Judiciário, como processos cíveis, criminais e comerciais, incluindo aqueles dos tribunais superiores, além de livros de registro civil de pessoas naturais e de pessoas jurídicas, dos cartórios de notas e de imó-veis, e coleções criadas artificialmente, por temas.

Um conjunto documental bastante interessante e curioso são os processos judiciais envolvendo importantes nomes de nossa música. No início do século XX, diante da modernização imprimida pelo prefeito carioca Francisco Pereira Passos entre 1902 e 1906, tornou-se muito comum a prisão de músicos acusados de vadiagem e reincidência na mesma, crimes previstos nos artigos 399 e 400 do primeiro Código Penal Republicano, vigente desde 1890.

O sambista Heitor dos Prazeres, cuja habilitação de casamento está sob a guarda do Arquivo Nacional,

entre os documentos da 4ª Pretoria Cível do Rio de Janeiro,67 foi autor de diversas músicas de valorização do malandro carioca. Um dos fundadores das escolas de samba Deixa Falar, Mangueira e Portela, Heitor chegou a ficar preso por vadiagem durante dois meses na Ilha Grande, em 1911, ainda adolescente.

Avançando um pouco mais no tempo, até o início dos anos 1930, aparece novamente a questão dos vadios, cuja descrição muitas vezes foi atrelada aos sambistas. Numa atmosfera econômica de crescimento do núme-ro de trabalhadores urbanos e de desenvolvimento da política pública de valorização do trabalho, a chamada “malandragem” foi muito perseguida. Noel Rosa, o poeta de Vila Isabel, foi um dos sambistas que aderi-ram à valorização do trabalho em contraposição aos sambistas malandros, como seu adversário musical Wilson Batista. Este exaltava o malandro em canções como Lenço no pescoço, enquanto Noel sugeria, como em Rapaz folgado, que seu amigo comprasse “sapato e gravata” e jogasse fora “essa navalha”.

O posicionamento político de Noel, no entanto, não andava no mesmo rumo de sua postura na vida social. Trabalhador no discurso, o poeta da Vila seguia as práticas usuais dos malandros no trato com as mo-ças. Em 1934 ele fora acusado de defloramento, de acordo com o artigo 267 do Código Penal da época. O processo foi instaurado inicialmente na 1ª Vara Criminal, em 19 de novembro de 1934.68 O crime de defloramento, que parte do pressuposto de que o acusado só conseguiria obter relações sexuais com uma “moça honesta” – expressão usual na época – sob a promessa de casar-se com ela, foi atribuído a Noel, que tinha fama de ser “rapaz conquistador de moças honestas”, segundo palavras da mãe da vítima.

O processo andou rápido e foi arquivado assim que o compositor, após inicialmente tentar culpar José Mar-tins, namorado da moça, reconheceu suas atitudes.

60 BR AN,RIO ML.0.APR, TXT.9.61 BR AN,RIO ML.0.PIN, TXT.34.62 BR AN,RIO ML.0.PIN, TXT.18.63 BR AN,RIO ML.0.PIN, TXT.1.64 BR AN,RIO ML.0.PIN, TXT.27.65 BR AN,RIO ML.0.PIN, TXT.33.66 BR AN,RIO SG.67 Fundo 6O, processo 4276, maço 53.68 Fundo CG, processo 742, caixa 1821.

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Dez dias depois do início do processo, foi efetuado o casamento civil entre Noel e a vítima Lindaura Mar-tins Neves, em 29 de novembro de 1934, no Juízo da 2ª Pretoria Cível do Rio de Janeiro.69 O matrimônio salvou o sambista da prisão. Noel, porém, não ficou satisfeito pelo casamento forçado. Diante da Justiça, o malandro não teve escolha... “sambou”.

Os processos referentes à questão da vadiagem, assim como os crimes de defloramento, estão or-ganizados em 45 arquivos oriundos de pretorias e varas criminais, que remetem ao local de moradia dos envolvidos – durante boa parte do século XX, a cidade do Rio de Janeiro era judicialmente dividida em freguesias, que recebiam quase sempre nomes de igrejas, numa herança advinda ainda dos tempos do Padroado (união entre Estado e Igreja Católica) existente no Império, momento em que as igrejas se tornaram centros não apenas religiosos, mas também referências administrativas.

Era também prerrogativa das pretorias a retifica-ção de nomes e os registros de nascimentos. Foi na 7ª Pretoria de Inhaúma que Hermínio Bello de

Carvalho, compositor e diretor-roteirista de shows, foi registrado em 28 de março de 1935.70 Hermínio lançou no cenário artístico vários chorões e foi o produtor musical preferido de Jacob do Bandolim, cuja retificação de nome – de Jacob Pick para Jacob Pick Bittencourt – foi realizada na 4ª Pretoria Cível (freguesias da Glória e Coração de Jesus).71 Isso foi necessário para que o nome do bandolinista, então com 19 anos, saísse correto no diploma de forma-tura que recebera da Escola Técnica-Comercial do Instituto Brasileiro de Contabilidade.

Outra interessante fonte de estudo é o processo de revista comercial,72 produzido pelo Supremo Tribu-nal de Justiça73 em 1882, envolvendo a conhecida “viúva Filippone” e o comerciante Maximiliano Nothmam. No Segundo Reinado, o Brasil já fazia da importação e impressão de músicas uma impor-tante atividade comercial. Com um repertório que ia do erudito ao popular, esse comércio propor-cionava um grande lucro para seus comerciantes. Tal “viúva” era proprietária de um dos vários estabelecimentos desse ramo localizados na rua do Ouvidor. O processo de revista, recorrido por Maximiliano Nothmam, exigia o pagamento das músicas e outros produtos importados da Europa pelo impetrante a pedido da viúva; entretanto, a revista foi negada e o processo, arquivado.

Como se vê, do controle à transgressão, do público ao privado, de clarins a bandolins, a história da música no país ecoa no Arquivo Nacional. Em solo ou de forma orquestrada, suas áreas técnicas possi-bilitam variadas abordagens de pesquisa, referentes tanto à origem e conteúdo dos acervos quanto à memória dos estilos, artistas, instrumentos e obras. O prelúdio desta viagem é a Sala de Consultas do órgão, que oferece um ambiente propício para o acesso a toda essa documentação, cuja ressonância histórica ainda pode chegar a muitos ouvidos e olhos – a “música para ler”.

69 Fundo Z8, processo 156, caixa 11301.70 BR AN,RIO 6U.0.LTN.216/p.20.71 Fundo 6O, processo 7580, maço 71.72 Revista comercial era o termo jurídico usado na época, quando uma das partes recorria ao Supremo Tribunal de Justiça solicitando a revisão do andamento processual.73 Fundo BU, processo 5822, maço 87.

Registro do casamento de Noel Rosa com Lindaura Martins, em novembro de 1934

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Jorge Benjor

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Tim Maia

Cantora, compositora e jornalista. Integrante do grupo Arranco de Varsóvia, foi vocalista de Tim Maia e abriu shows de Sandra de Sá. Indicada ao Prêmio Sharp por seu primeiro disco e também ao Grammy Latino, com a música Disseram, Andréa lança em 2010 o CD Jamba ao vivo, de samba e jazz.

Andréa Dutra

Black Rio

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Ano de 2010. A população do Rio de Janeiro, sába-do à noite, se divide entre dois amores: o samba e o funk carioca. O ancestral do negro brasileiro, assim como o do negro norte-americano, saiu de casa, na África, direto para a escravidão nas Américas. A música que os negros trouxeram de casa foi mistu-rada à música daquela nova realidade. Nos Estados Unidos surgiram as canções escravas, os spirituals, os blues, o jazz, o funk. No Brasil, uma diversidade inominável de ritmos, choro, maracatu, lundu, coco, maxixe, frevo e samba. Este artigo é sobre a riqueza imaterial que essa mistura nos legou.

É impossível precisar quando e onde um movimento sociocultural começa. As ondas de pensamentos saem umas de dentro das outras e se propagam inde-finidamente, muitas vezes para além do esperado. As ideias se alastram, coletivamente, atravessam fron-teiras, ganham arautos. Realizam-se em sequência pelo mundo. Efeito dominó, de informação somada à cultura e à qualidade mais humana de agregar, de se reconhecer, de procurar a sua turma. Por causa disso, na busca por um marco inicial do Movimento Black Rio, é inevitável dar uma recuada no tempo, mudar a paisagem e ir visitar, brevemente, os black soul brothers da América do Norte.

Direitos civis para todos

Nos Estados Unidos, a longa e dolorosa luta dos negros pela alforria definitiva eclodiu nos anos 1950, quando a passageira Rosa Parks, negra, se recusou a ceder o assento do ônibus a um branco, como mandava a lei daqueles tempos. A partir deste episódio emblemático, começou um movimento cuja ação principal foi o boicote aos ônibus do sis-tema de transporte de Montgomery, no Alabama, estado notoriamente racista, ao sul dos Estados Unidos. O então jovem reverendo Martin Luther

King Jr. foi designado para liderar o movimento do boicote, que determinava que negros não en-trariam nos transportes coletivos até que tivessem os mesmos direitos que os brancos. Durante mais de um ano, negros andaram a pé, ratearam o táxi, pediram carona, usaram cavalos, bicicletas, lombo de burro ou patinete, qualquer coisa para não en-trar nos ônibus. Vitoriosos, depois de 381 dias de boicote, conseguiram que as leis do Alabama fos-sem consideradas inconstitucionais e deflagraram um movimento irreversível, de âmbito nacional e reflexos mundiais, pelos direitos civis dos negros.

King liderou o movimento pelos direitos civis por cer-ca de dez anos, com elegância e competência. Atraiu multidões de negros e brancos para a causa, promoveu passeatas com milhares de pessoas, fez discursos que o mundo cita até hoje. Ganhou um Prêmio Nobel da Paz, em 1964, por ter conseguido mobilizar a nação (e a opinião pública do mundo) em torno da causa do racismo e dos direitos civis, pregando sempre a não-violência. Isso enquanto a Ku Klux Klan ainda incendiava casas de negros e os pendurava em árvores, enforcados. Idolatrado, King morreu assassinado em circunstâncias nunca reveladas.

Black Power

Em meados dos anos 60, o ativista negro Stokely Carmichael acompanhava Luther King na passeata contra o medo quando foi preso, não pela primeira vez. Entre eles já havia discordância de ideias. Foi aí que dois grupos surgiram: os que acompanhariam King, cujo slogan era Liberdade já, e os que acompa-nhariam Carmichael, que clamavam pelo Black Power.

Neste momento, Carmichael fez um discurso con-clamando os negros americanos à ação. A expres-são Black Power é atribuída a ele: “É um chamado

Jorge de Salles. Correio da Manhã, 1970

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Black Rio

Gerson King Combo

para os negros deste país se unirem, reconhecerem seu patrimônio, construírem uma comunidade. É um chamado para os negros estabelecerem suas metas e liderarem suas próprias organizações... O que nós vamos passar a dizer agora é Black Power!” .

Incitada a se armar, a comunidade negra começou a reagir, no mesmo calibre, e conseguiu afugentar os brancos da KKK dos seus quintais e esquinas. Grupos que pensavam o ativismo negro, como os ídolos Panteras Negras, afloravam pelo país; a esquerda multirracial discutia o racismo. O movi-mento cresceu e ganhou a adesão dos jovens negros de todo o país, que batiam no peito com orgulho, depois de longo silêncio e submissão. A mãe vol-tou a ser a África, citada nos cabelos armados, nas estampas das roupas, na atitude altiva do porte. Na afirmação da diferença: “Say it loud”, cantava George Clinton, “I’m Black and I’m proud!” (Fale alto: sou negro e me orgulho disso!).

Lideranças se fortaleceram, correntes se formaram, anônimos apareceram para reagir à supremacia branca, fosse na política, na sociedade civil e nas suas manifestações: cultura, moda, literatura, artes. Com o surgimento da nova consciência de cidadania, nasceu uma nova identidade e, com ela, a necessidade da produção de conteúdo para essa nova forma. Esse novo rosto pedia espelhos onde pudesse olhar e se reconhecer: estética, filosofia, estilo de vida e, claro, música.

Música de preto

Dentro de todo esse contexto de orgulho racial, era natural que fosse criado um mercado independente, de representação da cultura negra. A indústria da música negra pop explodiu. Berry Gordon criou em 1959 a Motown, gravadora que projetou pop stars negros no mundo todo. O público caía na pista, imitando seus ídolos no conjunto da obra: linguagem, figurino, dança, atitude. A Motown, chamada também de Hitsville (Cidade dos Hits), reuniu artistas do porte de Stevie Wonder, Curtis Mayfield, Marvin Gaye, James Brown, Aretha Franklin, Ray Charles e Otis Redding. Juntou Temptations, Jackson Five, Miracles, The Four Tops, Gladys Knight and the Pips e Diana Ross and the Supremes. Nos anos 60, os artistas da Motown estavam lá, vendendo pau a pau com os Beatles.

A Motown brindava o mundo com soul music política, romântica, sexy, cheia de arranjos, de ma-landragem e negritude explícita; e com funk, vigor avassalador, alta energia, músicos incríveis, metalei-ra em brasa, dançarinos inimitáveis, vozes inigua-láveis, sangue e suingue infernal. Toda história da música negra americana se fundia, as referências do gospel, dos spirituals, do rhythm and blues saíam reprocessados pela indústria do soul. A música era tão boa que atravessou todas as fronteiras de racismo e nação. Vazou. O mundo parou para ouvir e dançar. O mundo se viu no espelho. Soul virou sinônimo de negritude, independente de estilos.

Black in Rio

Incentivado pelos ventos de autoafirmação e orgulho racial, que vinham parar por essas praias vindos lá do movimento americano Black Power, o movimento Black Rio começou na periferia do Rio de Janeiro, em meados dos anos 70, procurando também uma identidade para um movimento negro made in Rio, com características e voz próprias. O jovem negro carioca gostou do funk americano, do soul, dos modelitos, das gírias e, sobretudo, de ter uma cultura exclusiva associada a ele. Malandragem, sim, mas não aquela do samba, do batuque, da caixinha de fósforo, dos velhos chavões culturais negros brasileiros. A cultura agora era black, assim,

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em inglês. Nada mais natural do que seguir o exem-plo dos black soul brothers, americanos que já tinham saído na frente, batendo no peito e fazendo seu som preto, pop, descolado que fazia o mundo inteiro dançar e querer tomar parte daquela turma legal.

O movimento Black Rio teve seu epicentro no subúr-bio carioca, movido pela força da música americana. Nos primeiros bailes black da cidade, no Clube As-toria do Catumbi, ouvia-se soul de Stevie Wonder e funk de James Brown. Aos poucos, os eventos black espalharam-se pela Zona Norte, rumaram para Ro-cha Miranda, Colégio, Guadalupe, Andaraí, Tijuca, Abolição e, na Zona Oeste, para Realengo e Bangu. Os bailes aconteciam em grandes proporções, em clubes com capacidade para até dez mil pessoas. Todo mundo se chamava de mano, amizade, sister e brother. Todo mundo usava cabelo Black Power, tamanho pro-porcional ao orgulho, pantalonas coloridas, chapéus enormes, sapatos cavalo de aço com plataformas mul-ticoloridas, a indumentária típica do negro americano, ainda buscando as suas cores cariocas.

A inegável qualidade dançante da música foi levada para a Zona Sul da cidade pelas mãos de disc-jóqueis como Big Boy, dono de um acervo de discos importados inacessíveis à grande maioria dos DJs em atividade naquele momento. E não bastava ter dinheiro para comprar os LPs. O dono da loja de discos Billboard, na rua Santa Clara, em Copacabana, a única que tinha material para quem quisesse se atualizar com a produção de fora do Brasil, selecionava pessoalmente a clientela e só vendia para gente que ele conhecia. A saída era torcer para algum amigo viajar e trazer discos.

O Baile da Pesada, no Canecão, no começo dos anos 70, com Big Boy pilotando as vitrolas, espa-lhava o suingue black diretamente das pistas do subúrbio para a Zona Sul, extrapolando barreiras imaginárias de cor, classe social e zoneamento da cidade. No bairro do Jardim Botânico, Zona Sul, o baile quente era no Clube Carioca. Em julho de 1977, o Jornal do Brasil chegou a ter uma seção chamada Black Rio, com o endereço de oito bailes.

Na Zona Norte formavam-se as equipes de som itine-rantes que levavam o som black para toda a cidade. A Furacão 2000, de Rômulo Gomes, até hoje é a maior

equipe de som da cidade, rainha dos bailes funk. Havia também as equipes de Ademir Lemos, a Cash Box, a Soul Grand Prix, e os discotecários Mr. Funk Santos, Dom Filó, Dema, Mr. Paulão, tocando para multidões de jovens negros que finalmente pertenciam a um grupo com o qual se identificavam e do qual tinham orgulho de participar. De fato, a ditadura começou a visar aquelas enormes aglomerações, com medo de que se transformassem, realmente, num movimento de dimensões políticas além das pistas.

Mr. Funk Santos, DJ e produtor musical, parceiro do lendário discotecário Ademir Lemos, conta:

Descemos o morro em novembro de 1969, para fazer-mos a nossa história. Nas nossas festas, tocávamos 99% de black music, muito James Brown e Marvin Gaye. A festa era para todos. Ninguém apoiava oficialmente: gravadoras, mídia oficial, artista, ninguém. Fazíamos as nossas próprias capas de discos. Só no município de Duque de Caxias havia cinco ou seis equipes de baile. Peitamos o sistema, todo sábado e domingo a gente fazia nossa festa. O negócio era descer o morro, ter o próprio espaço. Um pouco depois, o pessoal universi-tário frequentava os bailes, e o que era música de gueto invadiu o asfalto, ganhou a galera da Zona Sul.

Toni Tornado e o Trio Ternura cantam BR-3 no 5º Festival Internacional da Canção, 1970

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Black Rio

O movimento Black Rio não carregava bandeira política. Era um movimento de afirmação através da cultura, da diversão e do orgulho social. No entanto, havia lideranças de movimentos negros cariocas atuando no ambiente dos bailes, se infor-mando, lendo, levando a discussão sobre cidadania e cultura negra para a rua.

Por aqui, como nos EUA, o movimento também não se livrou de complicações com o poder. Dom Filó, DJ, produtor e um dos donos da equipe de som Soul Grand Prix, uma das mais bem-sucedidas de todos os tempos, ainda hoje em atividade, lem-bra de um episódio no Guadalupe Country Clube, em 1974: “Entrou um batalhão da PM no Clube, no lançamento de um disco da Equipe Soul Grand Prix. Peguei o microfone e agradeci a presença do coronel, dizendo que ele estava ali para garantir a ordem... só que ele disse que a ordem era baixar o cacete! Puseram um capuz na minha cabeça e me levaram para interrogatório...”.

Os donos do suingue

Os bailes eram apenas um lado do Black Rio. Nos anos 70, num porão da avenida Nossa Senhora de Copacabana, entre as ruas Santa Clara e Figueiredo de Magalhães, onde funciona hoje em dia uma lan-chonete, havia o Bar Vagão, ponto de encontro do pessoal que gestava a música original do Black Rio. O Vagão está para o Black Rio assim como o Beco das Garrafas está para a bossa nova. O produtor Júnior Mendes lembra que o pessoal aparecia de violão debaixo do braço e tocava a noite toda, sem amplificação, sem palco, só compartilhando ideias. Tim Maia, Cassiano, só fera.

Sebastião Rodrigues Maia, o Tim Maia, foi criado na Tijuca, bairro de classe média na Zona Norte do Rio de Janeiro. Tim foi passar uma temporada nos EUA, aos 17 anos, e voltou de lá, quatro anos depois, cheio de influências da música americana. Antes de viajar, Tim já tinha formado conjuntos como Os Sputniks, ao lado de Roberto Carlos, que também era da Turma do Matoso, que se reunia na esquina da rua do Matoso com Haddock Lobo. Jor-ge Ben, Erasmo Carlos, Simonal, Edson Trindade, Wellington, Arlênio e China, todos frequentavam a Turma do Matoso. Ali, os meninos experimentaram

e procuraram sua turma e sua praia, uns partiram para a jovem guarda, em direção ao rock, outros caíram no balanço, como Jorge Ben e Tim, que chegou de viagem e montou o conjunto Brasoul para lhe acompanhar em shows.

Não há como negar que, apesar de toda a popula-ridade mundial da soul music e do funk, de tantos artistas flertando com o estilo naquele momento, foi Tim Maia quem desenhou os contornos da alquimia perfeita entre toda a influência black e a música brasileira. Tim criou uma linguagem brasileira para o soul. Sua música virou referência insuperável até os dias de hoje. Tim é sinônimo de animação, de música boa para dançar, de vozeirão, de suingue. Imitado e repetido como ninguém.

O primeiro compacto de Tim Maia saiu em 1968. Em 1969, ele lançou outro compacto com a música These are the songs, que Elis Regina regravou ao seu lado, em 1970, no disco Em pleno verão, em que ela claramente flertava com o balanço negro, o blues, o soul, a metaleira e o funk. Em 1970, Tim lançou seu primeiro LP solo, inaugurando a carreira com os mega-hits Azul da cor do mar, Primavera e Coroné Antônio Bento, uma ousada mistura de funk com baião, de autoria de João do Vale e Luiz Wanderley. Primavera era uma composição do paraibano (Ge-nival) Cassiano, que tocou violão no Bossa Trio e formou com seus irmãos o grupo Os Diagonais, misturando samba e soul. Cassiano teve pequena, porém consistente, carreira fonográfica, e deixou sua marca registrada no modo de cantar da moçada que gosta das características firulas vocais do soul. Tim Maia reverenciava Cassiano como cantor, Claudio Zoli, Ed Motta e muitos jovens cantores de linhagem black dão crédito às evoluções vocais de Cassiano, autor também dos sucessos A Lua e eu e Coleção, em parceria com Paulo Zdan.

Tim passou pela década de 70 emplacando um sucesso atrás do outro: Réu confesso, Não quero di-nheiro, Gostava tanto de você. Em 1975, convertido à seita Universo em Desencanto, gravou dois discos assinando Tim Maia Racional. Tim, que apresen-tava o mestre Manoel como o “maior homem do mundo, homem sábio e profundo”, dedicou-se à seita, recomendando a todos, durante as canções: “Leia o livro Universo em Desencanto, não perca

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tempo”. Tim sofreu uma decepção profunda com a seita e o mestre, e até a sua morte, em 1998, não permitia que se gravasse qualquer música dos dois LPs, apesar dessa fase ser reverenciada como uma das melhores da carreira dele, e que já gerou infinitas homenagens e releituras.

Outra figura fundamental na construção dessa nova música brasileira foi Jorge Ben, também da Turma do Matoso, descoberto no Beco das Garrafas, to-cando Mas que nada. O sotaque soul sempre esteve presente nas músicas do Jorge Ben. Nos seus pri-meiros discos, já se adivinhava um contorno do que viria a se chamar samba-rock. Balanço que ele in-ventou misturando bossa nova, samba, soul music e seu sotaque pessoal. Seu violão híbrido de bossa, samba e rock fez com que ele seja, até hoje, dos mais cultuados, citados e imitados artistas da MPB, com um vasto repertório que vai de Cadê Teresa? e Que maravilha ao balanço irresistível de Taj Mahal, que, como os sucessos de Tim, ainda enchem as pistas da noite carioca. O paulista Bebeto, de A beleza é você, menina, é outro fazedor de samba-rock, contemporâneo dessa turma, que não sai das pistas e dos repertórios de “resgate” até hoje!

O cantor Wilson Simonal estourou com País tropical, de Jorge, atual Ben Jor, e prosseguiu desenvolvendo sua malandragem e seu balanço como representan-te mor da Turma da Pilantragem, que flertava clara-mente com a postura do soul americano. O negócio era deixar cair. Simonal fez sua reverência ao Black Power em seu Tributo a Martin Luther King , que ele fez pensando no sonho de liberdade e fraternidade de King, expresso no seu famoso discurso I have a dream. Em 1970, o pianista Dom Salvador e o Grupo Abolição, só de músicos negros, também apontavam a direção da fusão da música brasileira com a soul music, no único LP de sua carreira, Som, sangue e raça, de 1971. Dom Salvador também foi produtor de Toni Tornado, que venceu a fase na-cional do 5º Festival Internacional da Canção com a música BR-3, de Tibério Gaspar e Antonio Adolfo, acompanhado pelo vocal totalmente black do Trio Ternura. Toni morou nos EUA, onde conheceu o movimento negro, e chegou a ser preso aqui, por imitar o gesto do pessoal do Panteras Negras. Toni também emplacou o mega-hit Pode crer, amizade, mas deu preferência à carreira de ator.

Outros artistas se firmaram nessa praia soul bra-zuca: Paulo Diniz, Carlos Dafé, Miguel de Deus, Hyldon, Tony Bizarro, Frankye, Luiz Melodia, Macau, Fábio e Gerson King Combo. Gerson, dançarino do programa Jovem Guarda, irmão do compositor Getúlio Cortes, cantou na banda de Simonal e com o maestro Erlon Chaves. Gerson tinha, e ainda tem, uma performance bombástica no palco, capas de veludo, boinas, pose de rei e um vozeirão inigualável, que o transformou no rei do funk, precursor do rap nacional com seu velho hábito de declamar sobre as bases suingadas, nem sempre num idioma inteligível pelos mortais. Ele é o grande poseur do black carioca, como James Brown foi para o funk americano. Gravou em mais de sessenta discos. Depois de vinte anos afastado dos palcos, Gerson foi convidado a cantar com a nova geração do black e está em plena atividade, fazendo mil bailes e botando a galera para dançar, como sempre foi, com sua linda capa e seu cetro de rei. Como ele mesmo canta: “Viva o rei!”.

O soul vazou para outras praias musicais, e com-positores como Marcos e Paulo Sérgio Valle, ipane-menses da turma da bossa nova, tiveram seus dias de negritude com Black is beautiful, gravada por Elis.

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Roberto Carlos também se enamorou do balanço negro e chamou o baterista de outro rei, James Brown, para tocar com ele. Não vou ficar, sucesso de Roberto, é de Tim Maia. Ivan Lins é compositor brasileiro da gema, sempre com o pé no soul, des-de O amor é meu país. O Trio Mocotó, que não era carioca, fazia um samba-rock tão quente, que seus discos viraram cult na Europa nos anos 90, dispu-tados a tapas pelos DJs da moda, assim como os da Banda Black Rio e os do Maestro Erlon Chaves e sua Banda Veneno, suingueira e arranjos geniais.

Um mercado à procura de música

Enquanto isso, em 1976, a ditadura bombava por aqui, o milagre econômico acontecia e o mercado fonográfico andava quente, com as multinacionais despejando seus artistas internacionais nas rádios, pistas e lojas de discos. Nesse tempo, muitos artistas brasileiros gravavam em inglês para se inserirem nesse mercado. Foi de olho na clientela cada vez mais diversificada e abundante dos bailes black que o mercado fonográfico começou a criar os seus ícones black made in Brasil: Tim Maia, Cassiano, Hyldon, Claudia Telles, a Banda Black Rio, Carlos Dafé.

Criada em 1976, com todo o apoio da gravadora WEA e do produtor André Midani para que se tornasse a voz da música instrumental do movi-mento de mesmo nome, a Banda Black Rio chegou capitaneada pelo saxofonista Oberdan Magalhães, que se juntou ao trumpetista Barrosinho e con-vocou um timaço de feras para montar a banda. Construíram o samba-funk com arranjos arrojados e cheios de elementos brasileiros e até latinos, aliados à metaleira do funk, que fazia a gafieira ser ainda mais dançante do que já era, e o soul, mais suingado. Samba com jazz, samba com funk. É bem verdade que o conjunto não soava como o que se ouvia nos bailes, e acabou precisando adaptar o repertório, porque a moçada estava muito acostumada com James Brown, com Wilson Picket e não estava conseguindo dançar ao som daquela mistura frenética. A Black Rio teve três discos em oito anos de carreira e mais algumas participações especiais em discos de outros artistas, como no Tim Maia Disco Club, de 1978, como banda de apoio do artista. Foi aí que a discoteca achou sua brasilidade e botou o povo nas pistas para dançar. A Black Rio virou ícone e modelo de brasilidade, da quentura brasileira, em todo o mundo. Depois desse disco, Tim Maia fez mais hits e gravou Vale tudo em dueto

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com Sandra de Sá, carioca de Pilares, baileira de quatro costados, e que já tinha sido cantora da Banda Black Rio. Tim emplacou o Descobridor dos sete mares, Do Leme ao Pontal e Me dê motivo, e, nos anos 90, foi apelidado carinhosamente de Síndico do Soul, por Jorge Ben Jor, na música W Brasil.

Na fase discoteca, anos 80, o movimento esvaziado ainda deu alguns frutos como As Frenéticas, Lady Zu, Júnior Mendes, Miss Lene, Bianca, Ronaldo Resedá, Dudu França, Dom Mita, Lincoln Olivetti e Robson Jorge, Brylho e Claudio Zoli. Gilberto Gil sempre deu suas voltas pelas praias do soul.

Mesmo depois do fim da Era Disco, ainda havia um e outro baile no subúrbio do Rio, e rádios de programação vendida sempre tiveram espaço para a black music. As nomenclaturas mudaram, sub-tipos apareceram, mas o black soul de Tim Maia continuou e continua reinando soberano nas pistas em que se dança música brasileira.

Qual a diferença entre o charme e o funk?

Nos anos 80, o DJ Corello, com uma vasta experi-ência em bailes black, começava a pilotar bailes ani-madérrimos com o som conhecido como Filadélfia, no Clube Mackenzie e no Sesp da Rodoviária. Foi ele que cunhou a expressão “charme” para um soul mais lento, com arranjos e vocais elaborados e sen-sualidade explícita, perfeito para dançar em grandes grupos coreografados. Ele conclamava o público: “Chegou a hora do charminho...”. Havia programas de charme nas rádios e TVs cariocas nos anos 80 e 90. Charmeiros atravessavam a cidade em busca do baile perfeito. Eloy di Carlo, Monsieur Lima e Cidinho Cambalhota, DJs de baile, mantiveram durante anos na TV um programa chamado Som na caixa, onde tocavam charme.

Os bailes de charme conquistaram o Rio, se espalharam mais uma vez pela Zona Norte em clubes como o Vera Cruz, na Abolição, e o Disco Voador, em Marechal Hermes, ganharam a Fundição Progresso, no Centro, e invadiram festas na Zona Sul, onde gatinhas iam aprender a dançar com os negões. DJ PC, Fernandinho DJ, Zezinho, Orlando, Loopy, Markin New Charme, reis da habilidade para manter as pistas cheias.

Em meados da década de 90, talvez pela associação enganosa do charme com o controverso funk, as pistas esvaziaram, os patrocinadores rarearam e os bailes foram reduzidos a poucos pontos da cidade, como o Viaduto de Madureira e o Bola Preta, e o Marajoara, em Niterói. A indumentária do charmeiro é baseada na elegância, cabelos tran-çados, salto alto, paletó, sapato de couro, como o soul man de outrora. A ostentação dos ídolos do black permanece, assim no rap como no samba, com muito ouro em correntes enormes, relógios e carrões, no melhor pimp style, dos cafetões dos filmes de Blaxploitation.

Papo reto

Em 1982, o estilo chamado Miami Bass chegava ao Brasil. O pessoal dançava break e ouvia os primeiros versos do rap, avô do funk carioca, do hip hop e dos sub-ritmos inspirados na fórmula base musical + versos declamados, que estão na moda até hoje. Os bailes eram uma continuação da velha ideia dos anos 70: uma pista para a ga-lera se expressar. Uma ideia que pegou, porque a tecnologia já permitia a não-músicos, mesmo com parcos recursos, fazerem aquela música e falarem de suas realidades, bem longe dos grandes palcos e dos estúdios de gravação oficiais. Era só arrumar uma base gravada e sair falando em cima, extravasando o pensamento, na linguagem da comunidade: papo reto.

O funk carioca tomou conta das pistas do Rio de Janeiro. Amado e odiado, defendido e rechaçado, o funk de galera bota hordas de jovens para dançar, em todo o Rio de Janeiro, de norte a sul. O hip hop tomou o lugar do rock’n roll na FM rebeldia do mundo todo, tomou para si o discurso político e social e se misturou a milhares de outros estilos, ganhou subtítulos, novas classificações. Mas não se pode esquecer que ele tem raízes no mesmo lugar do R&B, do funk, do soul, do charme, do rap, do blues e do jazz. E o samba não morreu, como muita gente temia. E diferente dos anos 70, a negritude carioca atual adora se identificar com o samba e suas raízes. O samba continua rindo, branco, black e beautiful, mais vivo e dinâmico do que nunca, ganhando também suas novas nuances, misturas e sabores.

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Black Rio

O movimento black perdeu a força como tal, mas ganhou vozes diversas como Ed Motta, Fabio, Maurício Manieri, Pedro Mariano, Aleh, Fernanda Abreu, Sampa Crew, Gabriel Moura, Farofa Ca-rioca, Seu Jorge, Djalma Correia, Cidade Negra, João Sabiá, Edmon Costa, Alexandre Dantas, Alexandre Lucas, Alex Guedes, D’Black, Abdullah, Paula Lima, Marcelo Silva e Dughettu, Marquinho O Sócio e a própria Banda Black Rio, que voltou à ativa pelas mãos de William Magalhães, filho de Oberdan, e anda botando todo mundo para dançar por aí. Os expoentes do hip hop como Thaíde e DJ Hum, Gabriel, o Pensador, Black Alien, Dex-ter, Pavilhão 9, Racionais MC, Negralha, MV Bill, Negra Li, Rappin Hood, Planet Hemp, BNegão e D2 se multiplicam, descobrindo, eles também, uma linguagem brasileira para o estilo. Mais uma voz para o Black Rio de Janeiro. Mais uma voz do Brasil.

A música é dinâmica, dialoga com as diversas lingua-gens que a atravessam e permeiam. Está sempre se modificando, somando, multiplicando, mostrando que é possível continuar uma ideia, adaptar e reciclar conceitos. Mas nunca, em toda a história da música pop, um estilo influenciou tantas e tão diferentes correntes musicais, em todo o mundo, como a soul music. Essa música de preto que pertence a todos nós e que nos faz dançar a todos, irmãos de qualquer cor, de qualquer lugar, em qualquer tempo.1

Historinhas

A biografia de Tim

Aproximadamente dois anos antes de Tim passar mal no palco e morrer, o produtor musical e editor Almir Chediak propôs a Tim uma série de encon-

tros onde conversariam sobre sua vida, gravando as conversas que se transformariam no conteúdo da sua futura biografia. Tim havia visitado um pai de santo que o alertou sobre a proximidade de sua morte. Pediu para suspenderem imediatamente os encontros: “Pô, Chediak, esse negócio de biogra-fia é pra gente que tá morrendo”. Estranhamente, duas semanas antes de morrer, convocou Chediak para retomar os encontros. Não teve tempo de contar muita coisa...

Wattstax

O Rio de Janeiro tremeu com a exibição do filme Wat-tstax, em 1973. Considerado por muitos uma resposta negra a Woodstock, o festival de Wattstax aconteceu em Los Angeles, para lembrar a Revolta de Watts, conflito racial que aconteceu em 1965. O filme sobre o festival reunia o reverendo Jesse Jackson, Isaac Hayes, Ted Lange e Richard Pryor, música, suingue e muito orgu-lho negro. Nos EUA, para garantir a presença maciça de membros da comunidade negra de Los Angeles, os ingressos foram vendidos a um dólar. Por aqui, o tumulto começou quando a primeira sessão do filme acabou. Ninguém queria sair da sala de exibição, en-quanto filas homéricas se formavam na porta, o pessoal nervoso, querendo entrar. Eram poucas as fontes de informação, pouco material de propaganda disponível naquele mundo sem internet, sem TV a cabo.

Urgência

Naqueles tempos, as pessoas não estavam tão fami-liarizadas com um baseado e nem era comum que os músicos fumassem no camarim. Para isso, Tim Maia criou um código, que a galera repetia quando queria se reunir para fumar: “Preciso urgentemente falar com Cassiano”.

1 Black Music na internet: I have a dream, o discurso de Martin Luther King. <http://www.youtube.com/watch?v=PbUtL_0vAJk>;Marvin Gaye. What’s going on. <http://www.youtube.com/watch?v=Y9KC7uhMY9s>;Tim Maia e Elis Regina. These are the songs. <http://www.youtube.com/watch?v=y7uzYxUe6Q8>;Simonal. Tributo a Martin Luther King. <http://www.youtube.com/watch?v=FH0Ws4Sw0ZE>;Cassiano. A Lua e eu. <http://www.youtube.com/watch?v=TIyAZKJcjnUe>; Dom Salvador e Grupo Abolição. Hei você. <http://www.youtube.com/watch?v=R9sXnGMACBQ>;Toni Tornado. BR 3. <http://www.youtube.com/watch?v=ovMQzhe4k-0&feature=related>; Combo no Carlos Imperial. <http://www.youtube.com/watch?v=LHpoikdIw-E>; Dafé ao vivo. <http://www.youtube.com/watch?v=ENGE3QBtOqo>; Tim Maia 1971. <http://www.youtube.com/watch?v=VqJSW4Uituk&feature=related>; Roberto Carlos. <http://www.youtube.com/watch?v=0uyV1D4r1-U&feature=related>; Jorge Ben e Trio Mocotó. <http://www.youtube.com/watch?v=hL-gY9Y6p3A&feature=related>; Jorge Ben e Tim Maia. <http://www.youtube.com/watch?v=KYnbGiroe8U&feature=channel>; Trio Mocotó. <http://www.youtube.com/watch?v=ONfHHYJxBvQ&feature=related>; Elis Regina. Black is beautiful. <http://www.youtube.com/watch?v=wvsyRzO5Ie8&feature=related>.

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Mandamentos Black(Gerson King Combo)

Brother!!! Assuma sua mente, brother! E chegue a uma poderosa conclusão De que os blacks não Querem ofender a ninguém, brother! O que nós queremos é dançar! Dançar, dançar e curtir muito som. Não sei se estou me fazendo entender. O certo é seguir os mandamentos BlackQue são, baby: Dançar como dança um black! Amar como ama um black! Andar como anda um black! Usar sempre o cumprimento black! Falar como fala um black! E eu te amo, brother!! Viver sempre na onda black! Ter orgulho de ser black! Curtir o amor de outro black! Saber que a cor branca, brother, É a cor da bandeira da paz, da purezaE esses são os pontos de partida Para toda a coisa boa, brother! Divina razão pela qualEu amo você também, brother! Eu te amo, brother!!

Tributo a Martin Luther King(Ronaldo Bôscoli e Wilson Simonal)

Sim sou negro de cor Meu irmão de minha cor O que te peço é luta sim, luta mais Que a luta está no fimCada negro que for Mais um negro virá Para lutar com sangue ou não Com uma canção também se luta irmão Ouvir minha voz Lutar por nósLuta negra demais, luta negra demais É lutar pela paz, é lutar pela paz Luta negra demais Para sermos iguais Para sermos iguais

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Barão Vermelho. Cazuza, Frejat, Guto Goffi, Maurício Barros e Dé Palmeira

Cantor, compositor, guitarrista e membro fundador do Barão Vermelho, banda criada em 1981.Roberto Frejat

O rock brasileiro dos anos 80

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O ano é 1980 e o Brasil respira desde o

ano anterior o primeiro sopro de liberdade com a anistia e a volta dos exilados; a inflação galopante faz com

que nas prateleiras dos supermercados os produtos mudem de preço no mesmo dia, criando-se então uma nova função, a dos remarcadores; para gravar

uma música você precisa aprová-la no Departamento de Censura; estamos isolados tecnologicamente do resto do mundo e temos uma dívida externa que, ouvimos falar todo

dia no telejornal, parece impagável.

Paralelo a tudo isso, você imagina que quem tem de 17 a 21 anos de idade nesse momento, cresceu num país onde fazer política é risco de vida e os principais símbolos de contestação estão ligados ao

rock, com sua rebeldia, sua poesia, os hippies, os punks, as drogas e o sexo. Pois é, foi dali que viemos.

Nesse mesmo ano, o festival de música da principal rede de televisão apresenta, entre outros, um grupo chamado Gang 90 e as Absurdetes, que, entre todos os participantes, era a grande dica do que viria a acontecer, mas poucos perceberam na hora.

O verão de 81/82 assiste à instalação do Circo Voador na Praia do Arpoador, onde se apresentam grupos de teatro, rock e dança, grupos esses que ninguém, além daqueles próprios garotos e garotas

que frequentam o local, ouviu falar. Nesse mesmo momento surge uma rádio que irradia de Niterói, com um sinal fraco que não varre toda a cidade do Rio de Janeiro, mas com uma

programação tão diferente das outras que a garotada tenta descobrir como sintonizá-la. A Fluminense FM fortalece essa nova cena com uma trilha sonora perfeita.

Passamos para 1982, quando, de uma hora

para outra, estoura nas rádios FM uma música de uma banda chamada Blitz, que fala de garotos e garotas, de

barzinho, de batata frita, com uma sonoridade que lembra os Beatles de Getting better no refrão. De repente, começam a surgir nas colunas de música

e nas pequenas casas de show da cidade, grupos com nomes como Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, João Penca e seus Miquinhos Amestrados, Kid Abelha e os Abóboras

Selvagens, entre outros. Alguns deles logo acontecem nas rádios, outros demoram um pouco mais, mas as gravadoras percebem que existe uma demanda de público forte para essa nova música

e começam a procurar novos artistas desta nova geração. Isso não acontece apenas no Rio, pois co-meçam a pipocar grupos de vários lugares do país: Titãs, Ira!, Ultraje a Rigor, Camisa de Vênus, Legião Urbana, Capital Inicial, Engenheiros do Havaí, Garotos da Rua etc.

Os programas de auditório de televisão muito populares recebem um novo ingrediente em sua mistura, sinal claro de que o público está respondendo à presença desses novos nomes no cenário musical brasileiro.

Em janeiro de1985, num espaço de apenas três anos após a proliferação de nossas bandas, acontece o Rock in Rio, um festival internacional em pleno Rio de Janeiro, com a presença de artistas inter-

nacionais de peso como Queen, Rod Stewart, James Taylor, AC/DC e George Benson; nomes consagrados da música brasileira como Erasmo Carlos e Ney Matogrosso; e alguns da nova

geração como Barão, Paralamas, Kid Abelha, entre outros. A partir daí, o Brasil reco-nhece definitivamente o que ficou conhecido como BRock como parte da música

popular brasileira.

O resto é história.

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Raul Seixas

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R I O e também posso chorar*

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Poeta e jornalista. Autor dos livros Minerar o branco (poemas, 2008), Há controvérsias 1 (crônicas, 2009) e Kiryri Rendáua Toribóca Opé: Humberto Mauro revisto por Ronaldo Werneck (2009, todos da Arte Paubrasil).

Ronaldo Werneck

* Com a providencial e preciosa colaboração de Aldir Blanc, André Filho, Antônio Maria, Aguile Chaves, Ary Barroso, Ataulfo Alves, Baden Powell, Billy Blanco, Braguinha, Caetano Veloso, Carlinhos Vergueiro, Carlos Imperial, Cartola, Chico Buarque, Didi & Mestrinho, Dom & Ravel, Dorival Caymmi, Duda Machado, Edu Lobo, Elton Medeiros, Francis Hime, Ferreira Gullar, Geraldo Carneiro, Geraldo Queiroz, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Guilherme de Brito, Guinga, Hermínio Bello de Carvalho, Ismael Silva, João Nogueira, Jorge Benjor, Lamartine Babo, Luiz Antônio, Luiz Bandeira, Luiz Bonfá, Mário Lago, Marcos Valle, Macalé, Martinho da Vila, Mirabeau, Moacyr Luz, Monsueto, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Novelli, Paulinho da Viola, Paulo César Feital, Paulo César Pinheiro, Paulo Marques, Paulo Sérgio Valle, Roberto e Erasmo Carlos, Ronaldo Bôscoli, Sérgio Ricardo, Silas de Oliveira, Tito Madi, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Wilson Batista, Zé Kéti.

“As imagens do país desse cinema entraram nas palavras das canções”

Caetano Veloso

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Para Roberto M. Moura, in memoriam

Abre a cortina do passado-presente. Dessa janela, sozinho, ouvir a cidade me agitacalma. Nas noites claras de luar, a mulata sestrosa de olhar indiferente. Como num romance, o homem de meus sonhos me apareceu no dancing. O filme quis dizer “Eu sou o samba”. Era mais um. A voz do morro rasgou a tela do cinema. Ele me comia com aqueles olhos de comer fotografia. E a luz do nosso canto – e as vozes do poema – necessitaram transformar-se tanto que o samba quis dizer: eu sou cinema. Eu disse xiiiis. E o filme disse: eu quero ser poema. E de close em close fui perdendo a pose. E até sorri, feliz. Como no cinema, me mandava às vezes uma rosa e um poema. Foco de luz. Eu, feito uma gema, me des-milinguindo toda ao som do blues. Mas quero ser filme e filme-filme. Disse ele que agora só me amava como esposa, não como star. E o samba agora diz: eu sou a luz. Quero ser velho de novo eterno, quero ser novo de novo. Nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drinque no dancing. Quero ser Ganga bruta e clara gema. Nunca uma espelunca. Eu sou o samba viva o cinema.

Lugar no futuro

Nem bem bebeu da batida Doce Ilusão, nem bem provou o famoso feijão da Vicentina – e tinha gente de todo o lugar no Pagode do Vavá – o pivete que só comia luz lambuzou de verde-amarelo o sinal fechado e saiu gritando Eu te amo meu Brasil! Eu te amo! E saiu correndo pra pegar o seu lugar no futuro. E feito luz sumiu na poeira das ruas.

Era fevereiro quase março, e o Rio de muitos janeiros continuava lindo. E lá vinha o carnaval e a madrugada que vem raiando. Na vida uma nova canção: é de manhã, vem o sol. De manhã, tão bonita manhã. Me dê a mão, vamos sair por aí sem pensar, me dê a mão: vamos sair pra ver o sol.

Olhos abertos em vento sobre o espaço do Aterro, sobre o espaço sobre o mar. Quem vai ao cinema, quem vai ao teatro. O mar vai longe do Flamengo, o céu vai longe e suspenso.

Quem vai ao trabalho, quem vai descansar. O céu vai longe do Outeiro, o céu vai longe da Glória. Quem canta, quem pensa na vida. O céu vai longe suspenso em luzes de luas mortas. Lá não tem brisa não tem verde-azuis não tem frescura nem atrevimento. Lá não figura no mapa. No avesso da montanha, é labi-rinto, é contrassenha, é cara a tapa. Fala, Penha. Fala, Irajá. Fala, Olaria. Fala, Acari, Vigário Geral. Fala, Piedade. Casas sem cor ruas de pó, cidade que não se pinta, que é sem vaidade. Quem olha a avenida, quem espera voltar. Os automóveis parecem voar. Luzes de uma nova aurora que mantém a grama nova e o dia sempre nascendo.

Vamos juntos cantar o azul da manhã que nasceu. Vento do mar e o sol a brilhar. Calçada cheia de gente a passar e a me ver passar. Grafite e diamante, um brejo em Irajá. Negro Caribe, mar fundão de Paquetá. Cidade Maviosa, rascunho da saudade. Rio que mora no mar. E o mar na palma da mão é sal, é sol, é sul. São mãos se descobrindo em tanto azul. Pelas manhãs tu és a vida a cantar. Já mandei lhe entregar o mar que você viu, que você pediu outro dia em Copacabana. Os sonhos, todos os desejos seus: um mar azul mais distante e a estrela mais brilhante lá do céu. O mar, eterno cantor, ao te beijar ficou perdido de amor. E hoje vive a murmurar: só a ti Copacabana eu hei de amar.

Da janela a cidade se ilumina como nunca jamais se iluminou. São três horas da tarde, é domingo na cidade, no Cristo Redentor. As notícias que leio conheço, já sabia antes mesmo de ler. Qual o filme que você quer ver. Vai, faz ouvir os acordes

“Mesmo que os cantores sejam falsos como eu Serão bonitas, não importa São bonitas as canções”

Chico Buarque

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do choro-canção. O sol vestiu terno de linho e cha-péu Panamá e brilhou bem mais feliz quando Leila Diniz foi cabocla de Yemanjá. Desbanca a outra, a tal que abusa de ser tão maravilhosa. Na boca da noite de Elis uma luz vadiava. A lua bebeu Moët & Chandon num motel do Joá e brilhou bem mais feliz quando era uma glória Darlene escandalizar. Lá não tem moças douradas, não tem turistas, não sai foto nas revistas. Fala, Maré. Fala, Madureira. Fala, Pavuna. Fala, Inhaúma. Cordovil, Pilares. Espalha a tua voz nos arredores, carrega a tua cruz e os teus tambores.

Ah, o azul, o azul, cor de nossa devoção. Não qual-quer azul, azul de qualquer céu, qualquer dia. Aquele azul que não era do céu nem era do mar. Do Rio que é baía. Guanabarabaía que sorri de tudo, serras de veludo. Lá não tem claro-escuro. A luz é dura. A chapa é quente. Que futuro tem aquela gente toda. Perdido em ti, eu ando em roda. É pau, é pedra, é fim de linha. É lenha, é fogo, é foda. Fala, Penha. Fala, Irajá. Fala, Encantado, Bangu. Fala, Realengo. Fala, Maré. Fala, Madureira. Fala, Meriti, Nova Iguaçu. Fala, Paciência, Piedade & adjacências.

O resto é mar

As águas vão rolar perdidamente trem, perdida-mente bala, vagão no ar, bicão passando ao largo, Penha singular. As chaves da cidade Momo vai guardar. Quando vi você passar senti todo o meu corpo tomado. Foi um rio-Portela que passou em minha vida e meu coração se deixou levar. O res-to é mar. Os olhos já não podem ver. Eu te vejo sumir por aí, te avisei que a cidade era um vão. Dá tua mão. A morena vai sambar, seu corpo todo balançar. Balança toda pra andar. Balança até pra falar. Balança mesmo que é bom, do Leme até o Leblon. Eu vejo na luz dos seus olhos as noites do Rio ao luar. Vejo o mesmo mar, balan-balançando sem parar. Coisas que só o coração pode entender. Os letreiros a te colorir embaraçam a minha visão. Fundamental é mesmo o amor. Copacabana, Co-pacabana. Cristo Redentor. Cada clarão é como um dia depois de outro dia. Este samba é só porque, Rio, eu gosto de você. O resto é mar.

É tudo que não sei contar. É ela menina que vem e que passa num doce balanço. Você passa, eu acho

graça. Passas sem ver teu vigia catando a poesia que entornas no chão. Nessa vida tudo passa e você tam-bém passou. Por causa do amor, do corpo dourado, do sol de Ipanema. A beleza resiste, e tudo assim tão triste. Em Ipanema, em que bar, em que cinema te esqueces de mim. Da primeira vez era a cidade, da segunda o cais e a eternidade. No sinal fechado ele vende chiclete, capricha na flanela e se chama Pelé. Pinta na janela, batalha algum trocado, aponta um canivete. E até. Vou querer viver em paz: o destino é quem me diz. Agora eu já sei – quando ela passa, a beleza que existe, o mundo inteirinho se enche de graça. Agora eu já sei da onda que se ergueu no mar.

Por causa do amor e das estrelas que esquecemos de contar. Enquanto a noite vem nos envolver, o amor se deixa surpreender. O resto é mar. Menino do Rio, calor que provoca arrepio. Tensão flutuante do Rio. No meu lado delinquente, tem sempre um tipo va-lente que tem olhar muito louco e desafia o futuro. Que ama o cheiro da rua, costuma andar na avenida no lado escuro onde a vida continua. Eu canto pra Deus proteger-te. Menino vadio, tensão flutuante do Rio. Eu canto pra Deus proteger-te. Tudo o que sonhares, todos os lugares, as ondas dos mares. Eu canto pra Deus proteger-te. Na contramão, dança paralama, sobe no passeio, não se liga em freio, nem direção. No sinal fechado ele transa chiclete. E se chama pivete. Tensão flutuante do Rio.

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Celeiro de bambas

Quando pensa no futuro, não esquece o passado aquele sambista – também vindo do Pagode do Vavá. E dança na dança da solidão. Quando vem a madrugada seu pensamento vagueia. Água de beber. Eu quis amar, mas tive medo. Água de beber. O amor sabe um segredo. Mas a fonte secou. Eu sempre tive uma certeza, que só me deu desilusão. Eu não sou água pra me tratares assim. É que o amor é uma tristeza, muita mágoa demais para um coração. Água de beber. Só na hora da sede é que procuras por mim.

Deixa São Carlos falar, deixa o Salgueiro dizer: fala, Mangueira – mostra a força da sua tradição. Sei lá, não sei. Mangueira é celeiro de bambas. Os versos de Mangueira são modestos, mas há sempre força de expressão: seus barracos são castelos em nossa imaginação. O morro veio me chamar. A minha música não é de levantar poeira, mas pode entrar no barracão onde a cabrocha pendura a saia no amanhecer da quarta-feira. Me sinto pisando um chão de esmeraldas. Mangueira, estou aqui na plataforma da Estação Primeira. Sob uma chuva de rosas, meu sangue jorra das veias. De terno branco e chapéu de palha vou me apresentar à minha nova parceira. Já mandei subir o piano pra Mangueira.

Sei lá, falaram tanto. Mas dessa vez a morena não foi embora. Morena boca de ouro que nos faz sofrer, o teu jeitinho é que me mata. Eu sou o samba, morena. Disseram que você era a maiorial. Era. Roda morena, cai não cai. Ginga morena, vai não vai. Eu sou o samba, morena, sou natural aqui do Rio de Janeiro. Meu coração é um pandeiro marcando o compasso de um samba feiticeiro. O amor é um samba tão diferente. A voz do morro sou eu mesmo, sim senhor. Vista assim do alto, a Mangueira mais parece um céu no chão.

Quando eu piso em folhas secas caídas de uma mangueira penso na minha escola e nos poetas da minha Estação Primeira. Habitada por gente simples e tão pobre, que só tem o sol que a todos cobre, como podes, Mangueira, cantar? A poesia fez um mar, se alastrou. Não sei quantas vezes subi o morro cantando. Sempre o sol me queimando.

Quando o tempo avisar que eu não posso mais cantar, sei que vou sentir saudade, ao lado do meu violão, da minha mocidade.

Corre e me socorre

Rio de janeiro, eu sou mais você. Rio Babilônia. Rio de Vasco e Botafogo, América e Bangu. Maracanã vibrando em dia de Fla-Flu. Rio da alegria geral. Urbana, suburbana e rural. São Cristóvão, Paço Imperial, Quinta da Boa Vista. Mangueira, Estação Primeira. Maracanã com Flamengo. E o samba em Madureira. Maracanã é nossa catedral. E com a Mangueira do seu lado, é bom sinal. Quando eu ficar assim, morrendo após o porre, Maracanã, meu rio, ai corre e me socorre. Chapinha premiada e lata de sardinha. O castigo e o perdão. O modess e a camisinha. Injeta em minhas veias teu soro poluído de pilha e folha morta. Ai, rio do meu Rio. Ai, lixo da cidade. Fique de olho no apito, que o jogo é na raça e uma luta se ganha no grito. Sou tricolor de coração. Para estufar esse filó como eu sonhei só se eu fosse o Rei. Fascina pela sua disciplina, o Fluminense me domina. Para aplicar uma firula exata, pintura mais fundamental que um chute a gol, com precisão de flecha e folha seca. Hei de torcer, torcer. Hei de torcer até morrer. A torcida americana é toda assim, a começar por mim.

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O domingo é de guerra, o boteco é do lado. Na hora marcada, a meia rasgada, o joelho ralado. Para avançar na vaga geometria, o corredor na paralela do impossível, é debaixo de chuva, é debaixo de sol. No sentimento diagonal do homem-gol, rasgando o chão e costurando a linha. Botafogo, Botafogo, campeão desde 1910. É a falta de sorte, é a vida, é a morte. É a contrapartida. Um senhor chapéu para delírio das gerais no coliseu. Na estrada dos louros, um facho de luz tua estrela solitária te conduz! É a fome, é a sede, é a bola na rede, a torcida a favor. Uma vez Flamengo, sempre Flamengo. Para anular a natural catimba do cantor. Vencer, vencer. Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer. Para captar o visual de um chute a gol e a emoção da ideia quando ginga. Sou tricolor do coração. Botafogo, Botafogo, campeão. Hei de torcer até morrer.

Como um ladrão

Chispando num outro sinal fechado, o pivete não mais vende chiclete nem capricha na flanela. E manda de lá: como um ladrão, roubei. Rostos, restos, risos. Logo dobra a Carioca, desce a Frei Caneca, se manda pra Tijuca, sobe o Borel. Como um ladrão, corri riscos, mares, medos. E meio se maloca e agita numa boca e descola uma mutuca e um papel. E fui deixando rastros, marcas, mortes. Afiando o canive-te, rebate de lá o pivete: e carregando pedras, presas, pesos. E me entregando sempre, pelo prazer de ter as sensações totais. E desprezar o tempo, o tédio, o certo. Pois é, tudo começou assim. Alguém se vingou em mim, inventando o que eu não pratiquei.

Samba solto por dentro – olé-olé, olé-olá – soltam seus alentos outros também sambistas saídos do

Pagode do Vavá: não chore ainda não, que eu tenho um violão e nós vamos cantar. E lá vou eu, melhor que mereço, pagando a bom preço a evolução. A mão que toca um violão se for preciso faz a guerra. Ninguém aguenta a força de um samba, não. A voz que canta uma canção se for preciso canta um hino, louva a morte. Ai, se não fosse o violão e o jeito de fazer samba do tempo que quem fazia, ai, corria do camburão. Hoje não corre não. Quem, no aceso da paixão, entregou o coração a uma mulher não soube o mundo compreender. Ai, se eu pudesse entender o que dizem os seus olhos, esse seu olhar que quando encontra o meu fala de umas coisas que eu não posso acreditar. Onde andarás nesta tarde vazia, tão clara e sem fim. Amor é assim, faz tudo mudar. Mas a ilusão quando se desfaz dói no coração de quem sonhou. De quem se deixou escravizar e, no abismo, por um amor qualquer despencar. E é por isso que eu saio pra rua sem saber pra quê. Na esperança talvez de que o acaso por mero descaso me leve a você.

Foi quando topei com você. Parei, procurei, não encontrei nem mais um sinal de emoção. Sem briga, sem nada demais. Porque a bagunça que eu fiz, ma-chucado, bagunça que eu fiz tão calado, foi dentro do meu coração. Covarde sei que me podem chamar. Eu sei que vão censurar o meu proceder porque não calo no peito essa dor. Nem vai o mundo compreender. Eu sei, mulher, que você mesma vai dizer que eu voltei pra me humilhar. Se você jurar que me tem amor eu posso me regenerar. Mas se é para fingir, mulher, a orgia assim não vou deixar. É, mas não faz mal. Nossa ima-ginação pelo espaço, vai, vai. Sem desconfiar que mais tarde cai para nunca mais voar. Você pode até sorrir. Perdão foi feito pra gente pedir. A minha alegria atra-vessou o mar e ancorou na passarela. Na madrugada agora ando perdido. Eu quero me esconder debaixo dessa sua saia pra fugir do mundo. Será que eu serei o dono dessa festa, um rei no meio de uma gente tão modesta? Vão me levando, vão me cantando, tenho entrada franca em qualquer botequim. Ao invés de maior, eu sou menor. Mas pretendo me embrenhar no emaranhado desses seus cabelos.

Ao invés de ser rei, eu sou plebeu. Acredito ser o mais valente, nessa luta do rochedo com o mar. É hoje o dia da alegria, e a tristeza nem pode pensar em chegar. Sou um samba e no amor eu sou mais eu. Seja na rua, seja no rádio, me deixe hipnoti-

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zado pra acabar de vez com essa disritmia. Ou lá no morro, num gurufim, vem logo, vem curar seu nego que chegou de porre lá da boemia. Se você, num samba de gente bem – violão, pandeiro – não vai encontrar ninguém – tamborim na marcação – é porque o samba que vai nascer só vai mesmo acontecer quando houver um apito no samba. E reco-reco. Que bonito é um tamborim a batucar. E teleco-teco. Trabalho o ano inteiro sem tocar no rádio. Leva meu samba, meu mensageiro, este recado. Quero um samba na cidade, não põe corda no meu bloco nem vem com teu carro-chefe. Vejam esta maravilha de cenário: é um episódio relicário que o artista escolheu pra este carnaval. Não dá ordem ao pessoal, não traz lema nem divisa, que a gente não precisa que organizem nosso carnaval.

No meio de uma gente tão modesta eu vim descendo a serra cheio de euforia para desfilar. Hoje é dia do riso chorar. Nada pra beber, nada pra fumar, nada pra ligar. Assim não dá. Se não der vai ter que dar. Não sou candidato a nada. Meu negócio é madru-gada, mas meu coração não se conforma. O meu peito é do contra e por isso mete bronca neste samba plataforma. O asfalto como passarela será a tela do Brasil em forma de aquarela. Tudo é belo e tem lindo matiz: o Rio do samba e das batucadas, dos malan-dros e mulatas de requebros febris. Por um bloco que derrube esse coreto, por passistas à vontade que não dancem o minueto. Este samba plataforma por um bloco sem bandeira ou fingimento, que balance e abagunce o desfile e o julgamento.

A voz do mar de lágrimas

Quem quiser saber como vai meu pobre coração ouve a voz do mar. Quem me navega é o mar. Pois é, tudo começou assim. Não sei como foste acreditar em mentira tão vulgar. Sofri a maior decepção. Não sei o que foi te derrubar o castelo que eu fiz. Pois é, tudo terminou assim. Jurar com lágrimas que me ama não adianta nada, eu não vou acreditar. Meu sabiá, meu violão, foi tudo o que ficou pra machucar. Quando você se separou de mim quase que a minha vida teve fim. Sofri, chorei tanto que nem sei. Viver não me custa nada. Só me custa a vida. Custa um samba, um samba e meio. Meu saldo deve ser bom. Quem me navega é o mar. Sal e lágrima.

Mas não venha querer me consolar que agora não dá mais pé nem nunca mais vai dar. Também quem man-dou se levantar: quem levantou pra sair perde o lugar. Nas mãos a mesma viola onde eu gravei o teu nome. Venho do samba há tempo, nega, venho parando por aí. Mistura de branco com negro, mistura de ódio e vingança, mistura de amor e chamego. A tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim. Se eu for pensar muito na vida morro cedo, amor. A lágrima clara sobre a pele escura. Não choro pra ninguém me ver sofrer de desgosto. As rugas fizeram residência no meu rosto. Tudo isto, batido em compasso, é samba, é samba, é samba. Sei que vou morrer, não sei o dia. Hei de ter um alguém pra chorar por mim através de um pandeiro ou de um tamborim.

Em Mangueira quando morre um poeta todos cho-ram. Vivo tranquilo em Mangueira porque sei que alguém há de chorar quando eu morrer. O samba é minha herança e eu mantenho a tradição. Sei que vou morrer, não sei a hora. Fala meu pandeiro, fala o ano inteiro, mostra a todo mundo o seu valor. E alguma coisa acontece no quando agora em mim. Cantando eu mando a tristeza embora. Canta meu Salgueiro, canta bem fagueiro. Eu quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba. Cabrochas de pele de bronze no Estácio, Salgueiro, Piedade. É samba, é samba, é samba. Da Vila Isabel, Praça Onze, dos cantos de toda cidade malandros por noites a fio nas gingas que o corpo descamba.

Com açúcar, com afeto – diz de lá a cabrocha – fiz seu doce predileto pra você parar em casa. Qual o quê! Com seu terno mais bonito, você sai, não acredito quando diz que não se atrasa. Certo dia fui levado a um samba diferente entre a gente da gravata e do plastrom. Na gafieira segue o baile calmamente com muita gente dando volta no salão. Bebida servida em taça, champanhe em vez de cachaça. Eu já corri de vento em popa, mas agora com que roupa? Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou? Tudo vai bem, mas eis porém que de repente um pé subiu e alguém de cara foi ao chão. Mesmo assim o samba lá é bom.

E nessa altura, como parte da rotina, o pistom tira a surdina e põe as coisas no lugar. Eu vi muita grã-fina bonita rebolando. Sambando, sambando. Não sabia que as distintas eram assim. Se eu soubesse

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também como era o ambiente, decente, jogava um pano legal por cima de mim. Pandeiros batendo, batendo, enquanto soluça uma flauta. O samba ainda vai nascer. Violões com a prima gemendo baixinho que a noite vai alta. O samba ainda não chegou. O samba não vai morrer. Macumba, despacho, muamba. Veja, o dia ainda não raiou. Quem é que não sabe? O samba é o pai do prazer. Foi num samba de gente bamba que eu te conheci, faceira. Fazendo visagem, passando rasteira. O samba é o filho da dor. O grande poder transformador. É samba, é samba, é samba.

O bar me chama, o samba espanta

Hoje eu vim andar contigo no espaço, tentar fazer em teus braços um samba puro de amor. Mas o mundo me condena e ninguém tem pena, falando sempre mal do meu nome, deixando de saber se eu vou morrer de sede ou se vou morrer de fome. Se quiser fumar, eu fumo; se quiser beber, eu bebo. Não interessa a ninguém se o meu passado foi lama. Hoje quem me difama, viveu na lama também. Anoiteceu. Outra vez vou sair, sem nada a esperar, sem ter pra onde ir. Sou da noite do Rio, da noite macia do Rio. Vou caminhar por aí a cantar. Eu sou deste bar que me chama. À noite a cidade é tão bonita, do Lamas ao Capela. Passo no Bar Luís e no Amarelinho é que eu vou terminar. Se meu passado foi lama, hoje quem me difama viveu no Lamas também. Guarda bem minha viola, meu amor e meu cansaço. Hoje eu vim sem saber nada, querendo aprender. Quanto a você da aristocracia, que tem dinheiro, mas não compra a alegria, há de viver eternamente escravo dessa gente que cultiva a hipocrisia. As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender. Agora, leva o recado a quem me deu tanto dissabor: diz que eu vivo bem melhor assim e que no passado eu fui um sofredor. E agora já não sou, o que passou, passou.

E pelo sambista passou-passou, zombando da vida, passou o malandro que vai se defendendo, mas sem querer se amofinar. O tamborim bateu, chamando o pessoal. Um violão gemeu num ritmo legal. E começou assim, em plena madrugada, um tamborim no samba de calçada visitando o sono da cidade. O samba espanta, ele diz e rediz, só porque a Dina subiu o morro do Pinto pra lhe procurar. Acreditava na vida, na alegria de ser, nas coisas do coração. Nas mãos um muito fazer. Sentava bem lá

no alto, pivete olhando a cidade, sentindo o cheiro do asfalto. A Dina subiu, e não me encontrando – diz de lá o malandro – foi ao morro da Favela com a filha da Estela pra me perturbar.

Mas eu estava lá no morro de São Carlos quando ela chegou fazendo um escândalo, fazendo quizumba, dizendo que levou meu nome pra macumba. Des-ceu por necessidade, ó Dina, teu menino desceu o São Carlos, pegou um sonho e partiu. Havia um fogo em seus olhos, um fogo de não se apagar. Só porque faz uma semana que não deixo uma grana pra nossa despesa. Ela pensa que minha vida é uma beleza. Diz lá pra Dina que eu volto, que seu guri não fugiu. Eu dou duro no baralho pra poder comer. Só quis saber como é, qual é. A minha vida não é mole, não. Passado é um pé no chão e um sabiá. Presente é a porta aberta. E futuro é o que virá, mas, e daí? Amanhã bato a perna no mundo. É que o mundo é que é meu lugar. Eu já ando as-sustado, sem paradeiro. Sou um marginal brasileiro.

Só se cozinha ilusão, restos que a feira deixou. Mas Zelão dizia sempre a sorrir que um pobre ajuda outro pobre até melhorar. Choveu, choveu. A chuva jogou seu barraco no chão. Todo o morro entendeu quando Zelão chorou. Ninguém riu, ninguém brincou e era carnaval. O morro estava em festa quando alguém caiu. Mais um malandro fechou o paletó. Quatro velas acesas em cima de uma mesa. E uma subscrição para ser enterrado. Morreu Malvadeza Durão. Valente, mas muito considerado. Diz-rediz o malandro, diz-que foi fazer um samba em homenagem à nata da malandragem, que diz conhecer de outros carnavais.

Diz-que foi à Lapa e perdeu a viagem: aquela ma-landragem não existe mais. Tenta pensar no futuro, no escuro tenta pensar. Mas o malandro para valer, não espalha, aposentou a navalha. Dizem as más línguas que ele até trabalha, mora lá longe chacoa-lha, no trem da central. E manda de lá o velho-novo malandro: quem trabalha é que tem razão, eu digo e não tenho medo de errar. O bonde São Januário leva mais um operário: sou eu que vou trabalhar. Vai trabalhar, vagabundo! – rebate o malandro outro, de outroragora. Vai trabalhar, criatura. Ma-landro quando morre vira samba. Deus permite a todo mundo uma loucura. Vai te enforcar. Vai te entregar. Vai te estragar. Vai trabalhar... vagabundo!

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Frutas, facas, alfavacas

Na feira livre do Estácio, preso numa roda de bamba, o malandro deu de cara com três turistas trêbados trauteando tartamudos Città meravigliosa! cheia de mi-lencantos em meio a frutas, facas, alfavacas, frufru de feirantes e tutti quanti aliterantes. E súbito acontece uma mulata daquelas, uma que se dizia Florisbela. Era dia de carnaval e o malandro fingiu que nem viu sua cabrocha de fé e moradia a lhe puxar pela camisa em meio a toda aquela algaravia. Sua velha cabrocha que no compasso do samba de lá dizia: encontrei o meu pedaço na avenida de camisa amarela, cantando a Flo-risbela. Não estava nada bom o meu pedaço, trauteava a mulatantã. Na verdade estava bem mamado, bem chumbado, atravessado e foi por aí cambaleando, se acabando num cordão com o reco-reco na mão. Era dia de carnaval quando alguém não se sabe de onde anunciou Portela! Portela! E o samba trazendo alvo-rada seu coração conquistou. Mais ainda: quando nem bem uma esquina dobrou, as portelas pernas ainda bambas, ele deu com um cara a cantar eu sou o samba, um mulato maneiro a dizer sou natural aqui do Rio de Janeiro e metendo bronca: em qualquer esquina eu paro em qualquer botequim eu bebo. E se houver motivo é mais um samba que eu faço. E podem me prender que eu não mudo de opinião.

Pelo que dizia, o mulato muitos amigos teria, e era pra lá de popular. Como aqueloutro, comandando o bloco que lá vinha. O que será que andam com-binando no breu das tocas, que anda nas cabeças, anda nas bocas? O que será que estão falando alto pelos botecos? E vinha de lá um magrelo sem queixo, cigarro caindo da boca: agora vou mudar minha conduta, vou tratar você com força bruta. O cinema falado é o grande culpado da transformação dessa gente. Que não tem governo nem nunca terá. Que não tem vergonha nem nunca terá.

Fecha a cortina do passado

O que será, eu sei, que o meu peito é lona arma-da. Circo vive é de ilusão. Chorei com saudades da Guanabara refulgindo de estrelas claras longe dessa devastação. Passei pelas praias da Ilha do Governador e subi São Conrado até o Redentor. Lá no morro Encantado eu pedi Piedade. Plantei

Ramos de Laranjeiras, foi meu Juramento. No Flamengo, Catete, na Lapa e no Centro. Pois é, pra gente respirar, Brasil, Brasil, tira as flechas do peito do meu Padroeiro, que São Sebastião do Rio de Janeiro ainda pode se salvar. Eu poderia ficar sempre assim como uma casa sombria. Percorrer correndo os corredores em silêncio. Mas quero as janelas abrir para que o sol possa vir iluminar. Muita calma pra pensar e ter tempo pra sonhar. Sim, eu poderia procurar por dentro a casa, cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas. Mas eu prefiro abrir as janelas pra que entrem todos os insetos. Da janela vê-se o Corcovado, o Redentor, que lindo.

Agora, falando sério, eu queria não cantar. Meu Rio que não dorme porque não se cansa. Dou um chute no lirismo, um pega no cachorro e um tiro no sabiá. Não me leve a mal. Me leve à toa pela última vez ao quiosque, ao Planetário, ao Cais do Porto, ao Paço. Agora, falando sério, eu queria não mentir. Meu Rio que balança, sorrio, só Rio. Da janela vê-se o Corcovado. Estrela vulgar a vagar. Passou este verão, outros passarão. Eu passo. Mas tenho os olhos tranquilos. Sobre um pátio abando-nado, profetas nos corredores, mortos embaixo da escada. Mas isso faz muito tempo. E outras pala-vras já queriam se cantar. De ordem e desordem, de loucura. O filme quis dizer “Eu sou o samba”. A voz do morro rasgou a tela do cinema. Fecha a cortina do passado. Dessa janela, sozinho, olhar a cidade me acalma. Rio, e também posso chorar.

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Beth Carvalho e Fundo de Quintal

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Chico Buarque

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