revista recine nº 5 - 2008

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Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo Ano 5 Nº 5 Arquivo Nacional Outubro de 2008

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Futebol, cinema e paixão. Desta vez, o tema é o futebol. Embalado pela paixão mística da torcida e pela insuficiente onda de recordações dos cinqüenta anos da conquista da primeira Copa do Mundo. O esforço dos cineastas nacionais em unir as paixões pelo cinema e o futebol e alguns dos mestres da palavra escrita que declararam sua relação de amor pelos clubes, os grandes jogadores e a seleção nacional.

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Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo Ano 5 Nº 5 Arquivo Nacional Outubro de 2008

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ISSN 1983-1021

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©2008 by Arquivo Nacional do BrasilPraça da República, 173CEP 20211-350 - Rio de Janeiro - RJ - BrasilTel. (21) 2179-1312 2179-1214 2179-1215

Presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência da RepúblicaDilma Vana Rousseff

Secretária-Executiva da Casa Civilda Presidência da RepúblicaErenice Alves Guerra

Diretor-Geral do Arquivo NacionalJaime Antunes da Silva

Conselho EditorialJaime Antunes da Silva, Presidente; Haroldo Mescolin Regal,Coordenação Geral de Acesso e Difusão Documental; Inez Stampa,Coordenação Geral de Processamento e Preservação do Acervo;Maria Elizabeth Brêa Monteiro, Coordenação de Pesquisa e Difusãodo Acervo; Maria Esperança de Resende, Coordenação Regionalno Distrito Federal; Maria Izabel de Oliveira, Coordenação Geralde Gestão de Documentos; Marilena Leite Paes, Coordenação deApoio ao Conarq; Mauro Domingues de Sá, Coordenação dePreservação do Acervo; Mauro Lerner Markowski, Coordenaçãode Documentos Escritos; Renato Diniz, Coordenação Geral deAdministração; Samuel Maia dos Santos, Coordenação de Aten-dimento a Distância; Valéria Maria Morse Alves, Coordenação deConsultas ao Acervo; Wanda Ribeiro, Coordenação de DocumentosAudiovisuais e Cartográficos.

EditoresGABINETE DA DIREÇÃO-GERAL

Clovis Molinari Jr. e Heloisa Frossard

COORDENAÇÃO DE PESQUISA E DIFUSÃO DO ACERVO

Maria Elizabeth Brêa Monteiro

Supervisão EditorialAlba Gisele Gouget • Alzira Reis • Renata Ferreira

Edição de Texto e RevisãoAlba Gisele Gouget • Renata Ferreira

Projeto Gráfico, Diagramação e CapaAlzira Reis

COORDENAÇÃO DE DOCUMENTOS AUDIOVISUAIS E CARTOGRÁFICOS

Wanda Ribeiro

Pesquisa e Elaboração de LegendasTereza Eleutério de Sousa

Pesquisa de ImagensBruna Andrade • Rodrigo Mendes Queiroz • Sérgio Lima •Tereza Eleutério de Sousa • Renata Ferreira • Scheila Cecchetti

COORDENAÇÃO DE PRESERVAÇÃO DO ACERVO

Mauro Domingues

Digitalização de ImagensFlávio Lopes • Cícero Bispo • Adolfo Galdino • Janair Magalhães•Fábio Martins • Luiz Fernando Nascimento

Apoio AdministrativoGABINETE DA DIREÇÃO-GERAL

Sônia Maria de Almeida

AgradecimentosGiselle Teixeira • João Máximo

Agradecimentos EspeciaisO Arquivo Nacional agradece a todas as editoras, aos autores efamiliares dos autores presentes nesta edição pela cessão dos direi-tos dos textos que compõem a Revista Recine 2008.À Biblioteca Nacional, ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, àConfederação Brasileira de Futebol (CBF), ao Centro Brasileiro Britâni-co, ao Fluminense Football Club, ao Centro de Pesquisa e Documen-tação de História Contemporânea do Brasil da Fundação GetúlioVargas (CPDOC/FGV), ao fotógrafo Bruno Torturra, e aos familiaresde Joaquim Pedro de Andrade, pelas imagens desta publicação.

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Apresentação 6Clovis Molinari Jr.

O cinema entra em campo, o campo no cinema 12Victor Andrade de Melo

Documentário e ficção em curtas-metragens bons de bola 18Renata dos Santos Ferreira

Vestígios do passado 24Eduardo Escorel

Narrativas de transmissões de futebol 32Ilana Feldman

1958 – O ano em que o mundo descobriu o Brasil 34Luiz Rosemberg Filho

Futebol: tema de filmes 36Oswaldo Caldeira

O homem do futebol-arte 40Bruno Torturra

O futebol como prática desportiva 42Tarcísio Serpa Normando

O jogo de elite que virou o esporte das multidões 52Marco André Balloussier

Nasce o Fluminense 58Mário Filho

Olhem elas aí... 62Heloisa Frossard

Um toque de letra 68Aline Camargo Torres, Leonardo Augusto Silva Fontese Rodrigo Cavaliere Mourelle

A prontidão para a violência 72Gerson Noronha Filho

Da técnica à tática 80Alcides Scaglia

Canto de amor e de angústia à seleção de ouro do Brasil 82Vinícius de Moraes

O drama das sete copas 84Nelson Rodrigues

As hienas contra Saldanha 90Nelson Rodrigues

Friedenreich, “El Tigre” 94João Máximo

O maior goleiro do mundo 98Nelson Rodrigues

Nilton Santos, a Enciclopédia 100João Máximo e Marcos de Castro

Descoberta de Garrincha 108Nelson Rodrigues

O anjo das pernas tortas 110Vinícius de Moraes

Garrincha, lendas e películas desbotadas 112André Andries

Garrincha, o homem que ganhou duas copas do mundo para o Brasil 116José Claudio Mattar

A realeza de Pelé 120Nelson Rodrigues

Os imperdoáveis ou a super-humanidade dos goleiros 122Alvanísio Damasceno

Botafogo e seu torcedor poeta 130Paulo Mendes Campos

Os irmãos Karamazov 134Nelson Rodrigues

Recordações em preto e vermelho 136Jeferson de Andrade

Esse cara aí 138Aldir Blanc

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O Recine – Festival Internacional de Cine-ma de Arquivo – alcança a sétima edição. Noaniversário de sete anos de um evento dedicadoà sétima arte, nada melhor do que entrar em cam-po com a camisa sete de Mané Garrincha. Destavez, o tema é o futebol. O futebol embalado pelapaixão mística da torcida e pela insuficiente ondade recordações dos cinqüenta anos da conquistada primeira Copa do Mundo.

Gira o mundo, rola a bola, desenrola o fil-me. Com essa idéia o festival de cinema de ar-quivo mergulha na magia lúdica da bola, nos gra-mados, praias e chãos de terra pisada do país.

Histórias de bola serão lançadas com muitacategoria, por uma semana, nas traves da tela plan-tada entre as palmeiras imperiais do Arquivo Na-cional. É esse extraordinário mundo da bola querola que o Recine pretende trazer para a superfíciedo gramado do conjunto arquitetônico da antigaCasa da Moeda, hoje sede do Arquivo Nacional.

Mais do que urgente, obrigatório (para quemsabe das coisas da bola), é homenagear o eternoMané Garrincha. Sobre o gênio de pernas tor-tas, Nelson Rodrigues dá o pontapé inicial comA descoberta de Garrincha; Vinicius de Moraesfaz poesia em O anjo das pernas tortas; AndréAndries lembra os filmes que retratam Mané, noartigo Garrincha, lendas e películas desbotadas;e José Cláudio Mattar fala por toda uma geraçãoem Garrincha, o homem que ganhou duas Co-

pas do Mundo para o Brasil. E para celebrar deforma intensa o fi lme recém-restauradoGarrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedrode Andrade, o cineasta Oswaldo Caldeira entraem campo com o ensaio Futebol: tema de fil-

mes. Dois outros inesquecíveis heróis do passa-do comparecem nesta revista em textos brilhan-tes: Friedenreich, “El Tigre”, de João Máximo,e Nilton Santos, a Enciclopédia, de João Máxi-mo e Marcos de Castro.

O futebol é a maior paixão do povo brasilei-ro, e nenhuma outra seleção trouxe tantas taçase alegrias ao seu povo como a nossa. Cinqüentaanos atrás, teve início uma série de vitórias queestremeceria para sempre nossos adversários.Com grande apuro técnico e muita garra, a Copada Suécia de 1958 foi conquistada com coragem

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7e talento, em um tempo em que os jogadores defutebol eram mal remunerados e se alimentavamcom pão e mortadela. O primeiro campeonato, aglória do pioneirismo, ninguém jamais esquece.

Para resgatar o feito histórico, o cineasta JoséCarlos Asbeg lançou o filme 1958, o ano em que

o mundo descobriu o Brasil. Luiz RosembergFilho, também cineasta e crítico de cinema, aquipresente, anotou as suas impressões do filme quecostura a história – o passado e o presente –aproveitando o que restou de imagens em umpaís que se esquece do que aconteceu ontem,atropelado pela avalanche dos fatos do dia-a-dia,e acometido pelo descaso em relação aos acer-vos públicos e privados.

No Brasil, o futebol nos surpreende desde asua origem como esporte de elite. Não demoroumuito tempo para que os torcedores trocassem acasaca pela camiseta e se misturassem todos nogrande caldeirão das emoções despertadas peloclube do coração. O artigo O jogo de elite que

virou o esporte das multidões, de Marco AndréBalloussier, dá conta dessa trajetória singular domaior evento do planeta. Tarcísio SerpaNormando aborda a evolução desse esporte des-de os seus primórdios até a contemporaneidade,em O futebol como prática desportiva.

Pretendemos neste número da revista Recine

mostrar o caminho percorrido por um esporteque se origina nas elites e se torna uma paixãopopular, capaz de reunir ricos e pobres em tornode mesas de bar e balcões de botequim para de-bater interesses comuns: os grandes jogadoresque dão arte às jogadas; os maiores clubes e suasconquistas inesquecíveis; as torcidas que balan-çam os estádios fazendo vibrar corações e amea-çam rebeliões diante de insucessos e incompe-tências; os dirigentes e as manobras de tapetão;as falhas de arbitragem, os resultados polêmicose os lances duvidosos que decidem uma partida;o impacto da máquina-futebol sobre o mundopolítico e a economia; a estética, a moda e astáticas do futebol; a presença das mulheres den-tro e fora do gramado.

Para além dos grandes centros do esporte, naperiferia nascem craques. Vê-se nas ruas a crian-çada que brinca com bolas improvisadas – de meias

ou limão – cuja dificuldade adestra ainda mais ahabilidade conquistada na adversidade de ummundo pobre, de chãos esburacados de ruelas ín-gremes. A bola às vezes cai no abismo, no mato,quando não estoura sob as rodas perigosas de umautomóvel – é a rotina espalhada pelo país.

Tudo acontece na tela do cinema. No fute-bol, o principal ocorre na grande área – dos golsde placa, aos desperdiçados. “O chute fatal, arebatida heróica; o drible temerário de um be-que; a tragédia do goleiro, em cujos pés solitári-os a grama não floresce. Ali nasce o gol, nasce oinfarto que mata de coração o torcedor” – assimse expressou o jornalista Armando Nogueira.Sobre a solidão e a angústia dos goleiros,Alvanísio Damasceno deixa-nos um artigoinstigante: Os imperdoáveis ou a super-humani-

dade dos goleiros.Os poucos registros sonoros existentes da era

do rádio reproduzem as vozes de inesquecíveisnarradores, gritos da multidão, comentaristascélebres, a opinião do povo. Muito se perdeu.Estaria seguro, em suporte duradouro, tudo oque se faz hoje para o próximo século?

Das reportagens de jornal às transmissões derádio, o futebol ganhou grande suportetecnológico com as lentes de filmagem. Oscinejornais atualizavam as informações em seusdetalhes e permitiam ao público sentir um pou-co da emoção somente experimentada pelos quecompareciam aos estádios. Por isso, não pode-ria faltar uma justa lembrança àquele que fez his-tória na beira do campo: o cinegrafista Francis-co Torturra, ‘o coração do Canal 100’, homena-geado em O homem do futebol-arte, artigo assi-nado pelo repórter Bruno Torturra.

Depois, com a TV e suas fartas câmeras dis-tribuídas pelos estádios, uma infinidade de va-riantes que extrapolam o instante do jogo sãoincorporadas: as mesas de debates, as entrevis-tas, os documentários, os gols da rodada, osreplays. O avanço dos meios de comunicação,o jogo intermediado pela imprensa, as seme-lhanças entre planos e narrativas cinematográ-ficas e as transmissões de futebol mobilizam todaa atenção de Ilana Feldman em Narrativas de

transmissões de futebol.

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Talvez seja inútil discutir as razões da obses-são pelo futebol. Mas é curioso verificar que osfilmes de ficção não tenham conseguido, até ago-ra, inflamar o espectador com o mesmo ardordos estádios. São poucos os filmes de ficção so-bre futebol no Brasil. Teriam sido eles, até ago-ra, incapazes de dar conta de uma paixão tãopopular e vibrante? No entanto, ninguém con-testa que o documentário seja o gênero que seajustou com perfeição ao futebol (e aos amantesde futebol), em suas derivações de reportagens eentrevistas.

Para mostrar o espectro desse esforço doscineastas nacionais em unir as paixões pelo ci-nema e o futebol, dois artigos inauguram estarevista: O cinema entra em campo, de VictorAndrade de Melo e Documentário e ficção em

curtas-metragens bons de bola, de Renata dosSantos Ferreira.

Reunimos também nesta edição alguns dosmestres da palavra escrita que declararam suarelação de amor pelos clubes, os grandes jogado-res e a seleção nacional. Entre eles NelsonRodrigues, que assina seis crônicas – A desco-

berta de Garrincha; O drama das sete Copas; As

hienas contra Saldanha; O maior goleiro do

mundo, sobre Marcos Carneiro de Mendonça,A realeza de Pelé e Os irmãos Karamazov, sobreFla e Flu; Mário Filho, que faz a genealogia deuma paixão em Nasce o Fluminense; Paulo Men-des Campos, que partilha defeitos e qualidadescomuns com seu time, em Botafogo e seu torce-

dor poeta, e Vinicius de Moraes, que celebra oescrete vitorioso de 1962, em Canto de amor e

de angústia à seleção de ouro do Brasil.Entre os contemporâneos, Jeferson de

Andrade incendeia a lembrança da galeraflamenguista no artigo Recordações em preto e

vermelho; e o Vasco da Gama marca um gol deletra com o poeta Aldir Blanc, em Esse cara aí.

Com o advento do futebol de resultados, astáticas foram expostas e os retranqueiros apren-deram como tentar segurar um placar – jogarfeio, mas ganhar. Os estudos podem ser mate-máticos, esquemáticos, mas nunca impedirão asurpresa poética do improviso numa fração desegundo. Estudiosos levaram a sério a tática ri-

gorosa e os gritos que imitam a guerra – esta é areflexão de Alcides Scaglia em Da técnica à táti-

ca e de Gerson Noronha Filho, no artigo A pron-

tidão para a violência, aqui publicados.E as mulheres? Subiram mais alto no pódio

nas Olimpíadas de Pequim. Esse mundo do fu-tebol já não é o mesmo, ainda bem. Mulheressuperam homens em eficiência, conhecimento esensatez. Heloisa Frossard, por exemplo, desfilacom elegância a sua visão afinada do campo dejogo no texto Olhem elas aí...

Um rico acervo público concentra inúmeroselementos de um determinado universo. Por essarazão torna-se imperdível a leitura do levanta-mento realizado por técnicos da Coordenação deDocumentos Escritos do Arquivo Nacional noartigo Um toque de letra: breve roteiro de fontes

textuais sobre futebol no Arquivo Nacional.E, para encerrar, um texto de cineasta que

tem os olhos voltados para o passado, o presentee o futuro. Mais do que fazer falta, seria omis-são deixar de convidar à leitura de uma signifi-cativa reflexão de Eduardo Escorel, orientadorda Oficina do Recine – atividade voltada paraalunos que têm a chance de criar curtas com acolaboração do autor. Escorel, mestre na arte dagarimpagem, promove de forma brilhante a con-jugação do cinema com a história, daí publicaro seu artigo Vestígios do passado.

O cinema tem o ritmo do futebol. Pode serlento, agitado e acabar em goleada ou num cho-cho zero a zero. O futebol encontra no cinemaum intérprete sensível e fiel, capaz de recriar,no balanço feliz de uma jogada em câmara lenta,a gingada encantadora de um drible de ManéGarrincha. O espectador não está menos sujeitoà paixão do que um torturado torcedor de arqui-bancada, capaz de risos e lágrimas, como nosfilmes de Chaplin. Futebol e cinema são expres-sões artísticas que nunca se repetem.

Clovis Molinari Jr.

Curador do Recine

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Seleção Brasileira entra em

campo para enfrentar o

Paraguai pela Taça Oswaldo

Cruz, no Maracanã. O Brasil

venceu o Paraguai por 5x1.

Vê-se Didi, Oreco, Dida, Dino

Sani, Joel, Zózimo e De Sordi.

Rio de Janeiro, 4/5/1958

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O cinema entra em campo,o campo no cinema:

esporte, futebol e cinema – uma longa relação

Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ. Coordenador do Sport:Laboratório de História do Esporte e do Lazer. Autor do livro Cinema e esporte: diálogos e um dos organizadores dos livros O esporte vai ao cinema(com Fábio Peres) e Futebol por todo o mundo: diálogos com o cinema (com Marcos Alvito).

Victor Andrade de Melo

Em 1999, Marcelo Masagão lançou Nós que aquiestamos, por vós esperamos, um filme-memória emque procura, com base em recortes biográficos (reaise ficcionais, de personagens notórios e de pessoaspouco conhecidas), traçar uma síntese do século XX.Uma das seqüências mais bonitas da película é a quecompara o movimento das pernas de Garrincha, aodriblar seus adversários, com o famoso bailado deFred Astaire, em uma de suas performances cinema-tográficas. Um verdadeiro pas de deux.

Não parece exagerado afirmar que o cineasta dealguma forma compara a paixão e o fascínio causa-dos por dois expoentes de manifestações culturais degrande importância: o cinema e o esporte. Astaire,um astro dos musicais, um dos gêneros cinematográ-ficos mais populares, e Garrincha, um ícone do fute-bol, sem dúvida o esporte mais difundido em todo omundo, fazem parte do imaginário do século que pas-sou. De certa maneira são heróis de uma época.

Mesmo possuindo raízes anteriores, são fenô-menos típicos da modernidade, se consolidando noâmbito da série de mudanças observáveis desde oséculo XVIII, crescentes no decorrer do século XIXe estabelecidas na transição e no decorrer do sécu-lo XX. Devem ser compreendidos inseridos na esfe-ra do crescimento das cidades como arenas de cir-culação de mercadorias e da conseqüente constru-ção de uma cultura eminentemente urbana, onde sedestacavam as buscas e vivências de lazer. Com isso,observa-se o crescimento das preocupações com opúblico, o consumidor, o corpo como elemento deconsumo e de notável atenção e visibilidade.

Há muitas semelhanças entre o cinema e o es-porte, mesmo se tratando de linguagens diferentes.Podemos pensar na organização espacial de está-dios e salas de projeção como locais que isolamparcial e momentaneamente os indivíduos do “mun-

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do real”. Podemos identificar que suas narrativaspossuem, em linhas gerais, protagonistas, antago-nistas, heróis, uma seqüência inesperada de ações(embora sempre haja previsões ou suposições an-teriores), perdedores e ganhadores, incentivados porum público que acredita no poder de sua influên-cia. E, fundamentalmente, cinema e esporte com-partilharam símbolos de uma época.

Não surpreende que no clássico A obra de artena era da sua reprodutibilidade técnica Walter Ben-jamin tenha comparado diretamente o esporte aocinema, argumentando que construíram um sentidogeral de pertencimento, de proximidade e de posi-cionamento do público em relação ao espetáculo:

“A técnica do cinema assemelha-se à do esporte

no sentido de que nos dois casos os espectadores são

semi-especialistas. Basta, para nos convencermos

disso, escutarmos um grupo de jovens jornaleiros,

apoiados em suas bicicletas, discutindo resultados

de uma competição de ciclismo. No que diz respeito

ao cinema, os filmes de atualidades provam com cla-

reza que todos têm a oportunidade de aparecer na

tela. Mas isso não é tudo. Cada pessoa, hoje em dia,

pode reivindicar o respeito de ser filmado.”

Cinema e esporte constituem-se em poderosasrepresentações de valores e desejos que permea-ram o imaginário do século XX: a superação delimites, o extremo de determinadas situações (co-muns em um momento onde a tensão e a violênciaforam constantes), a valorização da tecnologia, aconsolidação de identidades nacionais, a busca deuma emoção controlada, o exaltar de um conceitode beleza. Juntos celebraram a modernidade e suasidéias de velocidade, eficiência, produtividade.Juntos cultivaram muitos heróis.

Ao mesmo tempo em que expressam tais di-mensões, estas também foram fundamentais nasua consolidação. Isso se torna expoente quandorelembramos o espaço que ocupam na vida coti-diana de grande parte da população. Cinema eesporte estão entre as linguagens mais acessadasno decorrer do século XX, não somente nos seusespaços específicos (as salas de projeção e osestádios), como também em função da ação dosmeios de comunicação em geral, que nelas in-vestiram por se tratarem de produtos de grandepenetração popular.

Antes mesmo do cinema moderno, já haviarelações entre filmes e esporte. De acordo com osindícios históricos levantados, atletas em movimentosão representados já em 1865, no estereoscópio deJean Claudet. Eadweard Muybridge, na década de1870, muito usou o esporte em suas experiências.Novamente vemos cenas esportivas capturadas pe-las máquinas criadas por Étienne-Jules Marey eGeorges Demeny, no âmbito da Station Phisiolo-gique, na França da década de 1880.

A invenção do quinetoscópio, por ThomasEdison, em 1894, oferece a possibilidade de a exi-bição de imagens em movimento entrar definitiva-mente no rumo de tornar-se um espetáculo e nãomais somente uma questão puramente científica.Naquele mesmo ano, o notável inventor filmou aluta entre James Corbett e Peter Courtenay, e em1897, o combate entre Corbett e Fitzsimmons.

Nos Estados Unidos, a partir de aperfeiçoa-mento do aparelho criado por Edison, várias em-presas foram se estabelecendo no mercado. Entreessas, vale a pena destacar a Kinestocope ExhibitionCompany, dirigida por Otway e Gray Latham, umadas mais profícuas nesse primeiro instante. A te-mática na qual era especializada? Filmes de boxe.

Olympia (1938), de Leni Riefenstahl, um dos primeiros filmes sobre esportes

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O C I N E M A E N T R A E M C A M P O

Aliás, algumas importantes inovações na lingua-gem cinematográfica devem-se ao desejo de melhorcaptar e exibir os espetáculos de boxe em sua plenitu-de: novos modelos de película, novos planos, novosequipamentos. Dando um salto no tempo, lembre-mos que isso foi um dos esforços de Leni Riefenstahlquando da realização de Olympia (1938), documen-tário sobre os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim.

No decorrer dessa longa relação entre esportee cinema, podemos identificar atores que tambémeram atletas e participavam de competições espor-tivas (como Robert Redford, Gene Hackman), ato-res representando papéis de atletas, técnicos e/oudirigentes (Alain Delon, Roberto De Niro, GaryCooper, Joe Mantegna), atletas que se tornaramatores (Johnny Weissmuller) ou representaram pa-péis em determinados filmes (Alfredo Di Stefano,Zico e Pelé). Alguns filmes incentivaram a popula-ção a buscar alguma prática esportiva (como as denado sincronizado e natação de Esther Williams,nos anos 40). Muitos foram os cineastas que incor-poraram o esporte em suas produções.

Nesse percurso, como terá sido representado ofutebol? Uma questão que sempre vem à tona é apouca presença do velho esporte bretão nas películasproduzidas por todo o mundo. Se os encontros entrecinema e esporte são constantes e profícuos, por quea mais popular das práticas esportivas está, em certosentido, pouco representada, ainda mais quando acomparamos a outros esportes, como o boxe (estequase um gênero à parte entre os filmes esportivos)?

A resposta a essa questão tem a ver com asdificuldades técnicas de recriação cênica de umapartida de futebol, com a própria dinâmica da prá-tica (que possui uma força dramática menos explí-cita do que, por exemplo, o boxe) e mesmo com omenor interesse da principal indústria cinemato-gráfica mundial, a norte-americana, por esse es-porte. De qualquer forma, a despeito de todos es-ses fatores, não se pode dizer que o futebol nãoesteve presente nas telas.

Uma consulta ao banco de dados do projeto“Esporte e arte: diálogos” (www.sport.ifcs.ufrj.br)permitirá ao leitor ver a grande quantidade de fil-mes em que o futebol esteve presente nos países daAmérica Latina (notadamente Brasil e Argentina),Portugal e Espanha. No que se refere a outros pa-íses, podemos dizer que nos últimos anos vimossurgir um número maior de películas onde o fute-bol está representado. Por exemplo, entre outros,Febre de bola (David Evans, 1997), A Copa(Khyentse Norbu, 1999), Driblando o destino (Gu-rinder Chadha, 2002), Football factory (Nick Love,2004), e as animações japonesas Super campeões– volume 1 e 2 (2002), sobre um garoto que sonha-va em vir para o Brasil e se tornar grande jogador.

É interessante, aliás, identificar o lugar que o Brasil(sejam seus jogadores ou seus símbolos) ocupa emmuitas dessas películas, ainda que de forma bastanteestereotipada. Parece um mistério que alguns cineas-tas desejam entender: a qualidade e o vigor do futebolbrasileiro; quase um ato de reverência.

Essa referência aparece, por exemplo, em Meunome é Joe (1998), do grande cineasta inglês KenLoach. Ao dirigir seu sensível e crítico olhar para o“submundo” dos desempregados escoceses, o dire-tor tem como protagonista um alcoólatra que treinao pior time de futebol da região, que joga com umacamisa que faz menção à seleção brasileira.

Para resumir, vale a referência a dois filmes.O medo do goleiro diante do pênalti (1971), deWim Wenders, baseado no romance de PeterHandke, narra a história de Josef Bloch, goleirode uma equipe da segunda divisão, expulso deuma partida por cometer uma falta. Pela noiteele mata a atendente de cinema com a qual sai efoge para a casa de uma amiga, de onde acompa-nha, aparentemente de maneira desinteressada,a perseguição da polícia, que o captura em umestádio de futebol. Mesmo que não haja muitodo esporte na trama, vale pelo destaque que tempara desencadear o drama.

Cenas deGarrincha,alegria do

povo (1963),de Joaquim

Pedro deAndrade

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

1 51 5Já Fuga para a vitória (1981), dirigido por JohnHuston, estrelado por grandes nomes do cinema(como Sylvester Stallone e Michael Caine) e do fute-bol (como Pelé e Bobby Moore), merece destaquepela força dramática do enredo e por ser bastanteinteressante para discutir a presença social do fute-bol, a partir de suas relações com o cinema. O panode fundo da trama é um jogo disputado, na SegundaGrande Guerra, entre o selecionado alemão e umaequipe de prisioneiros de guerra. O que era a princí-pio uma brincadeira (um “jogo de várzea”) vai se trans-formando em um evento, uma disputa simbólica deenorme vulto. Os alemães desejam vencer a todo cus-to para provar a supremacia do regime nazista; ospresos querem aproveitar a situação para fugir.

É difícil ver o filme e não lembrar da famosafrase de Bill Shankly, técnico do Liverpool nos anos1960: “O futebol não é uma questão de vida ou mor-te; é muito mais do que isso”. No caso da película,isso é levado literalmente ao pé da letra. Os paralelosentre “vida” e “jogo”, entre “esporte” e “guerra”, en-tre “resultados” e “honra” permeiam toda a trama.

No cenário internacional, há uma ressalva quedeve ser feita. Normalmente, fazemos uma ligaçãodireta entre o futebol e o jogo no qual 11 jogadoresde cada lado tentam fazer a bola penetrar na metaadversária, não podendo fazer uso das mãos paratal (exceção feita ao goleiro). Mas, lembremos, exis-tem muitos outros “futebóis” pelo mundo que tam-bém gozam de grande popularidade. Entre os maispopulares temos o rúgbi e o futebol americano,que já inspiraram muitas películas. Entre as recen-tes podemos citar Duelo de titãs (2000, de BoazYakin), com Denzel Washington no papel princi-pal; e Jerry Maguire (1996, dirigido por CameronCrowe), estrelada por Tom Cruise.

E no “país do futebol”, como esse esporte este-ve presente no cinema? No Brasil freqüentementevemos surgir a discussão de que temos poucos fil-mes sobre o assunto. Isso não é verdade. De fato,o que há é um desconhecimento de nossa produ-ção cinematográfica.

Segundo o levantamento que realizamos emmais de 4.500 longas brasileiros, entre os maisde 290 que, de alguma forma, representam o

esporte, cerca de 160 trazem algo relacionadoao futebol (dados de maio de 2008). Obviamen-te que esse grau de presença é muito variável,havendo desde breves citações (por exemplo, norecente Morro da Conceição, 2005, de CristinaGrumbach, um dos entrevistados foi jogador; emÓpera do malandro, 1985, de Ruy Guerra, háuma cena em um estádio); algum personagem datrama que é jogador (como no caso de Bossa nova,2000, de Bruno Barreto; ou O casamento deLouise, 2001, de Betse de Paula); passando poraqueles filmes onde o futebol ocupa um espaçode relativa importância (como no fundamentalRio 40 graus, 1955, Nelson Pereira dos Santos),até aqueles em que é assunto central.1

Entre esses últimos, vários são os assuntosabordados: clubes de futebol (caso de Flamengopaixão, 1980, David Neves); Copas do Mundo(por exemplo, Brasil bom de bola, 1971, CarlosNiemeyer); jogadores de futebol (caso de Isto éPelé, 1974, Luiz Carlos Barreto e Eduardo Esco-rel); loteria esportiva (por exemplo, Os trezepontos, 1985, Alonso Gonçalves); questões degênero (Onda nova, 1983, José Antônio Garcia);dificuldades da carreira de jogador (Asa Branca,sonho brasileiro, 1981, Djalma Limongi Batis-ta); relações com a política (Prá frente Brasil,1982, Roberto Farias); entre muitos outros.

Além de documentários, encontramos o fu-tebol em comédias (O corintiano, 1966, de Mil-ton Amaral, com Mazzaropi; e Os Trapalhões eo Rei do Futebol, 1986, Carlos Manga); dramas(Os trombadinhas, 1979, Anselmo Duarte); po-liciais (Máscara da traição, 1969, Roberto Pi-res); animação (A turma do gol, 2000, PauloMariotti) e até em filmes de sexo explícito (Apelada do sexo, 1985, Mário Lúcio).

Entre os cineastas, além dos já citados: Antô-nio Carlos da Fontoura, Carlos Diegues, CarlosGerbase, Carlos Hugo Christensen, Domingos deOliveira, Fernando Cony Campos, Glauber Rocha,J. B. Tanko, João Moreira Salles, Joaquim Pedrode Andrade, Leon Hirszman, Luiz de Barros, Mau-rice Capovilla, Murilo Salles, Oswaldo Caldeira,Ugo Giorgetti, e muitos outros.

1 Todos os dados podem ser obtidos no banco do projeto “Esporte e arte: diálogos”, disponível em: www.sport.ifcs.ufrj.br.

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O CINEMA ENTRA EM CAMPO

Como não é possível, neste artigo, comentartodos os filmes brasileiros que têm como tema ofutebol, gostaríamos de destacar alguns pelo seupioneirismo e/ou importância.

Por exemplo, em 1931, Genésio Arruda, fa-moso ator e humorista, dirigiu Campeão de fute-bol, uma homenagem aos jogadores da época. Estefoi o primeiro filme nacional de ficção em que oesporte foi efetivamente o assunto central. Na pelí-cula atuaram muitos atletas famosos à época, comoFeitiço e Arthur Friedenreich.

Já Alma e corpo de uma raça (1938), dirigidopor Milton Rodrigues, produzido por AdhemarGonzaga e pela Cinédia, foi o primeiro filme dire-tamente ligado a um clube esportivo. Como loca-ção foram utilizadas as dependências do Clube deRegatas do Flamengo. Também foi utilizado o re-curso de misturar atores profissionais e jogadoresde futebol (entre eles Leônidas da Silva).

No mesmo ano, Ruy Costa dirigiu Futebol emfamília, com o qual estiveram envolvidos importan-tes nomes do cinema brasileiro: Edgar Brasil (foto-grafia), Moacyr Fenelon (som) e Wallace Downey(supervisão). No elenco, a tradicional mescla de jo-gadores (do Fluminense Football Club), atores e can-tores (como Grande Otelo e Dircinha Batista). Apelícula narra os problemas de um jovem com ospais, por pretender ser jogador de futebol.

Em 1946 é lançado Gol da vitória, dirigido porJosé Carlos Burle, um dos fundadores da Atlântida.Grande Otelo representou o craque Laurindo, per-sonagem inspirado em Leônidas da Silva. A Copado Mundo de 1950, dirigido por Milton Rodriguese produzido por Mário Filho, busca os motivos quelevaram o Brasil a ser derrotado pelo Uruguai nafinal daquele evento, em pleno Maracanã. Foi o pri-meiro documentário cujo tema era o esporte.

Nesses primeiros momentos, o futebol estevepresente ainda em outros dois filmes que merecemser destacados. O primeiro deles é Rio 40 graus (1955),de Nelson Pereira dos Santos. Ainda que não seja oassunto central da película, ocupa importante espaçoem um dos marcos do cinema nacional.

Já Garrincha, alegria do povo (1963) é certa-mente um dos principais filmes brasileiros e um dosmais importantes que têm por tema o futebol. No-mes destacados do cinema nacional estiveram en-

volvidos em sua produção: Joaquim Pedro de An-drade (direção e roteiro), Luiz Carlos Barreto (pro-dução), Armando Nogueira (produção e roteiro),Mário Carneiro e David Neves (fotografia). O fil-me narra a trajetória do jogador, sua capacidadepara encantar os fãs com sua personalidade, suaspernas tortas, seus dribles e seu extraordinário ta-lento para surpreender os adversários. O documen-tário intercala depoimentos, trechos de cinejornais ealgumas imagens tomadas no Maracanã, sempre pro-curando situar o aspecto social do futebol no Brasil.A figura de Garrincha é utilizada para traçar um re-trato do povo brasileiro, aquele que nada tem paradar certo, mas, sabe-se lá como, acaba triunfando.

Contudo, esta vitória é parcial, porque os usosde sua imagem tendem a incorporá-lo e apreendê-loao status quo, em certa medida tirando suas referên-cias, o deslocando de seu papel original, o que deixapoucas opções de sobrevivência ativa. Se o futebol éfator de libertação e de festa, o cineasta também des-confia que possa ser de alienação e de manipulação,algo que é tematizado de forma sutil e complexa.

Devemos ainda comentar, sem aprofundar porfalta de espaço, que há duas facetas menos conheci-das do grande público que devem ser levantadasquando falamos da presença do futebol nas telas na-cionais. Uma delas é o grande número de imagensdocumentais que podemos encontrar nos curtas-metragens pioneiros do cinema brasileiro e nos ci-nejornais, esportivos (como O Esporte em Marchaou O Esporte na Tela) ou não (como Brasil Atualida-des ou Notícias da Semana), cujo principal destaqueé o louvado Canal 100. Há ainda os curtas de ficção:esses são motivo de um artigo desta mesma revista.

Para encerrar, tratemos de um assunto de gran-de importância: o cinema (ou a imagem em um sen-tido mais amplo) teria influenciado na própria dinâ-mica do futebol? Desde o início, as relações entrearte cinematográfica e esporte tiveram uma dupladimensão: contribuíram para ampliar o alcance dos

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espetáculos (tanto do esporte quanto do cinema) e aobjetividade na análise dos resultados das competi-ções, já que supostamente bastaria filmar as provase partidas para que qualquer dúvida fosse sanada.

Há duas questões que precisam ser encaradas.O uso de imagens é isento de dúvida? Certamenteque não, e as polêmicas permanecem. Na Copa doMundo de Futebol de 2002, por exemplo, ficoufamoso o episódio em que praticamente todos osjornalistas do mundo afirmaram que o árbitro er-rara em uma situação polêmica de jogo, fazendouso para tal de diversas fotografias e takes tomadosaproximadamente do mesmo ponto de vista. Atéque surge uma foto tirada de outro ângulo, de outroplano, demonstrando que a decisão do árbitro eraperfeita. O uso das imagens para melhor observân-cia das regras do espetáculo futebol é algo que de-sencadeia profícuos debates por todo o mundo.

A segunda questão é que certamente a utilizaçãode imagens, no decorrer do tempo, também trouxemodificações na postura do observador da práticaesportiva. Se antes o torcedor dependia basicamen-te dele mesmo para se posicionar perante o que es-tava sendo assistido, a atual utilização de imagensacaba por, de alguma forma, retirar um pouco deseu papel definidor, diminuir um pouco o seu papelativo. O recurso do videoteipe e seus desdobramen-tos (tira-teimas, programas que calculam “exatamen-

te” o que ocorreu) acabam por ser apresentadoscomo a “verdade”, o objetivo, o “científico”, dei-xando a opinião do torcedor para o campo da “doxa”.

Não estou afirmando que o uso de imagens“estragou” a prática esportiva, mas a chamar a aten-ção para as mudanças desencadeadas. Como exem-plo claro, pode-se lembrar das constantes modifi-cações nas regras de determinados esportes, comono caso do voleibol, para que o jogo se torne maisadequado à transmissão televisiva.

Existe um número enorme de imagens e progra-mas esportivos nas televisões de todo o mundo. Oesporte é levado para dentro dos lares. Todos têmacesso a um discurso aproximado acerca da prática,mesmo que persistam as polêmicas. Os torcedoressão, sim, ativos, porém lidam com estruturas bas-tante fortes de convencimento, simultaneamente eem diferentes graus rechaçadas e incorporadas.

O importante é entender que a possibilidadede difusão rompeu o limite claro entre o público eo privado, envolveu ainda mais mulheres, filhos,famílias (algo que já era observável anteriormentenas instalações esportivas), mas estabeleceu umacesso mediado pelos “especialistas” a partir de umaidéia de objetividade.

Enfim, como um caminho de via dupla, cine-ma e futebol se interinfluenciaram e dialogaramconstantemente. E esse percurso nos permite vis-lumbrar uma possibilidade de compreender os dis-cursos acerca da sociedade, determinadas repre-sentações, certos mitos. Estar atento a isso, comorecurso de investigação, como possibilidade peda-gógica ou como maneira de ampliar nosso prazer,é uma necessidade e um desafio para todos nós,pesquisadores, estudiosos, interessados ou fãs.

Cenas de Garrincha, alegria do povo (1963), de Joaquim Pedro de Andrade

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Documentário e ficçãoem curtas-metragens bons de bola

Renata dos Santos Ferreira Jornalista, da equipe editorial do Arquivo Nacional.

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A paixão pelo futebol, já nos primeiros anos de vida,é retratada em vários curtas-metragens

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Dezenas de longas-metragens nacionais têm ofutebol como tema central ou elemento de certaimportância no roteiro, porém poucos conseguiramexpressar com maestria a beleza e a paixão incondi-cional do brasileiro pelo esporte mais popular doplaneta. Não se pode dizer exatamente o mesmo arespeito dos curtas e médias-metragens. Basta umadedicada pesquisa para se descobrir que diversoscineastas brasileiros, numa lista que inclui CarlosDiegues, Rogério Sganzerla, Maurice Capovilla,David Neves, Jorge Furtado, entre outros, realiza-ram, cada um ao seu estilo, filmes que versavamsobre o universo do futebol, sejam documentáriosou ficção. Jovens diretores, muitos egressos de es-colas de cinema, também investem no argumento esão deles algumas das fitas produzidas nos últimosanos. A ousadia que falta aos longas-metragens estápresente nos curtas, que surpreendem pela variedadede abordagens, confirmando assim sua vocação paraexperimentações e estudos da linguagem fílmica.

Biografias dos campeões, dramas, romances, co-médias, registros históricos valiosos, tudo está nessesfilmes, prato cheio para cinéfilos e fãs do futebol.

Por exemplo, Garrincha, ídolo das torcidas detodos os tempos, inspirou pelo menos quatro cur-tas: os documentários Voltar é conquistar duas ve-zes (1969), O incrível Mané Garrincha (1978),ambos de Aécio de Andrade; Mané Garrincha(1978), de Fábio Barreto; e a ficção Heleno e Gar-rincha, dirigida em 1987 por Ney Costa Santos.

Outros jogadores foram assunto de curtas-me-tragens. Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado reali-zaram em 1988 o filme Barbosa, que mistura fic-ção e imagens de arquivo para contar a história deum homem que viaja no tempo para tentar evitarque o goleiro Barbosa sofra o gol que derrotou oBrasil na Copa de 1950, em pleno Maracanã.

Gilberto Macedo dirigiu Heleno de Freitas(1968), destacando o craque do Botafogo dos anos50, que também é homenageado no já menciona-do Heleno e Garrincha, de Ney Costa Santos; Pelé(1970), de Daniel Fernandes, documenta o dia-a-dia do jogador no Santos; baseado nas lembrançasde um amigo de infância de Pelé, Uma história defutebol (1988), de Paulo Machline, narra as agru-ras do futuro rei e seus companheiros do Sete deSetembro de Bauru para vencer os mais temíveisadversários e conquistar a taça do campeonato in-fanto-juvenil, no ano de 1950; O caminho de Rus-so (1998), de Ricardo Carvalho, revela que destinolevou o jogador Russo, que brilhou no Botafogo nadécada de 70 e hoje vive em Nova York; Memóriasde um guerrilheiro (2005), de Felipe Nepomuce-no, como o próprio título já diz, resgata as memó-rias de Adhemar Bianchini, que jogou ao lado dePelé e Garrincha na seleção brasileira. Também deFelipe Nepomuceno, em parceria com Pedro As-beg, O deus da raça (2003) é dedicado a Rondine-lli, que marcou época no Flamengo.

Em Mitos e lendas – Pelé, Garrincha e outroscraques (2005), de Maurice Capovilla, o jornalistaJuca Kfouri analisa os dois maiores craques brasi-leiros e outros jogadores importantes.

Mauro Shampoo – jogador, cabeleireiro ehomem (2005), de Leonardo Cunha Lima e PauloHenrique Fontenelle, retrata o simpático ex-ca-misa 10 Mauro Shampoo, do considerado piortime do mundo, o Ibis Sport Club, sediado emOlinda, Pernambuco.

O talento no futebol não está apenas nos pésdos jogadores. Locutor de rádio e televisão, Síl-vio Luiz estrela O mundo segundo Sílvio Luiz(2000), de André Francioli, que explora a habili-dade do narrador esportivo em situações que

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fogem à rotina de zagueiros e atacantes dentrodas quatro linhas do campo. Nem a sabedoriados debatedores impede que uma mesa-redondana TV termine na maior confusão por causa deum simples empate, na comédia A revolta dovideotape (2001), de Rogério de Moura.

As Copas do Mundo renderam documentá-rios como As melhores jogadas dos brasileirosna Europa (1938), dos Irmãos Ponce; Por que oBrasil perdeu a Copa (1950), de Milton Rodri-gues; Na Copa do Mundo (1962), de Badger Sil-veira; Copa do Mundo (1962), de Miguel Bor-ges; Guadalajara 70 (2002), de Felipe Nepomu-ceno; O futebol no Brasil (1975), de Paulo Bas-tos Martins; e Itália 90 (1989), de Edu Felisto-que e Nereu Cerdeira. Em A noite do capitão(2006), de Adolfo Lachtermacher, o capitão daseleção uruguaia de 1950, Obdulio Varela, pas-seia pela noite carioca, depois de ganhar do Bra-sil na final da Copa. O roteiro deste filme foi es-crito a partir de depoimentos do próprio Obdu-lio, falecido em 1996, e em texto do escritor uru-guaio Eduardo Galeano, a respeito do episódio.

Política pode não combinar muito com es-porte, mas no país do futebol tem tudo a ver. Operíodo da ditadura militar no Brasil é lembradoem curtas como Liberdade Futebol Clube (2003),de Diogo Fernandes e Cláudia Cortez, que desfi-la na tela as adversidades enfrentadas por dois ir-mãos no ano de 1970. Enquanto um deles lutapela liberdade política e de expressão, o outrodefende as cores do Liberdade Futebol Clube. EmMeus amigos chineses (2006), de Sérgio Sbragia,um menino apaixonado por futebol vê seus vizi-

nhos chineses, com quem partilhava a paixão pelabola, serem presos após o golpe de 1964. O usode estádios com objetivos políticos serviu de ar-gumento para Roberto Moura filmar Futebol 3 –Zona do agrião (1980), que faz parte de sua trilo-gia devotada ao esporte das multidões.

Filmes com temática social não faltam. An-dréa Seligmann realizou Onde São Paulo acaba(1995), ficção que procura representar o modode vida na periferia sul de São Paulo, onde ofutebol tem lugar de destaque, em meio às ca-rências e dificuldades dos habitantes da região.Eduardo Dornelles e Jefferson Oliveira dirigiramo documentário O campim (2006), que expõe,com o olhar de quem vive na comunidade, ocotidiano dos moradores em torno de um cam-po de futebol do morro da Grota, no Complexodo Alemão, zona norte do Rio de Janeiro.

Na categoria da ficção, Ronaldo German trazNoventa minutos (1990), em que no início deum jogo do Brasil pela Copa do Mundo, doisrapazes tentam arrombar uma loja e são alveja-dos por um grupo de extermínio. Um deles ago-niza durante os noventa minutos do jogo semque ninguém lhe preste socorro, embora algu-mas pessoas testemunhem o seu sofrimento.

O futuro do futebol é abordado de diferentesmaneiras, desde a constatação de como a urbani-zação significou a extinção dos campos de várzea(No vai da várzea, 1983, de Rodolfo Ancona Lo-pes), até a formação dos craques (Dente de leite,1970, de Flávio Portho). Com o foco no futebolamador, Carlos Couto roteirizou e dirigiu Bola demeia (1971), aproveitando a despedida de Pelé daseleção brasileira para discutir a formação de novosprofissionais da bola. Maurice Capovilla assina adireção do mais emblemático dos filmes do gêne-ro, Subterrâneos do futebol (1965), um questiona-dor estudo acerca da problemática estrutura desseesporte no país, e o sonho alimentado por jovensbrasileiros de uma carreira de jogador, vista pelosmais pobres como única chance de vencer na vida.De Luiz Carlos Piá, O craque do futuro e o futurodo craque (1980) elucida a profissão de futebolista,assim como Futebol 3 – Meio de vida (1980), filmeda trilogia de Roberto Moura. Anna Azevedo, emseu premiado Berlinball (2006), acompanha garotos

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A derrota doBrasil na Copa de

1950 inspiroufilmes como

Barbosa (1988),Por que o Brasilperdeu a Copa?

(1950) e A noitedo capitão (2006)

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2 12 1de Campina Grande, Paraíba, e seu desejo de tor-narem-se craques famosos como Marcelinho Paraí-ba, que atuava no Hertha Berlin, na Alemanha.

Rogério Sganzerla deu sua colaboração para oacervo de filmes com temática futebolística, emespecial a cartolagem, com Perigo Negro (1992),um roteiro de Oswald de Andrade, escrito em 1938,que narra o sucesso e a decadência de um craque,arruinado por um cartola. Segundo Sganzerla,Oswald se baseou na trajetória do jogador Leôni-das da Silva para elaborar a história.

A figura do dirigente de clube aparece aindano filme de Louis Chilson, ...E o craque marcou(1997), sempre com as piores intenções.

O fanatismo do torcedor de futebol motivoubrilhantes experiências audiovisuais. Na linha dehomenagem aos clubes, o que não falta é emoção:Unido vencerás (2003), de Pedro Asbeg, é um do-cumentário que deve fazer chorar os torcedores doAmérica Futebol Clube, que mereceram um segun-do filme, Unido vencerás 2 (2006). Ney Costa San-tos dirigiu outra pérola do gênero, Meu gloriosoSão Cristóvão (1978), que não deixa passar embranco as glórias e martírios enfrentados pelo clu-be suburbano carioca.

Em Os fiéis (2003), documentário de DaniloSolferini, três amigos relatam o que passaram du-rante a invasão corintiana de 1977 no Rio de Ja-neiro. Uma vez Flamengo, sempre Flamengo (1968),de Valquíria Salvá, mostra como dois torcedores,interpretados por Paulo José e Flávio Migliaccio,revoltados com uma derrota, combinam descontara raiva em suas mulheres. André Klotzel dirigiu,roteirizou e montou Gaviões (1982), película naqual se juntam ficção e documentário para provarque o torcedor corintiano não mede esforços paraseguir seu time. Santos Futebol Clube (1965), umdocumentário de Roberto Santos, foi feito na épocadourada do clube. Este também é o título de umavideoanimação de Inácio Zatz, realizada em 2004.

Uma partida disputada em 1924 no estádiodo Fluminense pode ser relembrada graças a Pro-pósito de futebol (1974), de Roberto Kahané, aosom de Pixinguinha, Ernesto Nazareth e AryBarroso. Paixão pelo futebol explica Futebol 3 –Jogo dos homens (1979), mais um documentá-rio de Roberto Moura.

Esplendor do martírio (1974), de Aloísio Déoe Sérgio C. Jucá dos Santos, é um exemplar fil-me sobre a atenção dedicada pelo brasileiro aosjogos de uma Copa do Mundo, no caso, a daAlemanha em 1974.

Rádio Gogó (1999), de José Araripe Jr., apre-senta a história fictícia de um sujeito cuja grandepaixão é narrar peladas de rua, em uma rádio mon-tada dentro de uma Kombi. Um cidadão recordapassagens de sua vida remetendo sempre a aconte-cimentos do futebol em Futebolisticamente (2005),de Rodolfo Pelegrin e Daniel Boesel. A rivalidadedo futebol mineiro está no filme de Patrícia Mo-ran, Perdemos de 1 a 1 (2000), muito bem repre-sentada pela torcedora do Atlético cardíaca que,em dia de jogo decisivo, precisa ser socorrida porum médico fanático pelo Cruzeiro. O portuguêsdono de um bar fatura alto nos dias de jogo, de-pois de instalar TV a cabo em seu estabelecimentono subúrbio carioca. Este é o enredo de O jeitobrasileiro de ser português (2001), de Gustavo Melo.

Thomaz Farkas filmou a participação das tor-cidas no campeonato brasileiro e o resultado cha-ma-se Todo mundo (1978-1980). Farkas, que pro-duziu alguns filmes relacionados aos esportes, fina-lizou pouco depois Torcida de futebol (1982).

Nas imediações do estádio do Morumbi, oscamelôs vendem lanches, camisas e ajudam areforçar a torcida corintiana. O suplício dessestorcedores ansiosos por um título contra o San-tos contagia o espectador de Dogão calabresa(2003), de Pedro Asbeg.

A comemoração da conquista da Copa do Mun-do de 1970 pelas ruas do Rio de Janeiro não deixoude ser registrada, graças às lentes de José CarlosAvellar, Tereza Jorge, Iso Milan, Manfredo Caldase Álvaro Freire, diretores de Viver é uma festa (1970-1972). Experiência parecida é a de Copa registrada(2007). Para fazer este filme, Daniel Ribeiro, FábioNovello, Karla Gasparini, Valério Fonseca e YaelHoffenreich saíram pelas ruas cariocas durante aCopa de 2006 para conhecer os torcedores enquan-to a bola rolava nos gramados da Alemanha.

As bandeiras das torcidas foram o mote prin-cipal do curta Bandeiras e futebol (1972), de HugoKusnet. As crenças religiosas e as superstições nãopoderiam estar fora do contexto futebolístico, se-

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gundo o documentário Superstição e futebol (1969),de Sylvio Lanna.

Além de torcedor apaixonado pelo Fluminen-se, Nelson Rodrigues escrevia grandes crônicassobre futebol. No ano de 2002, centenário do clu-be, Sérgio Sá Leitão lançou Óbvio ululante, docu-mentário que homenageia Nelson e seu time docoração, contando com a presença de inesquecí-veis craques tricolores, como Carlos Alberto Tor-res, Delei, Samarone, e outras personalidades.

O futebol na vida conjugal é tema recorrentenos curtas-metragens. A eterna guerra dos sexos con-tinua estimulando a imaginação de nossos roteiris-tas. Por enquanto, temos filmes como Linha burra(2000), de Thiago Oliveira e Diogo Miranda, emque um rapaz pensa em futebol até quando discutecom a namorada. Núpcias com futebol (1976), co-média erótica de Ary Fernandes, encena o dilemade um corintiano que se casa no dia da final entreCorinthians e Palmeiras. Equilibrar a rotina de atle-ta com a vida amorosa faz um candidato a goleadordo Flamengo passar por maus bocados em Com-prometendo a atuação (2005), de Bruno Bini.

Durante a Copa de 1998, a televisão é artigode primeira necessidade na vida de um desempre-gado. Mas sua mulher acha que ele deve procurartrabalho. Isto é parte do enredo de O negócio(1999), de Diego de Otero, Roberto Tietzmann eAletéia Selonk. Futebol e balé clássico aparente-mente não combinam para o jovem casal de Deci-são (1997), de Leila Hipólito. A descoberta do amoracontece numa final de campeonato infantil de bair-ro em Como se fosse ontem (2005), de GustavoMoraes e Roberto Seba. A paixão pelo futebol uneum casal na obra de Paola Barreto Leblanc, Ele-mento no conjunto (2004). A separação de doisnamorados é um problema e tanto para os times dotorneio de solteiros contra enrolados no filme Osmoralistas (2003), de André Dal Bello. Comemorarum aniversário de casamento não se trata de algomuito fácil em dia de decisão, e Adilson BernardoSilvestre levantou a questão em Bodas de campeo-nato (2001). A dificuldade de diálogo num matri-mônio é agravada pelo futebol na TV, no curta Sin-tonia fina (2001), de Renato Gagliardi Chiappetta.

Laís Bodanzky, por sua vez, desvenda a discri-minação contra a mulher no futebol, no caso, uma

menina de 12 anos que joga bola com os garotosdo bairro, na fita Cartão vermelho (1994).

Até mesmo filmes experimentais foram pro-duzidos usando uma estética baseada no futebol.Como primeiro exemplo pode-se citar É isto aí(1979), dirigido por Rita Benchimol, uma fugado tradicional esquema de montagem e sonori-zação cinematográficas, usando futebol e praiacomo elementos temáticos.

O artista conceitual Edgar de Carvalho Júnior,usando uma peça de uniforme de cada time cario-ca, andou pelo centro da cidade do Rio de Janeirojogando bola, soando um apito e conversando comas pessoas. Dessa experiência resultou o documen-tário Ensaio urbano (1973). Desafiando a regra, oartista plástico Luiz Alphonsus transformou o poetaem juiz de uma partida, apitando o cigarro no su-per-8 Chacal é o juiz (1976). No mesmo simbólicoe incomparável ano de 1976, José Antônio Garciarompeu com a linguagem vigente do cinema em Hojetem futebol, uma interpretação diferente para a pre-paração de um jogo. No estádio vazio, DemervalNetto é jogador, juiz, bandeirinha e espectador, noseu filme Um jogo de futebol no Maracanã (1970).

Aprender matemática parece mais interessan-te com o auxílio do futebol, eis a proposta de AMatemática e o futebol (1970), das artistas plás-ticas Lygia Pape e Frieda Dourian, e do cineastaSanin Cherques.

No circuito boêmio-cinéfilo do Rio, a regrado impedimento leva as pessoas, sob influência etí-lica, à reflexão acerca da condição humana, no ví-deo de Philipp Hartmann, A vida não é um jogo defutebol: à procura do impedimento (2006).

No campo do filme de animação há exemploscomo Xadrez (1999), de Vinicius Nora, em quepeças de xadrez resolvem suas diferenças num jogode futebol; Gol (1983), de Maurício Squarisi, apropósito de violência e exploração no esporte; eA turma do gol (2000), de Paulo Mariotti e Rena-to Bulcão, que imagina um menino tentando cri-ar um time de futebol para ajudar a família a sairda pobreza. Narrado em forma de cordel, Dispu-ta entre o diabo e o padre pela posse do cênte-fórna Festa do Santo Mendigo (2006), de EduardoDuval e Francisco Tadeu, faz graça da ambiçãopolítica de um coronel do interior do Nordeste

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Fontes consultadas:Cinemateca Brasileira – www.cinemateca.com.br • Porta Curtas – www.portacurtas.com.br • Curta o Curta – www.curtaocurta.com.brCurtagora – www.curtagora.com • The Internet Movie Database – www.imdb.com * GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra.Porto Alegre: L&PM, 2008. • ORICCHIO, Luiz Zanin. Fome de bola: cinema e futebol no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.

que tenta promover uma partida entre a equipelocal e um time grande de São Paulo.

A maneira de o cinema mostrar o futebol,inclusive, já foi objeto de um média-metragem.David Neves e Chico Drumond pesquisaramobras que tratam do assunto e o resultado é Cine-ma e futebol (1980) que, em 48 minutos, apre-senta trechos das primeiras filmagens de jogosentre Brasil e Argentina, partidas no campo doFluminense, cinejornais, documentários sobrejogadores e filmes de ficção que tivessem futebolna trama. Junte-se a tudo isso depoimentos deNelson Rodrigues e Alex Viany.

Além de todos esses filmes citados até aqui,existem muitos outros de caráter documental,especialmente aqueles que adentram as concen-trações das seleções brasileiras e dos principaistimes em seus tempos áureos. Um bom exem-plo é Receita de futebol (1972), do cineasta Car-los Diegues, em que são observados os prepa-

rativos da seleção brasileira para a Copa Rocana Argentina, com direito a entrevistas com osprincipais jogadores do momento, como Tostãoe Gérson. Isso sem falar de jogos de campeona-tos, amistosos e comemorativos das quatro pri-meiras décadas do século XX, filmados por ad-miradores do esporte e cineastas pioneiros, mui-tas vezes sob encomenda. São o que não se devechamar de relíquias, mas sim de preciosos regis-tros de épocas passadas que guardam no tempoe no espaço a paixão que move gerações e gera-ções de brasileiros. Quem tem a oportunidadede assistir a esses filmes certamente há de con-cluir que raríssimas vezes uma modalidade es-portiva foi capaz de entusiasmar e unir um povotal como o faz no Brasil. Ainda que os curtas-metragens tenham um espaço de exibição restri-to, no que se refere ao futebol são território li-vre para dribles, passes de bola, criatividade emuitos gols. E, claro, câmeras filmando tudo.

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As concentrações e treinamentos dos times e, principalmente,da Seleção Brasileira sempre foram alvo das câmeras dos cineastas

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Vestígios do passado

Cineasta, diretor de Lição de amor (1975), Ato de violência (1980), Vocação do poder (2005), entre outros filmes.Eduardo Escorel

Na sua prática profissio-nal, o cineasta tanto pode pro-duzir quanto utilizar documen-tos audiovisuais, comumenteidentificados como imagens de

arquivo ou, simplesmente, ma-

terial de arquivo. Nos dois ca-sos, o dos registros filmadosque vêm a adquirir valor docu-mental e o do uso de filmagensfeitas por terceiros, o realizador enfrenta vicissitu-des familiares a quem procura cruzar cinema e his-tória na realização de filmes documentários.

13 de março de 1964. Uma equipe de trêspessoas filma o Comício da Central do Brasil emque o presidente João Goulart anuncia as reformasde base pouco antes de ser deposto. Onde estarãoessas imagens? Da última vez que as vimos, era1970. Desde então, seu paradeiro é um mistério.

Janeiro de 1966. Em São Luís, no Maranhão,outra pequena equipe filma o governador JoséSarney no dia da sua posse, discursando de umpalanque armado na praça pública tomada pelamultidão. Onde estará o negativo original dessasimagens? Teria sido parcialmente destruído e reu-tilizado em outro filme?

Março de 1968. Um câmera solitário filma aprocissão fúnebre e o enterro do estudante Ed-son Luís, morto a tiros pela polícia no Centrodo Rio de Janeiro – marco inicial das manifesta-ções de protesto ocorridas naquele ano contur-bado. Onde estarão essas imagens? Teriam sidoenviadas para o exterior do país, na tentativa deevitar que fossem apreendidas pela polícia?

Esses três exemplos e a mesma pergunta, sem-pre sem resposta precisa, bastam para mostrar aprecariedade que há, entre nós, na preservação

de um repertório audiovisual que possa servirde referência à memória coletiva e à realizaçãode documentários históricos.

A água, o ar, a terra e o fogo conspiram con-tra a preservação dos registros visuais e sonoros.Mas à ação predatória dos elementos se soma ados seres humanos – o despreparo de indivíduose instituições, o descaso da sociedade e a insen-sibilidade dos governos.

O suporte material desses registros, sendo pe-recível por natureza, em alguns casos é sujeito àautocombustão! A guarda descuidada, o armazena-mento inadequado, contribuem para a grande quan-tidade de perdas havida desde os primórdios docinema. Mesmo depois de a importância da pre-servação ter sido reconhecida em um círculo res-trito, incêndios, alagamentos, temperatura ambi-ente elevada, umidade do ar e bolor continuaramdilapidando o acervo brasileiro de imagens e sons.Do que deixou de ser vendido a peso para servirde matéria-prima na fabricação de esmalte, grandeparte não escapou da chamada síndrome de vina-

gre – odor característico que indica um processoirreversível de deterioração do suporte de acetato.

Esforços isolados não foram capazes de impediressa catástrofe continuada. E a passagem da predo-minância da imagem fotográfica para a eletromag-

PH.FOT.05610.004

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

25Publicado em CPDOC – 30 anos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 2003, p. 45-57.

Comício da Central do Brasil, cartazes na

concentração da praça Cristiano Ottoni.

Rio de Janeiro, 13/3/1964

nética agravou as perdas e a má qualidade técnicado reduzido acervo que vem sendo preservado.

Assim, um projeto de rever a história repu-blicana brasileira através do cinema parece, deantemão, condenado ao fracasso. As lacunas su-peram, de longe, as imagens ainda existentes. Oque resta são apenas tênues vestígios do passa-do, cuja sobrevivência, muitas vezes quase mi-raculosa, não temos como explicar.

Em 1965, pudemos ver, pela primeira vez, asimagens de Lampião, Maria Bonita e seu bando decangaceiros, filmadas em 1936 pelo mascate liba-nês Benjamin Abrahão. A verdade é que não sedeu, na época, a devida atenção à excepcionalida-de daquelas cenas, apreendidas em 1937 sob opretexto de atentarem contra “os foros da nossanacionalidade”. O fotógrafo Adhemar Albuquerqueteria escondido e vendido uma cópia ao produtore diretor Alexandre Wulfes. De alguma forma, es-sas imagens chegaram às mãos de Paulo Gil Soa-res, que as incluiu no seu Memória do cangaço.Um longo caminho, marcado por lances imprevistose detalhes ainda desconhecidos, foi percorrido atéque aquele registro filmado encontrasse guarida naCinemateca Brasileira, onde está depositado hoje.

De maneira geral, no entanto, o desfecho des-ses percursos acidentados costuma ser menos felize, muitas vezes, imagens com a mesma origemtêm destinos diversos.

Geraldo Sarno conta que quando passou comThomaz Farkas por Águas Belas, em Pernambuco,em 1969, viu, na delegacia da cidade, rolos de filme35mm, todos velados. Segundo o delegado, teriampertencido a Benjamin Abrahão e haviam sido trazi-dos junto com o seu cadáver quando foi assassinadoem 1938. Seriam apenas negativos virgens? Haveriaimagens impressas naqueles filmes? Que imagens se-

riam essas? Passados trinta anos, continuavam ali,se deteriorando, perdidas para sempre.

Em outros casos, sem que se saiba como, odecurso de períodos ainda maiores não impediuque cópias de certos filmes fossem preservadas.Foi o que ocorreu com as imagens do Padre Cí-cero a que recorremos em 1970. Aceitamos suaexistência, na época, sem nos preocuparmos emsaber quem as filmara, nem como haviam sidopreservadas. Pareceu-nos perfeitamente naturalque estivessem disponíveis no Instituto Nacionalde Cinema e que, graças a elas, nos fosse possíveltraçar um paralelo entre os ritos do poder dosanos 1920 e do final dos anos 1960. Sabemoshoje que essas imagens mostram o Padre Cíceroinaugurando sua própria estátua de bronze numapraça de Juazeiro do Norte, no Ceará, e teriamsido filmadas pela Aba Film de Adhemar Albu-querque, a 11 de janeiro de 1925. Documentovisual precioso, preservado durante quarenta anosnuma instituição pública, que resistiu à tempera-tura tropical apesar de ter sido conservado emcondições distantes das ideais.

Muitas vezes a preservação de uma filmagemvaliosa deve-se ao mero acaso. Um diretor dá aum colega um rolo de filme que recebera de umprodutor. Entregue o material à guarda da Cine-mateca do Museu de Arte Moderna, assegura-se,assim, a preservação do que está identificado naprópria película como sendo “A grande marchapliniana”, manifestação integralista no centro doRio de Janeiro, ocorrida provavelmente em 1937.Lá estão Plínio Salgado, líderes e militantes, nomomento em que, acreditando estar às portas dopoder, encontravam-se, na verdade, às vésperasda derrocada. Quem terá filmado essas imagens?Terão sido exibidas em público alguma vez? Como

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VEST ÍG IOS DO PASSADO

foram obtidas pelo produtor e o que o levou a entre-gá-las ao diretor? É provável que nunca venhamos asaber as respostas a essas questões. De todo modo,casos fortuitos e de origem imprecisa como esse,mal ou bem, contribuíram para que a perda da nos-sa memória audiovisual não fosse completa.

Atuando em sentido contrário, porém, soma-se à aniquilação predominante o trabalho de sapade diversas espécies de predadores, usualmentecom propósitos comerciais. Uns consideramnormal se apropriar de acervos de empresas fali-das; outros não se envergonham de subtrair benspúblicos para formar acervos particulares.

Ficam delineados, dessa forma, alguns dos fa-tores que configuram o quadro geral de precarie-dades que a Cinemateca Brasileira vem enfrentan-do desde o seu surgimento no final de 1956, comvinte anos de atraso em relação às instituições con-

gêneres, européias e norte-americanas. Apesar deter iniciado suas atividades quando o grande maljá estava feito e de portar como trágica marca denascença o incêndio que destruiu, em janeiro de1957, grande parte do seu acervo, a CinematecaBrasileira foi responsável, nas décadas seguintes,pela preservação e pela restauração do principalrepertório de imagens cinematográficas existentesno Brasil. Mesmo assim, tendo que lidar com acontinuada desatenção dos governantes, nosso cen-tro primordial de referência de documentação fil-mada ainda permanece distante do padrão de ex-celência que suas atribuições requerem e que seusdirigentes e usuários desejam.

Já na década de 1980, a Embrafilme cons-truiu uma modesta reserva técnica onde foi de-positado o acervo originário do Instituto Nacio-nal de Cinema. As instituições de referência dosetor, a Cinemateca Brasileira, e, em segundoplano, a Cinemateca do Museu de Arte Moder-na, ampliaram seus acervos e procuraram aper-feiçoar seus métodos de trabalho. Apesar da re-lativa evolução experimentada, o quadro geral seagravara, continuando a ser desalentador.

Ao iniciarmos, em 1990, o que viria a ser umasérie sobre a disputa pelo poder inaugurada com aRevolução de 1930, passamos a contar com o Cen-tro de Pesquisa e Documentação de História Con-temporânea do Brasil – CPDOC, da Fundação Ge-túlio Vargas, criado em 1973. Tendo estabelecidoum alto padrão de excelência em sua área de atua-ção e constituído suporte decisivo para o cinemadocumentário de caráter histórico, quem trabalhacom esse gênero de filme não pode deixar de lamen-tar que o CPDOC não se tenha proposto a atuartambém, como uma cinemateca, na preservação eno restauro de imagens filmadas em película ou gra-vadas em fita magnética. A opção por um projetode âmbito mais modesto, determinada possivelmentepor restrições orçamentárias, deve ter se beneficia-do das vantagens dessa prudência. Ao mesmo tem-po, impôs limites notórios a quem pretenda recor-rer ao CPDOC como fonte de pesquisa iconográfi-ca exaustiva sobre a história brasileira contemporâ-nea. Reconheça-se, no entanto, que um acervo for-mado pela doação de arquivos particulares não po-deria mesmo ter tal ambição de abrangência.

PH.FOT.00290.006

Desfile Integralista. s.l., 1937

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

2727Além da produção intelectual dos pesquisadoresdo CPDOC se ter tornado referência obrigatória, elespróprios passaram a colaborar na realização de filmesdocumentários através de depoimentos e da elabora-ção de argumentos e roteiros. Foi o que ocorreu, em1990, na realização de 1930 – Tempo de revolução,para o qual contamos com a consultoria histórica deRegina da Luz Moreira, pesquisadora da instituição.O Dicionário histórico-biográfico brasileiro, por suavez, publicado em 1984, passou a ser a fonte de con-sulta primordial dessa área de conhecimento e pes-quisa. Finalmente, o acervo fotográfico viria a suprir,ainda que através da imagem estática, algumas daslacunas da nossa memória cinematográfica.

Ao lado dessas contribuições notáveis, é uma lás-tima que o registro, filmado ou gravado em vídeo, daimagem dos depoentes não tenha sido incluído noPrograma de História Oral, transformando-o numPrograma de História Oral & Visual. Considerandoa penúria do acervo brasileiro de imagens em movi-mento, o registro visual das centenas de testemunhoscolhidos teria constituído um acervo de valor inesti-mável. Tendo prevalecido o mesmo procedimento nosdepoimentos mais recentes que compõem a trilogiada memória militar (Visões do golpe, Os anos de

chumbo e A volta aos quartéis), fomos impedidos,por exemplo, de examinar a expressão do rosto dogeneral Carlos Alberto da Fontoura, chefe do ServiçoNacional de Informações de 1969 a 1974, no mo-mento em que afirmou nunca ter tido “uma prova detortura” (Os anos de chumbo, p. 97).

Terá sido apenas por falta de recursos que nãoforam feitas essas filmagens ou gravações em vídeo?Essa possibilidade terá sido considerada? Ou terápredominado um certo menosprezo pelo valor dodocumento visual que parece haver por parte de al-guns historiadores? É isso que poderia sugerir a co-letânea de fotografias A Revolução de 1930 e seus

antecedentes, publicada pelo CPDOC em 1980.Reunindo grande número de imagens do seu

acervo, além de algumas de outras fontes, o álbum selimita a apresentar textos breves introdutórios aoscapítulos e legendas descrevendo as fotografias. Aimportância da documentação visual apresentada,até então pouco conhecida em seu conjunto, nãonos deve impedir, porém, de questionar a possibi-lidade de essas imagens falarem por si mesmas.

Além do local, da data e da identificação dos foto-grafados, não teria sido necessário acentuar o quecada uma dessas fotografias revela através do en-quadramento escolhido, da exposição, do diálogosilencioso dos fotografados com a câmera e entreeles próprios? O que essas imagens trazem? Anali-sadas a fundo, o que elas realmente mostram?

Para uma análise desse teor, uma das fotogra-fias mais interessantes a considerar teria sido a doArquivo Pedro Ernesto Batista, publicada à página73. Segundo a legenda, foi tirada em Gaiba, Bolí-via, em 1927, e nela estão retratados Cordeiro deFarias, abraçado a um menino, moradores da re-gião, Carlos Hansen, engenheiro da Bolívia Con-cessions e, na extrema direita, Luís Carlos Prestes,de braços cruzados. O que faltou mencionar foi opapel representado por essa fotografia na fabrica-ção do mito do Cavaleiro da Esperança. Cordeirode Farias com o corpo relaxado é o único, além deum bebê de colo, que não encara a câmera; Pres-tes, além dos braços cruzados, apóia as pernas comfirmeza, tem o corpo retesado e olha diretamentepara a lente – é a imagem da determinação. Al-guém, com apurado senso de percepção, isolou suafigura do resto da fotografia, fazendo surgir a re-presentação ideal do líder messiânico, representa-ção essa que passou a circular como um santinho,

CPDOC/FGV

Luís Carlos Prestes, na extrema direita, de braços cruzados; Cordeiro de

Farias, abraçado a um menino; Carlos Hansen, engenheiro da Bolívia

Concessions; e moradores da região. Gaiba, Bolívia, 1927.

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VEST ÍG IOS DO PASSADO

ora contra um fundo branco como se estivesse su-perposta a uma nuvem, ora contra um fundo escu-ro. E essa passaria a ser, desde então, a principalfonte de referência dos ilustradores para represen-tar o Cavaleiro da Esperança.

Manipulações dessa espécie indicam o perigode tomar a imagem pela comprovação dos fatos.Por estar sujeita a toda espécie de adulteração, éum truísmo dizer que a imagem não pode ser to-mada como a reprodução da realidade. É célebre ocaso da tomada do Palácio de Inverno, encenadaem 1927 por Eisenstein para seu filme Outubro,usada regularmente ainda hoje como se fosse umregistro jornalístico filmado emoutubro de 1917.

Menos notório, mas nãomenos instrutivo, é o caso dasmais antigas imagens de umacampanha presidencial no Bra-sil. Nesse filme, feito em outu-bro de 1921, vemos o candi-dato Artur Bernardes chegan-do ao Rio de Janeiro para apre-sentar sua plataforma políticana capital federal, praxe da Re-pública Velha. Após recepçãofestiva, promovida por seus cor-religionários, com faixas deboas vindas estendidas na esta-ção, está registrado o que pa-rece ser um cortejo triunfal pelo centro da cidade.Na verdade, tem-se notícia de que, ao entrar naavenida Rio Branco, Artur Bernardes foi hostiliza-do pela multidão em sinal de protesto pelas ofensasaos militares contidas nas célebres cartas forjadasatribuídas a ele, publicadas dias antes pelo Correio

da Manhã. Evidencia-se, dessa forma, a discrepân-cia notável que pode existir entre o relato dos cro-nistas e o que inferimos do registro filmado.

Mais prosaica e deliberadamente falsa foi atransformação de Getúlio Vargas em um exímiogolfista, graças a artifícios da montagem. Além defilmá-lo jogando, o câmera encarregado de glorifi-car sua figura teria recebido instruções para fil-mar, também, as tacadas de um grande jogador.Reunidas com o canhestro desempenho do dita-dor, essas cenas fizeram a platéia aplaudir, conven-

cida de que entre as supostas virtudes de Vargas,decantadas pela propaganda do Estado Novo, esta-va também a de ser um excelente esportista.

Outras armadilhas que comprometem a con-fiabilidade de documentos filmados surgem na for-ma de imagens resultantes de uma encenação de-liberada que pretende se passar por registro do-cumental. Por mais evidentes e malfeitas que se-jam, essas dissimulações costumam ser usadas li-vremente, como se o responsável pela filmagem nãotivesse interferido e orientado o que se passou di-ante da câmera. O exemplo mais conhecido dogênero, no cinema brasileiro, é o de Pátria redimi-

da, realizado por João BatistaGroff. Além dos registros de no-tável valor documental do mo-vimento militar de outubro de1930, Groff não hesitou em en-cenar combates que nunca ocor-reram com a intenção de asse-gurar o sucesso do seu filme.

Já em 1932, quando houvemortos e feridos na guerra civilentre São Paulo e o GovernoProvisório de Getúlio Vargas, ocinegrafista que filmou as tro-pas mineiras na serra da Manti-queira, não satisfeito em reen-cenar o tiroteio e a movimenta-ção dos soldados, criou peque-

nos quadros cômicos em que os mineiros ridiculari-zam a ameaça de bombardeio pelos paulistas e umem que fingem terem sido atingidos nas trincheiras.

Sendo pequeno o número de filmes preserva-dos e muitas vezes questionável seu valor documen-tal, há ainda a considerar que as filmagens, enco-mendadas ou não, eram feitas quase sempre paraagradar quem podia pagar pelo serviço. Grandeparte do restrito material existente, portanto, alémde exigir um olhar atento para ser decifrado, temtambém um viés de classe, trazendo, como freqüen-te marca de origem, o propósito de glorificar aclasse dominante e os donos do poder. Alguns fil-mes, cuja análise fugiria do propósito deste texto,não se enquadram nessa caracterização. É o casode No país das amazonas, feito por Silvino Santospara ser exibido na Exposição da Independência,

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

29inaugurada em 1922, e da vasta filmografia domajor Luiz Thomás Reis, documentando a ativi-dade de Cândido Rondon a partir de 1912.

Do plano fugaz da visita do presidente Cam-pos Sales a Buenos Aires, em 1900, à visita aosEstados Unidos, em junho de 1930, do presidenteeleito Julio Prestes; da visita ao Brasil do ex-presi-dente norte-americano Theodore Roosevelt, em1913, à visita do futuro presidente dos EstadosUnidos, Herbert Hoover, em 1928, o que existeno repertório de imagens filmadas referentes aoBrasil é, em grande medida, uma sucessão de visi-tas presidenciais e de monarcas estrangeiros. Até osurgimento em 1938 do Cine Jornal Brasileiro,produzido pelo Departamento de Imprensa e Pro-paganda do Estado Novo, essa é uma das princi-pais temáticas das filmagens que incluem tambémfazendas de café, vistas do Rio de Janeiro, filmes“de família”, campanhas políticas, pioneiros daaviação e, naturalmente, desfiles de miss, algumfutebol e muito carnaval. São raras filmagens comoa da Fábrica Votorantim, em que se pode ver oambiente fabril e o trabalho dos operários na déca-da de 1920. Fora isso, algumas imagens de grandeinteresse ainda podem ser encontradas em escas-sos arquivos familiares, de empresas privadas e noexterior, principalmente nos Estados Unidos, ondeo caráter jornalístico de muitos dos registros osdiferencia nitidamente do que foi produzido noBrasil, por encomenda, na mesma época. Que nun-ca se tenha feito um projeto para tornar essas ima-gens existentes no exterior mais acessíveis aos bra-sileiros é uma constatação para a qual não parecehaver justificativa razoável.

Entre os arquivos familiares existentes, um dosmais notáveis é o da família Salles Penteado, deSão Paulo. Ao voltar dos Estados Unidos, gradua-do em engenharia elétrica, no final da década de1920, Jaime de Salles Penteado trouxe consigouma câmera de filmar 16mm. Filho do coronelAntonio Leite Penteado, fazendeiro de café emSertãozinho, ele fez muito mais do que um álbumde família filmado. Demonstrou instinto de gran-de repórter ao estar com sua câmera, em váriasocasiões, no lugar certo, na hora certa. Graças aele, podemos ver hoje, entre outras cenas de gran-de interesse, um comício do Partido Democráti-

co no interior de São Paulo nos anos 1920; amultidão com a placa de identificação da delega-cia do Cambuci, carregada como troféu da vitó-ria pelas ruas do centro de São Paulo em outubrode 1930; as manifestações e quebra-quebras nocentro de São Paulo em julho de 1932. Pela amos-tra deixada por Jaime de Salles Penteado, é possí-vel ter uma idéia do valioso acervo de imagensque existiu e que foi perdido para sempre.

A influência do poder econômico na formaçãode um repertório visual de referência pode ser ates-tada, ainda, comparando as campanhas presiden-ciais de Armando de Sales Oliveira e de José Amé-rico de Almeida. Deste último, chamado pela im-

prensa paulista de “candidato pobre”, não conhe-cemos uma única imagem filmada na campanha,apesar de se tratar, supostamente, do candidatooficial do governo federal na eleição prevista parajaneiro de 1938. Já do ex-governador de São Pau-lo, chamada por sua riqueza de “campanha ameri-cana”, temos farto material de excelente qualidadefotográfica e em perfeito estado de conservação,preservado por uma empresa privada. O apoio fi-nanceiro que Armando de Sales teria recebido deempresas e bancos estrangeiros, além do Institutode Café de São Paulo, teria propiciado, entre ou-tros luxos, o de contratar profissionais competen-tes para filmar os eventos da sua campanha. Com-parado a Getúlio Vargas, Armando de Sales é supe-rior em ao menos um quesito: o do número de dis-cursos filmados nos anos de 1930, com imagem e

PH.FOT.05620.026

Contingente de

fuzileiros navais

desembarca no

Catete para a

guarda do

Palácio.

Rio de Janeiro,

25/11/1935

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VEST ÍG IOS DO PASSADO

som sincronizados, de que ainda existem cópias. Háalguns do político paulista, enquanto do gaúcho pa-rece não haver nenhum. Pois até mesmo nas ima-gens do juramento à Constituição, em 1934, o some a imagem de Vargas não estão sincronizados. Essatalvez tenha sido a única disputa entre os dois, noperíodo anterior à existência do DIP, vencida porArmando de Sales Oliveira: a do legado que deixoupara servir de referência à memória audiovisual.

No caso do acervo do CPDOC, esse viés daclasse dominante também resulta privilegiado. Osarquivos pessoais que a instituição se propõe rece-ber são, de forma geral, apanágio das elites, e o atode doá-los a uma instituição de pesquisa pressupõea esperança de glorificação póstuma. Assim, o queresulta é um conjunto de documentos da maiorimportância, mas forçosamente parcial e incom-pleto, circunscrito a um universo limitado de ato-res políticos. Mais uma vez, frustra-se a expectati-va, talvez descabida, de quem busca no CPDOCum thesaurus exaustivo. Foi o que pudemos consta-tar quando lidamos com o arquivo então recém-in-corporado de Ulisses Guimarães, em 1993. Parareconstituir a trajetória biográfica e política de Ulis-ses, contamos com a valiosa colaboração de DulcePandolfi, pesquisadora do CPDOC, mas fomosobrigados a recorrer em proporção significativamentemaior a outros acervos para reunir as imagens e gra-vações de áudio que nos eram necessárias.

Pelos mesmos motivos referidos acima, não éno acervo do CPDOC que se pode encontrar partesignificativa da documentação visual existente a res-peito da guerra civil de 1932 e dos levantes de no-vembro de 1935. E é a iniciativas privadas que de-vemos a existência, entre outros, de depoimentos,filmados ou gravados em vídeo, de Octávio Brandão,José Américo de Almeida e Luís Carlos Prestes.

Em projetos da última década, particularmenteSaudades do Brasil – A era JK, de 1992, e Estado

Novo – A construção de uma imagem, de 1997, oCPDOC deu orientação diversa à que prevaleceraem 1980, quando da publicação de A Revolução de

1930 e seus antecedentes, conforme assinalamosacima. Recorrendo, em Saudades do Brasil, ao cine-ma, ao vídeo, à música e ao design, as fotografiaspuderam ser contextualizadas, permitindo uma apre-ensão da imagem mais completa do que ela por si só

evidencia. Já no caso de Estado Novo – A constru-

ção de uma imagem, o próprio título indicava a per-cepção de que os registros fotográficos precisavamser decodificados para poderem ser compreendidos.

Escassas, duvidosas, parciais e incompletas, ain-da assim imagens documentais de arquivo têm valorinestimável por assegurarem a existência de umamemória visual. Sem elas o âmbito da representa-ção figurativa do passado ficaria muito restrito; gra-ças a elas é possível criar referências iconográficasconcretas que, somadas à informação verbal e escri-ta, aumentam nossa capacidade de compreensãohistórica. Até mesmo encenações explícitas podemservir de matéria-prima para o cinema documentá-rio, desde que não se tente fazer o que é ficcionalpassar por realidade. A desqualificação do registroaudiovisual como fonte de conhecimento incorre noequívoco de não reconhecer que ele vale tanto quan-to qualquer outra fonte, primária ou não. É precisoapenas saber ler, ou melhor, ver, e não tomar o quevemos e ouvimos pelo seu valor de face.

Admitidas suas limitações, é impossível negar aforça do testemunho que pode ser dado por ima-gens em movimento. Quando George Stevens, ser-vindo no exército dos Estados Unidos, entrou comuma câmera nos campos de extermínio no final daSegunda Guerra Mundial, as cenas que filmou con-tribuíram para o fracasso do projeto nazista de apa-gar a memória do holocausto. O extraordinário im-pacto daquele testemunho visual, exibido em cine-jornais a partir de abril de 1945, teve influência de-cisiva para impedir que se concretizasse a previsãocínica dos SS, relatada por Primo Levi, de que, fos-se qual fosse o desfecho da guerra, o exército nazistaseria vitorioso, pois as provas do que ocorrera seri-am destruídas; nenhum dos prisioneiros sobrevive-ria para contar a história, e mesmo que houvessealgum sobrevivente, ninguém acreditaria no seu re-lato. As imagens de George Stevens, e de outros ci-negrafistas, ajudaram a impedir a consumação demais essa atrocidade – a de os nazistas se tornaremdetentores exclusivos da história do holocausto.

Não havendo maneira de deter por completo adeterioração provocada pela ação do tempo, nemde eliminar a incidência do acaso na preservaçãode sons e imagens, retardar os efeitos nocivos doprimeiro e reduzir a ocorrência do último é tarefa

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

31de instituições especializadas como a CinematecaBrasileira. Para tanto, elas precisam receber suportefinanceiro proporcional às suas altas responsabili-dades, o que não ocorreu no caso da Cinematecado Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,que se viu obrigada a deixar de preservar matrizesem 2002, depois de 45 anos de atuação nessa área.Com a transferência de parte do acervo da Cine-mateca do MAM para o Arquivo Nacional, restacomprovar se essa tradicional instituição federalterá os meios necessários para cumprir a tarefa quese propôs. Ou se, ao contrário, teremos regredido,salvo a atuação da Cinemateca Brasileira, ao tem-po em que predominavam depósitos de filmes nolugar de centros efetivos de preservação e restauro.O padrão de excelência alcançado pelo CPDOC e,mais recentemente, pelo Instituto Moreira Sallesno trato de fotografias é a meta a almejar para osacervos de filmes e gravações em vídeo do País.

Mesmo quase perdido o passado, e o presen-te estando em condição precária, persiste o desa-fio de assegurar a sobrevivência do acervo brasi-leiro de imagens em movimento. Sem o que, emface da produção maciça e ininterrupta de ima-gens, em ritmo crescente e nunca antes visto, da-qui a cinqüenta anos será difícil saber qual a fei-ção do início do século XXI. Para que as futurasgerações não tenham a mesma dificuldade dos seusantepassados, é preciso resolver os impasses queconspiram contra a preservação da nossa face. Não

se trata apenas de preservar e restaurar, mas tam-bém de enriquecer continuamente o patrimônioaudiovisual, através da criação e do respeito aodepósito legal que assegure a preservação de pelomenos uma cópia de todos os filmes brasileiros eestrangeiros exibidos no Brasil. Será razoável,como ocorreu em 2002, destinar à CinematecaBrasileira recursos equivalentes a menos de 4%do montante captado através das leis de incentivofiscal pelos filmes brasileiros lançados nesse ano?Alocar recursos públicos para produzir sem queesteja assegurada a preservação do que é produzi-do equivale a queimar dinheiro, ato criminosopassível de detenção por um período de seis me-ses a três anos, conforme disposto no inciso IV,artigo 163, do Código Penal.

Não é mais admissível haver qualquer dúvidaquanto ao interesse que “terão para os brasileirosdo ano 2357 a imagem e a voz de Getúlio Vargasprestando juramento a Constituições, as passeatasde Plínio Salgado, os comícios de Luís Carlos Pres-tes, as vistas de São Paulo ou da Central do Bra-sil”, questão que angustiava Paulo Emilio SalesGomes em 1957. Graças a ele, e a alguns outrosabnegados, essas imagens chegaram até nós. E quantoàs imagens mais recentes? Em que estado estará oregistro visual e sonoro do discurso de posse do pre-sidente Luiz Inácio Lula da Silva daqui a 350 anos?Em qual instituição essa imagem poderá ser vistaem bom estado de conservação no ano de 2357?

PH.FOT.00554.002

Enterro do estudante

Edson Luís. Rio de

Janeiro, 29/3/1968

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Narrativasde transmissões de futebol

cinema, futebol e estranhamento

Cineasta, escritora e crítica de cinema. Dirigiu Se tu fores (2001), com Guilherme Coelho, e Almas passantes (2007),com Cléber Eduardo.

Ilana Feldman

Gente estranha essa que não

gosta de futebol... Gente estranha

essa que, em sua experiência inau-

gural com o futebol, fica fazendo

decupagem das imagens e discutin-

do a direção da transmissão. Pois

bem. Eis aqui a gente estranha. Mas,

um primeiro problema se coloca:

mesmo para quem supostamente

não gosta do jogo é impossível não

ser completamente enredado por sua

transmissão e ter a percepção tra-

gada pelo movimento da bola, pois

a transmissão do futebol é estrutu-

rada narrativamente – com sua lin-

guagem, locução e rítmica – tendo

em vista o controle e a manipula-

ção da atenção do espectador. Qual-

quer semelhança com o cinema clás-

sico-narrativo, portanto, não é co-

incidência. Ambos buscam o mesmo

efeito, o enlaçamento do espectador

no drama, mas partindo de pressu-

postos distintos.

Grosso modo, são evidentes as

semelhanças de linguagem a partir

de uma decupagem sumária: planos

próximos, planos abertos e planos

gerais, estes recortados por panorâ-

micas (os únicos movimentos de

câmera) para esquerda e direita que

selecionam o campo, funcionando

na dinâmica plano e contraplano;

replays que, analogamente, nos re-

metem aos habituais flashbacks do

cinema clássico-narrativo; e uma

dramaturgia calcada em relações de

antagonismo, em que se pressu-

põem posições e características, a

princípio definidas, para os jogadores-

personagens, e curvas dramáticas

intensas para o jogo-cena.

Ainda em relação à linguagem,

nos jogos, algumas vezes, as câme-

ras se posicionam em ângulos em

que olhos humanos não se posicio-

nariam, estando mais próximas de

uma proposta vertoviana, de um ci-

nema-olho, maquínico, do que da

transparência narrativa tão pleitea-

da pelo cinema clássico. No entan-

to, mesmo em seus momentos refe-

renciais – quando, por exemplo, a

câmera que filma o ponto de vista

do gol treme à batida da bola na tra-

ve –, a transmissão do futebol não

chega a produzir reflexividade, tal o

grau de envolvimento criado pelas

artimanhas narrativas (que, obvia-

mente, dependem do desenrolar dos

fatos, mas não só).

Nesse sentido, poderíamos di-

zer que a transmissão do futebol,

mesmo tendo como matéria-prima

um processo vivo – roteirizado en-

quanto estrutura dramática, mas

não de todo programado –, pro-

duz uma narrativa que se quer

transparente, tal como se entende

e se classifica hegemonicamente o

cinema clássico-narrativo. Essa

idéia de transparência é produzi-

da, basicamente, por dois fatores:

uma articulação das imagens do

jogo não vinculada a uma idéia de

autoria (não há editores esporti-

vos reconhecidos e legitimados

como tais) e um engajamento do

espectador-torcedor na trama fu-

tebolística, adesão produzida não

apenas por um apriorístico “amor

à camisa”, mas por procedimen-

tos narrativos que acentuarão o

drama e mobilizarão o mais ima-

terial (e hoje capital) sentido: a

atenção. Tal atenção-atenta refor-

ça a sensação de transparência, na

medida em que, tragada pela di-

nâmica interna do jogo, fecha os

olhos para o ilusionismo presente

na construção da dinâmica exter-

na de transmissão dele.

Porém, a despeito de todas as

semelhanças com o cinema clássi-

co, semelhanças, sobretudo, na

construção e aspiração aos efeitos

mencionados, a transmissão do fu-

tebol, ao contrário, assenta-se na

mise-en-scène. Nesta, sempre pro-

cessual, improvisos estão previstos,

como em um roteiro não-programa-

do, cujos sentidos são organizados

na duração e contingência dos acon-

tecimentos por meio da edição, si-

multânea ao jogo. Já o cinema clás-

sico-narrativo, de modo diverso,

parte de sentidos organizados pre-

viamente, roteirizados, e de uma

montagem que se dará a posteriori

dos fatos encenados.

Nesse aspecto, a transmissão do

futebol estaria mais próxima do ci-

nema moderno e de experiências

contemporâneas de dramaturgias

PH

.FO

T.3

22

9.1

21

Page 34: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

3 3

televisuais, como o Big Brother Bra-

sil, por exemplo, no que diz respei-

to a uma relação cada vez mais ex-

plorada audiovisualmente (e comer-

cialmente, sobretudo) entre drama

e jogo. Tanto o futebol quanto o BBB

fazem da imprevisibilidade e da

improvisação um método a partir

do qual a narrativa será engendra-

da, porém se valendo, em ambos os

casos, de categorias identitárias de-

marcadas, socialmente tipificadas e

de posições estratégicas que rendem

mais quanto maior for a criação de

antagonismos, sejam binários ou

entre grupos. Também a presença

das ações minimalistas em campo,

dos tempos “mortos” e dos momen-

tos em que a atenção, de início aten-

ta, é relaxada e se dispersa, aproxi-

ma o futebol do cinema moderno.

No entanto, a aproximação da

narrativa de transmissão de futebol

com o cinema clássico-narrativo é,

ainda, a mais nítida, sobretudo pela

pretensão, que atravessa tanto o fu-

tebol quanto esse cinema, de se cons-

truir um inequívoco sentido final –

ainda mais em jogos decisivos de

campeonatos ou Copas do Mundo,

quando não são permitidos empates,

estes tão modernos finais em aberto

(que, não por acaso, representam um

dos problemas dos norte-americanos

em se relacionar com o soccer).

Paradoxalmente, a modernidade

da transmissão do futebol estaria jus-

tamente nas múltiplas possibilidades

de analogias críticas, não restritas à

dobradinha cinema clássico e moder-

no. Os momentos dos gols, por exem-

plo, lembram o cinema das atrações,

por funcionarem como espetáculos

autônomos, puro gesto cênico, cenas

que serão repetidas exaustivamente

e que podem, inclusive, como “nar-

rativas” curtas e atrativas, migrar para

outras mídias, como trailers exibidos

em aparelhos celulares. Os gols se-

riam, assim, uma espécie de formato-

trailer dos jogos, fazendo a ponte

entre as narrativas curtas e senso-

riais dos trailers com as antigas atra-

ções do primeiro cinema.

Curioso que, para quem nun-

ca tinha assistido a uma partida

na vida, ao menos engajadamen-

te, a transmissão do futebol possa

ser no plano das imagens e sons

tão interessante, especialmente

rica em relação às imagens e po-

bre quanto ao som, cuja captação

e construção restam aquém da ela-

boração visual. A questão do som

na transmissão do futebol indica

uma última analogia com o cine-

ma: clássico e moderno, o futebol

transmitido é também, e talvez

mais do que tudo, um filme mudo.

A associação com o cinema

mudo presta-se a dois sentidos. O

primeiro, potente (para o futebol) e

justo (com o cinema): a despeito de

toda a falação, as imagens narram-

se por si, de maneira autônoma,

tornando a locução acessória, ou

essencial acessoriamente, como os

intertítulos no cinema mudo. Já o

segundo sentido deprecia o “mudo”,

sendo injusto com o cinema, mas

não tanto com a transmissão do fu-

tebol: o som dos estádios captado,

na maior parte das vezes, de dentro

dos estúdios (como um som exter-

no que invade um ambiente inter-

no), não funciona como um som

diegético, mas como uma massa

sonora, ilustrativa, homogênea, aba-

fada e sem qualquer nitidez, sobre-

posta às imagens como um som pro-

duzido artificialmente.

Raras vezes ouvimos com sen-

sação de proximidade chutes na

bola, ruídos vindos da arquibanca-

da, vozes das torcidas, apelos e in-

dignação. O que é uma pena, pois

a transmissão do futebol, se bem

explorasse os recursos de áudio e

microfonia, poderia proporcionar

uma interessante experiência de

imersão – em um momento em que

os Playstations, auditivamente, são

mais realistas do que as partidas

transmitidas –, provocando uma

certa gagueira ruidosa na lingua-

gem e fazendo dos ruídos uma po-

tente forma de comunicação. Por

ora, contento-me então com os ru-

ídos provocados pelas imagens, re-

petindo-se, em uma gagueira “infi-

nita”, até o próximo lance, que

substituirá o anterior. Por ora, con-

tento-me em deixar de ser gente es-

tranha, ou em sê-lo ainda mais...

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

3 3

PH

.FO

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91

34

.16

0

Page 35: Revista Recine nº 5 - 2008

Diretor de cinema, escritor e artista plástico. Dirigiu Assuntina das Amérikas, Crônicas de um industrial eO santo e a vedete – até hoje inédito nos cinemas brasileiros. Roteirista de Adyós General e Viva a morte.

Luiz Rosemberg Filho

1958O ano em que o mundo

descobriu o Brasil

No passado sabíamos que o cra-que Zizinho era do Bangu. Leôni-das e Pompéia, do América. Pelé,do Santos. Zagalo, do Flamengo.Bellini, do Vasco da Gama. Garrin-cha e Didi, do Botafogo... Talvezseja interessante lembrar que o fu-tebol de ontem não tinha nada a vercom o de hoje. Ontem jogava-se peloentusiasmo e pela paixão. Hoje éum negócio como qualquer outro.Os jogadores são mantidos por cor-porações e, como escravos-felizes,jogam tanto por Deus como peloDiabo. Quem pagar mais, leva-os!Mas claro que os comentaristas es-portivos nada falam. Ganham bempara vender o futebol como um gran-de acontecimento a cada jogo.

Raros são os jogadores que,como Afonsinho (do Botafogo),pensavam e brigavam por idéias po-líticas para o esporte. A maioria,viciada por um sucesso passageiroe rápido, só assume a embriaguezda fama, a artificialização social desuas vidas e, por fim, o velório. Oesporte, hoje, e ainda mais o fute-bol, serve ao poder como um espa-ço letárgico escapista. Escapistamas pomposo. Não deixa de seruma forma de espetacularização eaprisionamento da pobreza, tam-bém conveniente aos negócios deum modo geral duvidosos. E, aqui,quando o poder se apequena no seuconstante idiotismo, o futebol éconvenientemente agigantado. Na

TV, são horas e horas de enrola-ção e blábláblá.

Mas se é verdade que “tudo édesejo”, o delicado longa 1958 –

O ano em que o mundo descobriu

o Brasil é um terno agenciamentode histórias contadas e bem vivi-das, do Brasil aos campos da Sué-cia – a nossa primeira e mais im-portante conquista futebolista. Como cinema, o ontem torna-se maispróximo. A elogiável montagem deArthur Frazão dá ao afetuoso pen-samento de José Carlos Asbeg aembriaguez dionisíaca da nossagrande festa esportiva. Ambos ser-vem-se do material garimpado emarquivos pelo mundo afora para nosfazer vibrar com as chaves de deci-fração de uma bela conquistaemocional: a Copa do Mundo de1958. Esquecida no tempo, mas re-cuperada no cinema.

Asbeg saiu pelo mundo em com-panhia de Jorge Mansur, num ricoprocesso de interiorização concei-tual de muitos passados, na Áustria,País de Gales, Inglaterra, Rússia,França e, por fim, a Suécia, donada casa. Ora, pulsava uma receitade hábitos, táticas e espaços dife-rentes. Chegamos por baixo, total-mente desacreditados, e saímos porcima. Mas o filme transcende riva-lidades. Não seria melhor aceitar-mos o esporte como uma grandefesta para todos? É por onde Asbeg,Mansur, Frazão, Branca Murat,

Patrícia Reis, Juliana Maiolino,Paulo Baiano e Pedro Segreto ten-tam nos levar, indefinindo satisfa-ções. E quando se supera sem per-da alguma, seja lá o que for, pode-se vislumbrar beleza e poesia atémesmo na escuridão. Em seu pri-meiro longa-metragem, José CarlosAsbeg fez uma caixinha de música-visual para todas as gerações, dan-do sobriedade a um esporte hoje ex-plorado pelas corporações. E aindaassim o seu conteúdo é a alegria deum povo muitas vezes sacrificadopela constante pilantragem dos “nos-sos” homens públicos.

O filme, porém, desmateriali-za o fechado mundo do bode,abrindo-se para o encantamentocada vez mais necessário a um paíspobre e empobrecido como o nos-so, onde o grande desafio é a so-brevivência dos que ainda sonham.E é justamente neste espaço domi-nado pela hostilidade histórica damiséria que surgem talentos comoNilton Santos, Vavá, Didi... He-róis de um país arruinado pela de-pendência. Ontem grandes jogado-res. Hoje esquecidos na velocida-de do tempo que passa, e do pró-prio esporte. José Carlos Asbeg oshomenageia cinqüenta anos depois,num filme afetuoso, onde todos sãorespeitados como seres humanos.E, depois, como jogadores e he-róis. O filme se nutre desse huma-nismo respeitoso e poético.

Raymond Kopa Giuliano Sarti Just FontaineVladimir Kcssarev

Jogadores de seleções que enfrentaram o Brasil na Copa de 58

Page 36: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

35Este artigo foi publicado em Via política, livre informação e cultura, em 18 de maio de 2008. Ver www.viapolítica.com.br.

Ora, o que se estava ganhandocom o esquecimento da seleção quefoi para a Suécia e conquistou, em1958, a nossa primeira Copa doMundo? Mas este não é um filmefrágil, choroso ou nostálgico. Se fos-se só isso, seria um labirinto detempos mortos. O itinerário do re-alizador e sua equipe de jovens pas-sa pela história, pela memória es-portiva e, por fim, pela festa da con-quista. Ou seja, 58 persiste, quei-ram ou não, como referência deaprendizagem dos nossos jogado-res. Ali, o Brasil se tornou libertodo passado de derrotas e fracassos.O novo país surgia com a BossaNova, com a construção de Brasí-lia, com o Cinema Novo e com aconquista da Copa. Intensidades elembranças de um país que pode-ria ter sido diferente, criativo, ou-sado e melhor. O Brasil dos sonhosde muitas gerações.

Ousaria também dizer que a“folha seca” de 1958 – O ano em

que o mundo descobriu o Brasil

não é, de forma alguma, a esteti-zação do futebol, mas uma doceviagem do realizador ao nosso pas-sado de sonhos e lembranças, poisnos faz reviver um país ilumina-do, vivo, de certo modo alegre,possível e significativo para todos.Poderia ter sido diferente, masnosso “complexo de vira-lata” sófoi superado no esporte e na mú-sica. Nas demais atividades, somos

encobertos por um abismo sujo eopaco. Convenientemente sujo eopaco. E aí me permito ir até ogenial filme O Leopardo, de Lu-chino Visconti, onde o príncipeFabrizio diz: “Isto não deveria du-rar, mas durará sempre. O sem-pre humano, evidentemente, umséculo ou dois. Depois as coisasserão diferentes, mas piores.”

Seis anos depois, cairíamos namais profunda escuridão de nos-sas vidas. O país afundou na ba-nalização, na arrogância e na mes-mice. Mas José Carlos Asbeg di-sassocia seu longa do bode do quefoi anos depois a legitimação dohorror. Ou seja, não é um filmesobre a morte (e nem poderia ser),mas sobre a alegria de viver, delutar e de ser feliz dentro do pos-sível. O que é valorizado são os22 jogadores que jogavam pelavontade e pela paixão. E pela pai-xão à leveza aristocrática do Didi.À sobriedade tática do Nilton San-tos. À coreografia chapliniana dogenial Garrincha... Cinqüenta eoito nos encantou a todos pela le-veza e beleza. É um longo flashba-

ck na vida de todos nós que so-brevivemos ao que veio depois. Éum filme pensado e construído naalegria de ainda estar vivo. De cer-to modo, é um trabalho que “es-gota o campo do possível”, poe-tando vidas, palavras e espaços. Eé o que faz bem José Carlos As-

beg, com sua alegria de um sonhonão vivido (o de ter sido jogador),mas criativamente superado.

Pode parecer estranho um do-cumentário sobre a saudade, a ami-zade e o respeito pelos primeirosheróis do realizador. Em um paístão pouco generoso com seus filhos,eis o futebol de ontem como guiado primeiro longa de um cineastaamadurecido. É um filme-festa.Um filme-homenagem. Um filmerespeitoso pelo passado de algunshomens já esquecidos pelas novasgerações e pelo país desmemoria-do pela velocidade e pela TV.

O ano em que o mundo desco-

briu o Brasil é, antes de tudo, umexercício de generosidade para como país. E se o futebol é hoje usadocomo propaganda de corporações,pode também servir a múltiplos atosde resistência. E de certa maneiraacaba sendo, pois é oferecido nes-te longa numa dimensão afetiva. Ehoje nada mais político que o afe-to bem resolvido. O afeto comoimagem de formação de um povoe de uma Nação. José Carlos As-beg tenta, com sucesso, orquestraruma festa-ética entre a docilidadedos 22 jogadores e a força necessá-ria para ganhar a nossa primeira emais importante Copa do Mundo.Todos estão de parabéns e o cine-ma brasileiro também! O nosso do-cumentário segue dando ao paísverdadeiras lições de história.

PH.FOT.00811.007

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

35

MazzolaZagalo Pepe Zito Dino Sani Nilton Santos Djalma Santos Moacir

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Futebol: tema de filmesGarrincha, alegria do povo

Cineasta e professor. Coordenador do Núcleo de Cinema da Escola de Comunicação da UFRJ. Diretor de três longassobre futebol: Passe livre, Futebol total e Brasil bom de bola – 78, além dos filmes O bom burguês, O grande mentecapto e Tiradentes.

Oswaldo Caldeira

PH.FOT.23198.149

Mané Garrincha é recebido em Pau

Grande. Rio de Janeiro, 21/6/1962

Page 38: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

37

Ao se explorar a questão do filme documentá-rio no futebol, pode-se dizer que Garrincha, ale-

gria do povo é um ótimo exemplo de filme quesintetiza de forma bem-sucedida a análise social eo espetáculo de futebol. O filme foi – com o queeu absolutamente não concordo – criticado freqüen-temente. Os próprios patrocinadores (um banco),segundo depoimentos de pessoas que participaramda produção, teriam ficado desolados com o seutom final crítico. Queriam que tivesse sido um fil-me “para cima”, que “mostrasse o futebol comouma coisa lúdica, uma arte popular, generosa”.

Joaquim Pedro tem uma visão bastante críticadesse esporte. Mesmo assim, não acredito absolu-tamente que ele não goste de futebol, e não con-cordo que o filme não tenha o espetáculo em si.Que Joaquim gostava de futebol, tenho certeza, eentendo que, por uma série de razões, o filme tam-bém privilegia esse esporte como algo “para cima”,alegre. Mas Joaquim tinha uma visão bastante volta-da para questões como alienação, escapismo, de umaforma bastante explícita. Quando narra “vai esva-ziando o campo, a arquibancada, vai se esvaziandoa alma do torcedor, até vir novamente o ciclo, esemana que vem novamente o jogo, euforia”, tema-tiza a volta terrível à realidade dura do cotidiano.

Creio que o filme, antes de qualquer coisa, ébem-sucedido esteticamente. É um filme poético.Um filme humano. Aquilo que costumamos cha-mar de obra de arte. Discordo quando dizem queali não há nada de bom acerca do futebol. Muitopelo contrário, ele junta o lado documentário, olado espetáculo, o lado de amor ao futebol e, aomesmo tempo, é uma crítica social, tem preocupa-ção estética, promove uma reflexão sobre o pró-prio documentário e é o encontro de muitos as-pectos inovadores. Não diria que seja a principal

Artigo editado a partir do original “Futebol: tema de filmes – Garrincha, alegria do povo e Canal 100”, publicado em Victor Andrade deMelo e Fábio de Faria Peres (orgs.). O esporte vai ao cinema. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2005, p. 39-51.

inovação, mas o seu ponto de partida sob esse ân-gulo é o fato de ser o primeiro filme a focalizar edestacar um jogador de futebol. E constitui tam-bém uma das qualidades do filme o fato de Joa-quim ter escolhido exatamente Garrincha.

Essa produção sofreu uma série de limitações.Joaquim queria usar som direto, não foi possível.Queria o material do Canal 100 e não foi possívelter acesso ao acervo do Carlinhos Niemeyer, omelhor material do ponto de vista do espetáculo.Mas percebo que ele soube driblar muito bem es-sas limitações, de forma muito expressiva.

Um dos pontos positivos do filme está no fatode ser de Joaquim Pedro de Andrade. Por que isso?Só porque ele é um grande diretor? De fato, exata-mente por causa disso, mas para esclarecer issoadequadamente teríamos de nos estender numa abor-dagem sobre a obra de Joaquim, o que não é o casoaqui. Contudo, é preciso deixar claro que o filme sópode ser avaliado plenamente dentro do contextodas obras desse diretor. É um filme importante noprocesso de composição desse personagem, que jáse manifesta em Garrincha, esse anti-herói, esse heróimeio gauche, esse herói de perna torta, quase umaleijado, esse herói inviável. Quer dizer, pela lógica,pela ciência, ele não é um atleta, não é um jogadorde futebol. O que vemos na tela, no gramado, é umailusão, é uma coisa absurda, é um personagem quedepois vai ser desenvolvido em outros filmes de Jo-aquim, como Macunaíma, Tiradentes e outros. Essaé também outra qualidade do filme.

Por que falamos das qualidades desse persona-gem Garrincha? Porque é um dos maiores jogado-res de futebol de todos os tempos? É, ele é um dosmaiores jogadores de futebol de todos os tempos.Mais do que isso, é um personagem particularíssi-mo. Podemos citar muitos craques nacionais e in-

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FUTEBOL : TEMA DE F I LMES

ternacionais. Todos têm suas características pró-prias, suas particularidades, sua individualidade,mas quase sempre essas variações se restringem aouniverso do “jogar-extraordinariamente-bem-fute-bol”. Garrincha, de alguma maneira, extrapola esseuniverso e se distingue de todos os outros. Querdizer, ele realmente é único, com esse jeito chapli-niano, esse ar de comicidade, essa união do épicoe do cômico, essa desconstrução de um certo tipode discurso a que se está acostumado. Tem o dri-ble desconcertante, tem uma série de coisas, tem afirula, mas vai ainda mais além.

Há trechos do filme em que Garrincha vai evolta, infinitas vezes, e a platéia ri, porque é umabsurdo! Um “cara” vai e volta, a bola fica atrás, eo “cara” fica, ele finge que vai para lá e finge quevem para cá, e faz de conta de novo que vai por alie finalmente vai mesmo, e o mais impressionanteé que todo o mundo já sabia, desde o início, queele iria por ali, porque já se sabe que ele vai sem-pre pelo mesmo lugar. Está previsto no script. E,apesar de todos saberem disso, ele consegue enga-nar sempre, porque se pensa: “E se hoje ele real-mente resolver mudar e não for?” – sempre existeaquela dúvida. É uma forma de teatro – já comscript entregue de antemão –, é uma encenação, umcódigo de gestualidade; ele é um clown, um palha-ço, algo circense. Nisso realmente ele é único, nãohouve outro antes e dificilmente haverá outro de-pois. Considera-se a capacidade de improvisar umamanifestação da genialidade própria do craque.

Em Garrincha, cultua-se igualmente o que serenova (o improviso) e o que se repete, e que, por-tanto, é aguardado ansiosamente em todos os es-petáculos, como os gestos rituais de um show deElvis, sempre metalingüístico, como um persona-gem de si mesmo. Essa é uma qualidade que Gar-rincha traz para o filme.

Joaquim, a partir do momento em que escolheuo jogador, estava realmente unindo coisas impor-tantíssimas, porque o Garrincha, em si mesmo, já éuma forma de desconstrução. O que se espera dojogador profissional é uma postura épica de guerrei-ro, de competidor, de busca incessante da vitória.Então, sem deixar de ser tudo isso, Garrincha – de-pois de começar a desconcertar a partir de seu pró-prio corpo – faz de uma coisa tão séria – como o

futebol profissional – uma travessura, uma menini-ce, uma brincadeira, uma forma de transgressão,disseca a jogada, o drible, à exaustão, como se in-terrompesse a linha do enredo para se deixar levarem busca do solo, do improviso, do show de exibi-ção, como se abrisse um parêntese para reorganizaro que seriam momentos privilegiados e momentosquaisquer daquela narrativa “jogo de futebol”.

No início do filme, o uso das fotos fixas émais do que para suprir uma falta de filmes deespetáculos sobre o futebol. Em um depoimentoJoaquim alega que Garrincha já estava decaden-te naquele momento, não estava mais no seuapogeu. Pela minha experiência filmando futebol,eu diria que, independentemente desse fato, parase ter realmente um acervo expressivo de futebolnão basta filmar dez, vinte, trinta, quarenta ouaté cinqüenta jogos. É preciso ter muito materialpara conseguir a jogada completa, a jogada per-feita, para ter aquilo que o Canal 100 teve e tem.Não foi à toa que Joaquim tentou exaustivamenteobter esse material e não conseguiu, talvez porquestões financeiras, pois era muito caro.

Quando trabalha aquelas fotos, o cineasta estáinserindo ali o Brasil no cinema documentário con-temporâneo. Está trazendo para nós, em versãorejuvenescida, o cinema de montagem documental– cujo precursor genial foi Dziga Vertov – aliado anovas formas de linguagem recém-surgidas no ci-nema francês – os filmes curtos de Alain Resnais(Toute la mémoire du monde, Guernica, Van Gogh,Gauguin – da década de 1950), os filmes de cineas-tas como Georges Franju, além de Jean Rouch, docinéma verité, do cinéma direct – um cinema quetem a liberdade de misturar cenas filmadas atuais,cenas de arquivos, fotos etc. Ou seja, depois dereduzir a imagem filmada à sua condição inercialfotogramática, ele restaura o movimento atravésde um trabalho no interior do “estático”, do “imó-vel”: trabalha no interior dessas fotos com table

top, zoom, aproximações, afastamentos, pans, tra-

vellings, transfigurações por meio de combinaçõesentre essas fotos, entre som e imagem, estabelecen-do novas formas de compreensão do movimento eum outro tipo de sentido ou de discurso através deapropriações e transposições sucessivas. Reivindicapara si – para a forma narrativa – a percepção do

Page 40: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

3939

espectador, convertendo-se numa consciência dopróprio ato de estar assistindo, de estar fazendo ci-nema, do ato de filmar, questionando as possibili-dades do próprio cinema como ato de documentar,como ato de conhecimento, o que Joaquim Pedrovai explorar várias vezes, notadamente em Os in-

confidentes, transgredindo, diluindo os limites en-tre documentário e ficção (como queria Godard).

Ao proceder assim, fornece elementos para queo espectador possa perceber de forma crítica o veí-culo mediador anteposto entre ele e a “realidade”, aconsciência de que está assistindo a um filme, estáno cinema (a recusa ao documentário realista).

A partir do homem-jogador Garrincha, JoaquimPedro relaciona o futebol com o povão, com a so-ciedade de uma forma geral, com o futebol comoafirmação cultural, orgulho nacional. Mas apontatambém possíveis fatores de alienação, de escapis-mo, problemas que considerava fundamentais, so-bretudo diante de seu compromisso com a revolu-ção, com a transformação da sociedade. Exibe entreos amigos de Garrincha, na fábrica onde trabalhou,a tristeza e as limitações daqueles que não puderamescapar daquele universo melancólico e, como ele,

tornarem-se craques do futebol. Joaquim investe mui-to nessa problemática, um autor declaradamente mar-xista que trabalha freqüentemente a questão das clas-ses trabalhadoras, do operariado. Quem vai fazer arevolução? A burguesia? As classes proletárias? E comoalcançar uma consciência revolucionária? Como cons-cientizar as massas? Como fazer de um operário alie-nado um revolucionário? Burgueses podem ser revo-lucionários conseqüentes? Essas interrogações serãomais tarde retomadas no contexto agudo de uma cons-piração, em Os inconfidentes. São questões raramen-te mencionadas hoje em dia, porque estão fora demoda. Joaquim era uma pessoa totalmente engajada,militante e absolutamente preocupada. Isso fica claroem vários momentos do filme.

Chegando ao fim dessa discussão sobre docu-mentário, é preciso reafirmar que o valor desse fil-me é inegável. Destacaríamos ainda como filmesexpressivos, feitos na área documental no cinemabrasileiro: Isto é Pelé, O Brasil bom de bola, deCarlinhos Niemeyer, e Tostão, fera de ouro. Devomencionar ainda Passe livre, longa-metragem em16mm que produzi e dirigi, focalizando, a partir dafigura do jogador Afonsinho, as relações de trabalhono futebol e do passe em particular. Tendo recebidoa Margarida de Prata como melhor filme brasileirode 1974, o filme inaugurou o mercado paralelo deexibição da Federação Nacional de Cineclubes,embrião da famosa Dina Filmes e também da dis-tribuidora para o mercado paralelo da Embrafilme.Raro caso de filme em 16mm que obteve o certifi-cado de exibição de longa-metragem, numa iniciati-va conjunta da Federação (Marco Aurélio Marcon-des), da Associação Brasileira de Imprensa (Maurí-cio Azedo), da Cinemateca do MAM (Cosme AlvesNeto) e da Associação Brasileira de Documentaris-tas, ainda no governo Médici, foi exibido por todoo Brasil em cineclubes, fábricas, concentrações dejogadores, sindicatos etc., sempre acompanhado dedebates conduzidos por figuras como o próprio Afon-sinho, João Saldanha, Sandro Moreira, o cantorFagner, o crítico de cinema Jean Claude Bernardete outros. Curiosamente, naquele mesmo ano, co-dirigi (com Carlos Leonam) Futebol total, que –apesar de ser sobre a derrota do Brasil na Copa doMundo – atingiu milhões de espectadores, meu fil-me de maior bilheteria até hoje.

PH.FOT.00775.003

Page 41: Revista Recine nº 5 - 2008

O homem do futebol-arte

Uma homenagemao coração do Canal 100

Repórter e fotógrafo, neto de Francisco Torturra.Bruno Torturra

Era uma missa de sétimo diacoletiva, e o padre, um bonachão debarba grisalha, se pôs a ler uma listade mais de 150 nomes. Lembrou-sede famílias devotas, de fiéis da paró-quia, de parentes dos finados e, é cla-ro, dos que haviam partido. Encabe-çando a ladainha, um nome errado:Francisco Fortuna. Se estivesse es-condido no fundo da Igreja da Res-surreição, em Copacabana, ele dariarisada. Francisco Torturra passou 78anos carregando nos documentos umnome instável. No registro, seu so-brenome era Tortura, com um erresó, versão devidamente corrompidado original italiano, Turturro, quemsabe pelo humor negro de um escri-vão. Preferia assinar Torturra e foiassim que batizou as duas filhas. Osegundo erre o livrou do constrangi-mento certo, mas abriu as comportaspara outros equívocos: Tartara, Tor-tuga, Tertura e, por fim, Fortuna.

Torturra-Fortuna foi um homemde sorte em tudo, menos no dinhei-ro. Quando seu coração deu sinaisde fadiga, morava no bairro do Anil,subúrbio do Rio de Janeiro, equili-brado na corda bamba das contas,dívidas e juros. Gastava o que nãotinha com remédios para Irene, suamulher da vida inteira. Chico, comoera conhecido, nunca recebeu maisdo que o parco salário que na épocase pagava a um cinegrafista – aindaque ele fosse o melhor de todos. De1959 a 1986, foi o homem por trás

da teleobjetiva do Canal 100, o ci-nejornal futebolístico que abria assessões de cinema com a trilha “Quebonito é...”. Nem antes nem depoisse viu futebol tão bem filmado. Chi-co era “o coração do Canal 100”,nas palavras do diretor e patrão Car-los Niemeyer.

Até meados dos anos 50, Tor-turra trabalhou como motorista dafamília Rodrigues, aquela do drama-turgo Nelson e do jornalista MárioFilho. Apaixonou-se por Irene, irmãdos dois, e se casaram. Milton Ro-drigues, ao virar cunhado, tirouFrancisco do volante e o pôs atrásde uma câmera do cinejornal O Glo-

bo Esportivo na Tela, cuja especiali-dade, evidentemente, era futebol.Torturra aprendeu na marra – nãofazia idéia do que era um obturadorou uma lente –, mas em dois anossuas imagens começaram a chamaratenção. Foi por essa altura que Car-los Niemeyer, pândego carioca, ir-mão de Oscar, criou o Canal 100.Além de amigo dos Rodrigues, Nie-meyer já conhecia Torturra. Chicolevara de carro o arquiteto Oscar –que não voava (e não voa) por terrorde avião – para conhecer o planaltovazio onde Brasília seria erguida.

Niemeyer ofereceu ao ex-choferuma câmera com lente de cem milí-metros. Era o primeiro passo da re-volução audiovisual promovida peloCanal 100. Cada chassi tinha ape-nas quatro minutos de película. Se o

cinegrafista começasse a filmar an-tes da hora, perdia o chute, o drible,o pênalti, o gol. Torturra desenvol-veu o talento de filmar apenas o es-sencial – e intuir a jogada certa e oalarme falso. Conversava com técni-cos e jogadores para se antecipar àsjogadas ensaiadas. Rente ao chão,com os dois olhos abertos, um novisor, outro no campo, ocupou ofosso do Maracanã como se aquilofosse a sua terra natal. Foi o primei-ro a usar câmera lenta. Walter Car-valho, fotógrafo de Lavoura arcaica,Madame Satã e Carandiru, entreoutros filmes, escreveu que “Tortur-ra posicionava sua câmera no nívelda grama e dominava o percurso dabola com a destreza do seu olho e osreflexos dos seus músculos. ComoGarrincha, levava a bola até o gol”.

Às vezes, dava um empurrãozi-nho nos fatos. Em 1962, antes da fi-nal do mundial interclubes entre San-tos e Benfica, foi aos vestiários epediu um favor a Pelé. Dito e feito.Pelé marcou três dos cinco gols quederam o título ao peixe. A cada vez,disparou na direção de Torturra. Foia grande virada. As imagens corre-ram os cinemas e, nos jornais, oCanal 100 foi exaltado como arte.Cunhado cabotino, Nelson Rodri-gues proclamou com voz de trovãoque a lente de Torturra era “maisinteligente do que o olho humano”.

Torturra só pediu duas regaliasa Carlos Niemeyer: uma câmera Arri

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2C à bateria (ficar dando corda eraquase musculação) e uma lente ain-da desconhecida no Brasil, a zoomde 400-600 milímetros, que permi-tia buscar, à distância, tanto a an-gústia do goleiro na hora do gol comoo soco no ar do centroavante. A tele-objetiva inaugurou a era do antes edepois. “Só se filmava o campo comlentes abertas”, explicava Torturra.“Mas o que me interessava era fil-mar o que o pessoal não podia verda arquibancada. A expressão do jo-gador, a reação do adversário, as per-nas correndo...” Fosse só isso, já te-ríamos futebol soberbo. Mas, numatacada de gênio, Torturra teve a idéiade virar as costas para o jogo: fechoua lente no torcedor que roía unha deradinho colado ao ouvido. De umgolpe, o esporte virou drama. Tortur-ra ensinou o Brasil a filmar futebol.

Nunca se considerou artista.“Sou um estivador”, dizia. Carrega-va o próprio equipamento: duas câ-meras, quatro chassis, dois tripés edois jogos de lentes. Acomodava tudoem cinco malas de metal e saía pelomundo. Carimbou o passaporte emmais de trinta países. Em 1974, re-cebeu a Bola de Ouro da Fifa. Nashoras vagas, corria atrás de assunto.Filmou as ruas no golpe de 64, foi oprimeiro a chegar ao incêndio doprédio da UNE no Flamengo, regis-trou Juscelino inaugurando Brasíliae Brigitte Bardot em Búzios. Apesarde ter nascido em família modesta,

de pouca instrução, foi um homemdo mundo. Levava sempre na malaum black-tie para as ocasiões de gala.No seu último aniversário, rodeadopelos novos vizinhos, tomou umarara cerveja e fez um discurso curti-nho com a voz embargada: “Olha,eu já viajei pra caramba, morei naZona Sul, na Barra... mas foi aquino Anil que encontrei a felicidade.”

A última Copa que filmou foia de 1994, como parte da enormeequipe do documentário Todos os

corações do mundo, de Murilo Sal-les. No último trabalho no Mara-canã, um foguete estourou a seulado e ele perdeu quase toda a au-dição de um ouvido. Era um FIa xFlu, e pelo menos venceu o Flumi-nense, o time do seu coração. Foicinegrafista até o fim da vida. Vezpor outra, ganhava um troco filman-do casamentos. Nem todos os ca-sais ficavam felizes com o resulta-do. Não achava noivos ajoelhadospropriamente interessantes. O quemais se via no material entregue eraum tio cochilando, uma sogra aosprantos, um recém-nascido baban-do, um adolescente com cara detédio. Canal 100 puro.

Francisco Torturra morreu deparada cardíaca na UTI de um hos-pital público, dormindo, horas antesde se submeter a uma ponte de safe-na. Era o dia 2 de março. Estava noEspírito Santo visitando sua primei-ra bisneta, na única viagem que fize-

ra em anos, pois se recusava a dei-xar a mulher sozinha. Irene foi a úl-tima sobrevivente dos catorze Rodri-gues. Até o fim da vida, dormiramna mesma cama.

A capelinha do Cemitério SãoJoão Batista se encheu de parentes,vizinhos e também de gente que sur-gia pela porta dizendo que mal o co-nhecia, mas o adorava. Nenhumanota na imprensa, nenhum jogador defutebol, técnico, comentarista, árbi-tro. Nem um mero gandula deu ascaras. Foi enterrado, sob aplausos, nojazigo de Mário Rodrigues (pai), aolado de Nelson e Mário Filho.

Publicado na revista Piauí, ano 2, n. 19, abril 2008, p. 12.

Francisco Torturra conversando com BrigitteBardot em Búzios, anos 60

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O futebol como prática desportiva:gênese e espraiamento mundial

do jogo de bola

Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e do CentroUniNorte. Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia.

Tarcísio Serpa Normando

1 Disponível no site oficial da Fifa (www.fifa.com). Tradução: “Os dados disponíveis [...] mostram claramente que o jogo de futebolalcançou um grande significado no mundo inteiro. Cerca de 4% do total da população mundial joga futebol ao menos ocasionalmente ou,então, encontra-se envolvida no jogo como juiz ou mesmo em outras funções paralelas. [...] No entanto, como tem demonstrado aexperiência relativa ao Grande Censo (contagem), os valores até agora obtidos permanecem problemáticos apesar – ou talvez até por causadisso – da grande importância deste jogo. Exatamente quando a meta é fazer previsões sobre os números, tanto de jogadores eventuaisquanto de crianças que jogam, a ausência de dados confiáveis nos obriga a fazer uma série de suposições adicionais. Os resultados de umainvestigação, considerando a prática existente na Europa, indicaram que os ‘números oficiais’ apresentados pelas associações locaisdefinitivamente subestimaram a real importância do jogo de futebol. Conseqüentemente, seria mais apropriado recolher e avaliar asinformações pertinentes de forma mais sistemática.”

A Fifa realizou, no pri-meiro semestre de 2000,um grande censo dirigidoàs confederações nacio-nais, com o objetivo dedetectar o efetivo cresci-mento do futebol mundialna última década do sécu-lo XX. O Big Count dis-tribuiu questionários às 204 confederações asso-ciadas, das quais 161 os retornaram preenchidosno tempo estabelecido. Os resultados divulgadosno ano seguinte pela entidade confirmaram o sensocomum: o futebol aglutina pessoas em dimensõesúnicas, tanto prática como espetáculo esportivo.

Segundo dados do censo, no mundo inteiroquase 250 milhões de pessoas jogam futebol regu-larmente de maneira profissional ou amadoristica-mente como prática associada ao lazer. Os resulta-dos foram saudados pela entidade oficial como umainequívoca prova de força presencial do esportetanto quanto uma constatação de que este fora su-bestimado nas décadas anteriores:

“The data [...] shows clearly that football is of

great worldwide significance. Around 4% of the to-

tal population of world play football at least occasio-

nally or are involved in the game as referee or in other

functions. [...] However, as experience in connection

with the Big Count has sho-

wn, the figures obtained are

problematic – despite, or

perhaps because of – the

major importance of the

game. Exactly when the aim

is to make predictions about

the numbers of occasional

or children players, a lack of

reliable data makes it necessary to make a number of

additional assumptions.

Survey results within Europe have indicated that

the ‘official figures’ submitted by the associations defi-

nitely underestimate the actual importance of the game.

Therefore it would seem appropriate to collect and eva-

luate the relevant information more systematically.”1

Por mais abrangentes que possam parecer, osdados colhidos não são suficientes para equacio-nar a totalidade de simpatizantes que se dispõema acompanhar, a torcer, a se envolver com jogosde bola. Felizmente – ou infelizmente –, não hánúmeros suficientes, nem em quantidade nem emrigor, para mensurar uma paixão. É certo, contu-do, que essa paixão teve seu espraiamento, suacapacidade de inserção em sociedades de caracte-res ideológicos diversos, potencializada no últi-mo quartel do século passado muito em funçãoda visão estratégica da entidade mundial gestora

Sátira da pré-história

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

43Publicado originalmente na EF Desportes Revista Digital, Buenos Aires, ano 10, n. 76, set. 2004 (www.efdeportes.com). Versãoresumida de um item da dissertação de mestrado do autor, intitulada Jogos de bola, projetos de sociedade – por uma história social dofutebol na Belle Époque Manauara. Traduções dos textos em inglês e francês de Arnaldo Marques da Cunha.

2 PIMENTA, Carlos Alberto Máximo. Futebol e violência entre torcidas organizadas: a busca da identidade através da violência.Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1995, p. 51 e 54. 3 GERHARDT, Wilfried. More than 2000years of football: the colourful history of a fascinating game. Disponível no site oficial da Fifa (www.fifa.com/fifa/history_S.html);PIMENTA, Carlos Alberto Máximo, op. cit.; WERNECK, J.I. (et al.) O futebol na Mirador Internacional. São Paulo: EncyclopaediaBritannica do Brasil Publicações, 1987. 4 Essa idéia apóia-se na perspectiva sintetizada por TUBINO, Manoel. O que é esporte. SãoPaulo: Ática, 1993, p. 14: “Na antiguidade, antes de surgir o esporte, existiam atividades físicas de caráter utilitário-guerreiro, higiênicas,rituais e educativas. [...] Os japoneses, chineses e hindus praticavam atividades físicas emprestando-lhes um caráter higiênico.”

do futebol, cujo planejamento vislumbrou, prin-cipalmente, o potencial econômico do esporte.

Essa paixão, hoje mundial, já foi bastante res-trita: foi identificadora de camadas socialmentesegregadas e tidas como perturbadoras da ordemurbana. Mergulhar, pois, na ancestralidade do fu-tebol e refazer seu caminho não-linear de desenvol-vimento ajuda a estabelecer significados para asestatísticas contemporâneas tanto quanto possibi-lita um viés de entendimento da história sóciocul-tural dos seus agentes, uma vez que, com uma cer-ta anterioridade temporal, a pelota acompanha ohomem no seu caminhar através da história.

Quaisquer objetos de configuração arredonda-da tendem a se adequar como instrumentos lúdi-cos para o homem. Vestígios arqueológicos reve-lam a presença de esferas ligadas a formas de pas-satempo nas civilizações inaugurais do OrientePróximo e mesmo nos dias do neolítico.2 Impos-sível pensar que alguma sociedade desconhecesse– ou desconheça nos dias de hoje – um tipo qual-quer de jogo que não envolva uma bola. Emboraessas atividades simbolizem, num certo sentido,modos de compreensão de realidades específicas,nem todas, obviamente, podem ser identificadascomo ancestrais diretas do futebol. Contudo, a so-brevivência de algumas fontes históricas aponta al-guns caminhos com relativa plausibilidade.

Pelo menos desde o século III a.C., na Chi-na, durante o império de Xeng-Ti, da duradoura

Dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.), os soldadosdispunham de um livro de instruções militaresque identificava o Ts’uh Kuh como atividade detreinamento da guarda imperial e, posteriormen-te, de todos os soldados que se preparavam paraguerra. Ts’uh Kuh ou ainda Tsu-Chu significa“golpe na bola com o pé”. A bola de 22 cm dediâmetro, feita de couro ou bexiga, recheada complumas, pelos ou vegetais resistentes, era lança-da com os pés em uma área quadrada com cercade 14 metros de lado. Times com oito compo-nentes promoviam uma disputa acirrada visan-do fazer a bola traspassar uma pequena rede deseda fixada em varas de bambu distanciadas en-tre si em 40 cm. Provavelmente no campo haviaobstáculos entre as metas aumentando as dificul-dades e exigindo dos soldados maior destreza.3

A associação deste tipo de jogo de bola com aprática de treino militar deveu-se à violência docontato físico entre os grupos de jogadores. Arudeza das disputas serviu para o preparo de ho-mens duros, másculos, capacitados a resistir àsadversidades cotidianas trazidas no bojo dos con-flitos bélicos, extravasando-as através do jogo.4

Ainda no Oriente, outra milenar tradição seidentifica como espectro de ancestralidade dofutebol. O Kemari, praticado no Japão, cerca dequinhentos ou seiscentos anos depois do exem-plo chinês, demonstrava um acuro muito maisritualístico que competitivo:

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O FUTEBOL COMO PRÁT ICA DESPORT IVA

5 GERHARDT, Wilfried., op. cit. Tradução: “Este é um tipo circular de jogo de futebol, muito menos espetacular do que o original,porém, por este mesmo motivo, uma experiência mais desafiadora e cerimoniosa, que exige determinadas habilidades específicas, emboranada competitivas no sentido daquela modalidade chinesa do mesmo jogo, não aparecendo aqui (nesta ‘circularidade’) o menor sinal dedisputa pela posse da bola. Os jogadores devem passar a bola uns para os outros, restritos a um espaço relativamente pequeno, sempretentando não deixá-la cair no chão.” 6 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica. v. I Grécia. 7. ed. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 340-348. Os Jogos Olímpicos ou Pan-Helênicos ocorriam em cinco dias, nos quais disputa-vam-se provas que evidenciavam as necessárias qualidades para a defesa da polis: três modalidades de prova eqüestre; cinco modalidadesde corrida; duas modalidades de luta; três de pugilato, uma de pancrácio e o pentatlo.

“This is a type of circular football game, far less

spectacular, but, for that reason, a more dignified

and ceremonious experience, requiring certain skills,

but not competitive in the way the Chinese game

was, nor is there the slightest sign of struggle for

possession of the ball. The players had to pass the

ball to each other, in a relatively small space, trying

not to let it touch the ground.”5

O Kemari, em certa instância, identificava aaristocracia nipônica e era praticado, inclusive,por imperadores. Cada disputa envolvia oitomembros num campo aberto cujos elementosdemarcatórios deveriam ser árvores nobres: umpinheiro a noroeste, um ácer a sudoeste, umacerejeira a nordeste e um salgueiro a sudeste.Delicado, o jogo exigia alto grau de paciência edestreza de seus apreciadores, qualidades cultua-das entre a nobreza japonesa.

O mundo ocidental conheceu um tipo de jogode bola minimamente sistematizado primeiramen-te na Grécia. O mundo grego antigo foi marcadopor uma fragmentação política bastante diversados reinos orientais a ele contemporâneos. Asnumerosas poleis mantiveram arraigadas, em seuideário constituinte, desejos de independência eauto-suficiência associadas à ciosa prática de res-guardar uma distância cultural dos “bárbaros” quehabitavam para além dos arredores da penínsulabalcânica. Nesse sentido, os jogos – ao lado dalíngua e da religião –, foram eficientes elementosunificadores dessa identidade grega.

Entretanto, o principal evento disputado naHélade, em homenagem a Zeus, os Jogos Olím-

picos não incluíram nenhuma sphairomakhia –nome genérico das atividades que envolviam bola–, ainda que estes gozassem de certa popularida-de, como o epyskiros, o mais comum deles.6

Poucas informações sobreviveram a respeito dessa

Grécia

Roma

Harpastum Roma

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7 Os diádocos eram os generais de Alexandre, o Grande, morto em 323 a.C. Soberano do Império Macedônio, conquistou a Grécia, parteda península itálica, o Egito, a Ásia Menor, o Oriente Próximo até a Índia. Com sua morte prematura, aos 33 anos, sem ungir umherdeiro, o império foi repartido em três: 1) o Egito, sob o comando da dinastia dos Ptolomeus; 2) a península balcânica e adjacênciaseuropéias, governada por Antígono e seus descendentes; 3) o Império Seleucida (as províncias orientais) sob a dinastia de Antíoco. Osdiádocos deveriam implementar a política alexandrina de interação étnica que visava unir os povos conquistados sob um “nacionalismohelênico” de caráter mais cultural que racial. Ver MOMIGLIANO, Arnaldo. Os limites da helenização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1991; FERREIRA, José Ribeiro. A Grécia antiga. Lisboa: Edições 70, 1992. 8 WERNECK, J. I., op. cit., p. 5031.

modalidade, a não ser que, em comum com ojogo chinês, quando um grupo conseguia a ul-trapassagem da bola de uma certa linha demar-catória nas extremidades do campo, conhecia-seo vencedor da contenda.

O mundo antigo, depois de helenizado pelosdiádocos de Alexandre Magno,7 prostrou-se anteo Império Romano. Mas o poderio militar dositálicos não conseguiu subverter a pujança doselementos greco-macedônios que se enraizarampor grande parte da Eurásia. Em diversos aspec-tos os algozes viram-se enredados pelos povosconquistados – como no caso do epyskiros exer-cido pelos gregos e que foi absorvido pelos ro-manos para posteriormente ser adaptado confor-me as condições para prática. Assim nasceu avariante itálica do jogo de bola.

O harpastum romano apropriou-se do cerneque constitui o jogo grego, que é, aliás, o mesmoda prática chinesa: a disputa pela posse de bolaaté a ultrapassagem das linhas demarcatórias demetas. Mas ampliou-o indelevelmente quando fi-xou certas funções aos seus praticantes. Esta trans-formação traçou uma inquestionável aproximaçãotática com o jogo contemporâneo, colocando-ocomo um antecessor direto do futebol de hoje:

“O campo era retangular, com uma linha divi-

sória em duas linhas de meta, devendo as duas equi-

pes lutar pela posse da bola e tentar levá-la até a

meta adversária, denominada locus santium. Essa

zona do campo era protegida por jogadores lentos;

quase parados e em funções defensivas como as do

goleiro ou zagueiros de hoje. Os jogadores mais ve-

lozes e ofensivos atuavam por uma zona do campo

chamada area pilae praetervolantis et superiectae,

enquanto um terceiro tipo de jogador, o medicur-

rens, permanecia sobre a linha divisória do campo.

Sua função não se sabe ao certo qual tenha sido,

pois jogava para os dois lados ao mesmo tempo, pas-

sando a bola ora a um, ora a outro jogador de defesa

ou de ataque.”8

Claramente, a armação do “time” sujeitava-se às qualidades físicas e técnicas dos jogadorese, ao que tudo indica, a brutalidade das disputasfoi cedendo espaço para jogadas viabilizadas apartir de uma unidade coletiva. A bola era pe-quena e deveria ser lançada de trás das linhasdemarcatórias. As equipes desenvolveram umadiversidade de alternativas táticas e técnicas paraludibriar os adversários nas quais os passes edribles eram incentivados para o deleite do pú-blico que aplaudia e gritava com regozijo.

Foi o Exército Romano o principal agentena introdução do harpastum na Europa. Mesmona Gália e na Bretanha – grosso modo, os atuaisterritórios da França e da Inglaterra – as legiõesromanas se não o introduziram, pelo menos re-forçaram a prática do jogo, acompanhando ocompasso da consolidação fronteiriça.

O Império se esforçou em romanizar cadareentrância sob seu domínio, e como resultado– assim como aconteceu com ele próprio, qua-tro ou cinco séculos antes – legou experiências etradições ao ocidente em processo de transiçãopara o feudalismo.

A Europa do Medievo e da Renascença foimarcada pela ubiqüidade da Igreja Cristã, queencaminhou uma rígida regulação do cotidianodo europeu ordinário na tentativa de expurgarhábitos e atitudes que se constituíssem profanas,uma vez que a crença reverberada nos sermões,nos elementos da cultura popular e – um poucomais tarde – nos discursos políticos era que ocultivo de práticas indevidas atrairia a ira divinaa se abater sobre a coletividade e não apenassobre o errante herege. Assim, o clero revestiucom uma áurea de medo e culpa todas as ativi-dades que não estivessem associadas ao trabalho

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O FUTEBOL COMO PRÁT ICA DESPORT IVA

9 Nesse sentido ver: DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; FRANCO JR,Hilário. Idade Média, nascimento do Ocidente. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995; BURKE, Peter. Cultura popular na IdadeModerna. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento.3. ed. São Paulo/Brasília: Hucitec/EdUnb, 1996; BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha eItália, séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 10 BURKE, Peter, op. cit., p. 202: “Na cultura popular européiatradicional, o tipo de cenário mais importante era a festa: festas de família, como os casamentos; festas de comunidade, como a festado santo padroeiro de uma cidade ou paróquia (Fête Patronale, Kirchenweihtag etc.); festas anuais comuns a muitos europeus, comoa Páscoa, o Primeiro de Maio, O Solstício de Verão, os doze dias de Natal, o Ano Novo, o dia de Reis e por fim o Carnaval. Eramocasiões especiais em que as pessoas paravam de trabalhar, e comiam, bebiam e consumiam tudo o que tinham. [...] em oposiçãoao cotidiano, era uma época de desperdício justamente porque o cotidiano era uma época de cuidadosa economia.” 11 Cf. expressõesde BAKHTIN, Mikhail, op. cit., p. 5. 12 Expressão utilizada por DELUMEAU, Jean, op. cit., p. 350. Diversas obras do períodomedieval e da época moderna acusam a mulher de ser agente preferencial do demônio para espalhar o mal e corromper as criaturasde Deus. Manuais escritos por membros do clero demoravam-se em explicitar quão ardilosas e dissimuladas eram as mulheres.Num dos mais famosos, o Malleus Maleficarum, escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, havia umasíntese das razões para a mulher ser tão desprezível para a sociedade ocidental cristã: “Mas a razão natural está em que a mulher é maiscarnal que o homem, o que se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que houve uma falha na formaçãoda primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assimdizer, contrária à retidão do homem.” (KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Malleus Maleficarum.Tradução por Paulo Fróes. 13. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1998, p. 116).

ou à religião.9 As únicas exceções em que a rigi-dez do dia-a-dia poderia ser, momentaneamen-te, virada de cabeça para baixo ocorria duranteas festas.10 Estas eram ocasiões propícias à ale-gria das músicas e representações, ao desperdí-cio de alimentos e bebidas e ao desprendimentoreligioso, onde as frustrações e o peso da vidalaboriosa podiam ser permutados por um segun-

do mundo e por uma segunda vida.11

Nesses raros dias de tolerável liberdade e li-bertinagem, os jogos de bola voltavam a ser dis-putados, contudo, em seguida aos festejos, elesretornavam à sua condição clandestina, perse-guida pelo clero que costumava associá-los a di-versos tipos de profanação aos dogmas cristãos.Acusavam-nos de ser instrumento para cultospagãos. Numa dessas associações, a bola repre-sentava o sol que fertilizaria a terra pela qualrolasse, assegurando, dessa forma, um bom cres-cimento do cultivo, além de proteger a colheita

dos ataques da turba. E quando o jogo envolviamulheres, o teor herético crescia exponencial-mente, pois ao instrumento profanador da pro-palada moralidade cristã somava-se a metade

subversiva da humanidade.12

“Quite apart from man’s natural impulse to de-

monstrate his strength and skill, even in chaotic and

turbulent fashion, it is certain that many cases, pa-

gan customs, especially fertility rites, played a major

role. The ball symbolized the sun, which had to be

conquered in order to secure a bountiful harvest.

The ball had to be propelled around, or across, a

field so that the crops would flourish and the attacks

of the opponents had to be warded off. A similar

significance was attached to the games between mar-

ried men and bachelors that prevailed for centuries

in some parts of England, and, likewise, to the fa-

mous game between married and unmarried women

in the Scottish town of Inveresk at the end of the

China

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13 GERHARDT, Wilfried, op. cit. Tradução: “Bem além do impulso natural do homem para demonstrar sua força e habilidade,mesmo de um modo desorganizado e truculento, em muitas ocorrências o certo é que os costumes pagãos, especialmente os que sereferem aos ritos de fertilidade, sempre desempenharam um papel relevante. A bola simbolizava o sol, que teve de ser dominado afim de que se pudesse garantir uma colheita bem-sucedida. A bola sempre tinha de ser passada para alguém ao redor, ou mesmoatravés de um campo previamente definido, para que as culturas pudessem florescer e os ataques dos adversários pudessem, assim,ser neutralizados. Um significado semelhante foi associado aos jogos tradicionalmente realizados entre homens casados e solteiros,o que prevaleceu durante séculos em algumas partes da Inglaterra e, igualmente, no famoso jogo realizado entre mulheres casadase solteiras na cidade escocesa de Inveresk, no final do século XVII – talvez pela própria natureza do jogo proposto que, regularmente,era ganho pelas mulheres casadas [...].” 14 Cf. as crônicas de T.B. Trousdale e de Edward Bradley, citadas por WERNECK, J. I.,op. cit., p. 5032. 15 GERHARDT, Wilfried, op. cit.: “The game that flourished in the British Isles from the 8th and 19thcenturies had a considerable variety of local and regional versions – which were subsequently smoothed down and smartened upto form the present day sports of association football and rugby football. They were substantially diferent from all the previouslyknow forms - more disorganized, more violent, more spontaneous and usually played by an indefinite number of players.Frequently, the games took the form of a heated contest between whole village communities or townships – trough streets, villagesquares, across fields, hedges, fences and streams. Kicking was allowed, as in fact was almost everything else. However, in some ofthese games kicking was out of the question due to the size and weight of the ball being used. In such cases, kicking was insteademployed to fell opponents.” 16 WERNECK, J.I., op. cit., p. 5032.

17th century which, peharps by design, was regu-

larly won by the married women [...].”13

Não há consenso entre os pesquisadores se ofutebol primitivo praticado na Inglaterra da pas-sagem do Medievo para a Idade Moderna tenhase originado de tradições antiqüíssimas, mas au-tóctones, ou se tenha sido realmente introduzi-do pelas legiões romanas. Há ainda aqueles quedefendam que o jogo chegou à ilha européia viareferências normandas do norte da França. Estadúvida resvala no orgulho britânico que, alémde se considerar inventor do jogo contemporâ-neo, não parece gostar da idéia de ver a prima-zia deste ser exterior ao reino. O fato é que, se-gundo algumas fontes primárias, no longínquoano de 217 os bretões comemoraram uma vitó-ria sobre os romanos chutando o crânio de umgeneral. Outra versão dá conta que, no séculoXI, após rechaçar dinamarqueses, saxões se di-vertiram com o crânio de um oficial morto emcombate, disputando-o e arremessando-o com os

pés.14 A brutalidade congênita a este jogo de bolanão se dissociaria do arquétipo inglês tão cedo.

Genericamente, ludus pilae era a expressão quedesignava jogos de bola na Inglaterra desde, pelomenos, o século XII. Durante o Carnaval e, princi-palmente, nas Shrove Tuesdays – o equivalente àsnossas terças-feiras gordas –, praticava-se uma dis-puta pela pelota bastante peculiar: cerca de qui-nhentas pessoas de cada lado esbofeteavam-se numaceleuma para fazer a bola traspassar a linha de metaadversária.15 Na cidade de Ashbourne, os portõesnorte e sul serviam como gols às equipes.

A violência era tão premente que, além dasbrigas, seguidamente o saldo final das partidasera a morte de alguns praticantes.

“No ano de 1280, em Ulgham, Northumber-

land, o jovem Henry Ellington, durante um jogo

de bola, correu na direção de um adversário, David

Le Keau, que tinha no bolso um canivete. Ao se

chocarem, Henry saiu gravemente ferido, morren-

do dias depois. Em 1322, um certo William of Spal-

ding, seminarista de Norfolk, também matou aci-

dentalmente um amigo, ao jogar futebol com um

canivete no bolso. Só pôde ordenar-se depois que o

papa João XXII o absolveu. Em 1303, um grupo de

estudantes irlandeses atacou um aluno de Oxford,

Adam of Salisbury, que jogava bola perto de sua

casa. Em 1321, o mais sinistro de todos os registros:

dois rapazes mataram um terceiro em Cheshire.

Como que revivendo a tradição de Derby [...] os

dois assassinos também jogaram futebol com a ca-

beça de sua vítima.”16

Page 49: Revista Recine nº 5 - 2008

O FUTEBOL COMO PRÁT ICA DESPORT IVA

17 PIMENTA, Carlos Alberto Máximo, op. cit., p. 58. 18 WERNECK, J.I., op. cit., p. 5032. Ainda hoje, em 24 de junho, dia de SãoJoão, padroeiro da cidade de Florença, seus habitantes encenam o histórico jogo entre os partidários de Antinori (usando camisas verdes)e os de Cantiglione (com trajes brancos). 19 WERNECK, J.I., op. cit., p. 5032 e GERHARDT, Wilfried, op. cit. 20 Disponível emhttp://pharouest.ac-rennes.fr. Tradução: A soule (jogo com bola) é um jogo que se pratica nas pradarias, nos descampados, nos bosquese até em terrenos baldios de vilarejos ou de pequenos lugarejos. Deve-se levar a bola a um determinado local – até a varanda de uma casa,por exemplo – ou, arbitrariamente, para qualquer outro local escolhido pelos próprios jogadores. Algumas vezes, se faz necessário molhara bola num chafariz, antes de colocá-la entre as cinzas ainda em brasa de uma fogueira. O jogo não passa de uma imensa correria pontuadapor gente amontoada, uns sobre os outros, de maneira mais ou menos obstinada. Pode-se jogar com uma bola de couro, com uma bexigade porco repleta de feno, com uma bola de pano ou de madeira, ou mesmo com um simples toco de madeira.

O incômodo causado ao poder público pelosdistúrbios originários de partidas de futebol podeser medido pelos decretos proibitivos que semultiplicaram entre os séculos XIV e XV. Entreos anos de 1314 e 1467, 12 decretos condena-ram o jogo de bola em Londres, Perth (Escócia),Halifax e Leicester.17 Temia-se que o interessepelo ludus pilae desvanecesse o empenho doshomens no arco e flecha ou na esgrima – práti-cas de maior utilidade nos entreveros bélicos.Outra justificativa repetida para os decretos eraa perturbação da ordem pública causada pela al-gazarra dos jogadores. Além, é claro, dos danosmateriais advindos das vidraças quebradas porboladas sem direção.

Na Itália do mesmo período, as formas ante-riores de futebol não sofreram perseguições cla-ras por conta do poder público. Havia, inclusive,uma certa boa vontade da nobreza para com ojogo. Esta aproximação da aristocracia com o cal-

cio – termo ainda hoje utilizado no país comosinônimo do esporte contemporâneo – é comu-mente explicada por uma tradição florentina naqual, após longo período de enfrentamentos entreos exércitos da cidade italiana versus o exércitode Orange, duas facções de posições políticas con-trárias resolveram decidir suas diferenças numapartida. Os aristocratas arregimentaram seus iguaise, em 17 de fevereiro de 1529, na Piazza SantaCroce, agregaram ao calcio um inédito valor di-plomático para dirimir suas querelas.18

Os italianos foram os primeiros a registrar aorganização do jogo de bola em um conjunto deregras. Um certo Giovani Bardi recolhera depoi-mentos orais sobre a formatação tática do jogodisputado na década de 30 do século XVI, e es-creveu, em 1580, a obra Discorso sopra il gioco

del calcio fiorentino. As equipes compunham-se

de 27 indivíduos em funções específicas: doisjogavam como datori adietro, isto é, como za-gueiros fixos; quatro eram datori innanzi ou za-gueiros avançados; cinco jogadores faziam-se desconciatori, meio-campo, e os 15 demais atua-vam como corridori, os equivalentes a atacan-tes. O ápice da prática acontecia, assim comona Inglaterra, nos dias de festas. Em Florença,reuniam-se várias equipes galanteadas por trajescoloridos para passar o dia jogando bola.19

Na França, o soule ou choule tinha um anti-qüíssimo caráter religioso: era praticado pelos drui-das nas florestas da Normandia, em reverência auma entidade divina solar. É provável que esta tra-dição celta tenha se fundido ao harspatum introdu-zido pelos romanos, originando, dessa forma, o jogoapreciado pelos franceses desde o século XII.

“La soule se pratique à travers les prairies, les

bois, les landes et même les bourgs ou les étangs. Le

but était de ramener le ballon dans un edroit indi-

qué, le foyer d’une maison par exemple ou tout autre

lieu choisi par les joueurs.Dans certains cas, il fallait

même tremper la soule dans une fontaine avant de

la loger dans la cendre. Le jeu n’était donc qu’une

immense galopade entrecoupée de mêlées plus ou

moins acharnées. L’instrument de jeu pouvait être

une balle de cuir, une vessie de porc remplie de

foin, une pelote de toile, une boule de bois ou même

un billot de bois.”20

O jogo fora proibido em pelo menos duasocasiões por lei régia: em 1319, por determina-ção de Philippe V, e em abril de 1365, por ordemde Charles V. Ainda assim, como a aristocraciaitaliana, os franceses de estirpe nobre gostavamdo jogo de bola tanto quanto os indivíduos prove-nientes das camadas sociais mais baixas.

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

49

21 Há uma vasta bibliografia concernente aos Descobrimentos, analisando desde seus móveis originários até os diversos aspectos de suadecorrência. Entretanto, para esta idéia de inserção da América na realidade européia, cita-se os artigos de Vitorino Magalhães Godinho,José V. de Pina Martins, Luiz Felipe de Alencastro, Eduardo Subirats e Jean Delumeau presentes na obra A descoberta do homem e domundo, organizada por Adauto Novaes e publicada pela Companhia das Letras/Minc-Funarte em 1998. 22 Em que pese a análise deLEMOS, M. T. T. B. Tlachtli – O jogo de bola na Mesoamérica. In: Revista Pesquisa de Campo, Rio de Janeiro, n. 1, p. 60-61, 1995.“Observamos que, ainda hoje, o espírito de tlachtli persegue os amantes do futebol. Os estádios, verdadeiros espaços sagrados, abrigamos torcedores fanáticos, durante os noventa minutos do jogo, o cotidiano ou o profano é esquecido. A torcida grita, xinga, segura seuspatuás, acena suas bandeiras, reza, espreme as mãos e sente que o coração pára. O espetáculo do sagrado domina as emoções. No final, osvencedores são aclamados e saem do estádio com a sensação do poder, cantando ou tripudiando os derrotados. Como no tlachtli, há arecompensa. A equipe vitoriosa é aclamada pela torcida e endeusada.” 23 Ibidem, p. 56. 24 Ibidem, p. 59. Reside aí uma certacontrovérsia: enquanto para uns os templos erguidos aos deuses serviam de local para prática do tlachtli, outros autores identificamconstruções específicas para o jogo, sobretudo 26 nos Estados de Veracruz e Tabasco.

Por um lado, sua prática diferiu da rudezada disputa anglo-saxã, na medida em que privi-legiava a habilidade dos dribles em detrimentoda força dos chutões. Entretanto, em consonân-cia com os ingleses, as partidas podiam envolveraté povoados inteiros em contendas que dura-vam horas ou mesmo dias.

A Idade Moderna foi igualmente marcada pelainsurgência de uma nova realidade capaz de alte-rar profundamente as concepções geográficas,sociais e políticas do ocidente europeu. A Améri-ca foi incorporada pelo velho mundo como umaprofícua fonte de riquezas. Na verdade, para alémde uma funcionalidade econômica, ela foi prepa-rada, no decorrer da era moderna, para acomo-dar os europeus em suas crenças, em suas estru-turas cotidianas, em seus elementos identitários.21

Obviamente, este viés do processo colonizadoracarretou fortes tensões, em todos os níveis, comas populações ameríndias. Contudo, uma práticaritual denotou um mínimo de proximidade entredois mundos opostos: na Mesoamérica tambémexistiu uma forma específica de jogo de bola, ain-da que não fique claro seu estabelecimento comoum antecedente direto do futebol contemporâneo.22

Desde 1200 a.C., os olmecas, no AltiplanoCentral do México, praticavam um jogo cerimo-nial em áreas onde se encontravam grandes plan-tações de borracha. Já o ullamalitzi ou ainda tla-chtli era praticado pelos mexicas como uma sim-bolização terrena da luta que os deuses do bem edo mal travaram nos campos do céu.

“Uma idéia fundamental na cosmovisão desses

povos era que o céu noturno constituía o cenário da

guerra eterna entre a luz e a escuridão. As estrelas

tinham que morrer para que o sol pudesse se ali-

mentar e iluminar a terra. O jogo de bola tinha um

profundo sentido religioso e simbólico. Sua prática

representava a luta cotidiana entre forças contrárias,

conceitos antagônicos [...]. Por esse motivo há uma

relação simbólica entre o jogo de bola e a guerra, já

que, em ambas as atividades, há um confronto de

forças antagônicas. Os mexicas representavam tam-

bém os guerreiros sacrificados.”23

A pelota utilizada, chamada ollin, era con-feccionada com borracha – um padrão que a ex-periência americana passaria a ditar aos euro-peus a partir do século XIX. Os “estádios” eramos próprios templos.24

O campo de jogo era demarcado nas suasextremidades por aros nos quais a bola deveriaser encaixada; estes aros representavam o nas-cente e o poente. No centro, uma marca repre-sentava o lugar onde o Sol sacrificava diariamentea Lua e as estrelas: era o itzompan, ou lugar doscrânios. Cada lado do campo pertencia aos re-presentantes dos deuses do bem (materializadosna forma de luz, dia, sol etc.) e do mal (escuri-dão, noite, lua etc.). Nas bordas do campo, asparedes do templo eram utilizadas para rebater abola que, de tão pesada, exigia que os jogadoresusassem sobre os trajes rituais protetores de cou-ro e algodão nos braços e na cintura.

Século 18

Page 51: Revista Recine nº 5 - 2008

O FUTEBOL COMO PRÁT ICA DESPORT IVA

25 Ibidem, p. 57. 26 JUREMA, Jefferson e GARCIA, Rui. Futebol indígena: jogo de (re)criação. In: _______. Amazônia: entre oesporte e a cultura. Manaus: Valer, 2002, p. 262. “Os Peona são os indígenas considerados os mais primitivos habitantes daquela região.Eles empregam várias características, como por exemplo: o seu modo de andar, quando estão na cidade, pois caminham como se estivessemdando passos dentro de uma selva íngreme. Essa é uma das qualidades que difere esses índios dos outros. Outro aspecto é o fato deles nãoserem afeitos com números, gêneros e graus. O uso da roupa, mesmo estando numa comunidade que adota esses costumes, constitui-senum grande problema para aquela etnia.” 27 Ibidem, p. 263.

“O tlachtli simbolizava o espetáculo do sagrado, pre-

lúdio de um sacrifício sangrento, uma representação cos-

mogônica. A bola, em suas voltas no ar, representava a

marcha do Sol, no Cosmo. [...] Segundo os códices náhuatl,

o movimento significava jogo. E, como um jogo do tem-

po, enquadrava-se na engrenagem cósmica, que, conco-

mitantemente, o sustentava e destruía. Assim, o ollin

também significava terremoto, cataclismo, e suas forças

podiam acabar como os impulsos da bola que os jogado-

res lançavam até o esgotamento [...].”25

Esta prática mesoamericana transpunha a tênue

linha do simbolismo quando, ao final do jogo, fazia-

se um sacrifício dos jogadores. Embora paire dúvi-

das sobre quem era efetivamente decapitado – ven-

cedor ou perdedor –, o fato é que o jogador ajoelha-

va-se perante o juiz/sacerdote e tinha sua cabeça

arrancada em um único golpe e, posteriormente, seu

corpo era arrastado em volta do campo, ensangüen-

tando e divinizando o espaço terreno.

O tlachtli apresentava algumas variações em

termos de nomenclatura de acordo com a região,

mas que pouco mudava em sua exercitação.

Obviamente, quando da implementação das di-

retrizes metropolitanas, as autoridades espanho-

las logo trataram de proibir o jogo tanto pelo

caráter herético quanto pela necessidade de ex-

purgar quaisquer elementos de identidade autóc-

tone – tarefa na qual não tiveram sucesso, pois

sobreviveram vários exemplos de práticas lúdi-

cas locais que envolviam o manejo de pelotas de

borracha, além desta prática mesoamericana.

Entre etnias amazônicas, exemplos de jogos

de bola igualmente chegaram ao tempo presente

através da sua reiterada prática não só como ati-

vidade de lazer, mas também como evento ritua-

lístico. Este é o caso do jogo ancestral que ainda

é praticado nos nossos dias pelos índios Peoná,

da região do alto Rio Negro.26

O jogo não tem um caráter de disputa: sua

função principal é reavivar laços de convivência

harmoniosa entre os membros da própria comuni-

dade e/ou entre as tribos inimigas. Não existe li-

mitação de jogadores, jogam tantos quantos esti-

verem presentes, podendo os mesmos sair e entrar

na partida em qualquer instante sem que outro

componente seja obrigado a deixar o campo, pois

o jogo prolonga-se por até 12 horas e o resultado já

é, de antemão, conhecido: sempre acabam empa-

tados (quando disputados entre “times” da mesma

aldeia) ou com a vitória dos convidados.

“O jogo assemelha-se a uma dança, onde expressam

grande alegria em estar realizando aquela atividade. A cada

jogada, eles cantam, brincam, riem e dançam. O jogo tem

muito mais sentido de festa do que de uma competição.

Ao mesmo tempo em que eles estão motivados a jogar,

saem a correr para o mato, abandonando o jogo, e isto é

motivo de alegria para os que ficam em campo. Depois

eles voltam do mato, incorporados na figura de um bicho,

e entram na jogada como se nada tivesse acontecido.”27

Após a partida, a comemoração segue exaus-

tivamente numa festa com fartura de alimentos,

bebidas, danças e músicas.

Uma leitura negativa do futebol processada pelos

Estados e pelas Igrejas Cristãs da Europa Ocidental,

entretanto, algo que reforçou uma idéia na qual o

praticante do jogo, grosso modo, era desprovido de

honra ou detinha um caráter duvidoso, era inútil e

desprezível. Constituía-se, portanto, num perigo à

harmonia da sociedade, que deveria ser combatido

pelas autoridades espirituais e seculares: na prática,

os impedimentos – e mesmo perseguições – causa-

dos pelas burocracias dos Estados nacionais segui-

ram, a posteriori, as admoestações religiosas.

Observa-se, porém, um relaxamento na opo-

sição ao futebol a partir do século XVII. Na me-

dida em que o jogo atraiu mais adeptos, foi au-

mentando a tolerância do poder público, que di-

minuiu substancialmente o número de éditos e

dirimiu, em seus conteúdos, a pecha preconcei-

Page 52: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

51

tuosa: em 1660, por exemplo, Carlos II foi o pri-

meiro soberano inglês a autorizar o jogo de bola

– e, de certa forma, incentivá-lo, ao permitir que

seus criados enfrentassem os serviçais do duque

de Albernale em uma animada partida. Por outro

lado, a desconfiança sobre o caráter dos jogado-

res de futebol se prolongou no imaginário popu-

lar até, pelo menos, meados do século XX.28

Entretanto, principalmente durante o Sete-

centos, ao discurso religioso – imbricado, aliás,

por séculos, no cerne dos discursos legitimado-

res do Estado – se contrapuseram conjecturas

ilustradas que, aos poucos, saíram da discussão

em círculos restritos para interagir de forma mais

efetiva com a cultura popular. Esse espírito ilu-

minista promovia uma crença nas potencialida-

des do homem como construtor de seus próprios

caminhos, apoiado, sobretudo, na razão em de-

trimento das idéias reverberadas por déspotas

monárquicos e/ou eclesiásticos.29 Assim, aos pou-

cos, o afã por uma prática de divertimento do

gosto de amplas camadas sociais foi encontran-

do parâmetros para suplantar sermões e procu-

rar caminhos alternativos para não se expor ao

poder público – até que este decidisse, acossado

pela burla sistemática dos éditos proibitivos,

amainar sua volúpia perseguidora.

Talvez o mais eficiente desses caminhos alter-

nativos que garantiram a sobrevivência do jogo de

bola tenha sido sua esportivização, isto é, sua codi-

ficação em regras que tentaram diminuir seu acen-

tuado tom de violência e de desordem, e que viabi-

lizaram a sua tolerância, sobretudo nas escolas e

universidades da Inglaterra do início do século XIX.

“É importante sabermos que, na fase anterior à espor-

tivização, os jogos eram regulamentados por tradições lo-

cais, sendo assim variáveis suas regras de um local para o

outro, e se caracterizavam por um alto grau de violência

entre seus jogadores. A normalização destes jogos na In-

glaterra passou por vários estágios até se chegar ao que

hoje é denominado de esporte.”30

“Na Inglaterra, o futebol sobrevive, apesar de ile-

gal, nas escolas secundárias e nas universidades. Sofre

um refinamento e ganha contornos diferenciados, as-

sumindo uma postura cuja prática requer o respeito às

regras e aos códigos. É conferido ao futebol o título de

esporte de gentleman.”31

A partir daí, começou a ser gestado o fute-

bol que conhecemos contemporaneamente e pelo

qual, em última análise, centenas de milhões de

pessoas regulam seu cotidiano. Ao assumir di-

versos papéis, de acordo com as percepções sim-

bólicas das sociedades em que estava inserido, o

futebol primitivo foi se perpetuando como efici-

ente elemento de repercussão e aproximação da

cultura historicamente produzida pelo homem.

28 Refiro-me aqui a uma passagem citada recorrentemente pelos comentadores do futebol: William Shakespeare revela, ainda noséculo XV, o entendimento sobre o praticante do jogo. Cf. AQUINO, Rubim Santos Leão de. Futebol, uma paixão nacional. Riode Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 15: “Em sua Comédia de Erros, pergunta: ‘Tomais-me por uma bola de futebol? Vós mechutais para lá, e ele me chuta para cá. Se devo durar nesse serviço, deveis forrar-me de couro.’ Já em Rei Lear a marginalização socialdesse esporte fica evidente na fala insultuosa de um personagem: ‘Tu, desprezível jogador de futebol!’ Há ainda que se consideraras lembranças de ex-jogadores como Mário Jorge Lobo Zagalo que repetidas vezes em entrevistas televisivas afirmou que precisouesconder dos pais de sua futura esposa que era jogador do Botafogo F.C. para que estes permitissem o noivado.” 29 FORTES, LuísRoberto Salinas. O Iluminismo e os reis filósofos. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. 30 REIS, Heloisa Helena Baldy dos. Lazere esporte, a espetacularização do futebol. In: BRUNHS, Heloisa Turini. Temas sobre o lazer. Campinas: Editora Autores Associ-ados, 2000, p. 134. 31 PIMENTA, Carlos Alberto Máximo, op. cit., p. 60.

Início do futebol na Inglaterra Inglaterra x Escócia, 1872 Inglaterra séc. XIX

Page 53: Revista Recine nº 5 - 2008

O jogo de elite que virou o esporte

das multidões

Técnico da Coordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional. Bacharel em História pela UFRJ.Marco André Balloussier

Além da pólvora, da bússola e do papel, o fute-bol, quem diria, também foi inventado no Extre-mo Oriente. Assim reconheceu a Fifa, em 2004,quando o vice-secretário-geral da entidade, JeromeChampagne, declarou oficialmente: “Muito antesde o futebol surgir na Europa, a forma inicial damodalidade já era praticada na China”. O dirigen-te referia-se ao tsu-chu (“golpe na bola com o pé”),criado por volta de 2.500 a.C., como parte do trei-namento militar da guarda do imperador Huang-ti.

O objetivo do jogo era fazer a bola passar porcima de um fio esticado entre duas estacas fincadasno chão. Os militares, oito de cada lado, deveriamconduzir a bola com os pés e não podiam deixá-latocar no solo. Apesar de ter um caráter mais ritua-lístico, o kemari, uma variante japonesa desenvolvi-da alguns séculos mais tarde, também pode ser con-siderado um precursor longínquo do futebol.

Embora jogos com bola não estivessem incluí-dos nas Olimpíadas da Antiguidade, disputadasentre 776 a.C. e 394 d.C., é sabido que na Gréciatambém se gostava de uma “pelada”. O epyskiros,jogado pelos gregos, foi copiado pelos invasoresromanos, que criaram o harpastum. Como os ro-manos dominaram a Bretanha, existe uma corren-te que afirma terem sido eles os introdutores do“futebol” na Inglaterra. De qualquer forma, o fatoé que a Inglaterra viria a ser o berço do futebolmoderno. Não é à toa que ele também é conhecidocomo o esporte bretão.

Durante a Idade Média, surgiram o soule, naFrança, e o gioco del calcio, termo que os italianosempregam até hoje ao se referirem ao futebol. Nacidade inglesa de Ashbourne, realizava-se anualmen-te um jogo nas Shrove Tuesdays (terças-feiras gor-das). Duas equipes, cada qual com centenas de jo-gadores, disputavam a socos e pontapés a posse de

uma bola de couro, fabricada pelo sapateiro local.Pancadarias à parte, o objetivo do jogo era fazer abola passar pela meta adversária, no caso, os por-tões norte e sul da cidade, um para cada equipe.Uma versão bastante difundida diz que a primeiradestas partidas teria sido disputada com a cabeçade um invasor viking morto em combate.

Reação dos poderosos

Antes de se firmar como esporte, o futebol foicombatido pelas autoridades inglesas durante vá-rios séculos. Além da violência e dos transtornoscausados nas cidades, temia-se que a popularidadedo jogo desviasse a atenção dos jovens das ativida-des consideradas mais adequadas à formação mili-tar, como a esgrima, a equitação, o arco e flecha,entre outros exercícios.

Muitos reis publicaram atos proibindo a práticado futebol na Inglaterra. Também na Escócia o es-porte era combatido. Em 1423, Jaime I decidiu que:“Por este estatuto, o rei proíbe que qualquer homemjogue futebol, sendo a pena uma multa de cinqüentaxelins, a ser paga ao senhor da terra onde ele jogou”.

Aos poucos, o esporte foi se disciplinando econtando com uma maior complacência por partedas autoridades, embora os nobres puritanos con-tinuassem a marginalizá-lo, como se evidenciano primeiro ato da peça Rei Lear (1606), deWilliam Shakespeare, em que o personagem doconde de Kent agride um servo e o chama de“seu desprezível jogador de futebol”.

A oportunidade para a afirmação definitivachegou no século XIX, quando o pedagogo Tho-mas Arnold foi encarregado de reformular o ensi-no britânico. Interessava ao conservadorismo daépoca vitoriana que os jovens canalizassem suas

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O Bangu Atlético

Clube, fundado

em 1904, foi o

primeiro clube

carioca a admitir

jogadores negros

em seu time. Rio

de Janeiro, 1911

Page 54: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

53

energias para atividades físicas, e não para práticascondenáveis, como os vícios do jogo e do álcool,ou ainda o envolvimento com manifestações políti-cas de cunho reformista.

Assim, o futebol e outros esportes começarama fazer parte da educação regular dos jovens ingle-ses. Nas escolas foram codificadas as primeirasregras do jogo. A primeira regulamentação – As

leis do futebol baseadas nas regras do jogo como é

disputado na Escola de Rugby – foi aprovada em1846. O esporte praticado nesta escola tinha umaparticularidade: a permissão do uso das mãos portodos os jogadores. Este aspecto a diferenciava damaioria das outras instituições de ensino e acaba-ria dando origem a um outro tipo de futebol, orúgbi. Na Escola de Cambridge, por exemplo, cu-jas regras foram publicadas em 1848, era tacita-mente proibido carregar a bola com as mãos.

Como as regras não eram iguais para todas asescolas, as dimensões do campo variavam muito eo número de jogadores não era fixo. Acredita-seque o futebol com 11 jogadores se firmou pelo fatode as turmas de Cambridge terem dez alunos e umbedel (inspetor de classe). As turmas da Escola deRugby tinham 12 alunos e um bedel, o que, porsua vez, explicaria a composição de um time derúgbi, formado por 13 jogadores.

Da Inglaterra para o mundo

O dia 26 de outubro de 1863 é considerado adata de nascimento do futebol moderno, quandouma reunião de dirigentes realizada em uma taver-na londrina resultou na criação da The Football

Association, entidade que até hoje controla o futebolinglês. Neste momento, o Império Britânico vivia oseu apogeu, abrangendo territórios na América, Áfri-

ca, Ásia e Oceania. Era o império onde “o sol nun-ca se põe”. As instituições políticas, o padrão-ouro,o vestuário, o meridiano de Greenwich e tambémo futebol, entre outras criações e referências britâ-nicas, serviam de modelo e eram adotados e copi-ados em diversos países do mundo.

No caso do Brasil, local que futuramente seriachamado de “país do futebol”, a honra de ser con-siderado o introdutor do esporte coube a um des-cendente de ingleses, o paulistano Charles Miller.É verdade que, já em meados da segunda metadedo século XIX, marinheiros ingleses batiam umabolinha nas praias do nosso imenso litoral e padresjesuítas organizavam jogos entre os alunos do Co-légio São Luís, em Itu (SP).

Mas até hoje se considera que a introdução dofutebol no Brasil só se deu no final daquele século,mais precisamente em 1894, ano em que Millerretornou ao país, após uma longa temporada deestudos na Inglaterra, trazendo na bagagem duasbolas de couro e um jogo de uniformes.

Para o historiador José Moraes dos SantosNeto, autor de Visão do jogo: primórdios do fute-

bol no Brasil, o “pioneirismo de Miller reside nofato de ter iniciado a prática do esporte dentro deum clube, um segundo momento do processo deintrodução do futebol no país”. Segundo SantosNeto, a cristalização do mito em torno da figura deCharles Miller explica-se, entre outras razões, por-que “a idéia de paternidade envolvendo um mem-bro da elite européia, como se pode imaginar, há deter correspondido aos nossos recalques terceiro-mun-distas, na época ainda mais fortes que hoje”.

Tendo sido ou não o pioneiro, é inegável queCharles Miller teve um papel fundamental na in-trodução da prática regular e organizada do fute-bol no Brasil. Obcecado pelo jogo, há relatos de

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o Time do São Paulo

Athletic, criado

por Charles Miller

(sentado na

primeira fila,

ao centro). O time

era formado por

descendentes de

ingleses residentes

em São Paulo. São

Paulo, s.d.

Page 55: Revista Recine nº 5 - 2008

O JOGO DE EL I TE QUE V IROU O ESPORTE DAS MULT IDÕES

que ele passou grande parte da viagem de retor-no da Inglaterra driblando adversários imaginá-rios e tabelando com as paredes no convés donavio. Foi sob sua obstinada iniciativa que, nodia 14 de abril de 1895, em um campo na Vár-zea do Carmo, ocorreu a primeira partida ofici-al de futebol no Brasil. O time de Miller, o SãoPaulo Railway, venceu por 4 a 2 a equipe daCompanhia de Gás. Ambas as equipes eram for-madas por funcionários ingleses radicados nacapital paulista.

No Rio de Janeiro, o futebol chegou atravésde outro descendente de ingleses, Oscar Cox, res-ponsável também pela organização da primeirapartida entre cariocas e paulistas, disputada nodia 19 de outubro de 1901, no campo do SãoPaulo Athletic, dando início a uma rivalidade queaté hoje marca o futebol brasileiro. Só que osjogadores da época não tinham as mordomiasnem o prestígio atuais e tiveram que pagar aspassagens do próprio bolso. Ao consultar a dire-ção da Estrada de Ferro Central do Brasil sobrea possibilidade da delegação carioca viajar compassagens de cortesia, Cox ouviu como respos-ta: “A Estrada de Ferro não foi feita para passei-os de malandros e desocupados”.

A resposta malcriada, contudo, não foi ne-nhum empecilho, pois todos os jogadores eramricos o suficiente para custear a viagem. A bemda verdade, em seus primeiros anos no Brasil, ofutebol era praticado basicamente por brancos,sendo quase todos membros de famílias ilustresda sociedade. Era um esporte de elite, impreg-nado de preconceitos de classe e de cor.

Esporte de massa

Entretanto, o futebol rapidamente caminhou nosentido da popularização. Se os negros e os brancospobres eram proibidos de entrar nos clubes de elite,ninguém podia impedir que eles jogassem nos cam-pos de várzea ou em terrenos baldios esburacados.Logo começaram a surgir clubes de origem popular,como o Corinthians, em São Paulo, o Vasco daGama, no Rio de Janeiro, e o Internacional, no RioGrande do Sul. O clube gaúcho foi fundado porimigrantes de tendência anarquista, daí a origem donome e a cor vermelha de seu uniforme.

Mas a rápida difusão do futebol não era sufici-ente para eliminar totalmente os preconceitos. Em1916, ao ser indagado sobre a possibilidade da sele-ção brasileira embarcar no mesmo navio que o leva-ria a um congresso na Argentina, o conselheiro RuiBarbosa, chefe da comitiva diplomática, respondeuao ministro do Exterior, Lauro Muller: “Pois saibao senhor, que eu, minha família e os meus auxiliaresnão viajamos com essa corja de malandros! Futebo-lista é sinônimo de vagabundo, e pode escolher ime-diatamente, senhor ministro, ou eles ou eu”.

A discriminação mais evidente continuava sendoa racial. Primeiro clube a admitir jogadores negros, oBangu Atlético Clube foi obrigado a se afastar da LigaMetropolitana do Rio de Janeiro, por discordar daseguinte decisão, publicada em 14 de maio de 1907:“Comunicamo-vos que o Diretório da Liga, em ses-são de hoje, resolveu por unanimidade que não se-jam registradas como atletas pessoas de cor”. Em 1921,o próprio presidente da República, Epitácio Pessoa,recomendou à Confederação Brasileira de Desportos

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circundava o campo.

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clubes cariocas só os

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arquibancadas.

Rio de Janeiro, 1916

Friedenreich, o

segundo jogador,

da esquerda para

a direita

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5555(CBD) que não convocasse jogadores negros e mula-tos para a seleção brasileira que iria disputar o Cam-peonato Sul-Americano na Argentina.

Ironicamente, o primeiro grande ídolo do fute-bol brasileiro viria a ser justamente um mulato, cha-mado Arthur Friedenreich. Sua projeção foi de gran-de importância para que o esporte começasse a ven-cer a barreira do preconceito racial. Foi dele o golque deu à seleção brasileira seu primeiro título im-portante, o Campeonato Sul-Americano de 1919. Aesta altura, o futebol já se transformava no “esportedas multidões”, pois mais de trinta mil pessoas lota-ram o estádio do Fluminense, nas Laranjeiras, paraassistir à final entre Brasil e Uruguai.

O advento do profissionalismo

Na Inglaterra do século XIX, lorde Prestwick,um dos maiores defensores do amadorismo em seupaís, dizia que “não merece respeito quem faz pordinheiro o que deveria fazer por prazer”. Durantemuitos anos, o futebol brasileiro permaneceu ape-gado aos princípios do amadorismo, mas na déca-da de 1920 já era bastante comum os jogadoresreceberem prêmios em dinheiro, o chamado “bi-cho”, termo cuja origem provavelmente vem dojogo do bicho. Foi somente em 1933 que o profis-sionalismo foi oficialmente reconhecido no Brasil,e seu advento significou um passo importante naevolução técnica do nosso futebol.

Na Copa de 1938, disputada na França, a sele-ção conquistou o terceiro lugar, e o craque Leôni-das da Silva, o “Diamante Negro”, teve uma atua-ção deslumbrante. Faltava o título, que representa-

ria a afirmação definitiva do Brasil no cenário inter-nacional. Em virtude da Segunda Guerra Mundial(1939-1945), não chegaram a ser disputadas as Co-pas de 1942 e 1946. A grande oportunidade veio,portanto, em 1950, sobretudo por que a Copa foirealizada em casa, experiência que iremos repetirem 2014. O país inteiro passou a viver um clima deeuforia, o que tornou ainda maior a tragédia ocorri-da no dia 16 de julho de 1950: o Uruguai ganhou afinal por 2 a 1, quando bastava um empate parasermos campeões do mundo pela primeira vez.

O reconhecimento viria com o título da Copado Mundo de 1958, na Suécia, quando despontoupara o mundo o talento genial de Didi, Nilton San-tos, Garrincha e Pelé, na época ainda tão jovem que,como disse um cronista, “nem tinha idade para verum filme de Brigitte Bardot”. O bicampeonato con-quistado no Chile, em 1962, e a épica campanha doTri, em 1970, no México, consagraram definitiva-mente o Brasil como o “país do futebol”.

A dimensão que o futebol alcançou no país, aolongo de seus mais de cem anos de história, foisintetizada com singular precisão pelo júri espa-nhol que, em 2002, concedeu à seleção brasileira oprêmio Príncipe das Astúrias:

“O júri, além de ter em conta os méritos esportivos,

levou em conta os valores de integração social que este

esporte tem no Brasil, pois expressa algumas das virtudes

que são parte da identidade e da formação do país.

O júri considera que, tão importante quanto os cinco

títulos mundiais, está o sentido de cidadania que tem o fute-

bol no Brasil, pois, além de um esporte, é um sentimento,

uma paixão compartilhada por todo o povo brasileiro.”

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Arquibancada

privativa dos

seletos sócios

do Fluminense,

no estádio das

Laranjeiras. Rio

de Janeiro, s.d.

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O back Bellini, o técnicoVicente Feola e o goleiroGilmar, com a Taça Jules

Rimet, na comemoração daSeleção Brasileira de Futebol

pela vitória na Copa doMundo de 1958. Suécia,

29/06/1958

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Nasce o Fluminense

Mário Filho

Football? Que vinha a ser “aquilo”? Oscar Coxtentava explicar. Havia um campo. Sim. O ouvinteabria os olhos, procurando ver o campo. Não eradifícil imaginar o “field”. O Clube Brasileiro de Cri-cket tinha um. A coisa, porém, se complicava quan-do Oscar Cox, balançando a cabeça, dizia que, forao verde da grama, não existia semelhança algumaentre o campo de cricket e o campo de football. Ocampo de cricket sendo oval, o de football sendoretangular. “Então – dizia o outro, deixando de vero ‘field’ do Clube Brasileiro – então eu não percebonada.” Oscar Cox fazia um gesto vago. Querendoencontrar um símile mais perfeito. O “ground” decricket não servia. Nada servia. E ele quase embatu-cava, fazendo “pois é”. Abria-se uma pausa. OscarCox, porém, não desistia assim, sem mais nemmenos. Danado para falar em bola. Ah! o assuntobola, realmente, parecia animador. Uma porção debolas acudiria à imaginação de qualquer um. Bolasde vidro, grandes e pequenas. Umas servindo paraque, através delas, se lesse o passado e o futuro,“como em um livro aberto”. Bolas de cortiça, as decricket eram feitas de cortiça. Bolas de tênis. “Nadadisso – e Oscar Cox perdia a paciência – A bola defootball é completamente diferente.”

Oscar Cox tinha 17 anos, e acabara de chegarda Suíça. Lá em Lausanne, ele jogara football, peloteam do Colégio de La Ville. Chegando aqui, umadas primeiras coisas que ele quis saber foi “onde sepode jogar football?” Nunca lhe passara pela cabeçaque o nome de “um esporte tão conhecido” soasseaos ouvintes de todo mundo – o todo mundo daCidade de São Sebastião do Rio de Janeiro de 97 –como um termo misterioso. Quase indecifrável.Quem sabe se mandando buscar uma bola... A idéiaencantou Oscar Cox. E ele encomendou uma bolaMacGregor, número seis. Passando aguardar, com

uma ansiedade que aumentava ao correr dos dias, amala da Europa. “Vocês vão ver – dizia ele – Com abola será fácil.” “É. Com a bola talvez a gente venhaa compreender o tal football.” E, um dia Oscar Coxrecebeu a mala da Europa. Com a bola. A bomba debicicleta serviu para enchê-la. E o “balão de couro”passou de mão em mão. “Meta o pé! Só keeper éque pode segurar a bola com a mão.”

A bola, porém, não resolvia tudo. Faltava umcampo. Faltavam as balizas. Faltavam as redes. Fal-tavam os jogadores. E Oscar Cox começou a sentir-se isolado. Mais isolado do que nunca. A bola não lhefazia companhia. Pelo contrário. Enquanto ela nãochegava, Oscar Cox tinha-a esperado como se esperaum amigo. E agora a impressão que ele experimenta-va era a de fracasso. Às vezes apareciam curiosos.Depois de uns dois chutes, todos paravam, desani-mados, achando que o football não tinha nada de en-graçado. “Quer saber de uma coisa, Oscar? Desistadisso. O football é pau. Cacete como ele só. Nãopega. Ou você acha que é interessante a gente ficaraqui feito bobo, vendo você jogar?” Oscar Cox aca-bou concordando. Agarrou a bola e levou-a para casa.Atirando-a a um canto, para não pensar mais nela.

Como, porém, deixar de pensar em football? Ovelho Emanuel Cox (Emanuel devendo pronunciar-secom acento no má) era o primeiro a animar o filho.Com um exemplo constante de entusiasmo pelo es-porte. Fora ele, o velho Jorge Cox, quem tivera aidéia de fundar o Rio Cricket and Athletic Associati-on. “Parecia impossível – eis a conclusão a que che-gara Jorge Cox – que não houvesse um clube em Ni-terói, com tanto inglês por perto.” Em toda parte domundo uma dúzia de ingleses juntos queria dizer umclube. Assim, nasceu o Rio Cricket. E com o RioCricket surgia também um campo. Às ordens deOscar Cox. O campo era oval, lá isso era. A dificul-

Jornalista.

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5 9Publicado em Nelson Rodrigues e Mário Filho. Fla-Flu... e as multidões despertaram! Organização de Oscar Maron Filho e RenatoFerreira. Rio de Janeiro: Ed. Europa, 1987, p. 14-20.

dade, contudo, não estaria aí. Um pouco de cal mar-caria o “field” dando-lhe a fisionomia de um campode football. E ainda havia o recurso das bandeirinhas.“Arranje um team – foi o conselho do velho JorgeCox a Oscar – e o resto será fácil.” Oscar Cox levoutrês anos de 98 ao ano primeiro do século XX, paraarranjar um team de football. Só de brasileiros.

Quem vinha da Europa – de um colégio na Su-íça, como Oscar Cox, ou de um colégio da Inglater-ra – vinha sabendo um pouco de football. Assim, sefoi juntando gente: Victor Etchegaray poderia jogarde back. Full-back right. Walter Shuback disse logo:

“Eu jogo de full-back-left.” O goal-keeper seria ClytoPortela. E os halves-backs Mário Frias, Oscar Coxe Max Naegelis. Wingers, right e left: Horacio Cos-ta Santos e Felix Frias. Insiders right e left: Euricode Moraes e Júlio de Moraes. O posto de center-forward foi logo ambicionado por Luiz da Nóbrega.Finalmente, estava tudo arranjado. Alguns tinhamchuteiras, trazidas ou mandadas vir da Inglaterra.Outros tiveram que entregar botinas velhas a sapa-teiros. Explicando o que vinha a ser uma trava.“Quantas travas?” – perguntava o sapateiro. “Vábotando. Uma trava nunca é demais.”

Oscar Cox, responsávelpelo início do futebolno Rio de Janeiro. Riode Janeiro, 1900

Delegação do Rio de Janeiro na volta de São Paulo, em 21 de outubro de 1901, após o primeiro jogo entre o Rio e São Paulo. A foto reúnejogadores cariocas e paulistas que foram à Gare se despedir de seus companheiros: Louis Senin, Anthony de S. Queiroz, sem identificação, Louisde Nóbrega, Mario Rocha, A. R. Wright, sem identificação, Francis H. Walter, Horácio da Costa Santos, João José de Macedo, Mario Frias, semidentificação, Julio Villa-Real, Oscar Nobling, George Cox, Ibañez Salles, Walter Schuback, Oscar Cox, Walter Jeffreys, Felix Frias, Julio deMoraes, sem identificação, Charles Miller, Eurico de Moraes, Antônio Savoy, Antonio C. da Costa. São Paulo, 21/10/1901

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Delegação do Rio de Janeiro na volta de São Paulo, em 21 de outubro de 1901, após o primeiro jogo entre o Rio e São Paulo. A foto reúnejogadores cariocas e paulistas que foram à Gare se despedir de seus companheiros: Louis Senin, Anthony de S. Queiroz, sem identificação, Louisde Nóbrega, Mario Rocha, A. R. Wright, sem identificação, Francis H. Walter, Horácio da Costa Santos, João José de Macedo, Mario Frias, semidentificação, Julio Villa-Real, Oscar Nobling, George Cox, Ibañez Salles, Walter Schuback, Oscar Cox, Walter Jeffreys, Felix Frias, Julio deMoraes, sem identificação, Charles Miller, Eurico de Moraes, Antônio Savoy, Antonio C. da Costa. São Paulo, 21/10/1901

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NASCE O F LUM INENSE

O team dos brasileiros devia enfrentar um teamde ingleses. Qual o inglês que não dera um chute emuma bola? E aí – era agosto de 1... – bem de manhãcedo, os tenistas do Rio Cricket and Athletic Asso-ciation tiveram a atenção despertada por umas bali-zas colocadas nos extremos do campo de cricket. Elesperguntavam ainda o que era aquilo quando aparece-ram os jogadores. E com eles o velho Etchegaray, asenhorita Etchegaray, Mário Rocha e DomingosCoutinho. Eram eles os primeiros torcedores de foo-tball. Com a melhor boa vontade deste mundo parabater palmas, para gritar hip, hip, hurra! Os tenistas doRio Cricket resolveram ficar. Quem sabe. Talvez fosseinteressante o football. Eles tinham sabido que era foo-tball pela amabilidade do velho Etchegaray. “Toda vezque a bola entrar ali – e apontava para as balizas arran-jadas à última hora – será goal.” “Ah!” – foi a respostados tenistas, que tinham arregalado os olhos.

A camisa dos brasileiros – hoje poucos se lem-bram dela – era toda preta. Com o Cruzeiro do Sul,em branco, sobre o peito. Os calções, reminiscênciasde calças brancas e compridas, cortadas abaixo dosjoelhos. E alguns jogadores nem se tinham dado aotrabalho de fazer uma bainha, optando pelo processomais prático de uma tesourada e pronto. Assim, sepoderiam ver os fios de linho caindo sobre as pernascabeludas, mal cobertas pelas meias de colégio do tem-po das calças curtas. Quando o jogo principiou, po-rém, a atenção foi desviada dos jogadores para a bola.Os tenistas sabiam que a bola era o mais importante.Onde ela estivesse deviam estar os jogadores. De vezem quando os espectadores deixavam de ver a bola,vendo só jogador a meter o pé. Finalmente, ela apare-cia de novo. E que significava aquilo? Uma bola chu-tada por Caywood Robinson não fora defendida porClyto Portela. “Foi goal – explicou o velho Etchega-ray – Goal dos ingleses.” E quando Júlio de Moraesempatou, os tenistas do Rio Cricket compreenderamlogo que tinha sido goal também.

Agora já se podia falar em football. E o team deOscar Cox, com a camisa preta e o Cruzeiro do Sulem branco sobre o peito, como um escudo, foi parao campo do Paissandu Cricket Clube. Empatandomais duas vezes com os ingleses. “Vê?” – dizia Vic-tor Etchegaray a Oscar Cox – “O brasileiro dá parao football.” “Dá, sim” – respondia Oscar Cox – “Ea gente só precisava de uma coisa. De disputar um

match em São Paulo. Eu recebi uma carta de Antô-nio Costa – um bom companheiro que eu tive noColégio de La Ville – e ele me disse que já se jogafootball em São Paulo.” “Então escreva a AntônioCosta” – aconselhou Victor Etchegaray – “E per-gunte se é possível fazer um Rio–São Paulo.” OscarCox pegou em uma folha de papel, molhou a pena eescreveu a carta. “Quero que você me responda comurgência se é preciso levar barras de gol e redes.Temos tanto uma coisa como outra.”

A resposta veio mais animadora do que se espera-va. “Não precisamos” – escrevia René Vanorden, doEsporte Clube Internacional – “de nada”. “Temos cam-po. Temos barra de gol. Temos rede. Só faltam vocêspara um Rio-São Paulo.” E aqui se fizeram os prepara-tivos febris. A parte social ficou entregue a Lidgerwoode Sydney Cox, que trataram de um banquete – paradepois do jogo em São Paulo – da viagem, de tudo.Metendo, de quando em quando, a mão no bolso. Elesprocuraram convencer a Central do Brasil de que umaembaixada de esportistas – a primeira que se organiza-va aqui para uma excursão – merecia um abatimento.A Central do Brasil disse que não. E cada jogador teveque entrar com a cota de 130 mil réis, que, há 41 anospassados, era dinheiro que não acabava mais. O entu-siasmo se propagara de tal jeito que, além dos jogado-res, foram dois reservas: Domingos Moutinho e Má-rio Rocha. Era noite de 8 de outubro de 1903.

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6 16 1Em São Paulo havia uma recepção preparadapara eles. E quando, na manhã de 19 de outubro, onoturno paulista despejou os cariocas na “gare”, láestavam, de braços abertos, Antônio Costa e RenéVanorden, do Esporte Clube Internacional, IbanezSales, do Paulistano, R. Nobiling, do Germânia,Charles Muller, Fox Rule e Boyes, do São PauloAtlético. E havia muita gente que, nunca tendo ou-vido falar em football, correu ao campo do São Pau-lo Atlético para ver o match cariocas e paulistas. Oteam da camisa preta já não era mais aquele do pri-meiro encontro, lá no “field” do Rio Cricket. Schu-back tomara conta do gol. A becança não tinha Vic-tor Etchegaray e sim Mário Frias e Luiz da Nóbre-ga, Oscar Cox passara a ser half-back-right, ceden-do o posto de center-half a Wright. MacGullochcompletava a linha média. E no ataque estavam Fran-cis Walter – um que mais tarde iria para o gol eseria até presidente do Fluminense – Horácio CostaSantos, Eurico de Moraes, Júlio de Moraes, e FélixFrias. O “eleven” paulista tinha Holland, Nobiling,Boyes, Ibanez Sales, Charles Muller, Geffery, Antô-nio Costa, Muss, René Vanorden e Savoy. E o am-biente era tão cordial – tão sem preocupação de vi-tória – que não houve vencidos nem vencedores.Tanto terminou empatado o primeiro jogo como osegundo, disputado no dia seguinte, porque os ca-riocas não podiam ficar toda vida em São Paulo.

Que faltava mais? – perguntou Oscar Cox logodepois. Sim, que faltava mais? Não bastava jogar,aqui e ali, partidas de football. Era preciso mais al-

guma coisa. Um clube. A idéia do Fluminense como nome de Rio Football Clube ainda começava aperturbar as vigílias de Oscar Cox. E ele, um dia,surpreende os amigos com um convite. Quem esti-vesse de acordo com a fundação de um clube brasi-leiro de football, deveria comparecer, a hora tal, emtal lugar. E lá compareceu um grupo que se fez deengraçadinho. Oscar Cox deu início à sessão, emtom solene, declarando que, “como todos que ali seachavam presentes estavam de acordo com a pro-posta apresentada”... E uma voz se fez ouvir: “Quemfoi que disse que eu estava de acordo? Eu sou con-tra.” O Fluminense teria que esperar, por causa dis-so, outra oportunidade para nascer.

Oscar Cox ficou zangado. Não desanimou, po-rém. E em um dia 21 de julho – corria o ano de1902 – os portões da casa de Horácio Costa Santos,que ficava ali, na rua Marquês de Abrantes nº 51, seabriram para a cerimônia da fundação do Flumi-nense. Lá estavam Horácio Costa Santos, MárioRocha, Walter Schuback, Félix Frias, Mário Frias,Heráclito Vasconcelos, Oscar Cox, João Carlos deMelo, Domingos Moutinho, Luiz da Nóbrega Jú-nior, Arthur Gibbons, Virgílio Leite de Oliveira eSilva, Manoel Rios, Américo da Silva Couto, Euri-co de Moraes, A. C. Mascarenhas, Álvaro D. Cos-ta, Júlio de Moraes, A. A. Roberts. E Manoel Riospresidiu a mesa, ladeado por Américo Couto e Os-car Cox. Oscar Cox estava com as mãos frias, denervoso, e sentia um nó na garganta. Mas era dealegria: o Fluminense deixara de ser um sonho.

Campo e segunda sede doFluminense Football Club: àdireita as palmeiras da ruaPaissandu e ao fundo a baía deGuanabara. Rio de Janeiro, 1905

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Jogadores que foram representar o Rio de Janeiro na primeira partida contra ospaulistas. De pé: Mario Frias, Walter Schuback e Louis da Nóbrega; agachados, OscarCox, A. R. Wright e J. McCulloch; sentados, Francis Walter, Horácio da Costa Santos,Eurico de Moraes e Felix Frias. São Paulo, 19/10/1901

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Olhem elas aí...

Historiadora, editora, programadora visual e servidora do Arquivo Nacional.Heloisa Frossard

Que insistência é essa! Por que resistimos enos inquietamos tanto com o que os outros podemou não fazer com o seu corpo e em suas práticassociais, religiosas, sexuais? De onde vem tamanhaprepotência e intolerância? Antigos e gastos pre-conceitos e discriminações se acirram na mesmaproporção em que aumenta o ritmo alucinado dasmudanças da nossa estressada cultura.

Desgastados jargões sobre negros, mulheres,judeus, gordos, gays, pobres, deficientes e umaoutra seqüência infindável de características e con-dições humanas (a nossa diversidade poderia serlistada até incluir cada um de nós) continuam in-delevelmente enraizados na sociedade e podem serpercebidos nas maiores e menores ações e atitudesque cercam nosso cotidiano.

Os esvaziados conceitos de civilização e huma-nidade – tão arduamente construídos e conquista-dos pela sociedade ocidental, desde o século XVI –permanecem presentes em quase todos os discur-sos e críticas à sociedade contemporânea, no en-tanto, estão cada vez mais distantes das soluçõesdos conflitos desta mesma sociedade. As experiên-cias políticas do século XX motivaram experiênciase realidades de índoles diversas e contrárias: algu-mas autoritárias e ditatoriais, outras, utopicamen-te igualitárias e com perfumes de inovação e criati-vidade, mas todas, sem exceção, fracassaram e fo-ram derrotadas ao esbarrar na convivência com adiversidade e com o exercício do desejo do outro.

A história revela uma longa estrada percor-rida. No entanto, este trajeto não deu conta deresolver a sensação de medo, desproteção, expro-priação e dominação que assola o homem desde oestágio Neandertal da evolução.

Todas as admiráveis características da nossacivilização (intelectual, tecnológica, artística) dizem

respeito ao homem uno, solo, ego. Quando emgrupo, essas admiráveis qualidades do indivíduodiluem a sua capacidade de tolerância, percepçãoe respeito diante da diversidade. Alguns podem ar-gumentar que tal acuidade é atributo de uma cons-trução de ordem lúdica, hipotética, utópica e atésingela – mas isso também não responde a questão.

O exercício do poder pode ser a chave queestamos procurando. A dominação de um sobreoutro é o modelo de sobrevivência exercido pelahumanidade desde tempos imemoriais. E ele podeser ainda tão mais cruel e perverso quando se exer-ce dentro de um mesmo grupo.

Quando pensamos nos papéis sociais estabele-cidos para o feminino e o masculino e nas relaçõesinternas dos núcleos familiares, este exercício depoder se demonstra de forma mais intensa ainda,podendo ser representado como uma camisa deforça muitas vezes transparente, ou melhor, invisí-vel aos olhos de todo o grupo, de forma a garantira manutenção da sua harmonia e equilíbrio, aco-modando costumes e práticas de comportamentojá conhecidas e pouco contestadas.

E foi assim que chegamos onde estamos...

Por mais que a sociedade critique, ria, negue,menospreze, ou mesmo ridicularize os movimentosfeministas iniciados nos primórdios do século passa-do, é inegável a sua influência sobre toda a sociedadee especialmente sobre todas as mulheres. Até mesmosobre aquelas que, quando são flagradas utilizando-sede algum discurso ou atitude feministas, proferempérolas do tipo: “Eu sou feminina, não feminista!”,como se fosse possível abdicar das características in-trínsecas à sua condição de mulher. A universidadeque cursam; o voto que praticam nas urnas; o empre-

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go que crêem ter conseguido por mérito próprio; aliberdade de opinião e de tomada de decisão sobresuas vidas – desde o simples ato de escolher o quevestir até a decisão de como “ser” e como quer estarno mundo – são produto de uma antiga luta travadapor bravas (no sentido italiano do termo) guerreiras ecorajosas mulheres que foram para as ruas expor seusrostos na conquista de direitos e benefícios, a despeitodo conceito que a sociedade fazia e que ainda faz delas.

Muitos ganhos as mulheres tiveram como resul-tado deste movimento, mesmo que muitas delas nãoadmitam e que nem mesmo deles se dêem conta. Asgerações de mulheres pós anos 50 foram privilegia-das e beneficiárias diretas desses ganhos. Mesmoque encaremos essas árduas conquistas como umaevolução natural da sociedade, embalada por critéri-os impostos pelo mercado em decorrência das duasgrandes guerras do século XX – que precisou contarcom os até então frágeis braços femininos para ali-mentar não mais a família, mas as fábricas –, asmulheres ganham no conjunto uma longa série dedireitos que, sem dúvida, fariam inveja às nossasavós, bisavós e a todas as nossas ancestrais.

No entanto, não nos enganemos com esses avan-ços, a eqüidade de direitos ainda está longe de sairdo campo da ficção para a realidade. De algumaforma, a desigualdade se tornou menos evidente e,portanto, mais difícil de ser percebida. A despeitode todas as conquistas, de todas as leis em defesados direitos das mulheres e mesmo de uma Consti-tuição igualitária, o comportamento da sociedadeainda está impregnado de um forte cheiro de naf-talina, que embora desagradável faz parte do regis-tro dos olfatos menos e mais apurados.

Ao tratarmos da dificultosa relação do ‘futebolcom as mulheres’, e não da desde sempre cordialrelação das ‘mulheres com o futebol’, vejamos oque se passa e o que se passou.

A despeito do interesse que o futebol des-pertou nas mulheres desde o início de sua im-plantação no Brasil (1895),1 ele chega aqui im-pregnado de virilidade, para a qual a presença dasmulheres nos gramados significa uma incômodadesonra à boa sociedade da época – nossos pri-meiros atletas eram ingleses ou descendentes de-les; homens brancos, membros de uma elite eco-nômica, e, usualmente, portadores de engomadosbigodes. Era então impensável imaginar “suas”mulheres expostas em roupas inadequadas quedelineassem a silhueta de seus corpos; não era de“bom-tom” vê-las se exercitando através de movi-mentos bruscos e grosseiros como chutes e cabe-çadas, e muito menos cometendo faltas no corpo-a-corpo que a prática do futebol impõe.

Mesmo para os homens negros, que demons-traram desde o início inequívoco talento para aprática do esporte, a participação em jogos nosprimeiros clubes paulistas e cariocas de futebol lhesfoi interditada. No Brasil, o primeiro a aceitar ne-gros em seu time foi o Bangu, clube formado pelosoperários da Fábrica de Tecidos Bangu, localizadana Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, em1911. Apesar de polêmica, a presença dos negrosfoi paulatinamente aceita nos clubes de futebol, queforam obrigados a se render ao talento dos craquesque começaram a surgir nos jogos de várzea daperiferia das cidades. Lentamente, as portas se abri-ram para esta outra incômoda categoria da socie-

1 A primeira partida de futebol realizada no Brasil aconteceu em São Paulo, em 15 de abril de 1895. Nela, enfrentaram-se osfuncionários da Companhia de Gás e os da Companhia Ferroviária São Paulo Railway, empresa onde trabalhava Charles Miller,responsável pela implantação da modalidade no Brasil.

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Equipe feminina do

Atlético Mineiro que

venceu a equipe do

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O LHEM E LAS A Í . . .

dade, sem, contudo, acomodar os conflitos raciaisno interior das instalações sociais dos clubes que aelite da época freqüentava.

Para as mulheres, no entanto, as dificuldadespareciam ser bem maiores. No início do séculoXX, apesar de o tal movimento feminista já existir,ele ecoava muito pouco e estava mais preocupadocom a conquista de direitos relacionados à cidada-nia da mulher: direito ao voto, acesso ao ensinosuperior, direito de escolher o marido, dentre ou-tros, que podem parecer aos olhos das mulheres dehoje absurdos, ou mesmo engraçados.

Mulheres como Bertha Lutz, Maria Lacerda deMoura, Celina Guimarães Viana ou Carlota Pereirade Queirós estavam longe de pensar no direito ine-quívoco de qualquer ser humano se dedicar ao es-porte de sua predileção – prática até então quaseque totalmente inexistente para as mulheres, devidoà vigente crença na fragilidade feminina e em sua“incapacidade” de tomar decisões sem uma orienta-ção masculina que podia ser representada pela figu-ra do marido, do pai ou mesmo do irmão.

As primeiras partidas femininas de futebol re-gistradas aconteceram nos anos de 1908 e 1909,estas pistas foram localizadas pelo pesquisador Eri-berto Lessa, da Unicamp. Em 1913, ele encontrainformações sobre outro jogo feminino, desta vezbeneficente, e voltado para a construção de umacasa de saúde para crianças pobres – motivo louvá-vel o bastante para que fosse realizada a partidaentre mulheres “pias e beneméritas”. Outras inicia-tivas de jogos de futebol de mulheres também sãoregistradas aqui e acolá, sem, no entanto, caracte-rizar uma prática corrente e regular.

Cabia às mulheres evitar quaisquer atividadesque as tornassem “impuras”, como a prática deesportes que promovessem os contatos físicos di-retos. As atividades esportivas facultadas às mulhe-res eram voltadas para o seu fortalecimento semque fossem comprometidas sua reputação, saúde ehigiene. As possibilidades que tinham de se exerci-tar estavam limitadas à prática dos esportes de ca-ráter individual, como: tênis, natação, ginástica eatletismo, além do ballet, evidentemente.

A “masculinização” da mulher era evitada a todocusto e a exposição de seu corpo idem. O fantasmaque o efeito da imagem e do corpo feminino produ-

ziria em um universo virilizado assombrava a boaordem social. O grande pilar da sociedade era re-presentado pela imagem da mulher presa ao lar,melhor ainda se fosse e permanecesse casada e de-votada às necessidades dos filhos e do marido.

Posição esta reforçada pelo Barão de Couber-tin, um dos responsáveis pelos Jogos Olímpicosmodernos, a partir de 1896, que apresenta sua opi-nião sobre o movimento feminista e a participaçãodas mulheres em competições esportivas:

“O problema dos esportes femininos complica-se

com a paixão e expressões exageradas que nele põe a

campanha feminista. Os dirigentes desta campanha

pretendem simplesmente a anexação de tudo o que até

agora era do domínio próprio do homem; daí a ten-

dência da mulher querer mostrar-se capaz de igualar o

homem em todas as atividades. [...] Tecnicamente as

jogadoras de futebol ou as pugilistas que se tentou exi-

bir aqui e ali não apresentam interesse algum; serão

sempre imitações imperfeitas. Nada se aprende vendo-

as agir; e assim os que se reúnem para vê-las, obedecem

a preocupações de outra espécie. E por isso trabalham

para a corrupção do esporte, aliás, para o levantamento

da moral geral. Se os esportes femininos forem cuida-

dosamente expurgados do elemento espetáculo, não

há razão alguma para condená-los. Ver-se-á, então, o

que deles resulta. Talvez as mulheres compreenderão

logo que esta tentativa não é proveitosa nem para seu

encanto nem mesmo para sua saúde. De outro lado,

entretanto, não deixa de ser interessante que a mulher

possa tomar parte, em proporção bem grande, nos pra-

zeres esportivos do seu marido e que a mãe possa dirigir

inteligentemente a educação física dos seus filhos.”

Somente nos segundos Jogos Olímpicos, reali-zados em Paris, em 1901, foi admitida a presença

Ba

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tlé

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Clu

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Fundado em 1904, o time da Fábrica de Tecidos Bangu foi o

primeiro escrete carioca a admitir jogadores negros em seu

selecionado. Rio de Janeiro, 1911

Page 66: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

6565

feminina – apenas 16 mulheres conseguiram parti-cipar em duas modalidades: tênis e golfe.2

Os argumentos do Barão reforçam a manuten-ção da mulher “no lar” e o seu afastamento de qual-quer possibilidade de gozar dos mesmos direitos eopções que os homens.

No Rio de Janeiro, em 1940, tem-se notícia dosprimeiros torneios femininos realizados nos subúr-bios da cidade. Eram disputados por agremiaçõesesportivas como o Cassino de Realengo e o Eva Fu-tebol Clube. A despeito dessas iniciativas mais or-ganizadas de prática do esporte pelas mulheres, nes-ses mesmos anos 40 a eugenia ganha fôlego com adifusão das polêmicas idéias e práticas nazi-fascistasque assolavam a Europa. Elas se baseavam em pre-ceitos voltados para a depuração da “raça”, que, alémde justificar o genocídio de milhares de seres huma-nos durante a Segunda Guerra Mundial, estavamimbuídos da certeza de que gerações mais saudáveise fortes precisavam de mulheres sãs e cônscias deseu compromisso para com a sua prole.

No Brasil, até a década de 40, o futebol nãopossuía uma regulamentação que definisse claramen-te suas regras e normas. De verniz fascista, o gover-no Vargas tratou de estabelecê-las, determinando oque era ou não permitido na prática da modalidade.Esta iniciativa acabou por desembocar no artigo 54do decreto-lei 3.199/1941, do Ministério da Educa-ção: “Às mulheres não se permitirá a prática dosesportes incompatíveis com as condições de suanatureza, devendo, para este efeito, o ConselhoNacional dos Desportos [CND] baixar as necessá-rias instruções às entidades desportivas do país…”.Isto dizia respeito diretamente aos esportes de con-

tato, entre os quais o futebol se encontrava. Aindaem 1965, o mesmo CND normaliza a prática femi-nina de esportes, por meio do item 2 da deliberaçãonº 7, que determina às entidades desportivas brasi-leiras: “Não é permitida [às mulheres] a prática delutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão,futebol de praia, pólo, halterofilismo e baseball”.

Somente em 1979 essas normas foram revoga-das. Nesse largo período uma série de conquistasfoi obtida pelas mulheres, no entanto, era-lhes ain-da oficialmente interditada a prática, dentre ou-tros, do dinâmico e popular esporte bretão.

Isto não significa que as mulheres tenham cum-prido à risca essas determinações, embora a práti-ca do esporte acontecesse de maneira informal,quase como uma recreação ou brincadeira semmaiores conseqüências. No entanto, as escolas nãopodiam oferecer essa opção de modalidade espor-tiva para as meninas nas aulas de educação física eos clubes, da mesma forma, não permitiam a en-trada de mulheres no gramado de seus estádios. Apresença feminina nesses espaços masculinos erafacultada às “misses”, que em diversas oportunida-des serviam como “vasos de flores” para as partidasdos campeonatos estaduais e nacionais de futebol.Surgiam de maiô, roupa de gala ou trajes típicos nogramado de algum estádio, a título de entretenimen-to durante o intervalo das partidas, enfeitando destaforma as masculinas festas esportivas oficiais.

Goool!

A partir dos anos 1980, podemos dizer que ini-ciativas mais concretas para a prática do futebol pelasmulheres tiveram início. O clube Radar, do Rio deJaneiro, tornou-se famoso, e um dos primeiros nacidade a constituir um vigoroso time feminino defutebol; o clube Guarani de Campinas igualmenteorganizou um time composto de mulheres. Emboranão houvesse torneios oficiais, apenas jogos amisto-sos nacionais e internacionais, a prática da modali-dade pelas mulheres continuou crescendo.

Entretanto, esses foram anos duros para asjogadoras de futebol, e ainda o são. Apesar do

2 Informações encontradas em: GOELLNER, Silvana Vilodre. O esporte e a espetacularização dos corpos femininos; disponível no sitehttp://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys4/textos/silvana1.htm

PH.FOT.03321.007

Distintas damas da sociedade entregam as faixas de campeão do

Torneio Rio–São Paulo de 1957 aos jogadores do Fluminense;

da esquerda para direita: Clóvis, o goleiro Vitor Gonzalez e

Jair Santana. Rio de Janeiro, 2/6/1957

Page 67: Revista Recine nº 5 - 2008

O LHEM E LAS A Í . . .

reconhecimento que a atual qualificada geraçãode jogadoras recebe de cronistas esportivos e deprofissionais do métier por ocasião das compe-tições internacionais, durante o resto do ano aatenção dada ao futebol feminino pela imprensaesportiva do país e pelas entidades oficiais doesporte é praticamente nula, restringindo-se aoperíodo dos jogos oficiais disputados por elas.

As vitórias e os grandes resultados que elasobtiveram nas disputas mais recentes não evitamcomentários preconceituosos e discriminatóriosproferidos por ocasião de algum erro cometido poralguma jogadora. Comumente escutam-se nas ar-quibancadas pérolas de qualidade duvidosa, como:“Vai enfrentar um tanque de roupa suja!” ou “Porque é que você não vai pilotar um fogão!”. Comen-tários desta magnitude tratam de remeter a mulher“ao seu lugar”, numa demonstração exemplar dopreconceito de gênero impregnado em nosso com-portamento e cultura. Para esses senhores, os luga-res ocupados por homens e mulheres na sociedadesão e devem permanecer sendo diferentes, mesmoque eles estejam em um estádio pagando ingressopara assistir a uma partida de futebol feminino.

Com certeza, homens e mulheres ainda pos-suem uma grande dificuldade em lidar com asalterações e, algumas vezes, inversões de papéisdesempenhados por ambos, e que são reflexo dosnovos arranjos sociais e familiares existentes nasociedade. Os dados sociais e econômicos maisrecentes produzidos pelos órgãos oficiais de pes-quisa no Brasil apontam uma tendência de alte-ração muito rápida na realidade social do país,colocando a mulher em uma posição bastante con-fortável em relação ao homem, quando se tratado número de anos de estudo e do grande au-mento de chefes de família mulheres; embora essatendência se inverta quando consideramos as fai-xas salariais, os cargos de chefia nas empresas eo tempo dispensado aos afazeres domésticos,itens que indicam uma enorme discrepância en-tre homens e mulheres. As mudanças dos índi-ces são rápidas, mas lentamente acompanhadaspelas alterações necessárias nos valores e com-portamento da sociedade.

O SESC de São Paulo, em louvável iniciativa depromover o futebol feminino, publicou em seu siteum artigo que nos oferece uma oportunidade perfeitade exemplificar de forma bastante didática a dificul-dade exposta no parágrafo anterior. Diz a instituição:

“...Quando William Shakespeare escreveu a célebre

frase ‘fragilidade, teu nome é mulher’, com certeza não

imaginou que as mulheres, um dia, fossem ocupar tantos

espaços e até trocar os elegantes saltos altos por pesadas

chuteiras ou luvas de seda por luvas de goleiro. Não é o

caso, porém, de afirmar que as mulheres tenham perdido

o charme [...], mas se deve reconhecer que elas demons-

tram cada vez mais sua habilidade para trabalhar fora,

continuar cuidando dos filhos e da casa, e, ainda, arrumar

tempo para bater uma bolinha nos finais de semana.”3

Se somarmos a este trecho do artigo as referên-cias feitas pelos senhores das arquibancadas sobre olugar da mulher junto ao tanque e ao fogão, observa-mos que ambas as situações não refletem as reaisalterações ocorridas nos últimos dez ou quinze anos,pois suas companheiras freqüentemente contri-buem de forma cada vez mais significativa para orendimento doméstico familiar, quando não são asprincipais provedoras. A divisão sexual do trabalhodoméstico, que seria a contrapartida masculina àparticipação da mulher no mercado de trabalho, nãoé acompanhada e, muito menos, compartilhada pe-los homens. Continuam sendo responsabilidade dasmulheres os cuidados com a casa, com a família,com os doentes, com as plantas, com os animaisdomésticos, com as crianças e os idosos.

Só muito recentemente as entidades esportivasoficiais, aqui as referências são a CBF e a Fifa, co-meçaram a dar atenção às competições femininasinternacionais de futebol. O primeiro campeonatomundial feminino da modalidade foi organizado em1991, e a Confederação Brasileira e as FederaçõesEstaduais de Futebol em nosso país ainda desconhe-cem por completo seus compromissos precípuos coma participação das mulheres neste esporte.

No “país do futebol” os campeonatos de futebolfeminino não são divulgados: não há uma coberturada imprensa que se possa considerar ao menos razo-

3 Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas

Page 68: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

67

ável; as informações sobre os campeonatos não exis-tem e tampouco há qualquer periodicidade nessascompetições. A responsabilidade pela organização dostimes de mulheres é jogada no colo dos clubes, que,por sua vez, são acusados de não se interessarem enão investirem na formação de times femininos, em-bora isso não seja verdade. Somente para citar doisclubes de peso no futebol masculino paulista: o San-tos Futebol Clube e o Guarani de Campinas possuemtimes femininos, embora seja pouquíssima a divulga-ção dada ao futebol das mulheres pela mídia, pelosclubes de futebol e pelas entidades oficiais do esporte– que deveriam zelar pelas práticas esportivas no Bra-sil sem diferença de gênero de qualquer espécie.

Na última Copa Mundial de Futebol Femini-no, realizada na China, em setembro de 2007, ocredenciamento da mídia esportiva brasileira foimínimo. A grande mídia esportiva nacional igno-rou a cobertura da competição, restringindo-se àcompra de imagens e informações de agências in-ternacionais de notícias, a despeito da belíssimacampanha da seleção feminina, que se sagrou vice-campeã do torneio. Cobertura semelhante seria im-pensável se a competição fosse masculina. Já naOlimpíada de 2008, também na China, as mulhe-res obtiveram um resultado melhor do que o doshomens, e mesmo assim esta vantagem continuasendo bem mais tímida do que a repercussão nega-tiva representa pelo fracasso da seleção masculina.

Nesse mesmo ano de 2007, a Fifa estima quecerca de 10 milhões de mulheres jogam futebol pro-fissional no mundo e que em 2010 este número se

igualará ao dos homens, chegando a uma cifra emtorno de 40 milhões de jogadoras – vai ficar cada vezmais difícil ignorar os escretes femininos de futebol.

É possível concluir que o machismo que im-pregna o futebol não permite dedicar um maiorinvestimento na prática feminina do esporte que,apesar disso, vem conseguindo excelentes perfor-mances e algumas classificações melhores do queas da equipe masculina de futebol em campeona-tos pan-americanos e olímpicos.

Raro é o reconhecimento dos talentos femini-nos do esporte, exceção feita à jogadora Marta, arti-lheira dos últimos Jogos Pan-americanos, com 12gols. Ela foi a primeira mulher convidada a registrarseus pés na “Calçada da Fama” do estádio MárioFilho, o Maracanã. Uniu-se, desta forma, a outrosmonstros do futebol brasileiro como Romário, Pelée Zico, para citar somente alguns dentre as centenasde outros geniais jogadores que o Brasil produziu.

Há algum tempo a discussão sobre se a mulherdeveria ou não jogar futebol foi ultrapassada. As mu-lheres se impuseram e hoje jogam bola, está feito! Emesmo que o jogo das mulheres esteja resgatando osaudoso futebol habilidoso e bonito de se ver, a to-talidade dos polpudos recursos financeiros da CBFé destinada ao futebol masculino. A desigualdade dotratamento dispensado às seleções masculina e femi-nina de futebol é abissal. No site da CBF, pesquisadoem 13 de junho de 2008, não há sequer uma referên-cia à seleção feminina de futebol. De forma visível, osite contém unicamente informações sobre a sofrívele duvidosa seleção masculina de futebol.

Embora a sociedade ainda esteja longe de se livrardo estigma da inferioridade da mulher em relação aohomem – construção acalentada com zelo por umasociedade que firmou seus pilares na submissão femi-nina e que necessita repetir à exaustão essa experiênciade dominação e controle permanentes para garantir ostatus quo do exercício do poder masculino –, a incan-sável tarefa das mulheres tem continuidade, sempre epacientemente, como um exército de formiguinhas.

E já que começamos o nosso raciocínio men-cionando o homem de Neandertal, devido à resis-tência de alguns meninos que ainda não desceram dasárvores, aqui vai o convite: – Desçam daí e venhambater uma bolinha com as meninas, partilhando comelas as delícias da diversidade e da igualdade!

PH.FOT.03495.007

Page 69: Revista Recine nº 5 - 2008

Um toque de letrabreve roteiro de fontes textuais sobre futebol

no Arquivo Nacional

T é c n i c o s d aCoordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional. Colaboração de Ana Carolina Reyes, Beatriz Monteiro, Marco André Balloussier,Marcus Vinícius Alves e, especialmente, Mariza Ferreira de Sant’Ana.

Aline Camargo Torres, Leonardo Augusto Silva Fontes e Rodrigo Cavaliere Mourelle

“Sentado no meio-fio,

radiozinho sobre os jo-

elhos, o garoto chora-

va. Bati-lhe de leve no

ombro, para consolá-lo.

Ergueu os olhos mareja-

dos, disse apenas:

– Mas eles vão ver,

quando a gente for

grande!”

Essa é uma das “imagens de

perda” criadas por Carlos Drum-

mond de Andrade ao final da Copa

do Mundo de Futebol de 1966, em

sua crônica intitulada “Jogo à dis-

tância”.1 Parte integrante do acer-

vo do Arquivo Nacional, a crônica

publicada pelo jornal Correio da

Manhã é apenas um dos inúmeros

exemplos de documentos sobre fu-

tebol a preencher os depósitos da

instituição, que é fonte

inesgotável para pesquisas sobre os mais variados

temas, e sob diferentes recortes cronológicos.

Fazem parte deste acervo, primordialmente,

conjuntos documentais de natureza pública, oriun-

dos da instância federal de poder, sejam do Execu-

tivo, Legislativo, Judiciário ou extrajudicial. So-

mam-se a estes os documentos de natureza priva-

da, provenientes de pessoas e entidades cujas tra-

jetórias são consideradas relevantes para o estudo

da história do Brasil. No que tange à documentação

escrita, objeto deste artigo, o volume do acervo é

estimado em 55 mil metros lineares. Isso significa

dizer que, acondicionados vertical-

mente em caixas e, estas, dispostas

lado a lado, os documentos escritos

do Arquivo Nacional ocupariam 55

quilômetros de extensão. Estão aí re-

gistrados aspectos os mais variados

da história política, social, econômi-

ca e cultural do país. O futebol, pai-

xão nacional, também é assunto con-

templado por esses documentos.

No âmbito dos acervos prove-

nientes do Poder Executivo fede-

ral, o esporte se revela em sua di-

mensão política, seja como veícu-

lo de expressão popular e demo-

crática, seja como instrumento sim-

bólico de dominação. Encontram-

se nestes acervos, por exemplo,

importantes associações entre fu-

tebol e o regime militar que vigo-

rou no país entre os anos de 1964

e 1985. A relação entre ambos,

com seus diferentes matizes – que

variavam de acordo com os interesses “em jogo” –,

é evidenciada por diversos documentos.

No acervo da Divisão de Segurança e Infor-

mação do Ministério da Justiça, merece destaque o

clipping de notícias que integra o processo2 sobre o

seqüestro do embaixador alemão por integrantes de

movimentos de esquerda, ocorrido no Rio de Janei-

ro durante a Copa do Mundo de 1970. Manchetes

como “O jogo do seqüestro”, “O xeque do terror

no tabuleiro da Copa” ou “Seqüestro, o jogo do ter-

ror” são bons exemplos do tom que dominou a im-

prensa no período, que em raros momentos deixava

1 BR AN,RIO PH.0.TXT.55. 2 BR AN,RIO TT.0.MCP, Subsérie Processos. Processo Secom 19.418.

Anúncio do filme O football como deveser jogado, publicado no jornal Diário deNotícias, em 1939

BR

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Page 70: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

6 9

de associar os dois eventos. Os documentos permi-

tem entrever a apropriação, pelo regime militar, do

momento de glória nacional propiciado pelo favori-

tismo do Brasil no campeonato, e personificado pe-

los jogadores-heróis da seleção. A este momento é

contraposta a imagem antipatriótica dos seqüestra-

dores, apontados então como inimigos da nação

brasileira. “Pelé, Brito, Rivelino, Clodoaldo e ou-

tros craques”, conforme publicado no Diário de

Notícias dois dias após o seqüestro, “lamentaram

que maus brasileiros, traidores e criminosos, venham

quebrar a tranqüilidade e o entusiasmo da equipe”,

justamente no momento em que se deveria “congre-

gar esforços e aproveitar o memorável trabalho que

a seleção vem fazendo em nome do Brasil”.

Outra fonte documental que associa futebol e

política no acervo da Divisão de Segurança e Infor-

mação do Ministério da Justiça é o processo3 que

trata da realização da Copa do Mundo de 1978, na

Argentina. Em plena vigência da ditadura militar, o

governo argentino demonstrava-se preocupado com

a divulgação da imagem do país no exterior. Tendo

destinado a exígua quantidade de dez mil ingressos

para os torcedores do Brasil, o comitê organizador

do evento pretendia angariar o apoio das autorida-

des brasileiras, no sentido de “desenvolver-se ampla

campanha de dissuasão daqueles que não hajam ad-

quirido previamente seus ingressos”. Segundo o

militar argentino Carlos Alberto Lacoste, vice-pre-

sidente daquele comitê, um “[...] número excessivo

de pessoas, que pretendam ingressar nos estádios

sem a necessária habilitação, certamente constitui-

ria elemento prejudicial àquela imagem”.

No acervo do Serviço de Censura de Diversões

Públicas (RJ), especialmente no que se refere a televi-

são, peças teatrais e letras musicais, encontram-se pa-

receres de censores elaborados durante a vigência do

regime militar no país, recomendando ou vetando obras

que têm o futebol como tema. Muitas dessas obras

utilizavam o esporte como metáfora do cotidiano, dele

se valendo como instrumento de contestação à socie-

dade da época. Peças como Campeões do mundo,4 de

Dias Gomes, e São Jorge no país do futebol,5 de Ire-

mar Brito, são exemplos de textos vetados ou cortados

pelo Serviço de Censura por seu conteúdo de “crítica

ao sistema”. “Coloca[r] o futebol como veículo de en-

torpecimento”, conforme registrado em um dos pare-

ceres, poderia resultar no veto a uma peça teatral.

Dentro da maior instituição arquivística do

país, a documentação sobre futebol concentra-se

nos arquivos de natureza privada.6 Neste univer-

so, além de uma imensa quantidade de exempla-

res e recortes de jornais, cabe ressaltar itens como

relatórios de jogos,7 tabelas de campeonatos,8 car-

tas9 e até um exemplar do livro Na boca do tú-

nel,10 com apresentação de João Saldanha e depo-

imentos de técnicos consagrados como Zagalo,

Telê, Feola, Gentil Cardozo e Flávio Costa.

3 BR AN,RIO TT.0.MCP, Subsérie Processos. Processo Gab 100.519. 4 BR AN,RIO TN.0.2,PT.712. 5 BR AN,RIO TN.0.2,PT.4089.6 Foram consultados os acervos de Afonso Vasconcelos Várzea (IW), Bernardo Fernandes de Brito (2A), Bolsa de Valores do Rio de Janeiro(P8), Célio Borja (Z1), Correio da Manhã (PH), Felisbela Pinto Correia (28), Godofredo Tinoco (TZ), Jota Efegê (TM), Marcos Carneirode Mendonça (U0), Maria Beatriz do Nascimento (2D) e Paulo de Assis Ribeiro (S7). 7 BR AN,RIO IW.0.0.caixa 6, pacote 4 (1951). 8BR AN,RIO IW.0.0.caixa 3, pacote 4 (1950); BR AN,RIO 2D.0.0.caixa 4, item 42 (1970). 9 BR AN,RIO IW.0.0.caixas 7, pacote 1,e 13, pacote 2. 10 BR AN,RIO IW.0.0.caixa 14, pacote 2.

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9.4

18 Matéria publicada no Diário de

Notícias, em 13 de junho de 1970,por ocasião do seqüestro doembaixador alemão no Brasil,Ehrenfried Anton Theodor LudwigVon Holleben

Page 71: Revista Recine nº 5 - 2008

UM TOQUE DE LETRA

Os jornais trazem uma variedade de temas im-

portantes, como as Copas do Mundo,11 a inaugura-

ção do Maracanã,12 futebol feminino,13 racismo,14

violência dentro e fora de campo,15 escândalos de

arbitragem,16 cartolas,17 filmes sobre futebol,18 e ain-

da reportagens sobre Pelé,19 Garrincha20 e uma série

de outros jogadores, técnicos e personalidades do

mundo futebolístico. Torcedores célebres também

têm lugar neste time: é o caso de Tia Helena, chefe

de torcida do Flamengo, que “chegava cedo e senta-

va na arquibancada, torcia sem parar, para escânda-

lo de muita gente, pois naquele tempo [década de

1930-1940] mulher não ia a estádio”.21 Constam

também inúmeras colunas esportivas, poemas22 e

crônicas, dentre as quais merecem menção especial

as de autoria de Carlos Drummond de Andrade.23 A

cobertura jornalística da Copa do Mundo de 1950,

realizada no Brasil, aparece com especial destaque.24

Com matérias de capa empolgantes, principalmente

do Jornal dos Sports, os documentos acompanham

jogo a jogo a expectativa pela conquista do primeiro

título mundial brasileiro, que acabou culminando

na frustração do Maracanazo.

Uma análise sociolingüística dessa documen-

tação também pode ser empreendida. No início

do século XX, período de consolidação do football

no Brasil, o idioma inglês imperava na cobertura

jornalística dos matches realizados entre os teams

– talvez devido à sua feição ainda elitista neste

momento. Uma edição de 1946 do Diário de No-

tícias relata a luta do professor Alcides Carlos

D’Aranchy “pelo triunfo de um ponto de vista bra-

silista, qual seja o de dar ao vocábulo ‘foot-ball’,

que degenerou para ‘futebol’, um termo legítimo

em face das tradições do nosso idioma”.25

As expressões relacionadas ao desporto adquirem

um ar mais lusófono nas décadas seguintes, concomi-

tantemente com a sua popularização como atividade

profissional e de lazer. Tal fato aparece numa edição

domingueira do Jornal dos Sports de 1966, em que

Felisbela Pinto Correia, sob o pseudônimo de Belis-

la, faz espirituosa análise sobre esta mudança: “Apor-

tuguesou-se a terminologia futebolística, algumas ve-

zes sem fugir do anglicismo, outras em tradução exa-

ta ou aproximada. O ‘goal’ passou a ser ‘tento’, o ‘full-

back’ chama-se ‘zagueiro’ e o ‘goal-keeper’ quando

não ‘goleiro’ denomina-se ‘guardião’ ou ‘guarda-vala’.

Tudo na singeleza que deve ter um esporte popular

que enche campos, que tem a animá-lo torcida orga-

nizada com charanga e serpentina”.26

A relação entre letras e futebol pode se revelar

uma caixinha de surpresas. Quem diria que o maior

goleador mundial da primeira metade do século,

Arthur Friedenreich, era um craque com a caneta

nas mãos? Convidado pelo Diário Carioca para

criticar a película O football como deve ser joga-

do, em 1939, El Tigre termina por defendê-la: “A

todos que amam verdadeiramente esse sport, e o

11 BR AN,RIO U0.0.0. códices 135, 154 e 155; BR AN,RIO PH.0.TXT.1051. 12 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 1. 13 BR AN,RIOPH.0.TXT.1947. 14 BR AN,RIO TM.0.RJO,ATI.4.1.14. 15 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 5 (Diário de Notícias: 18/9/1945, 27/9/1945, 31/10/1945, 25/7/1946, 21/11/1947). 16 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 5 (Diário de Notícias: 10/8/1946). 17 BR AN,RIOTM.0.RJO,ATI.4.1.435. 18 BR AN,RIO TM.0.RJO,ATI.4.1.146; BR AN,RIO PH.0.TXT.2167; BR AN,RIO PH.0.TXT.2916;BR AN,RIO IW.0.0.caixa 7, pacote 1 (26/11/1939). 19 BR AN,RIO U0.0.0. códice 135. 20 BR AN,RIO U0.0.0. códice 136.21 BR AN,RIO PH.0.TXT.5085. 22 BR AN,RIO PH.0.TXT.8334. 23 BR AN,RIO PH.0.TXT.24; 55; 10270; 10272. 24 BRAN,RIO 2A.0.0.caixas 1, 4 e 7. 25 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 5. 26 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 1 (18/3/1966).

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13

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p.1Carta de

ArthurFriedenreichanalisando o

livro O futebole sua técnica,

de MaxValentim

Page 72: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

7 17 1tituem três importantes conjuntos documentais

pertencentes ao Arquivo Nacional.

Em relação aos acervos oriundos do Poder Judi-

ciário e extrajudicial, merecem destaque os regis-

tros de clubes como Vasco da Gama, Botafogo, Flu-

minense e Flamengo, efetuados respectivamente nos

anos de 1906, 1914, 1915 e 1916 – posteriores à

sua efetiva fundação.29 Os documentos relativos ao

registro dessas entidades, consideradas então como

de caráter “recreativo”, podem ser encontrados no

acervo do Primeiro Ofício de Registro de Títulos e

Documentos.30 A condição amadora do esporte em

terras brasileiras modificou-se na década de 1930,

primeiro em São Paulo e logo depois no Rio de Ja-

neiro – quando houve movimentos favoráveis e con-

trários à sua profissionalização.31

Como se pode ver, o futebol se encontra refle-

tido no acervo da instituição das mais diferentes

maneiras. Poderia parecer curioso o fato de que

não se tenham encontrado, no decorrer da pesqui-

sa, documentos referentes à Copa do Mundo de

1958. Isso, contudo, apenas evidencia que o levan-

tamento de fontes ora apresentado não se deu de

maneira exaustiva – o que, considerando o expres-

sivo volume do acervo, demanda-

ria muito mais tempo que o dis-

ponível. A correspondência que

integra diversos conjuntos docu-

mentais privados, por exemplo,

não foi aqui analisada. Acredita-

se que, por seu caráter pessoal e

pela multiplicidade de assuntos

que comumente encerra, essa cor-

respondência se revelaria impor-

tante fonte de investigação, mere-

cendo assim atenção mais detida.

As possibilidades de pesquisa so-

bre futebol no acervo documental

escrito do Arquivo Nacional, por-

tanto, não estão de forma alguma

esgotadas. Afinal, no campo da his-

tória e das informações, o jogo não

acaba nem quando termina...

27 BR AN,RIO IW.0.0.caixa 7, pacote 1 (26/11/1939). 28 BR AN,RIO IW.0.0.caixa 13, pacote 3. 29 Ver FONSECA, Vitor ManoelMarques da. No gozo dos direitos civis: associativismo no Rio de Janeiro, 1903-1916. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/Muiraquitã,2008. 30 BR AN,RIO 66. 31 BR AN,RIO 2A.0.0.caixa 5 (Diário de Notícias, 6/2/1946).

cultivam ou acompanham com emoção, chamo

atenção para as novidades contidas nas partes rela-

tivas a movimento de defesa e de ataque, bem como

naquelas referentes às táticas de conjunto e à ma-

neira de treinar os quadros”.27 E numa carta a Max

Valentim (pseudônimo de Afonso Vasconcelos Vár-

zea), datada de 1° de maio de 1941, em que co-

menta o livro deste sobre futebol, Friedenreich

confessa que lhe “deliciam, também, as considera-

ções de ordem histórica, aquelas que explicam tão

claramente a evolução do futebol, sem esquecer os

episódios ligados à [sua] atuação nas canchas”.28

Como se vê, o artilheiro jogava nas onze.

Outro jogador de talento nas letras foi Mar-

cos Carneiro de Mendonça. Goleiro do América,

do Fluminense e da primeira seleção brasileira,

Marcos foi também historiador, tendo adquirido

por compra, em Portugal, documentos pertencen-

tes ao vice-rei marquês do Lavradio, e ao Gabine-

te de d. João VI no Rio de Janeiro. Estes, junta-

mente com o arquivo pessoal do goal-keeper, cons-

BR

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2

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9

Medidas do campo de futebol do PorcelanasFutebol Clube, em 30 de março de 1954

Após encerrara sua carreira comogoleiro, Marcostrabalhou comohistoriador e foieleito para aAcademia Brasileirade Letras, masnunca abandonouo Fluminense, tendosido seu presidenteno período dobicampeonatocarioca, em 1940e 1941.Rio de Janeiro,em 10/4/1970

Page 73: Revista Recine nº 5 - 2008

A prontidão para a violência

a margem terceira do futebol

Pesquisador do Arquivo Nacional, escritor, diretor de teatro, psicanalista. Doutor pela Johns HopkinsUniversity. Professor adjunto da UERJ.

Gerson Noronha Filho

“A vitória é a prova dos nove

Gerson Noronha Filho

“Drain the blood from men’s veins and put

in water instead, then there will be no more war1”

Guerra e paz, de Leon Tolstoi

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12

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0

“Briga entre jogadores do Santos e do Botafogo,originada pelo desentendimento entre o zagueirobotafoguense Thomé e o ponteiro santista Pepe, depoisdeste ter conquistado o 1º gol do Santos de pênalti eque terminou com a expulsão de Thomé e de Pelé...Torneio Rio–São Paulo. São Paulo, 4/3/1958

Page 74: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

7 3

Intróito

O futebol, paixão planetária e ao mesmo tem-

po familiar, porque descarta explicação, é um pa-

limpsesto, uma narrativa aberta2 a muitas inter-

pretações e leituras. Este ‘multifacetamento atra-

tivo’, capaz de satisfazer muitas necessidades ma-

teriais, simbólicas e imaginárias tanto do merca-

do quanto dos consumidores, envolvidos e estu-

diosos, explica e impulsiona seu crescimento cons-

tante, desde a sua criação, no final do século XIX.

Invenção da fase de ouro (1862) do Império An-

glo-Saxônico, o futebol é, junto do escotismo,

movimento de ‘recrutamento paramilitar juvenil’

criado por Baden-Powell (1857-1941), uma das

mais interessantes e brilhantes encenações das

saudosas épocas heróicas e épicas da expansão

colonial, quando a população civil excedente da

Inglaterra era obrigada a participar com suas vi-

das das ações militares para a implantação de um

mercado capitalista em escala mundial.

O palimpsesto

Os estudiosos da linguagem, da narrativa e

da marca internacional chamada futebol, o es-

porte competitivo profissional e amador mais

jogado e amado no mundo, estão sempre defen-

dendo, criticando ou desvelando novas interpre-

tações para o lugar que este jogo ocupa no mun-

do. Podemos assinalar as seguintes leituras sem

que esta lista esgote o entendimento do unhei-

mlich (estrangeiro, estranho):

(1) Esporte

(2) Entretenimento

(3) Religião (da classe operária inglesa [Ho-

bsbawm])3

(4) Cidadania4

(5) Alienação5

“[...] tudo sucumbe à despolitização e à desqualifi-

cação dos conteúdos culturais, substituídos, no mun-

do do espetáculo massificado e mercantilizado, pelo

vazio do mais difundido dos jogos de bola. Assim, o

futebol, que já serviu ao populismo, ao fascismo e ao

totalitarismo, serviria agora ao totalitarismo do poder

econômico, que lhe dá o seu rematado alcance mundi-

al, e presta-se a promover a aceitação conformista do

trabalho alienado, a mentalidade do puro rendimento,

a competição brutal, a agressão, o sexismo, o fanatismo,

o bairrismo, o ativismo irracional das torcidas, o despre-

zo pela inteligência e pelo indivíduo, o culto dos ído-

los, a massificação, o autoritarismo, a fusão mística nos

coletivismos tribais [dos times], a supressão do espírito

crítico e do pensamento independente.”6 (Grifos meus)

(6) Campo de aprendizado

(7) Teatro profano7 (onde o coro é a platéia, os

atores os jogadores, e o diretor o técnico do time)

1 Drene o sangue das veias dos homens e ponha água em vez disso, então não haverá mais guerra. 2 ECO, Umberto. Obra abierta.Tradução de Roser Berdagué. Barcelona: Ariel, 1979. 3 WISNIK, José Miguel. Veneno remédio. O futebol e o Brasil. Companhia dasLetras: São Paulo, 2008, p. 55. 4 Conceito defendido por Nicolau Sevcenko, citado em WISNIK, José Miguel, p. 211. 5 SEBRELI, JuanJosé. La era del fútbol. Buenos Aires: Editora Sudamerica, 1998. Posição também defendida por Lima Barreto (WISNIK, José Miguel,p. 205-212), já que este foi o promotor da Liga Brasileira Contra o Futebol, em oposição aos argumentos do escritor Coelho Neto. 6WISNIK, José Miguel, p. 43-44. Síntese feita por Wisnik do pensamento de Sebreli. 7 Realidade lembrada pela magistral frase dodramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues: “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana”.

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2.1

52

Page 75: Revista Recine nº 5 - 2008

A PRONT IDÃO PARA A V IOLÊNC IA

(8) Teatro popular8

“Com a casa cheia [estádio do Maracanã] (mais de

cem mil pessoas), entraram em cena os 22 elementos (onze

dos quais cedidos por produtores paraguaios) e, segundo

os mais avançados preceitos do teatro épico de Brecht,

toda a função gozou da mais entusiástica participação da

platéia, que por vezes exultava ante a revelação de marca-

ções inesperadas por parte de alguns atores, enquanto que

por outras julgava ser capaz de superar a planificação dos

diretores, sugerindo a plenos pulmões, qual deveria ser a

atitude deste ou daquele intérprete [...] O elenco da CBD

evidenciou as falhas que caracterizam todos os all-star casts:

pouco habituados a atuarem juntos, fizeram-se notar, é

preciso dizer, mais por seu valor incontestável do que pela

fluidez do conjunto.”9 (Grifos meus)

“O clima de uma disputa de final de campeonato

de futebol traz em si qualidades dramáticas de primeira

ordem para o estabelecimento de um conflito realista.”10

“O teatro [...] precisa encontrar a fórmula brasileira

sem a qual nunca alcançará inteiramente o povo, e pla-

téia de teatro tem de ser formada por muita gente, gente

de todas as camadas sociais, da mesma forma que a do

futebol, e, como no caso do futebol, gente que entende

das regras, que reconhece o bom do mau jogo, gente a

quem a “pelada” não convence e a quem, infelizmente, a

“chanchada” muitas vezes engana.”11 (Grifos meus)

(9) Escrita apolínea e dionísica12

“Drama construído para estimular o coração [Pas-

cal], o terror e a piedade [Aristóteles], o êxtase, o entu-

siasmo, a purgação e a purificação das mentes (káthar-

sis) e para reforçar a via racionalista [Descartes].”

(10) Gênero dramático13 para as massas de

espectadores regressivos14

(11) Narrativa épica-trágica15

(12) Hubris da eufemização da barbárie da

perfeição16

(13) Celebração da Lei17

“[...] o futebol é, no fundo, a celebração da vigência

da Lei humana. É o juiz quem, entre os jogadores, con-

duz a partida e as possibilidades que esta apresenta. [...]

A vitória é buscada, mas deve ser obtida dentro da Lei.”

(14) Futebolização18

(15) Emplasto Brás Cubas19

“Para além do bem e do mal, o futebol brasileiro

insiste, desafiadoramente e ironicamente, como o em-

plasto Brás Cubas que deu certo [como o próprio Ma-

chado de Assis, o mulato que deu certo] [...] testemu-

nhou [...] uma das mais originais propostas do nosso

esboço de civilização: a respiração fora do produtivis-

mo sem trégua, a capacidade de comunicação entre

lógicas múltiplas, e a leveza profunda.” (Grifos meus)

(16) Veneno20

(17) Guerra, briga, em que o noves fora é a

operation (Bacon), o proceder eficaz, a vitória.

A violentização das mentes

Nesta última leitura (17), o futebol, luta entre

clãs totêmicos, proporciona, simultaneamente, uma

intensa descarga e sublimação das pulsões de ‘domi-

nação e agressão’, via o gozo do usufruto de uma

simulação simbólica de guerra que pode ser confir-

mada pelo uso extenso de termos vindos da área

8 HELIODORA, Bárbara. Escritos sobre teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 259-260. Posição também defendida por Oswald deAndrade e Mário de Andrade, citados por WISNIK, José Miguel, p. 235. 9 HELIODORA, Bárbara, p. 259-260. Crônica sobre o jogoBrasil x Paraguai, publicada no Jornal do Brasil, em 24 de abril de 1962. 10 Ibidem, p. 490. 11 Ibidem, p. 642. 12 BRANDÃO,Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 11-12. Esta noção do futebol apolíneo (prosa) e dioníseo(poesia) foi trazida pelo cineasta Pier Paolo Pasolini, citado no livro de Wisnik (p. 15). 13 Conceito explicitado por Theodor W. Adornoem “O fetichismo na música e a regressão da audição” (Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 101) aplicado aosexpectadores dos jogos de futebol: “Os ouvintes regressivos apresentam muitos traços em comum com o homem que precisa matar o tempoporque não tem outra coisa com que exercitar o seu instinto de agressão.” (Grifos meus). 14 ADORNO, Theodor W., p. 101. 15Declaração do jogador turco Deivid antes de uma partida para as quartas-de-final da Liga dos Campeões da Europa 2008: “Vamos jogaraté a morte e a melhor equipe vai estar nas semifinais”. 16 Expressão feliz de Eduard Steurmann citada em “O fetichismo na música e aregressão da audição”, em ADORNO, Theodor W., p. 86. 17 JORGE, Marco Antonio Coutinho. Efusiva e exemplar celebração da lei.Valor Econômico, São Paulo, 16, 17 e 18 jun. 2006. Eu & Fim de Semana, p. 13. 18 Noção introduzida por Wisnik com a globalizaçãodeste esporte patrocinada pela Fifa. WISNIK, José Miguel, p. 350. 19 Ibidem, p. 430. 20 Ibidem, p. 40.

Page 76: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

7 57 5

militar: (a) ataque, (b) defesa, (c) tática, (d) estraté-

gia, (e) “feras”, (f) inimigo, (g) guerra, (h) treina-

mento, (i) tiro, (j) campo, (k) capitão, (l) artilheiro,

(m) tiro de meta, (n) petardo e canhão, (o) poder de

fogo do time, (p) “morte súbita”, (q) aríete (o cen-

troavante funciona como um aríete), (r) defensor,

(s) atacante. O futebol, portanto, é a encenação de

uma ‘luta de tudo ou nada’, uma arena em miniatu-

ra das brigas do mundo repetida muitas vezes por

ano, na forma de campeonatos (guerras) nacionais e

mundiais. O que chama mais a nossa atenção é o

quanto este ‘efeito’ mantém uma prontidão para a

violência que facilita o recrutamento – quando se

fizer necessário – de pessoas dóceis a esta opção de

resolução dos conflitos internos ou externos.

Percebemos, também, com nitidez a evidên-

cia dessa função quando ocorre uma prorroga-

ção das partidas. Neste momento, há uma eleva-

ção da tensão para um limite mais alto, a ‘bata-

lha’ se prolonga para além das expectativas dos

técnicos (comandantes), jogadores (soldados) e

expectadores (a população civil). A carga de pra-

zer antecipada de usufruto (tempo de batalha =

tempo de jogo) é esticada e, nesta situação tipi-

camente dramática, se percebe o quanto de

exaustão – de descarga máxima – se exige dos

envolvidos. Nessas circunstâncias, exige-se um

plus dos jogadores: exige-se que sejam super-

homens, que joguem além de suas forças, numa

forma explícita de crueldade próxima do sadis-

mo. Wisnik, por exemplo, defende esta ‘função’

do futebol aproveitando-se dos conceitos psica-

nalíticos (Freud, Lacan) e de uma série de auto-

res estrangeiros: Eric Hobsbawn, Terry Eagle-

ton, Michel Houellebecq e Augusto Comte.

“Terry Eagleton, observando por sua vez a pulveri-

zação contemporânea da vida social num turbilhão anó-

dino de culturas particulares e pontuais, diferencia desse

quadro o ‘significado político extraordinário’ do esporte

e, em particular, do futebol: ‘basta pensar em como seria

transformada a paisagem social e política britânica se não

mais existisse o futebol para fornecer às pessoas a tradição,

o ritual, o espetáculo dramático, o senso de existência cor-

porativa, a hierarquia, a lealdade, a agressividade selva-

gem, o combate gladiatório, o espírito de rivalidade, o

panteão de heróis e a apreciação de habilidades estéticas

que fazem falta tão grande ao cotidiano capitalista.’”21

“Eric Hobsbawn observou, recentemente, que o ‘fute-

bol carrega o conflito essencial da globalização’, suportando

de maneira paradoxal, talvez como nenhuma outra instân-

cia, a dialética entre as entidades transnacionais, seus empre-

endimentos globais e a fidelidade local dos torcedores para

com uma equipe. A globalização consegue depauperar os

campeonatos locais em países periféricos onde eles sempre

foram fortes, como os do Brasil e da Argentina, e não conse-

gue extinguir, até aqui, a forte demanda pela representação

nacional contra a sua descaracterização globalizada.”22

“Há um ponto no qual Augusto Comte contrasta

muito agradavelmente com a quase totalidade de seus

contemporâneos, Hegel, é claro, mas também a maioria

dos românticos: é o desprezo constante com que ele trata

Napoleão. Ele o qualifica tanto de ditador retrógrado quan-

to de fantoche militarista.

Para Comte, a epopéia napoleônica é algo sórdido, que

constituiu pura e simplesmente uma perda de tempo, um

retardamento da transição entre a era militar e a era industrial.

Na era militar, o principal meio de que uma população dis-

punha para aumentar seu nível de vida era invadir o territó-

rio de seus vizinhos. Na era industrial, a guerra, pensa Comte,

deve normalmente tornar-se econômica. Ela deve opor em-

presas multinacionais puras, ou empresas menores, pelo me-

nos em parte sustentadas pelo Estado, ao qual estão ligadas.

21 Ibidem, p. 17-18. 22 Ibidem, p. 17.

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Partida entre Brasil 3x1 Uruguai, pela Copa América, noEstádio Monumental de Nuñes. Ao centro, o juiz chilenoCarlos Robles, o preparador físico Paulo Amaral, Bellini eOrlando Peçanha. Buenos Aires, Argentina, 26/3/1959

Page 77: Revista Recine nº 5 - 2008

A PRONT IDÃO PARA A V IOLÊNC IA

Essa situação, supondo que esteja totalmente realiza-

da, como é o caso na Europa há várias décadas, não pode

deixar de causar frustrações. A concorrência econômica só

pode na verdade ser suficientemente excitante para aque-

les, forçosamente uma parte ínfima dos funcionários da

empresa, que realmente participam de suas apostas.

Enquanto a guerra aumenta a taxa de adrenalina não

somente dos generais, mas também dos simples soldados.

Arriscar a vida é excitante. Matar os outros é excitante. O

homem ama o combate. [...]

O desejo de violência [Freud] no homem, em parti-

cular seu desejo de violência coletiva, seu lado animal de

rebanho, se satisfaz diante das revoluções e das guerras. Se

as revoluções e as guerras, como previa Augusto Comte,

acabassem por desaparecer totalmente, dando lugar ao

consenso liberal e a guerras limitadas ao campo econômi-

co, seria necessário encontrar um canal de escoamento

para esse desejo de violência.

Parece-me que esse canal já foi descoberto, na realida-

de. E obtém um sucesso crescente no conjunto do plane-

ta. É o futebol. O futebol permite uma liberação de adre-

nalina real, embora menos poderosa que a do combate

físico efetivo. Mas oferece, além disso, um espetáculo pal-

pitante, de um suspense claramente mais forte que o de

qualquer produção cinematográfica imaginável, enquan-

to a guerra real é na maioria das vezes relativamente ente-

diante. Assim como na vida, há muito tempo morto [...].

O futebol permite, pelo menos na ocasião das

Copas do Mundo, a reconstituição da identidade naci-

onal lúdica, porque temporária e facultativa, portanto

tem um caráter de distração, cada vez mais evidente, na

medida em que continuará dissipando as identidades

nacionais pesadas. Aquelas que antes serviam para ini-

ciar e conduzir as guerras.”23

O futebol como espetáculo guerreiro e dionisíco

faz – naturalmente – uma competição superior com o

cinema hollywoodiano, empobrecido por sujeitar-se

cada vez mais às leis do mercado (lucro) e da ditadura

do melodrama, proposta estética mais conhecida pe-

los consumidores pela marca do “final feliz”.24

A prontidão para a violência

A repetição ‘educativa e deseducativa’ dessas ‘guer-

ras’ nacionais e mundiais, encenadas pelos jogos de fute-

bol, mantém nas pessoas envolvidas com este esporte, a

maioria jovens, – de forma consciente e inconsciente –

uma prontidão para a violência: já que a narrativa exige

que o ‘conflito’, ‘a luta’ entre os dois times sejam reduzi-

dos simbolicamente à equação: ou eles ou nós. Para ‘as-

sassinar’, ‘matar’ sem culpa este outro (o time adversá-

rio), o time “guerreiro” (vencedor) opera uma inversão

simbólica: passa este “igual” para a posição de inimigo,

isto é, conjunto de seres desprezíveis e desumanizados.

Esta conscientização, ‘tático-simbólica’, naturalmente,

facilita a ‘vitória’ sobre o outro.

Desumanizando o outro posso derrotá-lo e hu-

milhá-lo sem (muitas) culpas porque este ‘outro’

não existe como nós. Esta ‘conscientização tático-

simbólica’ da narrativa do jogo, como se sabe, é

um dos ingredientes essenciais para o recrutamen-

to de pessoas violentas para participarem de ins-

tituições com o poder legal do uso da violência

(forças armadas, polícia) e uma das explicações

do baixo nível de ‘livre arbítrio’ que vemos nos

momentos de ‘mobilização de mentes e corações’

para aceitarem a idéia de uma guerra. A ‘manipu-

lação’ das massas, por exemplo, já foi assinalada

faz tempo por Freud, em Psicologia de las masas

y analisis del yo (Psicologia das massas e análise

do eu). O que estamos a hipotetizar, apostar, é

que esta ‘facilidade’ vem sendo ajudada na mo-

dernidade pela ‘narrativa’ do futebol:

“Hemos partido del hecho fundamental de que el

individuo integrado en una massa experimenta bajo la

influencia de la misma, una modificación a veces muy

profunda, de su actividad anímica. Su afectividade que-

da extraordinariamente intensificada y, en cambio, no-

tablemente limitada su actividad intelectual. [...] Inten-

taremos, pues, admitir la hipótesis de que en la esencia

del alma coletiva existen también relaciones amorosas.”25

23 HOUELLEBECQ, Michel. Conferência feita em Porto Alegre com o título “A nostalgia das estrelas”. Texto integral coligido pelaFolha S. Paulo. Folha Online, 3 fev. 2008. 24 XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac Naify, 2003. 25 FREUD,Sigmund. Obras completas. Tradução de Lopez-Ballesteros. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973, tomo III, p. 2575-2577. Partimos dofato fundamental de que o indivíduo integrado em uma massa experimenta sob a influência desta uma modificação muito profunda desua atividade anímica. Sua afetividade intensifica-se extraordinariamente, mas, em compensação, fica notavelmente limitada suaatividade racional. [...] Tentaremos, portanto, admitir a hipótese de que na essência da alma coletiva existem também relações amorosas.

Page 78: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

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Page 79: Revista Recine nº 5 - 2008

A PRONT IDÃO PARA A V IOLÊNC IA

“Aceptamos la muerte [real, encenada ou simbóli-

ca como num jogo de futebol] cuando se trata de un

extraño o un enemigo [time], y los destinamos a ella

tan gustosos y tan sin escrúpulos como el hombre pri-

mordial [...] [porque] en la historia primordial de la

Humanidad domina, en efecto, la muerte [vitória] vio-

lenta [...] esta tesis que el psicoanálisis formula atrae

sobre ella la incredulidad de los profanos, que la recha-

zan como una simple calumnia insostenible.”26

Em El porque de la guerra (1932), Freud vai

mais além e vaticina que “una comunidad hu-

mana se mantiene unida merced a dos factores:

el imperio de la violencia y los lazos afectivos”27

numa concordância com Hobbes (1651): “So the

nature of war consisteh not [only] in actual figh-

ting, but in the known disposition”.28

Bem antes, Shiller (1792) já tinha aberto este

veio da glamourização estética da violência –

mantida pelos esportes competitivos como o fu-

tebol – ao escrever sobre a tragédia:

“Quanto mais terrível o adversário, tanto mais glo-

riosa a vitória. Só a resistência pode tornar visível a

força. Do que se segue que só num estado [num jogo]

violento, em luta, pode se manter a suprema consciên-

cia da nossa natureza moral, e que o máximo prazer

moral sempre virá acompanhado da dor.”29

Conclusões

O futebol é sempre como uma promesse de

bonheur (promessa de felicidade) e uma chance

de have a good time (ter um bom momento) na

observação de um drama circunscrito por regras

(leis) e pelo “isolamento” territorial que as es-

truturas dos estádios realizam com o “mundo

exterior” e o “palco” onde ocorre o confronto

entre dois times. No correr desta narrativa de

luta colocada como espetáculo para os expecta-

dores, vê-se uma sucessão de ações, peripécias,

reviravoltas, enlaces e desenlaces que desembo-

cam num epílogo caracterizado por uma cadeia

de díades extremamente significantes e simbóli-

cas, tanto como expressão de guerra quanto da

manutenção da prontidão para a violência: (1)

vencer e ser vencido, (2) vida e morte, (3) glória

e desgraça, (4) apoteose e humilhação, (5) ganho

(financeiro) e perda, (6) gozo e agonia, (7) deci-

sões e indecisões, (8) completude e vazio, (9)

salvação e condenação e (10) poesia e prosa.30

A assimilação, aceitação e manutenção (a-crí-

tica) pelos expectadores (torcedores) destas bipola-

ridades constroem uma interessante e oportuna

societária “prontidão para a violência”, tanto in-

terna quanto externa. Assim como os ‘príncipes’

não devem ter outro objetivo nem outro pensamen-

to, nem ter qualquer outra coisa como prática, a

não ser a guerra, o seu regulamento e sua discipli-

na, porque essa é a única arte que se espera de

quem comanda,31 uma parcela da população (prin-

cipalmente torcedores na faixa etária entre 17e18

anos) está sempre à disposição (em prontidão) para

um acting out violento porque já tem a sua cabeça

feita pela narrativa do ou nós ou eles inculcada pelo

futebol. Naturalmente, não existe nas sociedades

modernas só os esportes competitivos com esta

tarefa ‘secreta’ de manterem este estado psicológi-

co de prontidão para a violência, outras institui-

ções também realizam o mesmo (des)trabalho de-

sumanizador: (1) as escolas segregacionistas sejam

de gênero, de raça, credo, religião; (2) as religiões

não ecumênicas e fundamentalistas; (3) as organi-

zações secretas e (4) as mídias e os textos xenófo-

bos, ‘marrons’, sectários, estimuladores de qual-

quer apartheid ou desumanização dos ‘diferentes’.

26 Ibidem, tomo II, p. 2112-2115. Aceitamos a morte quando se trata de um estranho ou de um inimigo [time adversário], e nosdedicamos a matar com tanto prazer e sem escrúpulos como o homem primordial [...] na história primordial da Humanidade impera, semdúvida, o assassinato violento [...] esta tese que a psicanálise formula atrai para ela a incredibilidade dos leigos que a repudiam como umasimples calúnia insustentável. 27 Ibidem, tomo II, p. 3211, 2563-2610. Uma comunidade humana se mantém unida graças a doisfatores: o império da violência e dos laços afetivos. 28 HOBBES, Thomas. Leviathan. Chicago: Britannica Great Books, 1952, p. 85. Anatureza da guerra consiste não só no próprio processo de luta, mas na sua disposição, no estar-se pronto para a guerra. 29 SCHILLER,Friedrich. Teoria da tragédia. Tradução de Flávio Meurer. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1992, p. 21. 30 PASOLINI,Pier Paolo. O gol fatal. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 mar. 2005. Caderno Mais, p. 4-5. Tradução de Maurício Santana Dias.Originalmente publicado no periódico italiano Il Giorno, em 3 de janeiro de 1971. 31 MACHIAVELLI, Niccolo. O príncipe. Traduçãode Lívio Xavier. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 2000, p. 97.

Page 80: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

7 9Como se sabe, uma das mais antigas estratégias de

‘convencimento’ de uma pessoa para que aceite a

idéia de assassinar um outro é a colocação da iden-

tidade deste outro como unidimensional, e não plu-

ral. Sua colocação na condição de ‘inimigo’, de ‘es-

tranho’ (unheimlich). Apesar das suas retóricas

pacifistas e suas apostas de solução negociada dos

conflitos internacionais – exemplificadas nos do-

cumentos apresentados e defendidos pela maioria

das nações nos fóruns internacionais –, os estados

sabem que precisam também estar preparados para

o uso da força, da violência (interna e externa). E

assim, a existência de um “exército de violentos de

reserva em estado de prontidão” nos países – tra-

balhados pelas repetidas re-encenações da narrati-

va do confronto existente nos jogos de futebol – é

peça importante deste outro jogo político chama-

do guerra. A narrativa do futebol, portanto, man-

tém um ‘caldo’ emocional favorável à (des)lógica

da destruição, do assassinato e da eliminação dos

“inimigos” como a via de ouro para a solução dos

conflitos. Este resultado (a prontidão para a vio-

lência), embora não tenha sido concebido pelos

“criadores” e “mandatários” deste esporte, na prá-

tica mantém no futebol um contingente numeroso

de pessoas receptivas a usarem (legalmente ou ile-

galmente) a violência como meio para resolver con-

flitos ou obter riquezas, porque se acostumaram a

‘desumanizar o outro’. Para Amartya Sen32 (Prê-

mio Nobel de Economia) um dos carvões (entre

muitos outros) que alimentam

as guerras atuais é esta ‘miopia’

identitária que transforma os

outros em inimigos.

“Indeed, many of the conflicts and barbarities in

the world are sustained through the illusion of a uni-

que and choiceless identity. The art of constructing

hatred takes the form of invoking the magical power

of some allegedly predominant identity that drowns

other affiliations, and in a conveniently bellicose form

can also overpower any human sympathy or natural

kindness that we may normally have. The result can

be homespun elemental violence, or globally artful vi-

olence and terrorism.”33

“Despite our diverse diversities, the world is sud-

denly seen not as collection of people, but as a federa-

tion of religions and civilizations.”34

“The insistence, if only implicitly, on a choice-

less [nós e eles] singularity of human identity not

only diminishes us all, it also makes the world much

more flammable.”35

Já há algum tempo se sabe o quanto qualquer

simplificação teórica (operários e não operários,

pureza e impureza, útil e inútil, verdade e mentira)

empobrece a análise e a solução dos nossos proble-

mas, como nos advertiu Karl Marx em seu texto de

1875, Critique of the Gotha Programme (Crítica

do Programa de Gotha). Da mesma forma, assim

como ainda não surgiu no mundo rosas sem espi-

nhos, não se pode esperar que um jogo tão multi-

facetado como o futebol só nos dê alegrias. Reco-

nhecer isso, com humor e fair-

play, pode nos ajudar a neutrali-

zar seus defeitos numa manobra

de ‘enamoramento’ mais adulto.

32 SEN, Amartya. Identity and violence: the illusion of destiny. New York: Norton, 2007, p. 30. 33 Ibidem, p. xv. Muitos dos conflitose das barbaridades existentes no mundo são mantidos através da ilusão da existência de uma única identidade, sem possibilidade deescolha. A arte de construir ódios assume a forma da invocação de um poder mágico de uma identidade seguramente hegemônica que afastaoutras afiliações, e numa forma convenientemente belicosa pode suplantar qualquer simpatia humana ou bondade natural que possamoster. O resultado pode ser violência familiar elementar ou a arte da violência global e do terror. 34 Ibidem, p. 13. Apesar de nossasmúltiplas diversidades, o mundo está sendo apreciado não como uma constelação de pessoas, mas como uma federação de religiões ecivilizações. 35 Ibidem, p. 16. A insistência, senão implícita, desta aposta numa identidade singular dada e não escolhida não só nosdiminui a todos como homens, mas também torna o mundo muito mais inflamável.

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Page 81: Revista Recine nº 5 - 2008

Da técnica à táticaDa técnica à táticaDa técnica à táticaDa técnica à táticaDa técnica à tática uma reflexão pedagógica

Doutor em Pedagogia do Movimento pela Unicamp. Pró-reitor acadêmico da Universidade do Futebol, professor doInstituto Adventista de São Paulo, coordenador pedagógico do Projeto Campus Pelé, coordenador pedagógico do Paulínia F.C. e vice-presidente da Associação Futebol Arte.

Alcides Scaglia

Ultimamente, nos grupos de es-tudos que coordeno no Centro deEstudos Avançados sobre Futebol(CEAF), no Paulínia Futebol Clubee na Universidade do Futebol Cor-porativa do projeto Campus Pelé,estamos estudando alguns dossiêssobre treinadores, além dos princí-pios táticos do futebol moderno.

Sobre estes assuntos mais te-nho aprendido do que ensinado.

Lembro-me bem de algumas de-cisões profissionais que tomei emminha vida, especialmente de três: aprimeira, quando decidi parar de jo-gar futebol; a segunda, quando perce-bi que estudar preparação física nãofazia mais sentido (pois estava total-mente contaminado pelas teorias pe-dagógicas/educacionais); já a terceirafoi quando tomei consciência de quenão deveria pensar em ser treinador.

Quando ainda trabalhava comescolinhas de futebol, conseguiaformar bons times, ensinar meni-nos a jogar bem futebol, ensinarmais que futebol... Porém, nas com-petições pedagógicas que desenvol-víamos, recordo-me que meus ami-gos, professores das outras escoli-nhas participantes, mesmo com ti-mes piores, conseguiam ganhar.

Ou seja, mesmo tendo sido jo-gador de futebol profissional e meformado em Educação Física, não

aprendi nada sobre tática ou sobrecomo ser técnico.

O problema será que estavacomigo? Num primeiro momentopensei que sim, mas hoje tenhocerteza que não. O problema, seassim posso dizer, estava no siste-ma, ou melhor, em nosso meiocultural futebolístico.

O brasileiro comum se diz pro-fundo conhecedor de futebol, sem-pre se arvora em criticar técnicos,chamando-os arrogantemente deburros. Reproduz-se, alienadamen-te, em nossa sociedade, o ditadode que no Brasil temos mais de 200milhões de treinadores.

Talvez essa máxima popularfosse correta (ou ainda é) quandose pensava (ou se pensa) o futeboldo indivíduo para o coletivo. In-fluenciados por um entendimentode que o futebol brasileiro é feitode individualidades. Enganados deque é possível ganhar (com susten-tabilidade) o jogo valorizando ape-nas os treinamentos técnicos. Ilu-didos de que o bom jogador é omalabarista com a bola nos pés...Todas essas verdades já há muitocaíram por terra.

Hoje, conhecer futebol é domi-nar alguns princípios táticos quelevem a um entendimento da lógi-ca do jogo. Aprender a ler um jogo

de futebol se aproxima das exigên-cias, em termos de pré-requisitos,da leitura de um jogo de xadrez.

Treinadores como José Peker-man, Alex Ferguson, Rafa Benitez,José Mourinho, Gus Hidding, Ar-sene Wenger, entre outros no exte-rior; Luxemburgo, Scolari, Parrei-ra, para citar os principais nomesnacionais, fazem parte de um sele-to time de ludopédicos enxadristas.

Vivemos um novo período his-tórico na arte de jogar a bola comos pés. Exatamente por isso não épossível comparar o jogo do pas-sado (mais individual e técnico)com o jogo do presente (mais cole-tivo e tático). Por analogia, seriacomo querer comparar uma pinturaimpressionista com uma cubista.

Picasso era um gênio. Monet,Rembrandt, outros. Cada qual noseu estilo. Mas os três produziramo que de mais belo o homem já fezna arte do manejo do pincel emenlace com as cores. Não é pos-sível compará-los. É possível gos-tar mais de um do que de outro,porém cada qual dominou sua épo-ca com seu estilo.

Por este motivo, Parreira foitão injustamente criticado na con-quista de 1994. Nós brasileirosqueríamos comparar um estilo dejogo, que predominou em determi-

Page 82: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

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nada época histórica – expressa naseleção de 1982 –, com a arte mo-derna apresentada pelo Zinho(inadvertidamente apelidado deenceradeira), Romário e sua turma.

Nós não estávamos preparadospara apreciar um novo tipo de arte.Uma arte derivada da Europa, umatendência que aparecia com maisforça na década de 70, e que ficouevidente, ironicamente, depois daCopa de 1982.

Telê Santana, no livro Fio de

esperança, mostra o quanto ele eraum intuitivo visionário, pois foiousado iniciando um processo demodificação em nosso estilo dejogo que culminou na conquista daCopa de 1994.

Quem não se lembra das piadasda personagem Zé da Galera, inter-pretada pelo humorista Jô Soares,que encenava ligar para o Telê, dan-do-lhe conselhos técnico-táticos eterminando com o jargão: “Botaponta Telê!!”. Uma clara alusão aoquanto não jogar com três atacan-tes incomodava os, na época, 180milhões de treinadores brasileiros.

Não curiosamente, no ínterimdas conquistas do tri e do tetra, vi-vemos um momento de transiçãoem que nosso futebol aparentemen-te retrocedeu no que tange à suahegemonia.

No mesmo período começa,intensifica-se e prolifera o êxodo denossos jogadores para o exterior.À medida que mais jogadoresaprendem a arte tática, jogandosegundo a tendência dominanteeuropéia, a arte do nosso selecio-nado vai mudando de estilo.

Conversando com um dos mai-ores estudiosos de tática no Brasil,nosso colunista tático Rodrigo Lei-tão, ele me explicava que a seleçãode Parreira de 1994 aplicava commaestria todos os princípios estru-turais táticos defensivos do futebolmoderno, além de alguns princípiosde transição e ofensivos.

Mas quantos brasileiros enten-diam isso? Quantos aprenderam aler esse novo estilo de arte? Estanova forma de ler e entender o jogo?

Logo, se formos contar novamen-te, talvez dos milhões sobre apenascerca de uma centena de técnicos.

Hoje, a beleza do jogo está natática, e não apenas no malabaris-mo técnico.

Continuo a gostar mais do jeitode jogar apresentado pela seleção de1982 do que a de 1994, porém, seique, se quero continuar assistindofutebol na atualidade, por obriga-ção profissional tenho que apren-der a apreciar a arte do futebol tá-tico contemporâneo.

No momento em que começo aaprender sobre como apreciar estanova arte, e consigo encontrar nojogo de futebol princípios estrutu-rais táticos (ofensivos, defensivos etransitórios), tais como profundida-de, amplitude, mobilidade, penetra-ção, apoio, ultrapassagem, retarda-mento, cobertura, basculação, com-pactação, equilíbrio, recuperação,bloco, direcionamento etc., tambémcomeço a imbricar as teorias peda-gógicas (que transito com mais fa-cilidade) que sustentam minhasações como pedagogo do esporte.

Portanto, vislumbro que qualquerprofissional que almeje ser treinadorou trabalhar no futebol no século XXIdeve dominar estes princípios. Ouseja, deve ter plena consciência deque não será por meio de uma me-todologia tecnicista (que privilegia atécnica) que se adquirirá as habili-dades e competências para um en-tendimento tático dinâmico.

Formar o jogador para o futebolcontemporâneo exige uma metodo-logia que o leve a tomar consciênciade suas ações, a entender os porquêsdo jogo, formando não mais um jo-gador malabarista com a bola nos pés(técnico), mas um atleta inteligente(tático), capaz de se adaptar às dife-rentes exigências, advindas das incer-tezas sistêmicas do jogo de futebol.

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PH.FOT.03479.005

Page 83: Revista Recine nº 5 - 2008

Canto de amore de angústiaà seleção de ouro do Brasil

Poeta.Vinicius de Moraes

Minha seleçãozinha de ouro da

Copa do Mundo de 1962 eu vos su-

plico que não jogueis mais futebol

internacional não porque o ‘meu

pobre coração não agüenta tanto so-

frimento eu juro que prefiro ver vo-

cês disputando só aqui dentro do

gramado nacional porque aqui a

gente já sabe como é e embora eu

torça pelo Botafogo ninguém vai

morrer mas não é mesmo a não ser

talvez o meu bom Ciro Monteiro

quando o Flamengo entra bem por-

que nós somos todos irmãos e briga

entre irmãos se resolve em casa mas

lá fora tudo é diferente eu quase tive

um enfarte eu quase tive uma em-

bolia tinha uma coisa que bulia den-

tro do meu cérebro eu acho que era

o Puskas chutando minha massa cin-

zenta de tanta raiva filho de uma boa

senhora vocês deviam é ter lhe dado

um pontapé no cóccix vá ser oriun-

di ele sabe onde mas você Amarildo

garoto lindo do meu Botafogo você

representou o Rei à altura coitado

do meu Pelé com aquela distensão

na virilha se estorcendo em dores

para maior glória do futebol brasi-

leiro ele é que devia ser primeiro-

ministro do nosso Brasil trigueiro

sabe Pelé eu nunca chamei ninguém

de gênio porque acho besteira mas

você eu chamo mesmo no duro você

e o meu Garrincha que eu louvo a

santa natureza lhe ter dado aquelas

pernas tortas com que ele botou a

Espanha entre parêntesis garoto

bom passou o primeiro passou o se-

gundo o terceiro o quarto chutou

GOOOOOOOOOL DOOO BRA-

AAAASIL que beleza maior beleza

não tem nem pode ter toda essa raça

vibrando com uma dispnéia coleti-

va ah que vasoconstrição mais lin-

da o sangue entrando verde pelo ven-

trículo direito e saindo amarelo pelo

ventrículo esquerdo e se fundindo

no corpo amoroso de pobres e ri-

cos doentes de paixão pela pátria e

até a revolução social em marcha

pára maravilhada para ver “seu”

Mané balançar o barbante e aí ela

prossegue seu caminho inflexível

contente da vida de estar marchan-

do nessa terra em que são todos ir-

mãos até mesmo os que amanhã

podem estar regando com o seu ge-

neroso sangue este solo nativo onde

seremos enterrados enrolados mo-

ralmente na bandeira brasileira ao

som de “Cidade Maravilhosa” mas

como eu ia dizendo não me façam

Page 84: Revista Recine nº 5 - 2008

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83Publicado em Vinicius de Moraes, Para viver um grande amor: crônicas e poemas. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008, p. 155-157. Disponívelem www.viniciusdemoraes.com.br.

mais aquilo do primeiro tempo com

a Espanha porque senão vai ter um

poeta a menos no mundo eu sei que

poeta não resolve não dribla não en-

caçapa a não ser o Paulinho Men-

des Campos a gente fica só mesmo

é driblando a angústia o medo o

amor a morte poxa eu estou agora

meio doente acordo em sobressal-

tos eu acho que nem vou poder ou-

vir o jogo final senão eu faço feito

aquele cara que estourou a cabeça

contra um poste no fim do primei-

ro tempo com a Espanha porque é

demais tanta ansiedade eu já não

sou criança as coronárias não agüen-

tam brasileiro é mesmo sentimental

a gente chora porque a vida dói mui-

to em nós conforme disse o Carli-

nhos Oliveira aqui não tem Mari-

enbad não é tudo gleba feita do bar-

ro natal e lágrimas de amor até grã-

fino sofre e é capaz de não ir ao “Ji-

rau” para ver Didi mestre sereno

da arte do balipédio Einstein da

folha-seca ou então os Professores

Nilton e Djalma Santos que preci-

sam ser canonizados porque nunca

pensam em si mesmos só em Gil-

mar pobrezinho mais sozinho do

que Cristo no Horto no meio da-

quele retângulo abstrato no vórtice

do qual se esconde o hímen da pá-

tria-menina que todos nós havemos

de defender até a última gota do

nosso sangue dá-lhe San Thiago

porque olhe que eu sou até um cara

que não é dessas coisas mas juro

que estou ficando com uma xeno-

fobia de lascar é só de me lembrar

do Puskas vou até tomar um tran-

qüilizador senão eu dou uma bom-

ba aqui nesta máquina de escrever

que vai ser fogo e aí morro porque

eu não agüento mais tanta agonia

por favor ganhem logo e voltem para

casa com a Taça erguida bem alto

para a transubstanciação do nosso

e do vosso júbilo o Rio de Janeiro

a vossos pés e muito papel picado

caindo das sacadas da avenida Rio

Branco e da cabeça dos políticos é

só o que eu lhes peço voltem por-

que senão a revolução em marcha

não caminha ela fica também encan-

tada com a vossa divina mestria e

por favor poupem o coração deste e

de setenta milhões de poetas cuja

vida pulsa em vossos artelhos en-

quanto vos dirigis para a vitória fi-

nal inelutável com a ajuda de Nossa

Senhora da Guia nosso pai Xangô e

“seu” Mané Garrincha Olé!PH.FOT.01561.017

Page 85: Revista Recine nº 5 - 2008

O dramadas sete copas

Nelson Rodrigues

O primeiro Campeonato Mundial foi em1930. Ora, naquele tempo, o brasileiro era umvira-lata entre os homens e o Brasil um vira-lataentre as nações. Tínhamos futebol, tínhamos ta-lento, tínhamos gênio. Mas nenhum de nós acre-ditava em nós mesmos. Do nosso lábio, pendiaa baba elástica e bovina das humildades abjetas.

Lá fomos nós para Montevidéu. Eis a casta, asingela verdade: – já trazíamos a derrota encrava-da na alma. Ainda por cima, o Brasil não levoutodo o seu poderio. Os paulistas não foram e oque se viu, na primeira Copa, foi o nosso futebolmutilado, ou, para ser mais exato, pela metade.Convém insistir no óbvio e lembrar que o futebolbrasileiro é um centauro de Rio e São Paulo.

Bem me lembro do nosso escrete. Dizer queera mau, não é verdade. Era bom. O brasileiro,porém, não se sabia genial. Diante do estrangei-ro, tremia nos seus alicerces. De mais a mais,não tínhamos nenhuma espécie de organização.Hoje, se o craque tem uma dor de dentes, apare-ce o dentista; uma cólica, aparece um clínicofantástico; uma angústia, e vem o psicanalistaou o capelão. Naquela época, porém, que nosparece contemporânea de Noé, ou anterior a

Noé, havia casos de jogadores que tinham he-moptises em campo.

Por exemplo: – um dos craques daquele es-crete era Fausto, que os uruguaios chamariamde “A Maravilha Negra”. Poucos anos depois,ele morria com cavernas medonhas nos dois pul-mões. Vejam vocês: – estava todo escavado e nãosabia. Não sabia ele, nem sabia o clube, nem opúblico, ninguém. Um dia ele pula para cabe-cear uma bola. Fazia um sol de rachar catedrais.Fausto salta e sente na boca o chamado gostoesquisito. Cospe e vê a coisa escarlate. Assimcomeçou a hemoptise.

Mas voltemos ao Campeonato do Mundo de1930. Fomos e perdemos. Perdemos em nossaprimeira audição. Na realidade, ninguém espe-rava a vitória. Tínhamos uma longa e terna con-vivência com a derrota.

E o pior é que éramos melhores, muito melho-res do que o adversário. Mas aconteceu o que eracomum e, mesmo, inevitável: – fora do Brasil, obrasileiro caía numa inibição de “Belo Antonio”.

Eu me lembro da volta. Não havia nem triste-za, mas um fatalismo bovino. No fundo, no fun-do, só estávamos preparados para perder. Eu era

Dramaturgo, escritor e jornalista.

Copa de 1930, Brasil 1 x 2 Iugoslávia

Copa de 1934

Copa de 1938

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8 5Publicado em Nelson Rodrigues, A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 112-119.

um dos poucos delirantes que dizia, pelas esqui-nas, apesar de os uruguaios terem sido campeões:– “O Brasil é o melhor futebol do mundo”.

O segundo campeonato foi o de 1934. O anoda grande cisão entre a Confederação Brasileirade Desportos e Federação Brasileira de Futebol.Hoje, não há mais ressentimento, não há maisnada. Todavia, a implantação do profissionalis-mo desencadeou, entre os clubes, um ódio deguerra de secessão ou de guerra civil espanhola.Os dois lados só falavam em descascar a caróti-da do outro para chupá-la como laranja.

Está claro que, em tal clima, que papel podía-mos fazer num Campeonato do Mundo? Já em1930, o futebol carioca vivia no caos mais frenéti-co. Em 1934, o caos piorou e muito. Assim mes-mo, tivemos o caradurismo, digamos assim, o ca-radurismo de ir disputar a Copa na Itália. Comoda primeira vez, entramos por um cano deslum-brante. E, como sempre, a nossa velha conhecidae, eu quase diria, cupincha – a derrota – não es-pantou ninguém. Os campeões foram os italianos.

Mais quatro anos e eis que o Brasil, pela pri-meira vez, teve uma chance real de vitória. Ejustiça seja feita: – o escrete brasileiro amadure-ceu e, não só isso, também a torcida. Já se insi-nuava uma dúvida na nossa humildade. Muitagente começava a desconfiar que talvez o futebolbrasileiro fosse o melhor do mundo.

E, de fato, fizemos duas seleções de altíssimacategoria. Quem não se lembra de um Leônidas,de um Tim, de um Romeu?

Não há a menor dúvida de que Romeu foi umdos maiores craques do Brasil e do mundo, emqualquer tempo. O tratamento quase lascivo queele dava à bola fazia de cada lance um momentode arte. O craque autêntico não joga de primeira,

senão em circunstâncias muito especiais. E Ro-meu sabia cultivar a bola como uma orquídea rara.

Outro era Leônidas, chamado “O DiamanteNegro”. Um jogador rigorosamente brasileiro,brasileiro da cabeça aos sapatos. Tinha a fanta-sia, a improvisação, a molecagem, a sensualidadedo nosso craque típico. Bem me lembro do diaem que Leônidas fez, pela primeira vez no mundo,um gol de bicicleta. Jogavam Brasil x Argentina,em São Januário (era tempo em que São Januárioconseguia ser maior do que o Maracanã). Ataca-vam os brasileiros. Veio uma bola alta, lá da ex-trema, e Leônidas estava de costas para o gol. Semtempo de se virar, ele deu o salto mais lindo quejá se viu. Tornou-se leve, elástico, alado. Lá emcima, deitou-se e fez um maravilhoso movimentode pernas. A jogada, por si mesma, foi um des-lumbramento. Mas além da beleza, da plastici-dade, houve o resultado concreto: o gol.

O goleiro argentino nem se mexeu, batidomiseravelmente. O que houve em seguida só podeser descrito no largo e cálido tom homérico.

Sabemos que o jogador argentino, com umavaidade de Sarah Bernhardt, não é de cumpri-mentar ninguém. Pois bem. Eles voaram porcima de Leônidas e quase o carregaram na ban-deja, e de maçã na boca, como um leitão as-sado. Sim, Leônidas foi abraçado e beijado pelocompanheiro e pelo inimigo. Nas gerais e ar-quibancadas, a multidão esteve para cantar oHino Nacional.

Outro estilista fabuloso foi Tim. Talvez tenhasido o futebol mais plástico, mais bonito, já feitopor um brasileiro. Não era de marcar gols. Ele seentretinha em fazer dança ou música, sei lá. Comopreservava, como protegia a bola! Amigos, a imor-talidade do velho Tim está assegurada.

Page 87: Revista Recine nº 5 - 2008

O DRAMA DAS SETE COPAS

Bem: – citei, ao acaso, três jogadores da-quela maravilhosa representação brasileira de1938, que foi disputar a Copa na França. E po-deria lembrar outros de extraordinária classe.

Mas falei também que o torcedor amadure-cera. E, de fato, o homem de arquibancada co-meçava a perceber as potencialidades do nossofutebol. Quando jogamos com a Polônia, o Bra-sil inteiro parou. Ganhamos, embora por umescore de bola de meia: – 6 x 5. Aconteceu umimprevisto, entretanto, que quase comprometeuo êxito inaugural: – a atuação de Batatais. Veri-ficou-se, então, que sendo um formidável golei-ro de clube, ele tremia no escrete.

O jogo seguinte, com a Tcheco-Eslováquia,foi um drama. Fazia um mau tempo de quintoato do Rigoletto. Os dois times pareciam escul-pidos em água, lama, vento. O nosso escrete tevede jogar com dez durante quase todo o tempo.Aqui, numa torcida desvairada, a nação inteirapagou alguns pecados capitais. Empatamos, o quefoi um resultado deslumbrante.

Veio o segundo jogo com os tchecos. O treina-dor Pimentel pôs em campo o outro escrete, só con-servando, ao que me lembro, Leônidas. Vitória lin-da, linda, embora por um escore sóbrio: – 2 x 1.

Quando acabou o match, houve um carnaval medo-nho por todo o Brasil. O brasileiro só faltou subirpelas paredes como uma lagartixa profissional.

E veio o jogo com a Itália. Se a vencêsse-mos, era o título, era a taça. Eu me lembro dodia da batalha. Um turista que passasse pelo Riohaveria de anotar em seu caderninho: – “Estacidade enlouqueceu”.

Pela manhã, um brasileiro esfaqueou e ma-tou um italiano. A torcida começava com san-gue. O Brasil entrou com um desfalque trágico.E, com efeito, Leônidas contundido não jogou.Pode-se dizer, hoje, que a sua ausência foi fatal.

Perdemos por um escore digno: – 2 x 1. Foinesse match que Domingos, o grande Da Guia,cometeu um erro dramático. Irritado com um ad-versário, cometeu o mais inútil, o mais gratuito,o mais infantil dos pênaltis. Não havia perigo degol, não havia nada. Apenas o formidável zaguei-ro agiu e reagiu como numa pelada, agredindoum atacante provocador. O árbitro marcou a pe-nalidade, decidindo contra nós a peleja.

Acabado o jogo, um gaiato qualquer disse,na rua, que a partida fora anulada. O Brasil in-teiro se levantou. Nas esquinas, grupos canta-vam o Hino Nacional. Mocinhas choravam. Masdurou pouco a euforia cívica. Logo viria a notí-cia definitiva: – valera mesmo a derrota brasilei-ra. Os italianos eram de novo campeões.

A frustração, todavia, não foi das piores. Afi-nal de contas, o Brasil oferecera um futebol ad-mirável. Cronistas europeus pareciam impres-sionadíssimos com os nossos jogadores.

A guerra de 1939-45 interrompeu as lutaspela Copa. Quando a disputa recomeçou, veio agrande, a inesquecível humilhação. Foi em 1950,com efeito, que cada um de nós pagou todos seuspecados nas últimas 45 encarnações.

Tivemos tudo para ganhar a Copa, tudo. Onosso escrete, embora não representasse a nossaforça máxima, era, nitidamente, o melhor. Fize-mos uma campanha apaixonante. Não falo dotristíssimo empate com a Suíça. Nesse match

fizemos um papel melancólico. Menos por culpados craques que pelos erros da direção técnica.

Mas, a partir do jogo com a Iugoslávia, oescrete desabrochou. Hoje, fazendo uma crítica

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Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo de 1950, realizada no Brasil.Time: Barbosa, Ely, Mauro, Nilton Santos, Tesourinha, Ruy, Noronha, Ademir,

Zizinho, Chico e Jair. Reservas: Castilho, Augusto, Juvenal, Nena, Bauer,Danilo, Brandãosinho, Bigode, Alfredo, Friaça, Maneca, Baltazar, Adãosinho,Pinga, Ipojucan e Rodrigues. Comissão técnica: Técnico Flávio Costa, Mário,

Johnson, Feola, Giffoni e Paes Barreto

Page 88: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

8 78 7retrospectiva, sabemos que a seleção tinha fa-lhas graves. Já naquele tempo, Nilton Santos de-via ser o titular. Juvenal não era o homem. Nãotínhamos extremas e, sobretudo, não tínhamosponta-direita.

Em compensação, o Brasil apresentou um trioatacante como nunca se vira desde o Paraíso.Zizinho, Ademir e Jair justificavam o título. Mascomo eu ia dizendo, ganhamos da Iugoslávia enão paramos mais. Contra a Suécia, foi um showencantado, com sílfides, repuxos, fundo musi-cal, o diabo. Mas o grande momento do Brasilaconteceu contra a Espanha. Os cronistas estran-geiros, na sua admiração, davam arrancos decachorro atropelado. E como se não bastasse ofutebol em campo, houve outro espetáculo in-comparável: – o da torcida. Com gente até nolustre, o Maracanã viveu a sua tarde de touros.

Éramos 180 mil brasileiros cantando e dan-çando “Touradas em Madri”. Depois disso, quempodia duvidar, por um instante, da vitória brasi-leira na decisão?

Na véspera da final contra o Uruguai, eu ouvio espíquer Gagliano Netto jurar: – “O Brasil vaiganhar de 8 x 0”.

Não fazia por menos. Não era, porém, um oti-mismo isolado, solitário. Milhões de brasileirostinham a mesma certeza fanática. O já ganhou ins-talara-se na alma do povo. E não queríamos umavitória apertada. O escore pequeno seria humi-lhante para o nosso orgulho. Queríamos a goleadafaraônica. E, por isso, quando, diante de duzentosmil patrícios, o escrete fez 1 x 0, não bastou para anossa sede e a nossa fome. Exigíamos quatro, cin-co, meia dúzia. E aconteceu o que se sabe.

Cada povo tem a sua irremediável catástrofenacional, algo assim como uma Hiroshima. Anossa catástrofe, a nossa Hiroshima, foi a derrotafrente ao Uruguai, em 1950. O adversário vinhafazendo uma campanha de evidente mediocrida-de. E a nossa seleção estava mais brilhante, maisincandescente que um poente de folhinha.

Por que perdemos? Ainda hoje, fazemos a per-gunta, sem achar a resposta. Dir-se-ia que o Brasilalcançara o seu limite, o seu teto de brilho, de ta-lento, de imaginação, de potência criadora no jogocom a Espanha. Pode-se lembrar que entramos para

o jogo final sem esse mínimo de medo que qual-quer luta exige. Tivemos medo da Espanha e amassacramos. Do Uruguai, não. Nenhum medo.

A saída do Maracanã, naquela tarde, ofereciaum espetáculo dantesco. Milhares e milhares deautomóveis, em gigantesca procissão, e nenhumabuzina. O já citado turista poderia fazer no seucaderninho esta anotação: – “Esse deve ser o acom-panhamento do enterro de Inês de Castro”.

Quero falar, rapidamente, de 1954. Eu diriaque 1954 foi 1950 sem o consolo das maravilho-sas atuações anteriores. O jogo com a Hungriafoi de uma melancolia hedionda. Durante osnoventa minutos, não podíamos ousar coisa al-guma e por um motivo muito simples: – perten-cíamos, psicologicamente, ao adversário. Con-tra o Uruguai, faltara-nos um mínimo de medo.Contra os húngaros tivemos, inversamente, medodemais. Há uma fotografia de nossa entrada emcampo que é um lúgubre documento. O escreteestá de cabeça baixa e com a cara, exatamente, acara de derrota prévia e consentida.

Perdemos e voltamos. E não sabíamos, nemdesconfiamos, que o jogo com a Hungria fora oadeus à derrota. Imperceptivelmente começamosa crescer para 1958. A Copa da Suécia foi a res-surreição do futebol brasileiro.

Claro que começamos a jogar, em 1958, como escrete errado. Com Djalma Santos em plena

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Estréia da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1954, quando o Brasilvenceu o México por 5x0. Na foto, os jogadores Júlio Botelho, Nilton Santos,Bauer, Baltazar e o massagista Mário Américo, no estádio de Charmilles.Genebra, Suíça, 16/6/1954

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O DRAMA DAS SETE COPAS

forma, escalamos De Sordi. Nada de Zito, deGarrincha, de Pelé. Assim mesmo, ganhamos daÁustria por 3 x 0. Mas contra a Inglaterra, em-patamos de 0 x 0 e andamos beirando o abismo.Até que veio a prova crucial, que seria o jogocom a Rússia.

Na véspera perguntei a um jornalista: –“Quem ganha amanhã, Brasil ou Rússia?”. Eleme respondeu com uma dessas certezas patéti-cas e inapeláveis: – “Ganha a Rússia, porquebrasileiro não tem caráter”.

Acontecera na Suécia, porém, uma coisa ma-ravilhosa: – o lançamento de Garrincha. Por maisestranho que pareça, a Comissão Técnica nãogostava do Mané e preferia o Joel. Para Garrinchaentrar houve todo um complô.

Mas começa o match. A seleção estava ten-sa, vagamente apavorada com a Rússia. Até queMané recebeu a primeira bola. Vejam vocês: – aprimeira. E não foi preciso mais. Apanhou a bolae saiu estraçalhando russos. Driblou um, dois,três, quatro e carimbou a trave com uma bombamedonha. A escapada dionisíaca de Mané libe-rou os companheiros de velhas e tremendas ini-bições. O Brasil passou, então, a dar tudo de si.A Rússia dava pena. Ao soar o apito final, diziao placar: – Brasil 2, Rússia 0.

Foi ali, contra os russos, que a seleção co-meçou a ser campeã do mundo. Ganhamos de 1x 0 do País de Gales, que passou o tempo todo afazer ferrolho. A semifinal e a final, contra a Fran-

ça e contra a Suécia, pareciam apoteoses de re-vista, no Teatro Recreio. Pela primeira vez, nahistória do campeonato, um país ousava conquis-tar o título com duas goleadas homéricas: 5 x 2com a França e 5 x 2 com a Suécia.

Com a vitória de 1958, o brasileiro mudou atéfisicamente. Lembro-me de que, ao acabar o jogoBrasil x Suécia, eu vi uma crioulinha. Era a típicafavelada. Mas o triunfo brasileiro a transfigurou.Ela andava, pela calçada, com um charme de Joanad’Arc. E assim os crioulões plásticos, lustrosos,ornamentais, pareciam fabulosos príncipes etíopes.

Sim, depois de 1958, o brasileiro deixou deser um vira-lata entre os homens e o Brasil umvira-lata entre as nações.

Em 1962 foi outra doçura. Ganhamos doMéxico. Mas logo no segundo jogo, aconteceu acatástrofe: – Pelé se contundiu e ficou fora daCopa. A nação chorou o músculo doente comose fosse um defunto. No lugar do “Divino” en-trou Amarildo, que seria o “Possesso”.

Depois do empate com a Tcheco-Eslováquia,passamos por uma provação só comparável à deJó: – o jogo com a Espanha. O time jogava mal eos adversários corriam o campo como coelhinhosde desenho animado. A Espanha pôs 1 x 0 na nos-sa frente. Aqui, a angústia nacional era inacreditá-vel. E, súbito, acontece o cínico, o deslavado mila-gre. Zagalo centra e o “Possesso” entra por umamuralha de pernas espanholas e enfia o gol do em-pate. Depois, Garrincha apanha a bola e sai dri-blando o inimigo. Os nossos locutores se esganiça-vam: – “Garrincha não solta a bola! Garrincha pren-de a bola!”. Segundo o rádio e a televisão brasilei-ros, assim não era possível. Pois bem, depois dequatro defensores adversários, Mané levanta paraAmarildo enfiar de cabeça. Era o segundo gol, erao triunfo dramático, suadíssimo. E a provaçãotransformou-se, afinal, numa euforia gigantesca.

Quando vencemos o Chile por 4 x 2, até osAndes dobravam os joelhos para o escrete do Bra-sil. Garrincha esteve apenas deslumbrante. E veioa final com a Tcheco-Eslováquia. Tivemos umsusto apocalíptico. É que os tchecos fizeram oprimeiro gol. Pouco depois, porém, o “Posses-so” apanha a bola e corre. O goleiro adversário,considerado o melhor do torneio, afasta-se para

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Comemoração da Seleção Brasileira de Futebol pela vitória na Copa doMundo de 1958. Suécia, 29/6/1958

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8 9interceptar o centro provável. Com o seu movi-mento, abriu um corredor por onde Amarildoenfiou sua bomba mortífera. Gol, empate!

Mais tarde um pouco, o mesmo “Possesso” avan-ça. Coberto por dois adversários corta um e outro.Zito vem lá de trás, berrando: – “Passa, passa!”.

Amarildo cruza na medida. Zito, na corrida,enfia de cabeça o segundo gol. E não foi só. Mi-nutos depois, Djalma Santos levanta para a área.O goleiro tcheco quis posar para a posteridade.Larga a bola. Vavá toca para o fundo das redes.E assim se consumou a mais pura, a mais perfei-ta, a mais irretocável das vitórias.

Assim foi em 1958, assim foi em 1962. Pode-se dizer que as duas vitórias se geraram da gran-

de derrota de 1950. Agora chegou a vez do for-midável teste: – o tri.

Se ganharmos na Inglaterra, a Copa será eter-namente brasileira. E vamos admitir a santa elímpida verdade: – temos o melhor futebol domundo. Nunca apareceu na terra nada que secomparasse a um Pelé, a um Garrincha. Qual-quer brasileiro, vivo ou morto, já deu botinada.Ninguém merece mais a posse da Jules Rimetdo que a seleção brasileira.

E eu sei que o escrete vai jogar, na Inglater-ra, de esporas e penacho como um dragão dePedro Américo.

O grande gol do tri está amadurecendo parao Brasil.

Realidade, junho de 1966

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Nilton Santos e Didi disputam a bola com Ramirezdurante o jogo Brasil 4x2 Chile, pela Copa do Mundo de1962, no Estádio Nacional. Santiago, Chile, 13/6/1962

Page 91: Revista Recine nº 5 - 2008

As hienas contra Saldanha*

Amigos, segundo Machado de

Assis, suporta-se com muita paciên-

cia a cólica alheia. Vejam o que su-

cede com o João Saldanha, o grande

técnico do escrete. Há, contra ele,

uma gigantesca pressão. Isso, dia após

dia, hora após hora, minuto após

minuto. Não há ninguém, no céu e

na terra, que agüente. Ninguém é de

ferro e tampouco o João Sem Medo.

Mas, como a vítima é o Salda-

nha, nós exigimos dele um compor-

tamento de estátua de Abraão Lin-

coln. E se ele, submetido a uma guer-

ra de nervos e de foice, resmunga,

nós os delicados, trememos de

horror. Seria cômico, se não fosse

odioso. Como se não bastasse tudo

o mais, fingimos ignorar que circula

nas veias do João sangue e não água

da bica. Não se pode tratar assim

um homem e repetiria bem vezes: –

não se pode tratar assim um homem.

Estou batendo estas notas an-

tes da reunião da CBD. Mas a coi-

sa está tão clara, de uma limpidez

tão cruel, que é como se tudo já

tivesse acontecido. Como sentimos

o cheiro do tombo, Saldanha anun-

cia: – “Não peço demissão”. Mas,

segundo todas as indicações, não é

ele que vai se demitir, são outros

que querem demiti-lo.

Nada se compara ao meu de-

solado escândalo. Imaginem vocês

que, no domingo de Brasil x Ar-

gentina e antes do jogo, Havelange

falou comigo. Eis as suas palavras:

* Brasil 2 x 1 Argentina, 8/3/1970, no Estádio Mário Filho. Amistoso preparatório para a Copa do México. Depois desse jogo, o escrete empatariacom o Bangu (1 x 1, 14/3/1970), o que precipitaria a demissão de Saldanha e sua substituição por Zagalo.

Nelson Rodrigues

– “Não adianta. João é de minha

absoluta confiança. Ficará até o

fim. Se ele quiser sair, eu o impe-

direi, fisicamente. Não o dispenso

de jeito nenhum”. Assim falou João

Havelange, assim falou o presiden-

te da CBD.

Ele não insinuou uma dúvida,

não disse “talvez”, nem “pode ser”,

nem “quem sabe”, nem “veremos”.

Ninguém no mundo podia ser mais

taxativo. Reparem: – NEM QUE O

JOÃO PEDISSE DEMISSÃO. Ora, é Ha-

velange quem decide. Sua palavra

é inapelável como o próprio Juízo

Final. Eu me pergunto: – “O pre-

sidente da CBD mudou? Suas de-

cisões definitivas costumam ter um

destino assim efêmero?”.

Dramaturgo, escritor e jornalista.

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Não creio. E digo que não creio

porque Havelange nunca foi homem

de duas palavras, nem duas deci-

sões. O que ele diz é como se fosse

um documento eterno. Ao mesmo

tempo, a reunião de logo mais pa-

rece ser a degola de Saldanha. Mas

a vantagem de escrever antes é a

seguinte: – posso acreditar em Ha-

velange até o último momento. Ain-

da me lembro de sua voz, de sua

inflexão, de sua ardente seriedade.

Conversamos no bar da tribuna de

honra. A dois passos, o presidente

da República tomava um cafezinho.

E Havelange falava para sempre.

Volto ao Saldanha. Quando co-

meçou o complô para a sua queda?

Começou no justo momento em que

Publicado em Nelson Rodrigues, A pátria de chuteiras: novas crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 145-147.

foi escolhido. Ninguém o queria por-

que ele não faz jogo de concessões.

Só pensava no escrete. Podia o mun-

do vir abaixo, que ele não transigiria

por medo, habilidade, falta de cará-

ter. Não via Rio, não via São Paulo,

não via ninguém, a não ser o Brasil.

São Paulo sempre mandou e queria

mandar. João achava que um escre-

te não pode ser uma composição de

interesses e egoísmos.

Nem se diga que a seleção não

fez nada. Fez muito, fez o que devia

fazer. Não estava pronta, nem era para

estar pronta. O time nacional só pode

chegar a seu apogeu no México. Lá,

sim, é que deve alcançar o seu nível

ideal, o seu rendimento absoluto. Será

uma tragédia se, antes, por uma fu-

nesta antecipação, chegar à plenitu-

de. Assim mesmo, conseguimos a clas-

sificação em goleadas flamejantes. E

mais: – ganhamos dos ingleses cam-

peões do mundo com olé.

Eis a verdade: – há muito tempo

que as hienas estão fazendo toda a me-

ticulosa montagem da catástrofe. Eu

sempre disse que os piores inimigos

da seleção estavam aqui e não lá fora.

Cada entrevista que João concedia,

cavava um abismo. Cada pergunta

que lhe faziam tinha o veneno da ví-

bora que matou Cleópatra. Se derru-

barem o João, teremos duas vítimas:

– o próprio João e o escrete.

O Globo, 18/3/1970

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O técnico João Saldanha carregado no estádio

Mário Filho, o Maracanã, após a conquista do

campeonato carioca de 1957 como técnico

do Botafogo. Rio de Janeiro, 22/12/1957

Seleção brasileira de 1970 e o presidente

Médici em frente ao Palácio das Laranjeiras.

Rio de Janeiro, 28/4/1970

Page 93: Revista Recine nº 5 - 2008

Seleção Brasileira de Futebol,

durante o Hino Nacional, na

Copa do Mundo de 1958.

Suécia, 1958

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Friedenreich,

“El Tigre”

Jornalista e escritor.João Máximo

Quando nos falam dos primeiros tempos dofutebol brasileiro, logo imaginamos dois times,11 jogadores de cada lado, todos eles posudos,engomados, cabelos repartidos ao meio, bigodesretorcidos nas pontas, calções a bater nos joe-lhos, camisas de seda e botins lustrosos, corren-do atrás de uma bola de atacar num campo esbu-racado e sem grama. Não se trata apenas de ima-ginação, pois as fotografias da época são teste-munho eloqüente de que os nossos primeiroscraques podiam ter tudo, menos pinta de cra-que. É preciso lembrar, porém, que CharlesMiller, um paulista do Brás, mas filho de ingle-ses, jeito de inglês, hábitos de inglês e até sota-que de inglês, foi o introdutor do futebol entrenós. Por volta de 1884, segundo reportagem hámuito publicada no Times of Brazil, CharlesMiller ingressou na Banister Court School, deSouthampton, e em seguida cursou vários colé-gios do Condado de Hampshire, onde aprendeua jogar futebol e ganhou duas bolas de couro.De volta a São Paulo, dez anos depois, trouxeconsigo uniforme completo e as duas bolas, comas quais ele próprio organizou alguns treinos naVárzea do Carmo e as primeiras partidas na chá-cara da família Dulley. Foram seus companhei-ros, nesses primeiros bate-bolas em terra brasi-leira, os ingleses, os filhos de ingleses e os pau-listas grã-finos que freqüentavam o São PauloAthletic Club. Depois, então, o novo esportetransformou-se no passatempo preferido da aris-tocracia paulistana, ganhando nos alemães doGermânia, nos estrangeiros das grandes firmasde São Paulo, nos meninos ricos do MackenzieCollege e em toda a rapaziada da elite, novos eentusiasmados adeptos. Em pouco, ninguém maispensava no sonolento cricket ou no violento rugby,

ao mesmo tempo em que o homem do povo e agente de cor, modestamente, quase em segredo,iam imitando os ricaços e criando os primeirostimes da Várzea.

O futebol brasileiro, portanto, começou di-vidido em dois grupos, os filhos de boa famíliade um lado, os varzeanos humildes do outro. Éclaro que aqueles, pertencendo a clubes organi-zados, podendo importar material da Europa econtando com o apoio dos jornais, conseguiramfirmar-se primeiro: promoviam torneios, progra-mavam amistosos com as equipes que surgiamno Rio, instituíam taças e faziam seus primeirosídolos. Charles Miller foi um deles, criador deuma jogada que, em sua homenagem, ganhou onome de charles. O que importa dizer, sem riscode erro, é que aquela divisão retardou o apareci-mento do que já se pode chamar de estilo brasi-leiro de jogo. Se não tivessem os pioneiros grã-finos rompido os preconceitos e aberto as portasdo nosso futebol ao homem do povo, sobretudo àgente de cor, certamente não seríamos hoje bi-campeões do mundo. E como essas portas custa-ram um pouco a ser abertas, Artur Friedenreichteve que se camuflar e entrar pela janela.

Friedenreich foi contemporâneo de CharlesMiller e de todos aqueles rapazes endinheiradosque bateram bola na chácara dos Dulley. Logo,se fosse ele cem por cento varzeano, cem porcento do povo, cem por cento pobre e cem porcento de cor, jamais teria passado de um obscu-ro jogador de pelada, sem poder ser sócio doGermânia ou aluno do Mackenzie College. Sefosse, por outro lado, cem por cento de elite,cem por cento rico e cem por cento branco, fi-lho de europeus como os outros, talvez não ti-vesse sido mais do que um daqueles craques sem

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95Artigo editado a partir do original publicado no livro Gigantes do futebol brasileiro, de Marcos de Castro e João Máximo. Rio de Janeiro:Lidador, 1965, p. 11-36.

pinta que as velhas fotografias registram. Masele foi cinqüenta por cento em tudo isso, umaespécie de meio-termo a ter acesso à turma decima, sem deixar de ser fiel à turma de baixo. Erafilho de alemão remediado com paulista pobre,de pele escura; viveu quase toda a infância entreos meninos de rua e estudou nos melhores colégiosde São Paulo, inclusive no Mackenzie; veio aomundo no nada aristocrático Bairro da Luz e muitocedo entrou para o Germânia, clube elegante dacolônia alemã; era – embora magro – alto e fortecomo todo bom atacante de área de estilo britâni-co, mas tinha um jogo fino, ágil, escorregadio dosnegros da Várzea. Mulato claro, cujos olhos ver-des chamavam mais atenção do que a pele more-na ou o cabelo crespo, foi o introdutor da fintacurta, do drible manhoso, do passe improvisado,da ginga e dos floreios barrocos, de que fala Gil-berto Freyre, num futebol que até então era cópiapiorada do ortodoxo jogo dos ingleses.

Mas é preciso notar que Friedenreich nãofoi grande por ser apenas uma exceção, isto é,por possuir algumas gotas de sangue negro emsuas veias de craque, ou de haver crescido entreos que amam a bola com um sentimento primiti-vo, qualidades que, entre os tais pioneiros sempinta, forçosamente se acentuariam. Ele seria –como de fato foi – grande em qualquer circuns-tância, jogando na Várzea ou nos grandes estádios,em São Paulo ou no Rio, no Brasil ou no exterior,nos tempos distantes do amadorismo ou já emplena época de profissionalismo. Sua carreirarepresenta nada menos de 26 anos de atividade,compreendendo, portanto, várias fases do fute-bol brasileiro. E ele, nesses 26 anos, foi sempreo mesmo, excepcional, único, como se toda asua vida fosse um incessante entrar pela janela,

aqui e ali, atrás de glórias que a nenhum outrocaberia conquistar. Certo é que, se há imortaisno futebol, Friedenreich é um deles.

De Artur Friedenreich já se disse muito, outudo, e ainda assim parece pouco. Tentar acres-centar-lhe algo, porém, é tão difícil quanto sepa-rar, no que foi dito, o fato da lenda, o acontecidodo imaginado, a realidade da fantasia. Os que setêm ocupado dele, descrevendo-lhe os grandes fei-tos ou traçando-lhe o perfil de craque fabuloso, nemsempre resistem à tentação de engrandecê-lo aindamais, criando novas lendas, narrando outros episó-dios fantásticos em torno do seu nome, inventan-do estórias de causar espanto. E ele, sofrendo dearteriosclerose cerebral, vítima de repetidos lapsosde memória – a ponto de muitas vezes não se lem-brar do próprio nome – já não pode confirmar oudesmentir todas as lendas. Escutava-as, apenas, emsilêncio, como se fossem passadas com outra pes-soa, em outras terras, em outros tempos.

Conta-se, por exemplo, que Friedenreichgostava de receber uma bola no centro do cam-po, sair driblando todos os marcadores, até che-gar à frente do gol, para então voltar pelo mes-mo caminho, driblando sempre, e começar tudode novo, zombeteiramente; mas a verdade, cer-tamente, está com os que afirmam que ele levavao futebol muito a sério, nunca driblava além donecessário, nunca desperdiçava um gol, nuncadesrespeitava um adversário. Há, também, estó-rias fantásticas sobre a potência do seu chute,como aquela em que ele teria matado o irmão,na cobrança de um pênalti, ao atirar-lhe a bolade encontro ao peito; mas Fried sempre achougraça no caso, não se sabe se pelo irmão que nãomatou ou se pelo chute que não deu. Afinal, paraquem jamais perdeu um pênalti, para quem ja-

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FR I EDENRE ICH , “ E L T IGRE”

mais deu um chute mortal – embora muitos te-nham sido imortais – e para quem sempre prefe-riu o veneno de um efeito ao chumbo de umchute forte, a estória era engraçada. Tem-se fa-lado do medo que ele inspirava aos jogadores deoutros países, uruguaios e argentinos principal-mente, que viam nele uma espécie de terrívelfeiticeiro; mas é bom lembrar que certa vez, naCalle Rivadávia, em Buenos Aires, foi precisochamar a polícia para livrá-lo do violento cari-nho da multidão, que o rasgara todo, em poucossegundos, para guardar pedaços de sua roupa.Era ídolo onde quer que fosse, embora isso nãolhe trouxesse a riqueza que muitos lhe atribuem:Fried nunca foi profissional, nem de futebol, nemde frontão, esporte que lhe valeu um quase irre-sistível convite para se transferir a um clube doexterior. Nem tão pouco, como se pensa, teveum fim de vida difícil: morava em casa própria,dada pelo São Paulo, em 1932, e vivia da apo-sentadoria a que teve direito como ex-inspetorde viagem da Companhia Antártica Paulista.Seus gols, como não podia deixar de ser, tam-bém deram origem a uma infinidade de ador-nos, mas só alguns, poucos, ele costumava lem-brar nas conversas com os amigos, quando estesfalavam dos velhos tempos: o gol da final doCampeonato Sul-Americano de 1919; os setecontra o União Lapa, dez anos mais tarde, e quese constituíram em recorde que só Pelé viriaquebrar; um contra o Santos, a 12 de março de1933, o primeiro na história do profissionalis-mo no Brasil; e finalmente outro, em 1934, quan-do o Palestra Itália viu sua longa invencibilidadequebrada, na última partida da temporada, poraquele um a zero inesquecível. Se houve estóriassobre sua vida, houve também sobre a sua mor-te, anunciada por várias emissoras de São Pau-lo, durante a Revolução de 32, e deixando deluto o país inteiro. Coube à Rádio Record des-mentir o boato, informando que Fried continua-va firme, mais vivo do que nunca, integrando oBatalhão Esportivo. Em realidade, ele sempreA

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Friendenreich homenageado pela seleção

carioca de futebol, década de 1930

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9797gozou boa saúde, tendo sofrido apenas três contu-sões de certa gravidade, em toda a sua atividadeno futebol: fratura do braço direito, em 1914, fra-tura do maxilar, em 1921, e fratura da tíbia direi-ta, em 1929, um ano antes da Copa do Mundo.

– Duro, mesmo, foi perder dois dentes na-quele jogo com os ingleses.

Mas há estudos sérios feitos sobre Artur Fri-edenreich, como o do jornalista Adriano Neivada Mota e Silva, o De Vaney, que conseguiucompletar o levantamento de todos os títulosconquistados pelo velho tigre: sete vezes cam-peão paulista, quatro vezes campeão brasileiro,duas vezes campeão sul-americano, 17 vezes cam-peão de diferentes torneios regionais, nacionaisou internacionais, 11 vezes artilheiro de Cam-peonatos Brasileiros, duas vezes de Campeona-tos Sul-Americanos, artilheiro do Paulistano naexcursão à Europa, nove vezes artilheiro de Cam-peonatos Paulistas. Nenhum outro jogador nofutebol sul-americano alcançou, até hoje, o nú-mero de gols por ele conquistados, desde suaprimeira partida oficial: 1.329 gols registradospela CBD, reconhecidos pela Fifa e admiradospor várias gerações do futebol brasileiro.

Mesmo nos dez últimos anos de seu conví-vio com a bola – desde que voltou da Europacom o Paulistano até embaular definitivamenteas chuteiras, para então se transformar em juizde futebol – Friedenreich não chegou a conhe-cer a decadência. Voltou a ser campeão peloPaulistano em 1926 e 1927, integrou, muitasoutras vezes, as seleções paulista e brasileira, destase despedindo num amistoso com o River Plate,em 1935, aos 43 anos de idade. Foi ele um dosfundadores do atual São Paulo; resultado da fu-são do antigo Palmeiras com o Paulistano, cujosdirigentes, em 1930, resolveram acabar com aseção de futebol no clube. No São Paulo, sem-pre se destacando como artilheiro, ajudaria onovo clube a conquistar seu primeiro título decampeão paulista, em 1931. Suas últimas parti-das foram disputadas pelo Flamengo – espéciede homenagem à torcida carioca – e não passa-ram de três amistosos com equipes do Rio mes-mo. Só depois, muito depois, quando a geraçãode Leônidas da Silva e Domingos da Guia ia

dando lugar à geração de Zizinho e Jair, come-çaram a esquecer o craque, embora seu nomeperdurasse e viesse até a geração de Pelé.

Tempos atrás, um jornal de São Paulo noti-ciou um fato ocorrido no Mercado Municipal,onde um homem de idade, alto, magro, encosta-do a uma pilastra, atraía a atenção de um grupode meninos que por ali passava.

– Saibam vocês, que eu, quando moço, eraum craque respeitado.

Os meninos não acreditavam nos dribles, nospasses, nos gols que o homem dizia haver mar-cado, tantos anos antes, e começaram a rir, su-pondo tratar-se de um velho faroleiro, caduco,tristemente abandonado pelas ruas.

– Quando me viam, fosse onde fosse, logogritavam meu nome.

– E qual é o seu nome? – perguntou um dosmeninos.

O homem, até então falando com desemba-raço, calou-se por um instante, enrugou a testa,baixou a cabeça: não se lembrava. Os meninoscontinuavam rindo, cada vez mais, agora provo-cando aquele estranho autor de dribles, passes egols imaginários. Insistiram para que outros ca-sos, outros feitos fossem contados.

– Um dia – prosseguiu o homem – eu fiz umgol que deu ao Brasil o título de campeão sul-americano. Foi uma festa bonita, bonita...

Os meninos redobraram o riso, até que apa-receu outro homem, também de idade, atraídopela alegria da platéia improvisada, e reconhe-ceu Friedenreich na figura daquele ídolo desgas-tado pelo tempo.

– Então vocês não sabem quem é ele? ÉFriedenreich, o grande Friedenreich – e tratoude afastá-lo da garotada inquieta.

Sim, era Friedenreich, El Tigre, o primeirorei do nosso futebol, deus dos velhos estádios,pioneiro, ídolo de muitas gerações, homem efábula, menino nascido na esquina das ruas Vi-tória e do Triunfo, craque cuja vida inteira foraum eterno fazer ponto naquela esquina – esqui-na da vitória e do triunfo. Os meninos sabiam,ficaram sérios, pregaram os olhos no homem quese afastava e nada mais disseram. Era como seestivessem vendo Pelé daqui a muitos anos.

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O maior goleiro do mundo*

Nelson Rodrigues

Amigos, cada geração devia ter

um Mário Filho, ou seja, um ho-

mem de larga evocação homérica.

E, então, eis o que aconteceria

maravilhosamente: – a história de

uma geração passaria a outra gera-

ção, assim como a chama do círio

passa a outro círio. Mas Mário

Filho morreu e não ouvimos mais

os grandes cantos do futebol.

Já não sei por que estou di-

zendo tudo isto. Agora me lembro:

– eu ia falar de uma conversa que

tive, outro dia, com uma das maio-

res figuras do futebol brasileiro de

todos os tempos: Marcos de Men-

donça. Ele deixou os clássicos e

as peladas muito antes do profis-

sionalismo. Como se sabe, o fute-

bol amador era outro futebol,

como era outro o Brasil e outro o

mundo. Se não me engano, Mar-

cos começou antes da Primeira

Grande Guerra Mundial. Os táxis

de Paris ganhavam a batalha do

Marne, e o nosso Marcos, aqui,

tornava-se o maior goleiro do Bra-

sil. Dizer do Brasil não seria o

bastante. Creio não errar afirman-

do que ele, em certo momento, foi

o maior goleiro do mundo. En-

quanto, em Paris e outras capitais

européias, Mata-Hari ia ateando

paixões e suicídios, o “Fitinha

Roxa” fechava o gol, no Rio.

Sabem como ele treinava? Em

casa, seu irmão Fábio atirava laran-

jas que Marcos defendia. Não pas-

sava uma. E o mundo pegando fogo.

Os jornais do mundo afirmavam que

os alemães tiravam os olhos dos pri-

sioneiros, com o dedo em gancho.

Apareciam, na revista Eu Sei Tudo,

batalhões de cegos aliados.

Foi em 17 que o Fluminense

partiu para o tricampeonato. Em 18,

enquanto toda a cidade morria de

Espanhola, com Marcos no gol o

Fluminense foi campeão pela segun-

da vez. Quem não morreu na peste?

Em 19, foi o terceiro ano. Não ha-

via um tricampeão no Rio. Dispos-

to ao esforço total, o Fluminense

começa vencendo. Mas enquanto o

tricolor ganhava de um lado, o Fla-

mengo ganhava de outro lado. Fi-

nalmente, o título ficou para ser

decidido numa última partida entre

Fluminense x Flamengo.

Desta vez, toda a cidade tre-

meu. Era então presidente da Re-

pública Epitácio Pessoa. Ninguém

com mais pose presidencial. E Epi-

tácio era desses que nem sabem

quem é a bola. Também ele foi sus-

cetível à magia do jogo. Convida-

do, compareceu.

Mário Filho contou isso muito

melhor do que o faço aqui. Se não

me engano Tota Rodrigues arran-

jou um canhão e o colocou na bar-

reira tricolor. Caso o Fluminense

ganhasse, o canhão daria seus tiros

de pólvora seca. Mas pergunto: –

sabem quem decidiu a final? Mar-

cos de Mendonça.

Explico por quê. Nos primeiros

momentos, o juiz marca pênalti con-

tra o tricolor. Vejam bem: – um

pênalti que absolutamente não hou-

ve. A torcida gelou, os nossos joga-

dores gelaram. Se a bola entrasse, o

rubro-negro ia reinar na batalha.

Marcos está em cima da chamada

linha fatal. Um beque rubro-negro

vai cobrar a penalidade máxima. No

meio de um silêncio ensurdecedor,

o adversário corre e atira. Marcos

defende. Larga, porém. O beque

atira novamente. Nova defesa de

Marcos. O mesmo adversário ati-

ra, novamente. Desta vez, o formi-

dável goleiro defendeu e agarrou.

* Fluminense 4 x 0 Flamengo, 21/12/1919, pelo Campeonato Carioca. Fluminense tricampeão.

Dramaturgo, escritor e jornalista.

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

99Publicado em Nelson Rodrigues, A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 174-176.

O canhão do Tota Rodrigues

começou a dar tiros fora de tem-

po. Epitácio Pessoa vira-se e per-

gunta: – “Já é o Forte?”. O ajudan-

te-de-ordens informa: – “Excelên-

cia, o Forte é em 1922”. O presi-

dente inventa um pigarro: – “Ain-

da bem, ainda bem”. Fez as contas

nos dedos: – faltavam dois anos e

meio para os Dezoito do Forte.

Mas como dizia, defendendo

um pênalti indecoroso, Marcos ga-

nhou o jogo. Depois das três defe-

sas consecutivas, o Fluminense se

tornou imbatível. Era o time dos

times. Ouçam: – Marcos, Vidal e

Chico Netto; Laís, Osvaldo e For-

tes; Mano, Zezé, Welfare, Macha-

do e Bacchi. Diga-se que Marcos,

Vidal e Chico Netto formavam o

triângulo de ouro. Era, sim, o mai-

or time brasileiro.

Eu estava falando de Marcos.

Pois é. Diria eu que ele foi o pri-

meiro jogador moderno de sua po-

sição. Muitos outros continuavam

na pré-história, ao passo que Mar-

cos já era um goleiro histórico.

O Globo, 29/3/1975

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

99

Com 1,87m de altura,

Marcos Carneiro

de Mendonça foi o primeiro

goleiro da Seleção Brasileira

e, até os dias atuais o goleiro

mais jovem da nossa

Seleção. Aos 19 anos defendeu

o seu primeiro jogo nesta condição,

contra o Exeter City, da Inglaterra,

em 21/7/1914, o que fez como

goleiro titular por nove anos,

conquistando os campeonatos

sul-americanos de 1919 e 1922.

Começou a jogar em 1908 no Hadock

Lobo, que posteriomente se fundiu

com o América; entre 1914 e 1922

foi goleiro do Fluminense e, neste

período, sagrou-se tricampeão

carioca em 1917, 1918 e 1919.

Rio de Janeiro, 1920

Bib

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Page 101: Revista Recine nº 5 - 2008

Nilton Santos,a enciclopédia

Jornalistas.João Máximo e Marcos de Castro

Nilton Santos comemora com

Pelé a conquista da Copa do

Mundo de 1962, na partida em

que o Brasil venceu a então

Tchecoslováquia por 3 x 1 no

Estádio Nacional. Santiago,

Chile, 17/6/1962

PH.FOT.41248.090

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

101

Havia terminado o primeiro tempo de umapartida que Botafogo e River Plate disputavamno México, por um daqueles pentagonais de prin-cípio de ano, quando Nestor Rossi ficou muitoimpressionado com o aspecto do seu companhei-ro Vairo: uniforme sujo de lama, camisa molha-da de suor, cabelos desgrenhados, meias arria-das, fisionomia abatida, tudo por causa dos dri-bles que lhe aplicara Garrincha pela lateral daárea. No vestiário, Nestor Rossi ficou pensandono que poderia dizer a Vairo para devolver-lhe ofôlego, o ânimo, a coragem de voltar a medir-secom Garrincha no segundo tempo.

Depois, já no campo, chamou o companhei-ro a um canto:

– Você está vendo aquele jogador ali?Vairo pôs os olhos no zagueiro do Botafogo,

um tipo alto, forte, de uniforme limpo, meias láem cima, tranqüilo como se só agora a partidafosse começar. Enquanto Vairo olhava, NestorRossi prosseguiu:

– Chama-se Nilton Santos e é beque esquer-do como você. Pois vá lá perto, passe a mão naspernas dele, que o seu jogo logo melhora. Vá,ande, que o futebol de todos os beques do mun-do está ali naquelas pernas.

O episódio, que Armando Nogueira conta nolivro Drama e glória dos bicampeões, pode parecerabsurdo se lembrarmos como os argentinos são eco-nômicos quando se trata de elogiar um brasileiro.Pode parecer absurdo, ainda, se um dia vimos jogarNestor Rossi, dono de um futebol extraordinário eum dos maiores centromédios do mundo, em todasas épocas. Mas nada tem de absurdo e chega a sersimples fato de rotina, se guardarmos apenas queNilton Santos, o mais perfeito jogador de defesa queo Brasil conheceu, é o seu principal personagem.

Artigo editado a partir do original publicado no livro Gigantes do futebol brasileiro, de João Máximo e Marcos de Castro. Rio de Janeiro:Lidador, 1965, p. 251-274.

Contar a história de Nilton Santos é tão difí-cil quanto dar uma exata dimensão dos últimosvinte anos do futebol brasileiro, desde os últi-mos tempos de Leônidas da Silva ao apogeu dePelé, que são também os vinte anos de futebolde Nilton Santos. É contar, ao mesmo tempo, ahistória de quatro Copas do Mundo e de tudo oque aconteceu, dentro e fora do campo, entreuma e outra. É falar um pouco de cada um dosperíodos que alguém já chamou de infância, ado-lescência e maturidade do futebol no Brasil. Éfazer, ainda, um estudo profundo de todos osestilos de zagueiro que se conhece, do nosso pri-meiro beque de escora, abrindo um capítulo es-pecial para Domingos da Guia e passando pelosmarcadores, apoiadores, rebatedores, driblado-res e emboscadores, para se chegar, então, aoestilo que ele não criou, mas aperfeiçoou. É con-tar a história de um beque frustrado e tempo-rão, que o amor à bola e a força de vontade trans-formaram em bicampeão mundial. E muito mais.

Mas isto não é a história, e sim um pouco dahistória de Nilton Santos.

Uma das coisas que diferem Nilton Santosdos outros é a época em que ele começou a jogarfutebol. Pelo menos o futebol sério, em campode verdade, 11 de cada lado, todo mundo dechuteira. Na Ilha do Governador, onde ele nas-ceu a 16 de maio de 1925, a pelada sempre foium vício. A pelada e a praia. Natural, portanto,que se entregasse às duas coisas com entusias-mo, não se encontra, porém, fora do entusias-mo, qualquer prenúncio de craque naquela in-fância comum passada ao lado dos irmãos e dospais, Pedro e Josélia dos Santos. Não era ele oprimeiro a ser escolhido no par-ou-ímpar, nemera ele o responsável pela escolha. Quando mui-

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N I L TON SANTOS , A ENC ICLOPÉD IA

to, dava-se por satisfeito por não ganhar o meio-fio. E o meio-fio, na linguagem carioca da pela-da de rua, já era um sinônimo de cerca.

Mas o perigo do meio-fio, Nilton Santos cor-reu apenas no princípio, no tempo da escola pú-blica e das calças curtas. Aos 16 anos, os amigosjá lhe reconheciam a queda pelo futebol. Penaque nas peladas criasse tanto caso na hora dearmar os times. Só queria jogar na frente, deatacante, driblando os beques, marcando os gols.Se concordava em ficar na defesa, era só paranão discutir com o capitão do time. Começavao jogo, e logo ia avançando, avançando, até ficaronde queria. Caso, mesmo, criava quando al-guém se atrevia a escalá-lo de goleiro. Aquelaera uma posição destinada aos que nada sabiamfazer com os pés, e ele, bom na embaixada, nocorte, no drible, não se sujeitaria ao gol.

O ataque, para Nilton Santos, não era umavocação, um temperamento – era o seu próprio

destino no futebol, destino que não adiantavacontrariar, porque estava traçado antes dele virao mundo. Assim, foi-se aprimorando lá na fren-te, ganhando os elogios dos amigos e o incentivodo irmão mais moço:

– Se você tiver sorte, vai acabar no Flecheiras.O Flecheiras era uma espécie de escrete da

Ilha do Governador. Nilton Santos, todos os do-mingos, ia ver jogar aquele time afiado e cheiode gente boa, como o Ruas – um centroavanteque, antes de Leônidas da Silva, fizera da bici-

cleta um brinquedo.Não foi preciso ter sorte para entrar no Fle-

cheiras.Chegada a época do serviço militar, a vida

de Nilton Santos mudou. Naquele tempo nãohavia a ponte, e a travessia de barca só compen-sava se fosse dia de grande jogo na cidade. Con-seguiu, no entanto, ser recrutado pela Aeronáu-tica. Um dia, major Honório tirou-o de um aper-

Jogadores da Seleção Brasileira,

Djalma Santos, Nilton Santos, Zizinho

e Didi. Rio de Janeiro, 1956

PH.FOT.03397.019

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

103103to e passou a torcer para que Nilton Santos selivrasse logo do cáqui e do quartel.

Quando deixou a Aeronáutica, os amigos oanimavam a tentar a sorte num grande clube ca-rioca, quem sabe o Vasco, o Flamengo, o Flumi-nense, ou o Botafogo.

Foi uma vez, num reencontro com majorHonório, que Nilton Santos mudou de idéia.Major Honório conhecia o pessoal do Botafogo,era amigo de Carlito Rocha, falava das vanta-gens que o grande clube oferecia, dinheiro, via-gens, fama, nome no jornal, possibilidade de vira ser campeão carioca.

O Botafogo era um grande clube. Nilton San-tos viu isso logo no primeiro dia, quando foiapresentado a Bento Ribeiro, Carlito Rocha eZezé Moreira. Como ele, outros, de todos oslugares, de todas as posições, de todas as idades,ali estavam para fazer experiência. Para sua sur-presa, Zezé Moreira mandou-o entrar no lugardo gaúcho Ávila, centromédio titular do Botafo-go. Na hora, chegou a pensar num protesto, emdizer que aquela não era a sua posição, que eleestava ali para ser experimentado como ponta-de-lança. Se fosse no seu tempo de pelada, cria-ria um caso; mas ali, num clube grande, diantede um técnico de verdade, o melhor era entrarem campo e treinar no lugar de Ávila.

Depois do treino, Carlito Rocha procurou-o:– Você tem jeito, rapaz. Pode voltar amanhã.Ter jeito, para Nilton Santos, não era novi-

dade, o que o surpreendia era ter treinado mal,fora da sua posição, quase sem passar do meiodo campo, e assim mesmo ter agradado a Carli-to Rocha. Assinou o seu primeiro contrato e sou-be que seria escalado no jogo de aspirantes como São Cristóvão.

Quando Nilton Santos soube que o técnicopretendia mantê-lo como beque esquerdo, embo-ra como titular, sentiu-se como se estivessem que-rendo mudar o seu destino. Que estavam, afinal,fazendo com a sua vocação de atacante, de ponta-de-lança, de artilheiro? Esperou uma oportunida-de para falar a sós com Carlito Rocha:

– Seu Carlito, até hoje eu fiz tudo o que osenhor e seu Zezé mandaram, mas acontece queeu nunca fui jogador de defesa, não levo jeito,

não gosto. Eu queria que o senhor falasse comseu Zezé para me escalar na frente.

Nilton Santos não sabia que Carlito Rochajá o considerava um dos melhores beques da ci-dade. Carlito Rocha tinha desses entusiasmos re-pentinos, mas raramente errava, sabia ver longe.Por isso, ao ouvir aquele apelo, quase protesto,resolveu usar sua autoridade de dirigente: Nil-ton Santos estava proibido de pensar, sequer, emtrocar a defesa pelo ataque.

O Botafogo foi o campeão da temporada. Adedicação de Carlito Rocha, o trabalho de ZezéMoreira, o ambiente entre os jogadores – talvezporque Heleno se fora – e até um vira-lata pretoe branco, chamado Biriba, em cuja mística to-dos acreditavam, deram ao clube um título queele ainda não conquistara no profissionalismo.Tudo isso no ano de estréia de Nilton Santos, jáentão dono de um estilo próprio.

Esse estilo, que mais tarde libertaria o bequebrasileiro de sua passividade, da marcação cer-rada, das rebatidas a esmo, talvez tenha sido umaconseqüência do trato que desde menino ele pro-curou dar à bola, sonhando em ser atacante. Por-que, naquele tempo, só os atacantes poderiamarriscar-se em um drible, em um passe correto,ao futebol fino e elegante, que teve em Domin-gos da Guia, dez anos antes de Nilton Santos,apenas uma exceção. Nilton Santos, pelo contrá-rio, faria do seu futebol uma regra, reformulariao conceito lançado pelo velho Da Guia.

E o primeiro ano de Botafogo abriu para Nil-ton Santos as portas da seleção brasileira, no Cam-peonato Sul-Americano de 1949.

Depois do primeiro treino da seleção, nocampo do Vasco, Flávio Costa entrou no vestiá-rio, ar sério, pose de grande comandante. FlávioCosta aproximou-se e pegou as chuteiras de Nil-ton Santos. Bateu com o nó dos dedos nas travas,puxou o cadarço, pôs os olhos no bico macio.

– De quem é essa chuteira, Santos?– Minha, seu Flávio.– Você, por acaso, sabe para que posição foi

convocado?– Sei, seu Flávio: para beque-direito.– Pois saiba desde já que beque do meu time

só usa chuteira de bico duro.

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N I L TON SANTOS , A ENC ICLOPÉD IA

– É o hábito, seu Flávio. Com bico duro eunão sei matar uma bola, controlar, dar um drible,um passe. Fico que nem um poste, duro também.

– Olhe, Santos, é bom você ir aprendendoque beque para ser bom não precisa fazer nadadisso. Basta saber marcar e rebater, mandar abola pra frente, do jeito que ela vier. Deixe obico macio para quem jogar no ataque e peça aoChico outras chuteiras pra você.

Nilton Santos não argumentou mais.De qualquer forma, foi mesmo com chutei-

ras de bico duro e alguma desconfiança que Nil-ton Santos estreou na seleção brasileira, a 17 deabril, no Pacaembu. O Brasil venceu a Colôm-bia por 5 a 0, mas Nilton Santos, embora tivessejogado bem, não ficou satisfeito. De que adian-tara anular o medíocre ponta colombiano, se ele,também ele, se anulara por marcar colado? Ti-nha a impressão de que a vitória era menos suado que dos companheiros, dos dois gols de Ade-mir, da bicicleta que Orlando acertara em cheio,das defesas de Barbosa e até de Osvaldo Baliza,que entrara no segundo tempo. Foi a única opor-tunidade de Nilton Santos naquela seleção.

Durante a Copa do Mundo de 1950, NiltonSantos foi apenas um torcedor privilegiado, queviu tudo de perto, na concentração, no vestiário,no fosso de um Maracanã saído da fôrma. Viu tudosem entender nada, as vitórias tão fáceis, o fanatis-mo dos dirigentes, a vaidade dos cartolas, o oti-mismo exagerado dos companheiros e a derrotapara o Uruguai. Faixas, flâmulas e medalhas fabri-cadas de véspera, homenagens que ele próprio re-cebera, sem saber porquê, como futuro campeãodo mundo. Sem saber, também, que aquele fracas-so livraria o futebol brasileiro de muitas coisas. Apoliticagem e o despotismo começariam a ceder,ninguém seria mais dono de coisa alguma.

Em 1954, cheios de responsabilidade, quasecom a obrigação de trazerem a Copa do Mundopara o Brasil, Nilton Santos e alguns outros jo-gadores embarcaram para a Suíça. O presidenteda República, ao recebê-los, dias antes, no Cate-te, havia dito: “Se perderem, quem perderá é oBrasil; se vencerem, será do Brasil a vitória”.Portanto, não se tratava apenas de um campeo-nato de futebol, mas de coisa muito mais séria.

Sofrimento, mesmo, foi o adversário do Brasilnas quartas-de-final. Ele seria indicado por sorteio,talvez fosse a Hungria, que parecia dominar omundo com o seu futebol científico, seus craquesfabulosos, seus cento e tantos jogos invictos. NaCopa do Mundo mesmo, ela havia derrotado aCoréia por 9 a 0 e a Alemanha por 8 a 3; ninguémacreditava que outra equipe pudesse vencê-la.

No dia em que foi feito o sorteio da Fifa, osjogadores, enquanto aguardavam, conservaram-semudos. O exagero de alguns chega a dizer quemuitos deles fizeram promessa, rezaram, pedirama ajuda dos santos: tudo, menos a Hungria. E ZezéMoreira chegou, já à noite, com a terrível notícia:

– Será mesmo a Hungria.– Estamos perdidos – murmurou Rubens en-

tre dentes.No vestiário do estádio Wankdorf, em Ber-

na, minutos antes da partida com a Hungria, al-guns bem intencionados tentaram dar coragemaos jogadores do Brasil. Sabiam que grande par-te passara a noite em claro, apavorada.

O Brasil fez o seu primeiro gol, tentou rea-gir com o coração, mas a Hungria estava firme,fez outro, mais outro, dando-nos somente a chan-ce de um desconto, e a partida terminou comuma vitória sua por 4 a 2. Nilton Santos, tam-bém traído pelos nervos, não jogou até o fim.Havia entrado com violência em Bozsik, foraagredido por ele, revidara, seguira para o vestiá-rio mais cedo, e o Brasil voltava pra casa.

Quatro anos passariam desde a derrota na Su-íça. Durante aqueles anos, Nilton Santos aprende-ria a conhecer como ninguém o futebol brasileiro,os seus defeitos e qualidades, os seus segredos eabsurdos, as suas possibilidades e limitações. Jo-gando pelo Botafogo, novamente pelas seleções ca-rioca e brasileira e até nas peladas – as quais elenão abandonaria nunca – transformou-se, pouco apouco, não apenas no nosso maior jogador de de-fesa, mas em um dos mais completos craques dofutebol brasileiro. Craque no verdadeiro sentido,beirando cada vez mais a perfeição. Um locutordesportivo, numa tarde de entusiasmo pelo seu fu-tebol, chamou-o de enciclopédia – e o termo ficoupara ser usado quando se quisesse definir o futebolde Nilton Santos – beque frustrado e temporão.

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

105

Durante aqueles quatro anos, ele viu, viveu esentiu toda a evolução do futebol brasileiro – umaevolução que não bastava, porque os outros, afi-nal, evoluíram da mesma forma. E o futebol bra-sileiro, para Nilton Santos, não precisava de umaevolução dentro do campo. Que outro jogador dasua época, aqui ou lá fora, conseguira superar Zi-zinho? Que evolução poderia haver, em matériade cabeça, pés e coração, depois de Zizinho? Não,também não estava ali a resposta.

Faltariam técnicos? Mas, descoberto o mal,faltava o remédio.

Para compensar tantas decepções, ao cursodaqueles quatro anos; para amenizar um poucoo pessimismo que os insucessos seguidos fize-ram nascer nele; para que aquele longo temponão fosse um grande vazio em sua vida, NiltonSantos teria uma única alegria: voltaria a ser cam-

peão carioca, em 1957, numa partida em que oBotafogo venceu o Fluminense por 6 a 2. E aquelagoleada, aquele título, aquela atuação soberba delee de todo o time, tinham uma significação espe-cial: reforçaram a sua crença de que o futebolbrasileiro possuía uma arma capaz de superar afalta de organização e de destruir qualquer es-crete húngaro – Garrincha.

Talvez fosse apenas uma crença, talvez fosse mais.Assim, em 1958, a comissão técnica parecia

cair do céu. Nela médico era médico; preparadorfísico, preparador físico; técnico, técnico. Um chefede delegação, um supervisor, um assessor, um den-tista e até um psicotécnico. Foi fácil criar o espíri-to de seleção, manter os jogadores unidos, treiná-los, prepará-los para ganhar a Copa do Mundo.Mas tudo isso só se descobriu mais tarde. NiltonSantos, com a experiência que adquirira em doisoutros mundiais, sentiu logo que as coisas estavamsendo feitas com acerto, que havia diferenças fun-damentais de 1958 para 1950 e 54.

Na primeira partida da Copa do Mundo, con-tra a Áustria, em Udevala, Nilton Santos marcouum gol. O Brasil conseguira uma vantagem de 1 a0 no primeiro tempo e o gol de Nilton Santos,logo no princípio do segundo, deu tranqüilidadeà seleção. Uma escapada pela esquerda, antes pa-recendo uma ousadia, seria concluída com umatabela com Mazzola e a bola na rede. Nilton San-tos sentia quando lhe era possível avançar assim,trocando a defesa pelo ataque, sem o perigo deum contragolpe. Era um modo de se ver meninonovamente, um menino cheio de saúde e disposi-ção. O Brasil venceu a Áustria por 3 a 0, masficou no 0 a 0 com a Inglaterra, dias depois.

A seleção brasileira ainda não estava pronta paraganhar a Copa do Mundo. A partida com os ingle-ses mostrara que o ataque, principalmente, preci-sava mudar. Joel quase não avançava, preocupadocom Dino, e Mazzola vivia com a cabeça cheia dasliras que o Milan lhe oferecia. Nilton Santos lem-brava-se do Mazzola: contra os ingleses, não fosseBellini trazê-lo a si com dois ou três tapas, e eleteria abandonado o jogo no meio, chorando, tre-mendo, não se sabia por quê. Sim, a seleção preci-sava mudar. Mas onde? Em primeiro lugar, na ponta-direita. Depois, se possível, a saída de Mazzola.

PH.FOT.03237.015

Da esquerda para direita: Ernani, Tomé, Nilton Santos e

Servilho. Jogadores do Botafogo comemoram a vitória sobre o

Fluminense por 6x2, na final do campeonato carioca de 1957.

Rio de Janeiro, 22/12/1957

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N I L TON SANTOS , A ENC ICLOPÉD IA

Nilton Santos procurou Didi, os dois junta-ram-se a Bellini e tomaram uma decisão. Pediri-am a Feola para escalar Garrincha contra os so-viéticos. Garrincha, quem sabe, acabaria com ossoviéticos em dois tempos.

Feola ouviu, paciente, a explicação de NiltonSantos. Didi e Bellini estavam ali de reforço, expli-cando também. Joel vinha jogando bem, tinha raça,merecia um lugar no escrete, mas não era Garrin-cha – Garrincha era Garrincha. Os três jogadores,vendo que Feola concordava, foram se aproveitan-do: Pelé também, Pelé e Garrincha, no mesmo ata-que, poderiam ganhar a Copa do Mundo.

Na partida com os soviéticos, entraram Gar-rincha e Pelé. O Brasil venceu, venceria depoiso País de Gales, a França, a Suécia. Seria cam-peão do Mundo.

O título nas mãos e no coração, já não haviaperguntas a fazer, já não interessava a Nilton San-tos – nem a ninguém – um estudo dos proble-mas do futebol brasileiro, do que faltava, do queera preciso fazer. O brasileiro sabia amar a bola.Mas era um amor que exigia equilíbrio, um cer-to método, um pouco de cabeça. Quando issofoi conseguido, fomos campeões do mundo.Descoberta da pólvora? Não importava mais.

Em 1962, nova Copa do Mundo, nova con-vocação. O aparecimento do jovem Rildo e osanos que começavam a pesar-lhes nos músculose no fôlego, haviam-no transformado em quarto-zagueiro do Botafogo. A seleção, porém, queria-o como lateral. Para que contrariar a seleção?

Ao voltar de Santiago, como bicampeão domundo, Nilton Santos evocou os seus 14 anos dejogador profissional: uma eternidade. Outros iampassando – como passaram aqueles meninos quetorciam por ele no Flecheiras – e Nilton Santosficava. As peladas na Ilha do Governador, o incen-tivo do irmão, o do major Honório, o Galeão, abola e o mar. Carlito Rocha tirando-lhe a vocaçãode atacante, para fazer dele o Nilton Santos. OBotafogo. Biriba, as chuteiras de bico duro, Zizi-nho, a briga com Bozsik, a tarde triste da partidacom a Hungria, quatro vezes campeão carioca, umabrasileiro, outra sul-americano, mais uma do Rio-São Paulo, títulos aqui e ali, duas Copas do Mundoconquistadas e – acima de tudo – o amor pela bola.

Não ficou triste quando a comissão técnicaomitiu o seu nome numa seleção que se propu-nha renovar o futebol brasileiro, durante uma ex-cursão à Europa. Não ficou triste, ainda que da-quela seleção fizesse parte o Mauro, o DjalmaSantos e outros veteranos. Triste ficou ao ver porterra, numa série de amistosos sem importância,tudo aquilo que ele ajudara a construir paciente-mente, com sofrimento, em tantos anos de luta.

Estava ficando velho. Tivera consciência dis-so numa partida com o Vasco, ao ver Quarenti-nha anulado por um beque forte, vigoroso, comfutebol para qualquer preço. Ficou surpreso quan-do lhe disseram:

– É o Brito, filho do Ruas.Ruas, o craque do Flecheiras, jogara ao seu lado.

Agora, o filho era seu adversário no Maracanã.Velho ou não, era ainda um craque. O mesmo

estilo elegante, a corrida firme, a perfeita noção dopasse, o drible arriscado sempre executado comsegurança, a bola morta mansamente entre os seuspés, a cobertura substituindo a marcação colada,os avanços arrojados em busca de um gol que fal-tasse. Fez muitos assim, um deles no último minu-to de uma partida com o Alianza de Lima, classifi-cando o Botafogo para a Taça Libertadores daAmérica. E já era um velho, um velho craque.

Em 16 anos, perdeu muitas vezes a cabeça,reclamou do juiz, fez faltas violentas e foi expul-so de campo. Sua ficha disciplinar não serve debom exemplo. Certa vez, no Pacaembu, reagiucontra a marcação de um pênalti contra o Bota-

PH.FOT.32230.028

O árbitro Armando Marques em ação

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

107fogo. Armando Marques, o juiz, ficou furioso,ameaçou-o de expulsão, o dedo erguido, a falade homem zangado. Nilton Santos aceitou a zan-ga sem aceitar o dedo: agrediu-o e saiu de cam-po, expulso. Naquele instante, seu único pensa-mento foi para o filho de nove anos, menino acos-tumado a ouvir dos amiguinhos coisas sobre opai famoso. Que Carlos Eduardo jamais ouvissealguém chamá-lo de covarde.

Ia-se tornando um lugar-comum dizer que ofutebol de Nilton Santos desafiava o tempo. Nadamais falso. Bem que ele, antes de o despediremda seleção, despediu-se dela várias vezes, por con-ta própria, uma delas descendo de helicópterono Maracanã, por imposição dos que queriamdar à ocasião um caráter solene. Foi obrigado,novamente, a manter entre os dentes a medalhi-nha de São Judas Tadeu – sua tão castigada pro-tetora em muitos vôos para um adeus que seriaapenas uma ameaça. Bem que ele, também porvárias vezes, prometeu largar o futebol tão logoterminasse seu contrato com o Botafogo. Mas oclube fazia-lhe propostas excepcionais e o cora-ção de alvinegro levava-o a adiar por mais umou dois anos a despedida prometida. Não, o fu-tebol de Nilton Santos não desafiava o tempo –o tempo é que desafiava o futebol de Nilton San-tos e perdia para ele todos os rounds.

Um dia, porém, a vaidade de alguns dirigentes– sempre a vaidade – criou entre o craque e o Bota-fogo um caso sem solução: um grupo de jornalistascariocas, a exemplo do que é feito na Europa comos velhos e eternos ídolos, idealizou uma partida emhomenagem a Nilton Santos, mas o Botafogo foicontra a idéia, sem que nunca seus dirigentes conse-guissem dar uma explicação convincente. Oficial-mente, o clube alegava que, sendo a renda da parti-da para Nilton Santos, parecia que o jogador ia malde vida, quem sabe por culpa do próprio Botafogo.A vaidade somou-se à ingratidão, não houve o taljogo e Nilton Santos deixou o futebol para sempre.

Agora, outra vez como temporão, ele poderecomeçar sua vida de atacante de área, inter-rompida há muitos anos, na Ilha do Governa-dor. É um homem feliz, realizado, sem mágoas.Transformou-se em placa de bronze em Belo Ho-rizonte, em exemplo que a Assembléia Legislativacita para os moços de hoje, em símbolo do fute-bol bicampeão do mundo. É possível que, em bre-ve, venha a dar nome a uma rua da ilha onde nas-ceu. No momento, de volta ao convívio com aturma do Flecheiras, pensa apenas em mostrar aCarlos Eduardo – cujo sonho de goleiro é a gran-de preocupação do pai – que não é preciso usaras mãos para acarinhar a bola. Os pés tambémservem, se forem os pés de um Nilton Santos.

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E eis que, pela primeira vez, um

“seu” Manuel é o meu personagem

da semana. Com esse nome cordial

e alegre de anedota, ele tomou conta

da cidade, do Brasil e, mais do que

isso, da Europa. Creiam, amigos:

o jogo Brasil x Rússia acabou nos

três minutos iniciais. Insisto: nos

primeiros três minutos da batalha,

já o “seu” Manuel, já o Garrincha,

tinha derrotado a colossal Rússia,

com a Sibéria e tudo o mais. E

notem: bastava ao Brasil um empa-

te. Mas o meu personagem não

acredita em empate e se disparou

pelo campo adversário, como um

tiro. Foi driblando um, driblando

outro e consta inclusive que, na sua

penetração fantástica, driblou até

as barbas de Rasputin.

Descobertade Garrincha*

Nelson Rodrigues

Amigos: a desintegração da de-

fesa russa começou exatamente na

primeira vez em que Garrincha to-

cou na bola. Eu imagino o espanto

imenso dos russos diante desse ga-

roto de pernas tortas, que vinha

subverter todas as concepções do

futebol europeu. Como marcar o

imarcável? Como apalpar o impal-

pável? Na sua indignação impoten-

te, o adversário olhava Garrincha,

as pernas tortas de Garrincha e

concluía: – “Isso não existe!”. E eu,

como os russos, já me inclino a

acreditar que, de fato, domingo

Garrincha não existiu. Foi para o

público internacional uma experi-

ência inédita. Realmente, jamais se

viu, num jogo de tamanha respon-

sabilidade, um time, ou melhor, um

jogador começar a partida com um

baile. Repito: – baile, sim, baile! E

o que dramatiza o fato é que foi

baile não contra um perna-de-pau,

mas contra o time poderosíssimo

da Rússia.

Só um Garrincha poderia fazer

isso. Porque Garrincha não acre-

dita em ninguém e só acredita em

si mesmo. Se tivesse jogado contra

a Inglaterra, ele não teria dado a

menor pelota para a rainha Vitó-

ria, o lord Nelson e a tradição na-

val do adversário. Absolutamente.

Para ele, Pau Grande, que é a terra

onde nasceu, vale mais do que toda

a Comunidade Britânica. Com esse

estado de alma, plantou-se na sua

ponta para enfrentar os russos. Os

outros brasileiros poderiam tremer.

* Contexto: Brasil 2 x 0 União Soviética, 15/06/1958, em Götemburgo (Suécia). A URSS era apontada como o grande fantasma da Copa porseu “futebol científico”.

Dramaturgo, escritor e jornalista.

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109Publicado em Nelson Rodrigues, À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 53-54.

Ele não e jamais. Perante a platéia

internacional, era quase um meni-

no. Tinha essa humilhante sanida-

de mental do garoto que caça cam-

baxirra com espingarda de chum-

bo e que, em Pau Grande, na sua

cordialidade indiscriminada, cum-

primenta até cachorro. Antes de

começar o jogo, o seu marcador

havia de olhá-lo e comentar para si

mesmo, em russo: “Esse não dá pra

saída!”. E, com dois minutos e

meio, tínhamos enfiado na Rússia

duas bolas na trave e um gol. Aqui,

em toda a extensão do território

nacional, começávamos a descon-

fiar que é bom, que é gostoso ser

brasileiro.

Está claro que não estou subes-

timando o peito dos outros joga-

dores brasileiros. Deus me livre.

Por exemplo: cada gol de Vavá era

um hino nacional. Na defesa, Be-

llini chutava até a bola. E quando,

no segundo tempo, Garrincha re-

solveu caprichar no baile, foi um

carnaval sublime. A coisa virou

show de Grande Otelo. E tem ra-

zão um amigo que, ouvindo o rá-

dio, ao meu lado, sopra-me: “Isso

que o Garrincha está fazendo é pior

do que xingar a mãe!”. Calculo que,

a essa altura, as cinzas do czar ha-

viam de estar humilhadíssimas. O

marcador do “seu” Manuel já não

era um: eram três. E, então, come-

çou a se ouvir, aqui no Brasil, na

praça da Bandeira, a gargalhada

cósmica, tremenda, do público su-

eco. Cada vez que Garrincha pas-

sava por um, o público vinha abai-

xo. Mas não creiam que ele fizesse

isso por mal. De modo algum. Gar-

rincha estava ali com a mesma boa-

fé inefável com que, em Pau Gran-

de, vai chumbando as cambaxirras,

os pardais. Via nos russos a inocên-

cia dos passarinhos. Sim: os adver-

sários eram outros tantos passari-

nhos, desterrados de Pau Grande.

Calculo que, lá pelas tantas, os

russos, na sua raiva obtusa e ino-

fensiva, haviam de imaginar que o

único meio de destruir Garrincha

era caçá-lo a pauladas. De fato,

domingo, só a pauladas e talvez nem

isso, amigos, talvez nem assim.

Manchete Esportiva, 21/6/1958P

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O anjo das pernas tortas

Vinicius de Moraes Poeta.

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111Publicado em Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade (orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso. Rio de Janeiro: José Olympio,1965, p. 218. Disponível em www.viniciusdemoraes.com.br.

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A um passe de Didi, Garrincha avança

Colado o couro aos pés, o olhar atento

Dribla um, dribla dois, depois descansa

Como a medir o lance do momento.

Vem-lhe o pressentimento; ele se lança

Mais rápido que o próprio pensamento

Dribla mais um, mais dois; a bola trança

Feliz, entre seus pés – um pé de vento!

Num só transporte a multidão contrita

Em ato de morte se levanta e grita

Seu uníssono canto de esperança.

Garrincha, o anjo, escuta e atende: – Goooool!

É pura imagem: um G que chuta um o

Dentro da meta, um 1. É pura dança! [1962 ]

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Garrincha, lendas e películas desbotadas

Jornalista e sociólogo, autor de O cinema de Humberto Mauro (Funarte, 2001).André Andries

A história dos povos e dos indivíduos flui, mudasempre, como um curso d’água em movimento con-tínuo. Ninguém vive duas vezes os mesmos even-tos com a mesma forma e intensidade. Por isso aimposibilidade de rever na tela e no tempo presen-te o legado cinebiográfico sobre Mané Garrincha,sem perceber e evidenciar as oscilações das nar-rativas de sua curta história esportiva, a maré queveio lentamente em contrafluxo, turvando o queela tinha de beleza e poesia.

Exatos quarenta anos separam a realização doprimeiro filme de longa-metragem dedicado ao jo-

gador, o documentário Garrincha, alegria do

povo, de Joaquim Pedro de Andrade (1963)do mais recente, a ficção Garrincha, a es-

trela solitária, de Milton Alencar (2003).Entre os dois foi realizada quase umadezena de curtas-metragens, que tenta-ram conformar a lenda de um herói que

tombou combatendo nos gramados,mas cujo brilho, como numa ex-plosão imperceptível de uma estrelanova, só chegou aos olhos dos con-

temporâneos quando já havia fenecido.Garrincha, alegria do povo, sendo

o primeiro, fez-se um clássico e so-bre ele e toda a obra documentalde Joaquim Pedro, Luciana Cor-rêa de Araújo dedicou um alenta-do ensaio, “Beleza e poder: os do-

cumentários de Joaquim Pedrode Andrade”.1 Nele, confir-mou a singularidade e pereni-

dade de um filme que, à semelhança

de outros realizados pelo cineasta retratando persona-lidades – Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e Antô-nio Francisco Lisboa –, revela um autor passional eimparcial com seus objetos de admiração e análise.

A relação entre futebol e poder perpassa todoo filme. A câmera e o autor posicionam-se estrate-gicamente em campo. Ciente da força maior dosadversários, o cineasta veste a camisa do jogador eopta por uma tática de contra-ataques num está-dio/ambiência pré-golpe militar de 1964: a meta édriblar os políticos, o clero, a polícia e os dirigen-tes esportivos, que representam o sistema de po-der que explora à exaustão a força de trabalho dojogador-símbolo, sendo ele a personificação de umpaís de pernas laceradas e joelhos inchados.

Joaquim Pedro, no entanto, é lírico, faz poesianesse cenário de iniqüidades e homenageia compaixão de torcedor o ídolo que um ano antes foraconsagrado como o melhor jogador da Copa doMundo no Chile. Esse perfil de Mané Garrincharessurge e assemelha-se ao de Antônio FranciscoLisboa, que Joaquim Pedro esculpiu para O Alei-

jadinho (1978), também uma homenagem a outroartista feito símbolo do afro-barroco tropical. Ume outro são focados como santos e profetas, artis-tas mestiçados, curvos e tortos, que espelham odrama e a emoção do (país) imperfeito.

Também nessa obra o cineasta coloca-se emcontra-ataque. É um inconfidente tardio quando acâmera fixa os olhos estufados dos profetas deCongonhas do Campo, perscrutando no passadopossíveis respostas para as questões das inconfi-dências do tempo presente, alternativas ao cicloclérigo-militar que agonizava como o Cristo cha-

1 ARAÚJO, Luciana Corrêa de. Beleza e poder: os documentários de Joaquim Pedro de Andrade. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo.Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus, 2004, p. 227-259.

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gado de Aleijadinho, que o cineasta toma comosímbolo do herói vitimizado.

Renato Janine Ribeiro diz que na modernida-de temos duas grandes versões da democracia: umaromântica e a outra marxista.2 A versão românticado povo percebe que ele não está dado e procuracriá-lo. Mesmo quando um autor de perfil român-tico, como Joaquim Pedro, não pretende criar opovo, mas reconhecê-lo, o que ele se propõe a fil-mar é a construção de um símbolo, porque esseGarrincha/povo não existe, como todas as deter-minações que lhe desejamos atribuir. A lenda temde ser inventada e capturada para que correspondaao que conceitualmente estava predefinido.

Garrincha, a estrela solitária, é uma demão quecobre com cores e cenas ainda mais dramáticas,quando não apelativas, a lenda-símbolo cuja estre-la não mais reluz e o tempo desbotou. O filme deMilton Alencar não faz jus à biografia, minuciosae solar, que Ruy Castro dedicou ao craque e so-bre a qual o roteiro foi escrito. Apenas confirmauma imagem infantilizada desse Garrincha/povoque sua cinebiografia insiste em realçar, quandofilma pela ponta-esquerda, e demenciar, quandoataca pela direita. Um retake lacrimogêneo e ro-mântico do dogma rousseauniano (pureza e bon-dade natural) que a obra original de Joaquim Pe-dro pespegou à vida de Garrincha e que se esten-deu e ampliou-se em outros roteiros de cineastasque lhe foram contemporâneos e se dedicaram emanos seqüentes ao mesmo personagem.

Esse dogma está evidente na cena de aberturado filme de Alencar. Não é um Garrincha adultoque é posto a desfilar no carnaval sobre um carroflorido, alegoria óbvia ao cortejo fúnebre que me-

ses depois o levaria em definitivo para sua Pasár-gada de Pau Grande. Quem atravessa a avenida edesperta compaixão é a infância do menino-pas-sarinho, o anjo bêbedo deambulando em campose estádios mofinos do interior do país. É o brasi-leiro cordial que teve sua natureza degradada poruma sociedade formada por homens e dirigentesoportunistas, uma crônica perversa tal como a quefoi descrita antes por Maurice Capovilla, em Sub-

terrâneos do futebol (1965), em sua interpretaçãomarxista do Garrincha/povo.

O enunciado do filme é o seguinte: “o futebolfaz esquecer de tudo. É o divertimento que melhorse ajusta ao brasileiro. O jogador de futebol deixade ser um ser comum para ser um objeto de domí-nio público [...]. Dois jogos por semana, quatrotreinos, sem descanso; quando pára é porque estádoente ou machucado; a cada parada o medo au-menta, a competição é grande. Ele perde o lugarpara sempre e fica esquecido...”

Uma furibunda peroração a que nem os torce-dores escapam:

“Quanto paga o torcedor a cada jogo? Bastan-te, diante do pouco que ganha para enfrentar chu-va e sol e derrotas. O torcedor garante o saláriodos grandes artistas, sustenta os clubes e proporci-ona a cada jogo, renda de milhões de cruzeiros...”

Aprisionado nessa gaiola, Capovilla exibe ojogador num estádio/poleiro, onde Mané Gar-rincha já capturado pelo alçapão da esquerda ce-pecista não gorjeia mais, apenas pia, é uma aveagourenta de asas, pernas e vôo curto. A glóriaque se proclama é uma derrota pré-anunciada.Um repertório de gols e o espasmo prazerosodos torcedores são ali refinados numa discursiva

2 RIBEIRO, Renato Janine. Perspectivas para o Brasil. Rio de Janeiro: Fundo Nacional de Cultura, 2002.

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vaniloqüência e transforma-dos no ópio servido às mas-sas alienadas dos estádios.Garrincha e o futebol retran-cam a revolução dos alopra-dos de então. Garrincha, o perseguido, tomba pelamarcação desleal dos adversários, e também peloálcool, mas o bêbado é algo insuportável nessejogo de falsas aparências e, por isso mesmo, umarealidade desprezada no roteiro. No entanto, éseu bafo de cachaça que embaça as lentes da câ-mera e a história, um símbolo do Brasil que ocinema da época supunha ser o de verdade.

A construção e a captura de um símbolo

A cinebiografia de Garrincha está vazada emfatos reais e históricos, mas foram as versões dashistórias contadas pelos cronistas que o acom-panharam em sua trajetória esportiva, que con-formaram a lenda que suplantou a realidade. EmO homem que matou o facínora (1962), JohnFord, ao fazer uma exegese sobre os heróis, mos-trou que todas as lendas, todas as histórias, fo-ram mitificadas para se tornarem parte de umahistória oficial, por isto, quando a versão é mais

forte que o fato, imprima-se a versão. SandroMoreira, retratado no filme de Milton Alencar,João Saldanha, técnico do Botafogo numa épocaem que a equipe reunia uma constelação de es-trelas, Sérgio Porto e Armando Nogueira, entretantos outros, foram versionistas e fabulistas bri-lhantes em narrativas sobre a vida de Garrincha,algumas delas pontuais nessa cinebiografia do jo-gador. Dentre eles, Armando Nogueira se desta-ca, por sua colaboração em muitos roteiros, desdeo filme de Joaquim Pedro até o mais recente deMilton Alencar. Na crônica “Anjo que dribla”,Garrincha “era Chaplin, esculpindo no vento umasucessão maravilhosa de gestos cômicos; era otoureiro, inventando verônicas que a multidãosaudava, cantando olé; era São Francisco de As-sis, engrandecido na humildade com que sofriaos pontapés do desespero”.3

Quando Garrinchaabandona, enfim, o futebole seu drama real vem àtona, o cronista e biógrafosente que a peleja de anos

para construção de um mito está perdida e, re-signado, clama por penitência:

“Quem sabe dele, hoje? Anda por aí acorrentado, chu-

tando, talvez sandálias, a bola de ferro da nossa indiferença.

Estátua, nome de rua, conta bancária nada lhe demos...

nem uma festa para a volta olímpica no estádio que ele

eternizou com a obra efêmera e imortal de seu drible pela

direita. Que Deus nos perdoe o pecado de desprezar um

ídolo que, pelo menos para mim, já me basta a pena de nunca

mais voltar a ver nos estádios um drible de Garrincha.”

Garrincha morreu em 1983, mas EduardoGaleano segue fabulando a versão:

“Quando ele estava lá, o campo era um picadeiro

de circo; a bola, um bicho amestrado; a partida, um

convite à festa; incendiava os estádios louco por ca-

chaça e por tudo que ardesse, o que fugia das concen-

trações, pulando pela janela, porque dos terrenos bal-

dios longínquos o chamava alguma bola que pedia

para ser jogada, alguma música que exigia ser dança-

da, alguma mulher que queria ser beijada.”4

Sérgio Porto, em Bola na rede: a batalha do bi,ao descrever a campanha do Chile, faz-se de de-miurgo, mas impõe restrições:

“[...] não sou um locutor esportivo para ficar descre-

vendo o tapete verde, a tarde primaveril e outras bossas.

Vou escrevendo essas páginas no correr dos jogos mesmo,

na pressa de remetê-las para o Brasil. E isso é de lascar, mas

a culpa é minha: não tinha nada que assinar o contrato para

escrever essas páginas. Fizemos um relato que, francamen-

te, não sabemos como saiu. Pois, como tínhamos dito, estes

escritos saem diretamente da tribuna de imprensa deste

estádio para o aeroporto em Santiago. E por falar em peno-

samente, que coisa de amargar é escrever Garriedg... isto é,

Garrrinj&... não Garrincha, e sai GarR8cha.”5

3 NOGUEIRA, Armando. O homem e a bola. Porto Alegre: Globo, 1988, p. 73. 4 GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra.Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 118.

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Garrincha e Didi

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115115Sérgio Porto escrevia filmando todos os atoresdaquele grandioso espetáculo e cenário, os que es-tavam dentro e fora da cena. O foco preferencialdas narrativas de Sandro Moreira e João Saldanhaera Garrincha, sendo eles os alicerces da constru-ção e pilares que sustentaram a lenda. Sérgio vi-bra, mas seu alter ego, Stanislaw Ponte Preta, éum cético que glosa os colegas comunistas ao re-nomear o ídolo num instantâneo e primoroso poe-ma concreto, sintético e real: GArR8cha.

A festa de despedida reclamada como umapenitência por Armando Nogueira foi realizadano dia 19 de dezembro de 1973, no Maracanã,com o comparecimento de 150 mil espectado-res. O jogo da gratidão (ou de expiação de cul-pas) foi documentado no curta O incrível Mané

Garrincha, de Aécio de Andrade (1978). Tenta-se uma entrevista com o homenageado, mas Gar-rincha é tímido e apenas balbucia frases, comose lançasse passos para um ponto vazio do cam-po. O iluminador foca seu rosto, mas o que sur-ge enquadrado nas telas é uma sombra mergu-lhada numa escuridão profunda. O narrador tentaquebrar o clima e a penumbra: “De bom tempe-ramento, ingênuo e brincalhão, no campo ManéGarrincha se transforma no gênio do futebol.Com sua picardia, os dribles desconcertantes eos gols fantásticos, Garrincha conquistou a sim-patia de todas as torcidas. Graças a Seu Mané,também conhecido como passarinho, o Brasil con-quistou duas Copas do Mundo. Vítima de umaartrose no joelho, Garrincha parou de jogar hátrês anos.” É um melancólico final de jogo e vida.

Heleno e Garrincha (1987), de Ney CostaSantos, é um curta-metragem de ficção que pro-move um imaginário encontro entre esses doisatletas-símbolos do Botafogo. Garrincha já estámorto. Heleno também, morreu em 1958 sem sa-ber que o Brasil se sagrara campeão na Suécia. Sãofantasmas que ressurgem para assombrar os vivose chutar a memória desbotada da sociedade.

Em 1954, quando Heleno de Freitas foi apri-sionado numa camisa-de-força e mandado para

um hospital de doentes mentais, em Barbacena(MG), Garrincha partiu de Pau Grande para ini-ciar sua trajetória esportiva. Costa Santos, coma colaboração do escritor Lúcio Cardoso no ro-teiro, não sublinha, apenas sugere semelhançasno destino final desses dois personagens que ti-veram origens e vidas tão distintas. É um filmesereno, disrítmico, que destoa do conjunto defilmes dedicados a Garrincha. O jogo da vida éapenas um intervalo entre o nascimento e a mor-te. Garrincha e Heleno dialogam nas arquiban-cadas vazias do antigo estádio do Botafogo, narua General Severiano. O tema é a derrota doBrasil para o Uruguai na Copa de 1950, o fute-bol que se pratica nos tempos atuais:

– Garrincha: O que houve? Morreu alguém? Onde

já se viu chorar por causa de futebol?

– Heleno: São uns frouxos, um bando de medrosos.

Um bando de castrados. Se eu estivesse lá, o Brasil não

perdia esse jogo de jeito nenhum. Eu queria ver qual era o

gringo que ia gritar e dar pontapé comigo no campo. Os

merdas jamais me perdoaram, tinham inveja de mim, o

grande Heleno de Freitas. Porque eu era o artista do fute-

bol, um guerreiro, o herói das tardes de domingo.

– Garrincha: Meu futebol acabou e eu não posso ga-

rantir o meu sustento. Tenho de ser Garrincha até o fim.

Garrincha nasceu para o cinema num cenário devidas secas e dragões da maldade. Adulto, foi cobertopela indumentária de um santo guerreiro. ComoSão Sebastião, morreu duas vezes, a der-radeira num mesmo dia 20 de ja-neiro. Subiu aos céus, comoMacunaíma, para ser uma so-litária e desbotada estrela nofirmamento. Mas o cinemanão captou seu último dri-ble sobre um curso d’águapara alcançar a terceira mar-gem do rio. E por lá que eleainda vive batendo um bolão, sen-do GarR8cha até um outro fim.

5 PORTO, Sérgio. Bola na rede: a batalha do bi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993 apud BRITO, Regina Pires de eMARQUES, José Carlos. O futebol e o riso na voz de Stanislaw: a tradição lúdica nas crônicas esportivas de Sérgio Porto. Disponível emwww.heco.com.br/ensaios/o4_01, p. 27. Acesso em 29 de maio de 2008.

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GARRINCHA,o homem que ganhou duas

copas do mundo para o Brasil

Editor de texto, advogado e servidor do Arquivo Nacional.José Claudio Mattar

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Em meados da década de 1960, quando eu eragaroto, gostava de ficar perguntando às pessoas,aos amigos, quem era o melhor jogador de futeboldo mundo, Garrincha ou Pelé? Naqueles tempos oBotafogo tinha um timaço e o Brasil vinha da con-quista de duas Copas do Mundo. Essas Copas pro-duziram dois superídolos mundiais, a ponto de sefalar que eram os melhores jogadores de futebol detodos os tempos. Sobre Pelé não é preciso dizermais nada. É consagrado o melhor do mundo, sen-do confrontado atualmente apenas por Maradona.Mas, de Garrincha é preciso estar sempre lembran-do, porque se não foi o melhor de todos os tem-pos, foi o mais fascinante jogador de futebol. Ejuro que não é papo de botafoguense.

“Vocês se lembram de Charles Chaplin emLuzes da ribalta fazendo o número das pulgas ames-tradas?” Pois era assim que o cronista esportivoNelson Rodrigues via Garrincha, um dos maioresgênios da história do futebol mundial, morto já faz25 anos. Sua irreverência e genialidade encantama todos até hoje. Mesmo os que confessam nãogostar de futebol se dobram aos dribles do “anjode pernas tortas”, como foi chamado pelo poetaCarlos Drummond de Andrade.

Manuel Francisco dos Santos, o Mané Gar-rincha, nasceu em Pau Grande, no estado do Riode Janeiro, em 1933. Antes de fascinar o mundocom seus dribles, Mané Garrincha, ou simples-mente Mané, enfrentou todas as dores da misé-ria. Consta que as pernas tortas foram resultadode uma poliomielite adquirida na infância. Porcausa da distrofia física, os médicos acharam queele nunca seria capaz de andar direito, tampou-co jogar bola. Erraram feio.

Também erraram os cartolas do Vasco e doSão Cristóvão, que o dispensaram por causa das

pernas tortas e de um desvio na coluna. Mané, então,procurou o Botafogo. Na biografia A estrela solitá-

ria, de Ruy Castro, consta que a contratação deMané se deu por insistência do jogador NiltonSantos, que, no teste, tinha a função de marcá-lo.Tomou tanta bola entre as pernas, dribles pelo meio,por fora, que acabou saindo do campo sem enten-der o que estava acontecendo. “Contrata logo, peloamor de Deus, senão eu nunca mais vou poderdormir sossegado”, disse. O já consagrado NiltonSantos foi o primeiro a sentir na pele as diabrurasde Mané. Estávamos em 1953, e o sono dos mar-cadores de Garrincha nunca mais foi o mesmo.

Logo em seguida a esse teste, o então técni-co Gentil Cardoso o lançou como titular da equi-pe de aspirantes e Garrincha pela primeira vezvestia a camisa do Botafogo em partida oficial.Por um jogo só, porque tendo feito três gols con-tra o São Cristóvão foi logo promovido. Maisuma semana e estreava entre os titulares, em jogodo Botafogo contra o Bonsucesso. Botafogo 5 a2, e Garrincha voltou a fazer três gols.

Alguns dias depois, conforme relata Marcos deCastro no livro Gigantes do futebol brasileiro, umacomissão de diretores do Botafogo foi a Pau Gran-de convencê-lo a assinar um contrato, pois ele nãoquis voltar ao Rio após a primeira conversa sobreo assunto, pensando que não lhe fossem dar pelomenos o que ele ganhava na fábrica onde trabalha-va: um salário mínimo. Ficou no Botafogo e nãolargou mais o lugar de titular da ponta-direita.

Em 1956, já era famoso no país, pois seus dri-bles desconcertantes o transformaram numa dasgrandes figuras do futebol brasileiro, cujas caracte-rísticas muito especiais e raras encantavam o tor-cedor, sobretudo o alegre torcedor brasileiro, quevia no drible a coisa mais saborosa do futebol.

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GARR INCHA , O HOMEM QUE GANHOU DUAS COPAS . . .

Alegria do povo

O gramado virava o picadeiro de Mané, a bolalhe era submissa e a partida se tornava uma festa.“É aí que estava o milagre. O povo ria antes dagraça, da pirueta. Ria adivinhando que Garrinchaia fazer sua grande ária, como na ópera. Como sesabe, só jogador medíocre faz futebol de primeira.O craque, o virtuoso e o estilista prendem a bola.Sim, ele cultiva a bola como uma orquídea de luxo”,afirmava Nelson Rodrigues. Os dribles de Garrin-cha não tomavam conhecimento do adversário.Fosse quem fosse, o marcador era sempre algum“João” parafusado na lateral. Quando a bola estavaem seus pés, todos eram iguais. Muitas vezes pare-cia que o craque jogava sozinho contra os onzeadversários. Eles o perseguiam, lutavam em vãocomo touros. Mas Garrincha era um matador.Depois de driblar dois, três, quatro jogadores, co-locava suas mãos na cintura e esperava. O silênciodas multidões era o prelúdio das gargalhadas.

O auge da glória

O craque conheceu seu auge nas Copas de 1958e 1962. Na primeira, na Suécia, dividiu as aten-ções com um jovem e talentoso jogador chamadoPelé. Mas foi considerado o melhor de sua posi-ção, a ponta-direita, e um dos melhores da Copa.Na segunda, no Chile, Garrincha foi o responsávelpela conquista do bicampeonato da seleção. NessaCopa, Pelé, já consagrado, não pôde mais jogardevido a uma contusão no segundo jogo.

Na Suécia, aconteceu a consagração definitivade Garrincha, já vislumbrada por muitos com umacerteza profética. Foi somente no terceiro jogo daCopa do Mundo de 1958 que Garrincha entrou notime titular da seleção, no memorável jogo com aRússia, quando ele teve uma atuação desconcer-tante. Deixou completamente tonto o russo incum-bido de marcá-lo e todos os outros que foram obri-gados a se dedicar à inglória tarefa de fazer a co-bertura. Os dribles de Garrincha eram inacreditá-veis para os europeus. Um a um iam sendo dribla-dos, ridicularizados na verdade, pois Garrincha eraum debochado eficiente. Com esse jogo, Garrin-cha foi consagrado e não saiu mais do time. Até o

fim do torneio apenas vitórias e muitos, muitosdribles de Garrincha, e finalmente a tão sonhadaconquista de uma Copa do Mundo, oito anos apóso famoso “desastre” de 1950 no Maracanã.

A história da Copa do Mundo de 1962 noChile é a de um craque incomparável, que ficarácomo legenda de todos os tempos. Marcos deCastro, no já citado livro Gigantes do futebol,assim relata aquele episódio:

“Foram seis jogos em que ele foi a presença incansá-

vel, elevando a alturas nunca antes atingidas a eficiência

de seu drible, drible padrão da picardia do futebol brasi-

leiro. Do segundo em diante, quando saiu Pelé para não

mais voltar, vítima da mais célebre distensão na coxa dos

arquivos do futebol brasileiro, Garrincha transformou-se

na esperança maior de todo o país, que via nele o único

homem para manter o ritmo de uma seleção até então

irresistível, mas de qualquer maneira quatro anos envelhe-

cida em relação aos campeões de 58, na Suécia, pois os

homens eram quase os mesmos. E Garrincha conduziu

como ninguém aquela esperança, até fazer dela o segundo

título seguido do Brasil.”

Nos jogos contra o Chile e contra a Inglaterra,em especial, Garrincha foi praticamente sozinho aglória da seleção brasileira. Na final, contra a Tche-coslováquia, Garrincha em grandes lances com suamarca inconfundível dava, pela segunda vez segui-da, um título mundial ao Brasil.

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119119Da glória à decadência

A maior parte de sua carreira, Garrincha de-fendeu o Botafogo (1953 a 1965), sendo conside-rado pelos torcedores desse time o maior ídolo detodos os tempos, ao lado de Nilton Santos, a enci-clopédia do futebol. No auge do Botafogo, os em-presários estrangeiros pagavam mais para vê-lo: otime valia uma quantia sem ele, e o dobro com ele.Passou ainda pelo Corinthians (1966), Flamengo(1969) e também pelo Olaria, em 1972, quando jáestava em fase decadente. Pela seleção atuou até1966, ano em que a Inglaterra conquistou o mun-dial e o Brasil foi eliminado por Portugal.

Se Garrincha foi chamado de “a alegria do povo”,sua vida foi marcada por muitas tragédias. No finaldos anos de 1960, Mané entrou numa espiral de de-cadência. Seu casamento com a cantora Elza Soares,muito condenado na época, estava em declínio. Coma idade e a vida boêmia, Mané perdeu a agilidadepara o futebol. Seus problemas se agravaram com oalcoolismo, que acabou levando-o à morte.

Em 1982, depois de vários anos sem ser vistopublicamente, um Garrincha catatônico, meio zum-bi, surgiu em um carro alegórico da Mangueira,que lhe prestava homenagem naquele carnaval.Mané não conseguia nem ficar de pé para saudar amultidão que tanto lhe louvou. Uma tristeza. Noano seguinte, morreu pobre, bêbado e solitário.

Pernas tortas x perna-de-pau

Certamente muitos dizem que Mané não te-ria espaço no futebol moderno. Lamentavelmen-te eles não deixam de ter uma certa razão. A ale-gria, a irreverência e o deboche de Garrinchanada têm a ver com o futebol técnico, mecânico,defensivo, atualmente apelidado de “futebol deresultado”, praticado por jogadores pagos a pesode ouro. E pior, uma mediocridade louvada porinúmeros jornalistas, jogadores e técnicos, cha-mados hoje em dia de “professores”.

Mesmo assim, a sombra da irreverência deMané tenta sobreviver, como, por exemplo, nodrible da foca do cruzeirense Kerlon, que controlaa bola na cabeça e segue em direção ao gol. Em umjogo contra o Atlético Mineiro, ao tentar a jogada

Kerlon foi agredido com violência por seu marca-dor. O caso provocou polêmica e os arautos damediocridade defenderam a agressão.

O que esperar de um futebol cujos campeonatossão marcados pela corrupção, cartolagem, erros dearbitragem e a crescente mercantilização das grandesempresas que patrocinam campeonatos, clubes e jo-gadores? De campeonatos de fraco nível técnico?

Infelizmente, no futebol dos “pernas-de-pau”,dos medíocres e dos “volantes”, há cada vez menosespaço para espetáculos de “pernas tortas”.

Eternamente admirado, Garrincha foi homena-geado com o poema O anjo de pernas tortas, de Viní-cius de Moraes, o documentário Garrincha, alegria

do povo, de Joaquim Pedro de Andrade, a biografiaEstrela solitária, de Ruy Castro, e a crônica “Mané eo sonho”, de Carlos Drummond de Andrade:

“Se há um deus que regula o futebol, esse deus é

sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus

delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos

estádios. Mas, como é também um deus cruel, tirou do

estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condi-

ção de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que

ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é

que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponí-

vel. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.”

(Trecho da crônica publicada no Jornal do Brasil, em 22/

1/1983, dois dias após a morte de Garrincha.)

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A realeza de Pelé*

Nelson Rodrigues

* Santos 5 x 3 América, 25/2/1958, no Maracanã, pelo Torneio Rio–São Paulo. Foi a primeira crônica de Nelson sobre Pelé – e a primeira em queo jogador foi chamado de “rei”.

Dramaturgo, escritor e jornalista.

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Didi e Pelé naconcentração, 17/4/1962

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121121Publicado em Nelson Rodrigues, À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 42-44.

Depois do jogo América x San-tos, seria um crime não fazer de Peléo meu personagem da semana.Grande figura, que o meu confradeAlbert Laurence chama de “o Do-mingos da Guia do ataque”. Exami-no a ficha de Pelé e tomo um susto:– dezessete anos! Há certas idadesque são aberrantes, inverossímeis.Uma delas é a de Pelé. Eu, com maisde quarenta, custo a crer que alguémpossa ter dezessete anos, jamais.Pois bem: – verdadeiro garoto, omeu personagem anda em campocom uma dessas autoridades irresis-tíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, nãosei se Lear, se imperador Jones, seetíope. Racialmente perfeito, do seupeito parecem pender mantos invi-síveis. Em suma: – ponham-no emqualquer rancho e a sua majestadedinástica há de ofuscar toda a corteem derredor.

O que nós chamamos de reale-za é, acima de tudo, um estado dealma. E Pelé leva sobre os demaisjogadores uma vantagem conside-rável: – a de se sentir rei, da cabe-ça aos pés. Quando ele apanha abola, e dribla um adversário, écomo quem enxota, quem escorra-ça um plebeu ignaro e piolhento. Eo meu personagem tem uma tal sen-sação de superioridade que não fazcerimônias. Já lhe perguntaram: –“Quem é o maior meia do mun-do?”. Ele respondeu, com a ênfasedas certezas eternas: – “Eu”. Insis-tiram: – “Qual é o maior ponta domundo?”. E Pelé: – “Eu”. Em ou-tro qualquer, esse desplante fariarir ou sorrir. Mas o fabuloso cra-que põe no que diz uma tal cargade convicção, que ninguém reage

e todos passam a admitir que eleseja, realmente, o maior de todasas posições. Nas pontas, nas meiase no centro, há de ser o mesmo,isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia,no já referido América x Santos.Enfiou, e quase sempre pelo esfor-ço pessoal, quatro gols em Pom-péia. Sozinho, liquidou a partida,liquidou o América, monopolizouo placar. Ao meu lado, um ameri-

cano doente estrebuchava: – “Vájogar bem assim no diabo que ocarregue!”. De certa feita, foi atédesmoralizante. Ainda no primei-ro tempo, ele recebe o couro nomeio do campo. Outro qualquerteria despachado. Pelé, não. Olhapara a frente e o caminho até o golestá entupido de adversários. Maso homem resolve fazer tudo sozi-nho. Dribla o primeiro e o segun-do. Vem-lhe ao encalço, ferozmen-te, o terceiro, que Pelé corta sen-sacionalmente. Numa palavra: –sem passar a ninguém e sem ajudade ninguém, ele promoveu a des-truição minuciosa e sádica da de-fesa rubra. Até que chegou ummomento em que não havia maisninguém para driblar. Não existia

uma defesa. Ou por outra: – a de-fesa estava indefesa. E, então, livrena área inimiga, Pelé achou que erademais driblar Pompéia e encaça-pou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assimnão basta apenas o simples e purofutebol. É preciso algo mais, ouseja, essa plenitude de confiança,de certeza, de otimismo, que faz dePelé o craque imbatível. Quero crerque a sua maior virtude é, justa-mente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. Eacaba intimidando a própria bola,que vem aos seus pés com uma lam-bida docilidade de cadelinha. Hoje,até uma cambaxirra sabe que Peléé imprescindível na formação dequalquer escrete. Na Suécia, elenão tremerá de ninguém. Há deolhar os húngaros, os ingleses, osrussos de alto a baixo. Não se infe-riorizará diante de ninguém. E édessa atitude viril e mesmo inso-lente que precisamos. Sim, amigos:– aposto minha cabeça como Pelévai achar todos os nossos adversá-rios uns pernas-de-pau.

Por que perdemos, na Suíça,para a Hungria? Examinem a foto-grafia de um e outro time entran-do em campo. Enquanto os húnga-ros erguem o rosto, olham duro,empinam o peito, nós baixamos acabeça e quase babamos de humil-dade. Esse flagrante, por si só, an-tecipa e elucida a derrota. ComPelé no time, e outro como ele,ninguém irá para a Suécia com aalma dos vira-latas. Os outros é quetremerão diante de nós.

Manchete Esportiva, 8/3/1958

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Os imperdoáveis oua super-humanidade dos goleiros

Jornalista, editor da Quartet Editora e torcedor do Fluminense.Alvanisio Damasceno

No início do filme O ano em que meus pais

saíram de férias, de Cao Hamburger, Mauro, ummenino que tem sua vida toda alterada quando seuspais são obrigados a deixá-lo na casa do avô paternopara fugir da perseguição da ditadura militar, estábrincando com seu jogo de futebol de botão quandolhe vem à mente um comentário do pai: “No fute-bol, o único que não pode falhar é o goleiro”.

Em fuga desesperada, os pais de Mauro nãochegam a entregar o menino ao avô, deixam-no naportaria do prédio, porque já haviam avisado ao velhoque assim o fariam e sabiam que no bairro paulistado Bom Retiro, tradicional pela comunidade judai-ca que ali vive, não haveria qualquer perigo para ogaroto. Era 1970, ano de Copa do Mundo.

A vida nos traz muitas surpresas. A morte éapenas uma delas, talvez a definitiva. Mas, paraos pais de Mauro, a morte era mais que esperada,seria iminente, se caíssem nas mãos da repressão.Por isso, nem pensaram que o coração do velhoMótel, o avô de Mauro (um dos últimos papéisde Paulo Autran no cinema), poderia falhar, como

falhou, e o menino começou a descobrir que seudestino lhe reservara a condição de goleiro: aque-le que passa a maior parte do tempo só, esperan-do a hora em que o pior vai acontecer, como acon-teceu com Barbosa, na Copa de 1950.

O pai do menino Mauro provavelmente lera acrônica “A eternidade de Barbosa”, em que NelsonRodrigues pontua: “Amigos, eis a verdade eterna dofutebol: o único responsável é o goleiro, ao passo queos outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natose hereditários. Um atacante, um médio e mesmo umzagueiro podem falhar. Podem falhar e falham vinte,trinta vezes, num único jogo. Só o arqueiro tem queser infalível. Um lapso do arqueiro pode significarum frango, um gol e, numa palavra, a derrota.”

Quem não tinha nascido ainda no dia 16 dejulho de 1950 pode tomar conhecimento da tragé-dia que ficou conhecida como maracanazo (umareferência ao bogotazo, revolta popular na capitalcolombiana pelo assassinato do líder político JorgeEliécer Gaitán, em 9 de abril de 1948) fazendo umapesquisa nos periódicos da época ou lendo a mo-nografia de Paulo Perdigão Anatomia de uma der-

rota. Neste dia, cerca de 200 mil pessoas foram aoestádio construído para abrigar o triunfo do Brasilna copa do mundo de futebol assistir à final dotorneio. O adversário do Brasil era o Uruguai, quegoleara a fraquíssima Bolívia por 8 x 0, empataracom a Espanha em dois gols e vencera a Suécia peloapertado placar de 3 x 2. Nada extraordinário com-parado à campanha do Brasil: 4 x 0 no México; 2 x2 com a Suíça; 2 x 0 na Iugoslávia; 7 x 1 na Suécia;e 6 x 1 na Espanha. (No jogo com a Espanha, aoquarto gol do Brasil, um Maracanã lotado de alegriae êxtase cantou “Touradas em Madri”, marcha deBraguinha e Alberto Ribeiro, sucesso do carnaval de1938 na voz de Almirante. Faltavam três dias para a

Barbosa, goleiro

da Seleção

Brasileira de

Futebol na Copa

de 1950. Estádio

de São Januário,

Rio de Janeiro,

22/8/1957

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final. Era muito cedo para cantar, mas ninguém ain-da sabia.) A melhor campanha do Brasil lhe deu avantagem de jogar a final pelo empate, o que au-mentou a sensação do povo, dos governantes, dosjogadores e dirigentes esportivos, da imprensa, detodo mundo, de que aquela copa era nossa.

Antes de começar o jogo, o general prefeito daentão capital federal e responsável pela construçãodo estádio, Ângelo Mendes de Moraes, saudou osatletas brasileiros como campeões do mundo, e nãoé improvável que esse desrespeito tenha enchidode brios o time adversário. O fato é que o Brasilenfrentou um adversário difícil, tanto que o pri-meiro tempo do jogo acabou sem mudança no pla-car. Mas a euforia continuava: para a torcida, paraos governantes, para os jogadores e dirigentes es-portivos, para a imprensa, para todo mundo, oprimeiro gol do Brasil, que abriria o caminho paraa vitória, era apenas questão de tempo.

Embora o empate sem gols nos desse o título,no primeiro minuto do segundo tempo do jogo oatacante Friaça marcou 1 x 0 para o Brasil, aumen-tando a certeza da vitória. O jogador uruguaioObdulio Varela, calmamente, pegou a bola no fun-do da rede e a levou até o meio do campo, incenti-vando os companheiros pelo caminho, enquantona arquibancada a torcida brasileira delirava. Ogesto do negro jefe, como o craque da celeste erachamado, que seria repetido pelo meio-campistabrasileiro Didi, na Copa de 1958, parece ter surti-do efeito, e, vinte minutos depois, Schiafino em-patou o jogo. Tudo parecia ainda sob controle atéque Ghiggia, aos 34 minutos do segundo tempo,recebeu uma bola pela direita, nas costas do za-gueiro Bigode, entrou na área e, quando parecia

que cruzaria para algum companheiro, chutou di-reto para o gol, passando a bola entre o goleiroBarbosa e a trave. O Uruguai virava o jogo, e Bar-bosa inaugurava a galeria dos imperdoáveis.

Os imperdoáveis

O homem atrás do Bigode era sério, simplese forte.

É improvável que Moacyr Barbosa Nascimento,quando começou a jogar futebol, no início dos anos40, conhecesse o “Poema de sete faces”, em que umanjo torto diz a Drummond de Andrade “vai, Carlos,ser gauche na vida”. Mas a história de Barbosa suge-re que o anjo não se limitou a vaticinar o destino dospoetas, andou também nas sombras vizinhas aos cam-pos de várzea, onde os goleiros jogam entre travesseparadas por pouco mais de sete metros.

Barbosa não sabia que seu destino de goleiroestava escrito há dois mil anos e começou a jogarfutebol como ponta-esquerda. Talvez não tenhaentendido que ser gauche na vida era mais que sercanhoto, era ser diferente, era fazer parte de umgrupo de desajustados, era freqüentar o pedaço docampo onde não crescia grama. Falamos em desti-no porque não sei o que fez Barbosa sair de umextremo a outro dos times de futebol, do onze aoum, tornando-se goleiro. (Deve ser por isso que,enquanto existiu o ponta-esquerda, sempre que umgoleiro era expulso, era ele, o ponta-esquerda, quedava o lugar para que o goleiro reserva entrasse.)Especulações à parte, o que se sabe é que Barbosase revelou um grande goleiro, seguro e elástico,com excelente senso de colocação e muita cora-gem: não hesitava em mergulhar nos pés dos ata-

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Partida pelo

Campeonato

Carioca,

Flamengo 1x1

América no

Maracanã.

Rio de Janeiro,

16/8/1964

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125125cantes adversários quando era necessário. Não sepode dizer que era azarado, porque, só pelo Vascoda Gama, time que o contratou em 1945, ganhou oscampeonatos cariocas de 1945, 1947, 1949, 1950,1952 e 1958 e participou decisivamente, em 1948,da conquista do Campeonato Sul-Americano deCampeões, precursor da Copa Libertadores daAmérica, ao defender um pênalti de Labruna, cra-que do River Plate da Argentina. Além disso, foibicampeão brasileiro pela Seleção Carioca (1950) esul-americano pela Seleção Brasileira (1949). Era,enfim, um goleiro vitorioso. E amado.

Todas essas glórias foram esquecidas na tardefatídica de 16 de julho de 1950, porque Barbosaera goleiro. Como observa o esquecido RoqueMáspoli, goleiro da seleção que derrotou o Brasilem 1950, em entrevista a Paulo Guilherme, “osheróis do futebol são sempre aqueles que fazemos gols e dão a vitória para suas equipes. Nin-guém lembra do pobre goleiro”. Vinte defesas ines-quecíveis, milagrosas, se anulam ante um únicofrango, se este representar a vitória do adversá-rio. Mauro, o menino-goleiro do filme de Ham-burger, quando trocou a casa dos pais pela do avô,acabou esquecendo na primeira o goleiro do seutime. E olha que no time de dez botões o goleiro éuma caixa de fósforos! Como o menino Mauro,que se sentia esquecido pelos pais, Gilmar dos San-tos Neves, goleiro do Santos e das seleções do Bra-sil campeãs do mundo em 1958 e 1962, compre-endeu, e o revelou à revista Playboy de maio de1990 (citada por Paulo Guilherme), que ser golei-ro é viver numa solidão terrível: “Ele é um espetá-culo à parte, como o primeiro bailarino de umacompanhia. De certa forma, ele não tem nada aver com os outros dez jogadores, que formam umconjunto à parte. Então, tudo o que o goleiro faztem destaque multiplicado: quando ele pratica umaboa defesa, que é apenas um dever, pode estar sal-vando o time. E uma pequena falha pode ser a tra-gédia”. Barbosa falhou? Uma das principais carac-terísticas do goleiro é fazer apostas; sua maior vir-tude é ganhá-las. Quando ele antevê acertadamen-te a jogada do atacante, aumentam suas chances deevitar o gol; quando suas previsões não se concre-tizam, seja porque o atacante pensou outra coisamesmo ou executou “erradamente” a jogada plane-

jada, mandando a bola numa direção imprevistaaté por ele, o goleiro só conta com a sorte. Quan-tas vezes não vemos os goleiros tentarem adivinharonde o atacante vai bater um pênalti, voando emseguida naquela direção? Quando acertam, quasesempre evitam o gol; quando erram, oferecem aoatacante o outro lado e até o centro do gol livrepara o arremate. “Não aparecem nem nas fotos dogol”, como dizem os comentaristas.

Na tarde de 16 de julho de 1950, como revelaRoberto Muylaert em livro dedicado ao goleiro,Barbosa apostou. E perdeu:

“Fico esperando Ghiggia centrar, dou um passo à

frente, ele com certeza vai fazer a jogada do primeiro gol,

ele sente que estou fora, embora viesse de cabeça baixa

como um touro miúra, mete o peito do pé na bola, eu

ainda toco nela, crente de que foi para escanteio, [...]

quando senti o silêncio total tomei coragem, olhei para

trás e vi a bola de couro marrom lá dentro.”

Para a maior parte dos brasileiros, não importamuito se Ghiggia fez tudo fora dos padrões, tornan-do a direção do chute imprevisível e a bola indefen-sável. Também não importa que o time do Brasiltenha ficado pelo menos mais dez minutos em cam-po sem conseguir fazer mais um gol no Uruguai, ogol de empate salvador. Para a maior parte dos bra-sileiros, Barbosa falhou, e o Brasil perdeu uma Copado Mundo que já estava ganha. A maior parte dosbrasileiros nunca o perdoou. Em seu “Fragmentos

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de um evangelho apócrifo”, Jorge Luis Borges, semnunca ter sido goleiro, ensina que “os atos dos ho-mens não merecem nem o fogo nem os céus” e que“o esquecimento é o único perdão e a única vingan-ça”. Prega no deserto: embora fosse excelente em suaposição, Barbosa talvez seja o único goleiro da histó-ria do futebol brasileiro que se tornou inesquecível.Infelizmente, não por suas defesas, não por ter sidoconsiderado o melhor goleiro de uma Copa do Mun-do, como ele foi em 1950, mas por uma falha.

“Meu Deus, por que me abandonaste se sa-bias que eu não era Deus, se sabias que eu erafraco”, parece dizer Barbosa, ao se levantar apóso segundo gol uruguaio, virar-se e se dirigir aocentro do gol, olhando para o nada.

O goleiro e a perda da condição humana

Em seu livro Goleiros: heróis e anti-heróis dacamisa 1, o jornalista Paulo Guilherme sustentaque o goleiro “simboliza a união de esperanças eangústias de milhões de pessoas que transferem parao gramado a fantasia de vitória e grandeza que lhesfaltam no dia-a-dia. O futebol é um esporte coleti-vo: são onze jogadores em cada equipe, mas, nofundo, é dele, exclusivamente dele, o goleiro, a res-ponsabilidade de manter esse sonho vivo”.

Ser goleiro, para o autor, “é, acima de tudo, serbravo, corajoso e auto-suficiente. É estar em constan-te desafio. É calar uma multidão que aguarda ansiosaa consolidação do objetivo máximo do futebol, o gol.É desafiar os mais consagrados rivais mostrando sercapaz de neutralizar toda a pompa que faz do outro ogoleador das multidões, o matador, o gênio da bola”.Talvez por isso ele acorde mais cedo, seja o único ater treinador específico, saia do treino mais tarde eesteja pronto para fraturar um dedo, levar uma bola-da, fazer qualquer coisa para evitar o gol.

“O goleiro está na contramão do futebol”, con-tinua Paulo Guilherme. “Enquanto os outros dezjogadores da equipe andam em frente, com o obje-tivo máximo de marcar o gol, o goleiro vê todo ofluxo da partida seguindo em sua direção, comoum gladiador acuado na arena.”

Em seu Manual de treinamento do goleiro, o pre-parador físico Raul Alberto Carlesso relaciona os atri-butos que fazem um bom goleiro: peso proporcional,

estatura adequada, presença, elasticidade, saber sal-tar e cair, velocidade, habilidade, flexibilidade, trei-namento, agilidade, coordenação, ritmo de jogo, re-flexo, equilíbrio, força, resistência, firmeza, valentia,tranqüilidade, decisão, capacidade de atenção múlti-pla, golpe de vista, visão, confiança, força de vonta-de, responsabilidade, inteligência e sorte. Relacionatambém o que o goleiro não pode ter: preocupação,medo, superstição, desdém, pânico, soberba, insegu-rança. Paulo Guilherme comenta que, se cumprir to-das essas exigências, o cara pode ser muito mais doque um bom goleiro, pode ser um super-herói.

Talvez por isso algumas personalidades interna-cionais, homens que mudaram o mundo com suasações ou idéias foram goleiros, como João Paulo II,Ernesto Che Guevara, Albert Camus, Arthur Conan Doylee Julio Iglesias; ou gostariam de ter sido, como Vladi-mir Nabokov, a quem Guilherme atribui a declaração:

“Eu era louco para ser goleiro. Na Rússia e nos países

latinos, esta arte altaneira sempre esteve cercada de um halo

de fascínio singular. Distante, solitário, impassível, o gran-

de goleiro é seguido nas ruas pela meninada em transe.

Rivaliza com o toureiro e os aviadores como objeto de emo-

cionada veneração. A camisa, o boné, as joelheiras, as luvas

saltando dos bolsos da calça o distinguem do resto do time.

É a águia solitária, o homem misterioso, o último defensor.

Os fotógrafos se ajoelham com reverência para imortalizá-lo

Partida entre o Campo

Grande e o Botafogo.

Rio de Janeiro, 1963

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127em pleno salto espetacular,

desviando com a ponta dos

dedos um fulminante chute

rasteiro, e o estádio ruge de

aprovação, enquanto ele per-

manece estendido onde caiu

durante uns instantes, com a

meta ainda intacta.”

Quem achar que Na-bokov exagerou, deve lem-brar que o goleiro é o úni-co do time que tem um diasó para ele, o 26 de abril.Ao participar das comemo-rações desta data, em2005, o ex-goleiro Zetti,que fez parte do grupo queganhou a Copa do Mundo

de 1994, declarou que sua condição é um eternoaprendizado, que passa equilíbrio, responsabilidadee ação não só para a profissão, mas para o homem,o ser humano. “Ser goleiro é uma filosofia de vida”,concluiu. Parece ter lido as palavras de Camus, quePaulo Guilherme também cita: “Ser goleiro é umdos trabalhos mais solitários que existem. Todas asdefesas extraordinárias da história colocadas juntasnão podem compensar um erro em um momentovital. Depois de muitos anos em que vivi numerosasexperiências, seguramente tudo o que sei sobre mo-ral e responsabilidade eu devo ao futebol. Aprendique a bola nunca vem para a gente por onde se espe-ra que venha. Isso me ajudou muito na vida, princi-palmente nas grandes cidades, onde as pessoas nãocostumam ser aquilo que a gente pensa que são.”

Em 1958, o Brasil realizou alguns jogos amis-tosos como preparação para a Copa do Mundoque se realizaria na Suécia. Em um desses jogos,contra o clube italiano Fiorentina, Garrincha dri-blou vários zagueiros e o goleiro e, quando já es-tava na linha do gol, voltou com a bola e driblounovamente goleiro e zagueiros antes de marcar ogol. Foi chamado de maluco. No filme 1958: o

ano em que o mundo descobriu o Brasil, de JoséCarlos Asbeg, o ponta-direita brasileiro recebeuma defesa inesperada: o goleiro italiano Sarti,que participou da jogada, diz que Garrincha não

fez uma maluquice total para quem compreendeque, no futebol, o que vale é o gol e o goleiro quetenta evitá-lo, tudo o mais, inclusive a forma comoo gol é feito, é “administração ordinária”.

Titular do Bahia em 2005, o goleiro Márciotem uma história curiosa. Ele é a terceira gera-ção de goleiros na família: “Começou com meuavô, Esmeraldo, goleiro do Bahia na década de60; depois com meu pai, Carlos Memera, noVitória, nos anos 80, e agora eu, no Bahia, noséculo XXI. No meu caso, acho que é genética,herança de família”, lembra Márcio.

As três gerações de Márcio sentiram na peleo que é perder a condição humana: errar é hu-mano, mas ao goleiro o erro não é permitido.

O complexo de vira-latas

A derrota do Brasil em 1950 sepultou qualquerresquício de auto-estima dos brasileiros. Aquarela do

Brasil e Carmen Miranda já haviam conquistado omundo, projetando o nome do Brasil no cenário inter-nacional como um país musical, alegre e hospitaleiro,de lindas praias e natureza exuberante, mas com ummistério: não conseguia distribuir renda e era semprecitado como “o país do futuro”. Nelson Rodrigues, senão desvendou, chegou muito perto de desvendar omistério, o Brasil tinha adquirido em 1950 um com-plexo de vira-latas. “Por ‘complexo de vira-lata’”, diziaRodrigues, “entendo eu a inferioridade em que o bra-sileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto domundo.” “O brasileiro é um narciso às avessas”, con-tinua, “que cospe na própria imagem. Eis a verdade:não encontramos pretextos pessoais ou históricos paraa auto-estima.” O pesadelo de Artur Ramos, de umpaís miscigenado e inepto, se realizava. De nada adian-tara o elogio à miscigenação de Gilberto Freyre emCasa-grande & senzala e de Jorge Amado em Tenda

dos milagres – o mulato inzoneiro estava fadado aofracasso na economia, no esporte, na civilização.

Se o país miscigenado estava fadado ao fracasso;o negro Barbosa ao opróbrio. Ao ser acusado de res-ponsável pela derrota do Brasil, despertou o racismoescondido em algum canto da alma dos brasileiros. Apartir daquele ano, virou verdade quase científica queos negros não serviam para jogar no gol. Poderiamaté completar um time sem muitas pretensões, mas

PH.FOT.03139.007

Page 129: Revista Recine nº 5 - 2008

OS IMPERDOÁVE I S

uma seleção nacional quequisesse ganhar uma Copado Mundo não poderia en-tregar sua cidadela inexpug-nável a um atleta de cor.Grandes goleiros negros sesucederam a Barbosa. Ne-nhum conseguiu ganhar aconfiança dos técnicos deseleção brasileira. A exce-ção talvez tenha sido Nelsonde Jesus Silva, o Dida, que,mesmo ganhando vários tí-tulos e sendo eleito pela Fifaem 2006 como o melhor

goleiro do mundo, nunca foi uma unanimidade.Segundo Nelson Rodrigues, o Brasil perderia seu

complexo de vira-lata ao conquistar a Copa do Mun-do de 1958. Barbosa nunca recuperou o respeito.

Barbosa: o filme

“Por instantes, tive a impressão ridícula deque estavam ali para me julgar.”

Albert Camus

Em site da internet dedicado ao Vasco da Gamae seus ídolos, na página reservada a Barbosa, MauroPrais cita o jornalista Armando Nogueira, que, se-gundo Prais, teria sentenciado: “Certamente, a cri-atura mais injustiçada na história do futebol brasi-leiro. Era um goleiro magistral. Fazia milagres, des-viando de mão trocada bolas envenenadas. O gol deGhiggia, na final da Copa de 50, caiu-lhe como umamaldição. E quanto mais vejo o lance, mais o absol-vo. Aquele jogo o Brasil perdeu na véspera.”

Em um dos curtas-metragens mais criativos denossa cinematografia, Jorge Furtado e Ana Luiza Aze-vedo contam a história de um homem que, em 1988,recorre a uma máquina do tempo para tentar mudara história da final da Copa do Mundo de 1950, queassistira ao lado do pai no Maracanã. As imagensdo jogo, da derrota do Brasil e o gol do Ghiggia nãolhe saíam da cabeça. Título do filme: Barbosa.

Baseado no conto “O dia em que o Brasil per-deu a Copa”, que Paulo Perdigão publicou inicial-mente na revista Ele Ela de dezembro de 1975 e

depois incluiu no livro Anatomia de uma derrota,o filme mescla cenas reais do dia do jogo com ce-nas gravadas, e seu roteiro já anuncia a tragédia naepígrafe: “O homem é um ator que gagueja na suaúnica fala, desaparece e nunca mais é ouvido.” 11Macbeth, Ato V, Cena 5.

O filme começa com um locutor em off saudan-do a torcida: “Boa tarde, senhores ouvintes. Che-gou o grande momento. Aqui no estádio municipaldo Maracanã está reunido o maior público que jápresenciou uma peleja de futebol. O empate é sufi-ciente para o Brasil sagrar-se campeão mundial. Mastodos nós, brasileiros, duzentos mil aqui no estádioe mais de cinqüenta milhões do Oiapoque ao Xuí,esperamos coroar este título com uma grande vitó-ria frente ao Uruguai.” Convidado a se pronunciar,o prefeito da cidade, Mendes de Moraes, segue nomesmo tom: “Brasileiros!, vós que daqui a algunsminutos sereis sagrados campeões do mundo, vósque não tendes rivais em todo o planeta, vós a quemeu já saúdo como vencedores. Cumpri minha pala-vra construindo este estádio. Cumpram agora o seudever, ganhando a Copa do Mundo!”

O filme tem dois protagonistas, o ex-goleiroBarbosa e o personagem vivido pelo ator Anto-nio Fagundes, ambos contam como viram o jogo.Comecemos pelo personagem de Fagundes: “Euestava lá. Tinha onze anos e a certeza de quetodos os meus sonhos eram possíveis. O jogofinal contra o Uruguai parecia apenas uma for-malidade a ser cumprida antes da festa. Nãohouve festa. Aos trinta e quatro minutos do se-gundo tempo, uma bola que partiu dos pés doponteiro Ghiggia passou no pequeno espaço en-tre a trave e a mão de Moacyr Barbosa. E omundo, que me parecia fiel e submisso, revelou-se naquele instante contingente e absurdo. Guar-do até hoje na memória, em agressivo preto-e-branco, a imagem de Barbosa.” “Naquela hora”,é o goleiro agora que lembra, “se tivesse umacratera ali e eu pudesse desaparecer, eu desapa-receria. Aí o estádio veio abaixo, né? O estádiodesmoronou em cima de mim, porque o públicose silenciou e [...] Fui, fui acusado, fui acusado,fui acusado de culpado. Não adianta que issoem nada vai mudar as coisas que já acontece-ram. Nós não vamos voltar ao passado.”

PH.FOT.03235.008

Partida entre

Vasco e

América pelo

campeonato

carioca no

Maracanã. Rio

de Janeiro, s/d

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FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

129Mas o homem que estava lá, o homem que alirecebeu os únicos abraços do pai em toda a vida,não consegue conviver com aquelas lembranças evolta ao passado. “Não sei ao certo se foi paramudar o destino desse homem ou se para salvar aminha própria vida que programei a máquina paraaquele dia. Minha fé e minha infância foram so-terradas pelo gol de Ghiggia. Eu agora iniciavauma viagem ao centro do meu pesadelo.” Talvezo que o incomodava mais fosse a consciência docomplexo de vira-latas a que se referia NelsonRodrigues: “Nos últimos trinta e oito anos se fa-lou tanto sobre este jogo que eu não sabia mais oque vinha de minha própria memória. O que euvia agora eram duzentas mil pessoas a caminhoda tragédia, confiando numa coisa tão absurdacomo a justiça da história. Nos próximos trinta eoito anos, entre tragédias e vitórias, aquela derro-ta permaneceria, como um sinal do destino, acomprovar que neste país nada vai dar certo.”

Mas o pesadelo maior e mais duradouro era ode Barbosa: “Então foi isso que aconteceu: na loja,eu tava na loja, e essa senhora entrou pra compraruma lâmpada. E eu fui atendê-la. Ela chamou ogarotinho, chamou do carro, o carro tava paradona frente da loja. Chamou o garotinho e disse:‘Olha, meu filho, foi esse homem aí que fez o Bra-sil chorar.’ E eu disse: ‘Ah, fui eu, minha senho-ra?’” Por que esse ódio, essa perseguição eterna aogoleiro do Vasco e da seleção brasileira? Saber, como

Borges e Lúcio Cardoso, que só os que amamospodem nos ferir, não ajuda muito. Outros atletasdo Brasil que participaram da peleja não foramacusados, continuaram suas carreiras normalmen-te. Alguns foram até esquecidos. Barbosa não.

O filme continua com a volta ao passado deFagundes para resolver o seu problema e o de Bar-bosa. Na hora do segundo gol do Uruguai, o ho-mem/menino grita “Barbosa!”, tentando chamar aatenção do goleiro, mas não adianta.

“Eu estava lá. Tinha 11 e 49 anos. O socoque eu daria em Ghiggia, e que ficaria na histó-ria, não aconteceu. E o meu grito de desesperomal foi ouvido em meio àquele silêncio ensurde-cedor. O que ficou, para a história e para mim,foi o silêncio. E a culpa.”

Devemos nos sentir culpados por não esquecerBarbosa? Em 1994, ele era um homem mais tristeque revoltado, mas não se conformava: “A pena má-xima para crimes no Brasil é 30 anos; eu, que nãocometi crime nenhum, estou condenado há 44 anos.”

Moacyr Barbosa morreu em 2000, na cidade deSantos (SP). Passou cinqüenta anos de sua vida semexperimentar “a terna indiferença do mundo” a quese referiu Mersault, personagem de Camus em O

estrangeiro. Mas parece ter sido sábio o bastantepara rir da super-humanidade que se esperava dele ese espera de tantos goleiros, pois vem acompanhadade um sorriso sua última fala no filme de Ana LuizaAzevedo e Jorge Furtado: “Ser artista é difícil, hein?”

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poema de sete faces. In:______. Nova reunião: 19 livros de poesia. v. 1. Rio de Janeiro:José Olympio; Brasília: INL, 1983, p. 3.BORGES, Jorge Luis. Fragmentos de um evangelho apócrifo.In:______. O elogio da sombra. Tradução de Carlos Nejar eAlfredo Jacques. Porto Alegre: Globo, 2001.CAMUS, Albert. Estado de sítio. O estrangeiro. Traduções de MariaJacintha e Antônio Quadros. São Paulo: Abril Cultural, 1979.CARLESSO, Raul Alberto. Manual de treinamento do goleiro.Rio de Janeiro: Palestra Edições, 1981.GUILHERME, Paulo. Goleiro: heróis e anti-heróis da camisa 1.Ilustrações de Baptistão. São Paulo: Alameda, 2006.MUYLAERT, Roberto. Barbosa: um gol faz cinqüenta anos. SãoPaulo: RMC, 2000.PERDIGÃO, Paulo. Anatomia de uma derrota. Porto Alegre:L & PM, 2000.RODRIGUES, Nelson. A pátria em chuteiras: novas crônicas defutebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Sites

http://www.netvasco.com.br/mauroprais/vasco/index.htmlhttp://www.portacurtas.com.br/index.asp

Filmes

O ano em que meus pais saíram de férias. Longa-metragem. Ficção.Direção de Cao Hambur-ger. Lançamento: 2006.Barbosa . Direção deAna Luiza Azevedo eJorge Furtado. Ficção/documentário. Lança-mento: 1988.1958: o ano em que omundo descobriu o Bra-sil. Documentário. Di-reção: José Carlos Asbeg.Lançamento: 2008.

PH.FOT.03426.009

Page 131: Revista Recine nº 5 - 2008

Partida pelo Campeonato

Carioca, Fluminense 2x2

Botafogo, no Maracanã. Da

esquerda para a direita: Jair

Marinho, Amarildo – artilheiro

do campeonato – e o goleiro

Castilho. Rio de Janeiro,

15/10/1961

Page 132: Revista Recine nº 5 - 2008

PH.FOT.03196.038

Page 133: Revista Recine nº 5 - 2008

Botafogo e seu torcedor poetaBotafogo e seu torcedor poetaBotafogo e seu torcedor poetaBotafogo e seu torcedor poetaBotafogo e seu torcedor poeta

Escritor, poeta e jornalista.Paulo Mendes Campos

PH.FOT.00852.119

Botafogo e seu torcedor poetaBotafogo e seu torcedor poetaBotafogo e seu torcedor poetaBotafogo e seu torcedor poetaBotafogo e seu torcedor poeta

Page 134: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

133

Que partilhamos defeitos e qua-lidades comuns, não há dúvida. Nosmeus torneios, quando mais precisomanter os números do placar, bobeionum lance, faço gol contra, compro-meto, tal qual o Botafogo, uma difí-cil campanha.

A mim e a ele soem acontecersumidouros de depressão, dos quaisirrompemos eventualmente para aeuforia de uma tarde luminosa.

Sou preto e branco também, que-ro dizer, me destorço para pinçar naspontas do mesmo compasso os dua-lismos do mundo, não aceito o mani-queísmo do bem e do mal, antes meobstino em admitir que no brancoexiste o preto e no preto, o branco.

Sou um menino de rua perdidona dramaticidade existencial da poe-sia; pois o Botafogo é um menino derua perdido na poética dramaticida-de do futebol.

Há coisas que só acontecem aoBotafogo e a mim. Também a minhacidadela pode ruir ante um chute ri-dículo do pé direito do Escurinho.

O Botafogo tem uma sede, masesqueceu a vida social; também eusó abro os meus salões e os meusjardins à noite silenciosa.

O Botafogo é de futebol e rega-tas; também eu sou de bola e de pe-nosas travessias aquáticas.

O Botafogo é um clube com tem-peramento amadorístico, mas força-do, a fim de não ser engolido pelasferas, a profissionalizar-se ao máxi-mo; também sou cem por cento umcoração amador, compelido a vivera troco de soldo.

Reagimos ambos quando menosse espera; forra-nos, sem dúvida, um

Publicado em Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade (orgs.), Rio de Janeiro em prosa & verso. Rio de Janeiro: José Olympio,1965, p. 218-220.

estofo neurótico. Se a vida fosse ló-gica, o Botafogo deixaria de levar ofutebol a sério, fechando suas por-tas; eu, se a vida fosse lógica, deixa-ria de levar o mundo a sério, fechan-do os meus olhos.

O Botafogo é capaz de quebrarlanças por um companheiro injusti-çado pela Federação; eu aguardo aazagaia de uma justiça geral.

O Botafogo pratica em geral o4-3-3; como eu, que me distribuo as-sim em campo: no arco, as mãos,feitas para proteger minha porta; naparede defensiva meus braços, meupeito aberto, meus joelhos e meuspés; no miolo apoiador, trabalho comos pulmões e o fígado; vou à ofensi-va com a cabeça, a loucura e o cora-ção. Falta um, Zagalo. Em mim, essaenergia sem colocação definida é aalma, indo e vindo, indistinta, atô-nita, sarrafeada, dismilingüindo-seaté o minuto final.

O Botafogo é capaz de cometeruma injustiça brutal a um filho seu,e rasgar as vestes com as unhas doremorso; como eu.

O Botafogo põe gravata e vai àmacumba cuidar de seu destino; eumeto o calção de banho e vou à praiadiscutir com Deus.

O Botafogo não se dá bem comos limites do sistema tático; tem queser como eu, dramaticamente inven-tado na hora.

Miguel Ângelo é botafogo, Leo-nardo é flamengo, Rafael é fluminen-se; Stendhal é botafogo, Balzac é fla-mengo, Flaubert é fluminense; Baché botafogo, Beethoven é flamengo,Mozart é fluminense. Sem desfazernos outros, é com eles que eu fico,

Miguel, Henrique, João Sebastião.Dostoiévski é botafogo, Tolstoi é fla-mengo (na literatura russa não há flu-minense); Baudelaire é fluminense,Verlaine é flamengo, Rimbaud é bo-tafogo; Camões não é vasco, é fla-mengo, Garrett é fluminense, Fernan-do Pessoa é botafogo. Sim, Macha-do de Assis é fluminense, mas no fun-do, no fundo, debaixo da capa ética,Machado, um bairrista, moravaonde? Laranjeiras!

O Botafogo é paixão, é Brasil, éconfusão; Campos Paulo Mendes épaixão, Brasil, confusão.

O Botafogo conquistou um cam-peonato esmagando inesperadamen-te o Fluminense de 6 a 2; uma vez,enfrentei um dragão enorme e en-trei no castelo encantado.

O Botafogo, às vezes, se mal-trata, como eu; o Botafogo é meioboêmio, como eu; o Botafogo semGarrincha seria menos Botafogo,como eu; o Botafogo tem um pé emMinas Gerais, como eu; o Botafogotem um possesso, como eu; o Bota-fogo é mais surpreendente do queconseqüente, como eu; ultimamen-te, o Botafogo anda cheio de cobrase lagartos, como eu.

O Botafogo é mais abstrato doque concreto; tem folhas-secas; al-terna o fervor com a indolência; àsvezes, estranhamente, sai de umaderrota feia mais orgulhoso e maisbotafogo do que se houvesse ven-cido; tudo isso, eu também.

Enfim, senhoras e senhores, oBotafogo é um tanto tantã (que nemeu). E a insígnia de meu coração étambém (literatura): uma estrela so-litária. [1962]

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

133

PH.FOT.00852.119

Page 135: Revista Recine nº 5 - 2008

Nelson Rodrigues

Começo aqui a minha grave função homéri-

ca. Minha memória é um chão todo juncado de

clássicos e peladas fenecidos. Antes, porém, de

exumar os velhos jogos, preciso explicar toda a

minha dramática relação com o Fluminense.

Sou Tricolor, sempre fui Tricolor. Eu diria

que já era Fluminense em vidas passadas, an-

tes, muito antes da presente encarnação. Vejo-

me em Aldeia Campista, garoto de pé no chão

e calça furada. Teria quatro anos, se tanto.

1916. A Primeira Grande Guerra ainda matava

milhares, ainda matava milhões. E como então

se promovia mundialmente o bigode do Kaiser!

Esse bigode era o grande assunto da caricatura,

em todos os idiomas.

Para mim, moleque da rua Alegre, havia uma

relação nítida e taxativa entre a guerra e o Flumi-

nense. Seríamos campeões em 17, 18, 19. Ainda

hoje, meio século depois, tenho a sensação de que

a Grande Guerra trazia no ventre o tricampeona-

to Tricolor. Vejamos o absurdo: – a Grande Guer-

ra seria apenas a paisagem, apenas o fundo das

nossas botinadas. Enquanto morria um mundo e

começava outro, eu só via o Fluminense.

Quem ia ao futebol era Milton, o meu ir-

mão mais velho. Acompanhava o Tricolor, com

uma obstinação de fanático. Quando ele chega-

va, de noite, eu vinha correndo perguntar: –

“Quem ganhou?”. E ele, tostado pelo sol dos clás-

sicos e das peladas: – “O Fluminense!”. Era o

Dramaturgo, escritor e jornalista.

Os irmãos KaramazovOs irmãos Karamazov

PH.FOT.03604.040

Page 136: Revista Recine nº 5 - 2008

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

135Publicado em Nelson Rodrigues e Mário Filho, Fla-Flu... e as multidões despertaram! Organização de Oscar Maron Filho e RenatoFerreira. Rio de Janeiro: Edição Europa, 1987, p. 11-13.

Fluminense, sempre o Fluminense. Até que, um

dia, não foi o Fluminense.

Imagino que o leitor esteja fazendo a impacien-

te pergunta: “E o Flamengo?” Hoje, o Rubro-Ne-

gro, por onde vai, arrasta multidões fanatizadas. Há

quem morra com o seu nome gravado no coração, a

ponta de canivete. Mas eu não falei no Flamengo e

explico: – o Flamengo nem sempre foi Flamengo.

Cada brasileiro, vivo ou morto, já foi Fla-

mengo por um instante, por um dia. Vale a pena

voltar a 1911, ou 12, não sei. Como eu dizia, o

Flamengo ainda era Fluminense.

Eu disse que o Flamengo era ainda Fluminense e

já retifico. Antes do futebol, o Rubro-Negro foi remo

ou, melhor dizendo, foi “domingo de regatas”.

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

135

Até que, um dia, houve uma dissidência no

Fluminense. Eu gostaria de saber que gesto, ou

palavra, ou ódio deflagrou a crise. Imagino bate-

bocas homicidas. E não sei quantos Tricolores sa-

íram para fundar o Flamengo. Hoje, nos grandes

jogos, o estádio Mário Filho é inundado pela mul-

tidão rubro-negra. O Flamengo tornou-se uma for-

ça da natureza e, repito, o Flamengo venta, chove,

troveja, relampeja. Eis o que eu pergunto: – os ga-

tos pingados que se reuniram, numa salinha, imagi-

navam as potencialidades que estavam liberando?

Há um parentesco óbvio entre o Fluminense

e o Flamengo. E como este se gerou no ressenti-

mento, eu diria que os dois são os irmãos Kara-

mazov do futebol brasileiro.

PH.FOT.00792.005

Page 137: Revista Recine nº 5 - 2008

RecordaçõesRecordaçõesRecordaçõesRecordaçõesRecordaçõesem preto e vermelhoem preto e vermelhoem preto e vermelhoem preto e vermelhoem preto e vermelho

Escritor e jornalista. Autor de, entre outros títulos, Para sempre, Flamengo (1996), romance-reportagemvencedor na categoria romance do Prêmio Programa de Bolsas-95 da Fundação Biblioteca Nacional.

Jeferson de Andrade

A paixão pelo seu time cresce na derrota?

Parece que sim.

Quando o Flamengo foi derrotado pelo Améri-

ca do México por 3 a 0, em pleno Maracanã, na

disputa da Copa Libertadores de 2008, em derrota

classificada como tragédia, imediatamente escrevi

uma carta aos meus dois filhos torcedores rubro-

negros, avisando que dali para frente as vitórias seri-

am mais comemoradas. Significariam muito mais.

No mesmo palco do Maracanã, houve aque-

la outra trágica derrota, da seleção brasileira para

o Uruguai, na Copa de 1950. E em todos os jo-

gos contra a seleção celeste aquele 2 a 1 é

relembrado. Ninguém esquece.

Quando o Flamengo vencer uma Libertadores,

a disputa de 2008, pela derrota inesperada, será

recordada.

Como torcedor do Flamengo, gosto de vencer

os campeonatos estaduais. Mas nenhum é mais

prazeroso do que vencer o Botafogo.

Muito simples. Em 1962, aos meus 15 anos de

idade, saí de minha cidade, Paraguaçu, no sul de

Minas Gerais, e viajei até o Rio de Janeiro para a

final do carioca contra o Botafogo. Deu Garrincha,

com show, 3 a 0. Era a segunda vez que via o

Flamengo e a segunda derrota.

Torcia desde 1955, através do rádio, pela voz

de Jorge Curi, da Nacional, ou Waldir Amaral, da

Globo. E o maior medo era sair de Paraguaçu, ir

ao Rio para torcer num estádio pelo Mengão e sair

derrotado. Por isso, escolhi Flamengo e Olaria, jogo

da última rodada do campeonato de 1960. Meu

tio Abel, botafoguense como o meu pai, morava

no Leme. Hospedado em sua residência, ele me

levou a General Severiano, campo do Botafogo por

sinal, numa noite de quarta-feira, para que conhe-

cesse de perto os ídolos Joel, Moacyr, Henrique,

Dida e Babá, um ataque de ouro do Flamengo da

década de 50. Ainda tinha Jadir, Dequinha e Jordan.

O jogo não valia nada nem para o Flamengo nem

para o adversário, um dos últimos da tabela. Ambos

longe de Fluminense e América, que disputariam

em 1960 a final, título vencido pelo América.

E não é que o Flamengo perdeu de 2 a 1 para

o Olaria? Vi um torcedor gordo, homenzarrão,

descendo a arquibancada e chorando. Repetia, ca-

denciado: “Perder foi humilhação.”

Se para ele o jogo foi “humilhação”, que seria

para um garoto do interior mineiro, sonhando o

primeiro jogo, a primeira vitória? E derrota exata-

mente para um dos chamados times “pequenos”

do campeonato, ocupando últimas colocações na

tabela de classificação?

Veio o segundo jogo. Novamente, derrota

para o Botafogo campeão.

Em 1963, retornei ao Maracanã e, com o 0

a 0, o Flamengo foi campeão na disputa com o

Fluminense. Três jogos, duas derrotas e um em-

pate, se bem que valendo título.

Busco em minha memória e não consigo en-

contrar o quarto jogo em que vi o Flamengo atuar

num estádio e sair vitorioso. Tenho vagas lembran-

ças, jogo no campo do Independência, em Belo

Horizonte, amistoso em 1966 ou 1967.

Sei que em 1969 estive no Maracanã para a

final contra o Fluminense e perdemos de 3 a 2.

Foi então que surgiu Zico, e as recordações

daí em diante são apenas de grandes vitórias.

Quando me mudei de Belo Horizonte para o

Rio, em 1977, afirmo que não foi apenas por

motivos profissionais, mas também para acom-

panhar no Maracanã a trajetória vitoriosa da car-

reira de Zico no Flamengo. Assim, meus filhos

torcedores do Flamengo se acostumaram com vi-

Page 138: Revista Recine nº 5 - 2008

A IMPRENSANO CINEMA

137

tórias, cresceram cantando títulos e glórias, e,

por isso, receberam a carta de advertência sobre

a derrota para o América do México. Foi o co-

ração sofrido de pai torcedor que fez o alerta e

lembrou que os próximos títulos do Flamengo

serão festejados com mais paixão e ardor.

Para encerrar essas confissões de torcedor,

gostaria de registrar duas relações pessoais com

os ídolos Dida e Zico.

Primeiro, a de Zico. Em 1971, escrevi um

dos meus contos mais conhecidos: um homem

bebe cerveja no bar do Odilon. Na ocasião, Zico

ainda era uma promessa nas divisões de base do

Flamengo. Mas, pelo rádio e jornais, já acompa-

nhava sua história e me empolgava com os seus

feitos, tanto quanto os inúmeros repórteres que

freqüentavam a Gávea. Pensei: talvez esse meni-

no possa vir a ser o ídolo que falta ao Flamengo

desde o fim da carreira de Dida.

No meu conto, havia um menino ajudante

do Odilon, o dono do bar. Batizei esse persona-

gem: Zico. Porque em todos os bares do país,

na década de 60, se havia um “crioulinho”, fa-

talmente era chamado para o atendimento como

“Pelé”. Sonhei, em 1971, que os meninos “bran-

quinhos” de muitos bares fossem chamados de

“Zico”. Em 1985, salvo engano a data, encon-

trei-me com Zico num colégio na Barra da

Tijuca, dei-lhe de presente o meu livro com o

conto e contei essa história.

Já o encontro com Dida se deu em 1990 ou 1991.

Dida sofreu um aneurisma cerebral, foi opera-

do e se restabelecia num hospital no bairro de

Botafogo. Certo sábado, ouço pelo rádio o boletim

médico do seu estado de saúde, passava bem, já

podia receber visitas, mas reclamava da ausência

de amigos e, ainda, de torcedores do Flamengo.

Compreendi a dor da alma do antigo ídolo

da massa rubro-negra. Dida estava só num quar-

to de hospital e tinha saudades dos aplausos de

um Maracanã lotado.

Liguei para o hospital e pedi para falar com

algum familiar de Dida. Atendeu-me a esposa do

craque. Expliquei-lhe que não conhecia Dida pes-

soalmente, era um torcedor, desejando visitá-lo,

apenas. Ela quase me disse venha imediatamente,

tanta emoção colocou em sua voz para demonstrar

que minha visita seria importante.

O telefonema foi na manhã do sábado e pela

tarde fui visitá-lo. Recebido efusivamente pela

esposa de Dida, percebi que minha presença ali

era realmente importante.

Lá já estava, também para uma visita ao Dida,

um ex-jogador de futebol. E, curiosamente, não era

um ex-companheiro de clube e sim de time adversá-

rio. Não me lembro qual, mas era um ex-jogador do

América, exatamente o adversário do Flamengo no

tricampeonato de 1955, quando Dida fez os quatro

gols do nosso time e deu a vitória de 4 a 1 sobre o

América. Foi o primeiro tricampeonato carioca do

Maracanã para a torcida rubro-negra. A esposa de

Dida me apresentou assim para ele:

– Dida, esse senhor é torcedor do Flamengo.

Diz que você é o ídolo dele. Veio vê-lo.

Dida estava com a cabeça totalmente raspa-

da, alguns curativos, ainda meio imobilizado na

cama hospitalar. Convalescente, falava pouco e

por murmúrios. Ao ouvir a explicação sobre

minha presença naquele quarto de hospital, ex-

pressou-se pelos olhos. Depois, um sorriso. Vi

tanta alegria e emoção em seus olhos e naquele

sorriso, que percebi imediatamente: eu era ali

um Maracanã lotado, eu era ali todos os torce-

dores do Flamengo, uma torcida inteira.

FUTEBOL,CINEMAE PAIXÃO

137

PH.FOT.03475.004

Page 139: Revista Recine nº 5 - 2008

Esse cara aí

Compositor.Aldir Blanc

Sabe esse sujeito que sai do estádio ou desliga a televisão seperguntando: “Será que nós ganhamos mesmo? Tem alguma coisaerrada! Provavelmente vão descobrir que um jogador estava sem adocumentação adequada ou um caso de dopping involuntário por usode descongestionante... Ganhamos ou já entrei na fase do delírio detanto pagar mico?”

Esse cara aí é Vasco.

Manja o otário que joga todas as suas esperanças em promessas decontratações de craques que estão insatisfeitos no exterior, e quealmoçaram com dirigentes, acertaram tudinho pra voltar, só falta umpapel dos Emirados liberando os jogadores, e depois lê nos jornais queos cobras vão mesmo é pro Flamengo?

Esse cara aí é Vasco.

Já viu um sujeito dizer que prefere ser desclassificado nas semifinais deum torneio porque está farto do corinho de “vice”?

Esse cara aí é Vasco.

Aquele malandro no boteco, olhando a cerveja com ar meditabundo,sorumbático, desconfiado, e quando você pergunta o que é que tápegando, responde: “Nosso próximo jogo é contra o lanterna em casa.Sei não! Sei não!”

Esse cara aí é Vasco.

E que, apesar de todos os vexames e escândalos, da falta de dinheiro emcaixa, da sede penhorada, da zaga que lembra o filme do Fellini Ospalhaços, dos oito ou nove passa-foras consecutivos dados pelo arqui-rival, ainda acredita que o Expresso da Vitória vai voltar, e teremos umgoleraço que lembre o Barbosa, uma defesa de leões, um meio-campoque não deixará saudade do lendário trio Ely do Amparo, Danilo (OPríncipe) e Jorge, e um ataque que driblará, fará gols de bicicleta depoisde lençóis e não isolará a bola lá na casa do cacete ao cobrar umpênalti?

Pois é, esse cara aí também é Vasco. De coração.

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A IMPRENSANO CINEMA

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FUTEBOL,CINEMA EPAIXÃO

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Djalma Santos representa oBrasil na troca de flâmulas do

jogo amistoso Brasil 5 x 0Israel, realizado na Europa.

s.l., 19/5/1963

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Na minha distante infância fui um apaixonado colecionador de flâmulas. Quem me iniciou nessa paixão foi meu tioCarlos Frederico Andries, agente ferroviário, que trabalhou em dezenas de pequenas cidades mineiras. De todaselas, trazia como maior troféu e lembrança uma flâmula do time local, que afixava cuidadosamente na parede de umquarto de fundos da casa de meu avô, ao qual poucos tinham acesso – exceção para este seu sobrinho, flamenguistacomo ele. Eram centenas, cobrindo de alto a baixo a parede. Cada flâmula rendia uma história: da cidade, das moçase do time local. De toda a sua coleção, a de que ele mais se orgulhava era uma do São Cristóvão (RJ), de cetimbrilhante e com babados nas laterais, onde se lia: “São Cristóvão campeão de 1926, breve será outra vez”.

Cheguei a juntar meia centena delas para desespero dos meus pais. Tempos depois, mudei de casa várias vezes, e a cadamudança, as flâmulas iam se perdendo, até que não restou nenhuma. Minto. Quando cheguei ao Rio, em 1973, trouxeuma última na bagagem, do Sport Club Juiz de Fora, onde um dia tentei ser um craque da bola. Essas lembranças mevoltaram ao ver pela TV, na Copa européia, os capitães das equipes trocando flâmulas antes do início da contenda.Coisa rara nos dias atuais. Eu fui às lágrimas: eu julgo ser esta troca um ato de grande nobreza esportiva e cultural.

André Andries

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